30.08.2014 Views

Revista edicao #2. - IGC - Universidade Federal de Minas Gerais

Revista edicao #2. - IGC - Universidade Federal de Minas Gerais

Revista edicao #2. - IGC - Universidade Federal de Minas Gerais

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia e do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia <strong>IGC</strong>-UFMG janeiro_junho vol.2 nº1 2006 ISSN 1808-8058


<strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia e do<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia <strong>IGC</strong>-UFMG<br />

Comissão Editorial<br />

Antônio Pereira Magalhães Júnior (editor responsável)<br />

Célio da Cunha Horta<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Márcia Maria Duarte dos Santos<br />

A imagem em relevo seco da capa<br />

foi baseada nesta plaqueta <strong>de</strong> barro<br />

da Baixa Mesopotâmia, gravada no<br />

quarto milênio a.C.. Simboliza aqui<br />

a relação homem/espaço. Já naquela<br />

época, o homem, representado<br />

pelo <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma mão,<br />

<strong>de</strong>marcava o seu território e suas<br />

posses, retratados nesse documento<br />

<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> por árvores, sacos<br />

<strong>de</strong> grãos e instrumentos agrícolas.<br />

JEAN, Georges. A escrita: memória dos homens.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2002. p. 16. Pequena placa<br />

pictográfica. Sumer. Museu do Louvre. Crédito<br />

fotográfico: Reunião dos Museus Nacionais.<br />

Conselho Editorial<br />

Allaoua Saadi (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Antônio Paula <strong>de</strong> Faria (UFRJ)<br />

Beatriz Ribeiro Soares (UFU)<br />

Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF)<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Cristina Helena Ribeiro Rocha Augustin (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Geraldo Magela Costa (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

João Antonio <strong>de</strong> Paula (Ce<strong>de</strong>plar/UFMG)<br />

Josilda Rodrigues da Silva Moura (UFRJ)<br />

Junia Ferreira Furtado (FAFICH/UFMG)<br />

Lúcia Helena <strong>de</strong> Oliveira Gerardi (UNESP)<br />

Luis Alberto F. Brandão Santos (FALE/UFMG)<br />

Marcel Bursztyn (UnB)<br />

Maria Adélia A. <strong>de</strong> Souza (TERRITORIAL)<br />

Maria Encarnação Beltrão Spósito (UNESP)<br />

Maurício <strong>de</strong> Almeida Abreu (UFRJ)<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Roberto Célio Valadão (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Roberto Luiz Melo Monte-Mór (Ce<strong>de</strong>plar/UFMG)<br />

Selma Simões <strong>de</strong> Castro (UFG)<br />

Sérgio Manuel Merêncio Martins (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Telma Men<strong>de</strong>s da Silva (UFRJ)<br />

Colaboradores <strong>de</strong>ste número<br />

Ana Clara Mourão Moura (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Ana Maria Simões Coelho (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Alexandre Magno A. Diniz (Puc/<strong>Minas</strong>)<br />

Anselmo Alfredo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Bernardo Machado Gontijo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Claudinei Lourenço (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Doralice Barros Pereira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Fernanda Borges <strong>de</strong> Moraes (EA/UFMG)<br />

Klemens Augustinus Laschefski (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

José Antônio Souza <strong>de</strong> Deus (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Maria <strong>de</strong> Fátima Almeida Martins (FAE/UFMG)<br />

Maria Luiza Grossi Araújo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Marly Nogueira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Ricardo Alexandrino Garcia (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Valéria Amorim do Carmo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Vilma Lúcia Macagnan Carvalho (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Weber Soares (<strong>IGC</strong>/UFMG)


Editorial 5 Editorial<br />

Antônio Pereira Magalhães Jr<br />

Sumário<br />

Artigos 7 Recortes <strong>de</strong> lugar<br />

científicos<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa<br />

Rosana Rios Corgosinho<br />

22 Agricultura familiar na<br />

Amazônia: o contexto<br />

da cafeicultura no centro<br />

<strong>de</strong> Rondônia<br />

Jacob Binsztok<br />

34 Impactos ambientais<br />

<strong>de</strong>correntes da ocupação<br />

antrópica no pontal do Capri,<br />

ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul,<br />

SC, Brasil<br />

Cláudia Regina dos Santos<br />

Norberto Olmiro Horn Filho<br />

47 Impactos da silvicultura <strong>de</strong><br />

eucalipto no aumento das<br />

taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas<br />

fluviais: o caso <strong>de</strong> mananciais<br />

<strong>de</strong> abastecimento público<br />

<strong>de</strong> Caeté/MG<br />

André Augusto Rodrigues Salgado<br />

Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

58 Brejo dos Crioulos:<br />

saberes tradicionais e<br />

afirmação do território<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

78 Reciclando vidas ou<br />

reutilizando sua sujeição?:<br />

reflexões sobre produção<br />

do espaço, cidadania e<br />

inclusão social na ASMARE<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

93 A importância das escalas<br />

espaciais para compreensão<br />

do processo <strong>de</strong> globalização<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Resenha 109 O espaço da pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

em Código 46<br />

Tânia Bittencourt Bloomfield<br />

Notas <strong>de</strong> 115 A expansão metropolitana<br />

pesquisa<br />

<strong>de</strong> Belo Horizonte: dinâmica<br />

e especificida<strong>de</strong>s no eixo-sul<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Eventos 119 Dia Meteorológico Mundial<br />

Dissertações 123 Dissertações <strong>de</strong>fendidas no<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

em Geografia/UFMG no<br />

primeiro semestre <strong>de</strong> 2006


Geografias: <strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia / Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Geografia, Departamento <strong>de</strong> Geografia do Instituto<br />

<strong>de</strong> Geociências, UFMG. – v. 2, n. 1 (jan./jun.) 2006- – Belo<br />

Horizonte: UFMG, Departamento <strong>de</strong> Geografia, 2005- .<br />

v. : il.; 25 x 20 cm.<br />

Semestral<br />

ISSN 1808-8058<br />

1. Geografia – Periódicos. I. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Departamento <strong>de</strong> Geografia. II. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia.<br />

Catalogação na publicação: Biblioteca do Instituto <strong>de</strong> Geociências - UFMG<br />

Reitora da UFMG<br />

Ronaldo Tadêu Pena<br />

Diretor do Instituto <strong>de</strong> Geociências<br />

Cristina Helena Ribeiro Rocha Augustin<br />

Chefe do Departamento <strong>de</strong> Geografia<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

Coor<strong>de</strong>nadora do Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />

Projeto Gráfico e Capa<br />

Glória Campos, Clô Paoliello (Mangá)<br />

Secretaria da Redação<br />

Rose A. Botelho Rodrigues Acácio<br />

Revisão<br />

Darlene Ávila Figueiredo<br />

Diagramação e Formatação dos originais<br />

Mangá Ilustração e Design Gráfico<br />

Fotografia da página 6<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Apoio<br />

Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pós-graduação/UFMG<br />

<strong>Revista</strong> Geografias<br />

Departamento <strong>de</strong> Geografia - <strong>IGC</strong>/UFMG<br />

Av. Antônio Carlos 6627, Pampulha, CEP 31270-901<br />

Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brasil<br />

Fone: 5531 3499.5421 Fax: 5531 3499.5410<br />

geografias@igc.ufmg.br<br />

www.igc.ufmg.br/geografias<br />

As opiniões contidas nos artigos são <strong>de</strong> inteira<br />

responsabilida<strong>de</strong> dos autores


Neste número a <strong>Revista</strong> Geografias reforça sua função <strong>de</strong> veículo divulgador das múltiplas<br />

temáticas do “saber” e do “fazer” geográficos. Os artigos trazem diversas questões para<br />

reflexão sobre as relações entre socieda<strong>de</strong>-natureza em diferentes regiões do Brasil.<br />

Po<strong>de</strong>mos transitar por estudos <strong>de</strong> caso que ilustram os conflitos e os impactos existentes<br />

nos processos <strong>de</strong> apropriação dos recursos naturais <strong>de</strong>rivados dos usos e das ativida<strong>de</strong>s<br />

humanas, como em “Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal<br />

do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil” e em “Impactos da silvicultura <strong>de</strong><br />

eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais: o caso <strong>de</strong> mananciais <strong>de</strong><br />

abastecimento público <strong>de</strong> Caeté/MG”. Reflexões sobre os processos <strong>de</strong> ocupação,<br />

construção e diferenciação do espaço também são instigadas pelo trabalho “Agricultura<br />

familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia”. Abordando<br />

uma região cuja ocupação foi marcada por conflitos e profundas transformações<br />

ambientais, o artigo ilustra, por meio da agricultura familiar, a diversida<strong>de</strong> dos complexos<br />

socioespaciais resultantes das ativida<strong>de</strong>s humanas. Associando aspectos históricos, culturais<br />

e naturais, o artigo “Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território”<br />

resgata as transformações nas relações entre práticas tradicionais <strong>de</strong> populações<br />

remanescentes <strong>de</strong> quilombos e a natureza no sertão norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Dois outros<br />

artigos suscitam reflexões sobre as escalas geográficas e os seus significados em relação<br />

às vivências humanas. Em “Recortes <strong>de</strong> lugar” os autores enfatizam que “os lugares são<br />

a manifestação <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que, sobretudo, lhes conce<strong>de</strong>m a existência”. No<br />

trabalho “A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong><br />

globalização” somos chamados a consi<strong>de</strong>rar a relevância da análise do espaço em diferentes<br />

escalas: a global, a do lugar e a do território. Completando o rol <strong>de</strong> artigos científicos<br />

<strong>de</strong>ste número, o trabalho “Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre<br />

produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE” reflete, sob o foco das<br />

políticas e práticas sociais, os conteúdos das ativida<strong>de</strong>s da nacionalmente reconhecida<br />

Associação dos Catadores <strong>de</strong> Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte. Por meio <strong>de</strong>ssa varieda<strong>de</strong> temática, a <strong>Revista</strong> Geografias continua buscando<br />

conduzir os leitores por diferentes caminhos e possibilida<strong>de</strong>s do conhecimento geográfico.<br />

Editorial<br />

Antônio Pereira Magalhães Jr<br />

Coor<strong>de</strong>nador da Comissão Editorial


Artigos<br />

científicos<br />

6<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


Recortes <strong>de</strong> lugar 1<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa<br />

Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia da<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>; Doutor em Geografia pela<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual Paulista, campus <strong>de</strong> Rio Claro<br />

Rosana Rios Corgosinho<br />

Professora da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> do Estado <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>,<br />

campus <strong>de</strong> Divinópolis; Mestre em Geografia pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />

Resumo<br />

Os lugares são o seu movimento. Vivos, movem-se,<br />

metamorfoseiam-se. Na contemporaneida<strong>de</strong>,<br />

a <strong>de</strong>speito das velozes transformações,<br />

apesar das interpretações que encaminham leituras<br />

que compreen<strong>de</strong>m a compressão e a padronização<br />

dos lugares por uma globalização unificadora,<br />

os lugares são a manifestação <strong>de</strong> suas<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que, sobretudo, lhes conce<strong>de</strong>m a<br />

existência. A vida é feita dos lugares, plenos do<br />

ser, tal como o mundo é realizado nos lugares.<br />

Eles são a vivência cotidiana nesses pequenos<br />

universos que, cada qual com a sua particularida<strong>de</strong>,<br />

carregam um pedaço <strong>de</strong> mundo.<br />

Abstract<br />

Places are <strong>de</strong>fined by their movement. They are alive,<br />

they move, and transform themselves. Today, <strong>de</strong>spite<br />

the rapid changes and the standardization of places<br />

by a unifying globalization, places are the manifestation<br />

of their i<strong>de</strong>ntities, which above all grant them<br />

their existence. Life is ma<strong>de</strong> of places, just as the<br />

world happens in places. The everyday life in these<br />

small universes, each one with its own characteristics,<br />

carries a piece of the world.<br />

1<br />

O presente ensaio é resultado da reescrita,<br />

pelos autores, <strong>de</strong> trecho <strong>de</strong> pesquisa originária<br />

da dissertação <strong>de</strong> mestrado intitulada O<br />

lugar no mundo contemporâneo, <strong>de</strong>fendida,<br />

em 2004, por Rosana Rios Corgosinho, sob a<br />

orientação <strong>de</strong> Cássio Eduardo Viana Hissa,<br />

no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />

da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Palavras-chave lugar, mundo; contemporaneida<strong>de</strong>;<br />

mobilida<strong>de</strong>s, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e cotidianos.<br />

Keywords place and world; contemporaneity;<br />

mobility; i<strong>de</strong>ntity and everyday life.<br />

cassioevhissa@terra.com.br<br />

rosanarios@uol.com.br<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

7


2<br />

Os adjetivos que aqui se ajuntam <strong>de</strong>monstram<br />

e refletem, <strong>de</strong> um lado, o seu pequeno<br />

po<strong>de</strong>r para qualificar os conceitos e, <strong>de</strong> outro,<br />

as dificulda<strong>de</strong>s postas para uma <strong>de</strong>finição<br />

precisa acerca <strong>de</strong> categorias que, <strong>de</strong> fato,<br />

são transdisciplinares. Des<strong>de</strong> já, portanto,<br />

anuncia-se o caráter <strong>de</strong>sses conceitos que,<br />

progressivamente, assumem, na contemporaneida<strong>de</strong>,<br />

o significado <strong>de</strong> metacategorias<br />

(HISSA, 2001).<br />

3<br />

Não se po<strong>de</strong> afirmar a existência da categoria<br />

mundo. Entretanto, no contexto das reflexões<br />

teóricas sobre o lugar, a idéia <strong>de</strong><br />

mundo emerge como um conceito importante,<br />

sem o qual a própria noção <strong>de</strong> lugar é<br />

<strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> significado contemporâneo. A<br />

idéia <strong>de</strong> mundo, tão abstrata na dimensão<br />

das vivências e dos cotidianos, adquire significado<br />

quando os olhos se voltam para os lugares:<br />

recortes <strong>de</strong> mundo estão em todos os<br />

lugares; representações <strong>de</strong> mundo estão presentes<br />

em todos os lugares.<br />

4<br />

Em algumas circunstâncias é possível perceber<br />

a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados conceitos<br />

ou categorias em relação aos <strong>de</strong>mais. Assim,<br />

em algumas reflexões, discutir o conceito <strong>de</strong><br />

lugar é pensar o mundo. O mesmo po<strong>de</strong> ser<br />

dito das relações <strong>de</strong> aproximação entre os<br />

conceitos <strong>de</strong> território e <strong>de</strong> fronteira. A utilização<br />

dos conceitos como categorias analíticas<br />

faz com que cada um assuma a <strong>de</strong>finição<br />

teórica que lhe diz respeito. Além disso, como<br />

já se observou, para que possam cumprir os<br />

seus papéis, não po<strong>de</strong>m ser compreendidos a<br />

partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>finições estanques. São conceitos<br />

moventes, flexíveis, prontos para acompanhar<br />

os movimentos do que se acostumou a<br />

receber a <strong>de</strong>nominação realida<strong>de</strong>.<br />

5<br />

Determinadas pesquisas teóricas constituem-se<br />

<strong>de</strong> reflexões analíticas que, apenas<br />

aparentemente, dispensam as abordagens<br />

empíricas que se referem aos problemas <strong>de</strong><br />

que se ocupam.<br />

6<br />

Interpretações acerca dos significados e do<br />

percurso histórico da ciência mo<strong>de</strong>rna são<br />

fornecidas por Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos<br />

(1987, 1989, 1994). Interpretações complementares,<br />

especialmente referentes aos processos<br />

<strong>de</strong> estruturação da ciência mo<strong>de</strong>rna na<br />

Europa, estão presentes na obra <strong>de</strong> Paolo<br />

Rossi (2001).<br />

Uma discussão teórica que se refere aos significados dos lugares encaminha, sempre, uma<br />

reflexão provisória sobre a sua natureza. Além disso, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações<br />

teóricas sobre o caráter dos lugares também po<strong>de</strong>, antecipadamente, provocar expectativas<br />

acerca das suas proximida<strong>de</strong>s com outras categorias socioambientais, socioespaciais 2 .<br />

Assim, estariam envolvidos também, menos ou mais intensamente, os conceitos <strong>de</strong><br />

paisagem, território, fronteira, re<strong>de</strong>, região, mundo. 3 Isso significa que as possíveis e sempre<br />

necessárias reflexões teóricas acerca da natureza dos lugares envolvem também, direta<br />

e/ou indiretamente, reflexões que dizem respeito aos <strong>de</strong>mais conceitos dos quais se<br />

servem diversas disciplinas para a construção dos saberes que lhes dizem respeito. 4<br />

Os <strong>de</strong>bates sobre o conceito <strong>de</strong> lugar são sempre necessários por conta da evolução<br />

<strong>de</strong> processos que, direta e intensamente, envolvem os próprios lugares, as relações <strong>de</strong><br />

que são feitos, além das conexões que estabelecem com o seu mundo exterior — tão presente,<br />

cada vez mais, em diversas circunstâncias, na sua interiorida<strong>de</strong>: o mundo está um pouco<br />

no interior <strong>de</strong> todos os lugares. Assim, se o mundo se transformou, os lugares também<br />

o fizeram através <strong>de</strong> processos quase simultâneos que evocam a imagem — mesmo que<br />

incompleta, ainda que <strong>de</strong>sigual — da reciprocida<strong>de</strong>. O mesmo <strong>de</strong>ve ser dito sobre as<br />

transformações ocorridas com os territórios — e com todos os po<strong>de</strong>res que <strong>de</strong>les emanam<br />

ou para eles se dirigem —, com as fronteiras, com as regiões, com as paisagens. As<br />

transformações constantes, muitas vezes ocorridas através <strong>de</strong> ritmos intensos, <strong>de</strong>mandam<br />

um permanente acompanhamento da ciência, da filosofia e <strong>de</strong> todos os saberes.<br />

Em muitas circunstâncias, as pesquisas teóricas são confundidas com estudos vazios <strong>de</strong><br />

experiência empírica e analítica. Não se po<strong>de</strong> afirmar que elas sejam assim: os investimentos<br />

teóricos resultam também da experiência empírica e das construções abstratas<br />

que envolvem o que, freqüentemente, se compreen<strong>de</strong> como realida<strong>de</strong>. 5 Além disso, o que<br />

se <strong>de</strong>nomina realida<strong>de</strong>, por sua vez, experimenta transformações que, em última instância,<br />

são produzidas pelas próprias interpretações reflexivas <strong>de</strong> natureza teórica: a realida<strong>de</strong> é,<br />

também, feita <strong>de</strong> olhos teóricos. Entretanto, as avaliações provenientes dos paradigmas mais<br />

conservadores da ciência, na extremida<strong>de</strong> do pragmatismo, procuram en<strong>de</strong>reçar aos<br />

trabalhos reflexivos, filosóficos, um conteúdo estéril e distante da realida<strong>de</strong>. O engano é<br />

feito da própria condição da qual são constituídas a ciência mais disciplinar — feita do<br />

mais frágil e estéril fragmento <strong>de</strong> saber — e a mais conservadora das abordagens.<br />

Algumas disciplinas científicas chamam para si a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o<br />

que <strong>de</strong>nominam real. Em muitas situações, várias <strong>de</strong>ssas disciplinas científicas se autointitulam<br />

ciências do real, supostamente feitas da realida<strong>de</strong> — porque <strong>de</strong>la se serviriam para<br />

se tornarem o que estudam. Mas o que é a realida<strong>de</strong>? Há quem possa afirmar que a<br />

realida<strong>de</strong> é o que se torna concreto através do dinamismo da vida; é a própria materialização<br />

das coisas que existem, visíveis, palpáveis, passíveis <strong>de</strong> tocar com os sentidos.<br />

Destes, os olhos e o olhar retínico são os mais solicitados para, quem sabe, presos às<br />

armadilhas da socieda<strong>de</strong> do espetáculo (DEBORD, 1997), <strong>de</strong>finir provisoriamente o significado<br />

do que é real e do que é realida<strong>de</strong>. Nesses termos, convencionais, po<strong>de</strong>r-se-ia<br />

pensar sobre o significado <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, tal como concebida pela ciência mo<strong>de</strong>rna: 6 a<br />

realida<strong>de</strong> seria, em princípio, feita do que é concreto, daquilo que é tomado como real-<br />

8<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


mente existente, tido como verda<strong>de</strong>iro. Busca-se, assim, a compreensão da realida<strong>de</strong> tal<br />

como se procura <strong>de</strong>scobrir a verda<strong>de</strong>. A realida<strong>de</strong> e o real seriam feitos, portanto, das coisas<br />

e dos objetos como realmente são, e à ciência caberia o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar o que encobre<br />

a verda<strong>de</strong>. 7 Recorre-se a José Saramago (2001), que surpreen<strong>de</strong> com a sabedoria <strong>de</strong> poucas<br />

palavras repletas <strong>de</strong> vastos conteúdos: “Se eu acreditar que Deus fez os meus olhos<br />

para que eu visse a realida<strong>de</strong> tal como ela [é], então, estupendo. Mas como nós sabemos<br />

que não é assim, não vale a pena estarmos a per<strong>de</strong>r tempo com isso”.<br />

Já não são poucos os estudos teóricos sobre a condição dos lugares, sobre a sua<br />

natureza, especialmente em função da vasta literatura voltada para a compreensão dos<br />

processos associados à globalização. Assim, sobretudo a partir dos últimos instantes do<br />

século XX, uma profusão <strong>de</strong> estudos — entre os quais também vários empíricos —<br />

assinalava os esforços e as possibilida<strong>de</strong>s analíticas <strong>de</strong> todos os saberes ocupados com a<br />

problemática espacial. O lugar, por razões compreensíveis, emerge como um conceito<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque central na discussão sobre a globalização. Pouco restou do que se imaginou<br />

como resultado <strong>de</strong>sse manto abstrato que, em princípio, foi tomado como o que veio,<br />

sob o nome <strong>de</strong> globalização, para neutralizar o espaço, homogeneizar as diferenças e as<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, suprimir os lugares, os valores e as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Esse manto feito <strong>de</strong> fluxos,<br />

especialmente <strong>de</strong> caráter econômico, assume o significado <strong>de</strong> uma superfície eletrônica<br />

mercantil que, em princípio, foi tomada como capaz <strong>de</strong> suprimir as superfícies do passado,<br />

os lugares, a vida cotidiana, as diferenças e, quem sabe, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Tudo sucumbiria<br />

à globalização: a partir <strong>de</strong> então, não haveria como pensar noutra cultura originária<br />

<strong>de</strong> outras concepções <strong>de</strong> mundo, <strong>de</strong> outros fluxos. O passado não mais existiria para as<br />

culturas alternativas: restaria um futuro comum, <strong>de</strong> contornos nitidamente mercantis,<br />

como se fosse esse um <strong>de</strong>stino inevitável para todos. Mas a história e o pensamento<br />

crítico fizeram com que a discussão sobre a questão espacial readquirisse a relevância:<br />

não há como receber o mundo, em sua abstração digital, sem que os olhos estejam voltados<br />

para os lugares, para as mobilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que são feitos, para as relações i<strong>de</strong>ntitárias que os<br />

caracterizam, para a sua vida cotidiana.<br />

Um estudo reflexivo, teórico, sobre os lugares, contudo, po<strong>de</strong> não se restringir à discussão<br />

acerca <strong>de</strong> sua natureza movente, que correspon<strong>de</strong>, em parte, aos movimentos do<br />

mundo. Do mesmo modo, um estudo teórico sobre os lugares po<strong>de</strong>, assim, ultrapassar<br />

a própria interpretação acerca <strong>de</strong> suas relações com o seu universo aparentemente exterior.<br />

Um estudo reflexivo sobre os lugares po<strong>de</strong> também, pensando sobre o seu caráter,<br />

fazer referência às relações que se <strong>de</strong>senvolvem nos seus interiores, entre elementos <strong>de</strong>finidores<br />

<strong>de</strong> suas características e através <strong>de</strong> situações que fazem <strong>de</strong>les o que são. Assim,<br />

portanto, neste breve ensaio são abordadas as relações entre os lugares e as mobilida<strong>de</strong>s,<br />

entre os lugares e as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, entre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e a vida cotidiana.<br />

Mobilida<strong>de</strong>s e lugares<br />

A discussão sobre o fenômeno da mobilida<strong>de</strong> assume a centralida<strong>de</strong>, sob a referência<br />

dos fortes ritmos da vida contemporânea. Para que se refira à dinâmica espacial,<br />

compreen<strong>de</strong>-se que os lugares sejam feitos também, como observava Milton Santos<br />

7<br />

Como conceber as coisas e os objetos como<br />

realmente são? Tal concepção nos faz pensar<br />

na existência <strong>de</strong> coisas e <strong>de</strong> objetos ensimesmados,<br />

presentes no mundo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

dos significados advindos da interpretação,<br />

da leitura que se faz <strong>de</strong>les.<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

9


8<br />

Milton Santos (1988) procura caracterizar os<br />

fluxos como originários dos fixos. Os lugares<br />

seriam feitos <strong>de</strong>ssas relações envolvendo fixos<br />

e fluxos. Os fixos seriam constituídos por<br />

um conjunto <strong>de</strong> objetos que encontram a sua<br />

localização no espaço, como agências <strong>de</strong> correio,<br />

bancos, escolas etc. Milton Santos (1988,<br />

p. 77) procura esclarecer o significado que<br />

conce<strong>de</strong> aos fluxos: “Os fluxos são o movimento,<br />

a circulação e assim eles nos dão, também,<br />

a explicação dos fenômenos da distribuição<br />

e do consumo”. Entretanto, alguns<br />

questionamentos são importantes para o que<br />

interessa à reflexão presente. A mais importante<br />

diz respeito aos diversos fluxos originários<br />

da própria natureza humana, dos interiores<br />

do homem, dos que conce<strong>de</strong>m<br />

significados aos próprios fixos e, conseqüentemente,<br />

aos fluxos. Os lugares são feitos da<br />

experiência, dos movimentos originários dos<br />

interiores do homem, da sua natureza, dos<br />

seus sentimentos, dos laços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que<br />

estabelece com o mundo feito nos lugares.<br />

Ainda po<strong>de</strong>r-se-ia argumentar: pois os fixos,<br />

também eles, não seriam feitos dos olhos do<br />

homem? Nessa sua condição, <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong><br />

ser menos fixos, posto que, simultaneamente,<br />

estariam nos interiores do homem feito<br />

<strong>de</strong> cultura, <strong>de</strong> imagens teóricas plenas <strong>de</strong> significados,<br />

<strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> vivências.<br />

9<br />

A frase parece ser portadora <strong>de</strong> redundâncias:<br />

homem e espaço são apresentados como<br />

se não fizessem parte <strong>de</strong> um todo. Os homens<br />

e a socieda<strong>de</strong> são o espaço que produzem. Os<br />

lugares são, também, a manifestação <strong>de</strong>sse<br />

processo. Entretanto, nas abordagens clássicas,<br />

originárias <strong>de</strong> diversos campos do saber,<br />

ainda são fortes os apelos teóricos que procuram<br />

interpretar o homem e o espaço a partir<br />

<strong>de</strong> abordagens que não os integram, que não<br />

os percebem como um todo indivisível. O espaço,<br />

mais do que um produto do trabalho dos<br />

homens, po<strong>de</strong> ainda ser assim interpretado: o<br />

espaço é feito dos olhos do homem, que o trabalham<br />

e recobrem-no <strong>de</strong> significados.<br />

10<br />

O que se <strong>de</strong>nomina interpretação — que<br />

também po<strong>de</strong> assumir os significados <strong>de</strong> leitura,<br />

<strong>de</strong> avaliação, <strong>de</strong> tradução, ou <strong>de</strong> análise<br />

(como preferem os paradigmas mais clássicos<br />

da ciência mo<strong>de</strong>rna) — resulta do<br />

encontro entre sujeito (que é sujeito do conhecimento)<br />

e objeto (no qual o próprio sujeito<br />

está inserido). Sobre tais relações, alguns<br />

estudos, originários da vanguarda da<br />

neurociência, são bastante esclarecedores.<br />

António Damásio (2004, p. 99), a partir <strong>de</strong><br />

estudos sistemáticos sobre as relações entre<br />

cérebro e mente, organiza idéias que ratificam<br />

interrogações seculares acerca da objetivida<strong>de</strong><br />

da leitura dos objetos e das coisas<br />

(1978, 1988, 2002), <strong>de</strong> fixos e <strong>de</strong> fluxos. Não há espaço — e tampouco lugares — na<br />

ausência <strong>de</strong> objetos aparentemente fixos, <strong>de</strong> fluxos e, portanto, dos movimentos. Os<br />

lugares são feitos <strong>de</strong> objetos fixos e, especialmente, <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>s. Muitos<br />

<strong>de</strong>sses movimentos, entretanto, não se referem aos fluxos convencionais — da forma<br />

como <strong>de</strong>scritos por Milton Santos. 8 Vários <strong>de</strong>sses movimentos que fazem os lugares são<br />

feitos das relações entre os indivíduos e os seus próprios lugares. Entretanto, ainda há o<br />

que dizer sobre os movimentos. Todos eles são originários do homem, dos seus olhos<br />

que emprestam significado às coisas, aos objetos e aos próprios fixos que, assim, já<br />

assumiriam um caráter originário dos interiores dos indivíduos.<br />

As revoluções tecnológicas, como sempre, provocam mudanças qualitativas no comportamento<br />

do homem e no seu espaço. 9 Entretanto, tem-se superestimado a tecnologia<br />

como recurso explicativo da realida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, mas, sobretudo, da contemporânea. No<br />

que se refere ao tempo e ao espaço percebe-se, na literatura que trata da questão, um congestionamento<br />

teórico que resulta em <strong>de</strong>vaneios, em fantasia <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> conexões próximas<br />

com as imagens <strong>de</strong>rivadas do encontro entre sujeito e objeto. 10 Doreen Massey (2000)<br />

observa que <strong>de</strong>terminadas expressões criadas para enfatizar essa nova fase — como<br />

aniquilação do espaço pelo tempo, compressão do tempo-espaço, al<strong>de</strong>ia global, aceleração, superação <strong>de</strong><br />

barreiras espaciais etc. — criam mais incertezas do que explicam a realida<strong>de</strong> do mundo. Em<br />

relação ao lugar, a autora afirma que “um dos resultados <strong>de</strong>ssa situação é a crescente incerteza<br />

sobre o que queremos dizer com ‘lugares’ e como nos relacionamos com eles” (MAS-<br />

SEY, 2000, p. 177). A generalização da idéia <strong>de</strong> simultaneida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> instantaneida<strong>de</strong> no<br />

mundo digital globalizado po<strong>de</strong> apontar para uma esquizofrenia tanto teórica (originária<br />

dos saberes científicos) como do senso comum (produzida e disseminada, especialmente,<br />

pelos meios <strong>de</strong> comunicação). Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2000, p. 194) observa:<br />

Quando hoje se fala <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, como forma <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> emergente [...], ou da compressão<br />

do tempo-espaço para expressar as alterações drásticas na or<strong>de</strong>nação dos espaços e dos tempos<br />

[...], os espaços são concebidos como estando à beira do colapso e na aurora da infinitu<strong>de</strong>: só há<br />

mobilida<strong>de</strong> entre espaços e, por isso, só se acelera a primeira multiplicando os segundos; a<br />

necessida<strong>de</strong> da compressão do tempo-espaço é tanto maior quanto mais vasto é o espaço.<br />

A força com que é introduzido o sentido <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> leva a se imaginar o mundo<br />

capturado pela experiência eletrônica: espaços superpostos e tempo infinito. A certeza<br />

<strong>de</strong>ssa viagem virtual aparentemente rouba o sentido dos lugares, juntamente com a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> do mundo. Assim como a expressão compressão do<br />

tempo-espaço, a expressão superabundância <strong>de</strong> tempo e espaço (AUGÉ, 1994) traduz o resultado<br />

<strong>de</strong> um mundo homogêneo a partir da diversida<strong>de</strong>, roubada pela informação da qual<br />

não se sabe a origem. Assimila-se com naturalida<strong>de</strong> que a informação vence a comunicação.<br />

Conclui-se freqüentemente, a partir daí, que os indivíduos se tornam aparentemente<br />

mais solitários, pois estão em constante movimento, não se encontram. 11<br />

Doreen Massey (2000) parece convidar os teóricos da globalização e os <strong>de</strong>fensores da<br />

imagem da compressão do espaço a refletir sobre o vigor da seletivida<strong>de</strong> no mundo da<br />

permanente exclusão. A seletivida<strong>de</strong> do mundo e a particularização das experiências não<br />

10<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


se dão fora dos lugares. Pelo contrário, é nos lugares que a vida, em todos os seus<br />

significados, emerge como um recorte <strong>de</strong> mundo. Não é a ampliação do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

tecnológico e tampouco a propagação do capitalismo que farão a supressão dos lugares<br />

e da vida que os homens experimentam. A seletivida<strong>de</strong> do mundo — compreendida<br />

como ambiências <strong>de</strong> fluxos globais, como movimento — reforça a condição dos lugares<br />

e da sua própria natureza.<br />

A interpretação dos lugares a partir dos diversos fluxos que estes experimentam, através<br />

<strong>de</strong>sse conjunto movente feito também <strong>de</strong> uma natureza abstrata, virtual, ainda conduz<br />

o pensamento para um espaço <strong>de</strong> caráter geométrico. A imagem do espaço geométrico<br />

adquire visibilida<strong>de</strong> eletrônica, quando pontos, linhas e feixes <strong>de</strong> fluxos fornecem<br />

um conceito <strong>de</strong> mundo grafado pelas conexões entre os lugares.<br />

Ainda se observa, contudo, o que po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado como a geometria do po<strong>de</strong>r da<br />

mobilida<strong>de</strong>: “[...] diferentes grupos sociais e diferentes indivíduos posicionam-se <strong>de</strong> formas<br />

muito distintas em relação a esses fluxos e interconexões” (MASSEY, 2000, p. 179).<br />

Nessa geometria estão presentes <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e diferenças, tanto entre os que produzem<br />

como entre os que sustentam o movimento. Ainda é preciso distinguir, aqui, espaço<br />

<strong>de</strong> espaço geométrico: não são a mesma coisa. A geometria do espaço está no espaço, mas<br />

não é o espaço. A geometria dos lugares e a posição cartesiana dos lugares na geometria<br />

planetária não são, <strong>de</strong> modo algum, os indicadores mais preciosos para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

teórico do significado dos lugares. Os lugares são a vida dos homens no mundo,<br />

por mais subjetivida<strong>de</strong> que a imagem possa evocar: é sobre isso que se <strong>de</strong>ve refletir,<br />

quando se <strong>de</strong>seja pensar o lugar no mundo contemporâneo, recortes <strong>de</strong> lugar, sob as referências<br />

das mobilida<strong>de</strong>s, dos fluxos e dos objetos.<br />

Doreen Massey (2000) sublinha que a mobilida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>sigualmente distribuída, como<br />

<strong>de</strong>corrência também do po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>la emana: com isso, po<strong>de</strong> reforçar o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

alguns, em <strong>de</strong>trimento do <strong>de</strong> outros. As suas reflexões estão fundamentadas na observação<br />

<strong>de</strong> diferentes situações do movimento, <strong>de</strong>ntre elas, os investimentos na aceleração<br />

do movimento <strong>de</strong> alguns fluxos particularizados e particulares (aviões e automóveis, por<br />

exemplo) e o relativo abandono do transporte público. O privilégio da mobilida<strong>de</strong> também<br />

influencia outros processos econômicos, sociais e espaciais: “Toda vez que se vai <strong>de</strong><br />

carro a um shopping center, contribui-se para o aumento dos preços da loja da esquina e até<br />

se acelera sua falência” (MASSEY, 2000, p. 181). 12 Mas não estão apenas nesses movimentos<br />

os conteúdos que fornecem multiplicida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significados aos lugares.<br />

Observa-se, ainda com Doreen Massey (2000, p. 179), que os novos rumos tomados<br />

pelo capitalismo — cuja lógica po<strong>de</strong> ser interpretada como predominante — não são os<br />

únicos e tampouco os <strong>de</strong>terminantes na experiência <strong>de</strong> vida do homem: “[...] há muito<br />

mais coisas <strong>de</strong>terminando nossa vivência do espaço do que o ‘capital’”. Muito dos movimentos<br />

do capital interfere nos movimentos dos homens. Contudo, isso não lhes retira<br />

a condição <strong>de</strong> estar em um lugar, <strong>de</strong> experimentá-lo, <strong>de</strong> vivenciá-lo a partir <strong>de</strong> outras<br />

referências. A globalização do capital é hegemônica. Entretanto, há outros movimentos,<br />

<strong>de</strong> âmbito global, com origens e com repercussões na escala local, reunidos sob a <strong>de</strong>nominação<br />

<strong>de</strong> globalização contra-hegemônica. Todos esses movimentos são focalizados por<br />

visíveis, ditas empíricas: “O cérebro po<strong>de</strong> atuar<br />

diretamente sobre a estrutura do objeto<br />

que está em vias <strong>de</strong> perceber. Por exemplo,<br />

po<strong>de</strong> modificar o estado do objeto, ou seja,<br />

alterar o estado do corpo, ou modificar a transmissão<br />

dos sinais que lhe chegam ao corpo. O<br />

objeto imediato do sentimento e o mapa <strong>de</strong>sse<br />

objeto po<strong>de</strong>m influenciar-se mutuamente<br />

numa espécie <strong>de</strong> processo reverberativo que<br />

não é possível encontrar na percepção <strong>de</strong> um<br />

objeto exterior ao corpo”.<br />

11<br />

Questiona-se, aqui, o significado adquirido<br />

pela solidão contemporânea. Ela parece ter<br />

recebido qualificações que conduzem à reflexão<br />

sobre a dificulda<strong>de</strong> do encontro no âmbito<br />

do próprio encontro. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação<br />

não é contemporânea. Ela po<strong>de</strong><br />

ter sido posta à mostra, dadas as circunstâncias<br />

históricas contemporâneas. Entretanto,<br />

pensar a solidão como originária dos tempos<br />

contemporâneos, como originária da ausência<br />

ou da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro, inerente à<br />

lógica dos ritmos velozes da contemporaneida<strong>de</strong>,<br />

não parece ser o caminho teórico mais<br />

apropriado ou mais consistente. Tais questões<br />

mereceriam estudos mais aprofundados.<br />

12<br />

Doreen Massey (2000, p. 181) ainda evi<strong>de</strong>ncia<br />

que os privilégios da mobilida<strong>de</strong> promovem a<br />

<strong>de</strong>gradação ambiental e restringem as possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> uso <strong>de</strong> recursos: “[...] a compressão<br />

<strong>de</strong> tempo-espaço envolvida na produção<br />

e na reprodução das vidas cotidianas dos abastados<br />

das socieda<strong>de</strong>s do primeiro mundo —<br />

não apenas suas próprias viagens, mas os recursos<br />

que trazem consigo, <strong>de</strong> todas as partes<br />

do mundo, para abastecer suas vidas —<br />

po<strong>de</strong> acarretar conseqüências ambientais<br />

ou promover restrições que limitarão a vida<br />

dos outros antes <strong>de</strong> afetar suas próprias<br />

existências”.<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

11


13<br />

Observa Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2002,<br />

p. 75): “[...] no campo das práticas sociais e<br />

culturais transnacionais, a transformação<br />

contra-hegemônica consiste na construção do<br />

multiculturalismo emancipatório, ou seja, na<br />

construção <strong>de</strong>mocrática das regras <strong>de</strong> reconhecimento<br />

recíproco entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e<br />

entre culturas distintas. Este reconhecimento<br />

po<strong>de</strong> resultar em múltiplas formas <strong>de</strong> partilha<br />

— tais como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s duais, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

híbridas, interi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e transi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

—, mas todas <strong>de</strong>vem orientar-se pela<br />

seguinte pauta transi<strong>de</strong>ntitária e transcultural:<br />

temos o direito <strong>de</strong> ser iguais quando a<br />

diferença nos inferioriza e a ser diferentes<br />

quando a igualda<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>scaracteriza”. As<br />

referidas transformações contra-hegemônicas<br />

no âmbito das localida<strong>de</strong>s necessitam,<br />

contudo, <strong>de</strong> fortalecimento, a fim <strong>de</strong> permitir,<br />

<strong>de</strong> modo ainda mais expressivo, o seu alcance<br />

global.<br />

14<br />

Milton Santos (2002, p. 328) também contribui<br />

para a compreensão dos novos cenários:<br />

“[...] num mundo do movimento, a realida<strong>de</strong><br />

e a noção <strong>de</strong> residência [...] do homem não se<br />

esvaem. O homem mora talvez menos, ou<br />

mora muito menos tempo, mas ele mora:<br />

mesmo que ele seja <strong>de</strong>sempregado ou<br />

migrante. A ‘residência’, o lugar <strong>de</strong> trabalho,<br />

por mais breve que sejam, são quadros da<br />

vida que têm peso na produção do homem”.<br />

Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2002) e são alternativos à globalização hegemônica. 13 Todos<br />

eles vivificam os lugares.<br />

Mesmo movimentando-se, a maioria dos homens encontra-se em um lugar. 14 Ali, no<br />

lugar, a existência dos homens adquire o sentido da vida. Não é o trânsito, não são os<br />

ritmos e os fluxos que retiram a condição <strong>de</strong> existência dos lugares, recortados pelas<br />

estruturas moventes, vivos. A mobilida<strong>de</strong> dos homens, a propósito, dá-se a partir <strong>de</strong><br />

lugares cuja diversida<strong>de</strong> emerge do próprio trânsito. Po<strong>de</strong>-se pensar o mesmo dos fluxos<br />

que se entrecruzam, que se atravessam, constituindo trilhas e <strong>de</strong>senhando, em uma<br />

complexa grafia, mapas que, <strong>de</strong> modo algum, po<strong>de</strong>m ser compreendidos como cartografias<br />

<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> lugares e <strong>de</strong> significados. O espaço é, também, feito <strong>de</strong> fluxos<br />

originários <strong>de</strong> objetos fixos: a sua representação geométrica não negligencia os pontos e<br />

os sinais emitidos pelos lugares <strong>de</strong> origem e <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino. O espaço é grafado e <strong>de</strong>senhado<br />

pelos fluxos, pelos sinais e pelas linhas virtuais, exigindo, da ciência, uma nova representação,<br />

uma nova interpretação, uma nova inteligência, uma nova razão.<br />

Portanto, não há quem não seja convidado a pensar no movimento, nas mobilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> todas as naturezas, quando se está a refletir sobre o mundo mo<strong>de</strong>rno e sobre as<br />

rápidas transformações contemporâneas. A idéia <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> faz com que o pensamento<br />

seja conduzido para o que acontece nas cida<strong>de</strong>s, nas metrópoles, conectadas eletronicamente<br />

com o mundo. Mais adiante, o pensamento sobre o movimento conduz as<br />

idéias na direção dos pequenos lugares. Em todos eles, a idéia <strong>de</strong> movimento está mais<br />

presente do que esteve no passado — ainda que se tenha a sensação <strong>de</strong> que sempre se<br />

esteve caminhando na mesma direção, mesmo diante dos impactos ocasionados, no<br />

presente, pelos processos po<strong>de</strong>rosos da globalização conservadora mais radical:<br />

Recorreu-se a uma palavra, que adquiriu importância no final do século, para caracterizar os<br />

movimentos da contemporaneida<strong>de</strong>: globalização. Trata-se <strong>de</strong> uma projeção do passado que<br />

assumiu novos formatos, proporcionais ao <strong>de</strong>senvolvimento da técnica [...]. Os espaços <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s consumos tornaram-se disponíveis para diversas nações e vários territórios: cresceu o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> consumo e ampliou-se a produção. [...] Mesmo no discurso da integração global,<br />

contraditoriamente, o eu agiganta-se diante do nós. E, também por isso, posto que os gran<strong>de</strong>s<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento permanecem inalterados em sua concepção, a integração po<strong>de</strong><br />

implicar a ampliação da periferização, da marginalida<strong>de</strong>, do empobrecimento (HISSA, 2002, p. 313).<br />

Os movimentos contemporâneos que se associam aos processos reunidos pela palavraconceito<br />

globalização não apenas recusam a padronização como, ainda, ressaltam as diferenças<br />

e as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Por que seria diferente? Os lugares são feitos dos olhos <strong>de</strong><br />

quem percebe o mundo (sempre presente nos lugares, menos ou mais intensa ou <strong>de</strong>nsamente),<br />

também feito <strong>de</strong> lugares que emergem e rasgam a superfície econômica global<br />

<strong>de</strong> tendência homogeneizante. No interior dos lugares, ainda, os movimentos repercutem<br />

no âmbito da socieda<strong>de</strong>. A violência, a periferização, a marginalida<strong>de</strong> e o empobrecimento<br />

são postos aos olhos da interpretação: eles estão mais presentes e mais visíveis<br />

nos lugares feitos do mundo. Com os movimentos e com as mobilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> todos os<br />

tipos, os lugares parecem existir <strong>de</strong> uma outra forma mas, surpreen<strong>de</strong>ntemente, emer-<br />

12<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


gem com maior vigor. A mobilida<strong>de</strong> intensa não extrai o significado dos lugares e a sua<br />

condição que, surpreen<strong>de</strong>ntemente, é negligenciada: o mundo existe nos lugares.<br />

Lugar e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

Embora no cotidiano das cida<strong>de</strong>s o movimento (interno e externo) — <strong>de</strong> pessoas, idéias<br />

e mercadorias — tenha alcançado relativa aceleração nas últimas décadas, as noções <strong>de</strong><br />

cultura e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser encontradas para além das relações econômicas: “Não<br />

são apenas as relações econômicas que <strong>de</strong>vem ser apreendidas numa análise da situação<br />

<strong>de</strong> vizinhança, mas a totalida<strong>de</strong> das relações. É assim que a proximida<strong>de</strong> [...] ‘po<strong>de</strong> criar<br />

a solidarieda<strong>de</strong>, laços culturais e <strong>de</strong>sse modo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>’” (SANTOS, M., 2002, p. 318).<br />

Essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> manifesta-se através da afetivida<strong>de</strong> que surge da relação entre pessoas<br />

convivendo em um mesmo espaço. Tal noção, segundo Milton Santos, seria inapreensível<br />

sem a consi<strong>de</strong>ração da relação espacial ou da contigüida<strong>de</strong> física entre as pessoas.<br />

Entretanto, não há como negligenciar a importância dos próprios lugares como elementos<br />

simbólicos e mediadores na construção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Portanto, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre<br />

indivíduos, entre grupos, é também a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que eles estabelecem com os lugares. 15<br />

James Clifford (2000) enten<strong>de</strong> o cenário da cultura tanto como um local <strong>de</strong> encontro<br />

<strong>de</strong> viagens quanto como um local <strong>de</strong> moradia. Segundo o autor, para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> avaliações consistentes, não é conveniente que sejam negligenciadas as forças culturais,<br />

econômicas e políticas que atravessam os lugares. Para além <strong>de</strong>ssa interpretação, tais<br />

forças não apenas atravessam como, especial e particularmente, fabricam os lugares e sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O autor, na construção <strong>de</strong> sua noção <strong>de</strong> cultura, procura incorporar a relação<br />

entre local e global: “Nessa ênfase, evitamos ao menos o localismo excessivo do relativismo<br />

cultural particularista, bem como a visão excessivamente global <strong>de</strong> uma monocultura<br />

capitalista ou tecnocrática” (CLIFFORD, 2000, p. 68).<br />

James Clifford (2000) e Akhil Gupta e James Ferguson (2000) contribuem também para<br />

o entendimento do que caracteriza o lugar contemporâneo. Para James Clifford (2000, p.<br />

68), po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>finir o lugar através da imagem feita <strong>de</strong> “[...] histórias cercadas, com um<br />

‘<strong>de</strong>ntro’ comunitário crucial, e um ‘fora’ viajante controlado”. O importante para a compreensão<br />

do lugar e da cultura, assim como para a construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares<br />

e dos indivíduos, não é a sua origem, o <strong>de</strong> on<strong>de</strong> você é, mas sim as suas experiências, o on<strong>de</strong><br />

você está (CLIFFORD, 2000, p. 69). Akhil Gupta e James Ferguson (2000, p. 34) observam que<br />

“[...] a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um lugar surge da interseção entre seu envolvimento específico em<br />

um sistema <strong>de</strong> espaços hierarquicamente organizados e sua construção cultural como<br />

comunida<strong>de</strong> ou localida<strong>de</strong>” 16 . Todas essas leituras são merecedoras <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração<br />

para uma leitura mais aprofundada acerca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares.<br />

Milton Santos (2002, p. 328) anota que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se forma, constantemente, a partir<br />

das ações presentes: “[...] o passado é um outro lugar ou, ainda melhor, num outro<br />

lugar”. A idéia é feita <strong>de</strong> uma forte imagem: o passado é um outro lugar e vive, quem<br />

sabe, distante dos lugares do presente. Não importa, nesse sentido, para que direção<br />

foram os lugares do passado 17 . O que interessa para a interpretação que se encaminha é que<br />

os lugares do presente ten<strong>de</strong>m a abraçar os do passado. A memória, nesses termos,<br />

15<br />

Entretanto, na concepção antropológica <strong>de</strong><br />

James Clifford (2000, p. 58), não se po<strong>de</strong> imaginar<br />

a cultura como algo específico <strong>de</strong> um lugar,<br />

que traduz homogeneida<strong>de</strong>: “A ‘cultura’<br />

antropológica não é mais o que costumava<br />

ser. E, uma vez que o <strong>de</strong>safio da representação<br />

é visto como sendo a <strong>de</strong>scrição e a compreensão<br />

<strong>de</strong> encontros, co-produções, dominações<br />

e resistências históricas locais/globais,<br />

então, é preciso voltar a atenção para as<br />

experiências cosmopolitas híbridas tanto<br />

quanto para as enraizadas e nativas. Em minha<br />

questão atual, o objetivo não é substituir<br />

a figura cultural ‘nativo’ pela figura<br />

‘intercultural’ viajante. Em vez disso, a tarefa<br />

concentra-se nas mediações concretas entre<br />

as duas, em casos específicos <strong>de</strong> tensão e<br />

relação histórica. Em graus variados, ambas<br />

são constitutivas do que contaremos como<br />

experiência cultural”.<br />

16<br />

Quanto às relações entre espaço e cultura,<br />

Akhil Gupta e James Ferguson (2000, p. 33)<br />

observam: “A suposição <strong>de</strong> que os espaços<br />

são autônomos permitiu que o po<strong>de</strong>r da topografia<br />

ocultasse a topografia do po<strong>de</strong>r. O<br />

espaço inerentemente fragmentado implícito<br />

na <strong>de</strong>finição da antropologia como estudo <strong>de</strong><br />

culturas (no plural) po<strong>de</strong> ter sido um dos motivos<br />

por trás da antiga e persistente omissão<br />

<strong>de</strong> escrever a história da antropologia como<br />

uma biografia do imperialismo. Pois, se partirmos<br />

da premissa <strong>de</strong> que os espaços sempre<br />

estiveram interligados hierarquicamente, em<br />

vez <strong>de</strong> naturalmente <strong>de</strong>sconectados, então,<br />

a mudança cultural e social não se torna mais<br />

uma questão <strong>de</strong> contato e <strong>de</strong> articulação cultural,<br />

mas <strong>de</strong> repensar a diferença por meio<br />

da conexão”.<br />

17<br />

Observa-se que, em gran<strong>de</strong> medida, os lugares<br />

do passado se encontram no presente, na<br />

memória do agora ou, mais precisamente, em<br />

algumas circunstâncias, nas grafias passadas<br />

que sobreviveram ao tempo. Os lugares que<br />

se mostram como os lugares do presente são<br />

também lugares <strong>de</strong> todos os tempos. Cida<strong>de</strong>s<br />

antigas são bons exemplos para compreen<strong>de</strong>r<br />

como essas camadas <strong>de</strong> espaço-tempo<br />

po<strong>de</strong>m, na superposição <strong>de</strong> superfícies — que<br />

sempre se rasgam —, evocar, no presente,<br />

imagens dos lugares do passado. Entretanto,<br />

a interpretação da história dá-se sempre no<br />

presente — ainda que a ciência da história<br />

insista em dar as costas para o futuro e negligenciar,<br />

em gran<strong>de</strong> medida, o tempo do agora.<br />

A história dos lugares passados, por tais<br />

razões, acontece também no presente.<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

13


18<br />

Entretanto, há outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação<br />

da questão. Stuart Hall (1997, p.<br />

95-96), por exemplo, observa que, enquanto<br />

algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s buscam segurança na<br />

tradição, “[...] há uma outra possibilida<strong>de</strong>: a<br />

da Tradução. Este conceito <strong>de</strong>screve aquelas<br />

formações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que atravessam e<br />

intersectam as fronteiras naturais, compostas<br />

por pessoas que foram dispersadas para sempre<br />

<strong>de</strong> sua terra natal. Essas pessoas retêm<br />

fortes vínculos com seus lugares <strong>de</strong> origem e<br />

suas tradições, mas sem a ilusão <strong>de</strong> um retorno<br />

ao passado. Elas são obrigadas a negociar<br />

com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente<br />

serem assimiladas por elas e sem<br />

per<strong>de</strong>r completamente suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s”.<br />

19<br />

A imagem da homogeneização cultural —<br />

como um produto das relações entre o global<br />

e o local — é tratada por Stuart Hall (1997)<br />

como um resultado da simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversas<br />

abordagens. Entretanto, po<strong>de</strong>-se pensar<br />

muito mais em banalização do que propriamente<br />

em simplificação, ao se refletir sobre<br />

as referidas abordagens.<br />

grafada no espaço pelo tempo e pelos movimentos que se referem a um conjunto <strong>de</strong><br />

fluxos, faz com que se fortaleça a referida imagem. Existem o hoje, o agora, sempre.<br />

Mesmo que seja também feito do ontem e que ainda incorporará o amanhã, ele, o agora,<br />

existe sempre. O presente é o lugar do tempo da ação e <strong>de</strong> todos os movimentos. 18 O<br />

futuro: que cui<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>le, no presente, para que se aproxime dos nossos <strong>de</strong>sejos e<br />

sonhos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />

É necessário esclarecer que, nos dias atuais, marcados por inúmeros e inéditos eventos,<br />

a ação exige novos saberes, transformando-se em contínua <strong>de</strong>scoberta. A ação contemporânea<br />

<strong>de</strong>manda, sempre, um novo saber: novos mapeamentos, novas interpretações,<br />

novas razões. “O mundo não é o <strong>de</strong> antes. [...] A transformação [...] é também movida pela<br />

ciência e pela tecnologia. [...] a ciência construiu um mundo que pe<strong>de</strong> uma nova ciência”<br />

(HISSA, 2002, p. 307). Segundo Milton Santos (2002, p. 330) — para quem a memória<br />

construída coletivamente não se sobrepõe à ação, pois a re<strong>de</strong>scoberta é individual e<br />

resultado <strong>de</strong> relações interpessoais e comunicativas —, “[...] quanto menos inserido o<br />

indivíduo (pobre, minoritário, migrante...), mais facilmente o choque da novida<strong>de</strong> o atinge<br />

e a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um novo saber lhe é mais fácil”. O autor não nega a influência do<br />

passado, mas conce<strong>de</strong> maior importância às condições do novo espaço <strong>de</strong> experiência:<br />

“O passado comparece como uma das condições para a realização do evento, mas o<br />

dado dinâmico na produção da nova história é o próprio presente, isto é, a conjunção<br />

seletiva <strong>de</strong> forças existentes em um dado momento” (SANTOS, M., 2002, p. 330). Po<strong>de</strong>-se,<br />

a partir das referidas interpretações, retomar a idéia <strong>de</strong> que toda ação tem o presente<br />

como paradigma. Observado <strong>de</strong> uma outra maneira, po<strong>de</strong>-se refletir: toda ação toma<br />

os lugares do agora como referência.<br />

A relação local/global também leva Stuart Hall (1997) a discutir a questão cultural. O<br />

autor, referindo-se à angustiante idéia da homogeneização cultural, ressalta a simplicida<strong>de</strong><br />

com que é tratada essa possibilida<strong>de</strong> e apresenta argumentos contrários à tendência<br />

<strong>de</strong> padronização. 19 O primeiro argumento: a globalização, entendida como uma especialização<br />

flexível, constitui-se estrategicamente através da criação <strong>de</strong> nichos <strong>de</strong> mercado,<br />

explorando, assim, a diferenciação local. Ou seja, antes <strong>de</strong> se pensar no global substituindo<br />

o local, <strong>de</strong>ve-se pensar numa nova articulação entre o global e o local. Como imaginar<br />

a substituição do local pelo global? Como imaginar a supressão do local, dos lugares<br />

do agora, das próprias referências da ação dos homens — in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da sua<br />

posição (se incluídos, se excluídos)? Numa visão <strong>de</strong> futuro, Stuart Hall (1997) sugere a<br />

maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma globalização produtora <strong>de</strong> novas i<strong>de</strong>ntificações globais e<br />

novas i<strong>de</strong>ntificações locais.<br />

O segundo argumento, por sua vez, refere-se à interpretação <strong>de</strong> que a globalização não<br />

seja exclusivamente global, por conta <strong>de</strong> seus impactos locais. Dessa forma, contraditoriamente,<br />

torna-se ina<strong>de</strong>quado pensar em homogeneização, já que a própria globalização<br />

é <strong>de</strong>sigualmente distribuída em todas as dimensões do espaço. Existiriam, portanto, recortes,<br />

lugares <strong>de</strong> resistência à globalização hegemônica.<br />

Finalmente, um terceiro argumento consi<strong>de</strong>ra que o <strong>de</strong>sequilíbrio do fluxo global parece<br />

sugerir que esse movimento seja apenas um processo <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalização. Porém,<br />

14<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


<strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar o fluxo global também a partir do encontro feito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencontros e<br />

<strong>de</strong> estranhamentos: “[...] à medida que dissolve as barreiras da distância, torna o encontro<br />

entre o centro colonial e a periferia colonizada imediato e intenso” (ROBINS apud<br />

HALL, 1997, p. 85). Assim, o jogo do período colonial inverte-se, e o Oci<strong>de</strong>nte vê-se<br />

invadido pelo movimento <strong>de</strong> pessoas dos países excluídos, em busca do estilo imposto<br />

— e agora negado — pelos colonizadores.<br />

Stuart Hall (1997) dispensa atenção também às transformações <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas nos indivíduos<br />

do lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, submetidos à presença <strong>de</strong> outros indivíduos com formações<br />

culturais diferentes. Referindo-se à posição da Inglaterra, o autor <strong>de</strong>tecta o surgimento<br />

<strong>de</strong> reações <strong>de</strong>monstrativas <strong>de</strong> uma não receptivida<strong>de</strong> aos imigrantes, criando<br />

barreiras a uma total integração. O autor afirma: “O fortalecimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais<br />

po<strong>de</strong> ser visto na forte reação <strong>de</strong>fensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes<br />

que se sentem ameaçados pela presença <strong>de</strong> outras culturas” (HALL, 1997, p. 91).<br />

Stuart Hall (1997, p. 95) chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que “po<strong>de</strong> ser tentador pensar<br />

na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, na era da globalização, como estando <strong>de</strong>stinada a acabar num lugar ou<br />

noutro: ou retornando a suas ‘raízes’ ou <strong>de</strong>saparecendo através da assimilação e da homogeneização.<br />

Mas esse po<strong>de</strong> ser um falso dilema”. Ao refletirem sobre a questão da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, Akhil Gupta e James Ferguson (2000) sugerem a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> novos fatores.<br />

Não se po<strong>de</strong> pensar o lugar como autônomo nem uma cultura como específica <strong>de</strong><br />

um lugar. Na contemporaneida<strong>de</strong>, a possibilida<strong>de</strong> do hibridismo é sempre algo a ser<br />

avaliado como integrante das relações que se ampliam. 20 Mas ainda há o que pensar<br />

sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nos lugares, diante das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intercâmbio. Frente às transformações<br />

operadas no nível global, po<strong>de</strong>-se refletir sobre possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alterações<br />

i<strong>de</strong>ntitárias. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m se mesclar. Algumas funções e <strong>de</strong>terminados papéis locais<br />

po<strong>de</strong>m, inclusive, fornecer novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s aos lugares. Isso significa que, nos<br />

lugares, em função do seu dinamismo — que também é reflexo do dinamismo do mundo<br />

contemporâneo —, algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m se sobrepor às outras; além disso,<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m, inclusive, per<strong>de</strong>r significado. Isso não resulta, entretanto, em perda<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares. Eles sempre carregam, em si, a sua natureza, a sua história <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que se adaptam ao movimento do mundo.<br />

Finalmente, uma outra questão <strong>de</strong>ve ser focalizada ao se refletir sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nos<br />

lugares e, simultaneamente, sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares. Trata-se <strong>de</strong> uma questão fundamental<br />

para que, na contemporaneida<strong>de</strong>, os homens, as socieda<strong>de</strong>s, assim como os lugares<br />

possam ser compreendidos. Se po<strong>de</strong>m ser vistos a partir <strong>de</strong> traços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> —<br />

que se <strong>de</strong>smancham, se metamorfoseiam, se fortalecem ou se enfraquecem —, os lugares<br />

também <strong>de</strong>vem ser avaliados a partir da consi<strong>de</strong>ração das mobilida<strong>de</strong>s no seu interior,<br />

sob a consi<strong>de</strong>ração da alterida<strong>de</strong>:<br />

Se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pressupõe as relações <strong>de</strong> aproximação, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>ssemelhança marcam<br />

o seu princípio oposto. Portanto, se há um princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a alterida<strong>de</strong> é o seu contrário.<br />

Se o primeiro é construído pela aproximação e pela natureza equivalente dos seres, <strong>de</strong>senvolve-se<br />

um grupo, por oposto, com base na repulsão ou na contraposição. Isso significa que nas relações<br />

20<br />

Deve-se avaliar ainda que, no mundo contemporâneo,<br />

o pensamento po<strong>de</strong> facilmente<br />

ser conduzido à tentação <strong>de</strong> redução da cultura<br />

e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a mercadorias. Embora a cultura<br />

possa se manifestar como mercadoria,<br />

esta é privilégio <strong>de</strong> quem po<strong>de</strong> pagar. Alguns<br />

lugares são planejados para o consumo. Citam-se<br />

o Disney World e outros que são representativos<br />

da homogeneida<strong>de</strong> das condições<br />

econômicas e sociais <strong>de</strong> um grupo (ZUKIN, 2000).<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

15


<strong>de</strong> contraste e <strong>de</strong> diferença po<strong>de</strong>m ser estimulados a exclusão e o “sentimento estrangeiro”.<br />

Nesses termos, a alterida<strong>de</strong> se contrapõe à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, ao evi<strong>de</strong>nciar a condição <strong>de</strong> “outrida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong><br />

estranhamento (HISSA; GUERRA, 2002, p. 68).<br />

As i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser interpretadas como i<strong>de</strong>ntificações em processo <strong>de</strong> transformação.<br />

Portanto, ao se refletir sobre os processos <strong>de</strong> transformação experimentados<br />

pelos lugares, também movimentados pelas dinâmicas contemporâneas que evocam a<br />

imagem <strong>de</strong> mundo, há <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar o curso assumido pelas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Isso significa que<br />

a maximização dos sentimentos <strong>de</strong> pertencimento e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ocasionar “[...]<br />

formas <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>s exclusivas e conflitivas” (HISSA; GUERRA, 2002, p. 68). Assim,<br />

pensar o lugar a partir das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é também, necessariamente, refletir sobre a alterida<strong>de</strong><br />

nos lugares.<br />

21<br />

Milton Santos (2005, p. 170) faz referência às<br />

distinções entre as or<strong>de</strong>ns global e local: “A<br />

or<strong>de</strong>m global funda as escalas superiores ou<br />

externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros<br />

são a razão técnica e operacional, o cálculo<br />

<strong>de</strong> função, a linguagem matemática. A or<strong>de</strong>m<br />

local funda a escala do cotidiano, e seus<br />

parâmetros são a co-presença, a vizinhança,<br />

a intimida<strong>de</strong>, a emoção, a cooperação e a socialização<br />

com base na contigüida<strong>de</strong>”.<br />

Lugar e cotidiano<br />

Uma discussão sobre o conceito <strong>de</strong> lugar implica a percepção da localização significante<br />

<strong>de</strong> todos os lugares: eles estão em toda parte, feitos <strong>de</strong> espaço e <strong>de</strong> tempo, recobertos <strong>de</strong><br />

valores e <strong>de</strong> ética prática; eles <strong>de</strong>senvolvem dimensões espaciais variadas, o que po<strong>de</strong> ser<br />

importante para a leitura da contigüida<strong>de</strong>, da magnitu<strong>de</strong> das aproximações e das<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>s, do <strong>de</strong>senvolvimento das diversas formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> socialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

alterida<strong>de</strong>. A vida nos lugares é feita <strong>de</strong> cotidianos. A cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, nos seus interiores,<br />

nos seus subterrâneos e meandros, é uma gran<strong>de</strong> fábrica <strong>de</strong> comunicação — manufatura <strong>de</strong><br />

contatos e <strong>de</strong> intercâmbios — que põe em comum o que estaria, em princípio, restrito;<br />

pôr em comum é, no mínimo, aparentemente, dar a todos as condições mínimas para a<br />

participação na vida: viver na cida<strong>de</strong>, viver a cida<strong>de</strong>. Mas o que ela fornece, contraditoriamente,<br />

é o que também subtrai. A vida na cida<strong>de</strong>, feita <strong>de</strong> diversos significados, é a<br />

vida carregada <strong>de</strong>nsamente através das experiências práticas, das vivências dos diversos<br />

sujeitos da vida realizada a partir <strong>de</strong> coisas comuns. Nada disso po<strong>de</strong> ser dispensado para<br />

uma leitura dos lugares.<br />

Compreen<strong>de</strong>r os lugares é, especialmente, consi<strong>de</strong>rar as possíveis e necessárias leituras<br />

da vida cotidiana. Se são feitos da vida dos indivíduos, os lugares <strong>de</strong>vem, ainda, ser<br />

interpretados como plenos <strong>de</strong> hábitos, <strong>de</strong> comportamentos que se referem a uma ética<br />

cotidiana que, por sua vez, encaminha o pensamento para o universo das repetições, das<br />

rotinas que libertam e que escravizam.<br />

O cotidiano refere-se ao que se <strong>de</strong>senvolve através do hábito comum, rotineiro. Tratase<br />

do chão rotineiro dos lugares, formado do que é corrente e costumeiro. O cotidiano,<br />

assim, é abundante nos lugares e faz com que eles sejam, por isso, fartos, ricos, abastados<br />

em experiências. Refere-se à vida cotidiana dos lugares ao se pensar na fertilida<strong>de</strong> da<br />

experiência comum que não se interrompe, que expan<strong>de</strong> os saberes comuns feitos <strong>de</strong><br />

praticida<strong>de</strong>. O cotidiano é feito <strong>de</strong> freqüências e <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong>s que referenciam as trilhas<br />

dos indivíduos e das coletivida<strong>de</strong>s. Mas também é feito <strong>de</strong> freqüências e <strong>de</strong> vazios, ou <strong>de</strong><br />

incompletu<strong>de</strong>s que traduzem a experiência humana. 21<br />

O cotidiano: as reflexões sobre o significado <strong>de</strong>ssa categoria da existência, tal como a trata<br />

Milton Santos (2002), fortalecem a sua importância para discutir a questão do lugar no<br />

16<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


mundo contemporâneo. O global está em todos os lugares: tal condição atual apresenta-se<br />

como uma dificulda<strong>de</strong> para a compreensão dos lugares e, simultaneamente, um referencial<br />

para a leitura <strong>de</strong> todos os pontos que representam, nas possíveis cartografias, o universo <strong>de</strong><br />

todos os lugares que povoam o mundo. O mundo existe nos lugares porque a vida existe nos<br />

lugares. Vida cotidiana: o seu significado conduz o pensamento para a vivência dos lugares.<br />

Pensar o cotidiano dos lugares é também esten<strong>de</strong>r as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reflexão sobre<br />

a importância da comunicação no universo dos lugares. O mundo mo<strong>de</strong>rno é feito <strong>de</strong><br />

movimentos e fluxos intensos, instantâneos. Ele parece sugerir comunicação, a <strong>de</strong>speito<br />

<strong>de</strong> fazer com que a informação se sobreponha ao próprio intercâmbio. Nos lugares, nas<br />

relações feitas <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong>, a comunicação po<strong>de</strong> ser mais intensa e ampliar as possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> vida social. A comunicação, no entanto, po<strong>de</strong> se realizar mesmo sem a informação,<br />

como nos lembra Milton Santos (2002). As origens etimológicas da palavra são<br />

ainda mais esclarecedoras e mais úteis à reflexão sobre a importância da vida cotidiana<br />

como instrumento reconhecedor dos lugares: comunicar significa pôr em comum, dividir,<br />

partilhar. É certo que, daí, emergem outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação dos lugares:<br />

disponibilizar para muitos ou para todos e, conseqüentemente, pôr em comum é também<br />

pensar na força política e social dos lugares. A socialida<strong>de</strong> é tanto mais presente<br />

entre os indivíduos quanto maior é a sua proximida<strong>de</strong>. As possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong><br />

são mais evi<strong>de</strong>ntes nos lugares, o que fortalece as relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>.<br />

A força política, latente nos lugares, é um importante instrumento para pensar<br />

as ações, as práticas que se relacionam com as referências <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> que se materializam,<br />

<strong>de</strong> algum modo, na construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s entre os sujeitos da vida, que também<br />

marcam o caráter dos lugares.<br />

Algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> simplificação, no entanto, <strong>de</strong>vem ser sublinhadas. Nos lugares,<br />

especialmente nas cida<strong>de</strong>s, a ocorrência <strong>de</strong> encontros é muito maior. Se, por um lado,<br />

o encontro é uma manifestação da socialida<strong>de</strong>, assim como uma expressão <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> fortalecimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> ambiências <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, por outro<br />

lado, po<strong>de</strong> ser visto e interpretado a partir <strong>de</strong> processos contrários que parecem dotar o<br />

quadro <strong>de</strong> maior complexida<strong>de</strong>: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro é também a do <strong>de</strong>sencontro<br />

e da alterida<strong>de</strong>. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da interpretação, os lugares são a expressão do<br />

mundo feito da vida <strong>de</strong> aproximações e <strong>de</strong> estranhamentos. Tais observações po<strong>de</strong>m ser<br />

vistas, ainda, como uma indicação da natureza híbrida dos conceitos i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e cotidiano.<br />

Na vida cotidiana dos lugares, o partilhar e o dividir estão mais presentes como<br />

possibilida<strong>de</strong>, assim como a própria alterida<strong>de</strong>.<br />

A vida cotidiana dos lugares é uma fábrica <strong>de</strong> aproximações, estranhamentos, emoções,<br />

afetivida<strong>de</strong>s, subjetivida<strong>de</strong>s. A vida cotidiana nos lugares, por sua vez, faz emergir<br />

o que é comum, <strong>de</strong>senvolvido pela comunicação entre os sujeitos da vida, fortalecido pelos<br />

laços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A dimensão espacial do cotidiano, tal como a ela se referiu Milton<br />

Santos (2002), está repleta <strong>de</strong>sses laços <strong>de</strong> coexistência e, especialmente, do que po<strong>de</strong> ser<br />

compreendido como cooperação e conflito. Os lugares contêm o mundo e, por isso,<br />

são a sua expressão. A rua da cida<strong>de</strong> é a rua do mundo. 22 Nela os indivíduos po<strong>de</strong>m se<br />

encontrar, mas também po<strong>de</strong>m não se reconhecer.<br />

22<br />

Milton Santos (2005, p. 170) fala-nos das possíveis<br />

respostas dos lugares, en<strong>de</strong>reçadas ao<br />

mundo: “A or<strong>de</strong>m global busca impor, a todos<br />

os lugares, uma única racionalida<strong>de</strong>. E os lugares<br />

respon<strong>de</strong>m ao mundo segundo os diversos<br />

modos <strong>de</strong> sua própria racionalida<strong>de</strong>”.<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

17


23<br />

Milton Santos (2005, p. 163) esclarece: “O<br />

lugar é a oportunida<strong>de</strong> do evento. E este, ao<br />

se tornar espaço, ainda que não perca as suas<br />

marcas <strong>de</strong> origem, ganha características locais.<br />

O evento é, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>formante<br />

e <strong>de</strong>formado. Por isso fala-se na imprevisibilida<strong>de</strong><br />

do evento, a que Ricoeur chama <strong>de</strong><br />

autonomia: a possibilida<strong>de</strong>, no lugar, <strong>de</strong> construir<br />

uma história das ações que seja diferente<br />

do projeto dos atores hegemônicos”.<br />

Henri Lefebvre (1999) focaliza a rua e apresenta algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura contraditória<br />

do cotidiano das cida<strong>de</strong>s e dos lugares. A rua é, simultaneamente, o lugar do<br />

encontro fértil, da comunicação — que se faz comum a todos que <strong>de</strong>la participam —, e<br />

o lugar do <strong>de</strong>sencontro, do <strong>de</strong>sencanto e da superficialida<strong>de</strong>. A rua, a esquina, a praça<br />

são lugares <strong>de</strong> encontro sem os quais “[...] não existem outros encontros possíveis nos<br />

lugares <strong>de</strong>terminados (cafés, teatros, salas diversas)” (LEFEBVRE, 1999, p. 29). A imagem<br />

da supressão da rua é equivalente à da supressão da vida nos lugares. Entretanto, a rua do<br />

encontro é, ao mesmo tempo, a rua da ausência: “Na rua, caminha-se lado a lado, não se<br />

encontra” (LEFEBVRE, 1999, p. 30). Por isso, diz-se que “a passagem na rua, espaço <strong>de</strong><br />

comunicação, é a uma só vez obrigatória e reprimida” (LEFEBVRE, 1999, p. 31). As anotações,<br />

feitas <strong>de</strong> reflexões, conduzem o pensamento para as coisas comuns, para as coisas em<br />

comum, para os <strong>de</strong>sencontros e para a conjunção <strong>de</strong> todos os elos que fazem a vida dos<br />

lugares. A sua compreensão implica a aproximação com o conceito <strong>de</strong> lugar e, conseqüentemente,<br />

com o <strong>de</strong> vida no mundo.<br />

A reflexão sobre a vida cotidiana nos lugares é também um importante instrumento <strong>de</strong><br />

interpretações acerca da suposta supressão dos lugares, da sua pasteurização pela vida<br />

econômica global. A contemporaneida<strong>de</strong>, longe <strong>de</strong> apontar para o fim do lugar, indicao<br />

para uma posição central (SANTOS, M., 2002). A suposta compressão do espaço, produto<br />

da imaginação e da concepção dos efeitos dos fluxos sobre o espaço geométrico,<br />

eliminaria a possibilida<strong>de</strong> da vida cotidiana. Como conceber a supressão da vida cotidiana,<br />

tão essencial para a interpretação dos processos <strong>de</strong> formação dos guetos urbanos,<br />

dos territórios urbanos (SILVA, 2001)? Como conceber a supressão da vida nos lugares,<br />

que, em última instância, assumiria o significado equivalente à supressão das vivências <strong>de</strong><br />

mundo? Os lugares reúnem as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção das ações que, contra-hegemônicas,<br />

são alternativas aos movimentos globais hegemônicos. 23<br />

Milton Santos (2002), <strong>de</strong>ntre tantas alternativas encaminhadas, sugere a interpretação<br />

do lugar também a partir do cotidiano, do mundo vivido. A abordagem, ao contrário do<br />

que po<strong>de</strong> parecer, reduz bastante a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um tratamento localista assim como<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encaminhamento <strong>de</strong> generalizações simplistas. O autor ainda lembra<br />

que o processo <strong>de</strong> construção do lugar envolve o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> espaços simbólicos,<br />

singulares, resultados <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> cooperação em espaços contíguos, <strong>de</strong><br />

relações intensas entre os sujeitos da vida social. Nos lugares — feitos <strong>de</strong> espaços carregados<br />

do simbólico — encontra-se o sentido do mundo, compreendido como o espaço<br />

comum que se estrutura, simultaneamente, a partir do encontro e da alterida<strong>de</strong>. A comunicação,<br />

carregada <strong>de</strong>sse pôr em comum, é indispensável para a compreensão <strong>de</strong> todos os<br />

processos que constituem as relações entre o local e o global, entre o sujeito e a vida,<br />

entre os indivíduos e o mundo exterior.<br />

Portanto, o caráter do conceito <strong>de</strong> lugar — assim como a própria natureza dos<br />

lugares — não po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo algum, estar circunscrito às pequenas comunida<strong>de</strong>s, aos<br />

lugares <strong>de</strong> pequena conexão no interior da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> fluxos <strong>de</strong> todos os tipos. As gran<strong>de</strong>s<br />

metrópoles são o abrigo <strong>de</strong> infinitas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> arranjos sociais, <strong>de</strong> uma<br />

diversida<strong>de</strong> riquíssima <strong>de</strong> estruturação <strong>de</strong> simbolismos, nos quais os indivíduos e os<br />

18<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


grupos — sujeitos da ação — estão organizados <strong>de</strong> modo a experimentar a vida cotidiana<br />

na plenitu<strong>de</strong> do seu vigor prático, comum: feita <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>s, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,<br />

conflitos, exclusões, alterida<strong>de</strong>s.<br />

Finalmente, é ainda importante retomar algumas questões que caracterizam o mundo<br />

na contemporaneida<strong>de</strong>, feito também das influências exercidas pelas mais sofisticadas<br />

tecnologias <strong>de</strong> comunicação. Parece bastante nítida a importância <strong>de</strong>ssas tecnologias na<br />

organização dos lugares. De outra parte, tal situação parece sugerir interpretações que<br />

minimizam o <strong>de</strong>clínio na intensida<strong>de</strong> das relações entre os sujeitos da vida na cida<strong>de</strong> e<br />

nos lugares. Importantes transformações ocorreram. Entretanto, não se po<strong>de</strong> afirmar,<br />

<strong>de</strong> modo algum, que elas <strong>de</strong>stituíram <strong>de</strong> significado as características que encaminham a<br />

leitura conceitual dos lugares. Manuel Castells (2002), por exemplo, observa que a ampliação<br />

da veiculação <strong>de</strong> informações — que, hipoteticamente, po<strong>de</strong>riam até multiplicar as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação, o que, <strong>de</strong> fato, não acontece — po<strong>de</strong> acarretar a <strong>de</strong>scentralização<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas ativida<strong>de</strong>s. Contudo, as facilida<strong>de</strong>s oferecidas pelo <strong>de</strong>senvolvimento<br />

das comunicações eletrônicas em nada <strong>de</strong>scaracterizam a natureza do<br />

lugar, no âmbito das vivências, sob a ótica do <strong>de</strong>senvolvimento das práticas sociais. O<br />

que se dá, acompanhando as reflexões <strong>de</strong> Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2000), é uma<br />

extensão do nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> nas relações que fazem a vida dos lugares e do<br />

mundo contemporâneo.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Pensar o lugar, na contemporaneida<strong>de</strong>, é refletir sobre o mundo. Trata-se <strong>de</strong> um empreendimento<br />

teórico complexo, pois pensar o mundo é refletir sobre os homens. Nunca<br />

a observação foi tão representativa da história. Os homens estão, nos lugares, repletos<br />

do mundo. O mundo nunca esteve tão presente na vida dos lugares, na vida dos homens.<br />

Po<strong>de</strong>-se, entretanto, interrogar: quais são os níveis <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong>ssa presença? Quais<br />

são as formas através das quais o mundo está presente na vida das pessoas? Mas não se<br />

po<strong>de</strong> negar a emergência dos lugares no mundo contemporâneo, feito <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong>s,<br />

<strong>de</strong> exclusões, <strong>de</strong> recortes, da ampliação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, da comunicação do conflito.<br />

Pensar o lugar é movimentar as idéias na direção dos fluxos que fazem a vida contemporânea.<br />

São movimentos <strong>de</strong> todos os tipos. Alguns <strong>de</strong>les são, há muito, familiares. Outros,<br />

contudo, emergem no cotidiano dos indivíduos como uma temerida<strong>de</strong>, como algo<br />

avassalador, novo, originário <strong>de</strong> uma outra vida. Entretanto, assim como o movimento<br />

que se refere à invasão domiciliar dos micro-computadores, que transformaram a vida<br />

das pessoas e dos lugares, vários outros movimentos — feitos <strong>de</strong> fluxos <strong>de</strong> todos os<br />

tipos — dizem respeito à mesma cultura <strong>de</strong> origem. Trata-se mais, em diversas circunstâncias,<br />

<strong>de</strong> refletir não apenas sobre a natureza dos movimentos, mas, especialmente,<br />

sobre a velocida<strong>de</strong> dos movimentos.<br />

Pensar o lugar é, <strong>de</strong>finitivamente, refletir sobre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que, menos ou mais<br />

intensamente, são afetadas pelos movimentos da vida contemporânea. Se as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

são fortalecidas — entre lugares e pessoas, entre indivíduos do lugar —, observa-se,<br />

sobretudo a partir da expectativa equivocada da padronização do espaço, a emergência<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

19


artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

dos ambientes locais. Mas nem sempre os lugares foram fortalecidos, e também não se<br />

<strong>de</strong>seja adotar um mo<strong>de</strong>lo para a compreensão dos lugares a partir do fortalecimento<br />

das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais. Lugares foram abandonados, mesmo no contexto <strong>de</strong> ritmos menos<br />

acelerados <strong>de</strong> tempos passados. Outros emergiram. Mas, sempre, pensar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

dos lugares é conduzir a reflexão para a localização do outro no mundo em transformação.<br />

Isso significa que pensar o lugar a partir das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é, também, refletir sobre a<br />

questão da alterida<strong>de</strong>.<br />

Pensar o lugar a partir da vida cotidiana nos lugares é encaminhar a reflexão para o<br />

dinamismo e a importância do mundo vivido. Vive-se nesse mundo feito <strong>de</strong> lugares.<br />

Dizer isso é reafirmar a importância dos lugares como o locus da existência. Vive-se nos<br />

lugares, on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>cisões são tomadas, on<strong>de</strong> as escolhas são feitas, on<strong>de</strong> são construídas<br />

as esperanças e as frustrações. As transformações experimentadas pelo mundo contemporâneo<br />

conduzem o pensamento, ainda, para os lugares, para que sejam revisitados<br />

teoricamente, para que permitam o encontro com novos significados que lhes dizem<br />

respeito. Pensar os lugares a partir do cotidiano: como observou Milton Santos (2002),<br />

essa categoria da existência é bastante útil para um tratamento espacial do mundo vivido<br />

e, portanto, para uma leitura dos lugares feitos <strong>de</strong> vida cultural.<br />

As transformações experimentadas pelo mundo na contemporaneida<strong>de</strong> parecem ainda<br />

sublinhar a importância das discussões teóricas acerca do lugar. De todas as categorias<br />

socioespaciais, a <strong>de</strong> lugar emerge, no mundo contemporâneo, como a mais visitada<br />

pelos estudiosos das questões relativas ao homem em sua condição espacial. Nele, no<br />

lugar, o homem escreve a sua história, marca a sua presença, <strong>de</strong>senvolve as suas relações,<br />

experimenta e vivencia o mundo.<br />

Além disso, na contemporaneida<strong>de</strong>, também se mostram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância os<br />

estudos empíricos — sempre teóricos — voltados para a interpretação da vida nos<br />

lugares, na rua do mundo. Tais investimentos são cruciais para a compreensão da imagem<br />

<strong>de</strong> caos, da imagem <strong>de</strong> acaso — tão próximas da vida cotidiana —, que tão bem refletem<br />

a imagem <strong>de</strong> mundo que se projeta para os lugares. Tais investimentos são essenciais<br />

para a compreensão do homem, <strong>de</strong> sua vida feita <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong> negações do que<br />

insiste em existir no seu próprio interior.<br />

20<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Recortes <strong>de</strong> lugar


Referências<br />

AUGÉ, Marc. Não lugares:<br />

introdução a uma<br />

antropologia da<br />

supermo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Campinas: Papirus, 1994.<br />

CASTELLS, Manuel. A<br />

socieda<strong>de</strong> em re<strong>de</strong>. São Paulo:<br />

Paz e Terra, 2002.<br />

CLIFFORD, James.<br />

Culturas viajantes. In:<br />

ARANTES, Antônio (Org.).<br />

O espaço da diferença.<br />

Campinas: Papirus, 2000.<br />

p. 50-79.<br />

DAMÁSIO, António. Em<br />

busca <strong>de</strong> Espinosa: prazer e<br />

dor na ciência dos<br />

sentimentos. São Paulo:<br />

Companhia das Letras,<br />

2004.<br />

DEBORD, Guy. A socieda<strong>de</strong><br />

do espetáculo: comentários<br />

sobre a socieda<strong>de</strong> do<br />

espetáculo. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Contraponto, 1997.<br />

GUPTA, Akhil; FERGUSON,<br />

James. Mais além da<br />

“cultura”: espaço,<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e política da<br />

diferença. In: ARANTES,<br />

Antônio (Org.). O espaço<br />

da diferença. Campinas:<br />

Papirus, 2000. p. 30-49.<br />

HALL, Stuart. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

cultural na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: DP&A, 1997.<br />

HISSA, Cássio Eduardo<br />

Viana. A mobilida<strong>de</strong><br />

das fronteiras: inserções da<br />

geografia na crise<br />

da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Belo Horizonte:<br />

Ed. UFMG, 2002.<br />

HISSA, Cássio Eduardo<br />

Viana. Categorias<br />

geográficas: reflexões<br />

sobre a sua natureza.<br />

Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Geografia, Belo<br />

Horizonte, v. 11, n. 17, p.<br />

49-58, 2. sem. 2001.<br />

HISSA, Cássio Eduardo<br />

Viana; GUERRA, Luciana<br />

Cristina <strong>de</strong> Oliveira.<br />

Espaço e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>:<br />

reconstruindo<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s urbanas.<br />

Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Geografia, Belo<br />

Horizonte, v. 12, n. 19, p.<br />

63-73, 2. sem. 2002.<br />

LEFEBVRE, Henri.<br />

Revolução urbana. Belo<br />

Horizonte: Ed. UFMG, 1999.<br />

MASSEY, Doreen. Um<br />

sentido global do lugar.<br />

In: ARANTES, Antônio<br />

(Org.). O espaço da diferença.<br />

Campinas: Papirus, 2000.<br />

p. 176-185.<br />

ROBINS, K. Traditions and<br />

translation: national<br />

culture in its global. In:<br />

CORNER, J.; HARVEY, S.<br />

(Ed.). Entrerprise and<br />

heritage. London:<br />

Routlege, 1991 apud HALL,<br />

Stuart. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural<br />

na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: DP&A, 1997.<br />

ROSSI, Paolo. O nascimento<br />

da ciência mo<strong>de</strong>rna na Europa.<br />

Bauru: EDUSC, 2001.<br />

SANTOS, Boaventura <strong>de</strong><br />

Sousa. A crítica da razão<br />

indolente: contra o<br />

<strong>de</strong>sperdício da experiência.<br />

In: SANTOS, Boaventura<br />

<strong>de</strong> Sousa. Para um novo<br />

senso comum: a ciência, o<br />

direito e a política na<br />

transição paradigmática.<br />

2. ed. São Paulo: Cortez,<br />

2000. v. 1.<br />

SANTOS, Boaventura <strong>de</strong><br />

Sousa. Introdução a uma<br />

ciência pós-mo<strong>de</strong>rna. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Graal, 1989.<br />

SANTOS, Boaventura <strong>de</strong><br />

Sousa. Os processos <strong>de</strong><br />

globalização. In: SANTOS,<br />

Boaventura <strong>de</strong> Sousa<br />

(Org.). A globalização e as<br />

ciências sociais. 2. ed. São<br />

Paulo: Cortez, 2002.<br />

p. 25-102.<br />

SANTOS, Boaventura <strong>de</strong><br />

Sousa. Pela mão <strong>de</strong> Alice: o<br />

social e o político na pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Porto:<br />

Afrontamento, 1994.<br />

SANTOS, Boaventura<br />

<strong>de</strong> Sousa. Um discurso<br />

sobre as ciências. Porto:<br />

Afrontamento, 1987.<br />

SANTOS, Milton.<br />

A natureza do espaço:<br />

técnica e tempo, razão<br />

e emoção. São Paulo:<br />

EDUSP, 2002.<br />

SANTOS, Milton. Da<br />

totalida<strong>de</strong> ao lugar. São<br />

Paulo: Ed. <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo, 2005.<br />

SANTOS, Milton.<br />

Metamorfoses do espaço<br />

habitado: fundamentos<br />

teóricos e metodológicos<br />

da geografia. São Paulo:<br />

HUCITEC, 1988.<br />

SANTOS, Milton. Por uma<br />

geografia nova: da crítica da<br />

geografia a uma geografia<br />

crítica. São Paulo:<br />

HUCITEC, 1978.<br />

SARAMAGO, José.<br />

[Depoimento]. In:<br />

JANELA da alma. Direção:<br />

Walter Carvalho e João<br />

Jardim. [S.l.]: Copacabana<br />

Filmes, 2001. 1 DVD (73<br />

min.), color., legendado.<br />

SILVA, Armando.<br />

Imaginários urbanos.<br />

São Paulo: Perspectiva;<br />

Bogotá: Convenio<br />

Andres Bello, 2001.<br />

ZUKIN, Sharon. Paisagens<br />

urbanas pós-mo<strong>de</strong>rnas:<br />

mapeando cultura e<br />

po<strong>de</strong>r. In: ARANTES,<br />

Antônio (Org.). O espaço<br />

da diferença. Campinas:<br />

Papirus, 2000. p. 80-103.<br />

Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

21


Jacob Binsztok<br />

Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />

da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense; Doutor em<br />

Geografia Humana pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

Agricultura familiar na Amazônia:<br />

o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia 1<br />

1<br />

Este artigo é parte do projeto “Implantação<br />

<strong>de</strong> Associação <strong>de</strong> Agricultores Familiares no<br />

Estado <strong>de</strong> Rondônia”, apoiado pelo Programa<br />

<strong>de</strong> Pesquisa em Agropecuária e do Agronegócio<br />

– COAGR (processo n° 504325/2004-0),<br />

e sua elaboração contou com a participação<br />

<strong>de</strong> Eduardo Alves Menezes dos Santos, bolsista<br />

do Departamento <strong>de</strong> Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense.<br />

Resumo<br />

Investigamos a agricultura familiar e a<br />

produção <strong>de</strong> café na Amazônia Meridional,<br />

principalmente no centro-leste do estado <strong>de</strong><br />

Rondônia. Nesse sentido foram pesquisados os<br />

espaços produzidos por colonos provenientes<br />

dos estados do Espírito Santo e do Paraná.<br />

Verificamos que toda a comercialização é<br />

estruturada no estado do Espírito Santo,<br />

obrigando o produto a percorrer gran<strong>de</strong>s<br />

distâncias até os portos <strong>de</strong> Vitória ou Paranaguá,<br />

não se escoando a produção por Porto Velho, o<br />

que reduziria significativamente os custos <strong>de</strong><br />

transporte. Tal fato não se vincula a uma<br />

racionalida<strong>de</strong>, mas sim, a uma relação <strong>de</strong><br />

confiança entre produtores e intermediários. As<br />

relações <strong>de</strong> trabalho, principalmente o sistema<br />

<strong>de</strong> meeiros, constituem-se em importante agente<br />

da cafeicultura, ativida<strong>de</strong> que, apesar dos<br />

obstáculos, assume relevância na geração <strong>de</strong><br />

trabalho e renda na Amazônia Meridional.<br />

Abstract<br />

We investigate family agriculture and the production<br />

of coffee in the Southern Amazônia, mainly in the<br />

center-east of the State of Rondônia. In this direction<br />

the spaces produced by colonists proceeding from the<br />

States of Espírito Santo and Paraná had been<br />

researched. We verify that all the commercialization<br />

structure <strong>de</strong>rives from the State of Espírito Santo,<br />

compelling the product to cover great distances until<br />

the ports of Vitória or Paranaguá, instead of<br />

dropping the production off at Porto Velho, a<br />

procedure that would reduce the transport costs<br />

significantly. Rather than upon a rationality such<br />

fact is based on a reliable relation between producers<br />

and intermediaries. The working relations, mainly the<br />

system of share-croppers, are an important agent for<br />

the coffee culture, an activity that <strong>de</strong>spite the obstacles<br />

is relevant to the generation of work and income in<br />

the Southern Amazônia.<br />

jacob.binsztok@terra.com.br<br />

Palavras-chave Amazônia Meridional; Rondônia;<br />

café; agricultura familiar; meeiros.<br />

Keywords Southern Amazônia; State of Rondônia;<br />

coffee; family agriculture; share-croppers.<br />

22<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia


Contextualização<br />

O trabalho investiga o processo <strong>de</strong> consolidação da fronteira agrícola na Amazônia<br />

Meridional, representada pelo município <strong>de</strong> Cacoal, localizado à margem da rodovia<br />

364, distante cerca <strong>de</strong> 470 km <strong>de</strong> Porto Velho e inserido no <strong>de</strong>nominado Centro-Leste<br />

<strong>de</strong> Rondônia. Trata-se do terceiro município mais populoso do Estado, segundo dados<br />

do Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatística referentes ao ano <strong>de</strong> 2003, que revelaram<br />

um efetivo <strong>de</strong> 78.525 habitantes, 60.358 (77%) dos quais concentrados na área urbana e<br />

18.167 (23%) distribuídos pela zona rural.<br />

Com relação aos espaços ocupados pela produção agropecuária em Cacoal, <strong>de</strong>stacamos<br />

a presença <strong>de</strong> uma forte concentração <strong>de</strong> pequenos produtores provenientes, em<br />

gran<strong>de</strong> parte, do norte do Espírito Santo. Descen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> italianos e alemães, esses<br />

produtores <strong>de</strong>dicaram-se, a partir da década <strong>de</strong> 70, ao cultivo do café robusta (conillon) e<br />

a uma significativa policultura responsável pela ampla varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> produtos consumidos<br />

na cida<strong>de</strong>.<br />

Com respeito às relações <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>stacamos a existência <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

meeiros oriundos <strong>de</strong> diversos Estados. Ocupados principalmente com o cultivo do café e<br />

com a pecuária <strong>de</strong> corte e <strong>de</strong> leite e trabalhando ao lado dos pequenos proprietários, os<br />

meeiros constituíram-se em um dos importantes atores para a consolidação da fronteira<br />

agrícola do centro-leste <strong>de</strong> Rondônia e, conseqüentemente, da Amazônia Meridional.<br />

No que se refere ao processo <strong>de</strong> ocupação e povoamento <strong>de</strong> Cacoal, o município<br />

encontra-se inserido nos ciclos que atingiram Rondônia e que po<strong>de</strong>m ser resumidos da<br />

seguinte forma:<br />

1º. A partir do século XVII, no período colonial, pela penetração <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras dirigidas<br />

pelos portugueses. O objetivo principal <strong>de</strong>sses movimentos era a exploração <strong>de</strong><br />

ouro e outros minerais nos rios Guaporé e Mamoré. No século XVIII, esse processo<br />

originou os núcleos populacionais <strong>de</strong> Pouso Alegre e Casa Redonda.<br />

2º. No fim do século XIX a região atravessou o primeiro ciclo da borracha com<br />

migrantes nor<strong>de</strong>stinos ocupando as bacias hidrográficas e avançando em terras<br />

bolivianas. Tal movimentação gerou um conflito territorial entre Brasil e Bolívia,<br />

solucionado pelo Tratado <strong>de</strong> Petrópolis, assinado em 1903, que garantiu ao Brasil<br />

as terras que <strong>de</strong>ram origem ao estado do Acre. No início do século XX a construção<br />

da Estrada <strong>de</strong> Ferro Ma<strong>de</strong>ira-Mamoré, no período <strong>de</strong> 1904 a 1912, favoreceu a<br />

imigração <strong>de</strong> trabalhadores europeus, centro-americanos e nor<strong>de</strong>stinos, e <strong>de</strong>la se<br />

originaram os núcleos urbanos <strong>de</strong> Porto Velho, Jaci-Paraná, Mutum-Paraná, Abunã<br />

e Guajará-Mirim.<br />

3º. No século passado, entre 1920/40, a Comissão Rondon, responsável pela implantação<br />

da linha telegráfica Cuiabá-Porto Velho, instalou postos em Vilhena, Marco Rondon,<br />

Pimenta Bueno, Ji-Paraná, Ariquemes e Porto Velho, po<strong>de</strong>ndo ser consi<strong>de</strong>rada o<br />

embrião do município <strong>de</strong> Cacoal, por ter permitido que um dos seus integrantes, o<br />

Sr. Anésio Sena <strong>de</strong> Carvalho, proveniente da Paraíba, solicitasse terras para a<br />

implantação <strong>de</strong> um seringal às margens do igarapé Pirarara. Em virtu<strong>de</strong> da gran<strong>de</strong><br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seringueiras e <strong>de</strong> cacaueiros nativos encontrados na área, o<br />

Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Jacob Binsztok<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

23


empreendimento foi <strong>de</strong>nominado Seringal Cacoal, passando a se <strong>de</strong>signar Fazenda<br />

Cacoal após o <strong>de</strong>clínio da borracha.<br />

4º. No período <strong>de</strong> 1941/1945, durante a 2ª Guerra Mundial, o Governo Vargas criou<br />

o SEMTA (Serviço Especial <strong>de</strong> Mobilização <strong>de</strong> Trabalhadores para a Amazônia),<br />

dirigido pelo engenheiro Paulo <strong>de</strong> Assis Ribeiro, com a participação do então padre<br />

Hel<strong>de</strong>r Câmara na coor<strong>de</strong>nação dos trabalhos <strong>de</strong> orientação religiosa dos “soldados”<br />

da borracha. Na época foram recrutados cerca <strong>de</strong> 50.000 trabalhadores nor<strong>de</strong>stinos,<br />

com o objetivo <strong>de</strong> reativar a produção dos seringais na Amazônia e em gran<strong>de</strong><br />

parte das bacias hidrográficas <strong>de</strong> Rondônia. Financiado pela agência governamental<br />

norte-americana Rabber Development Corporation, o SEMTA jamais cumpriu sua<br />

meta <strong>de</strong> produzir sessenta mil toneladas do produto por ano, e, por conseguinte,<br />

os soldados da borracha foram abandonados à própria sorte na região.<br />

5º. Na década <strong>de</strong> 60, a extração <strong>de</strong> cassiterita (estanho), dirigida pelo conglomerado<br />

cana<strong>de</strong>nse Brascan, atraiu um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> garimpeiros para Ariquemes e<br />

Porto Velho. Nessa década também ocorreu a abertura da BR-364, ligando Porto<br />

Velho a Cuiabá. Na década <strong>de</strong> 70, a colonização oficial do INCRA transformou os<br />

antigos postos telegráficos <strong>de</strong> Vilhena, Pimenta Bueno, Ji-Paraná e Ariquemes em<br />

núcleos <strong>de</strong> projetos e <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> um dos movimentos migratórios mais<br />

expressivos da Amazônia.<br />

2<br />

O autor <strong>de</strong>staca a presença das seguintes<br />

famílias: Amandio Rodrigues d’Ávila, Olívio<br />

<strong>de</strong> Tal, Siriaco do Nascimento, Manoel Gomes<br />

dos Santos, Pedro Alves Corrêa, Jesuíno<br />

Rodrigues d’Ávila, Colares Pinto Rabelo,<br />

Antônio Petroni, Antenor Nunes <strong>de</strong> Oliveira<br />

(Orlando) e Francisco Nominato Fritz.<br />

O processo <strong>de</strong> povoamento e ocupação <strong>de</strong> Rondônia<br />

Pesquisando as origens das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Rondônia, Silva Filho (1995, p. 15) relata o<br />

recente processo <strong>de</strong> ocupação e povoamento na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cacoal, mostrando que, em<br />

1972, à margem da atual BR-364, perto do barracão <strong>de</strong> uma antiga fazenda, um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> pioneiros provenientes <strong>de</strong> vários cantos do país acamparam e ficaram<br />

aguardando a <strong>de</strong>marcação e distribuição <strong>de</strong> lotes, pelo INCRA, do Projeto Integrado<br />

<strong>de</strong> Colonização Ji-Paraná, com uma área prevista <strong>de</strong> 486.137 ha <strong>de</strong>stinados ao<br />

assentamento <strong>de</strong> 5.000 famílias. 2<br />

O trabalho <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Kemper (2002) mostra que gran<strong>de</strong> parte dos seringalistas<br />

precursores da cida<strong>de</strong>, por não possuírem títulos <strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>ram<br />

parte <strong>de</strong> suas terras <strong>de</strong>vido a invasões ou mesmo a <strong>de</strong>sapropriações realizadas<br />

pelo próprio INCRA durante o Regime Militar, não sendo raro terminarem seus dias em<br />

dificulda<strong>de</strong>s financeiras e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> familiares para prover suas necessida<strong>de</strong>s, como<br />

<strong>de</strong>monstraram as entrevistas realizadas pela autora com amigos e familiares <strong>de</strong> Anísio<br />

Serrão, Manoel do Carmo, João Faustino da Silva, Luiz Caetano <strong>de</strong> Azevedo, Leônidas<br />

Leonel <strong>de</strong> Oliveira e Clodoaldo Nunes <strong>de</strong> Almeida, este responsável pela introdução do<br />

café em Rondônia. Não conseguindo obter gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político, esses proprietários <strong>de</strong><br />

terras não se transformaram em oligarquias rurais, diferentemente do ocorrido em outras<br />

áreas do país.<br />

A publicida<strong>de</strong> oficial sobre a distribuição <strong>de</strong> lotes atraiu um notável fluxo <strong>de</strong> migrantes<br />

para as imediações do Projeto Ji-Paraná, fazendo com que o INCRA também atuasse na<br />

distribuição <strong>de</strong> lotes urbanos, ao construir uma vila no cruzamento da linha 07 com a<br />

24<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia


BR-364, lançando os marcos urbanos <strong>de</strong> Cacoal. A expansão da vila e o aumento do<br />

tráfego pela rodovia motivaram alguns pioneiros para iniciativas inovadoras, como a<br />

construção <strong>de</strong> pequenos estabelecimentos comerciais <strong>de</strong>stinados ao atendimento do fluxo<br />

rodoviário: restaurantes, postos <strong>de</strong> gasolina, oficinas <strong>de</strong> reparos <strong>de</strong> veículos, hotéis etc.<br />

A importância <strong>de</strong>sses núcleos foi assinalada em vários estudos realizados, na década<br />

<strong>de</strong> 60, por Orlando Valver<strong>de</strong> (1964) ao longo das rodovias Belém-Brasília (antiga BR-<br />

14) e Brasília-Acre (antiga BR-29). Seguindo a tradição da escola geográfica alemã, o<br />

geógrafo chamou esses núcleos <strong>de</strong> strassendorf, <strong>de</strong>stacando as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu incipiente<br />

traçado urbano, que evoluía na forma <strong>de</strong> um tabuleiro <strong>de</strong> xadrez, além das funções<br />

<strong>de</strong>sempenhadas pelos estabelecimentos comerciais pioneiros. Essa é a gênese <strong>de</strong><br />

um gran<strong>de</strong> número dos atuais núcleos urbanos formados ao longo da BR-364 e, particularmente,<br />

dos municípios <strong>de</strong> Cacoal, Pimenta Bueno e Ji-Paraná, entre outros.<br />

Os procedimentos do INCRA, em consonância com o or<strong>de</strong>namento proposto pelo<br />

Regime Militar, rapidamente elevaram Cacoal à categoria <strong>de</strong> município. Assim, o município<br />

foi criado pela Lei n° 6.448, <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1977, e seus limites, <strong>de</strong>finidos<br />

pelo Decreto n° 81.272, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1978, <strong>de</strong>marcados em 1° <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

1982, exatamente <strong>de</strong>z anos após a chegada dos pioneiros à Fazenda Cacoal. Os limites<br />

do município foram estabelecidos da seguinte forma: ao norte, com o estado <strong>de</strong> Mato<br />

Grosso; a oeste, com o município <strong>de</strong> Ministro Andreazza; ao sul, com o município <strong>de</strong><br />

Rolim <strong>de</strong> Moura; a leste/su<strong>de</strong>ste, com o município <strong>de</strong> Pimenta Bueno; e a leste/norte,<br />

com o município <strong>de</strong> Espigão d’Oeste. O Mapa 1 mostra a atual malha municipal <strong>de</strong><br />

Rondônia, <strong>de</strong>stacando o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> municípios constituídos a partir da década<br />

<strong>de</strong> 90 e respectivo fracionamento das unida<strong>de</strong>s administrativas representativas do po<strong>de</strong>r<br />

local, fato comum em outras áreas do país.<br />

Analisando o processo <strong>de</strong> colonização implantado pelo INCRA, nos anos 70, na Amazônia<br />

Meridional, Ariovaldo Umbelino <strong>de</strong> Oliveira (1990) e Bertha Becker (1991) <strong>de</strong>stacaram<br />

a importância <strong>de</strong> dois instrumentos utilizados pelo Regime Militar para viabilizar<br />

a ocupação dos “vazios <strong>de</strong>mográficos” <strong>de</strong> Rondônia:<br />

a. Consolidação da BR-364: realizada no final dos anos 70/80, principalmente no<br />

trecho Cuiabá-Vilhena-Porto Velho, contou com recursos do Pólo-noroeste e<br />

financiamento do Banco Mundial para or<strong>de</strong>nar o fluxo <strong>de</strong> camponeses expropriados<br />

pela mo<strong>de</strong>rnização agrícola ocorrida no sul e no su<strong>de</strong>ste do país;<br />

b. Projetos Integrados <strong>de</strong> Colonização (PIC): concebidos pelo Programa <strong>de</strong> Integração<br />

Nacional (PIN), ocuparam uma faixa <strong>de</strong> 100 km <strong>de</strong> cada lado da BR-364, repartida<br />

em lotes <strong>de</strong> aproximadamente 100 ha, distribuídos pelo INCRA. O referido processo<br />

foi chamado por alguns autores <strong>de</strong> “contra-reforma agrária”, pois o Regime Militar<br />

pretendia esvaziar as reivindicações dos movimentos sociais rurais que mobilizavam<br />

os excluídos do processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização do campo, mediante o oferecimento<br />

<strong>de</strong> lotes no estado <strong>de</strong> Rondônia.<br />

Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Jacob Binsztok<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

25


Mapa 1<br />

Malha municipal atual do estado <strong>de</strong> Rondônia<br />

Fonte: RONDÔNIA, 2006.<br />

A leitura das informações contidas no Quadro 1 mostra Ouro Preto e Ji-Paraná como<br />

os maiores projetos <strong>de</strong> colonização do estado <strong>de</strong> Rondônia; no entanto, apesar <strong>de</strong> relativamente<br />

próximos, verificamos que Ji-Paraná se <strong>de</strong>stacou pelo seu <strong>de</strong>smembramento,<br />

dando origem a um número significativo <strong>de</strong> municípios. Logo, os projetos <strong>de</strong> colonização<br />

foram fundamentais para a constituição dos novos municípios, que, embora possuindo<br />

reduzidas estruturas <strong>de</strong> serviços, mobilizaram li<strong>de</strong>ranças para exercer o po<strong>de</strong>r local<br />

e substituir as funções <strong>de</strong>sempenhadas pelo INCRA.<br />

Quadro 1<br />

Projetos Integrados <strong>de</strong> Colonização no estado <strong>de</strong> Rondônia<br />

Projetos Área (ha) N o <strong>de</strong> famílias Localização<br />

Ouro Preto 512.585 5.000 Ouro Preto d’Oeste e Ji-Paraná<br />

Ji-Paraná 486.137 5.000 Cacoal, Pres. Médici, Rolim <strong>de</strong> Moura,<br />

Pimenta Bueno e Espigão d’Oeste<br />

Adolfo Rohl 407.210 3.500 Jaru<br />

Paulo <strong>de</strong> Assis Ribeiro 293.580 3.500 Colorado d’Oeste<br />

Sidney Girão 60.000 600 Guajará-Mirim<br />

Fonte: INCRA, 1983.<br />

Nota: Dados organizados por Oliveira (1990) e Becker (1991) e reorganizados por Binsztok (2002).<br />

26<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia


Nessa perspectiva po<strong>de</strong>mos afirmar que tanto a BR-364 quanto os Projetos Integrados<br />

<strong>de</strong> Colonização cumpriram as finalida<strong>de</strong>s geopolíticas estipuladas pelo Regime Militar,<br />

criando novas esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local e contribuindo <strong>de</strong>cisivamente para a construção<br />

<strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m territorial no estado <strong>de</strong> Rondônia e na Amazônia Meridional<br />

(vi<strong>de</strong> Mapa 1).<br />

Agricultura familiar e a cafeicultura no estado <strong>de</strong> Rondônia<br />

Com o objetivo <strong>de</strong> investigar a agricultura familiar no estado <strong>de</strong> Rondônia, realizamos<br />

estudos exploratórios no município <strong>de</strong> Cacoal, em 2001 e em 2004, procurando conhecer<br />

a participação dos produtores no referido processo. Para tanto, entrevistamos pequenos<br />

proprietários, meeiros, comerciantes, feirantes, professores, estudantes, técnicos <strong>de</strong><br />

instituições públicas, enfim, todos aqueles que pu<strong>de</strong>ssem nos ajudar a melhor compreen<strong>de</strong>r<br />

a construção <strong>de</strong>sse novo or<strong>de</strong>namento territorial na Amazônia Meridional.<br />

Ao percorrermos as linhas <strong>de</strong> produção on<strong>de</strong> se concentra a ativida<strong>de</strong> agropecuária<br />

<strong>de</strong> Cacoal, <strong>de</strong>paramo-nos com uma população proveniente, em gran<strong>de</strong> parte, do norte<br />

do Espírito Santo, <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s como São Gabriel da Palha, Linhares, Colatina, Mantena,<br />

Vila Pavão e Nova Venécia. Esses produtores, que adquiriram suas terras na década <strong>de</strong><br />

70/80, organizaram-se em uma estrutura tipicamente familiar e <strong>de</strong>dicaram-se ao cultivo<br />

<strong>de</strong> café, mais especificamente da varieda<strong>de</strong> conillon, caracterizada por maior porte vegetativo<br />

e tolerância a temperaturas elevadas.<br />

O café do tipo conillon, diferente da varieda<strong>de</strong> arábica, não é apropriado ao consumo<br />

direto, sendo utilizado na fabricação <strong>de</strong> tintas, na indústria <strong>de</strong> café solúvel e na composição<br />

<strong>de</strong> blends <strong>de</strong> café torrado, porque otimiza a cor e a consistência da bebida.<br />

A importância <strong>de</strong> Cacoal na economia cafeeira <strong>de</strong> Rondônia po<strong>de</strong> ser verificada pela<br />

leitura dos dados contidos no Quadro 2.<br />

Quadro 2<br />

Maiores produtores <strong>de</strong> café conillon <strong>de</strong> Rondônia<br />

Municípios Área (ha) Produção (saca) Rendimento (ha)<br />

Cacoal 22.037 308.520 14,0<br />

São Miguel <strong>de</strong> Guaporé 16.620 177.060 10,5<br />

Alto Paraíso 10.700 128.400 12,0<br />

Machadinho do Oeste 9.903 52.420 6,0<br />

Ministro Andreazza 9.121 127.690 14,0<br />

Nova Brasilândia do Oeste 8.904 106.850 12,0<br />

Alta Floresta do Oeste 8.433 118.060 14,0<br />

Novo Horizonte do Oeste 7.853 109.940 14,0<br />

Rolim <strong>de</strong> Moura 7.597 100.280 13,0<br />

Jaru 7.361 95.690 13,0<br />

Subtotal 108.529 1.331.910 12,0<br />

Outros municípios 104.590 1.060.470 10,0<br />

Total 203.128 2.392.380 11,0<br />

Fonte: IBGE, 2001.<br />

Nota: Dados organizados por Agenor Luiz Delazari e reorganizados por Jacob Binsztok.<br />

Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Jacob Binsztok<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

27


Analisando as informações do Quadro 2 observamos que a cafeicultura <strong>de</strong> Rondônia<br />

está distribuída por um razoável número <strong>de</strong> municípios. Cacoal <strong>de</strong>staca-se pela li<strong>de</strong>rança<br />

da produção, em área ocupada e em rendimento. Com relação ao rendimento, é importante<br />

ressaltar que Cacoal acompanha a média nacional (14,0), significativa para Rondônia,<br />

porém baixa se comparada com os resultados obtidos por <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> (25,0) e<br />

São Paulo (23,0).<br />

As abordagens comparativas são relevantes, não <strong>de</strong>vendo entretanto servir como <strong>de</strong>sestímulo<br />

para a cafeicultura <strong>de</strong> Cacoal, pois as cultivares <strong>de</strong> São Paulo e <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />

são da varieda<strong>de</strong> arábica, adaptada a condições morfológicas e climáticas e padrões tecnológicos<br />

diferentes dos <strong>de</strong> Rondônia.<br />

Segundo informações divulgadas pela EMATER-RO e da CEPLAC-RO, o café <strong>de</strong> Cacoal<br />

é colhido sem estar plenamente maduro, acarretando uma perda <strong>de</strong> 40%. O melhoramento<br />

da qualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser obtido mediante o aumento do tempo nos secadores<br />

para cerca <strong>de</strong> 36 horas, em lugar das 12-14 horas atualmente utilizadas para a<br />

maturação do produto.<br />

Na área rural <strong>de</strong> Cacoal encontramos atores marcantes da diferenciação socioespacial<br />

que caracteriza a fronteira agrícola consolidada <strong>de</strong> Rondônia. Assim, entramos em contato<br />

com uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produtores capixabas <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> pomeranos, provenientes<br />

em gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> São Gabriel da Palha, Vila Pavão, Afonso Cláudio e Barra<br />

do São Francisco. Em suas residências ainda falam o baixo alemão, e do ponto <strong>de</strong> vista<br />

religioso a comunida<strong>de</strong> apresenta-se dividida entre a<strong>de</strong>ptos das Igrejas Católica, Evangélica<br />

e Luterana. Em relação aos luteranos, há ainda uma subdivisão, envolvendo os <strong>de</strong><br />

confissão luterana do Brasil e no Brasil. A comunida<strong>de</strong> possui também uma escola <strong>de</strong><br />

nível médio, localizada na área urbana <strong>de</strong> Cacoal.<br />

Os pomeranos da linha 21 possuem certa similitu<strong>de</strong> com os produtores <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência<br />

italiana em relação ao cultivo do café, <strong>de</strong>dicando-se porém com mais empenho à<br />

produção <strong>de</strong> leite, em proprieda<strong>de</strong>s situadas na faixa <strong>de</strong> 5 a 10 alqueires. A média <strong>de</strong><br />

produção <strong>de</strong> leite é <strong>de</strong> 30 litros diários, comercializados com maquinistas locais e com<br />

representantes dos laticínios Vale d’Oeste (Espigão d’Oeste), Nova Esperança (Espigão<br />

d’Oeste) e Tradição (Ji-Paraná).<br />

Segundo informações locais, os produtores <strong>de</strong> origem pomerana adquiriram suas terras<br />

da empresa loteadora Companhia Itaporanga. Os migrantes paranaenses, originários<br />

em gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> Vera Cruz, Cruzeiro do Oeste, Céu Azul e Toledo, geralmente chegaram<br />

na região como meeiros, só comprando terras após um período <strong>de</strong> permanência<br />

em Cacoal.<br />

Nas entrevistas, fomos informados <strong>de</strong> que alguns produtores estão ven<strong>de</strong>ndo suas<br />

proprieda<strong>de</strong>s e comprando terras <strong>de</strong> menor valor em locais distantes, como Conízia<br />

(Mato Grosso), Buritis (Rondônia) e São Francisco (Rondônia), aproveitando-se <strong>de</strong> estradas<br />

vicinais pioneiras existentes na região. De acordo com dados do IBGE, o município<br />

<strong>de</strong> Buritis apresentou a maior taxa <strong>de</strong> crescimento populacional do país, atingindo<br />

cerca <strong>de</strong> 30% durante o ano <strong>de</strong> 2003, mostrando que a fronteira agrícola ainda não se<br />

esgotou em Rondônia e que os movimentos migratórios na atualida<strong>de</strong> estão obe<strong>de</strong>cen-<br />

28<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia


do a uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> caráter inter-regional. Existem casos ainda <strong>de</strong> produtores que mantiveram<br />

suas proprieda<strong>de</strong>s em Cacoal e continuaram ali residindo, mas adquiriram novas<br />

terras nos locais mencionados, alguns inclusive nelas atuando como maquinistas da produção<br />

<strong>de</strong> café.<br />

A contribuição do geógrafo Jean Roche (1968), com sua obra A colonização alemã no<br />

Espírito Santo, na qual a fração do campesinato envolvida na aquisição <strong>de</strong> terras na fronteira<br />

agrícola do norte capixaba foi <strong>de</strong>nominada “fazedores <strong>de</strong> solo”, ajudou a compreen<strong>de</strong>r<br />

o processo <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> terras na fronteira agrícola <strong>de</strong> Rondônia. Verifica-se na<br />

referida obra que as práticas <strong>de</strong>stinadas ao assentamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes do sexo masculino,<br />

no caso da colonização pomerana, já eram organizadas nos locais <strong>de</strong> origem dos<br />

migrantes, não <strong>de</strong>vendo ser consi<strong>de</strong>radas, portanto, apenas como uma especificida<strong>de</strong> da<br />

disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> terra na fronteira agrícola <strong>de</strong> Rondônia.<br />

A policultura típica da produção camponesa é facilmente constatada em gran<strong>de</strong> parte<br />

das proprieda<strong>de</strong>s rurais <strong>de</strong> Cacoal. Nesse sentido, encontramos a horticultura, com produção<br />

<strong>de</strong> alface, agrião, repolho, abobrinha, brócolis, tomate e cenoura, a fruticultura,<br />

com produção <strong>de</strong> manga, coco, araçá, abacaxi, melancia, banana-da-terra, banana-prata,<br />

melão, laranja, fruta-<strong>de</strong>-con<strong>de</strong>, acerola, poncã, pupunha, jaca e cupuaçu, e o cultivo <strong>de</strong><br />

cereais, como feijão, arroz e milho, além da criação <strong>de</strong> galinhas caipiras, perus e porcos.<br />

Segundo informações da EMATER-RO, essa policultura é responsável pelo abastecimento<br />

<strong>de</strong> supermercados (Lusitana e Irmãos Gonçalves) e <strong>de</strong> pelo menos quatro feiras<br />

semanais realizadas na cida<strong>de</strong>. Alguns produtores, mais capitalizados, cultivam seus produtos<br />

utilizando técnicas hidropônicas, outros aten<strong>de</strong>m intermediários <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s vizinhas,<br />

como Ji-Paraná e Porto Velho, tendo somente um <strong>de</strong>les conseguido atingir o mercado<br />

<strong>de</strong> Manaus.<br />

A principal feira realizada no centro da cida<strong>de</strong> não possui características específicas,<br />

apresentando certa similitu<strong>de</strong> com as congêneres da área periférica da Região Metropolitana<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Os feirantes informaram-nos que pagam mensalmente um<br />

aluguel simbólico <strong>de</strong> R$1,00 à Prefeitura para adquirirem a licença <strong>de</strong> instalação da barraca,<br />

visando à comercialização <strong>de</strong> seus produtos.<br />

Com o objetivo <strong>de</strong> melhor compreen<strong>de</strong>r a importância das linhas <strong>de</strong> produção para o<br />

abastecimento da cida<strong>de</strong>, que executam a função <strong>de</strong> um “cinturão ver<strong>de</strong>”, elaboramos o<br />

Quadro 3, a seguir apresentado.<br />

As informações do Quadro 3 mostram que as linhas 08, 10 e 208 concentram a produção<br />

<strong>de</strong> hortifrutigranjeiros para o abastecimento <strong>de</strong> Cacoal. No caso, confirmamos as<br />

observações <strong>de</strong> Martin Coy (1995, p. 121) <strong>de</strong> que o acelerado crescimento urbano das<br />

cida<strong>de</strong>s pioneiras está contribuindo para a diversificação dos circuitos econômicos e<br />

melhorando a renda <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados segmentos rurais. Nas entrevistas, verificamos que<br />

uma significativa parcela <strong>de</strong> feirantes é constituída <strong>de</strong> produtores rurais que reclamam<br />

das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transporte, principalmente nos fins <strong>de</strong> semana, pois, muitas vezes, se<br />

vêem obrigados a pernoitar na cida<strong>de</strong>, em condições adversas, para evitar <strong>de</strong>slocamentos<br />

onerosos entre o sítio e a feira.<br />

Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Jacob Binsztok<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

29


Produtos<br />

Quadro 3<br />

Produtos comercializados nas feiras <strong>de</strong> Cacoal<br />

Origem<br />

Espinafre, hortelã, mandioca e repolho. Linha* 06<br />

Alface, almeirão, abóbora, berinjela, cebolinha, coentro, cenoura, frango,<br />

jiló, maxixe, pepino, quiabo, rúcula, pimenta doce, pimenta-<strong>de</strong>-cheiro e tomate. Linha* 08<br />

Abacaxi, abóbora, banana-da-terra, melão nativo, limão e vagem. Linha* 208<br />

Feijão-ver<strong>de</strong>, jiló, pepino, galinha (engradada),<br />

ovos, amendoim, feijão, repolho e farinha.<br />

Carne <strong>de</strong> porco.<br />

Linha*10<br />

Feijão, arroz, mandioca, farinha e banana-maçã. Linha* 13<br />

Galinha (engradada)<br />

Manga, abacaxi.<br />

Alho<br />

Condimentos<br />

Cenoura, cebola, beterraba.<br />

Linhas* 05, 09, 10, Espigão d’Oeste,<br />

Alvorada e Rolim <strong>de</strong> Moura.<br />

Linha* 11, Alto Alegre e Pimenta Bueno.<br />

Linha União<br />

Goiânia<br />

São Paulo e Rondônia<br />

Paraná<br />

* = Linha/linhas: estradas vicinais<br />

abertas pelo INCRA para a implantação<br />

<strong>de</strong> lotes <strong>de</strong>stinados à produção<br />

agropecuária dos antigos Projetos<br />

Integrados <strong>de</strong> Colonização (PIC).<br />

Fonte: Pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />

Nota: Dados elaborados por Maria Selme Santana, em novembro <strong>de</strong> 2001, e organizados por Jacob Binsztok, em fevereiro <strong>de</strong> 2002.<br />

Alguns segmentos urbanos, representados por comerciantes, profissionais liberais e funcionários<br />

públicos fiéis às raízes patrimonialistas do país, também estão adquirindo pequenos<br />

lotes na zona rural (1 a 5 alqueires) e transformando-os em sítios <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> semana,<br />

estimulando, <strong>de</strong>ssa forma, a existência <strong>de</strong> um razoável mercado <strong>de</strong> terras em Cacoal.<br />

A presença <strong>de</strong>sses movimentos mostra a importância dos estudos realizados por Otávio<br />

Guilherme Velho (1979, p. 70) sobre a gran<strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> espacial do campesinato,<br />

<strong>de</strong> Oliveira (1990, p. 40), referente à <strong>de</strong>sterritorialização do campesinato, e <strong>de</strong> Martin<br />

Coy (1995, p. 121), advertindo para o gradual fechamento da fronteira agrícola e sua<br />

insustentabilida<strong>de</strong> ambiental. Em linhas gerais, esses pesquisadores <strong>de</strong>stacam a incapacida<strong>de</strong><br />

da fronteira agrícola na solução da geração <strong>de</strong> trabalho e renda e admitem que o<br />

campesinato está longe <strong>de</strong> esgotar suas possibilida<strong>de</strong>s para a construção <strong>de</strong> uma nova<br />

or<strong>de</strong>m territorial-ambiental no país.<br />

Os espaços ocupados pelos meeiros e pelos trabalhadores rurais<br />

Analisando as especificida<strong>de</strong>s da colonização implantada pelo INCRA em Rondônia,<br />

Ariovaldo Umbelino Oliveira (1990, p. 29), influenciado por Carlos Minc (1985), aponta<br />

a importância da meação e do compadrio como procedimentos iniciais para a fixação<br />

dos pequenos proprietários, ressaltando:<br />

A maior parte dos migrantes que chegaram a Rondônia não conseguiram lotes nem no primeiro,<br />

nem no segundo ano. Outros ganharam lotes em áreas sem qualquer tipo <strong>de</strong> acesso, com distâncias<br />

30<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia


<strong>de</strong> 100km das estradas. Tanto num caso como no outro, estes camponeses se instalaram nos<br />

lotes já produtivos <strong>de</strong> parentes ou amigos, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agregados ou meeiros.<br />

O sistema <strong>de</strong> meeiros é importante porque está na base das diferenças sócio-espaciais que ali se<br />

estabeleceram. O meeiro instala-se com sua família no lote <strong>de</strong> um colono, enquanto aguarda<br />

receber o seu, ou então que o seu lote se torne acessível. Neste período trabalha seu roçado com<br />

a família e ainda ajuda o proprietário na implantação da cultura <strong>de</strong> café ou cacau. Esta relação não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um tipo <strong>de</strong> exploração, mas é a única forma que a família recém chegada encontra para<br />

sobreviver e conseguir economizar para investir no seu próprio lote. Geralmente as famílias,<br />

quando <strong>de</strong>ixam seus locais <strong>de</strong> origem, já têm o en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> conhecidos, que se dispõem a receber<br />

novos meeiros. Esta relação tornou-se assim a porta <strong>de</strong> entrada para a fixação <strong>de</strong> novos migrantes<br />

na região.<br />

A presença <strong>de</strong> meeiros trabalhando ao lado <strong>de</strong> pequenos proprietários é uma constante<br />

no espaço agrário <strong>de</strong> Cacoal. Segundo informações da EMATER-RO, cerca <strong>de</strong> 60%<br />

dos acertos realizados entre meeiros e proprietários são verbais e por vezes conflituosos,<br />

não se pautando nos Contratos <strong>de</strong> Parceria Agrícola previstos no art. 92 do Estatuto<br />

da Terra (Lei 4.504, <strong>de</strong> 30/11/1964). O instrumento legal estipula que 50% da produção<br />

<strong>de</strong> café ou <strong>de</strong> cacau sejam divididos com o proprietário e que toda a “lavoura<br />

branca” – como a <strong>de</strong> mandioca, milho, feijão e frutas – seja proprieda<strong>de</strong> do meeiro.<br />

Alguns produtores adotam o Contrato <strong>de</strong> Parceria Agrícola como garantia contra<br />

futuras reivindicações judiciais. Atualmente os proprietários possuem <strong>de</strong> um a dois meeiros;<br />

em outras ocasiões, proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 42 alqueires chegaram a contar com o trabalho<br />

<strong>de</strong> três meeiros.<br />

Na pecuária registramos a presença <strong>de</strong> dois tipos <strong>de</strong> meeiro: o primeiro, representado<br />

pelo meeiro sem terra, é remunerado pelo peso adicional da engorda sob a sua responsabilida<strong>de</strong>;<br />

o segundo, caracterizado pelo meeiro com terra, recebe o novilho do fazen<strong>de</strong>iro<br />

e com este reparte igualmente o lucro. Em ambos os casos, a produção do leite<br />

pertence ao meeiro.<br />

As linhas <strong>de</strong> crédito para os meeiros são concedidas pelo Fundo <strong>de</strong> Amparo ao Trabalhador<br />

(FAT), e as para os pequenos produtores, pelo Programa Nacional <strong>de</strong> Agricultura<br />

Familiar (PRONAF) e pelo Rural-Rápido, as quais se situam na faixa <strong>de</strong> R$1.000,00 a<br />

R$5.000,00 e são operadas, respectivamente, pelo Banco do Brasil e pelo Banco da<br />

Amazônia Socieda<strong>de</strong> Anônima (BASA). No momento os pequenos produtores só per<strong>de</strong>m<br />

suas terras por dívidas no banco, se as tiverem ofertado como garantias hipotecárias.<br />

Esse procedimento confirma os estudos <strong>de</strong> Oliveira (1990, p. 30), mostrando que a<br />

atual fase do <strong>de</strong>senvolvimento capitalista não está interessada em expropriar terras e<br />

sim, em apropriar-se da renda da terra por intermédio da exploração do sobretrabalho<br />

dos pequenos proprietários e meeiros.<br />

O trabalho temporário é utilizado por proprietários e meeiros nos meses <strong>de</strong> abril,<br />

maio, junho e julho, durante a safra do café, através do recrutamento <strong>de</strong> diaristas para a<br />

colheita do produto. Assim, são mobilizados trabalhadores do município limítrofe <strong>de</strong><br />

Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Jacob Binsztok<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

31


Espigão d’Oeste, empregadas domésticas, menores, enfim, há uma verda<strong>de</strong>ira corrida<br />

pela safra <strong>de</strong> café em Cacoal. Em 2001, esses trabalhadores foram remunerados em<br />

R$1,50/latão, tendo a diária da mão-<strong>de</strong>-obra temporária atingido cerca <strong>de</strong> R$15,00.<br />

A incorporação do trabalho infantil na cafeicultura <strong>de</strong> Cacoal, típica da organização<br />

camponesa, foi observada em entrevistas com os alunos da Escola Cruzeiro do Norte,<br />

na linha 21. Além <strong>de</strong> trabalhar diretamente na produção cafeeira, capinando os lotes,<br />

<strong>de</strong>sbastando e colhendo o café e enchendo os latões, essas crianças colaboram nas tarefas<br />

familiares, cuidando <strong>de</strong> irmãos, limpando a casa e fervendo o leite para a produção<br />

<strong>de</strong> leite-<strong>de</strong>-coco. Não parece aqui se tratar da exploração ou do sobretrabalho infantil<br />

comumente utilizados em outros setores da ativida<strong>de</strong> agrícola, mas da inserção <strong>de</strong>sses<br />

jovens na lógica <strong>de</strong> produção da unida<strong>de</strong> familiar camponesa.<br />

Os jovens das áreas rurais são atendidos por 19 escolas municipais responsáveis pelo<br />

Ensino Fundamental e pelo Projeto Pró-Campo, que, inspirado no método <strong>de</strong>senvolvido<br />

por Paulo Freire, compatibiliza o trabalho agrícola com as ativida<strong>de</strong>s escolares. O<br />

Projeto ministra o conteúdo curricular <strong>de</strong> 5ª a 8ª série para cerca <strong>de</strong> 1.000 estudantes,<br />

mediante a utilização <strong>de</strong> um sistema alternativo envolvendo presença e ativida<strong>de</strong>s complementares.<br />

A etapa presencial é realizada com os docentes que, uma vez por semana, se<br />

<strong>de</strong>slocam para as unida<strong>de</strong>s escolares e ali permanecem à disposição dos alunos, durante<br />

8 horas; os <strong>de</strong>mais dias <strong>de</strong>stinam-se às ativida<strong>de</strong>s complementares.<br />

A recente saída <strong>de</strong> produtores <strong>de</strong> áreas rurais <strong>de</strong> Cacoal contribuiu para uma reestruturação<br />

do Pró-Campo. Embora não tenha ocorrido o fechamento <strong>de</strong> escolas, como o<br />

verificado em Ji-Paraná e relatado por Martin Coy (1995, p.121), foram realizadas fusões<br />

<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s escolares. Essas fusões não chegaram, entretanto, a interferir na capilarida<strong>de</strong><br />

do sistema e, conseqüentemente, no acesso às ativida<strong>de</strong>s do Projeto, pois a Prefeitura<br />

disponibilizou um serviço <strong>de</strong> ônibus para o transporte dos alunos.<br />

É importante ressaltar que o município vem per<strong>de</strong>ndo sua população no campo, registrando-se,<br />

nos primórdios da década <strong>de</strong> 2000, um êxodo <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 5.000 habitantes,<br />

os quais passaram a residir na área urbana, estimulados inclusive pelas políticas públicas<br />

adotadas pela municipalida<strong>de</strong>. A continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse movimento po<strong>de</strong>rá acarretar<br />

futuros riscos para a manutenção do Projeto Pró-Campo nas áreas rurais <strong>de</strong> Cacoal.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

A pesquisa mostrou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um estudo visando a organizar uma estrutura <strong>de</strong><br />

escoamento da produção cafeeira em direção à Hidrovia do Ma<strong>de</strong>ira, semelhante ao<br />

executado pelo Grupo Maggi e pela Cargill em relação à produção <strong>de</strong> soja e milho do<br />

Mato Grosso e do sul <strong>de</strong> Rondônia, evitando, <strong>de</strong>ssa forma, os onerosos custos <strong>de</strong> frete<br />

para os portos do Su<strong>de</strong>ste do país. Caso persista o atual quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, a<br />

produção cafeeira rondoniense po<strong>de</strong> se transformar em uma periferia expandida dos<br />

interesses do Espírito Santo e do Paraná na Amazônia Meridional. As mudanças no setor<br />

cafeeiro <strong>de</strong>verão ser paulatinamente negociadas, pois são conhecidas as relações <strong>de</strong><br />

confiança existentes entre produtores e intermediários capixabas e paranaenses.<br />

32<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia


Verificamos ainda que os meeiros se constituem em um dos mais importantes agentes<br />

da cafeicultura na região central <strong>de</strong> Rondônia, pois conseguem enfrentar as sucessivas<br />

crises sofridas pelo produto, viabilizando a agricultura familiar no estado. Caso predominassem<br />

as relações <strong>de</strong> trabalho assalariado, tal prática tornar-se-ia inviável, assim como<br />

– e conseqüentemente – a produção cafeeira na região.<br />

O trabalho <strong>de</strong>monstrou também a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estímulo a formas <strong>de</strong> intercâmbio<br />

com entida<strong>de</strong>s ambientalistas e <strong>de</strong> comércio justo em âmbitos nacional e internacional,<br />

visando à obtenção <strong>de</strong> uma certificação principalmente para a produção <strong>de</strong> café que<br />

privilegie o cultivo orgânico. Nesse sentido são promissoras as articulações feitas por<br />

cooperativas do centro <strong>de</strong> Rondônia com países europeus, objetivando a exportação <strong>de</strong><br />

café cultivado sem agrotóxicos.<br />

A pesquisa igualmente <strong>de</strong>monstrou que os movimentos migratórios no estado <strong>de</strong> Rondônia<br />

não são mais realizados na rota dos fluxos regionais e sim, na direção <strong>de</strong> movimentos<br />

intra-regionais, o que explicaria os <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> populações localizadas no<br />

centro <strong>de</strong> Rondônia para outras áreas do próprio estado ou para Mato Grosso, comprovando<br />

assim a tese <strong>de</strong> que a fronteira ainda não esgotou suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abrigar<br />

novos contingentes populacionais.<br />

artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

Referências<br />

BECKER, B. K. Geopolítica<br />

da Amazônia. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Zahar, 1991.<br />

BINSZTOK, J. Cacoal:<br />

campesinato e<br />

cafeicultura na fronteira<br />

agrícola do Centro-Leste<br />

<strong>de</strong> Rondônia. In:<br />

ENCONTRO NACIONAL DE<br />

GEOGRAFIA AGRÁRIA, 16.,<br />

2002, Petrolina. Anais...<br />

Recife: UFPE, 2002. p. 7-22.<br />

COY, M. Cida<strong>de</strong>s pioneiras<br />

e <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável na Amazônia<br />

brasileira: transformação<br />

socioeconômica e <strong>de</strong>safios<br />

para o planejamento nas<br />

frentes pioneiras. Geosul,<br />

Florianópolis, ano 10,<br />

n. 19/20, p. 51-67, 1995.<br />

IBGE - Instituto Brasileiro<br />

<strong>de</strong> Geografia e Estatística.<br />

Levantamento sistemático da<br />

produção agrícola. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, 2001.<br />

INCRA – Instituto Nacional<br />

<strong>de</strong> Colonização e Reforma<br />

Agrária. Colonização em<br />

dados. Brasília, 1983.<br />

KEMPER, M. L. Cacoal: sua<br />

história, sua gente. Goiânia,<br />

GO: Grafopel, 2002.<br />

MINC, C. A reconquista<br />

da terra. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1985.<br />

OLIVEIRA, A. U. Amazônia,<br />

monopólio, expropriação e<br />

conflito. Campinas:<br />

Papirus, 1990.<br />

ROCHE, J. A colonização<br />

alemã no Espírito Santo.<br />

São Paulo: USP, 1968.<br />

RONDÔNIA. Governo do<br />

Estado. Malha municipal <strong>de</strong><br />

Rondônia. Porto Velho,<br />

2006. Mapa físico. Escala<br />

1: 80.000.<br />

SILVA FILHO, G. A.<br />

Toponímia <strong>de</strong> Rondônia.<br />

<strong>Revista</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

Geografia, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

v. 57, n. 3, p. 39-61, 1995.<br />

VALVERDE, O. Geografia<br />

agrária do Brasil. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: CBPE/INEP/MEC,<br />

1964.<br />

VELHO, O. G. Capitalismo<br />

autoritário e campesinato:<br />

um estudo comparativo<br />

da fronteira em<br />

movimento. São Paulo:<br />

Difel, 1979.<br />

Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Jacob Binsztok<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

33


Cláudia Regina dos Santos<br />

Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas – UFSC;<br />

Doutora em Ciências Humanas pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />

<strong>de</strong> Santa Catarina<br />

Norberto Olmiro Horn Filho<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia – UFSC;<br />

Doutor em Geociências pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da<br />

ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong><br />

São Francisco do Sul, SC, Brasil<br />

Resumo<br />

Neste trabalho são apresentados os aspectos<br />

geológicos, geomorfológicos, evolutivos e <strong>de</strong><br />

cobertura vegetal do pontal do Capri, localizado<br />

na ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, estado <strong>de</strong> Santa<br />

Catarina, Brasil. O pontal é formado por<br />

<strong>de</strong>pósitos holocênicos dos ambientes marinho<br />

praial, lagunar, paludial e eólico e recoberto por<br />

vegetação <strong>de</strong> restinga, manguezal e marisma.<br />

Dois tipos <strong>de</strong> ação antrópica têm sido<br />

observados no pontal: ocupação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong><br />

preservação permanente e dragagem na laguna<br />

<strong>de</strong> Capri. Um projeto <strong>de</strong> recuperação ambiental<br />

do pontal do Capri <strong>de</strong>verá incluir a paralisação<br />

da dragagem na laguna, a retirada <strong>de</strong> todas as<br />

estruturas fixas e o plantio <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> restinga<br />

e manguezal fixadoras <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósitos marinho<br />

praial, lagunar, eólico e paludial.<br />

Abstract<br />

In this paper are presented geological,<br />

geomorphological, evolutive and environmental aspects<br />

of the Capri spit, at São Francisco do Sul island,<br />

northeast of Santa Catarina State, Brazil. The spit<br />

is constituted by holocenic <strong>de</strong>posits of marine, lagoonal,<br />

marshy and aeolic environments, and covered by<br />

restinga, marisma and mangrove vegetation. Two<br />

kinds of anthropical action have been observed in the<br />

spit: occupation of the permanent preservation areas<br />

and dredging of the bottom sediments of Capri<br />

lagoon. Environmental recuperation project of the<br />

Capri spit must contemplate interruption of the lagoon<br />

dredging, retreat of anthropical structures, and<br />

planting of restinga and mangrove species fixative<br />

of sedimentary <strong>de</strong>posits of the coastal plain.<br />

claudia@prsc.mpf.gov.br<br />

horn@cfh.ufsc.br<br />

Palavras-chave pontal arenoso; Holoceno;<br />

ação antropogênica; <strong>de</strong>gradação ambiental.<br />

Keywords sandy spit; Holocene; anthropogenic<br />

action; environmental <strong>de</strong>gradation.<br />

34<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


Introdução<br />

Suguio (1992, p. 86) e Diehl (1997, p. 38) caracterizaram pontais arenosos como uma<br />

feição geomorfológica <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>posicional. Os autores utilizaram-se da <strong>de</strong>nominação<br />

“esporão” ou “flecha arenosa” para <strong>de</strong>finir essa feição <strong>de</strong> relevo, em geral arenosa,<br />

formada por uma série <strong>de</strong> cristas <strong>de</strong> cordões litorâneos conectados ao continente ou a<br />

uma ilha por uma das extremida<strong>de</strong>s. Essa <strong>de</strong>finição a<strong>de</strong>qua-se perfeitamente ao pontal<br />

do Capri, que apresenta na sua cobertura espécies vegetais adaptadas ao meio, <strong>de</strong>stacandose<br />

as <strong>de</strong> restinga, manguezal e marisma.<br />

As áreas <strong>de</strong> preservação permanente (APP) incorporando a vegetação às margens <strong>de</strong><br />

rios, entorno <strong>de</strong> lagoas, dunas e planícies <strong>de</strong> maré foram estabelecidas através do Código<br />

Florestal (Lei 4.771/65) (BRASIL, 1965), com objetivo <strong>de</strong> evitar a sua <strong>de</strong>scaracterização<br />

através da ação antrópica, já que apresentam importante função ecológica na manutenção<br />

dos diversos biomas, bem como protegem e mantêm a integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong><br />

maior fragilida<strong>de</strong>.<br />

Dentre os diversos tipos <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> preservação permanente, a restinga fixadora <strong>de</strong><br />

dunas vem sendo intensamente ocupada. Esse tipo <strong>de</strong> ocupação é viabilizado, muitas<br />

vezes, com a anuência dos órgãos ambientais, que autorizam a implantação <strong>de</strong> loteamentos,<br />

residências e hotéis.<br />

De acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica (1998, p. 45), o ecossistema da restinga<br />

foi o mais agredido entre os anos <strong>de</strong> 1990 e 1995 no estado <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />

superando até mesmo a vegetação da floresta ombrófila <strong>de</strong>nsa.<br />

No pontal do Capri, localizado no município <strong>de</strong> São Francisco do Sul, a ocupação das<br />

áreas <strong>de</strong> preservação permanente é uma prática constante, em claro conflito com os<br />

ditames da Lei 4.771/65 (BRASIL, 1965). O processo <strong>de</strong> ocupação, acelerado nos últimos<br />

anos pela indústria do turismo, tem contribuído para a <strong>de</strong>scaracterização das áreas<br />

<strong>de</strong> preservação permanente.<br />

Este trabalho tem como objetivo principal a <strong>de</strong>scrição física e biológica do pontal do<br />

Capri e das conseqüências ambientais <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> sua ocupação antrópica.<br />

O pontal do Capri localiza-se no extremo noroeste da ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul<br />

(Fig. 1), cujo acesso é realizado através da rodovia pavimentada BR 280 e <strong>de</strong> estrada<br />

vicinal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Francisco do Sul, por uma distância <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 8 km.<br />

O pontal po<strong>de</strong> também ser acessado por meio hidroviário junto à baía da Babitonga,<br />

sendo esta atravessada transversalmente pelo duto da Petróleo Brasileiro S/A (PETRO-<br />

BRÁS). Destaca-se no extremo sudoeste do pontal a presença <strong>de</strong> uma marina bem estabelecida<br />

(Capri Iate Clube). A população resi<strong>de</strong>nte está assentada ao longo do pontal e<br />

aumenta sobremaneira durante os períodos <strong>de</strong> verão.<br />

Metodologia<br />

Inicialmente foi realizado o levantamento bibliográfico da área <strong>de</strong> estudo através da<br />

leitura <strong>de</strong> informações <strong>de</strong> caráter geológico, geomorfológico, da cobertura vegetal,<br />

ocupação antrópica, legislação ambiental e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gabinete em geral.<br />

Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

35


Figura 1<br />

Localização do pontal do Capri na ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul<br />

Em seguida passou-se à fotointerpretação do pontal do Capri, utilizando-se para tanto<br />

fotografias aéreas pancromáticas, na escala 1:25.000, do ano <strong>de</strong> 1956. A partir <strong>de</strong>ssa<br />

fotointerpretação foram <strong>de</strong>finidas as principais unida<strong>de</strong>s geológicas e geomorfológicas<br />

do pontal, os contatos geológicos entre as unida<strong>de</strong>s, bem como as áreas com vegetação<br />

fixadora <strong>de</strong> restinga, manguezal e marisma e a ocupação urbana.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento da pesquisa em campo <strong>de</strong>u-se em dois momentos distintos, envolvendo<br />

primeiramente o mapeamento geológico e em seguida a realização <strong>de</strong> uma<br />

vistoria, solicitada pela Procuradoria da República em Joinville, com objetivo <strong>de</strong> constatar<br />

ocupações irregulares em área <strong>de</strong> preservação permanente e seus impactos no Balneário<br />

do Capri, assentado no pontal homônimo.<br />

A vistoria foi realizada em agosto <strong>de</strong> 2003 e teve a participação do 4º Pelotão da<br />

Polícia Militar <strong>de</strong> Proteção Ambiental <strong>de</strong> Joinville, do IBAMA, dos advogados das partes<br />

envolvidas e da Associação <strong>de</strong> Moradores da Ponta do Capri. Realizaram-se também<br />

um sobrevôo da área <strong>de</strong> estudo, com apoio da Polícia Militar <strong>de</strong> Joinville, e uma vistoria<br />

terrestre ao longo do pontal, com início nos dutos da PETROBRÁS e término no Capri<br />

Iate Clube. Foram i<strong>de</strong>ntificados e fotografados os diferentes tipos <strong>de</strong> ocupação, a cobertura<br />

vegetal e seus respectivos impactos ambientais.<br />

36<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


A situação atual da área foi comparada com as fotografias aéreas realizadas em 2000,<br />

possibilitando assim a i<strong>de</strong>ntificação dos impactos ambientais causados ao longo do tempo.<br />

A metodologia utilizada possibilitou ainda a apresentação do mapa geológico da planície<br />

costeira do pontal do Capri, complementado pela aquisição <strong>de</strong> fotografias oblíquas<br />

da área <strong>de</strong> estudo.<br />

Resultados e discussão<br />

O pontal do Capri constitui um típico esporão sedimentar formado <strong>de</strong> cordões arenosos<br />

conectados ao morro João Dias ou do Forte, localizado no extremo noroeste da ilha <strong>de</strong><br />

São Francisco do Sul.<br />

No que diz respeito à caracterização geológica, Horn Filho (1997, p. 235) constatou<br />

que o pontal do Capri é formado por <strong>de</strong>pósitos holocênicos dos ambientes marinho<br />

praial, lagunar, paludial e eólico (Foto 1 e Fig. 2).<br />

A área do pontal caracteriza-se por ser <strong>de</strong> origem holocênica (5,1kA), apresentando<br />

terrenos bastante instáveis, facilmente movimentados pela ação das águas pluviais, dos<br />

ventos e das marés. Encontra-se constituído, basicamente, por sedimentos arenosos, existindo,<br />

ainda, sedimentos areno-lamosos nas faixas marginais da face noroeste, que constituem<br />

<strong>de</strong>lgadas faixas <strong>de</strong> sedimentos finos <strong>de</strong> origem lagunar.<br />

Observa-se ainda que a parte interna do pontal, on<strong>de</strong> a ação energética das ondas é<br />

bastante reduzida, constitui-se num ambiente favorável para a <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> sedimentos<br />

finos, bem como para a formação <strong>de</strong> pequenas lagunas, <strong>de</strong>vido ao arqueamento da<br />

porção terminal. Tal padrão favoreceu o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> extensos <strong>de</strong>pósitos paludiais,<br />

on<strong>de</strong> estão fixadas as espécies típicas dos marismas e manguezais.<br />

Foto 1 Vista para sudoeste do pontal do Capri (agosto <strong>de</strong> 2003)<br />

Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

37


Figura 2<br />

Mapa geológico-geomorfológico da<br />

planície costeira do pontal do Capri<br />

Geomorfologicamente, o pontal é constituído por uma série <strong>de</strong> cordões litorâneos,<br />

intercalados com terrenos elevados e <strong>de</strong>pressivos que representam sucessivas cristas e<br />

cavas, respectivamente. Ao longo do pontal ocorre a presença <strong>de</strong> lagunas situadas entre<br />

cordões arenosos, além da extensa área <strong>de</strong> terraços lagunares e planícies <strong>de</strong> maré, típicos<br />

<strong>de</strong> marisma e manguezal.<br />

Segundo Horn Filho (1997, p. 238), a evolução do pontal do Capri está vinculada a<br />

cinco fatores principais:<br />

38<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


Foto 2<br />

Vista para nor<strong>de</strong>ste do pontal do Capri, evi<strong>de</strong>nciando a vegetação <strong>de</strong><br />

restinga e a <strong>de</strong> manguezal voltadas, respectivamente, para a baía da<br />

Babitonga e o canal lagunar (agosto <strong>de</strong> 2003)<br />

1. o expressivo suprimento <strong>de</strong> sedimentos arenosos finos;<br />

2. o sentido constante <strong>de</strong> transporte litorâneo, no caso, <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>ste para su<strong>de</strong>ste;<br />

3. a influência da topografia, especificamente do ponto <strong>de</strong> amarração rochoso que<br />

coinci<strong>de</strong> com o extremo noroeste do morro João Dias;<br />

4. a presença <strong>de</strong> águas <strong>de</strong> pequena profundida<strong>de</strong>, comprovada pelo fundo raso e<br />

protegido <strong>de</strong>sse local;<br />

5. a incidência oblíqua das ondas à costa, <strong>de</strong> direção nor<strong>de</strong>ste, transportando os sedimentos<br />

e posteriormente redistribuindo-os para oeste pela ação da <strong>de</strong>riva litorânea.<br />

O pontal apresenta sua extremida<strong>de</strong> sob forma arqueada, o que se explica pela sobreposição<br />

<strong>de</strong> trens <strong>de</strong> ondas provindas <strong>de</strong> diferentes direções ou, então, pela refração<br />

<strong>de</strong>stas em torno do pontal. A praia <strong>de</strong> Capri localizada no setor externo do pontal,<br />

voltada para a baía da Babitonga, a norte, e para o saco <strong>de</strong> Iriri, a sul, exibe dominantemente<br />

sedimentos praiais, litoclásticos e bioclásticos, <strong>de</strong> granulometria arenosa fina a grossa.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista ecossistêmico, o pontal do Capri encontra-se constituído por duas<br />

importantes formações vegetais: restinga e manguezal. Essas formações, que apresentam<br />

gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> específica, além <strong>de</strong> funções ecológicas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> significado<br />

para a proteção das áreas litorâneas, constituem importantes elementos da paisagem da<br />

zona costeira (Foto 2).<br />

Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

39


A vegetação <strong>de</strong> restinga localiza-se no setor voltado para a baía da Babitonga e é<br />

formada por espécies <strong>de</strong> porte herbáceo e arbustivo, típicas <strong>de</strong> restinga fixadora <strong>de</strong><br />

dunas caracterizadas por sedimentos arenosos (CONAMA, 1999). Compreen<strong>de</strong> formações<br />

originalmente herbáceas, subarbustivas, arbustivas ou arbóreas, que po<strong>de</strong>m ocorrer<br />

em mosaicos, e também áreas ainda naturalmente <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> vegetação; tais formações<br />

po<strong>de</strong>m ter se mantido primárias ou passado a secundárias, como resultado <strong>de</strong><br />

processos naturais ou <strong>de</strong> intervenções humanas. Em função da fragilida<strong>de</strong> dos ecossistemas<br />

<strong>de</strong> restinga, sua vegetação exerce papel fundamental para a estabilização dos sedimentos<br />

e a manutenção da drenagem natural, bem como para a preservação da fauna<br />

resi<strong>de</strong>nte e migratória associada à restinga e que encontra nesse ambiente disponibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> alimentos e locais seguros para nidificar e proteger-se dos predadores.<br />

A vegetação <strong>de</strong> manguezal localiza-se na face interna do pontal e caracteriza-se pela<br />

presença das espécies Laguncularia racemosa (mangue branco) e Spartina ciliata (gramínea),<br />

características dos sedimentos paludiais.<br />

Constituem os manguezais parte típica da vegetação litorânea intertropical, situados<br />

em planícies planas, inundáveis na preamar e emersas na baixa-mar, acompanhando as<br />

margens das baías ou as <strong>de</strong>sembocaduras dos rios. Nos manguezais, encontra-se pouca<br />

varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> árvores, mas expressivo número <strong>de</strong> indivíduos por espécie. São<br />

formados por vegetação halófita (adaptada à salinida<strong>de</strong>) muito típica <strong>de</strong> arbustos e pequenas<br />

árvores encontradas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Amapá, ao norte, até Santa Catarina, ao sul do<br />

Brasil (LACERDA, 1984, p. 64).<br />

O bom funcionamento do ecossistema <strong>de</strong> manguezal <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns fatores <strong>de</strong><br />

importância vital, entre os quais se incluem a estabilida<strong>de</strong> do solo e um suprimento<br />

a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> água doce e <strong>de</strong> nutrientes (PANITZ; PORTO FILHO, 1995, p. 544).<br />

Devido à sua localização fronteiriça entre os ambientes marinho, terrestre e dulcícola e<br />

à estrutura arquitetônica <strong>de</strong> suas árvores, os manguezais funcionam como verda<strong>de</strong>iros<br />

quebra-mares contra as intempéries oceânicas, protegendo tanto a região costeira quanto<br />

a bacia <strong>de</strong> drenagem adjacente contra a erosão. Da mesma forma, ao longo dos rios, os<br />

manguezais fornecem proteção contra enchentes às áreas ribeirinhas, diminuindo a força<br />

da inundação e preservando os campos agrícolas adjacentes (LACERDA, 1984, p. 64).<br />

A vegetação <strong>de</strong> restinga e manguezal está protegida pela Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> 1988,<br />

cujo art. 225 <strong>de</strong>termina que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,<br />

bem <strong>de</strong> uso comum do povo e essencial à sadia qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, impondo-se<br />

ao Po<strong>de</strong>r Público e à coletivida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> <strong>de</strong>fendê-lo e preservá-lo para as presentes<br />

e futuras gerações” (BRASIL, 1988a). Essa proteção é complementarmente assegurada<br />

pela Lei 4.771/65 (BRASIL, 1965), que <strong>de</strong>fine a vegetação <strong>de</strong> restinga fixadora <strong>de</strong> dunas<br />

e <strong>de</strong> manguezal como <strong>de</strong> preservação permanente; pela Lei 6.938/81, que institui a<br />

Política Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1981); e pela Lei 7.661/88, instituidora do<br />

Plano Nacional <strong>de</strong> Gerenciamento Costeiro – PNGC (BRASIL, 1988b), que se preocupou<br />

com a preservação dos recursos naturais e dos principais atributos do litoral brasileiro.<br />

O CONAMA também inseriu instrumentos para proteção legal da restinga, através da<br />

Resolução 261/99 (CONAMA, 1999), e do manguezal, através da Resolução 303/02<br />

40<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


Foto 3<br />

Detalhe da ocupação antrópica da<br />

margem oeste do pontal do Capri (agosto 2003)<br />

(CONAMA, 2002). A legislação estadual, através do Decreto 14.250/81, que regulamentou<br />

a Lei 5.793 (SANTA CATARINA, 1980), também estabeleceu vedações em relação<br />

ao corte <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> vegetação natural em restingas.<br />

O pontal do Capri vem sendo <strong>de</strong>scaracterizado por dois tipos <strong>de</strong> ação antrópica:<br />

ocupação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> preservação permanente e <strong>de</strong> terras <strong>de</strong> marinha e <strong>de</strong> uso comum<br />

e realização <strong>de</strong> dragagem na laguna <strong>de</strong> Capri (Foto 3).<br />

Quanto à ocupação antrópica, constatou-se intensa urbanização sobre os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong><br />

origem praial e eólica, com presença <strong>de</strong> diversas residências pertencentes ao loteamento<br />

Balneário Capri. Junto à laguna, no setor oci<strong>de</strong>ntal do pontal, foram observados trapiches,<br />

rampas para atracação <strong>de</strong> meios flutuantes (Foto 4), jardins, cercas, muros <strong>de</strong> contenção,<br />

aterros e plantio <strong>de</strong> espécies exóticas.<br />

Próximo ao duto da PETROBRÁS, isolado no pontal, as áreas receberam tratamento<br />

paisagístico, e a vegetação <strong>de</strong> manguezal existente no local ainda está preservada.<br />

No entanto, em direção a sudoeste, constata-se que o <strong>de</strong>pósito paludial foi <strong>de</strong>scaracterizado<br />

para implantação <strong>de</strong> estruturas, com objetivo <strong>de</strong> facilitar o atracamento das embarcações.<br />

Foi causada a supressão <strong>de</strong> vegetação da área <strong>de</strong> preservação permanente (manguezal),<br />

seguida <strong>de</strong> aterro e construção <strong>de</strong> muros <strong>de</strong> arrimo. A presença <strong>de</strong>ssas estruturas<br />

impe<strong>de</strong> a regeneração <strong>de</strong>ssa vegetação e intensifica os impactos ambientais no local.<br />

Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

41


Foto 4 Vista do atracadouro <strong>de</strong> meios flutuantes no interior da<br />

laguna <strong>de</strong> Capri (agosto 2003)<br />

A laguna <strong>de</strong> Capri vem sendo freqüentemente dragada com o objetivo <strong>de</strong> manter a<br />

profundida<strong>de</strong> do canal para uso como fun<strong>de</strong>adouro e acesso náutico. Entre 2000 e<br />

2003, foi aberto um pequeno canal no setor central do pontal, contíguo à baía da Babitonga<br />

(Foto 5). Devido às correntes <strong>de</strong> maré existentes na laguna, esse canal foi erodido,<br />

ocorrendo a conseqüente remoção do sedimento praial e eólico e a modificação da<br />

dinâmica costeira imposta pelos agentes naturais (ondas, correntes e marés).<br />

Os sedimentos provenientes da dragagem estão sendo <strong>de</strong>positados sobre áreas <strong>de</strong><br />

preservação permanente localizadas na barra da praia, entre a laguna <strong>de</strong> Capri e a baía da<br />

Babitonga, soterrando a vegetação <strong>de</strong> restinga e manguezal.<br />

Devido ao processo <strong>de</strong> erosão instalado no local e à ocupação das margens da laguna,<br />

as proprieda<strong>de</strong>s privadas po<strong>de</strong>rão sofrer com tal processo, correndo o risco do seu<br />

comprometimento.<br />

A preocupação com a integrida<strong>de</strong> e o equilíbrio ambiental das regiões costeiras <strong>de</strong>corre<br />

do fato <strong>de</strong> serem elas as mais ameaçadas do planeta. Essas regiões são alvo privilegiado<br />

da exploração <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada e predatória <strong>de</strong> recursos naturais e constituem o principal<br />

local <strong>de</strong> lazer, turismo ou moradia <strong>de</strong> massas populacionais urbanas.<br />

A população do planeta é totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos seus ecossistemas e dos serviços<br />

que eles oferecem, incluindo alimentos, água, gestão <strong>de</strong> doenças, regulação climática,<br />

satisfação espiritual e apreciação estética (MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2005).<br />

Os sistemas naturais <strong>de</strong>sempenham funções vitais e fornecem bens e serviços ao ser<br />

humano, possibilitando a continuida<strong>de</strong> e manutenção <strong>de</strong> outras espécies (CONSTANZA et<br />

al., 1997, p. 255).<br />

42<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


Foto 5<br />

Vista para sudoeste do canal aberto com intuito<br />

<strong>de</strong> facilitar o acesso e a navegação canal-baía da Babitonga,<br />

erodido pela ação antrópica (agosto <strong>de</strong> 2003)<br />

Cerca <strong>de</strong> 60% dos serviços dos ecossistemas examinados durante a Avaliação Ecossistêmica<br />

do Milênio têm sido <strong>de</strong>gradados ou utilizados <strong>de</strong> forma não sustentável, incluindo<br />

água pura, pesca <strong>de</strong> captura, purificação do ar e da água, regulação climática local e<br />

regional, ameaças naturais e epi<strong>de</strong>mias. Muitos <strong>de</strong>sses serviços <strong>de</strong>terioraram-se em conseqüência<br />

<strong>de</strong> ações voltadas para intensificar o fornecimento <strong>de</strong> outros serviços, como<br />

alimentos. Em geral, essas mediações transferem os custos da <strong>de</strong>gradação <strong>de</strong> um grupo<br />

<strong>de</strong> pessoas para outro ou repassam-nos para gerações futuras (MILLENNIUM ECOSYS-<br />

TEM ASSESSMENT, 2005).<br />

A expansão urbana, a extração <strong>de</strong> sedimentos arenosos dos <strong>de</strong>pósitos costeiros, a<br />

realização <strong>de</strong> dragagens, a disposição do lixo, o lançamento <strong>de</strong> esgotos domésticos sem<br />

tratamento e o crescimento explosivo, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado e sem planejamento ambiental do<br />

turismo têm sido apontados como os principais agentes da <strong>de</strong>scaracterização física e<br />

biológica dos ecossistemas costeiros.<br />

Conclusões<br />

A zona costeira, interface entre os ecossistemas terrestre e marinho, é responsável por<br />

ampla gama <strong>de</strong> funções ecológicas. A preservação dos ambientes <strong>de</strong>ssa zona é fundamental<br />

para a manutenção da integrida<strong>de</strong> da morfologia da costa.<br />

A situação dos ecossistemas <strong>de</strong> restinga e manguezal no estado <strong>de</strong> Santa Catarina é<br />

precária. Os referidos ecossistemas, que se distinguem como áreas <strong>de</strong> preservação per-<br />

Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

43


manente e cujo uso é expressamente proibido pela legislação vigente, vêm sofrendo uma<br />

crescente <strong>de</strong>scaracterização em função da ocupação <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada.<br />

Para reverter esse processo, os municípios costeiros <strong>de</strong>vem elaborar, <strong>de</strong>ntro do seu<br />

plano diretor, um plano <strong>de</strong> uso da região litorânea que contemple a preservação <strong>de</strong>ssas<br />

áreas. Caso contrário estar-se-á correndo o risco <strong>de</strong> comprometer a própria economia<br />

dos municípios, especialmente daqueles que sobrevivem do turismo.<br />

Alguns municípios catarinenses, como Piçarras, Barra Velha e Balneário Camboriú,<br />

além do comprometimento da paisagem cênica, já apresentam sérios problemas <strong>de</strong> erosão<br />

costeira nas áreas mais urbanizadas (SANTOS, 2005, p. 319). No município <strong>de</strong> São<br />

Francisco do Sul e especialmente no pontal do Capri, esse processo ainda po<strong>de</strong> ser<br />

revertido, mediante a realização <strong>de</strong> um planejamento ambiental da área, objetivando a<br />

recuperação da área afetada.<br />

No Balneário <strong>de</strong> Capri, os impactos ambientais atuais são, em parte, resultantes do<br />

processo <strong>de</strong> ocupação recente. As áreas <strong>de</strong> restinga ora assentadas nos cordões litorâneos<br />

e parte da vegetação <strong>de</strong> manguezal localizada próximo à laguna foram os ambientes<br />

mais afetados (Tab. 1). Essa ocupação, somada às constantes dragagens da área, po<strong>de</strong>rá<br />

comprometer a evolução do pontal.<br />

As dragagens realizadas no local não passaram por um estudo técnico preliminar. O<br />

manguezal está sendo assoreado por sedimentos arenosos, favorecendo assim o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da vegetação <strong>de</strong> restinga. Esse padrão <strong>de</strong> sucessão está ocorrendo no setor<br />

voltado para a baía da Babitonga, on<strong>de</strong> parte do cordão dunário foi erodida.<br />

Tabela 1 Impactos ambientais <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m física e biológica observados no pontal do Capri<br />

Depósito/vegetação<br />

Impacto ambiental<br />

Recuperação ambiental<br />

Depósito marinho praial<br />

recoberto por vegetação <strong>de</strong><br />

restinga<br />

Depósito eólico recoberto<br />

por vegetação <strong>de</strong> restinga<br />

Depósito lagunar recoberto<br />

por vegetação <strong>de</strong> restinga e<br />

marisma<br />

Depósito paludial recoberto<br />

por vegetação <strong>de</strong> marisma e<br />

manguezal<br />

Descaracterização geológica,<br />

geomorfológica e biológica, <strong>de</strong>vido<br />

à ocupação irregular<br />

Extração <strong>de</strong> sedimentos arenosos e<br />

vegetação, <strong>de</strong>vido à dragagem do<br />

canal da laguna <strong>de</strong> Capri<br />

Assoreamento da planície lagunar,<br />

<strong>de</strong>vido à acumulação <strong>de</strong> sedimentos<br />

<strong>de</strong> origem tecnogênica<br />

Descaracterização geológica e<br />

biológica da planície <strong>de</strong> maré,<br />

<strong>de</strong>vido à <strong>de</strong>posição arenosa advinda<br />

dos sedimentos eólicos e marinhos<br />

Reor<strong>de</strong>nação do espaço e<br />

controle quanto à ocupação<br />

urbana<br />

Paralisação imediata da<br />

dragagem dos sedimentos da<br />

laguna e praia <strong>de</strong> Capri<br />

Controle da <strong>de</strong>posição <strong>de</strong><br />

aterros mecânicos sobre os<br />

sedimentos lagunares<br />

Paralisação imediata da<br />

exploração <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada dos<br />

sedimentos praiais e eólicos<br />

Como as vegetações <strong>de</strong> manguezal e <strong>de</strong> restinga não se regeneram em face da presença<br />

das ocupações, os referidos ecossistemas não conseguem se manter como valioso patrimônio<br />

genético nem cumprir sua função <strong>de</strong> servir como verda<strong>de</strong>iros quebra-mares contra<br />

as intempéries oceânicas, protegendo tanto a região costeira quanto a bacia <strong>de</strong> drenagem<br />

adjacente contra a erosão.<br />

44<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


Outro fato a ser consi<strong>de</strong>rado é que na laguna <strong>de</strong> Capri aportam barcos <strong>de</strong> pescadores<br />

e velejadores <strong>de</strong> outras localida<strong>de</strong>s, que utilizam a área como atracadouro e proteção das<br />

tempesta<strong>de</strong>s. Com a retirada dos trapiches particulares, <strong>de</strong>ve ser planejado um local que<br />

cumpra essa função.<br />

Ao persistir o processo erosivo no setor central do pontal, po<strong>de</strong>rá a laguna <strong>de</strong> Capri<br />

sofrer sérias alterações na sua morfologia, granulometria e comportamento hidrodinâmico,<br />

po<strong>de</strong>ndo ela até se <strong>de</strong>sconfigurar do ponto <strong>de</strong> vista geomorfológico.<br />

Para recuperação ambiental do pontal do Capri, faz-se necessária a implementação <strong>de</strong><br />

um projeto que <strong>de</strong>termine, entre outras medidas, a paralisação da dragagem na laguna, a<br />

retirada <strong>de</strong> todas as estruturas fixas e o plantio <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> restinga e manguezal<br />

fixadoras <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósitos marinho praial, lagunar, eólico e paludial.<br />

Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Os autores agra<strong>de</strong>cem à Procuradoria da República em Joinville (SC) a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

realização do trabalho no pontal do Capri; à Polícia Militar o sobrevôo na região; ao<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia e ao Departamento <strong>de</strong> Geociências da<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina o apoio recebido; à Secretaria <strong>de</strong> Planejamento<br />

do Governo do Estado <strong>de</strong> Santa Catarina o empréstimo das fotografias aéreas; e a Jasiel<br />

Neves, mestrando em Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina, a arte final<br />

das ilustrações.<br />

artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

Referências<br />

BRASIL. Constituição<br />

(1988). Constituição da<br />

República Fe<strong>de</strong>rativa do<br />

Brasil, 1988. Brasília:<br />

Senado <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, Centro<br />

Gráfico, 1988a.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 10 set. 2003.<br />

BRASIL. Lei n. 4.771, <strong>de</strong> 15<br />

<strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1965.<br />

Institui o Código Florestal.<br />

Brasília, 1965. Disponível<br />

em: . Acesso<br />

em: 10 set. 2003.<br />

BRASIL. Lei n. 6.938, <strong>de</strong> 31<br />

<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1981.<br />

Dispõe sobre a Política<br />

Nacional do Meio<br />

Ambiente, seus fins e<br />

mecanismos <strong>de</strong><br />

formulação e aplicação e<br />

dá outras providências.<br />

Brasília, 1981. Disponível<br />

em: .<br />

Acesso em: 12 set. 2003.<br />

BRASIL. Lei n. 7.661, <strong>de</strong> 16<br />

<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1988. Institui<br />

o Plano Nacional <strong>de</strong><br />

Gerenciamento Costeiro<br />

e dá outras providências.<br />

Brasília, 1988b. Disponível<br />

em: . Acesso<br />

em: 10 set. 2003.<br />

Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

45


CONAMA – CONSELHO<br />

NACIONAL DO MEIO<br />

AMBIENTE. Resolução n.<br />

261, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />

1999. Estabelece os<br />

parâmetros básicos para<br />

análise dos estágios<br />

sucessionais <strong>de</strong> vegetação<br />

<strong>de</strong> restinga para o Estado<br />

<strong>de</strong> Santa Catarina. Brasília,<br />

1999. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 10 set. 2003.<br />

CONAMA –CONSELHO<br />

NACIONAL DO MEIO<br />

AMBIENTE. Resolução n.<br />

303, <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

2002. Dispõe sobre os<br />

parâmetros, <strong>de</strong>finições e<br />

limites <strong>de</strong> área <strong>de</strong><br />

preservação permanente.<br />

Brasília, 2002. Disponível<br />

em: .<br />

Acesso em: 10 set. 2003.<br />

CONSTANZA, R. et al. The<br />

value of the world’s<br />

ecosystem seviches and<br />

natural capital. Nature,<br />

England, n. 387, p. 253-<br />

260, 1997.<br />

DIEHL, F. L. Aspectos<br />

geoevolutivos, morfodinâmicos e<br />

ambientais do pontal da<br />

Daniela, ilha <strong>de</strong> Santa<br />

Catarina, SC. 1997. 132 p.<br />

Dissertação (Mestrado em<br />

Utilização e Conservação<br />

dos Recursos Naturais) –<br />

Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Geografia,<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong><br />

Santa Catarina,<br />

Florianópolis, 1997.<br />

FUNDAÇÃO SOS MATA<br />

ATLÂNTICA. Atlas da<br />

evolução dos remanescentes<br />

florestais e ecossistemas<br />

associados no domínio da<br />

Mata Atlântica no período <strong>de</strong><br />

1990-1995. São Paulo:<br />

MMA, 1998. 54 p.<br />

HORN FILHO, N. O. O<br />

quaternário costeiro da ilha <strong>de</strong><br />

São Francisco e arredores,<br />

nor<strong>de</strong>ste do Estado <strong>de</strong> Santa<br />

Catarina: aspectos<br />

geológicos, evolutivos e<br />

ambientais. 1997. 282 p.<br />

Tese (Doutorado em<br />

Geociências) – Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-graduação em<br />

Geociências, <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul, Porto Alegre, 1997.<br />

LACERDA, L. D.<br />

Manguezais: florestas <strong>de</strong><br />

beira mar. Ciência Hoje,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 3, n. 13,<br />

p. 64-70, 1984.<br />

MILLENNIUM ECOSYSTEM<br />

ASSESSMENT. Relatóriosíntese<br />

da avaliação<br />

ecossistêmica do milênio:<br />

minuta final. United<br />

States of America, 2005.<br />

Disponível em: . Acesso em:<br />

10 jun. 2005.<br />

PANITZ, C. M. N.; PORTO<br />

FILHO, E. O manguezal<br />

do rio Caveras, Biguaçú,<br />

SC: um estudo <strong>de</strong> caso.<br />

IV. Principais tensores e<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

recuperação do<br />

ecossistema. Oecologia<br />

Brasiliense, São Paulo, n. 1,<br />

p. 543-556, 1995.<br />

SANTA CATARINA. Lei n.<br />

5.793, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> outubro<br />

<strong>de</strong> 1980. Dispõe sobre<br />

proteção e melhoria <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong> ambiental e dá<br />

outras providências.<br />

Florianópolis, 1980.<br />

Disponível em:. .<br />

Acesso em: 10 set. 2003.<br />

SANTOS, C. R. Proposta dos<br />

critérios <strong>de</strong> planejamento da<br />

gestão integrada da orla<br />

marítima dos municípios do<br />

setor Centro-Norte do Estado<br />

<strong>de</strong> Santa Catarina, Brasil.<br />

2005. 330 p. Monografia<br />

(Especialização em<br />

Gestão Integrada <strong>de</strong> Áreas<br />

Litorâneas) – MPF/JF/<br />

UCA, Espanha, 2005.<br />

SUGUIO, K. Dicionário <strong>de</strong><br />

geologia marinha. São<br />

Paulo: T. A. Queiroz,<br />

1992. 171 p.<br />

46<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil


Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento<br />

das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais:<br />

o caso <strong>de</strong> mananciais <strong>de</strong> abastecimento público <strong>de</strong> Caeté/MG<br />

André Augusto Rodrigues Salgado<br />

Doutorando em Geologia – DEGEO/UFOP<br />

Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Professor Adjunto do Departamento <strong>de</strong><br />

Geografia – <strong>IGC</strong>/UFMG<br />

Resumo<br />

O presente trabalho investiga a relação entre a<br />

silvicultura <strong>de</strong> eucalipto, a intensificação <strong>de</strong><br />

processos erosivos superficiais e o aumento nas<br />

taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais em duas<br />

bacias hidrográficas no município <strong>de</strong> Caeté/MG<br />

que são ocupadas basicamente por esse tipo <strong>de</strong><br />

ativida<strong>de</strong> florestal. Para tanto, o estudo compara<br />

a qualida<strong>de</strong> das águas superficiais <strong>de</strong>ssas bacias,<br />

notadamente no que se refere às taxas <strong>de</strong><br />

turbi<strong>de</strong>z, com períodos distintos da ativida<strong>de</strong><br />

florestal – plantio, crescimento e corte da floresta<br />

– ao longo <strong>de</strong> um período <strong>de</strong> cinco anos. Os<br />

resultados obtidos indicam que, na área investigada,<br />

durante o período <strong>de</strong> corte das árvores e<br />

o período imediatamente posterior a esse corte,<br />

as taxas médias <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas monitoradas<br />

ten<strong>de</strong>m a aumentar significativamente.<br />

Tal fato <strong>de</strong>monstra que essa ativida<strong>de</strong>, da<br />

maneira como vem sendo <strong>de</strong>senvolvida na área<br />

investigada, tem contribuído para o assoreamento<br />

dos cursos fluviais locais.<br />

Abstract<br />

This paper investigates the relationship between the<br />

eucalyptus forestry and superficial erosive processes in<br />

two rivers basins in Caeté/MG. The basic methodology<br />

is the comparison between the quality of the superficial<br />

waters of these basins, especially in regard to the rates<br />

of clay transport in the rivers waters, with different<br />

periods of the forestry activity – planting, growth<br />

and cut of the forest – along a period of five years.<br />

The obtained results indicate that, in the investigated<br />

area, during the period of cut of the trees and the<br />

period immediately subsequent to this cut, the medium<br />

rates of the clay transport in the monitored waters<br />

tend to increase significantly. Such fact <strong>de</strong>monstrates<br />

that this activity, in the way it has been <strong>de</strong>veloped in<br />

the investigated area, has been contributing to the<br />

growth of sediments of the local fluvial courses.<br />

Palavras-chave eucalipto; erosão; turbi<strong>de</strong>z<br />

fluvial; Caeté.<br />

Keywords eucalyptus; erosion; fluvial<br />

turbidity; Caeté.<br />

geosalgado@yahoo.com.br<br />

magalhaesufmg@yahoo.com.br<br />

Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

47


Introdução<br />

Nas últimas décadas as águas ou os recursos hídricos têm atraído a atenção <strong>de</strong> políticos,<br />

especialistas e da socieda<strong>de</strong> civil em nível global, <strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>sequilíbrio na relação entre<br />

oferta e <strong>de</strong>mandas para o atendimento aos diversos usos. A noção <strong>de</strong> escassez tornou-se<br />

globalizada, mesmo em países com abundância hídrica. A disponibilida<strong>de</strong> quantitativa<br />

não significa disponibilida<strong>de</strong> qualitativa <strong>de</strong> água (escassez relativa). Alguns pesquisadores<br />

consi<strong>de</strong>ram os recursos hídricos como os recursos estratégicos do século XXI (PÔSSA,<br />

1994), já que a água é um recurso vital, insubstituível e necessário para as ativida<strong>de</strong>s<br />

econômicas e, por conseqüência, para a sustentação dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e<br />

modos <strong>de</strong> produção.<br />

No entanto, a socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna tem elevado <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scontrolada suas <strong>de</strong>mandas<br />

hídricas, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>grada rápida e intensamente a qualida<strong>de</strong> das<br />

águas superficiais e subterrâneas. Como conseqüência, não são raros os locais, regiões e<br />

países em que as necessida<strong>de</strong>s humanas superam a oferta e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renovação<br />

dos estoques hídricos (LAMBERT, 1996). A noção da água como um bem renovável e<br />

infinito tem sido, nesse contexto, substituída pela noção da água como um bem finito<br />

em quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong>, ainda que os volumes <strong>de</strong> água do ciclo hidrológico não<br />

sejam alterados em nível global.<br />

Mesmo consi<strong>de</strong>rando as diferenças no tratamento da questão hídrica em níveis político,<br />

econômico e social no planeta, bem como as diferenças <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> hídrica, as<br />

águas constituem-se em uma preocupação global, até em áreas caracterizadas por condições<br />

climáticas tropicais úmidas, como <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Mesmo sob clima tropical úmido,<br />

séculos <strong>de</strong> apropriação in<strong>de</strong>vida dos recursos hídricos refletiram-se em <strong>de</strong>gradação e<br />

rarefação <strong>de</strong> água para o atendimento das <strong>de</strong>mandas crescentes. Na atual realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

busca <strong>de</strong> soluções preventivas para os problemas <strong>de</strong> poluição hídrica e utilização racional<br />

da água torna-se importante o planejamento do uso e da ocupação do solo, bem<br />

como o estudo dos impactos das ativida<strong>de</strong>s humanas sobre o meio.<br />

Entre as ativida<strong>de</strong>s potencialmente <strong>de</strong>gradadoras dos recursos hídricos está a silvicultura<br />

<strong>de</strong> eucalipto. O Brasil é um dos países com maiores extensões <strong>de</strong> eucalipto plantado.<br />

O eucalipto possui a peculiarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> provocar calorosos <strong>de</strong>bates e discussões a respeito<br />

<strong>de</strong> seus impactos sobre a biodiversida<strong>de</strong> e a disponibilida<strong>de</strong> hídrica (consumo <strong>de</strong> água<br />

durante o processo <strong>de</strong> crescimento). Porém, os questionamentos sobre os seus impactos<br />

na qualida<strong>de</strong> das águas são menos freqüentes, e suas relações com taxas <strong>de</strong> erosão acelerada,<br />

subestimadas.<br />

Este trabalho objetivou analisar as relações entre a silvicultura do eucalipto e seus impactos<br />

na alteração dos processos erosivos superficiais e nos níveis <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas<br />

<strong>de</strong> trechos fluviais, adotando o estudo <strong>de</strong> caso <strong>de</strong> dois mananciais para abastecimento<br />

público <strong>de</strong> água da se<strong>de</strong> do município <strong>de</strong> Caeté, Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Foram enfocadas as áreas <strong>de</strong> contribuição hídrica <strong>de</strong>sses mananciais,<br />

correspon<strong>de</strong>ndo às microbacias dos altos cursos do ribeirão Bonito e do córrego Santo<br />

Antônio. O parâmetro adotado para a verificação <strong>de</strong>ssas relações, a turbi<strong>de</strong>z das águas,<br />

tem relação direta com o processo <strong>de</strong> erosão superficial nas encostas e o conseqüente<br />

48<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais


assoreamento dos cursos d’água. Foi analisado o período entre 1995 e 1999. Os estudos locais<br />

iniciaram-se em 1998, por meio <strong>de</strong> convênios entre o Serviço Autônomo <strong>de</strong> Água e Esgoto<br />

(SAAE) <strong>de</strong> Caeté e o Instituto <strong>de</strong> Geociências (<strong>IGC</strong>) da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />

(UFMG). As pesquisas po<strong>de</strong>m fornecer subsídios para ações dos órgãos públicos do<br />

município no que se refere à proteção dos recursos hídricos superficiais locais, visto<br />

terem estes se tornado escassos em quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> nas últimas décadas.<br />

Caracterização ambiental do município <strong>de</strong> Caeté/MG<br />

Caeté é um dos municípios que compõem a Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte/<br />

MG (Fig. 1). Localiza-se no extremo leste <strong>de</strong>ssa região, a 56 km da capital, a esta ligandose<br />

por rodovia pavimentada. Situa-se na borda norte do Quadrilátero Ferrífero,<br />

apresentando as três principais séries litológicas do domínio: (i) embasamento granítico<br />

gnáissico; (ii) série Rio das Velhas (predomínio <strong>de</strong> xistos); e (iii) série <strong>Minas</strong> (predomínio<br />

<strong>de</strong> quartzitos, itabiritos e filitos). Seu relevo é extremamente movimentado, constituindo<br />

basicamente uma <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong> relevo ondulado com altitu<strong>de</strong>s médias <strong>de</strong> 900 metros,<br />

cercada por duas serras alongadas no sentido leste/oeste: (i) Serra do Gandarela, ao sul,<br />

localmente <strong>de</strong>nominada Serra do Gongo Soco, com cristas alcançando mais <strong>de</strong> 1.500<br />

metros; e (ii) Serra da Pieda<strong>de</strong>, ao norte, on<strong>de</strong> se localiza o ponto culminante do município<br />

– Pico da Serra da Pieda<strong>de</strong>, com 1.746 metros <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>. As zonas mais elevadas do<br />

município estão moldadas sobre as rochas da série <strong>Minas</strong>, enquanto o embasamento<br />

cristalino aflora nas áreas rebaixadas, notadamente na porção central do município, on<strong>de</strong><br />

se localiza sua se<strong>de</strong>.<br />

O clima local po<strong>de</strong> ser caracterizado como tropical semi-úmido afetado pela altitu<strong>de</strong>,<br />

com verões úmidos e invernos secos. As temperaturas médias anuais ficam em torno <strong>de</strong><br />

20°C nas partes menos elevadas do município, sendo que, nessas mesmas áreas, as médias<br />

mensais nunca são inferiores a 12°C. A pluviosida<strong>de</strong> média anual é <strong>de</strong> 1.287 mm (SAAE,<br />

1997), e a insolação é <strong>de</strong> 2.400 horas anuais junto à Serra da Pieda<strong>de</strong>, limite norte do<br />

município (BUENO, 1992).<br />

Caeté/MG está completamente inserida na alta bacia do Rio das Velhas. De modo<br />

geral, seus cursos fluviais possuem suas cabeceiras nas serras do Gandarela ou da Pieda<strong>de</strong><br />

e escoam em direção ao interior da <strong>de</strong>pressão localizada na porção central do município.<br />

Dentre esses cursos fluviais dois se <strong>de</strong>stacam: o ribeirão Vermelho, a leste, e o rio<br />

Caeté, a oeste. O primeiro nasce na Serra do Gandarela e tem por afluente principal o<br />

ribeirão Bonito. Segue na direção noroeste, contornando a Serra da Pieda<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>ságua<br />

no Rio das Velhas, em área externa ao Quadrilátero Ferrífero. Já o rio Caeté, que também<br />

nasce na Serra do Gandarela, segue na direção oeste. Esse curso fluvial, ao <strong>de</strong>ixar o<br />

município <strong>de</strong> Caeté, é rebatizado com o nome <strong>de</strong> rio Sabará e constitui-se como o<br />

principal afluente do Rio das Velhas no interior do Quadrilátero Ferrífero.<br />

A vegetação local original varia <strong>de</strong> acordo com a altitu<strong>de</strong>, sendo possível <strong>de</strong>limitar na<br />

área investigada três compartimentos fitogeográficos: (i) ambiente florestal nas áreas<br />

<strong>de</strong>primidas; (ii) ambiente <strong>de</strong> transição <strong>de</strong> médias altitu<strong>de</strong>s, caracterizado por florestas <strong>de</strong><br />

can<strong>de</strong>ias; e (iii) campo rupestre do topo da serra, especialmente junto às crostas lateríticas<br />

Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

49


Figura 1<br />

Mapa <strong>de</strong> localização <strong>de</strong> Caeté/MG<br />

que constituem o substrato da Serra da Pieda<strong>de</strong> (BRAGA; GRANDI, 1992). A fauna é<br />

composta por animais típicos da mata tropical úmida e do cerrado, como tatus, pacas,<br />

tamanduás e, embora raros, até queixadas, lobos-guarás, suçuaranas e onças-pintadas.<br />

Entretanto, a ativida<strong>de</strong> antrópica alterou e removeu <strong>de</strong> forma significativa a vegetação<br />

original. Caeté constitui um dos municípios mais antigos <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> – foi <strong>de</strong>clarada<br />

vila em 1714 – e é uma das cida<strong>de</strong>s do ciclo histórico do ouro. Essa ocupação antiga fez<br />

com que, principalmente na área <strong>de</strong>primida do município, a vegetação florestal fosse<br />

<strong>de</strong>smatada para a ocupação do núcleo urbano e para as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mineração e agropecuária.<br />

Mais recentemente, a partir dos anos 70, a silvicultura <strong>de</strong> eucalipto proliferou<br />

no município.<br />

Caracterização das bacias hidrográficas investigadas<br />

A presente pesquisa investigou trechos <strong>de</strong> duas bacias hidrográficas que, juntas, são<br />

responsáveis, segundo o SAAE (1997), por cerca <strong>de</strong> 75% do sistema público <strong>de</strong><br />

abastecimento <strong>de</strong> água <strong>de</strong> Caeté (Fig. 2): (i) alta bacia do ribeirão Ribeiro Bonito; e (ii)<br />

alta bacia do córrego Santo Antônio. Essas duas bacias têm a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas águas<br />

monitorada pelo SAAE e possuem a silvicultura <strong>de</strong> eucalipto como um dos principais<br />

tipos <strong>de</strong> uso e ocupação do solo (Fig. 3 e 4). Tal fato permite relacionar a dinâmica da<br />

ativida<strong>de</strong> florestal com as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas monitoradas.<br />

50<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais


Figura 2<br />

Mapa <strong>de</strong> localização das bacias hidrográficas estudadas em Caeté/MG<br />

Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

51


Figura 3<br />

Uso e ocupação do solo da bacia do alto ribeirão Bonito<br />

52<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais


Figura 4<br />

Uso e ocupação do solo da bacia do alto córrego Santo Antônio<br />

A alta bacia do ribeirão Bonito possui uma área <strong>de</strong> 51,57 km 2 e apresenta-se como o<br />

principal manancial do município em volume <strong>de</strong> água. Entretanto, constitui-se também<br />

no manancial com pior qualida<strong>de</strong> da água (SAAE, 1997; SALGADO; VALADÃO, 2002).<br />

Localiza-se a su<strong>de</strong>ste da se<strong>de</strong> municipal, possuindo suas nascentes junto à Serra do Gongo<br />

Soco e fluindo para o interior da área <strong>de</strong>primida. É afluente do ribeirão Vermelho<br />

que, por sua vez, <strong>de</strong>ságua no Rio das Velhas. A sua vegetação original foi quase que<br />

completamente substituída (ALVES, 2001). A bacia é marcada por florestas <strong>de</strong> eucalipto,<br />

pastagens, um pequeno núcleo urbano com 280 moradores (povoado <strong>de</strong> Rancho Novo)<br />

e áreas <strong>de</strong>dicadas à horticultura (Fig. 3).<br />

Já a alta bacia do córrego Santo Antônio possui apenas 5,31 km 2 , localizando-se inteiramente<br />

nas escarpas da Serra da Pieda<strong>de</strong> (SALGADO et al., 2004). Possui os cursos<br />

fluviais com a melhor qualida<strong>de</strong> das águas <strong>de</strong>ntre as bacias estudadas (SAAE, 1997; SAL-<br />

GADO; VALADÃO, 2003). Sua área está ocupada, na porção mais a montante, por vegetação<br />

nativa – campos rupestres, matas <strong>de</strong> can<strong>de</strong>ias e formações florestais heterogêneas<br />

– e, no baixo curso, por eucaliptais (Fig. 4).<br />

No que concerne à silvicultura <strong>de</strong> eucalipto vale ressaltar que, nas duas bacias investigadas,<br />

as florestas homogêneas a ela <strong>de</strong>dicadas se esten<strong>de</strong>m até a beira dos cursos fluviais.<br />

Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

53


Tal fato se <strong>de</strong>ve à sua antigüida<strong>de</strong>, sendo elas anteriores às leis ambientais mais rigorosas<br />

que hoje em dia protegem a mata ciliar. Entretanto, o método <strong>de</strong> corte prevê a permanência<br />

dos eucaliptais nas áreas <strong>de</strong> mata ciliar, ou seja, atualmente, no período <strong>de</strong> corte<br />

da ma<strong>de</strong>ira, embora as vertentes tenham sua cobertura vegetal completamente retirada,<br />

as áreas <strong>de</strong> mata ciliar são preservadas, mesmo que não sejam compostas por espécies<br />

nativas e sim, por eucaliptais.<br />

Procedimentos metodológicos<br />

Os procedimentos metodológicos da presente pesquisa basearam-se na análise integrada<br />

<strong>de</strong>: (i) taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z da água dos principais canais fluviais que drenam as bacias<br />

investigadas; (ii) índices pluviométricos do período estudado; e (iii) períodos <strong>de</strong> produção<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira dos eucaliptais – plantio, crescimento e corte das árvores.<br />

As taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z foram obtidas junto ao SAAE, que possui em seus registros um<br />

histórico, com medições <strong>de</strong> hora em hora, <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> dados para cada um<br />

dos sistemas fluviais monitorados. As duas bacias foram analisadas em conjunto, visto<br />

que os dados <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z foram coletados na Estação <strong>de</strong> Tratamento <strong>de</strong> Água (ETA)<br />

Vila das Flores, que não distingue a origem das águas captadas. Essa ETA respon<strong>de</strong> por<br />

75% da produção <strong>de</strong> água tratada do município e é nela que o SAAE monitora a qualida<strong>de</strong><br />

da água bruta captada no município. Para a síntese dos dados, as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z<br />

foram apresentadas sob forma <strong>de</strong> médias mensais, as quais foram relacionadas às médias<br />

mensais <strong>de</strong> pluviosida<strong>de</strong> da Estação Meteorológica do Aeroporto da Pampulha, em Belo<br />

Horizonte, estação mais próxima da área investigada. O SAAE também forneceu informações<br />

sobre os períodos <strong>de</strong> produção dos eucaliptais presentes nas áreas estudadas.<br />

O período escolhido para a pesquisa foi janeiro <strong>de</strong> 1995 a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1999, período<br />

este em que as áreas estudadas sofreram, à exceção do corte do eucalipto, pequena<br />

interferência antrópica. Anteriormente a 1995, a bacia do ribeirão Ribeiro Bonito foi<br />

palco <strong>de</strong> obras junto à re<strong>de</strong> ferroviária que a atravessa, em seu extremo sul; e, após 1999,<br />

as bacias da Serra da Pieda<strong>de</strong> – Dantas e Enjeitado – sofreram interferência antrópica<br />

significativa em função da construção <strong>de</strong> uma nova estrada <strong>de</strong> acesso ao Santuário <strong>de</strong><br />

Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong>.<br />

Resultados<br />

Os resultados obtidos indicam uma clara relação entre a dinâmica <strong>de</strong> produção dos<br />

eucaliptais e a taxa <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas investigadas. Nas áreas em questão o período<br />

<strong>de</strong> corte da ma<strong>de</strong>ira ocorreu entre março <strong>de</strong> 1994 e outubro <strong>de</strong> 1995, período que<br />

correspon<strong>de</strong> quase inteiramente aos meses <strong>de</strong> estiagem. A quase ausência <strong>de</strong> focos <strong>de</strong><br />

erosão em sulcos na área estudada confirma o fato <strong>de</strong> a turbi<strong>de</strong>z das águas resultar <strong>de</strong><br />

erosão laminar acelerada, cuja ocorrência difusa e, muitas vezes, pouco visível não <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser potencialmente grave em termos <strong>de</strong> perdas <strong>de</strong> solo, <strong>de</strong>sequilíbrio da dinâmica<br />

hidrológica e assoreamento <strong>de</strong> canais fluviais.<br />

Entre 1995 e 1997, as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z apresentaram-se altas, principalmente durante<br />

os meses mais chuvosos (Fig. 5). Esse fato <strong>de</strong>monstra que, durante o período subseqüente<br />

54<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais


ao corte da ma<strong>de</strong>ira, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sedimentos a alcançar os cursos fluviais permaneceu<br />

elevada. Essas taxas, que se reduziram após janeiro <strong>de</strong> 1997, permaneceram baixas<br />

no verão <strong>de</strong> 1998 e 1999, mesmo diante da alta pluviosida<strong>de</strong> dos meses mais chuvosos<br />

(Fig. 5). Logo, analisando as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas investigadas, é possível, temporalmente,<br />

verificar dois comportamentos <strong>de</strong>nudatórios diferentes nas bacias estudadas<br />

(Fig. 5): (i) elevada erosão laminar entre janeiro <strong>de</strong> 1995 e julho <strong>de</strong> 1997; (ii) baixas taxas<br />

<strong>de</strong> erosão após julho <strong>de</strong> 1997.<br />

Os dados apresentados permitem ilustrar a forte relação entre a intensida<strong>de</strong> da pluviosida<strong>de</strong><br />

e a erosão laminar nas áreas estudadas. Focos <strong>de</strong> erosão acelerada em sulcos são<br />

raramente observados. Durante os meses úmidos do ano, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sedimentos<br />

carreados para os cursos fluviais é significativa, aumentando-lhes claramente a turbi<strong>de</strong>z<br />

(Fig. 5). Quando retirada a cobertura florestal, os solos ficam expostos aos processos<br />

erosivos, inclusive em florestas comerciais <strong>de</strong> espécies como o eucalipto. No entanto,<br />

como essa espécie é <strong>de</strong> rápido crescimento, a erosão acelerada continua tendo um papel<br />

importante na remoção <strong>de</strong> sedimentos durante cerca <strong>de</strong> dois anos após o corte da ma<strong>de</strong>ira.<br />

O período subseqüente é caracterizado por baixas taxas <strong>de</strong> erosão laminar. Porém,<br />

como os eucaliptais são cortados em períodos <strong>de</strong> seis ou sete anos, po<strong>de</strong>-se afirmar que<br />

as áreas ocupadas com silvicultura <strong>de</strong> eucalipto em Caeté possuem um ciclo <strong>de</strong> dois anos<br />

<strong>de</strong> intensa erosão laminar, seguidos por ciclos <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> quatro anos <strong>de</strong> taxas equilibradas<br />

<strong>de</strong> erosão.<br />

Naqueles dois anos <strong>de</strong> erosão intensa, os cursos d’água po<strong>de</strong>m sofrer impactos na<br />

dinâmica hidrológica <strong>de</strong>rivados do aumento da carga sedimentar que po<strong>de</strong>m tornar-se<br />

irreversíveis a partir <strong>de</strong> um certo tempo. A erosão laminar remove principalmente sedi-<br />

Figura 5<br />

Gráfico <strong>de</strong> relação entre turbi<strong>de</strong>z e pluviosida<strong>de</strong><br />

para janeiro <strong>de</strong> 1995 a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1999<br />

Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

55


mentos finos (textura areia, silte e argila), os quais são transportados fundamentalmente<br />

em suspensão. Entretanto, o aumento <strong>de</strong> sólidos em suspensão aumenta também a turbulência<br />

das águas e a ruptura do equilíbrio das células hídricas convectivas que fazem<br />

parte da dinâmica própria dos canais. Por outro lado, parte da carga sedimentar em<br />

suspensão passa, sob condições <strong>de</strong> baixa energia, a ser <strong>de</strong>positada e a contribuir para a<br />

formação e o crescimento <strong>de</strong> barras <strong>de</strong> canal que marcarão o processo <strong>de</strong> assoreamento.<br />

Na realida<strong>de</strong> brasileira atual, diversos cursos d’água vêm sofrendo processos <strong>de</strong> assoreamento<br />

que têm levado a mudanças nos padrões fluviais. Canais tipicamente meandrantes<br />

passam, com a intensida<strong>de</strong> dos impactos, a apresentar padrão e comportamento<br />

hidrológicos que ten<strong>de</strong>m ao entrelaçado, inclusive na região estudada (MAGALHÃES JÚ-<br />

NIOR, 1994).<br />

artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Os resultados comprovaram que o eucalipto, na forma em que é cultivado e explorado<br />

em Caeté, contribui diretamente para a aceleração <strong>de</strong> processos erosivos nas encostas<br />

(erosão laminar) e para a <strong>de</strong>gradação da qualida<strong>de</strong> da água naquele município.<br />

As florestas homogêneas <strong>de</strong> eucalipto, apesar <strong>de</strong> sua importância econômica, precisam<br />

ser monitoradas a fim <strong>de</strong> se controlar a perda <strong>de</strong> solos por erosão acelerada. Muitas<br />

vezes vistas como eficientes coberturas vegetais, fato <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> sua homogeneida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cobertura, as florestas <strong>de</strong> eucalipto nem sempre apresentam a<strong>de</strong>quada proteção<br />

do solo, pois as taxas <strong>de</strong> erosão variam durante os ciclos <strong>de</strong> plantio e crescimento.<br />

A manutenção apenas da mata ciliar no período <strong>de</strong> corte da ma<strong>de</strong>ira mostra-se ineficiente<br />

para o controle dos processos erosivos na área investigada.<br />

A remoção da cobertura vegetal e da cobertura morta (liteira) tem efeitos diretos na<br />

erosão laminar e mesmo no surgimento <strong>de</strong> sulcos erosivos que po<strong>de</strong>m levar ao aumento<br />

da turbi<strong>de</strong>z e ao assoreamento <strong>de</strong> cursos d’água. Deve-se pon<strong>de</strong>rar, entretanto, que fora<br />

do período <strong>de</strong> corte do eucalipto no município, a silvicultura tem sido a ativida<strong>de</strong> econômica<br />

menos impactante sobre os cursos d’água locais, consi<strong>de</strong>rando-se os processos<br />

<strong>de</strong> poluição e assoreamento (SALGADO; VALADÃO, 2002, 2003; SALGADO; VALADÃO;<br />

NEEF, 2003). Tal fato indica que essa ativida<strong>de</strong> econômica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que feita com técnicas<br />

a<strong>de</strong>quadas como, por exemplo, a preservação parcial da floresta no período <strong>de</strong> corte,<br />

constitui, em termos <strong>de</strong> erosão <strong>de</strong> solos nas condições investigadas, uma alternativa econômica<br />

para o município.<br />

Como ficou claro nos objetivos do trabalho, não se preten<strong>de</strong>u abordar outros possíveis<br />

impactos ambientais <strong>de</strong>rivados da silvicultura do eucalipto, mas os estudos realizados<br />

po<strong>de</strong>m contribuir para a integração <strong>de</strong> informações no sentido <strong>de</strong> alertar o po<strong>de</strong>r<br />

público e a socieda<strong>de</strong> civil sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão e pon<strong>de</strong>ração no fomento e<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas, cujos impactos ambientais não po<strong>de</strong>m ser<br />

analisados isoladamente. Questões relativas aos eucaliptais, como a redução da biodiversida<strong>de</strong><br />

e o <strong>de</strong>sequilíbrio na dinâmica hidrológica <strong>de</strong> encostas, têm sido significativamente<br />

discutidas no meio acadêmico/científico, mas estudos sobre seus impactos no <strong>de</strong>sequilíbrio<br />

das taxas <strong>de</strong> erosão ainda são raros.<br />

56<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Ao SAAE <strong>de</strong> Caeté, em especial aos seus diretores Bernardo Mourão Vorcaro e Benedito<br />

Eufrásio <strong>de</strong> Castro e à técnica-química Raimunda Cecília dos Reis.<br />

À Profa. Dra. Magda Luzimar <strong>de</strong> Abreu e ao Aeroporto da Pampulha pelos dados<br />

pluviométricos.<br />

Ao mestrando Alexandre Abreu pela confecção dos mapas.<br />

Referências<br />

ALVES, E. E. Análise dos<br />

impactos ambientais gerados<br />

pelo uso e ocupação do solo na<br />

qualida<strong>de</strong> dos recursos hídricos<br />

das bacias dos ribeirões Juca<br />

Vieira e Ribeiro Bonito.<br />

2001. 54 p. Monografia<br />

(Graduação em<br />

Geografia) – Instituto <strong>de</strong><br />

Geociências,<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Belo<br />

Horizonte, 2001.<br />

BRAGA, P. I. S.; GRANDI, T.<br />

S. M. Botânica da Serra da<br />

Pieda<strong>de</strong>. In: CEMIG –<br />

Companhia Energética<br />

<strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Serra da<br />

Pieda<strong>de</strong>. Belo Horizonte:<br />

CEMIG, 1992. p. 98-111.<br />

BUENO, M. E. T. Geografia<br />

da Serra da Pieda<strong>de</strong>. In:<br />

CEMIG – Companhia<br />

Energética <strong>de</strong> <strong>Minas</strong><br />

<strong>Gerais</strong>. Serra da Pieda<strong>de</strong>.<br />

Belo Horizonte: CEMIG,<br />

1992. p. 56-75.<br />

LAMBERT, R. Geographie du<br />

cycle <strong>de</strong> l’eau. Paris: Presses<br />

Universitaires du Mirail,<br />

1996. 435 p.<br />

MAGALHÃES JÚNIOR, A. P.<br />

Impactos ambientais em<br />

sistemas fluviais: a<br />

mudança no padrão <strong>de</strong><br />

sedimentação do Rio das<br />

Velhas na Região <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte – MG. Ca<strong>de</strong>rno<br />

<strong>de</strong> Filosofia e Ciências<br />

Humanas, Belo Horizonte,<br />

n. 3, p. 39-47, 1994.<br />

PÔSSA, J. A água já é o<br />

recurso estratégico n° 1.<br />

<strong>Revista</strong> do Legislativo, Belo<br />

Horizonte, n. 7, p. 5-11, 1994.<br />

SAAE – Serviço Autônomo<br />

<strong>de</strong> Água e Esgoto <strong>de</strong><br />

Caeté. Relatório técnico<br />

anual. Caeté: SAAE, 1997.<br />

65 p.<br />

SALGADO, A. A. R.;<br />

VALADÃO, R. C. Diagnóstico<br />

ambiental, zoneamento<br />

ecológico-econômico e plano <strong>de</strong><br />

manejo ambiental da APA do<br />

ribeirão Ribeiro Bonito:<br />

relatório técnico. Belo<br />

Horizonte: <strong>IGC</strong>/UFMG,<br />

2002. 67 p.<br />

SALGADO, A. A. R;<br />

VALADÃO, R. C. Diagnóstico<br />

ambiental, zoneamento<br />

ecológico-econômico e plano <strong>de</strong><br />

manejo ambiental da APA<br />

Águas Serra da Pieda<strong>de</strong>:<br />

relatório técnico. Belo<br />

Horizonte: <strong>IGC</strong>/UFMG,<br />

2003. 38 p.<br />

SALGADO, A. A. R;<br />

VALADÃO, R. C; NEEF, H.<br />

Zoneamento ambiental<br />

e plano <strong>de</strong> manejo da<br />

bacia do ribeirão<br />

Ribeiro Bonito, Caeté/<br />

MG. <strong>Revista</strong> Geo UERJ, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, 2003. Edição<br />

especial.<br />

SALGADO, A. A. R. et al.<br />

Relação entre uso e<br />

ocupação do solo e<br />

qualida<strong>de</strong> das águas<br />

superficiais <strong>de</strong> bacias<br />

hidrográficas na Serra<br />

da Pieda<strong>de</strong>/MG. <strong>Revista</strong> 7<br />

Faces, Itabira, n. 5, 2004.<br />

No prelo.<br />

Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

57


Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geógrafa e Doutoranda em Geografia pela UFF-Niterói<br />

Brejo dos Crioulos: saberes<br />

tradicionais e afirmação do território 1<br />

1<br />

Este artigo originou-se do Relatório <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>limitação da comunida<strong>de</strong><br />

remanescente <strong>de</strong> quilombos <strong>de</strong> Brejo dos<br />

Crioulos, produzido através <strong>de</strong> convênio<br />

entre a Fundação Cultural Palmares/MinC<br />

e o PNUD, em 2004.<br />

Resumo<br />

Este artigo tem como objetivo apresentar a<br />

comunida<strong>de</strong> negra e camponesa <strong>de</strong> Brejo dos<br />

Crioulos em seu ambiente e saberes. Situada na<br />

“Mata da Jaíba”, no sertão Norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong><br />

<strong>Gerais</strong>, espaço ritmado pelas cheias e vazantes,<br />

esta comunida<strong>de</strong> construiu saberes diversos a<br />

partir dos usos que fazia do meio. Passou a<br />

vivenciar um processo <strong>de</strong> expropriação trazido<br />

pela “Divisão <strong>de</strong> 1930” e continuado na década<br />

<strong>de</strong> 1940, com a chegada <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> gado<br />

e projetos governamentais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

No momento atual, Brejo dos Crioulos é<br />

reconhecida como “comunida<strong>de</strong> remanescente<br />

<strong>de</strong> quilombos” e adquire o direito ao território.<br />

Produzir a visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus saberes constitui<br />

mais um elemento na afirmação <strong>de</strong>ste direito.<br />

Abstract<br />

This article has as objective to present the black<br />

peasant’s community of the Brejo dos Crioulos in your<br />

environment and wisdoms. Situated in “Mata da Jaíba”,<br />

in hinterland north of <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, space in the<br />

rhythm for the floods and low damps grounds, this<br />

community constructed diverse wisdoms <strong>de</strong>rived from<br />

the uses that ma<strong>de</strong> of the environment. It started to<br />

live <strong>de</strong>eply a expropriates’ process brought for “Divisão<br />

<strong>de</strong> 1930” and continued in <strong>de</strong>ca<strong>de</strong> of 1940, with the<br />

arrival of cattle farmers and <strong>de</strong>velopment governmental<br />

projects. At the current moment, Brejo dos Crioulos is<br />

recognized as “community remaining of quilombos”<br />

and acquires the right of conquer again the territory.<br />

To produce the visibility of its wisdoms constitute<br />

plus an element in affirmation of this right.<br />

sibatista@hotmail.com<br />

Palavras-chave campesinato negro; saberes<br />

tradicionais; quilombo; território.<br />

Keywords black peasant; traditional wisdom;<br />

“quilombo”; territory.<br />

58<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


Entre histórias e causos<br />

Causo é causo; a história não é causo certo, ouviu dizer.<br />

(Seu Canuto, 78 anos, morador do núcleo <strong>de</strong> Furado Mo<strong>de</strong>sto)<br />

Brejo dos Crioulos é uma comunida<strong>de</strong> negra camponesa do sertão norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>,<br />

situada às margens do Arapuim, afluente do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, que por sua vez se encontra<br />

à margem direita do Médio São Francisco. Atualmente, a comunida<strong>de</strong> é reconhecida<br />

como “remanescente <strong>de</strong> quilombos” e, como tal, adquire o direito <strong>de</strong> reapropriação <strong>de</strong><br />

seu território. 2 Resgatar seus “causos” e saberes tradicionais, elaborados na relação direta<br />

com a natureza, torna-se fundamental para a afirmação <strong>de</strong>sse território.<br />

Segundo João Batista da Costa (1999), as matas do vale do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> abrigavam<br />

um campo negro, ou seja, um conjunto <strong>de</strong> agrupamentos negros “aquilombados”<br />

nas margens <strong>de</strong> lagoas e rios <strong>de</strong>sse vale e que ali se instalaram por meio <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />

reprodução social alternativas ao sistema escravocrata. Nesse sentido, esse espaço apropriado<br />

para a reprodução da existência material, simbólica e afetiva <strong>de</strong>sses grupos configurava<br />

um território.<br />

Regionalmente, essas matas eram <strong>de</strong>nominadas “Mata da Jaíba” e apresentavam condições<br />

propícias ao aquilombamento <strong>de</strong>ssa população negra – a “invisibilida<strong>de</strong>” permanente<br />

<strong>de</strong> um lugar marginal aos interesses econômicos da Coroa e as condições ambientais<br />

favoráveis à incidência da malária, das quais se teve notícia em fins do século XVII,<br />

com o início da <strong>de</strong>marcação territorial da Coroa Portuguesa e das repressões a essa<br />

população, juntamente com a escravização <strong>de</strong> indígenas. Essa memória <strong>de</strong> “terra dos<br />

tapuia” está presente nos relatos <strong>de</strong> alguns moradores mais antigos <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos,<br />

sendo reforçada pelas peças <strong>de</strong> barro ali encontradas.<br />

Conta-se que muitos dos que chegaram em Brejo dos Crioulos vieram da região <strong>de</strong><br />

Gorutuba, mais ao norte, à margem direita do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, fugindo dos períodos<br />

<strong>de</strong> seca e fome. Nas suas origens, a sustentação da vida girava ao redor das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

subsistência das roças, guiadas pelos períodos das águas e do rebaixamento <strong>de</strong>las –<br />

arroz, milho, feijão, cana, mandioca e algodão –, da criação extensiva <strong>de</strong> animais, da<br />

pesca nas lagoas e ribeirão, da caça nas matas, além da produção <strong>de</strong> rapadura, cachaça,<br />

farinha <strong>de</strong> milho e <strong>de</strong> mandioca e tecidos. O médio vale do Arapuim apresentava-lhes<br />

condições para ali se estabelecerem: a garantia <strong>de</strong> água do rio e lagoas, as matas, a ausência<br />

<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> privada da terra e o isolamento garantido pela malária ou “sezão”,<br />

que “o negro sentia, mas <strong>de</strong>la não morria” (Francisco Cor<strong>de</strong>iro Barbosa, 38 anos, morador<br />

do núcleo <strong>de</strong> Araruba).<br />

As famílias estabeleciam-se no entorno do vale do Arapuim, on<strong>de</strong> as terras eram mais<br />

férteis. A conformação do território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos obe<strong>de</strong>ceu a essa lógica da<br />

fertilida<strong>de</strong> da terra e produtivida<strong>de</strong>. Conta-se que a produtivida<strong>de</strong> ao redor do vale era<br />

tanta, que sobrava gran<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>nte para ser comercializado.<br />

A terra era “solta”, ou seja, não era proprieda<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> ninguém. Seu Joaquim<br />

Pereira Lima, <strong>de</strong> 70 anos, conta que, “<strong>de</strong> primeiro, tinha que respeitar a frente e o fundo da<br />

2<br />

No artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais<br />

Transitórias (ADCT), a Constituição<br />

Brasileira <strong>de</strong> 1988 reconheceu aos “remanescentes<br />

das comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> quilombos” a<br />

“proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva” das terras que estejam<br />

ocupando. Até 2003, cabia à Fundação<br />

Cultural Palmares a tarefa <strong>de</strong> reconhecimento,<br />

i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong>ssas terras<br />

por meio <strong>de</strong> estudos técnicos. O Decreto 4.887,<br />

<strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2003, <strong>de</strong>terminou que<br />

a caracterização dos “remanescentes <strong>de</strong><br />

quilombos” fosse atestada mediante a<br />

auto<strong>de</strong>finição da própria comunida<strong>de</strong> e transferiu<br />

a tarefa <strong>de</strong> reconhecimento, i<strong>de</strong>ntificação,<br />

<strong>de</strong>limitação, <strong>de</strong>marcação e titulação das<br />

terras ao Instituto Nacional <strong>de</strong> Colonização e<br />

Reforma Agrária (INCRA).<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

59


terra [o ribeirão e a cabeceira]; não tinha esse negócio <strong>de</strong> comprar terra: era apossamento”.<br />

Segundo Alfredo Wagner B. Almeida (1987, p. 44), esse tipo <strong>de</strong> apropriação da terra configura<br />

a posse comum, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>lineiam domínios<br />

que não pertencem individualmente a nenhum grupo familiar e que são vitais para a sobrevivência<br />

do conjunto <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s familiares, tais como: cocais, babaçuais, fontes d’água, igarapés, pastagens<br />

naturais e reservas <strong>de</strong> mata, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os camponeses retiram palha, talos, lenha para combustível,<br />

ma<strong>de</strong>iras para construções, murtas e outras espécies vegetais utilizadas em cerimônias religiosas<br />

ou <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s medicinais reconhecidas.<br />

A partir da década <strong>de</strong> 1930, uma nova lógica <strong>de</strong> valorização da terra passou a ser imposta,<br />

sob aval e incentivo do Estado. A “Divisão <strong>de</strong> 1930” constitui um marco temporal<br />

entre os tempos da “terra solta” e os tempos da terra-mercadoria. Instituindo a mudança<br />

na forma <strong>de</strong> valorização da terra – <strong>de</strong> terra comunal, <strong>de</strong> reprodução da vida, para proprieda<strong>de</strong><br />

privada, <strong>de</strong>marcada pelas cercas particulares –, a Divisão concretizou o início do<br />

processo <strong>de</strong> expropriações que o território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos passou a sofrer.<br />

Segundo alguns moradores mais antigos, em Brejo dos Crioulos era tudo “terra <strong>de</strong><br />

ausência” e “não tinha esse negócio <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iro nem cerca”: “Era em comum, todo<br />

mundo vivia tranqüilo”. Depois, vieram os “agrimensores” <strong>de</strong> fora, que viram todas as<br />

terras sem dono e sem documento e disseram para os moradores que eles tinham <strong>de</strong><br />

comprá-las, ter um documento <strong>de</strong>las, porque senão po<strong>de</strong>riam perdê-las: “para quem<br />

não acompanhasse a Divisão, viria o tempo <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>spejado da localida<strong>de</strong>”. Assim,<br />

aqueles que eram os “donos” da terra através da apropriação e do uso passaram a ter <strong>de</strong><br />

pagar por ela aos que chegavam com o olhar <strong>de</strong> mercado.<br />

Nesse momento, iniciava-se a divisão da terra <strong>de</strong> uso comum em proprieda<strong>de</strong>s particulares:<br />

no município <strong>de</strong> Varzelândia, o agrimensor era Augusto <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, e toda a<br />

terra da comunida<strong>de</strong> ao norte do Arapuim foi <strong>de</strong>nominada Fazenda Arapuá; no município<br />

<strong>de</strong> São João da Ponte, o agrimensor era Juca Miro, e as terras ao sul do Arapuim<br />

foram <strong>de</strong>nominadas Fazenda Morro Preto. Os agrimensores punham os marcos na terra<br />

– como o Marco do Cedro, que passou a ser referência da <strong>de</strong>marcação da cabeceira das<br />

terras no município <strong>de</strong> Varzelândia, e o Marco do Vaquetão, na cabeceira das terras no<br />

município <strong>de</strong> São João da Ponte – e, no Cartório <strong>de</strong> Brasília <strong>de</strong> <strong>Minas</strong>, faziam o documento.<br />

Os moradores <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos que tinham algum recurso “acompanharam<br />

a Divisão” das terras em troca do pagamento em boi, arroz etc. A partir daí, transformaram-se<br />

em novos proprietários particulares das terras <strong>de</strong>marcadas, que chegavam<br />

a 40 alqueires (cada um medindo 80 hectares). Os que não possuíam recursos ficavam<br />

nas então “terras <strong>de</strong> ausência”, aquelas que não tinham dono.<br />

A partir da década <strong>de</strong> 1940, essa região passou a ser inserida no processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização<br />

e <strong>de</strong>senvolvimento ditado pelo Estado, através da construção da estrada <strong>de</strong><br />

ferro no vale do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, ligando o Centro-Sul ao Nor<strong>de</strong>ste, pelo sertão norte<br />

<strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> e interior da Bahia. A mata aí existente começou a ser <strong>de</strong>rrubada para<br />

fornecimento <strong>de</strong> dormentes dos trilhos, lenha para o funcionamento das marias-fumaças<br />

e comércio <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei para Montes Claros e Belo Horizonte.<br />

60<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


Em 1956, a exploração ma<strong>de</strong>ireira para a construção da ferrovia chegou em Brejo dos<br />

Crioulos (COSTA, 1999), que ainda apresentava gran<strong>de</strong>s extensões <strong>de</strong> matas nas encostas<br />

do vale do Arapuim. Com isso, quebrava-se o isolamento da comunida<strong>de</strong>, abrindo-se<br />

caminho, com picadas e estradas, para os futuros “chegantes”, os fazen<strong>de</strong>iros.<br />

Na mesma época, o Estado iniciou outra ação na região, através da SUCAM, para o<br />

extermínio do mosquito transmissor da malária e do barbeiro, causador da doença <strong>de</strong><br />

Chagas. Moradores locais relatam que na época em que as águas passavam a diminuir, com<br />

o cessar das chuvas, a maleita chegava, trazendo febre, falta <strong>de</strong> apetite, fraqueza e muitas<br />

mortes – “branco não agüentava”. A maleita só acabou <strong>de</strong>pois que a SUCAM ali chegou.<br />

Desinfectada e com acesso aberto através das estradas oriundas da exploração ma<strong>de</strong>ireira,<br />

toda a região do vale do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> passou, então, a significar possibilida<strong>de</strong>s<br />

concretas <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> capital. A ação sanitária da SUCAM para extermínio da<br />

malária foi seguida, na década <strong>de</strong> 1960, pelas ações da então criada Superintendência <strong>de</strong><br />

Desenvolvimento do Nor<strong>de</strong>ste (SUDENE). A política <strong>de</strong> incentivos fiscais do governo<br />

fe<strong>de</strong>ral militar passou a liberar recursos para projetos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização da estrutura<br />

produtiva, como irrigação, industrialização <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s regionais e outros investimentos<br />

em antigos latifúndios, agora transformados em mo<strong>de</strong>rnas empresas rurais nascidas com<br />

o Estatuto da Terra (1964).<br />

Com a visibilida<strong>de</strong> adquirida pela região, as terras da comunida<strong>de</strong> passaram a ser cobiçadas<br />

por fazen<strong>de</strong>iros. A abertura da região à valorização mercantilista da terra trouxe<br />

profundas alterações ao território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos. Iniciava-se assim a segunda<br />

expropriação do antigo território comunal, através da venda <strong>de</strong> terras às classes abastadas<br />

<strong>de</strong> Montes Claros, que ali passaram a esten<strong>de</strong>r seus latifúndios <strong>de</strong> gado.<br />

Mesmo os moradores que haviam “acompanhado a Divisão”, ou seja, que haviam<br />

adquirido suas terras, passaram a sofrer ameaças <strong>de</strong> grileiros e jagunços. Muitos abandonaram<br />

suas terras após anos <strong>de</strong> perseguição. Outros sumiram silenciosamente, assassinados<br />

na calada da noite, nas trilhas e caminhos. Outros, ainda, foram forçados ou seduzidos<br />

a ven<strong>de</strong>r suas terras. Alguns relatos revelam a violência <strong>de</strong>sse processo:<br />

Caetana – [...] aí mamãe foi no curral, tirou o leite, chegou, pôs a panela <strong>de</strong> abóbora no fogo, os<br />

pedaço, pra ela dá a nóis, era tudo pequeno, pra dá a nóis o leite com a abóbora. Aí eles chegou com<br />

os cavalo na beira da cerca, tinha uma cerca <strong>de</strong> lasca assim, ó. Aí eles chegou no cavalo, perguntando<br />

por papai, e mamãe falou que papai num tava lá. Nóis saiu caçando as roupa <strong>de</strong> papai, nóis<br />

escon<strong>de</strong>u a roupa <strong>de</strong> papai. Aí foi obrigado mamãe, eles chegou tudo armado, na frente da casa,<br />

aí foi obrigado mamãe apanhar a panela <strong>de</strong> leite, a panela <strong>de</strong> abóbora e o leite, e sair correndo, pra<br />

num falar on<strong>de</strong> papai tava. Aí, chegou lá, mamãe falou: vai, os menino, pôr água pr’os porco.<br />

Quando nóis chegou cá, era tudo assim pequeno, assim, quando nóis chegou cá, num tinha uma<br />

teia em cima da casa, eles já tinha tirado as teia da casa tudo; o milho colhido, que mamãe tinha<br />

colhido e que era pra nóis comer, eles já tinha comido tudo; cozinhô ovo <strong>de</strong> galinha e comeu; lá,<br />

o que mamãe <strong>de</strong>ixô lá, que era rapadura, essas coisa, já tinha comido tudo!<br />

– E foi <strong>de</strong>pois disso que vocês saíram da terra?<br />

Dona Elizarda – Foi três anos, três anos!<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

61


Caetana – Depois disso, ainda, bataiou muito ainda! Depois que eles <strong>de</strong>smantelou essa casa,<br />

mamãe tornou a fazer outra casa, mudou <strong>de</strong> lugar e fez outra casa! Desse pedaço daqui pra cá, eles<br />

tomou, a casa aqui, eles passou a cerca aqui, a casa que eles <strong>de</strong>smantelou, ficou daqui. Mamãe veio,<br />

na beira da cerca que eles fez, mamãe tornou a fazer outra casa na beira da divisa.<br />

– Eles foram empurrando a cerca...<br />

Caetana – Foi empurrando, foi empurrando...<br />

(Dona Elizarda Pinheiro <strong>de</strong> Abreu, 83 anos, e sua filha Caetana, moradoras do núcleo <strong>de</strong> Araruba; 02/05/04)<br />

As alterações referentes à apropriação privada do território comum também po<strong>de</strong>m<br />

ser verificadas na <strong>de</strong>gradação do meio natural. Assim, a divisão das terras e a sua transformação<br />

em mercadoria combinaram-se à <strong>de</strong>rrubada das florestas, às barragens e aos<br />

projetos <strong>de</strong> irrigação, que também passaram a inviabilizar a reprodução da comunida<strong>de</strong><br />

tradicional. Sob a ótica do capital, o uso do meio tem a intenção da acumulação <strong>de</strong><br />

riquezas, e assim as largas extensões <strong>de</strong> pastagens, mais do que o rebanho, concretizam o<br />

monopólio da terra nas mãos <strong>de</strong> poucos e a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reprodução da vida<br />

para muitos.<br />

Atualmente, a reprodução material e social <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos gira em torno da<br />

escassa produção alimentar <strong>de</strong> subsistência, uma vez que as terras férteis disponíveis são<br />

poucas, acompanhada pelo fornecimento da força <strong>de</strong> trabalho para a agropecuária nacional<br />

e regional, através <strong>de</strong> migrações permanentes e temporárias. A elucidação <strong>de</strong> seus<br />

saberes tradicionais traz elementos que reforçam sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sobre o território e projetam<br />

possibilida<strong>de</strong>s outras <strong>de</strong> existência.<br />

Brejo dos Crioulos: território camponês<br />

A terra <strong>de</strong>ixada pelos mais velhos como herança constitui o patrimônio a ser transmitido<br />

às novas gerações. O trabalho da família sobre a terra tem como priorida<strong>de</strong> a reprodução<br />

da existência material, simbólica e afetiva <strong>de</strong> toda a comunida<strong>de</strong>, estabelecida sobre<br />

fortes vínculos <strong>de</strong> parentesco e valores <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>, que constituem traços da<br />

campesinida<strong>de</strong> do grupo, nos dizeres <strong>de</strong> Klaas Woortmann (1990, p. 63):<br />

Pensar trabalho é pensar terra e família; [...] Não são pensadas separadamente porque são categorias<br />

<strong>de</strong> um universo concebido holisticamente. Por outro lado, [...] honra, reciprocida<strong>de</strong> e hierarquia<br />

também não se pensam separadamente; são conceitos teóricos que se interpenetram na constituição<br />

da or<strong>de</strong>m moral que chamo campesinida<strong>de</strong>.<br />

A comunida<strong>de</strong> negra camponesa <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos agrega cerca <strong>de</strong> 500 famílias,<br />

distribuídas territorialmente em núcleos – Araruba, Arapuim, Cabaceiros, Conrado,<br />

Furado Seco, Serra d’Água, Furado Mo<strong>de</strong>sto e Caxambu – atualmente cercados pelas<br />

gran<strong>de</strong>s fazendas <strong>de</strong> gado e localizados nos municípios <strong>de</strong> São João da Ponte, Varzelândia<br />

e Ver<strong>de</strong>lândia.<br />

Nascido da doação <strong>de</strong> terra a Santo Reis feita por Leopoldo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa e<br />

Mané Novo, o núcleo <strong>de</strong> Araruba caracteriza-se como “terra <strong>de</strong> santo” e, como tal, não<br />

62<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


foi totalmente expropriado, o que permitiu que os moradores que perdiam suas terras<br />

fossem ali morar. Atualmente seus moradores somam 63 famílias, muitas das quais foram<br />

expulsas dos antigos espólios oriundos da “Divisão”, que se estendiam do vale do<br />

Arapuim aos divisores <strong>de</strong> água. Caracteriza-se como núcleo central da comunida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />

se localizam a Igreja e a Casa <strong>de</strong> Santo Reis, local <strong>de</strong> realização da Folia <strong>de</strong> Reis. Araruba<br />

possui as menores áreas para cultivo, limitando-se estas muitas vezes aos quintais e a<br />

alguns trechos às margens da Lagoa da Peroba.<br />

Caxambu foi dividido pelos po<strong>de</strong>res municipais em duas áreas, a partir do vale do rio<br />

Arapuim. Caxambu 1 localiza-se no município <strong>de</strong> Varzelândia, ao norte do rio Arapuim,<br />

on<strong>de</strong> vivem 40 famílias. Atualmente, as terras oriundas dos antigos espólios são as <strong>de</strong><br />

Santo Ferreira <strong>de</strong> Sousa e Prasti<strong>de</strong> Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, além das “terras <strong>de</strong> ausência”,<br />

ou seja, as que não foram requeridas. Gran<strong>de</strong> parte dos espólios adquiridos na “Divisão”<br />

foi tomada por fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> gado, que hoje são seus confrontantes. Um outro<br />

confrontante <strong>de</strong> Caxambu 1 é o Paraterra, um assentamento do INCRA com 135 alqueires,<br />

on<strong>de</strong> se encontram 35 famílias assentadas, <strong>de</strong>ntre elas duas oriundas da comunida<strong>de</strong>.<br />

Caxambu 2 localiza-se ao sul do rio Arapuim e do ribeirão Canabrabal ou Assa-Peixe,<br />

no município <strong>de</strong> São João da Ponte, e confronta-se com fazendas <strong>de</strong> gado e com o<br />

Paraterra. Das terras não expropriadas, restam hoje os espólios <strong>de</strong> Domingos Dias e<br />

Menegídio Barbosa <strong>de</strong> Jesus, on<strong>de</strong> vivem 28 famílias.<br />

Furado Seco conta com 80 famílias, que ainda vivem nos espólios <strong>de</strong> José Fernan<strong>de</strong>s<br />

da Silva, Bibiano Oliveira e Alexandre Antunes Pereira, atualmente cercados por fazendas<br />

<strong>de</strong> gado. Nesse núcleo, cujo padroeiro é São Benedito, está presente a memória<br />

acerca <strong>de</strong> dois antigos moradores que foram assassinados pelos grileiros e fazen<strong>de</strong>iros<br />

que ali chegaram. Seu Levino Pinheiro <strong>de</strong> Abreu morreu após tomar um suposto “remédio”<br />

dado por jagunços para acabar com uma febre. Em seguida, sua esposa e seus<br />

filhos tiveram <strong>de</strong> ir morar nas “terras <strong>de</strong> ausência” <strong>de</strong> Furado Mo<strong>de</strong>sto. Segundo relatos,<br />

Dona Lorença Ana <strong>de</strong> Jesus, esposa <strong>de</strong> Alexandre Antunes Pereira, foi assassinada após<br />

a morte <strong>de</strong> seu marido, e seu corpo, jogado na Lagoa Amarela.<br />

Conrado situa-se num único espólio, <strong>de</strong> Conrado Pereira da Silva, que possuía 15<br />

alqueires <strong>de</strong> terra (“alqueirinho”, <strong>de</strong> 4,8 hectares) e hoje conta com apenas 5 alqueires,<br />

on<strong>de</strong> vivem 22 famílias. Atualmente, é circundado por fazendas <strong>de</strong> gado, e em uma <strong>de</strong>las<br />

ainda se encontra uma antiga moradora do Conrado, dona Maria Helena, que não saiu<br />

da terra e hoje está cercada pelo pasto.<br />

Cabaceiros soma 80 famílias, distribuídas pelos espólios <strong>de</strong> Belarmino <strong>de</strong> Oliveira<br />

Neto, Santo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, Henrique Pereira da Silva, Aleixa Rodrigues <strong>de</strong> Castro<br />

e Pantaleão Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, localizados entre as margens do rio Arapuim e o córrego<br />

São Vicente, em alguns trechos, até o Marco do Cedro, em outros. No interior <strong>de</strong><br />

Cabaceiros vive a família <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> gado que ali grilou terras, cujo filho é<br />

vereador em Varzelândia; outros fazen<strong>de</strong>iros cercam o núcleo.<br />

Arapuim é um núcleo on<strong>de</strong> as moradias estão mais espalhadas. As 29 famílias que ali<br />

vivem estão situadas nos espólios <strong>de</strong> Ambrósio Pereira da Silva, Adriano Soares <strong>de</strong><br />

Aguiar, Calixto Ferreira <strong>de</strong> Oliveira, Firmiano <strong>de</strong> Oliveira Neto e Augusto Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

63


Sousa. Vinte e duas <strong>de</strong>ssas famílias encontram-se no município <strong>de</strong> São João da Ponte; as<br />

restantes estão no município <strong>de</strong> Varzelândia. Atualmente, vivem cercadas ou divididas<br />

pelas fazendas <strong>de</strong> gado.<br />

Serra d’Água situa-se às margens do córrego São Vicente, aos fundos dos espólios <strong>de</strong><br />

João da Silva Caldas, Antônio Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, Santo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa e Henrique<br />

Pereira da Silva, que fronteiam o rio Arapuim. Seus moradores, distribuídos em 20<br />

famílias, são her<strong>de</strong>iros dos “véios” que “acompanharam a divisão” mas per<strong>de</strong>ram suas<br />

terras, tendo, assim, ali se estabelecido como agregados dos donos <strong>de</strong>sses espólios. Esse<br />

núcleo é bem distinto dos outros do vale do Arapuim, uma vez que está localizado numa<br />

região on<strong>de</strong> o córrego São Vicente, com fluxo intermitente, seca todos os anos. Em<br />

vista disso, os moradores possuem cisternas para captação <strong>de</strong> água da chuva (Programa<br />

“Um milhão <strong>de</strong> cisternas”, da ASA – Articulação do Semi-Árido). As cisternas – reservatórios<br />

com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 20.000 litros, construídos sob a forma <strong>de</strong> mutirão – captam a<br />

água da chuva, através <strong>de</strong> calhas nos telhados, usada para cozinhar e beber.<br />

As terras mais afastadas do vale do Arapuim não foram incluídas na “Divisão <strong>de</strong><br />

1930”. Essas “terras <strong>de</strong> ausência” passaram então, na década <strong>de</strong> 1960, a ser ocupadas<br />

pelas famílias her<strong>de</strong>iras dos antigos espólios expropriados <strong>de</strong> Inácio Cor<strong>de</strong>iro Barbosa<br />

(Furado Seco), Anastácio Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa (Arapuim e Lagoa da Onça), Santo<br />

Ferreira da Rocha (Caxambu), Levino Pinheiro <strong>de</strong> Abreu (Lagoa Calumbi e Conrado)<br />

e Tertuliano Pereira <strong>de</strong> Aquino (Buraco <strong>de</strong> Pedra). Dos antigos her<strong>de</strong>iros, 31 distribuemse<br />

em Furado Mo<strong>de</strong>sto – ao redor do furado que leva o mesmo nome, no município<br />

<strong>de</strong> Varzelândia – e 13 estão no Sebo – ao redor do Furado das Éguas, que já pertence<br />

ao município <strong>de</strong> Ver<strong>de</strong>lândia. As primeiras terras ocupadas ao redor do Furado Mo<strong>de</strong>sto<br />

e do Furado das Éguas tiveram <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>socupadas, frente à pressão dos fazen<strong>de</strong>iros<br />

que ali também chegavam. Dentre essas pressões, uma contou com a aliança<br />

direta entre fazen<strong>de</strong>iro e Estado: ao <strong>de</strong>scobrir focos <strong>de</strong> barbeiro nas moradias feitas<br />

<strong>de</strong> estuque na localida<strong>de</strong> do Sebo, a SUCAM afirmou ser necessária sua retirada dali; o<br />

fazen<strong>de</strong>iro que se apropriara <strong>de</strong>ssas terras consi<strong>de</strong>radas “<strong>de</strong>volutas” doou, então, uma<br />

porção <strong>de</strong> terra para a SUCAM construir as novas casas <strong>de</strong> alvenaria numa vila <strong>de</strong> aspecto<br />

urbano, próxima ao Furado Mo<strong>de</strong>sto. Esse fato constituiu a terceira expropriação vivenciada<br />

pela comunida<strong>de</strong>.<br />

On<strong>de</strong> se passam os “causos”: vivência e saberes do sertanejo<br />

– O sapo canta... E o peixe canta também?<br />

Seu A<strong>de</strong>lino – Canta! Os peixo, aqueles fio, aqueles pexinho pequeno, óia, tim tim tim tim tim<br />

tim tim tim; aquelas cumatá, có có có có có có có có; aquelas piranha, óh óh óh óh oh óh... [risos].<br />

Aí é quando eles trata <strong>de</strong>sová, né? Aí o povo: “é, vai, o peixe tá <strong>de</strong>sovando”, “é chuva”, é ciência<br />

do povo antigo, esse povo, né?<br />

(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04, grifo nosso)<br />

Brejo dos Crioulos localiza-se no vale médio do rio Arapuim, num trecho da Depressão<br />

Interplanáltica São-Franciscana. Nessa região, a Depressão São-Franciscana encon-<br />

64<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


tra-se assentada sobre as rochas do Grupo Bambuí (Paleozóico), e, por essa razão, o<br />

relevo da região é também <strong>de</strong>nominado cárstico coberto, tendo a <strong>de</strong>composição <strong>de</strong>ssas<br />

rochas dado origem a solos argilosos e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> potencial agrícola.<br />

O relevo cárstico (ou calcário) apresenta como característica a presença <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressões,<br />

sumidouros, dolinas (“furados”) e ressurgências, verificados nos interflúvios que separam<br />

os afluentes do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>. Assim, através <strong>de</strong>ssas formas cársticas, um gran<strong>de</strong><br />

volume <strong>de</strong> água superficial é infiltrado para o subsolo, provocando ora a ausência <strong>de</strong><br />

escoamento superficial, ora sua parcialida<strong>de</strong>. Esse é o caso do córrego São Vicente,<br />

intermitente, que <strong>de</strong>limita uma parte do território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, ao norte, localizada<br />

no núcleo <strong>de</strong>nominado Serra d’Água. Os moradores afirmam ainda que, no final<br />

dos terrenos <strong>de</strong> Serra d’Água, o córrego termina num paredão ou lajedo, mergulhando<br />

por baixo da terra através <strong>de</strong> um “sumidouro”, que o leva até o rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>.<br />

Já o rio Arapuim, afluente da margem esquerda do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, é um curso<br />

d’água perene, com expressiva quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lagoas e furados. Nessa região <strong>de</strong> transição<br />

entre a caatinga e o cerrado, com chuvas concentradas e períodos pronunciados <strong>de</strong> estiagem,<br />

é gran<strong>de</strong> a importância atribuída a seus brejos e vazantes, que representam as<br />

melhores terras utilizadas para a agricultura.<br />

A presença da água é fator fundamental para a constituição <strong>de</strong> agrupamentos camponeses,<br />

refletindo-se em todas as formas <strong>de</strong> produzir e organizar a vida. Assim, o período<br />

das águas é minuciosamente observado e esperado pela comunida<strong>de</strong>, pois abre o tempo<br />

da agricultura e é anunciado pelas “cheias” ou “enchentes”. As práticas agrícolas acompanham<br />

diretamente o ritmo das águas, assim como a pecuária se baseia na localização<br />

das águas, seja por meio do rio, seja pelos furados ou lagoas. Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong><br />

Aquino, <strong>de</strong> 60 anos, revela apurado saber que i<strong>de</strong>ntifica mudanças climáticas e hídricas<br />

através do comportamento <strong>de</strong> animais e do local on<strong>de</strong> se dão as trovoadas:<br />

– Aí as águas vêm da parte alta...<br />

Seu A<strong>de</strong>lino – Da parte alta, caindo por <strong>de</strong>ntro do brejo, que nóis trata aqui brejo, cai <strong>de</strong>ntro das<br />

lagoa, cai <strong>de</strong>ntro do córrego, e aí vai juntando, a água, né? Quando é a lagoa, a água junta ali, né?<br />

E pára. E quando é no córrego, ela corre pra baixo, vai <strong>de</strong>scendo, né? Então nóis trata esse lado<br />

aqui “alto”: “a água vem do alto”, dali, “vem do alto”; se vem <strong>de</strong> acolá, nóis: “a água vem das<br />

cabeceira”. Trovejô acolá, nas cabeceira, vem enchente. Nóis trata “é enchente, a enchente vai <strong>de</strong>scê<br />

no córrego”, ocê enten<strong>de</strong>u? O costume antigo aqui, que eu nasci e conheci aqui, vai <strong>de</strong>scendo no<br />

córrego. Aí vem o sapo, cantando <strong>de</strong> baixo pra cima, né? Vai cantando e vai <strong>de</strong>scendo: “ó, vem<br />

enchente, a água, a chuva chuvô, vem enchente, que o sapo tá cantando”. E vai <strong>de</strong>scendo,<br />

acompanhando, chega o sapo e apo<strong>de</strong>ra na lagoa, on<strong>de</strong> é a bacia da água. E ali eles fica cantando,<br />

daquele jeito <strong>de</strong>les, sabe? Cê tá enten<strong>de</strong>ndo? Fica cantando lá, aí o povo lá... Quando é amanhã as<br />

lagoa amanhece cheia, naquele costume antigo, que é aqueles peixo, que canta...<br />

(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />

Embora o saber tradicional resulte <strong>de</strong> vivências outras que não as do saber acadêmico,<br />

po<strong>de</strong>-se estabelecer entre eles uma relação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong>. Nas formas <strong>de</strong> manejo<br />

dos recursos naturais efetivadas em Brejo dos Crioulos, fica clara a importância das<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

65


leituras que a comunida<strong>de</strong> faz do ambiente. Esse saber resulta <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong><br />

relações empíricas e cotidianas com o meio on<strong>de</strong> a comunida<strong>de</strong> está inserida e na construção<br />

<strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> vida. A leitura do espaço ecológico feita pela comunida<strong>de</strong> camponesa<br />

que ali vive remete-nos aos usos por ela praticados e que estão diretamente<br />

relacionados à reprodução da sua vida material e simbólica, como nos afirma Antônio<br />

Carlos Diegues (1998, p. 85):<br />

Um aspecto relevante na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> culturas tradicionais é a existência <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> manejo dos<br />

recursos naturais marcados pelo respeito aos ciclos naturais, à sua explotação <strong>de</strong>ntro da capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> recuperação das espécies <strong>de</strong> animais e plantas utilizadas. Esses sistemas tradicionais <strong>de</strong> manejo<br />

não são somente formas <strong>de</strong> exploração econômica dos recursos naturais, mas revelam a existência<br />

<strong>de</strong> um complexo <strong>de</strong> conhecimentos adquiridos pela tradição herdada dos mais velhos, <strong>de</strong> mitos<br />

e símbolos que levam à manutenção e ao uso sustentado dos ecossistemas naturais.<br />

No contexto ecológico local, os brejos constituem a garantia <strong>de</strong> água para a produção<br />

<strong>de</strong> alimentos da comunida<strong>de</strong>. Neles está situada a “primeira terra”, a melhor para a<br />

agricultura, por ser a mais barrenta e localizada na beira dos rios e das lagoas. Em Brejo<br />

dos Crioulos, o brejo molhado é utilizado para o cultivo do arroz.<br />

Aliadas aos brejos estão as vazantes, planícies <strong>de</strong> inundação dos cursos d’água. Com a<br />

<strong>de</strong>scida das águas, essas porções <strong>de</strong> terra passam a constituir terrenos férteis e úmidos,<br />

prontos para o plantio da maior parte dos alimentos produzidos, conforme nos conta<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira:<br />

– E on<strong>de</strong> vocês plantam essas coisas todas? Há algum terreno em que plantam sempre, perto das<br />

lagoas? É na vazante?<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s – É nas vazante. Que nem mesmo essas roça que eu tava plantando esse ano, que<br />

nóis plantamo: foi aqui nessas vazante daqui, da estrada pra baixo, até a beira do rio. Aí, quando<br />

é na época dos plantio da seca, a gente procura mais as vazante <strong>de</strong> lagoa, que tem lagoa; que nem<br />

inclusive aon<strong>de</strong> é que eu trabaio, que tem um plantio que tem lá, nóis plantamo da seca, que tem<br />

a lagoa. É na lagoa. Aí ela vai secando, a gente vai gra<strong>de</strong>ando e plantando. Aí, aproveitando o<br />

moiado daquela água da chuva, daquela época que a lagoa enche, aí a gente vem, a lagoa vai<br />

secando, a gente vai cultivando a terra e plantando.<br />

(Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, 59 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 1; 18/04/04)<br />

Adjacentes às vazantes, no sentido dos divisores <strong>de</strong> água, encontram-se as terras <strong>de</strong><br />

cultura, consi<strong>de</strong>radas como “segunda terra”, <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong> média, on<strong>de</strong> se planta a lavoura<br />

branca <strong>de</strong> milho, feijão, feijoa, abóbora e mandioca. Eram cobertas por Floresta<br />

Estacional, que secava em agosto e voltava a brotar em setembro-outubro, antes das<br />

chuvas. Quando ficam muito tempo sem ser usadas para o plantio, essas terras formam<br />

capoeira e até catanduba, que era “mata gran<strong>de</strong>, reservada, não <strong>de</strong>smatada, mato grosso”.<br />

A <strong>de</strong>rrubada da catanduba dá lugar às terras <strong>de</strong> cultura.<br />

Após as terras <strong>de</strong> cultura, está o carrasco, consi<strong>de</strong>rado como “terceira terra”, que via <strong>de</strong><br />

regra acompanha a “água vertente” ou divisor <strong>de</strong> águas. Seu solo é arenoso, propenso à<br />

formação <strong>de</strong> “murundus” <strong>de</strong> cupim, e não “guarda a chuva”: em poucos dias, a terra<br />

66<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


seca. Não é favorável aos cultivos agrícolas, sendo usado preferencialmente como “solta<br />

nativa”, com pasto formado pelo capim nativo taquari. A “solta nativa” era território <strong>de</strong><br />

uso comum, sem cercas, utilizado largamente por várias comunida<strong>de</strong>s locais, on<strong>de</strong> o<br />

gado <strong>de</strong> todos tinha seu pasto.<br />

Margeando o vale do Arapuim, alguns terrenos <strong>de</strong> maior altitu<strong>de</strong>, formados por “pedreiras”<br />

e cobertos <strong>de</strong> mata, são conhecidos como serra. Dali mina água na época das<br />

cheias, quando há subida do lençol freático. Os lajedos <strong>de</strong> pedra existentes são ambientes<br />

<strong>de</strong> procriação dos peixes, durante a piracema no rio Arapuim.<br />

A importância do rio Arapuim para a comunida<strong>de</strong> explicita-se na paisagem. O intenso<br />

uso agrícola acabou por produzir a alteração do leito do Arapuim em dois trechos. Um<br />

<strong>de</strong>les está situado entre o núcleo Arapuim e o Cabaceiros. Segundo os moradores, isso<br />

ocorreu <strong>de</strong>vido à abertura <strong>de</strong> “reguinhos” para drenar áreas bastante encharcadas pelas<br />

águas da cheia e, assim, po<strong>de</strong>r plantar nelas, numa época em que chovia mais. Com o<br />

tempo, essa prática fez com que o curso principal do rio passasse a circular por esses<br />

canais <strong>de</strong> drenagem e ali construísse seu leito principal, formando o chamado “rio Novo”.<br />

Entre o rio Arapuim – “rio Velho” – e o “rio Novo”, formou-se uma área <strong>de</strong> planície<br />

com cerca <strong>de</strong> 500 metros <strong>de</strong> largura e que só inunda na época das cheias, sendo utilizada<br />

nos outros períodos para a agricultura.<br />

O outro trecho alterado pelas práticas agrícolas está situado próximo ao encontro<br />

entre o rio Arapuim e o ribeirão Canabrabal ou Assa-Peixe. Nesse caso a alteração no<br />

leito do rio não teve por objetivo drenar áreas alagadas mas sim, aten<strong>de</strong>r a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> molhar a terra para, <strong>de</strong>pois, plantar nela o arroz. Para tanto construíam-se açu<strong>de</strong>s, ou<br />

seja, barramentos provisórios no leito do rio, que produziam a inundação temporária da<br />

terra adjacente, conforme explica Seu Gasparino Ferreira dos Santos:<br />

– Isso é um causo; quando eu cheguei por aqui, já tinha essas conversa, mas eu num alcancei isso<br />

não, né? Mas eles sempre fala assim... Que eles fazia os açu<strong>de</strong> no rio, pra mó <strong>de</strong>le represar, pro<br />

arroz dar. Conforme aguava o arroz, retornava a <strong>de</strong>rrubar o açu<strong>de</strong>, e aí baixava pra mó <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

colher o arroz. Aí a água ficava no mesmo canal. Isto nóis já fizemo muito. Nóis já fizemo.<br />

(Seu Gasparino Ferreira dos Santos, 68 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 2; 18/04/04)<br />

Margeando o rio Arapuim e o ribeirão Assa-Peixe ou Canabrabal, as lagoas também<br />

constituem corpos d’água <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância ao modo <strong>de</strong> vida local. Algumas surgem<br />

no período das águas, com a subida do lençol freático e a inundação das planícies<br />

aluviais; outras são alimentadas por minadores que surgem com as cheias.<br />

Ao redor das lagoas está o melhor solo, usado intensivamente para o cultivo agrícola,<br />

tanto no brejo molhado (arroz) como na vazante, sendo, por essa razão, ainda hoje o<br />

local on<strong>de</strong> se concentram as famílias da comunida<strong>de</strong>. As lagoas que se encontram nas<br />

terras <strong>de</strong> uso e posse da comunida<strong>de</strong> são: Aleixa e Colher <strong>de</strong> Pau, em Cabaceiros; Criminosa<br />

e Calumbi, em Conrado; Furado Seco, no núcleo <strong>de</strong> mesmo nome; Lagoa do<br />

Santo, em Caxambu; e Lagoa da Peroba, em Araruba.<br />

Além <strong>de</strong>ssas, há ainda aquelas situadas nas terras dos fazen<strong>de</strong>iros que expropriaram<br />

parte do território negro. Constituindo fontes <strong>de</strong> água margeadas por solos férteis, elas<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

67


foram cobiçadas e estrategicamente tomadas da comunida<strong>de</strong> local pelos fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong><br />

gado e grileiros. Seus nomes antigos, quando mantidos, revelam os donos dos antigos<br />

espólios da <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> 1930 ou os territórios <strong>de</strong> posse e uso das famílias que ali se<br />

estabeleciam, chegadas <strong>de</strong> outras regiões: Lagoa da Varanda, consi<strong>de</strong>rada um dos limites<br />

da comunida<strong>de</strong>, a oeste, e Lagoa da Sinhorinha, no núcleo Arapuim; Lagoa <strong>de</strong> João,<br />

entre os núcleos Arapuim e Cabaceiros; Lagoa da Água Preta, entre os núcleos Cabaceiros<br />

e Conrado; a maior área da Lagoa Calumbi, no núcleo Conrado; Lagoa do Miguel;<br />

Lagoa do Vicente Cololó, adjacente ao núcleo Furado Seco; Lagoa do Silvério; Lagoa<br />

Vargem do Pedro; e Lagoa da Onça, i<strong>de</strong>ntificada como outro limite da comunida<strong>de</strong>, no<br />

sentido leste.<br />

As lagoas são também o ambiente on<strong>de</strong> os peixes procriam, por ocasião da piracema<br />

no rio Arapuim, como bem nos explica Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino:<br />

– Porque os peixo aqui é quando a cheia é gran<strong>de</strong>. A enchente que nóis fala, época das água boa, a<br />

água vai até o rio Ver<strong>de</strong>. O rio Ver<strong>de</strong> represa a água lá, porque ele recebe a água; ele joga a água no<br />

São Francisco e joga o peixo pra cima. Aí, chega aí, o peixo vai cair naquela lagoa, primeiro assim<br />

aqui na Lagoa da Boa Vista, na lagoa ali, na Lagoa da Onça, <strong>de</strong>pois ele cai é... no Furado Seco; do<br />

Furado Seco vai pr’aquela Lagoa Varge do Pedro, igual dos Gonçalo qu’eles fala, dos Gonçalo,<br />

Varge do Pedro; <strong>de</strong>pois vem pr’aquela lagoa ali qu’eles fala... Furado Seco, eu falei; vem ali pro<br />

Calumbi, ali naquele povo lá na frente, na Lagoa Calumbi, vem na Lagoa da Peroba, vem na Lagoa<br />

Criminosa, qu’eles fala que já morreu alguém lá, qu’eles trata Lagoa Criminosa; aí eles vêm pra<br />

Lagoa da Peroba, que é lá nos fundo da Igrijinha, <strong>de</strong>sce pra essa Lagoa da Aleixa aqui, que nóis falô<br />

Lagoa... Genipapo; vem pra Colher <strong>de</strong> Pau, que é lagoa – se tratava lagoa... agora, o apelido antigo<br />

<strong>de</strong>la, <strong>de</strong>sses antigo, é Lagoa Colher <strong>de</strong> Pau. Vem jogando, e aí por diante! Chega numa serrinha ali,<br />

que fica on<strong>de</strong> é que nóis trabaia, fica numa serra, joga numa lagoinha lá, e daquela lagoa lá entra<br />

numas lapa, lapa da serra que nóis fala. Num é Lapa <strong>de</strong> Bom Jesus não, qu’eles fala; é uma lapa,<br />

umas grota <strong>de</strong> serra, que enche <strong>de</strong> peixo! Por ali, o peixo fica <strong>de</strong>ntro da serra, né? E <strong>de</strong>pois, eles sai,<br />

passeando, <strong>de</strong>ntro das lagoa. Tem outra lagoa qu’eles passa, um buracão ali, ali pros parente <strong>de</strong><br />

Joventino. Ali eles sobe pra uma lagoa <strong>de</strong>pois do Gê, que nóis falô aqui. É Lagoa <strong>de</strong> João Véio,<br />

que o povo trata; vai pr’ali, <strong>de</strong>pois vai pra outra lagoa do outro lado ali, do município São João da<br />

Ponte, a Lagoa é <strong>de</strong> Dema. Hoje quem mora lá é o Dema, mas era, <strong>de</strong> antigamente, Lagoa <strong>de</strong><br />

Sinhorinha, que é a Lagoa da Sinhorinha. E aí por diante, Lagoa da Varanda...<br />

(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />

Regionalmente, a <strong>de</strong>nominação “furado” aparece com freqüência: Furadão, Furado Seco,<br />

Furado Mo<strong>de</strong>sto, Furado Curral, Furado Pedrim, Furado Boi. Os furados ou dolinas<br />

constituem <strong>de</strong>pressões esculpidas em terrenos calcáreos e alagáveis por ocasião das chuvas.<br />

Segundo Francisco Cor<strong>de</strong>iro Barbosa, o “Ticão”, <strong>de</strong> 38 anos, o furado não é olho d’água:<br />

ele recebe água dos olhos d’água, armazena-a e solta-a para outros furados ou rios. Nessa<br />

região sazonalmente sujeita a secas, em alguns locais on<strong>de</strong> não existiam cursos d’água, os<br />

furados eram a garantia e o atrativo para o estabelecimento das famílias.<br />

Alguns <strong>de</strong>les povoam as antigas e fantásticas histórias contadas pela comunida<strong>de</strong>. Conta-se<br />

que, antigamente, a Lagoa do Furado Seco era um furado e secava todo ano. O<br />

68<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


gado vinha beber água ali. Certa vez, chegou um senhor e enterrou um vidro <strong>de</strong> azeite<br />

doce em suas margens, e o furado nunca mais secou, transformando-se em uma lagoa.<br />

Nos meses <strong>de</strong> agosto-setembro, com a diminuição das chuvas, a Lagoa do Furado Seco<br />

diminui <strong>de</strong> tamanho e divi<strong>de</strong>-se em duas partes, o que propicia mais terras <strong>de</strong> vazante<br />

para o plantio. É nessa época que, segundo os moradores, também aparecem os testemunhos<br />

<strong>de</strong> uma antiga floresta da região, como cernes <strong>de</strong> aroeira e pau-preto.<br />

Já os moradores do Furado Mo<strong>de</strong>sto, localida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> não há nenhum rio ou lagoa,<br />

contam que, antigamente, a água do furado era utilizada em ativida<strong>de</strong>s domésticas, tais<br />

como preparo da comida e lavação <strong>de</strong> roupas e louças, e para o banho. Nas secas, a água<br />

era buscada no Furado Seco e transportada em cabaças, e o gado também para lá era<br />

conduzido. Na década <strong>de</strong> 1960 o furado passou a secar, porque os fazen<strong>de</strong>iros que<br />

então começavam a chegar naquelas “terras <strong>de</strong> ausência” – com raros proprietários formais<br />

– <strong>de</strong>ram início ao gra<strong>de</strong>amento das terras ao seu redor para formar os pastos.<br />

Quando as chuvas chegavam, a enxurrada carregava terra para <strong>de</strong>ntro do furado, que<br />

começou a per<strong>de</strong>r sua profundida<strong>de</strong>.<br />

Essa e outras alterações no meio, que configuram o processo <strong>de</strong> expropriação sofrido<br />

pela comunida<strong>de</strong>, interferiram diretamente em seu modo <strong>de</strong> vida tradicional. Ainda assim,<br />

a comunida<strong>de</strong> consegue manter um calendário produtivo diversificado, por meio<br />

<strong>de</strong> práticas e saberes tradicionais.<br />

Calendário produtivo: saberes e território<br />

Segundo Antônio Cândido (1988), a alimentação constitui um recurso vital que revela a<br />

<strong>de</strong>pendência do grupo em relação ao meio e suas ações para garantir sua continuida<strong>de</strong>,<br />

bem como a organização social para obtê-la e distribuí-la. Assim, o calendário produtivo<br />

<strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> camponesa apresenta-se como<br />

[...] o centro <strong>de</strong> um dos mais vastos complexos culturais, abrangendo atos, normas, símbolos,<br />

representações. A obtenção da comida percorre, do esforço físico ao rito, uma gama vastíssima em<br />

que alguns têm querido buscar a gênese <strong>de</strong> quase todas as instituições sociais (CÂNDIDO, 1988, p. 29).<br />

O calendário produtivo <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, apresentado a seguir, revela o profundo<br />

conhecimento da comunida<strong>de</strong> em relação ao ambiente on<strong>de</strong> vive e uma ótima adaptação<br />

a sua dinâmica biofísica. A chegada das águas e a vazante são os marcos temporal e espacial<br />

para essas ativida<strong>de</strong>s produtivas, <strong>de</strong>finindo os melhores tempo e local para o plantio, para<br />

a colheita e para a pesca, bem como as técnicas que otimizam o uso do recurso. O processo<br />

produtivo dá-se pela apropriação <strong>de</strong>sse espaço, por meio <strong>de</strong> saberes que ali se <strong>de</strong>senvolvem.<br />

Nesse sentido, a produção da vida acontece no território dos saberes.<br />

A agricultura distribui-se pelo período da chegada das águas e da vazante. Gran<strong>de</strong><br />

parte dos cultivos aguarda a chegada das águas para ser realizada. Os diversos tipos <strong>de</strong><br />

arroz são cultivos das águas, feitos preferencialmente no brejo molhado. O milho, a abóbora<br />

e a mandioca são plantados na época das águas, porém em terras não alagadas, nas<br />

terras <strong>de</strong> cultura. Os feijões são cultivados, preferencialmente, na vazante. Uma característica<br />

típica <strong>de</strong>sses cultivos é o consórcio entre o milho, a mandioca e o feijão: o milho<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

69


e a mandioca são cultivados num primeiro momento; os feijões vêm <strong>de</strong>pois, quando o<br />

milho, já seco, serve <strong>de</strong> apoio para o feijão subir e, assim, produzir melhor. Em troca, o<br />

feijão, enquanto leguminosa, fixa nitrogênio no solo. Assim, potencializa-se o uso <strong>de</strong><br />

terra numa mesma área.<br />

Em relação à pecuária, o gado tem <strong>de</strong> ser transferido aos mangueiros no período <strong>de</strong><br />

estiagem, uma vez que o carrasco fica bastante árido. Quando criado no pasto, é preciso<br />

realizar o rodízio do rebanho, a cada seis meses, entre os locais <strong>de</strong> pastagem. Conta-se<br />

que antigamente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se tirar o leite pela manhã, o gado era colocado na “solta<br />

nativa”, <strong>de</strong>ixando-se os bezerros no mangueiro, na área <strong>de</strong> roça ou próximos ao quintal;<br />

à noite, o gado ficava no curral. O leite era utilizado no fabrico <strong>de</strong> queijo e requeijão.<br />

– O gado ia pra lá... pros furado, que o povo trata hoje Furado Mo<strong>de</strong>sto, né? E aí por diante, os<br />

furado assim, que tratava os furado aí <strong>de</strong> cima, né? Então, o gado era à solta, e eles prendia os<br />

bezerrinho no curral. Quando era ali pras 7, 8 hora, as vaca que atrasava chegava ali pras 8, 9 hora,<br />

berrando lá do carrasco, e os bezirrinho ia respon<strong>de</strong>ndo. Aí eles chegava com a cabaça <strong>de</strong> leite – que<br />

num tinha lata aquela época, tratava ali, que e o povo trata <strong>de</strong> cabaça, né? –, abria a boca e ia com<br />

o copão <strong>de</strong> leite. Aí tirava, encostava restelando no canto, ia qualhá; às vezes eles fazia requeijão,<br />

algumas vezes eles fazia doce...<br />

(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />

Quanto à pesca, a ocorrência da <strong>de</strong>sova é sinal <strong>de</strong> chuva e <strong>de</strong> cheia. As lagoas enchem<br />

uma a uma e recebem a piracema, e os peixes procriam. Na vazante, durante os meses<br />

<strong>de</strong> julho, agosto e setembro, a pesca intensifica-se. Se, por um lado, a pesca espera as<br />

águas, por outro lado a própria subida do peixe para a <strong>de</strong>sova é sinal das águas, como<br />

relata Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino:<br />

Seu A<strong>de</strong>lino – “Tá <strong>de</strong>sovando, peguei um peixo”. E como é que é, esse menino? Esse peixo<br />

como é que tá? “É, o peixo tá <strong>de</strong>sovando”. É enchente, já vai chovê, vai tê enchente, porque, se tá<br />

<strong>de</strong>sovando, as água é boa. Tá enten<strong>de</strong>ndo? É o que eles fala, né?<br />

– Em que época eles <strong>de</strong>sovam? É na época das águas, no final do ano?<br />

Seu A<strong>de</strong>lino – Época <strong>de</strong> enchente é quando começa. É janeiro, <strong>de</strong>zembro, assim por diante, né?<br />

E agora eles pega, cê sabe como é que é... A gente pega <strong>de</strong> tarrafa, outros faz uma tapage: pega um,<br />

vai no mato cortá umas vara, faz o jequi, assim... Alguém mostrô pr’ocês, não? Então sai, ó, pega<br />

o peixo, enfia a mão <strong>de</strong>ntro, igual aqui assim, e vai rodando o peixo, pega. É... uns enfia no<br />

enfisgo; tem mulher aí que pega o peixo, enrola aqui assim, pra mó <strong>de</strong>... né?<br />

– Em que época se pega mais peixe aqui, então?<br />

Seu A<strong>de</strong>lino – Na época da enchente eles pega; eles faz uma tapage, né? E outra, na seca, quando<br />

a água encurta nas lagoa, eles pega, pega <strong>de</strong> tarrafa.<br />

(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />

Entre os produtos das ativida<strong>de</strong>s extrativistas estão os medicamentos <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong><br />

ervas medicinais e gorduras e banhas <strong>de</strong> alguns animais <strong>de</strong> caça, que são usados para a<br />

70<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


cura <strong>de</strong> doenças como bronquite. Alguns moradores afirmam que curavam todas as<br />

suas doenças com esses remédios, inclusive a maleita, e se queixam <strong>de</strong> que nos tempos<br />

<strong>de</strong> hoje os remédios do mato – remédios da natureza – acabaram ou não fazem mais<br />

efeito, revelando o <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>de</strong>corrente da <strong>de</strong>rrubada das florestas e da chegada <strong>de</strong><br />

novos agentes patogênicos trazidos pelos implantadores do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico. Esse <strong>de</strong>sequilíbrio também se reflete na baixa oferta <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, outrora<br />

extraída e utilizada na construção <strong>de</strong> moradias, utensílios e estruturas produtivas como<br />

as casas <strong>de</strong> farinha, os currais, os engenhos <strong>de</strong> rapadura, os pilões e as cercas.<br />

A extração do barro para a construção <strong>de</strong> moradias e fabricação <strong>de</strong> telhas e potes<br />

obe<strong>de</strong>ce à <strong>de</strong>marcação das estações das águas e da estiagem. Inicialmente, a construção<br />

<strong>de</strong> moradias era feita <strong>de</strong> estuque, com uma estrutura <strong>de</strong> esteios <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira on<strong>de</strong> é preso<br />

o envarinhamento <strong>de</strong> galhos finos trançados, amarrados com cipó e preenchidos com o<br />

barro. Nas casas <strong>de</strong> adobe, também com esteios <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, os tijolos são feitos <strong>de</strong><br />

barro cru em formas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e colados igualmente com barro.<br />

Para a fabricação <strong>de</strong> telhas e potes, utilizava-se um barro mais fino e macio, obtido ao<br />

redor das lagoas. Sua retirada era feita nos meses <strong>de</strong> julho e agosto, quando do ápice do<br />

período <strong>de</strong> estiagem, antes das primeiras chuvas. O uso do barro é orientado pelo saber<br />

que indica a época certa <strong>de</strong> extraí-lo: panelas e potes feitos com barro retirado <strong>de</strong>pois da<br />

primeira água quebram ao serem colocados no fogo. Assim, é necessário “<strong>de</strong>ixar o<br />

barro morrer” – isto é, secar – para po<strong>de</strong>r utilizá-lo, conforme relata Seu Aristi<strong>de</strong>s<br />

Cardoso <strong>de</strong> Oliveira:<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s – Pegava barro da lagoa...<br />

– É um barro mais fino?<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s –- Mais fino, é um barro muito macio. [...] Aí, quando eu fui rancar o barro pra ela,<br />

ela fez. Só que essa época que ela fez, quando ela foi rancar o barro, já tinha chovido, que o barro<br />

brota, né? Aqui ainda tem isso, tem essa ciência.<br />

– Como é que o barro brota?<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s – Porque, <strong>de</strong>pois da chuva, o barro parece que renova. Aí eles fala “brotá”, né? Que<br />

<strong>de</strong>pois que chove o barro brota. Ocê faz a panela, fazia o pote e a panela, cê punha no fogo, ele<br />

estourava. Quebrava tudo, num salvava um!<br />

– Desse barro novo...<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s – Sim, <strong>de</strong>sse barro novo. Agora, se rancasse o barro antes da chuva, ali pro mês <strong>de</strong><br />

agosto, setembro... Rancava o barro pra <strong>de</strong>ixar morrê, pro barro secá e ficá bem sequinho. Aí,<br />

<strong>de</strong>pois daquele barro todo sequinho, voltava. Aí ela ia pro moinho, moía aquele barro no pilão,<br />

compunha esse material [...].<br />

(Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, 59 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 1; 18/04/04)<br />

As ativida<strong>de</strong>s artesanais e agroindustriais caseiras seguem o tempo das <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>s<br />

produtivas. Assim, temos a produção <strong>de</strong> corante a partir do urucum; da mandioca<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

71


Tabela 1 Ativida<strong>de</strong>s produtivas <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />

Produto Plantio Local Manejo Colheita<br />

Feijão arranque Fevereiro-março Vazante Fogo e gra<strong>de</strong> Abril (60 dias)<br />

Feijão catador Fevereiro Vazante Plantio espalhado Maio (80 dias)<br />

Abril (40 ou 50 dias)<br />

Feijoa Novembro Cova do milho Abril (3 meses)<br />

Junho (6 meses)<br />

Milho <strong>de</strong> paiol Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas Junho (110 dias)<br />

Milho <strong>de</strong> secretaria Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas 70-80 dias (ver<strong>de</strong>)<br />

Junho (seco)<br />

Abóbora Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas Fevereiro<br />

Melancia Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas Janeiro<br />

Amendoim Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas 90 dias<br />

Arroz gigante Outubro Brejo molhado – nas águas 4 meses<br />

6 meses<br />

Arroz gigantão Outubro Brejo molhado e mais seco 4 meses<br />

Mandioca Outubro a fevereiro Terra <strong>de</strong> cultura e 2 anos<br />

carrasco – nas águas<br />

Cana Outubro-novembro 6 meses<br />

Banana Outubro-novembro 8 meses<br />

Batata-doce Outubro-novembro 6 meses<br />

Horta Fevereiro-junho Beira do ribeirão e lagoas<br />

Pomar<br />

Terra <strong>de</strong> cultura<br />

Produto Local Manejo<br />

Gado Pasto e “solta Rodízio a<br />

nativa” (águas)<br />

cada 6 meses<br />

Galinha e porco Quintal Folhas, cascas e<br />

milho seco<br />

Produto Desova Local Manejo Pesca<br />

Pesca Dezembro-janeiro Lagoas Jequi na cheia; Junho-julho-agosto<br />

tarrafa na seca<br />

Produto Plantio Local Manejo Colheita<br />

Barro Julho-setembro Beira das lagoas Barro seco “morto” Telhas, potes,<br />

e moído<br />

tijolos e moradias<br />

72<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


Gráfico 1 Calendário produtivo <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />

Legenda<br />

Chuvas<br />

Rio e lagoas<br />

Arroz<br />

Feijão<br />

Milho<br />

Milho estocado<br />

Mandioca<br />

Abóbora, batata e cana<br />

Horta<br />

Pomar<br />

Gado<br />

Pesca<br />

Barro<br />

Mel<br />

Ervas medicinais<br />

Cipó<br />

Ma<strong>de</strong>ira<br />

Caça<br />

Moradia<br />

Esta representação do calendário<br />

produtivo <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />

procura distribuir suas diversas<br />

ativida<strong>de</strong>s produtivas ao longo do<br />

tempo e do espaço. Assim, temos o<br />

tempo distribuído em 12 meses e<br />

conforme a presença da água: a cheia<br />

e vazante. Quanto ao espaço, no<br />

centro do círculo temos os vales <strong>de</strong><br />

rios e lagoas, associados aos brejos;<br />

caminhando para fora, passamos<br />

pelas terras <strong>de</strong> cultura e divisores <strong>de</strong><br />

água, on<strong>de</strong> se encontra o carrasco.<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

73


para a produção <strong>de</strong> farinha; do milho para a produção <strong>de</strong> canjiquinha e fubá; da cana<strong>de</strong>-açúcar<br />

para a produção <strong>de</strong> rapadura; <strong>de</strong> palhas para a produção <strong>de</strong> cestos e peneiras;<br />

da cinza do fogão para a produção <strong>de</strong> sabão <strong>de</strong> coada e limpeza dos <strong>de</strong>ntes.<br />

Algumas ativida<strong>de</strong>s típicas dos habitantes <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, como a produção<br />

das próprias roupas, não existem mais. O algodão era utilizado na produção <strong>de</strong> tecidos<br />

e fios <strong>de</strong> costura. As roupas tecidas eram tingidas nas cores vermelha (barro vermelho),<br />

preta (lama do rio) e azul (anileiro). O cessar <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s produtivas está diretamente<br />

relacionado com o processo <strong>de</strong> expropriação da terra e <strong>de</strong>mais recursos.<br />

Pela reapropriação do território dos saberes quilombolas<br />

O meio fundamental para a reprodução da vida em Brejo dos Crioulos era a terra <strong>de</strong><br />

trabalho das famílias, em gran<strong>de</strong> parte utilizada <strong>de</strong> forma comum. As cercas eram, até<br />

então, instaladas apenas nas mangas e currais <strong>de</strong> gado, nos chiqueiros <strong>de</strong> porco e em<br />

algumas roças do brejo que precisavam ser protegidas dos animais. Eram <strong>de</strong> “forquilha”<br />

<strong>de</strong> cipó e ma<strong>de</strong>ira branca, não <strong>de</strong> arame. A nova lógica do cercamento das proprieda<strong>de</strong>s<br />

privadas, <strong>de</strong>marcando terras e águas, furados e vazantes, e antigos cemitérios, passou a<br />

proibir o uso dos recursos e a celebração dos ritos, base daquele modo <strong>de</strong> vida.<br />

Antes <strong>de</strong> formar os pastos, os novos proprietários passaram pelas florestas. A <strong>de</strong>rrubada<br />

das matas foi constante, enquanto as ma<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> lei eram transformadas em carvão<br />

vegetal para as si<strong>de</strong>rurgias, tornando a aquisição da terra ainda mais lucrativa. A<br />

<strong>de</strong>rrubada das florestas e do “carrasco” significou a perda <strong>de</strong> biodiversida<strong>de</strong> e a escassez<br />

<strong>de</strong> reservas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, lenha, remédios e caça para a comunida<strong>de</strong>. A perda do “carrasco”<br />

também trouxe a perda da “solta nativa”, porção do território utilizada para a<br />

pastagem do gado à solta. Assim, gran<strong>de</strong> parte do alimento que era plantado ou criado<br />

e <strong>de</strong>mais recursos que eram extraídos daquele ambiente passaram a ser adquiridos através<br />

da compra.<br />

Para a formação dos pastos, não só a vegetação arbórea foi retirada, mas também<br />

gran<strong>de</strong> parte da vegetação ciliar que protegia as lagoas, os furados e os minadores d’água<br />

que alimentam as lagoas na época das cheias. A retirada <strong>de</strong>ssa vegetação <strong>de</strong> proteção dos<br />

cursos d’água implica em impactos na sua manutenção, no fornecimento <strong>de</strong> alimentos à<br />

fauna, no sombreamento e na proteção contra a seca, a erosão e o assoreamento, como<br />

bem relata Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, ao se referir aos “córregos <strong>de</strong> vestido”:<br />

– Essas lagoas, com lama, sempre foram assim, Seu A<strong>de</strong>lino? Sempre existiram lagoas assim,<br />

mais lamacentas?<br />

Seu A<strong>de</strong>lino – É, alguma <strong>de</strong>las era lamacenta. Agora, outras, é porque esses dono <strong>de</strong> máquina, <strong>de</strong><br />

trator, eles chega num lugar <strong>de</strong>sses, que o pessoal fala, um lugar <strong>de</strong>sses, lombado, eles chega, mete<br />

o trator aqui, <strong>de</strong>pois do trator, mete a gra<strong>de</strong>a<strong>de</strong>ira pra cozinhar aquele barro. Aí, naquela terra, fica<br />

aquela pomadinha, e, quando São Pedro manda chuva, aqui no nosso chão só <strong>de</strong>sce aquele barro<br />

que vai tudo pra lagoa ou pro córrego. Qual é a tendência? Aterrar as lagoa e aterrar o córrego.<br />

Como está aí. Outra coisa: quando eu conheci – que eu nasci aqui e hoje eu tô com 60 ano, né? –,<br />

esses córrego era tudo <strong>de</strong> vestido. De vestido, que eu digo, é assim, <strong>de</strong> árvore; árvore que eu tô<br />

74<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


dizendo é assim, nóis trata “mãe dos pau”, que tem aí <strong>de</strong>ntro, né? Inclusive as lagoa, era tudo<br />

vestido <strong>de</strong> mato. Nóis, pra ir nelas, nóis já tinha as carreira estriada pra ir nas lagoa. Que que eles<br />

fez? Eles cortou esses pau!<br />

(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />

O intenso processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento, acentuado a partir da década <strong>de</strong> 1970, ocorreu<br />

não apenas na região da caatinga mas também no cerrado, sob a forma <strong>de</strong> chapadões. A<br />

cabeceira do rio Arapuim encontra-se na região <strong>de</strong> cerrado entre São João da Ponte e<br />

Varzelândia, atualmente ocupada por pastagens e monocultura <strong>de</strong> eucalipto para a produção<br />

<strong>de</strong> carvão. O manejo efetivado por essas duas ativida<strong>de</strong>s econômicas produziu<br />

uma perda hídrica generalizada nos cerrados, interferindo no volume <strong>de</strong> várias bacias<br />

hidrográficas da região, como a do Arapuim.<br />

O capim braquiária, usado preferencialmente pelos fazen<strong>de</strong>iros para a formação <strong>de</strong><br />

largas pastagens por ser o mais resistente à seca, produz muitas raízes e inviabiliza o<br />

cultivo <strong>de</strong> quaisquer outras plantas. O uso <strong>de</strong> inseticidas e herbicidas com o objetivo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struir insetos ou outras plantas que possam prejudicar o <strong>de</strong>senvolvimento do capim<br />

atinge os cursos d’água e as terras <strong>de</strong> cultura.<br />

A barragem no rio Arapuim, na altura do núcleo Caxambu, construída sob a argumentação<br />

da irrigação, interceptou o processo <strong>de</strong> piracema dos peixes que para ali subiam,<br />

vindos do Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> na época das cheias, e que representavam garantia <strong>de</strong><br />

alimento farto para a comunida<strong>de</strong> a partir da <strong>de</strong>scida das águas, quando nas lagoas<br />

ficavam e se reproduziam. A barragem provocou também a inundação <strong>de</strong> terras antes<br />

utilizadas para plantios da comunida<strong>de</strong>, assim como a da estrada que liga Caxambu a<br />

Araruba, inviabilizando a travessia naquele trecho quando o Arapuim está cheio. Seu<br />

Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira lamenta não po<strong>de</strong>r mais cultivar arroz, <strong>de</strong>vido à construção<br />

da barragem:<br />

– E arroz, vocês plantam aqui?<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s – Aqui, não. Não plantamo mais, que as água rateou muito. Num dá mais pra<br />

plantar arroz. Alagou aí...<br />

– Por que a água “rateou”?<br />

Seu Aristi<strong>de</strong>s – Por causa que o riozinho aprofundou muito... Aprofundou, e, on<strong>de</strong> vem as<br />

enchente, que nem inclusive lá da barragem ali, quando vem as enchente, ela pega, ela recua lá pra<br />

trás, toma conta daquela lagoa do fundo da casa do meu irmão, lá. Ali fica um tempo. E o arroz<br />

num po<strong>de</strong> pegar água pra água esquentar. Que a água na lagoa, que nem ela tava ali, ela escoando<br />

sozinha ali, ela esquenta, e o arroz num produz, num floresce não. Que ele faz é morrer, né? Aí<br />

nóis num planta, já tem vários tempo que nóis num planta mais arroz aqui.<br />

(Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, 59 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 1; 18/04/04)<br />

A situação <strong>de</strong> escassez vivida atualmente pela comunida<strong>de</strong> transforma seus moradores<br />

em reserva <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra barata, à mercê <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas situadas em loca-<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

75


lida<strong>de</strong>s externas. No período <strong>de</strong> <strong>de</strong>scida das águas, iniciam-se as migrações em busca <strong>de</strong><br />

trabalho, seja na produção <strong>de</strong> carvão para si<strong>de</strong>rúrgicas, seja na produção <strong>de</strong> banana no<br />

vale do rio Ver<strong>de</strong>, seja na colheita do café no sul do estado.<br />

A safra do café chega a <strong>de</strong>slocar 11.000 pessoas do norte do estado. Em Brejo dos<br />

Crioulos, os trabalhadores começam a se <strong>de</strong>slocar no período da estiagem, quando a<br />

roça já foi cultivada. Costumam ir trabalhar na colheita do café várias vezes, até conseguirem<br />

acumular algum dinheiro. Segundo informações <strong>de</strong> um jovem <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />

que trabalha no café, ao chegar à fazenda o empregado tem <strong>de</strong> comprar as suas<br />

coisas, como fogão, colchão, gás. Essas <strong>de</strong>spesas são <strong>de</strong>scontadas no primeiro pagamento,<br />

<strong>de</strong>ste restando pouco ao trabalhador. As condições <strong>de</strong> trabalho não são boas, e quem<br />

fica <strong>de</strong>vendo algum dinheiro tem <strong>de</strong> pagar a dívida para po<strong>de</strong>r sair da fazenda <strong>de</strong> café,<br />

o que revela um tipo <strong>de</strong> escravidão por dívida.<br />

Quanto ao carvão, conta-se que a si<strong>de</strong>rúrgica Gerdau empregava cerca <strong>de</strong> 200 pessoas<br />

em seus plantios <strong>de</strong> eucalipto na região <strong>de</strong> Curvelo e Três Marias, sendo a maioria <strong>de</strong>las<br />

<strong>de</strong> Brejo dos Crioulos. Há 10 anos, quando a comunida<strong>de</strong> passou a lidar também com a<br />

colheita do café, os trabalhadores têm alternado dois anos no plantio <strong>de</strong> eucalipto com<br />

um ano na colheita do café. Localmente, a produção <strong>de</strong> carvão oriundo das poucas<br />

matas nativas que restam vem se concretizando como uma outra alternativa <strong>de</strong> sobrevivência<br />

para alguns moradores, cujo trabalho permanece explorado pelos atravessadores<br />

da mercadoria até as si<strong>de</strong>rúrgicas.<br />

– Você trabalha com carvão, não é? Faz tempo?<br />

Roberto – É assim: um período trabalha fazendo carvão, <strong>de</strong>pois trabalha fazendo forno pro<br />

próprio carvão, né? Um período tirando lenha... É assim, né? Num tem um serviço constante.<br />

Também tem serviço provisório, né? Mas os mais serviço que aparece por aqui é esse tipo <strong>de</strong><br />

serviço, serviço <strong>de</strong> carvão, que não tem outro, né?<br />

– E vocês fazem carvão para fora, para uma firma? Para quem vocês produzem o carvão?<br />

Roberto – É, entrega pra si<strong>de</strong>rúrgica, pra fora, né?<br />

– Vocês entregam o carvão produzido aqui diretamente para a si<strong>de</strong>rúrgica?<br />

Roberto – É, a gente ven<strong>de</strong> pro caminhoneiro, e o caminhoneiro ven<strong>de</strong> pra si<strong>de</strong>rúrgica.<br />

– E <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem o caminhoneiro?<br />

Roberto – Vem <strong>de</strong>... muitas vezes vem <strong>de</strong> Montes Claros, vem <strong>de</strong> Sete Lagoas... <strong>de</strong>sses lugares, né?<br />

– E por quanto vocês ven<strong>de</strong>m o metro do carvão?<br />

Roberto – Ah, agora tá valendo uns 50 reais o metro.<br />

– Eles lhe pagam 50 reais pelo metro...<br />

Roberto – É. Bruto, né? É tudo por conta sua: o carreto, o que você gastar, você tem que tirar tudo<br />

disso mesmo. [...]<br />

76<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território


– E aí o caminhoneiro vem e pega o carvão aqui, na mão <strong>de</strong> vocês?<br />

Roberto – É.<br />

– Por quanto ele ven<strong>de</strong> o carvão lá? Você tem idéia?<br />

Roberto – Eu acredito... Eles não falam o preço certo não, mas acredito que é... 50%. 50% a mais<br />

eles ven<strong>de</strong>m lá. Por exemplo, se eles foram pagar 50 aqui na roça, eles vai e ven<strong>de</strong> lá por 100, cento<br />

e pouco... Eu acredito que o caminhão ganha mais que quem faz o próprio carvão.<br />

(Roberto Rodrigues <strong>de</strong> Castro, 43 anos, morador <strong>de</strong> Araruba; 19/04/04)<br />

A busca por outras ativida<strong>de</strong>s com o intuito <strong>de</strong> garantir a própria subsistência vem<br />

cerceando a autonomia camponesa <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, traduzida na perda da liberda<strong>de</strong><br />

em <strong>de</strong>finir o tempo e o valor do próprio trabalho. Não tendo mais o controle dos<br />

meios <strong>de</strong> produção necessários à reprodução da própria existência, esse campesinato<br />

negro inicia uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência para com o capital, ao ven<strong>de</strong>r sua força <strong>de</strong><br />

trabalho e não mais controlar o processo produtivo.<br />

A expropriação passa a limitar a transmissão dos saberes seculares, nascidos da interação<br />

<strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> com o meio on<strong>de</strong> vive. Produzir a visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses saberes é<br />

buscar trazer à memória os sentidos <strong>de</strong> um tempo em que se vivia sem medo, em que a<br />

lógica do comum organizava as relações sociais e em que se liam os compassos da<br />

natureza para garantir a presença do alimento e da moradia. Reviver os saberes é reviver<br />

o território. Trazer à tona o território dos saberes <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos vem reafirmar seu<br />

território <strong>de</strong> direito enquanto “comunida<strong>de</strong> remanescente <strong>de</strong> quilombos”.<br />

artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

Referências<br />

ALMEIDA, Alfredo<br />

Wagner Berno <strong>de</strong>. Terras<br />

<strong>de</strong> preto, terras <strong>de</strong> santo,<br />

terras <strong>de</strong> índio: posse<br />

comunal e conflito.<br />

Humanida<strong>de</strong>s, Brasília, n.<br />

15, p. 42-49, 1987.<br />

CÂNDIDO, Antônio. Os<br />

parceiros do rio Bonito:<br />

estudo sobre o caipira<br />

paulista e a transformação<br />

dos seus meios <strong>de</strong> vida.<br />

8. ed. São Paulo: Duas<br />

Cida<strong>de</strong>s, 1988.<br />

COSTA, João Batista <strong>de</strong> A.<br />

Do tempo da fartura dos<br />

crioulos ao tempo <strong>de</strong> penúria<br />

dos morenos: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

através <strong>de</strong> um rito em<br />

Brejo dos Crioulos (MG).<br />

1999. Dissertação (Mestrado<br />

em Antropologia Social) –<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Brasília,<br />

Brasília, 1999.<br />

DIEGUES, Antônio<br />

Carlos. O mito mo<strong>de</strong>rno da<br />

natureza intocada. 2. ed.<br />

São Paulo: Hucitec, 1998.<br />

WOORTMANN, Klaas.<br />

Com parente não se<br />

“neguceia”: o campesinato<br />

como or<strong>de</strong>m moral.<br />

Anuário Antropológico,<br />

Brasília, n. 87, p. 11-73, 1990.<br />

Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Simone Raquel Batista Ferreira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

77


Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Graduando em Geografia pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> – UFMG<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?:<br />

reflexões sobre produção do espaço,<br />

cidadania e inclusão social na ASMARE 1<br />

1<br />

Este ensaio é parte <strong>de</strong> um trabalho maior,<br />

referente a uma pesquisa <strong>de</strong> Iniciação Científica<br />

junto ao CNPq/PIBIC, iniciada em agosto<br />

<strong>de</strong> 2004 e com previsão <strong>de</strong> término em<br />

agosto <strong>de</strong> 2006.<br />

bhz149390@terra.com.br<br />

Resumo<br />

Partindo da constatação <strong>de</strong> que a Associação<br />

dos Catadores <strong>de</strong> Papel, Papelão e Materiais<br />

Reaproveitáveis (ASMARE) tem sido consi<strong>de</strong>rada<br />

mo<strong>de</strong>lo nacional e experiência bem sucedida<br />

tanto <strong>de</strong> política social quanto daquilo que se<br />

convencionou chamar <strong>de</strong> “empreendimento<br />

sustentável”, realizamos neste ensaio uma<br />

reflexão sucinta acerca dos conteúdos teóricos e<br />

práticos que ancoram tal empreendimento. Para<br />

tanto, procuramos i<strong>de</strong>ntificar – a partir da<br />

confrontação do discurso da “promoção social”<br />

adotado pela Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte e da<br />

percepção <strong>de</strong> como a ASMARE se mostra para a<br />

socieda<strong>de</strong>, lançando mão também das<br />

observações empíricas <strong>de</strong> uma pesquisa maior<br />

por nós realizada – que noções <strong>de</strong> cidadania,<br />

participação social e inclusão social estão contidas<br />

nas suas práticas. Articulamos então tais noções<br />

aos sentidos ocultos da produção (capitalista)<br />

do espaço, a qual se inscreve, em última instância,<br />

na produção do espaço social da ASMARE e da<br />

cotidianida<strong>de</strong> dos catadores a ela associados.<br />

Palavras-chave catadores <strong>de</strong> papel; cidadania;<br />

inclusão social; produção do espaço.<br />

Abstract<br />

The Association of Collectors of Paper, Cardboard<br />

Paper and other Recyclable Materials (Associação dos<br />

Catadores <strong>de</strong> Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis<br />

– ASMARE) has been consi<strong>de</strong>red a national mo<strong>de</strong>l<br />

and a successful experience of both social politics and<br />

what has been conventionally called “sustainable<br />

enterprise”. Based on this fact, this study attempts to<br />

promote a brief reflection about the theoretical and<br />

practical foundations of such un<strong>de</strong>rtaking.<br />

Confronting the discourse of “social promotion” used<br />

by Belo Horizonte jurisdiction, how ASMARE is<br />

viewed by the society, and some empirical observation<br />

withdrawn from a bigger research previously <strong>de</strong>veloped,<br />

this paper attempts to disclose what notions of<br />

citizenship, social participation and social inclusion<br />

lie beneath such practice. A connection between these<br />

notions and some hid<strong>de</strong>n purposes in space (capitalist)<br />

production can be traced, which could also be spotted<br />

in the space production of ASMARE and in the daily<br />

routine of its members.<br />

Keywords paper collectors; citizenship; social<br />

inclusion; space production.<br />

78<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


Introdução<br />

Não são nada mo<strong>de</strong>stas as transformações e reestruturações verificadas nos últimos<br />

trinta anos nos termos mais gerais do capitalismo avançado. 2 Ele ten<strong>de</strong> a lançar seus<br />

tentáculos a espaços-tempos da vida social ainda mais longínquos, pondo e dispondo<br />

sobre aquilo que ainda escapava a tais <strong>de</strong>terminações. Trata-se <strong>de</strong> um processo la<strong>de</strong>ado<br />

<strong>de</strong> contradições, trazendo à tona novas questões e engendrando discussões <strong>de</strong> caráter<br />

tanto local como global – situando aí a problemática ambiental, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável e o acoplamento <strong>de</strong> suas contendas aos múltiplos cenários que se <strong>de</strong>lineiam<br />

na metrópole contemporânea. Originam-se daí as preocupações acerca da produção,<br />

coleta, transporte e <strong>de</strong>posição do lixo urbano, estando estas na or<strong>de</strong>m do dia visto que<br />

são vários os seus <strong>de</strong>sdobramentos.<br />

Na onda das “visões sistêmicas” e da “interdisciplinarida<strong>de</strong>” – termos proferidos, aos<br />

quatro cantos, em universida<strong>de</strong>s, ONG’s e outros centros <strong>de</strong> conhecimento no âmbito do<br />

aparelho <strong>de</strong> Estado –, tais preocupações têm sido associadas às discussões em torno da<br />

<strong>de</strong>nominada nova pobreza urbana no Brasil. Sobressaem-se daí a questão da reciclagem e<br />

os personagens que historicamente vêm se <strong>de</strong>votando a esse “trabalho”: os catadores <strong>de</strong><br />

materiais recicláveis.<br />

Não tem sido pouca a visibilida<strong>de</strong> auferida por esses sujeitos e sua ativida<strong>de</strong>, a qual,<br />

diga-se <strong>de</strong> passagem, atualmente também conta com as cores da cientificida<strong>de</strong>. Indagamos,<br />

pois, pelas motivações e pelo significado das várias mudanças no tratamento dado<br />

ao catador, observando o quadro belo-horizontino iniciado na década <strong>de</strong> 90, qual seja,<br />

a criação da ASMARE como primeira associação <strong>de</strong> catadores <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Sua<br />

existência foi viabilizada pelo intenso trabalho dos Agentes <strong>de</strong> Pastoral, então preocupados<br />

em se ocupar com a “escuta” e o “atendimento” ao catador em Belo Horizonte. 3<br />

Hodiernamente é intensa a disseminação <strong>de</strong> empreendimentos baseados na chamada<br />

“economia solidária”, sobretudo cooperativas e associações. Essas iniciativas buscam<br />

trabalhar em parcerias (sobretudo com ONG’s e associações <strong>de</strong> classe) e “cobrir” interstícios<br />

nos quais o Estado não tem comparecido ou o faz <strong>de</strong> modo precário. Em várias<br />

cida<strong>de</strong>s brasileiras, como São Paulo, Curitiba etc., elas vêm disputando lugar com os<br />

catadores e <strong>de</strong>pósitos antigos.<br />

Julgamos necessária uma primeira releitura dos eixos norteadores da consecução do<br />

projeto ASMARE que, no transcurso <strong>de</strong> seus mais <strong>de</strong> 15 anos <strong>de</strong> história, tem aparecido<br />

como apanágio <strong>de</strong> estudos em diferentes campos do saber. Embora tendo em conta que<br />

<strong>de</strong>vemos transcen<strong>de</strong>r a análise das diversas categorias <strong>de</strong> catadores, com suas vidas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

historicamente ligadas à ativida<strong>de</strong> da catação <strong>de</strong> materiais reaproveitáveis, que perambulam<br />

por Belo Horizonte, priorizaremos aqueles hoje vinculados a essa Associação.<br />

Cumpre <strong>de</strong>stacar que a ASMARE vem sendo consi<strong>de</strong>rada “mo<strong>de</strong>lo nacional” e pedra<br />

<strong>de</strong> toque das políticas sociais e ambientais da Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte. As primeiras<br />

políticas vêm primando pelo Programa <strong>de</strong> Inclusão Produtiva – que será abordado mais<br />

adiante. As últimas referem-se ao programa <strong>de</strong> coleta seletiva municipal, cujas discussões<br />

acerca <strong>de</strong> sua privatização têm causado a apreensão dos catadores associados e suscitado<br />

<strong>de</strong>bates entre o po<strong>de</strong>r público e os agentes mediadores.<br />

2<br />

Alguns autores – Harvey (2002), entre outros<br />

– po<strong>de</strong>m ajudar na reflexão acerca<br />

<strong>de</strong>sse tema.<br />

3<br />

Para <strong>de</strong>talhes sobre o trabalho <strong>de</strong> mobilização<br />

social empreendido pelos Agentes <strong>de</strong><br />

Pastoral, ver Oliveira (2001).<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

79


4<br />

Trecho transcrito do fol<strong>de</strong>r intitulado Prefeitura<br />

<strong>de</strong> Belo Horizonte e ASMARE: mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> programa social.<br />

5<br />

É preciso acatar com sérias reservas a “conquista”<br />

do direito ao trabalho pelo catador.<br />

Em que medida esse “direito” po<strong>de</strong> ser visto<br />

como conquista, uma vez que a inserção<br />

(pseudo)formalizada <strong>de</strong>ssa categoria no<br />

mundo do trabalho apenas “resignifica” os<br />

termos da sua exploração social, política e<br />

econômica?<br />

Nossa análise toma como base os termos do discurso institucional, estabelecedor dos<br />

meios pelos quais vem se promovendo o “novo olhar sobre o catador”. Preten<strong>de</strong>mos<br />

esboçar um painel inquiridor das inflexões entre o conteúdo das práticas <strong>de</strong> tais agentes e o<br />

verificado a partir da observação empírica continuamente empreendida em nossa pesquisa.<br />

Partimos da seguinte premissa: a razão <strong>de</strong> Estado, que traz tudo e todos em seu favor,<br />

trouxe os catadores para atuarem no espetáculo da catação “institucionalizada”, cujo<br />

palco é o mercado da reciclagem. Suas origens e posterior consolidação acham-se presentes<br />

nos marcos atuais do capitalismo avançado, em seu continente <strong>de</strong> transformações.<br />

Na busca do aclaramento <strong>de</strong>ssas questões, é também propósito <strong>de</strong>ste ensaio refletir<br />

acerca <strong>de</strong> algumas noções que passaram a fazer parte do discurso institucional em<br />

torno da “promoção social” em Belo Horizonte, a saber: a construção da cidadania e<br />

a inclusão social do catador <strong>de</strong> papel. Seus significados parecem ter sido vigorosamente<br />

distorcidos, acabando por ocultar as contradições e as irracionalida<strong>de</strong>s presentes na<br />

lógica reprodutiva do mercado da reciclagem no Brasil. Evita-se localizar a trajetória<br />

da ASMARE no celeiro das condicionantes estruturais orientadoras dos marcos atuais<br />

da reprodução capitalista. No discurso da administração municipal, a associação aparece<br />

como: “[...] exemplo <strong>de</strong> experiência bem-sucedida na implementação da política<br />

social do município. Des<strong>de</strong> a sua fundação [...] a ASMARE cresceu significativamente<br />

com o apoio da Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte, em uma parceira <strong>de</strong> sucesso”. 4<br />

Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> articular tais distorções às estratégias atinentes à produção<br />

capitalista do espaço, beneficiadora <strong>de</strong> alguns segmentos e interesses nem sempre evi<strong>de</strong>nciados.<br />

Numa observação mais ampla, elas se inscrevem na produção do espaço<br />

social da ASMARE, canalizando e produzindo a cotidianida<strong>de</strong> do catador <strong>de</strong> papel. São<br />

prescrições e opressões vividas <strong>de</strong> tal modo, que passam a contribuir para a fragmentação<br />

e a <strong>de</strong>sagregação das relações internas à Associação e das <strong>de</strong>sta com os catadores<br />

“autônomos” ligados aos <strong>de</strong>pósitos particulares.<br />

Somos levados a interrogar como se ancora a efetivação do “direito ao trabalho” 5 –<br />

cujo marco foi o reconhecimento dos catadores como parceiros prioritários da coleta<br />

seletiva em Belo Horizonte –, elemento caro às noções <strong>de</strong> construção da cidadania e<br />

inclusão social do catador. Para a literatura referente à temática, esse “direito” é o fulcro<br />

da sua mudança <strong>de</strong> vida. Tal entendimento abre flancos para novas reflexões sobre o<br />

mundo do trabalho, marcado na atualida<strong>de</strong> pela dramática <strong>de</strong>bilitação dos seus processos<br />

norteadores, levando ao mal-estar da “vida danificada” (ADORNO, 1993), com seus<br />

sentidos drasticamente reduzidos.<br />

A produção (capitalista) do espaço<br />

e o embotamento da cidadania plena<br />

As consi<strong>de</strong>rações que aqui trazemos à baila, embora colocadas <strong>de</strong> maneira um tanto<br />

expedita, vinculam-se àquilo que Henri Lefebvre (2003) assinala como premissa<br />

fundamental para enten<strong>de</strong>r a(s) lógica(s) que presi<strong>de</strong>(m) a produção do espaço e sua<br />

umbilical relação com o processo geral <strong>de</strong> (re)produção do capitalismo avançado: as<br />

“relações sociais <strong>de</strong> produção”. A nosso ver, esse fio condutor criaria as condições não<br />

80<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


<strong>de</strong> negação, mas <strong>de</strong> superação das abordagens que ainda tomam o espaço tão-somente<br />

como “campo” funcional e instrumental da produção em sentido restrito (e restritivo). Ou<br />

seja, a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “[...] produção <strong>de</strong> coisas e seu consumo” (LEFEBVRE, 2003, p. 21)<br />

não po<strong>de</strong> se conformar como sendo uma forma pura, cujos conteúdos se põem como<br />

<strong>de</strong>finitivos e unidimensionais: <strong>de</strong>ve incorporar a (re)produção do próprio homem na<br />

sua totalida<strong>de</strong> e das relações sociais nas quais ele se insere e <strong>de</strong>las toma partido. Nesse<br />

sentido, o autor dá relevo à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse salto qualitativo na reflexão crítica acerca<br />

do espaço: “Não se po<strong>de</strong> dizer que o espaço seja um produto como um outro, objeto<br />

ou soma <strong>de</strong> objetos, coisa ou coleção <strong>de</strong> coisas, mercadoria ou conjunto <strong>de</strong> mercadorias”<br />

(LEFEBVRE, 2003, p. 21).<br />

Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> chamar a atenção para as análises promotoras <strong>de</strong> uma leitura<br />

fragmentadora e parcial do espaço e que, por isso, dão a ele apenas a “qualida<strong>de</strong>” <strong>de</strong><br />

produto, sem pensá-lo também como produtor <strong>de</strong> práticas, <strong>de</strong> vivências e (também) <strong>de</strong><br />

constrangimentos. Enfim, são construções que <strong>de</strong>finem e são <strong>de</strong>finidas no seio da reprodução<br />

das relações sociais <strong>de</strong> produção.<br />

Justifica-se então tomarmos emprestada essa noção mais alargada <strong>de</strong> produção para<br />

enten<strong>de</strong>rmos os sentidos e a finalida<strong>de</strong> daquilo que Lefebvre (2003, p. 22) assinala no<br />

que tange à reprodução das relações sociais <strong>de</strong> produção: “[...] o espaço inteiro torna-se<br />

o lugar <strong>de</strong>ssa reprodução, aí incluídos o espaço urbano, os espaços <strong>de</strong> lazeres, os espaços<br />

ditos educativos, os da cotidianida<strong>de</strong> etc.”. Sendo ele (o espaço) mobilizado numa escala<br />

sem prece<strong>de</strong>ntes, abarcado por mediações que o tornam homogêneo e ao mesmo tempo<br />

fragmentado para dar continuida<strong>de</strong> ao processo <strong>de</strong> acumulação do capital, é mister<br />

clarificar o modo pelo qual as diferentes instâncias da vida social passam a compor o<br />

cenário <strong>de</strong> suas estratégias: entre outras, visar à emergência <strong>de</strong> novos circuitos econômicos,<br />

<strong>de</strong> novos espaços e tempos do consumo.<br />

Assim sendo, nunca é <strong>de</strong>masiado dizer que o capital tem, como condição sine qua non<br />

do seu processo reprodutivo, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> garantir as bases para o impulso contínuo<br />

<strong>de</strong> sua valorização. Fazendo-se correlatas à produção do espaço levado à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

força produtiva no jogo da acumulação própria à formação econômico-social capitalista,<br />

tais características nos permitem pensar o espaço <strong>de</strong>sfigurado e aniquilado para o<br />

pleno uso e ao mesmo tempo intensivamente formalizado e mobilizado para a troca, como<br />

“mercadoria” (DAMIANI, 2001a, p. 50).<br />

Correspon<strong>de</strong>nte a esse fenômeno é a existência imediata sendo tomada <strong>de</strong> assalto por<br />

uma instrumentalização que a torna estéril, carente <strong>de</strong> fulgor. Paira sobre ela uma luz já<br />

<strong>de</strong>sfocada, implacável, porém disposta a abarcar suas dimensões mais distantes. É o<br />

torniquete da valorização capitalista, razão <strong>de</strong> ser da economia <strong>de</strong> mercado tornada<br />

razão pura <strong>de</strong> ser da vida, colonizando o <strong>de</strong>sejo. Seu vir-a-ser transmuta-se em em si, <strong>de</strong>scaracterizando-se<br />

e, por sua vez, caracterizando via simulacro seus variados cenários,<br />

numa engenharia que a faz mera “dinâmica” posta pelos agentes sociais dirigentes e<br />

inelutavelmente canalizada e subsumida ao jogo do po<strong>de</strong>r.<br />

As prescrições contidas na racionalida<strong>de</strong> global aplicadas à produção do espaço, convertidas<br />

em abstração concreta sob a sua batuta na medida em que o capitalismo efetiva-<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

81


mente se pôs <strong>de</strong> pé na história, alteraram visceralmente as formas e os conteúdos da<br />

cida<strong>de</strong>. Nesse transcurso ergueu-se a metrópole, objeto “coisal” dos reaparelhamentos<br />

materiais e simbólicos produtores da caricatura real on<strong>de</strong> as normas reinam. Acham-se<br />

nos seus marcos as representações espaciais dominantes, reivindicadoras, numa ação<br />

concomitante <strong>de</strong> dissimulação e truculência, do estatuto do real em si mesmo, fi<strong>de</strong>digno. A<br />

(re)produção <strong>de</strong> hierarquias <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m no capitalismo global justifica a apregoada<br />

intervenção cirúrgica nesse espaço, o qual, nas palavras <strong>de</strong> Lefebvre (2003, p. 26), sendo<br />

“[...] comum às ativida<strong>de</strong>s diversas e parcelares, no quadro imposto da socieda<strong>de</strong><br />

burguesa, é um esquema do qual essa socieda<strong>de</strong> se serve para tentar constituir-se em<br />

sistema, para atingir a coerência”.<br />

Aprisionados aos <strong>de</strong>sígnios hegemônicos, espaço e vida social, conjuntamente e sem<br />

prece<strong>de</strong>nte similar, tornam-se alvo <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> obsessiva <strong>de</strong> controle. Seus ritmos e ciclos<br />

sofrem intensas pressões e opressões <strong>de</strong>ssas forças sociais que simultaneamente trazem<br />

consigo o instituinte e dissimulam suas estratégias. Elas se apresentam em diversos níveis<br />

e em dimensões “indiferentemente” imersas no movimento implacável e inexorável do<br />

“real”. É na formalização do espaço, tido como “neutro”, que se negam as qualida<strong>de</strong>s<br />

sensíveis das práticas espaciais prece<strong>de</strong>ntes, forçando sua diluição ao torná-las, na “melhor”<br />

das hipóteses, signos para o consumo. Desqualificam-se o ser e o viver nas representações<br />

operantes nesse espaço, i<strong>de</strong>alizado como fútil instância da valorização do capital.<br />

Essa lógica acredita po<strong>de</strong>r produzi-los e or<strong>de</strong>ná-los, encarcerá-los na <strong>de</strong>terminação insana<br />

da autorida<strong>de</strong>, do cálculo e das sistematizações da tecnoburocracia <strong>de</strong> Estado. Ora, o<br />

humano do homem não é algo que possa ser relegado aos confins do ilusionismo <strong>de</strong>mográfico-estatístico!<br />

Por isso, tal dinâmica não se faz presente sem uma <strong>de</strong>nsa e intricada trama <strong>de</strong> tensões,<br />

<strong>de</strong> conflitos, <strong>de</strong> lutas, <strong>de</strong> (<strong>de</strong>s)encontros e <strong>de</strong> imbricações <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m nas relações<br />

sociais. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r esses elementos como resultado e condição<br />

das contradições do espaço. A esse respeito, os dizeres <strong>de</strong> Amélia Damiani (2001a, p. 50)<br />

nos dão uma importante pista:<br />

Se não examinássemos a produção do espaço sob o enfoque <strong>de</strong> suas contradições, não<br />

recuperaríamos o sentido <strong>de</strong>ste momento na história humana e, por outro lado, sua singularida<strong>de</strong>.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista das contradições, a crise e o movimento ganham existência, sob a aparência da<br />

consolidação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado modo <strong>de</strong> interferência humano, po<strong>de</strong>roso e inconteste.<br />

Nesse sentido compreen<strong>de</strong>mos a construção da cidadania, emergindo da inconstância<br />

e do movimento que povoam a vida social, do sentimento coletivo estimulado em<br />

face do questionamento das representações hegemônicas presentes na produção do<br />

espaço. Seus possíveis vêm à tona quando se reivindicam outros rumos ou, antes, as<br />

contrapartidas ao solapamento avassalador imposto às práticas espaciais ina<strong>de</strong>quadas<br />

e/ou ameaçadoras ao ritmo cego do <strong>de</strong>senvolvimentismo; em outras palavras, quando<br />

se entra em rota <strong>de</strong> colisão contra aquilo que é tido como posto e sacramentado,<br />

colocado como unicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spolitizante ratificada pela dita (e pretensa) racionalida<strong>de</strong><br />

abstrata e or<strong>de</strong>nadora do po<strong>de</strong>r.<br />

82<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


Por isso, localizamos nas tensões e conflitos que marcam o movimento da realida<strong>de</strong><br />

social as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> soerguimento no interior <strong>de</strong>sse turbilhão <strong>de</strong> outras práticas<br />

espaciais, consciente ou inconscientemente colocando em questão a redução do vivido<br />

ao concebido <strong>de</strong>finidor da vida. Seguindo essas pistas, talvez possamos nos <strong>de</strong>parar<br />

com uma noção ampliada <strong>de</strong> cidadania, a qual “envolve o sentido que se tem do lugar e<br />

do espaço, já que se trata da materialização das relações <strong>de</strong> todas as or<strong>de</strong>ns, próximas ou<br />

distantes” (DAMIANI, 2001b, p. 50). Tal concepção esbarra (e, por isso, incomoda) nas<br />

<strong>de</strong>terminações moventes das relações sociais <strong>de</strong> produção capitalistas.<br />

Outrossim, a todo momento reduzida por um estereótipo que paradoxalmente apregoa<br />

sua ampliação, a concretização da idéia abstrata <strong>de</strong> uma noção <strong>de</strong> cidadania não<br />

mais inscrita na contestação abrangente do posto e do instituído, promovendo a redução<br />

da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exigir a manutenção e a construção <strong>de</strong> novos direitos – e não <strong>de</strong><br />

meras concessões –, concorre para o embotamento da emergência <strong>de</strong> uma cidadania plena<br />

entre nós. No nosso enten<strong>de</strong>r, esse esgarçamento <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s vem se adjetivando<br />

nos processos mais amplos nos quais se inscreve o redimensionamento dado à questão<br />

da catação e do catador.<br />

Ora, não há construção <strong>de</strong> práticas cidadãs sem apropriação 6 ou resgate das possibilida<strong>de</strong>s<br />

do seu exercício, pois “um espaço realiza-se como social quando é, <strong>de</strong> fato, apropriado”<br />

(DAMIANI, 2001a, p. 51), quando o bem-viver se realiza na concretu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sejo<br />

espontâneo, sem mediações redutoras – ao contrário do espaço do po<strong>de</strong>r, reduzido à<br />

miséria espetacular da vida social diagramada pela lógica (formal), associado à menção<br />

alienante <strong>de</strong> uma suposta autonomia individual e coletiva, mas que carrega sua face brutalmente<br />

coercitiva. Contudo, vale dizer que, embora esse contraditório movimento seja<br />

expressão da produção do espaço na sua totalida<strong>de</strong> e ao mesmo tempo esteja cada vez<br />

mais a ela articulado, “a vida contraditória inva<strong>de</strong> e perturba a racionalida<strong>de</strong> redutora<br />

imposta. Nesse momento, mesmo que residualmente existe apropriação” (DAMIANI,<br />

2001a, p. 54).<br />

Não queremos a ratificação <strong>de</strong> tais mediações: o relacionar-se com o mundo, criar,<br />

mas recriar-se nele e com ele, rebaixado <strong>de</strong> vez às convenções e aos critérios do instituído<br />

e do instituinte postos pelo pensamento único. Não nos contentamos com as conquistas<br />

do gênero humano, distorcidas e reprimidas pelas relações fundamentais <strong>de</strong> produção<br />

<strong>de</strong> mercadorias, nos sendo vendidas no belo frasco da liberda<strong>de</strong> encarceradora e produtora<br />

<strong>de</strong> uma vil passivida<strong>de</strong>. O antigo discurso acerca das chamadas “<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

sociais” sendo mitigadas e/ou eliminadas pelo movimento <strong>de</strong> “inclusão” na socieda<strong>de</strong><br />

na qual o consumo conspícuo é regra dá mostras <strong>de</strong> que já não surte mais efeito: “A nova<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> resulta do encerramento <strong>de</strong> uma longa era <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ascensão<br />

social [...]. Apesar disso, o imaginário que cimenta essa ruptura é um imaginário único,<br />

mercantilizado, enganador e manipulável” (MARTINS, 1998, p. 22).<br />

Muito do recorrente no trato com a noção <strong>de</strong> cidadania – estendido à noção <strong>de</strong> participação<br />

social, entendida como revigoradora, dando pujança às lutas pela construção<br />

daquela – sedimenta-se na forma <strong>de</strong> um preocupante “<strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> significado”<br />

(DAGNINO, 2004, p. 98). Esse processo concorre para o embotamento dos sentidos <strong>de</strong><br />

6<br />

De acordo com Lefebvre (1991, p. 30), a<br />

apropriação é o “[...] traço característico da<br />

ativida<strong>de</strong> criadora, pela qual o que vem da<br />

natureza e da necessida<strong>de</strong> se transforma em<br />

obra [...]”.<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

83


uma concepção robusta <strong>de</strong> bem público, fundada no alicerce das emancipações política<br />

e social da socieda<strong>de</strong>.<br />

Sustentamos a idéia <strong>de</strong> que os efeitos daí sobrevindos inci<strong>de</strong>m diretamente sobre as<br />

concepções que vêm norteando o projeto ASMARE, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua gênese apoiado na<br />

propalada visão inovadora das políticas <strong>de</strong> inclusão produtiva e reintegração social adotadas<br />

pela Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte. A matriz discursiva <strong>de</strong> tais políticas aparece como<br />

alvo <strong>de</strong> nossa crítica: as noções <strong>de</strong> cidadania, participação e inclusão social da população<br />

<strong>de</strong> ou em situação <strong>de</strong> rua – verticalizando nossa análise sobre o catador associado à AS-<br />

MARE. Por isso, o entendido aqui como ampla e radical <strong>de</strong>mocratização dos processos<br />

participativos com vistas ao engajamento <strong>de</strong> sujeitos sociais num campo <strong>de</strong> reconhecimento<br />

e ampliação <strong>de</strong> direitos parece per<strong>de</strong>r terreno vertiginosamente no espaço-tempo<br />

daquela Associação. É nesse flanco que ela penetra <strong>de</strong>smedidamente nas cercanias <strong>de</strong><br />

uma voraz lógica mercantil – impelida a se pintar com as tintas das organizações empresariais<br />

capitalistas –, ten<strong>de</strong>ndo a <strong>de</strong>sviar-se das supracitadas noções orientadoras <strong>de</strong> suas<br />

premissas iniciais. Desenvolveremos melhor esses argumentos mais adiante.<br />

Gênese e consolidação da ASMARE:<br />

(<strong>de</strong>s)caminhos da cidadania e da política?<br />

Tem-se a década <strong>de</strong> 90 como o locus do <strong>de</strong>senlace concomitante entre a emergência <strong>de</strong><br />

uma cultura política associada aos movimentos sociais e a chegada ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> gestões<br />

– sobretudo municipais – pautando em suas agendas <strong>de</strong> governo relações mais próximas<br />

com esses movimentos. Tal contexto viabilizou-se em Belo Horizonte a partir <strong>de</strong> 1993,<br />

quando o Partido dos Trabalhadores, na figura <strong>de</strong> Patrus Ananias, assumiu a Prefeitura,<br />

trazendo na sua pauta <strong>de</strong> gestão um processo <strong>de</strong> recondução dialógica através do incentivo<br />

à criação <strong>de</strong> espaços públicos <strong>de</strong>scentralizados <strong>de</strong> participação popular. Em tese, isso<br />

significava uma reconfiguração nos arranjos que compunham as relações entre o po<strong>de</strong>r<br />

público e a socieda<strong>de</strong> civil, caracterizando a ampliação <strong>de</strong> seu terreno com uma nova<br />

governança sob a égi<strong>de</strong> do que Sônia Maria Dias (2002, p. 62) chama <strong>de</strong> “gestões<br />

<strong>de</strong>mocráticas inovadoras”.<br />

Nesse quadro, a literatura disponível estabelece uma espécie <strong>de</strong> divisor <strong>de</strong> águas no<br />

qual as relações entre po<strong>de</strong>r público e entida<strong>de</strong>s ligadas à busca do alívio do sofrimento<br />

daqueles que vivem da rua passam a ser traçadas sob um novo prisma. Surgem vozes alar<strong>de</strong>adoras<br />

e propagadoras <strong>de</strong> um contexto sociopolítico propício, no qual se lança um<br />

“novo” olhar sobre a questão do catador. Tais gestões valer-se-iam do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “junção<br />

entre eficiência governamental, eqüida<strong>de</strong> e governança”, constituindo-se em um amplo<br />

passo para “garantir o exercício da cidadania dos grupos tradicionalmente marginalizados”<br />

(DIAS, 2002, p. 62, grifo nosso).<br />

Há <strong>de</strong> se atentar para a estratégia pendular <strong>de</strong> captura/distensão, quando conveniente,<br />

<strong>de</strong> movimentos sociais ou reivindicativos pelo po<strong>de</strong>r público. Essas estratégias transferem<br />

para a ação <strong>de</strong> Estado o caráter <strong>de</strong>miúrgico da geração e manutenção dos programas<br />

a eles <strong>de</strong>stinados – os quais ganhariam legitimida<strong>de</strong> como interlocutores junto às<br />

84<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e à socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstrando sua “eficiência e habilida<strong>de</strong>” no trato<br />

com “grupos marginalizados”.<br />

Os momentos subseqüentes são marcados pela “ampliação” das relações entre a AS-<br />

MARE e o po<strong>de</strong>r público municipal. A nosso ver, sobressaem-se cinco pilares nos quais<br />

se fundaria a construção da cidadania/inclusão social entre os catadores <strong>de</strong> papel na<br />

ASMARE: a) conquista do “direito ao trabalho” pelo catador <strong>de</strong> papel e “efetivação” <strong>de</strong><br />

sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “trabalhador”; b) po<strong>de</strong>r público e suas instituições correlatas buscando<br />

abrir, aos agentes que têm se ocupado do trabalho com a população <strong>de</strong> rua e/ou<br />

catadores <strong>de</strong> papel – e mesmo para esses últimos –, canais nos quais estes pu<strong>de</strong>ssem<br />

ouvir e se fazer ouvidos; c) criação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s para um amplo e incentivador<br />

trabalho visando ao processo organizativo dos catadores; d) criação <strong>de</strong> condições objetivas<br />

(através <strong>de</strong> diversos convênios envolvendo o po<strong>de</strong>r público e entida<strong>de</strong>s parceiras)<br />

para a capacitação profissional <strong>de</strong>sses indivíduos, visando à formação e ao fortalecimento<br />

do capital social; 7 e) afirmação, por parte dos agentes <strong>de</strong> mediação envolvidos com a<br />

“causa do catador” (po<strong>de</strong>r público e entida<strong>de</strong>s diversas), <strong>de</strong> que todo o trabalho tem<br />

primado pela efetivação da melhoria das “condições <strong>de</strong> vida” e do “reconhecimento<br />

social” do catador. Sônia Maria Dias (2002, p. 69), em seu trabalho sobre o que ela<br />

consi<strong>de</strong>ra a “construção da cidadania” na Associação, corrobora tais pilares:<br />

Já vimos [...] as dificulda<strong>de</strong>s dos associados em relação à adoção do universo <strong>de</strong> regras e <strong>de</strong>veres<br />

da ASMARE e dos seus espaços <strong>de</strong> trabalho, mas vimos também como a linguagem e a prática da<br />

participação, do compartilhamento, da resolução <strong>de</strong> conflitos através da troca <strong>de</strong> idéias vêm<br />

paulatinamente criando novas sociabilida<strong>de</strong>s entre os catadores, possibilitando o exercício <strong>de</strong> uma<br />

prática cidadã, compreendida aqui no âmbito do estabelecimento <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> co-responsabilida<strong>de</strong><br />

que a gestão do projeto <strong>de</strong> coleta seletiva em parceria supõe.<br />

Em contrapartida, Jacques Rancière (1996, p. 368), em seu seminal ensaio acerca das<br />

formas entonadoras dos termos que perfazem a relação entre Estado e socieda<strong>de</strong> civil,<br />

chegando aos redutos mais triviais da vida social, faz a “crítica do discurso atualmente<br />

dominante que i<strong>de</strong>ntifica a racionalida<strong>de</strong> política ao consenso e o consenso ao princípio<br />

mesmo da <strong>de</strong>mocracia”. Segundo o autor, o discurso entremeador da racionalida<strong>de</strong><br />

política assinalada institui formas consensuais como sendo, por excelência, as condições<br />

celebradoras da razão, em oposição aos mo<strong>de</strong>los instaurados sob o “arcaísmo” e a<br />

“irracionalida<strong>de</strong>” no embate político. O dissenso como base discursiva e ebulidora dos<br />

imobilismos passa a ser entendido como <strong>de</strong>savença e, por isso, pernicioso à política, mas<br />

passível <strong>de</strong> ser superado por outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>. Nesse caso, a política seria<br />

uma prática <strong>de</strong>scolada do campo das relações sociais – movidas, entre outros aspectos,<br />

pelo <strong>de</strong>sejo e pelo conflito –, <strong>de</strong>vendo situar-se numa plataforma objetiva e sem paixões<br />

<strong>de</strong>sestruturadoras do seu curso “normal”. Rancière (1996, p. 368) alerta: “o que chamam<br />

<strong>de</strong> consenso é na verda<strong>de</strong> o esquecimento do modo <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> próprio à política”,<br />

significando, ao contrário do que se preten<strong>de</strong>, “um certo retorno do irracional”.<br />

A teoria política <strong>de</strong>mocrática que dá o tom da prática política assinalada assenta-se,<br />

assim, no seu contrário: a participação e sua aplicação propostas escamoteiam o seu<br />

7<br />

O capital social, segundo Higgins (2005, p. 3),<br />

são “todos os elementos <strong>de</strong> uma estrutura<br />

social que cumpram a função <strong>de</strong> recurso para<br />

que os indivíduos atinjam a satisfação <strong>de</strong> seus<br />

interesses [...]”.<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

85


8<br />

ASMARE – Associação dos Catadores <strong>de</strong><br />

Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis.<br />

ASMARE: há <strong>de</strong>z anos reciclando vidas. Belo<br />

Horizonte, [2000?]. Edição especial comemorativa,<br />

n.p.<br />

9<br />

GONÇALVES, José Aparecido. Editorial.<br />

ASMARE: há <strong>de</strong>z anos reciclando vidas, Belo<br />

Horizonte, [2000?]. Edição especial comemorativa,<br />

n.p.<br />

José Aparecido Gonçalves foi, à época, administrador<br />

geral da ASMARE.<br />

fundamento truculento. Ela traz também o aqui e agora do cenário sociopolítico brasileiro<br />

como o ápice da construção e da manifestação da cultura política. É possível então não<br />

reconhecer a participação social e a construção da cidadania mostrando-se como horrendas<br />

caricaturas das formas, as quais, po<strong>de</strong>-se dizer, já soam como anteriores? Eis aí a chave<br />

para <strong>de</strong>cifrar os <strong>de</strong>svios contidos na cantilena enfadonha representada pelo catador que<br />

passa a perseguir a condição <strong>de</strong> “cidadão”.<br />

No interior da ASMARE, os catadores reagem <strong>de</strong> forma ambivalente à realida<strong>de</strong> ali<br />

presente, traduzida numa incipiente trajetória <strong>de</strong> mobilização esfumando-se em meio às<br />

exigências disciplinares interiorizadas no processo <strong>de</strong> trabalho. Situa-se aí o imobilismo<br />

que passa a freqüentar a vida cotidiana <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>les. São homens e mulheres<br />

revelando por meio <strong>de</strong> gestos e palavras ambíguas sua própria incerteza. Isso torna-se<br />

patente diante do misto <strong>de</strong> revolta contida e aceitação tácita dos atrasos nas gratificações<br />

ou em face da dramática intensificação da precarieda<strong>de</strong> das condições <strong>de</strong> seu trabalho –<br />

como o aumento dos casos <strong>de</strong> atropelamentos e a inexistência <strong>de</strong> condições mínimas <strong>de</strong><br />

salubrida<strong>de</strong> nos galpões. Questionado no tocante à falta <strong>de</strong> uma organização interna que<br />

leve suas diversas inquietu<strong>de</strong>s para o conhecimento da administração, um catador assim<br />

nos respon<strong>de</strong>u: “é difícil ‘ajuntar’ todo mundo; não há união, o pessoal só quer sair para a ‘panha’<br />

e ganhar dinheiro”.<br />

Deveríamos então <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> encarar com ceticismo os sentimentos aflorados entre<br />

os catadores como sendo <strong>de</strong>correntes da constatação das contradições do espaço cada<br />

vez mais avolumadas naquela Associação? Mais ainda: a iminência <strong>de</strong> emergir em meio<br />

aos associados uma consciência crítica capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma mobilização interna<br />

em prol, se não da superação, da discussão séria acerca dos processos <strong>de</strong> trabalho lá<br />

presentes é possível? Todavia, o discurso fundamentador do trabalho <strong>de</strong>senvolvido na<br />

ASMARE articula-se em torno <strong>de</strong> “uma resposta que vem das ruas”, 8 <strong>de</strong> um processo<br />

<strong>de</strong> inserção iniciado na década <strong>de</strong> 90 e que veio a se efetivar enquanto “novo mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> política pública”, 9 e apresenta para a socieda<strong>de</strong> um catador comprometido com a<br />

transformação <strong>de</strong> si mesmo e também <strong>de</strong> sua categoria através das lutas sociais. O<br />

Movimento Nacional dos Catadores <strong>de</strong> Recicláveis (MNCR) seria o movimento social<br />

a encarnar tais lutas.<br />

Quanto ao “novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> política pública”, situemos, <strong>de</strong> modo diferente das interpretações<br />

anteriormente assinaladas, os catadores em duas dimensões paradoxais, mas<br />

concomitantes e imbricadas. A primeira é o longo processo, mediado inicialmente pela<br />

Pastoral <strong>de</strong> Rua, <strong>de</strong> aproximação e mobilização social junto aos catadores, criando-se<br />

então a ASMARE. Posteriormente, tem-se a parceria com o po<strong>de</strong>r público municipal que<br />

culminaria com a política pública que dá corpo ao seu projeto. A segunda é toda essa<br />

lógica imersa nos termos do implacável ajuste estrutural aplicado ao Brasil dos tempos<br />

neoliberais – impondo novos or<strong>de</strong>namentos para as funções e <strong>de</strong>sígnios do Estado,<br />

incidindo, mormente, sobre as noções <strong>de</strong> público e privado. Tais dimensões ajudam-nos<br />

a pensar, <strong>de</strong>certo sem riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, sobre os (<strong>de</strong>s)encontros das noções <strong>de</strong> cidadania<br />

na formação social brasileira e as práticas daí <strong>de</strong>rivadas.<br />

86<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


Não nos esqueçamos das ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> lutas trazidas pelos diversos movimentos sociais<br />

em fins da década <strong>de</strong> 70. Sua cena, sobressaída das periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s,<br />

vem carregada <strong>de</strong> uma promissora consciência, fadigada <strong>de</strong> carregar o pesado fardo das<br />

diferentes qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> privação <strong>de</strong> direitos, presentes, não raro, apenas na letra da lei.<br />

Sumamente atrelada à dinâmica que bafejou tais lutas está a noção <strong>de</strong> participação social, a<br />

qual ganha terreno junto aos ditos movimentos sociais que puseram acento nas relações<br />

Estado/socieda<strong>de</strong> civil então vigentes. A participação social ativa <strong>de</strong>sses setores constituiu-se<br />

na espinha dorsal do novo “projeto participativo e <strong>de</strong>mocratizante” (DAGNINO,<br />

2004, p. 102) brasileiro. Infelizmente, é sob a égi<strong>de</strong> do projeto político neoliberal pousado<br />

por aqui no início da década <strong>de</strong> 90 que as noções tanto <strong>de</strong> cidadania quanto <strong>de</strong><br />

participação experimentam novamente uma imensa redução <strong>de</strong> seus sentidos. Coinci<strong>de</strong>ntemente<br />

ou não, esse é o momento tratado como sendo <strong>de</strong> articulação e fortalecimento<br />

dos catadores <strong>de</strong> papel em Belo Horizonte, <strong>de</strong>nunciando sua histórica condição<br />

ao po<strong>de</strong>r público e requerendo sua inserção enquanto trabalhadores legítimos da catação<br />

<strong>de</strong> materiais recicláveis.<br />

O caminho que veio se abrindo trouxe o esboroamento da potência transformadora<br />

dos movimentos sociais e <strong>de</strong>mais setores da socieda<strong>de</strong> civil, bem como <strong>de</strong> sua atuação<br />

em nome do reconhecimento e da construção <strong>de</strong> novos direitos. Seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>strutivo<br />

opera através <strong>de</strong> uma feroz (mas também sutil) campanha <strong>de</strong> mascaramento dos significados<br />

vastos agregados à noção <strong>de</strong> cidadania, recaindo também nas noções <strong>de</strong> participação<br />

social e socieda<strong>de</strong> civil, o que gera conseqüências para o entendimento mais geral acerca<br />

do trabalho <strong>de</strong>senvolvido na ASMARE.<br />

Nesse esteio, o projeto neoliberal e o projeto participativo brasileiros estão imersos<br />

numa “confluência perversa” (DAGNINO, 2004, p. 97). Não obstante a essência daquele<br />

se apresentar antagônica em relação a este, verifica-se um acoplamento instrumental entre<br />

ambos. Destarte, o mais assustador seria que tais projetos “requerem uma socieda<strong>de</strong><br />

civil ativa e propositiva” (Ibi<strong>de</strong>m, p. 97) cuja “cultura política” caminharia por formas <strong>de</strong><br />

sociabilida<strong>de</strong> nas quais a construção das noções <strong>de</strong> cidadania no imaginário social estaria<br />

tomada por um processo sutil, intransparente e altamente nocivo à instauração da <strong>de</strong>mocracia<br />

radical como práxis cotidiana.<br />

Assim, a noção <strong>de</strong> cidadania então disseminada no imaginário social mostra-se por<br />

dois ângulos. De um lado, ela recobra os traços típicos da sua concepção liberal clássica,<br />

calcados numa versão que coloca os interesses individuais como sobrepostos aos <strong>de</strong>mais.<br />

Ela se vale <strong>de</strong> uma visão utilitarista e apregoa a re<strong>de</strong>nção individual a partir <strong>de</strong> uma<br />

inserção competitiva na lógica <strong>de</strong> mercado. Por outro lado, ela se mostra inovadora,<br />

trazendo “elementos novos das configurações sociais e políticas da contemporaneida<strong>de</strong>”<br />

(CARVALHO, 2002, p. 117).<br />

Nessa noção <strong>de</strong> cidadania mostra-se estarrecedora a ausência <strong>de</strong> conteúdos <strong>de</strong> politização<br />

no seio das discussões e do caráter <strong>de</strong> construção coletiva outrora vindos à tona.<br />

As energias utópicas vão sendo substituídas pelo utopismo da conquista individual, no<br />

salve-se quem pu<strong>de</strong>r do mercado. O outro, anteriormente visto sob a intersubjetivida<strong>de</strong> construída<br />

nas árduas lutas coletivas, torna-se “parceiro” no jogo <strong>de</strong> soma zero da agressivi-<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

87


10<br />

A <strong>de</strong>generescência do tempo livre entre os<br />

catadores da ASMARE – on<strong>de</strong> a construção<br />

<strong>de</strong> si mesmos como agentes políticos <strong>de</strong> transformação<br />

social po<strong>de</strong>ria se dar – remete à<br />

alusão feita por Marx em “Salário, preço e<br />

lucro” (1998, p. 121), na qual “o tempo é o<br />

campo do <strong>de</strong>senvolvimento humano. O homem<br />

que não dispõe <strong>de</strong> nenhum tempo livre,<br />

cuja vida [...] está toda ela absorvida pelo seu<br />

trabalho para o capitalista [...], é uma simples<br />

máquina, fisicamente <strong>de</strong>stroçada e espiritualmente<br />

animalizada, para produzir riqueza<br />

alheia”.<br />

11<br />

“O novo perfil da classe trabalhadora é o <strong>de</strong><br />

exclusões cíclicas cada vez mais <strong>de</strong>moradas,<br />

mais espaçadas, do mercado <strong>de</strong> trabalho”<br />

(MARTINS, 2002, p. 29).<br />

da<strong>de</strong> utilitarista do vale tudo, buscando a todo custo sua entrada no mercado – e reduzido<br />

à condição coisificante <strong>de</strong> mero produtor e consumidor.<br />

A ASMARE, conforme temos notado, não está a salvo <strong>de</strong>sse círculo vicioso. Ao contrário,<br />

a instauração em altas doses das práticas competitivas, calcadas numa matriz<br />

discursiva exortadora do aumento da produtivida<strong>de</strong>, leva à dissipação das solidarieda<strong>de</strong>s<br />

orgânicas e do possível soerguimento das coesões políticas. Afinal, como pensar em<br />

articulação política e estratégias <strong>de</strong> luta após 12 horas <strong>de</strong> trabalho por dia? 10 Tal sujeição<br />

contribui para o obscurecimento da percepção, pelo catador, dos sentidos socialmente<br />

construídos das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s diversas, que acabam sendo interpretadas como fruto da<br />

diferenciação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhos e competências individuais.<br />

Outra dimensão da noção <strong>de</strong> cidadania disseminada é a da socieda<strong>de</strong> sendo exortada<br />

à benemerência instituída e estreita <strong>de</strong> cunho assistencialista e pela “responsabilida<strong>de</strong><br />

moral” (DAGNINO, 2004, p. 106). Tal dimensão configura-se no caminho da “sustentabilida<strong>de</strong>”,<br />

cujo calçamento se <strong>de</strong>ve construir, entre outras formas, pela revisão <strong>de</strong> seus<br />

hábitos <strong>de</strong> consumo, com sua solução passando pelos produtos “ecoeficientes”. Há também<br />

a pirotecnia em torno da “benfazeja” responsabilida<strong>de</strong> social empresarial – que<br />

aparece sendo muito bem executada pela re<strong>de</strong> <strong>de</strong> parceiros da ASMARE.<br />

Na esfera do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Estado, enten<strong>de</strong>-se (e resume-se) como cidadania jogar o<br />

fardo da dívida social para a socieda<strong>de</strong>. Veja-se a implementação <strong>de</strong> diversos e mirabolantes<br />

programas governamentais <strong>de</strong> “geração <strong>de</strong> emprego e renda” e <strong>de</strong> incentivo ao<br />

empreen<strong>de</strong>dorismo e à qualificação profissional. Eles nos aproximam do que vem sendo<br />

entendido como inclusão social.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer rapidamente que o arcabouço teórico e conceitual orientador das intervenções<br />

do po<strong>de</strong>r público parte <strong>de</strong> uma constatação puramente objetiva, tanto em<br />

relação ao que seria a chamada exclusão quanto a seu suposto movimento <strong>de</strong> inclusão<br />

<strong>de</strong> grupos sociais. Sem tocar nos mecanismos e processos geradores até mesmo do<br />

porquê <strong>de</strong> se falar em exclusão em nossa socieda<strong>de</strong>, incluir, então, seria oferecer aos<br />

indivíduos receptores dos “programas inclu<strong>de</strong>ntes” um maior alcance, ainda que precário,<br />

no âmbito do existente, proporcionando-lhes novas expectativas por <strong>de</strong>ntro da<br />

“socieda<strong>de</strong> que os exclui” (MARTINS, 2002, p. 38), realida<strong>de</strong> a qual eles não raro vêm<br />

enxergando como representação máxima do bem-estar. Tudo isso, vale lembrar, numa<br />

forma econômico-social na qual as oportunida<strong>de</strong>s, ao contrário <strong>de</strong> outrora, dispõem-se<br />

a um número cada vez mais reduzido <strong>de</strong> “privilegiados”. O excluído, o privado <strong>de</strong> si<br />

mesmo e das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> traçar seus próprios caminhos, dificilmente encontra<br />

brechas para se “incluir” naquilo que, paradoxalmente, se impõe <strong>de</strong>terministicamente<br />

diante <strong>de</strong>le. 11<br />

Efetiva-se a cegueira: o trabalho (abstrato) como direito civil básico transfigura-se em<br />

<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> cada um, se é que não se quer incorrer no risco <strong>de</strong> atolar-se no “fracasso”<br />

individual. Ou, ainda, os direitos sociais, “[...] consi<strong>de</strong>rado[s] no passado recente como<br />

indicador[es] <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, torna[m]-se símbolo[s] <strong>de</strong> ‘atraso’, um ‘anacronismo’<br />

que bloqueia o potencial mo<strong>de</strong>rnizante do mercado” (DAGNINO, 2004, p. 106).<br />

88<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


Percebemos um direcionamento semelhante nos programas sociais implementados<br />

pela Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte, através da Secretaria <strong>de</strong> Assistência Social, do qual o<br />

Programa <strong>de</strong> Inclusão Produtiva surge como exemplo bastante límpido. Nascido na<br />

primeira administração <strong>de</strong> Fernando Pimentel (2001-2004), ele é tido como um projeto<br />

inovador na construção da cidadania e na promoção social por meio do acesso ao<br />

mundo do trabalho. Ele parte da premissa <strong>de</strong> que a assistência social na cida<strong>de</strong> está<br />

fortemente ancorada na inclusão social e econômica, mediante a geração <strong>de</strong> trabalho e<br />

renda para os jovens e os adultos nela inseridos. Seu propósito seria:<br />

viabilizar a equiparação <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso ao mundo do trabalho e ensejar formas <strong>de</strong><br />

os usuários <strong>de</strong>senvolverem sua capacida<strong>de</strong> produtiva, tornando-se sujeitos econômicos capazes<br />

<strong>de</strong> garantir sua sobrevivência, transitando da situação <strong>de</strong> beneficiário para a <strong>de</strong> trabalhador [...]. 12<br />

No caso da ASMARE, po<strong>de</strong>mos resumir essas “políticas públicas” ao trabalho com uma<br />

noção <strong>de</strong> cidadania que traz para a cena um catador <strong>de</strong> papel em vias <strong>de</strong> se tornar<br />

“sujeito social”. Seria sob o jugo <strong>de</strong> tais políticas que se po<strong>de</strong>ria construir no catador<br />

uma personalida<strong>de</strong> reivindicativa? Haveria nele a semente fertilizada da percepção das<br />

contradições do modo <strong>de</strong> produção incidindo na sua condição social, gerando então a<br />

conscientização crescente <strong>de</strong> seus direitos, numa luta pela abertura <strong>de</strong> canais <strong>de</strong> diálogo e<br />

participação outrora débeis ou mesmo inexistentes com o po<strong>de</strong>r público? Ratifica-se uma<br />

espécie <strong>de</strong> “transcendência” quando se legitima o trabalho da ASMARE: esta parece habitar<br />

um vazio histórico e i<strong>de</strong>ológico. Esquece-se que ela tem sido, em si e para si, forma e<br />

conteúdo das próprias relações sociais que se expressam no interior da socieda<strong>de</strong>. Em<br />

suma, a cidadania converte-se no enclausuramento da política, visto que a linha que se localiza<br />

entre o seu crescente fértil e a truculência da racionalida<strong>de</strong> política fabricada pelo consenso<br />

redutor é extremamente tênue. Jacques Rancière (1996, p. 367, grifo nosso) chama<br />

isso um dos paradoxos dos <strong>de</strong>bates políticos e teóricos na contemporaneida<strong>de</strong>:<br />

[...] no momento mesmo em que essa filosofia da necessida<strong>de</strong> se impõe quase que por toda<br />

parte como a última palavra em sabedoria política, vemos por outro lado triunfar na filosofia<br />

política e nas ciências sociais um discurso que glorifica o retorno do ator, do indivíduo que<br />

discute, que contrata, que age. No momento em que nos dizem que os dados são inequívocos<br />

e que as escolhas se impõem por si mesmas, celebra-se ruidosamente o retorno do ator racional<br />

à cena social.<br />

O que se configura então como participação social revela, por sua vez, a estranha<br />

dissonância contida na lógica do “quanto menos coisas há para discutir, mais se celebra<br />

a ética da discussão, da razão comunicativa, como fundamento da política” (RANCIÈRE,<br />

1996, p. 367). Compõem tal fenômeno boas doses <strong>de</strong> sectarismo. Uma prática política<br />

ocultada sob o manto <strong>de</strong> dialogicida<strong>de</strong> impõe-se cabalmente e <strong>de</strong>termina as prerrogativas<br />

últimas do que é bom e mau para a socieda<strong>de</strong>, infligindo-as às possibilida<strong>de</strong>s do<br />

dissenso criativo.<br />

Esse retrato <strong>de</strong>sbotado insiste em não se dissolver; ao contrário, ganha força e forma pela<br />

ausência da separação entre aquilo que é público e o que é privado no Brasil (OLIVEIRA,<br />

12<br />

INCLUSÃO PRODUTIVA. Belo Horizonte:<br />

Secretaria Municipal <strong>de</strong> Assistência Social, jun.<br />

2003, n.p., grifos nossos.<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

89


1994, p. 44). A privatização das relações sociais outorga-se como prática cotidiana <strong>de</strong>ixada <strong>de</strong><br />

fora da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> questionamentos pela socieda<strong>de</strong>, ocultando assim as raízes condutoras das<br />

diferentes dimensões das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais. A indiferença entre público e privado contribui,<br />

entre outras coisas, para a legitimação do discurso da cidadania e da <strong>de</strong>mocracia nas<br />

organizações – discurso que se <strong>de</strong>sdobra e passa a prescrever as práticas e relações <strong>de</strong> trabalho<br />

no interior da ASMARE.<br />

Com o eixo das relações sociais <strong>de</strong>sviado da mobilização e da construção coletivas<br />

através dos diversos mecanismos <strong>de</strong> coerção e <strong>de</strong> imposição <strong>de</strong> condutas, per<strong>de</strong>-se o<br />

espaço público enquanto campo <strong>de</strong> possíveis. Isso significa a sacramentação da anulação<br />

do outro como interlocutor ativo e <strong>de</strong> sua palavra enquanto ingrediente essencial à política.<br />

A privatização das relações sociais institui o consenso redutor pela “projeção <strong>de</strong> critérios<br />

<strong>de</strong> valida<strong>de</strong> que não fazem referência a uma esfera compartilhada <strong>de</strong> valores e significações<br />

[...]”, on<strong>de</strong> “[...] os homens [do po<strong>de</strong>r] ten<strong>de</strong>rão, para impô-los no mundo, a fazer<br />

uso da violência” (TELLES, 1990, p. 33).<br />

Os catadores vão então (sobre)vivendo e ajudando a reiterar as contradições e o discurso<br />

apregoador do seu “reconhecimento” enquanto trabalhadores dignos. A perspicácia<br />

para “produzir” o material reciclável imprescindível aos ditames da proliferação dos<br />

capitais do mercado da reciclagem dissimula o conflito por eles vivido no cerne <strong>de</strong> sua<br />

ativida<strong>de</strong> – conflito dividido entre a euforia da relativa tranqüilida<strong>de</strong> para o exercício da<br />

catação, sem a presença das “operações limpeza” da polícia militar e contando com a<br />

permissivida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>, e a hercúlea dureza, a insalubrida<strong>de</strong>, a cobrança e a incerteza<br />

proporcionadas por seu trabalho.<br />

A impetuosida<strong>de</strong> anestesiada vivida por esses indivíduos leva-os a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista os fundamentos<br />

<strong>de</strong> sua própria condição. Com sua vida entregue nas “mãos <strong>de</strong> Deus” e nas<br />

garras diabólicas do mercado, parece restar ao catador seguir em frente numa realida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre e para sempre assim, contendo a torpeza do cotidiano da catação, mas po<strong>de</strong>ndo<br />

lhe oferecer algum tipo <strong>de</strong> saída – tanto maior quanto também seja gran<strong>de</strong> o seu mérito<br />

pessoal. Embora existam reações contra o “inevitável”, <strong>de</strong>ve-se trabalhar – e duro! –,<br />

não havendo a percepção <strong>de</strong> que as “or<strong>de</strong>nações práticas da vida, que se apresentam<br />

como se favorecessem ao homem, concorrem, na economia do lucro, para atrofiar o<br />

que é humano” (ADORNO, 1993, p. 34).<br />

São reações percebidas através da saída <strong>de</strong> catadores que não concordaram com as<br />

normatizações (entre outras, as exigências veladas <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>) presentes durante<br />

toda a existência da ASMARE. Internamente, percebemos as diferenças individuais <strong>de</strong><br />

produtivida<strong>de</strong> semanal ou mensal ligadas não somente à <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> física, ao uso <strong>de</strong><br />

drogas e/ou bebidas alcoólicas, mas também às manifestações <strong>de</strong> discordância (via <strong>de</strong><br />

regra individuais) com o ritmo <strong>de</strong> trabalho exigido – por um capitalista típico e seus<br />

“capitães do mato”, ela seria chamada <strong>de</strong> “corpo mole”, “vagabundagem” etc. O malestar<br />

do catador da ASMARE sai <strong>de</strong> sua latência e manifesta-se nos furtos <strong>de</strong> material e na<br />

<strong>de</strong>silusão com a sua própria capacida<strong>de</strong> organizativa.<br />

90<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Conforme se percebe, a lógica que presi<strong>de</strong> a produção do espaço num âmbito mais<br />

geral passa a circunscrever e, portanto, subsumir o espaço social da ASMARE. Os interesses<br />

mercantis batem à porta e trazem consigo suas contradições e irracionalida<strong>de</strong>s. Seus<br />

efeitos chegam, assim, ao conjunto das relações existentes na Associação, ferindo <strong>de</strong><br />

morte seu projeto inicial.<br />

Eis que as possibilida<strong>de</strong>s para a construção das alterida<strong>de</strong>s, do conflito na prática<br />

política e da reciprocida<strong>de</strong> libertadora, elementos basilares da <strong>de</strong>mocracia radical e <strong>de</strong><br />

consolidação do exercício da cidadania ativa, vêm sendo, ao que parece, <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong><br />

interesse. Já para o gran<strong>de</strong> público são apresentadas, <strong>de</strong> forma efusiva e estetizada, “a<br />

cidadania que vem das ruas” e “uma vitoriosa experiência <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>”. Esse cenário,<br />

quando transposto ao rés do chão da ASMARE, apresenta, ao contrário, a <strong>de</strong>squalificação<br />

do outro – capitaneada por relações crescentemente dicotômicas entre a administração<br />

e os <strong>de</strong>mais catadores – e uma espécie <strong>de</strong> “política do medo” cultivada pela<br />

necessária aceitação <strong>de</strong> “premissas invioláveis” – ou o caminho em direção à porta da<br />

rua! – passando a vigorar como instrumentos <strong>de</strong> controle social recorrentes nas relações<br />

internas à Associação. A construção coletiva ce<strong>de</strong> lugar à reificação <strong>de</strong> tais relações, à<br />

<strong>de</strong>spolitização, ao estranhamento e à conseqüente busca pelas saídas individuais. Estas se<br />

constituiriam enquanto “estratégias <strong>de</strong> sobrevivência” num ambiente on<strong>de</strong>, “contrariadamente”,<br />

optou-se pela premência cega e surda <strong>de</strong> índices <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>.<br />

Começam então a se verificar os “<strong>de</strong>slizes” <strong>de</strong> alguns catadores. A título <strong>de</strong> exemplo,<br />

foi por nós presenciado o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> uma doação que chegou à ASMARE e que seria<br />

(pelo menos em tese) contabilizada como soma coletiva na Associação. A catadora que<br />

se incumbiu <strong>de</strong> recebê-la, ao invés <strong>de</strong> repassá-la para o box coletivo, <strong>de</strong>sviou o material<br />

para o seu box individual. Tal atitu<strong>de</strong> não visaria a garantir sua produtivida<strong>de</strong> semanal?<br />

Dessa forma, a anterior orientação da ASMARE como espaço público on<strong>de</strong> a politização<br />

e o estatuto reivindicativo vigorassem como linhas <strong>de</strong> força no seu interior reduz-se<br />

a práticas sociais semelhantes àquelas das organizações privadas – fazendo <strong>de</strong>la mera<br />

reprodutora e catalisadora da sanha mercadológica vigente. A privatização das relações<br />

sociais internas à Associação gera ali verda<strong>de</strong>iras ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> contradições: saem a publicização,<br />

a horizontalida<strong>de</strong> e a crescente eliminação das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, experimentando-se<br />

o retorno do discurso competente (CHAUÍ, 1981), que olha o outro <strong>de</strong> cima e por<br />

ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>. O estrago completa-se com a construção <strong>de</strong> estratégias anti-hegemônicas via<br />

articulação coletiva ce<strong>de</strong>ndo lugar às meras complementarida<strong>de</strong>s instrumentais, alimentadoras<br />

do mercado da reciclagem, e ajudando a acirrar, ao invés <strong>de</strong> extirpá-lo, o conflito entre<br />

capital e trabalho na ASMARE.<br />

artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

91


Referências<br />

ADORNO, Theodor W.<br />

Minima moralia: reflexões<br />

a partir da vida danificada.<br />

São Paulo: Ática, 1993.<br />

CARVALHO, José Murilo<br />

<strong>de</strong>. A cidadania na<br />

encruzilhada. In:<br />

BIGNOTTO, Newton<br />

(Org.). Pensar a república.<br />

Belo Horizonte: Ed.<br />

UFMG, 2002. p. 109-128.<br />

CHAUÍ, Marilena <strong>de</strong> Souza.<br />

Cultura e <strong>de</strong>mocracia: o<br />

discurso competente e<br />

outras falas. São Paulo:<br />

Mo<strong>de</strong>rna, 1981. 220 p.<br />

DAGNINO, Evelina.<br />

Socieda<strong>de</strong> civil,<br />

participação e cidadania:<br />

<strong>de</strong> que estamos falando?<br />

In: MATO, Daniel<br />

(Coord.). Políticas <strong>de</strong><br />

ciudadania y sociedad civil en<br />

tiempos <strong>de</strong> globalización.<br />

Caracas: FACES/<br />

Universidad Central <strong>de</strong><br />

Venezuela, 2004. p. 95-110.<br />

DAMIANI, Amélia. As<br />

contradições do espaço:<br />

da lógica (formal) à<br />

(lógica) dialética, a<br />

propósito do espaço. In:<br />

DAMIANI, Amélia Luísa;<br />

CARLOS, Ana Fani<br />

Alessandri; SEABRA, O<strong>de</strong>tte<br />

Carvalho <strong>de</strong> Lima (Org.). O<br />

espaço no fim <strong>de</strong> século: a<br />

nova rarida<strong>de</strong>. São Paulo:<br />

Contexto, 2001a. p. 48-61.<br />

DAMIANI, Amélia. A<br />

geografia e a construção<br />

da cidadania. In: CARLOS,<br />

Ana Fani (Org.). A<br />

geografia na sala <strong>de</strong> aula. São<br />

Paulo: Contexto, 2001b.<br />

p. 50-61.<br />

DIAS, Sônia Maria.<br />

Construindo a cidadania:<br />

avanços e limites do<br />

projeto <strong>de</strong> coleta seletiva<br />

em parceria com a<br />

ASMARE. 2002. 193 p.<br />

Dissertação (Mestrado em<br />

Geografia e Organização<br />

Humana do Espaço) –<br />

Instituto <strong>de</strong> Geociências,<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Belo<br />

Horizonte, 2002.<br />

HARVEY, David. Condição<br />

pós-mo<strong>de</strong>rna: uma pesquisa<br />

sobre as origens da<br />

mudança cultural. São<br />

Paulo: Loyola, 2002.<br />

HIGGINS, Silvio Salej.<br />

Precisamos <strong>de</strong> capital<br />

social?: sim, mas<br />

socializando o capital.<br />

Em Tese, Florianópolis, v. 2,<br />

n. 1(3), p. 1-21, jan./jul. 2005.<br />

LEFEBVRE, Henri. A vida<br />

cotidiana no mundo mo<strong>de</strong>rno.<br />

São Paulo: Ática, 1991.<br />

LEFEBVRE, Henri. Espaço<br />

e política. Tradução <strong>de</strong><br />

Margarida Maria <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> e Sérgio Martins.<br />

[S.l.: s.n.], 2003. Inédito.<br />

Título original: Espace et<br />

politique (Paris: Anthropos,<br />

[1972]).<br />

MARTINS, José <strong>de</strong> Souza.<br />

A exclusão social e a nova<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Petrópolis:<br />

Vozes, 1998.<br />

MARTINS, José <strong>de</strong> Souza.<br />

A socieda<strong>de</strong> vista do abismo:<br />

novos estudos sobre<br />

exclusão, pobreza e<br />

classes sociais. Petrópolis:<br />

Vozes, 2002.<br />

MARX, Karl. Salário, preço<br />

e lucro. In: GIANNOTI,<br />

José Arthur (Org.). Marx.<br />

São Paulo: Nova Cultural,<br />

1998. (Coleção Os<br />

Pensadores).<br />

OLIVEIRA, Francisco. Da<br />

dádiva aos direitos: a<br />

dialética da cidadania.<br />

<strong>Revista</strong> Brasileira <strong>de</strong> Ciências<br />

Sociais, São Paulo, ano 9,<br />

n. 25, p. 42-44, jun. 1994.<br />

OLIVEIRA, Maria Vany<br />

<strong>de</strong>. Entre ruas, lembranças e<br />

palavras: a trajetória dos<br />

catadores <strong>de</strong> papel em<br />

Belo Horizonte. 2001.<br />

330 p. Dissertação<br />

(Mestrado em<br />

Sociologia: Gestão das<br />

cida<strong>de</strong>s) – Programa <strong>de</strong><br />

Pós-graduação em<br />

Sociologia, Pontifícia<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Católica <strong>de</strong><br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Belo<br />

Horizonte, 2001.<br />

RANCIÈRE, Jacques. O<br />

dissenso. In: BIGNOTTO,<br />

Newton; NOVAES,<br />

Adauto (Org.). A crise da<br />

razão. São Paulo: Cia. das<br />

Letras, 1996. p. 367-382.<br />

TELLES, Vera S. Espaço<br />

público e espaço<br />

privado na constituição<br />

do social: notas sobre o<br />

pensamento <strong>de</strong> Hannah<br />

Arendt. Tempo Social, São<br />

Paulo, v. 2, n. 1, p. 23-48,<br />

1. sem. 1990.<br />

92<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE


A importância das escalas espaciais para<br />

compreensão do processo <strong>de</strong> globalização<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Mestrando em Organização do Espaço pelo Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia – <strong>IGC</strong>/UFMG<br />

Resumo<br />

Este artigo apresenta uma reflexão e uma<br />

análise do espaço em suas diferentes escalas:<br />

global, do lugar e do território. Aborda-se o<br />

global como o espaço das transformações<br />

mundiais, da profusão das técnicas respaldadas<br />

pela ciência, da mais-valia tornada mundial e da<br />

confluência dos momentos. Quanto ao lugar, é<br />

visto como o espaço da convergência e da<br />

divergência <strong>de</strong> duas racionalida<strong>de</strong>s: uma vinda<br />

<strong>de</strong> fora, do global, que impõe uma lógica<br />

padronizada da circulação <strong>de</strong> mercadorias; outra<br />

que emerge do local, à procura <strong>de</strong> uma outra<br />

racionalida<strong>de</strong> propiciada pela proximida<strong>de</strong>, pela<br />

vizinhança e pela solidarieda<strong>de</strong>. Já o território é<br />

visto como espaço <strong>de</strong> apropriação simbólica e<br />

da dominação política e econômica, mediação<br />

necessária entre o global e o local. Por fim,<br />

<strong>de</strong>staca-se a importância <strong>de</strong> uma análise que<br />

associe essas escalas espaciais, entendidas como<br />

processos sociais, e melhor sustente teoricamente<br />

as práticas sociais.<br />

Abstract<br />

This article presents a reflection and an analysis of<br />

the space in its different scales: global, from the place<br />

and from the territory. The global one is approached<br />

as the space of the world-wi<strong>de</strong> transformations, the<br />

profusion of the techniques endorsed by science, the<br />

become world-wi<strong>de</strong> more-value and the confluence of<br />

the moments. In regard to the place, it is seen as the<br />

space of convergence and divergence of two rationalities:<br />

one which comes from outsi<strong>de</strong>, from the global scale,<br />

and imposes a standardized logic on the circulation of<br />

merchandises; another one that emerges from the place<br />

and seeks another rationality given by proximity,<br />

neighborhood and solidarity. Concerning the territory,<br />

it is seen as a space of symbolic appropriation and<br />

economic and political domination, being it a necessary<br />

mediation between the global and the place. Finally, it<br />

emphasizes the importance of an analysis that associates<br />

these spatial scales, while taken for social processes, and<br />

better theoretically supports the social practices.<br />

Palavras-chave espaço; globalização; lugar;<br />

território; escalas.<br />

Keywords space; globalization; place;<br />

territory; scales.<br />

tma<strong>de</strong>brito@gmail.com<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

93


1<br />

As escalas não se resumem em formas geométricas,<br />

recortes matemáticos. Neste texto,<br />

elas são compreendidas como processos<br />

sociais <strong>de</strong> apropriação e dominação do espaço.<br />

Na seção “A perspectiva transescalar” esse<br />

tema será exposto com maior clareza.<br />

Introdução<br />

Os escritos dos marxistas “ortodoxos” e “estruturalistas” do século XX, da Escola <strong>de</strong><br />

Sociologia Urbana <strong>de</strong> Chicago e também da Geografia tradicional pautavam-se, em sua<br />

gran<strong>de</strong> maioria, por pensar o espaço como um ente “natural”, uma base – receptáculo –<br />

das relações sociais <strong>de</strong> (re)produção, uma superfície sem características próprias<br />

(GOTTDIENER, 1993). Para muitos, as mudanças no mundo do capital ocorreram e<br />

ocorrem como um processo puramente temporal, <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações espaciais,<br />

marcadas pela indiferenciação geográfica.<br />

Segundo Gottdiener (1993), o (re)surgimento do espaço na teoria social crítica é atribuído,<br />

sobretudo, a Henri Lefebvre. Conforme esse autor, o espaço aparece como um<br />

ente ontológico, com sua própria origem e formação epistemológica, como um produto<br />

e produtor das relações sociais. Desse modo, o espaço <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser apenas o espaço<br />

físico, neutro, palco das ações, para ser, também, parte das forças sociais <strong>de</strong> (re)produção.<br />

Nesse sentido, o espaço, ente político e i<strong>de</strong>ológico inserido numa estratégia consciente<br />

<strong>de</strong> perpetuação das atuais relações sociais <strong>de</strong> produção, representa algo mais que reflexo<br />

das relações socioprodutivas. Ele nos aponta para uma esfera da “produção” do mundo<br />

contemporâneo, para além do “chão das fábricas” e da relação capital/trabalho contida<br />

no processo industrial. Tal produção abarca a totalida<strong>de</strong> das relações sociais <strong>de</strong><br />

(re)produção “perpetuada” na vida cotidiana (LEFEBVRE, 1976).<br />

Explica-se, assim, a pertinência do espaço para a reflexão sobre o mundo contemporâneo.<br />

Haja vista a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conter o mediato e o imediato, uma or<strong>de</strong>m próxima<br />

e uma or<strong>de</strong>m distante, o local e o mundial (CARLOS, 1999), a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos<br />

revelar as contradições da contemporaneida<strong>de</strong>.<br />

Com o objetivo <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a importância do espaço para a compreensão das transformações<br />

mundiais no final do século XX e início do século XXI, o presente ensaio<br />

propõe, portanto, estabelecer um diálogo entre algumas contribuições contemporâneas<br />

acerca <strong>de</strong>ssas mudanças, tendo como fio condutor o espaço e suas escalas. 1 Para isso,<br />

parte <strong>de</strong> idéias referentes ao processo mundial em transformação, baseando-se nos conceitos<br />

<strong>de</strong> globalização, <strong>de</strong> Milton Santos e Harvey, e na compressão tempo-espaço, <strong>de</strong><br />

Massey. A partir <strong>de</strong> então, cria-se um elo, uma ponte entre o processo <strong>de</strong> globalização e<br />

suas peculiarida<strong>de</strong>s locais. Concentra-se um esforço maior no esclarecimento do conceito<br />

<strong>de</strong> lugar, tendo em vista sua importância tanto para a reflexão sobre o fenômeno<br />

mundial quanto para a ação prática <strong>de</strong> transformação social. É do lugar que se percebe<br />

o mundo e do mundo que se retorna ao lugar para a realização prática e cotidiana das<br />

transformações sociais (SANTOS, 1997).<br />

A<strong>de</strong>mais, para o aprofundamento da reflexão proposta, não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a<br />

importância do território, espaço necessário entre a globalização – o universal – e o<br />

particular – o lugar. Para tanto, usam-se, como referência, Milton Santos (1994) e Haesbaert<br />

(2004). Por fim, consi<strong>de</strong>ra-se o texto <strong>de</strong> Vainer (2002), As escalas do po<strong>de</strong>r e o po<strong>de</strong>r das<br />

escalas: o que po<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r local?, fundamental para o entendimento da (inter)<strong>de</strong>pendência<br />

escalar (espacial) numa reflexão condizente com a atualida<strong>de</strong> e para balizar uma prática<br />

social emancipatória.<br />

94<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


Os mitos e as verda<strong>de</strong>s sobre a globalização<br />

Indubitavelmente, o capitalismo não sobrevive sem os seus ajustes espaciais. Harvey (2004)<br />

afirma que o capitalismo constrói espaços a sua maneira, produzindo paisagens distintas<br />

conforme interesses <strong>de</strong> transporte, <strong>de</strong> infra-estrutura, <strong>de</strong> informação e <strong>de</strong> produção do<br />

conhecimento, entre outros, com o intuito <strong>de</strong> acelerar o processo <strong>de</strong> acumulação.<br />

Neste atual momento histórico-espacial diferenciado, o processo capitalista <strong>de</strong> produção<br />

assume novos patamares. Embora ainda nebuloso, esse novo cenário parece marcado<br />

por uma aceleração do tempo, enraizado no que Marx <strong>de</strong>nominou “aniquilação do<br />

espaço pelo tempo”, e que hoje alcançou um novo estágio, ou seja, a compressão tanto<br />

do tempo quanto do espaço – numa palavra, a compressão “tempo-espaço” (MASSEY,<br />

2000). Nesse contexto, criaram-se expressões, mitos que são dados como regras, como<br />

fatos. Assim, termos como “al<strong>de</strong>ia global”, “morte do Estado”, “flexibilida<strong>de</strong>” e “<strong>de</strong>sterritorialização”<br />

aparecem, a todo instante, veiculados pela mídia internacional como<br />

verda<strong>de</strong>s inquestionáveis.<br />

Segundo Massey (2000, p. 178), “a compressão <strong>de</strong> tempo-espaço refere-se ao movimento<br />

e à comunicação através do espaço, à extensão geográfica das relações sociais e a<br />

nossa experiência <strong>de</strong> tudo isso”. A aceleração do tempo, via informação em re<strong>de</strong>, causa<br />

a compressão e o encurtamento do espaço (distância) para apenas poucos proprietários<br />

<strong>de</strong> multinacionais ou agentes financeiros internacionais localizados nas gran<strong>de</strong>s metrópoles.<br />

Estes transformam o encurtamento <strong>de</strong> distância em vantagens econômicas e po<strong>de</strong>r,<br />

com vistas ao aumento da circulação num período menor <strong>de</strong> tempo. A compressão<br />

tempo-espaço carece, portanto, <strong>de</strong> diferenciação social e, mais do que isso, <strong>de</strong> uma<br />

reflexão mais conceitual (MASSEY, 2000).<br />

A compressão <strong>de</strong> tempo-espaço, porém, não ocorre para todos nem em todos os<br />

lugares. Alguns grupos sociais fazem parte <strong>de</strong>sse movimento sem, entretanto, serem responsáveis<br />

por seu processo. Como exemplo po<strong>de</strong>m-se citar os migrantes ilegais que<br />

tentam passar pela fronteira entre México e E.U.A, os refugiados <strong>de</strong> El Salvador e da<br />

Guatemala, bem como os refugiados cubanos em Miami. A maioria <strong>de</strong>les percorre<br />

gran<strong>de</strong>s distâncias, num curto período <strong>de</strong> tempo, em busca <strong>de</strong> vida melhor. Na verda<strong>de</strong>,<br />

são eles alvos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> “glamourização” da socieda<strong>de</strong> norte-americana, via mídia<br />

internacional. Outros só recebem a compressão. Encontram-se nessa situação pessoas<br />

comuns que, vivendo nas periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e em países sub<strong>de</strong>senvolvidos,<br />

se alimentam num fast-food chinês ou no Mac Donald´s e, posteriormente, assistem a<br />

<strong>de</strong>senhos japoneses em sua televisão coreana, sem se dar conta da sua participação no<br />

processo <strong>de</strong> “globalização”. Existem ainda aqueles que colaboram com o processo e, ao<br />

mesmo tempo, são reféns <strong>de</strong>le, como os moradores das favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro que<br />

influenciam a cultura mundial através da música e pouco conhecem do próprio Rio.<br />

Esses exemplos trazem à tona o quão complexo é esse movimento e quão diferente é a<br />

sua dinâmica. O grau em que as pessoas são colocadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse movimento é altamente<br />

complexo e diversificado.<br />

Entretanto, não se trata somente <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong>sigual da população<br />

no espaço ou <strong>de</strong> quem controla ou regula esses movimentos. Segundo Massey (2000,<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

95


p. 180), “trata-se do fato <strong>de</strong> que a mobilida<strong>de</strong> e o controle <strong>de</strong> alguns po<strong>de</strong>m ativamente<br />

enfraquecer outras pessoas. [...] A compressão <strong>de</strong> tempo-espaço <strong>de</strong> alguns po<strong>de</strong> solapar<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outros”. Isso po<strong>de</strong> ser visto por pequenas atitu<strong>de</strong>s. Assim, o simples fato <strong>de</strong><br />

uma pessoa sair <strong>de</strong> casa no seu próprio carro po<strong>de</strong> “ajudar” a diminuir o investimento<br />

em transporte público e até mesmo a aumentar o preço <strong>de</strong>ste, dada a diminuição da<br />

<strong>de</strong>manda, ou, ainda, o aumento do número <strong>de</strong> vôos que cruzam os oceanos po<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

alguma maneira, aumentar o isolamento das pequenas ilhas localizadas entre os continentes.<br />

Exemplos que simbolizam essa lógica perversa não faltam. Por conseguinte, fica<br />

cada vez mais claro que o movimento e a comunicação <strong>de</strong> alguns afetam e, conseqüentemente,<br />

dificultam a vida da maioria da população mais <strong>de</strong>sfavorecida (MASSEY, 2000).<br />

Massey não <strong>de</strong>svenda o processo <strong>de</strong> globalização em suas nuanças, nem é essa sua<br />

intenção. Ela foca somente o fenômeno <strong>de</strong> compressão tempo-espaço, que é fundamental<br />

para <strong>de</strong>smascarar um dos mitos da contemporaneida<strong>de</strong>, mas não todos.<br />

A reflexão <strong>de</strong> Milton Santos (2003) a esse respeito aproxima-se da <strong>de</strong> Doreen Massey,<br />

quando indaga sobre a fábula da “al<strong>de</strong>ia global”. Para o autor, a difusão cada vez maior<br />

<strong>de</strong> notícias não informa realmente as pessoas. O mito do encurtamento <strong>de</strong> distâncias – o<br />

tempo-espaço contraído – só é acessível a uma parcela privilegiada da população; o<br />

mundo, na verda<strong>de</strong>, não está ao alcance <strong>de</strong> todos. O mercado dito global, homogêneo,<br />

está, na verda<strong>de</strong>, aumentando a fragmentação espacial e social entre as pessoas.<br />

Milton Santos, contudo, avança nas contradições contemporâneas, quando discute a<br />

questão do Estado. Alguns autores insistem na morte do Estado quando a regulação<br />

financeira passa a ser feita pelo próprio mercado, cabendo ao governo a austerida<strong>de</strong><br />

fiscal e a estruturação burocrática (privatização), criando-se um clima favorável para<br />

maior circulação do capital. No entanto, Milton Santos acredita que o que ocorre é o<br />

fortalecimento do Estado justamente para aten<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>mandas do mercado. Nessas<br />

circunstâncias, os meios <strong>de</strong> consumo coletivo ficam à <strong>de</strong>riva, isto é, a cargo da iniciativa<br />

privada. Harvey (2004) corrobora essa premissa, ao afirmar que o Estado tem se tornado<br />

mais intervencionista, penetrando, com maior rigor, nas questões referentes às políticas<br />

econômicas. Citam-se, como exemplo, o status e o po<strong>de</strong>r que os ministérios da fazenda<br />

adquirem nos governos, sobretudo, dos países “periféricos”.<br />

Há, também, a “crença” na “flexibilização” das relações sociais <strong>de</strong> produção, outro<br />

mito da contemporaneida<strong>de</strong>. O avanço da tecnologia fez diminuir o uso <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>obra<br />

nas indústrias <strong>de</strong> ponta, substituindo “gente por máquina” e terceirizando algumas<br />

etapas do processo produtivo. Contudo, <strong>de</strong> outro ponto <strong>de</strong> vista, a “tecnificação” do<br />

processo produtivo nunca <strong>de</strong>ixou tão “inflexíveis” as relações sociais <strong>de</strong> produção. As<br />

normas técnicas <strong>de</strong> produção exigem, cada vez mais, trabalho específico, pre<strong>de</strong>terminado,<br />

que nada tem <strong>de</strong> flexível. As normas impostas enrijecem as relações sociais <strong>de</strong> produção<br />

e impe<strong>de</strong>m a criativida<strong>de</strong> (SANTOS, 2000).<br />

Outro “mito” que se <strong>de</strong>staca na atualida<strong>de</strong> é o da <strong>de</strong>sterritorialização das pessoas e do<br />

processo produtivo. Conforme assinala Harvey (2004), o processo produtivo sofreu<br />

algumas mudanças, <strong>de</strong>ntre as quais, a dispersão e a fragmentação da produção e o aumento<br />

da divisão e da especialização do trabalho. Se, por um lado, esse fato acarretou<br />

96<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


diminuição do espaço <strong>de</strong> produção na se<strong>de</strong> da indústria, por outro, aumentou o po<strong>de</strong>r<br />

político das indústrias (multinacionais) através da centralização das <strong>de</strong>cisões. Mesmo o<br />

processo produtivo que per<strong>de</strong>u espaço in loco aumentou, em muito, sua ação pelo resto<br />

do mundo. A possível <strong>de</strong>sterritorialização no ambiente industrial se fez concomitantemente<br />

com uma (re)territorialização em outros espaços a partir da própria produção<br />

(divisão do processo produtivo), mas, sobremodo, a partir da circulação <strong>de</strong> produtos<br />

(mercadorias). Quanto ao processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização das pessoas, ele só ocorre<br />

mediante o seu par inerente, a (re)territorialização, uma vez que os seres humanos sempre<br />

vivem num processo <strong>de</strong> relação e i<strong>de</strong>ntificação com outros seres humanos e também<br />

com o espaço em que vivem. É da natureza humana reconhecer-se no território; portanto,<br />

toda <strong>de</strong>sterritorialização num lugar significa uma (re)territorialização em outro ponto.<br />

Apesar dos “mitos” criados, o capitalismo caminha para uma nova fase, muito embora<br />

não haja uma revolução transformadora no modo <strong>de</strong> produção ou nas relações sociais<br />

(HARVEY, 2004). O que há é uma mundialização do capital favorecido por uma<br />

política perversa que se apóia no progresso das técnicas, da ciência e da informação<br />

(SANTOS, 2000, 2003).<br />

Existem alguns fatores que ajudam a compreen<strong>de</strong>r a dinâmica da globalização. Milton<br />

Santos (2003, p. 24) <strong>de</strong>staca “a unicida<strong>de</strong> da técnica, a convergência dos momentos, a<br />

cognoscibilida<strong>de</strong> do planeta e a existência <strong>de</strong> um motor único da história, representado<br />

pela mais-valia universal”.<br />

No que se refere às técnicas – conjuntos <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> que o homem dispõe para a<br />

realização do trabalho, num dado momento e espaço da vida política, econômica e<br />

social –, nos dias atuais elas indicam qual o trabalho a fazer. O trabalho torna-se normatizado<br />

pela técnica: é ela que autoriza qual trabalho a fazer e como fazê-lo.<br />

A cada transformação das técnicas, novas etapas da história tornam-se possíveis. Elas<br />

são como sistemas que transportam uma história em <strong>de</strong>terminada época. O que as caracteriza<br />

no momento é a informação, a comunicação on line através dos microcomputadores<br />

conectados em re<strong>de</strong>s mundiais. A técnica da informação po<strong>de</strong>rá permitir que muitas das<br />

técnicas existentes se conheçam e comuniquem-se, propiciando uma unicida<strong>de</strong> dos tempos,<br />

uma simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acontecimentos, uma unida<strong>de</strong> do sistema técnico.<br />

A respeito da convergência dos momentos, ela não acontece apenas por uma “coincidência”<br />

<strong>de</strong> tempos, <strong>de</strong> marcação <strong>de</strong> horas, mas, sobretudo, pela convergência <strong>de</strong> mundos<br />

vividos. “A percepção do tempo real não só quer dizer que a hora dos relógios é a<br />

mesma, mas que po<strong>de</strong>mos usar esses relógios múltiplos <strong>de</strong> maneira uniforme” (SAN-<br />

TOS, 2003, p. 27-28). Neste momento, é possível conhecer o acontecer do outro em<br />

qualquer parte do globo; é essa a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, ou seja, a unicida<strong>de</strong> dos tempos.<br />

Respaldada pelo progresso da ciência e da técnica, a convergência dos momentos<br />

possibilita que os gran<strong>de</strong>s agentes financeiros permaneçam “conectados” 24 horas por<br />

dia: enquanto a bolsa <strong>de</strong> Tóquio encerra o expediente, a bolsa <strong>de</strong> Nova Iorque inicia o<br />

seu; e, assim, o mercado funciona ininterruptamente.<br />

Mas o motor único que liga o planeta, permitindo ações globais via mercado financeiro<br />

e tecnologias <strong>de</strong> informação (inovações), é a mais-valia que se tornou mundial. A<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

97


produção capitalista atingiu todos os cantos do ecúmeno, privatizando praticamente todo<br />

o setor produtivo, agora nas mãos das gran<strong>de</strong>s multinacionais. O motor único acontece<br />

através da mundialização do comércio, das mercadorias, do dinheiro, do consumo, da<br />

informação, das dívidas e dos financiamentos. Esse conjunto se inter-relaciona e sustenta<br />

a prática capitalista num sistema mundial.<br />

Com efeito, a mundialização do comércio abre caminho para o conhecimento profundo<br />

do planeta. Eis a contradição do atual sistema. Somente as gran<strong>de</strong>s empresas e os<br />

agentes financeiros (bancos) se beneficiam <strong>de</strong>sse mercado dito homogêneo, pois a compressão<br />

tempo-espaço, a unida<strong>de</strong> da técnica, a convergência dos momentos e o motor<br />

único acabam reafirmando e até mesmo aumentando as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e territoriais.<br />

Na verda<strong>de</strong>, a globalização abre caminho para o monopólio da informação (Microsoft),<br />

para a guerra fiscal entre lugares, para o consumo <strong>de</strong>senfreado, para a ausência<br />

da política, para a falta <strong>de</strong> perspectiva emancipatória e para a sobreposição da competição<br />

à solidarieda<strong>de</strong> (SANTOS, 2003), além <strong>de</strong> para o agravamento dos problemas ambientais<br />

e dos conflitos étnicos e religiosos.<br />

2<br />

Ao se referir aos <strong>de</strong>senvolvimentos geográficos<br />

<strong>de</strong>siguais, Harvey propõe um conceito<br />

que substitua o <strong>de</strong> globalização e traga, em<br />

seu conteúdo, dois elementos: a mudança <strong>de</strong><br />

escalas e a produção <strong>de</strong> diferenças geográficas.<br />

Para saber mais sobre o assunto, consultar<br />

Harvey (2004).<br />

O lugar: espaço singular <strong>de</strong> convergência e<br />

divergência <strong>de</strong> vetores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

Com a aceleração dos processos regidos e apropriados pelos atores hegemônicos e<br />

propiciados pela técnica, pela ciência e pela informação, a fragmentação do espaço tornase<br />

mais veloz. Tem-se a impressão <strong>de</strong> que, a cada momento, a totalida<strong>de</strong> se cin<strong>de</strong> para,<br />

mais à frente, aglutinar-se <strong>de</strong> novo e novamente se cindir, formando um círculo vicioso.<br />

Aliás, não se distinguem unida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong>, a não ser quando se percebe que a unida<strong>de</strong><br />

é o planeta e a diversida<strong>de</strong> é o lugar. O mundo transforma-se ao mesmo tempo que os<br />

lugares, porque é dos lugares que partem as transformações. São os eventos que operam<br />

essa ligação lugar/mundo. O lugar po<strong>de</strong> ser caracterizado por sua funcionalida<strong>de</strong> em<br />

relação ao mundo, mas, se é dos lugares que partem as mudanças, os lugares po<strong>de</strong>m ser,<br />

também, o espaço do acontecer solidário, o lugar compulsório das ativida<strong>de</strong>s humanas<br />

(SANTOS, 2005).<br />

Conforme Massey (2000), a insegurança e o impacto <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado da globalização<br />

causam uma vulnerabilida<strong>de</strong> dos sentimentos e da própria vida cotidiana, transformando<br />

o lugar em espaço <strong>de</strong> refúgio, <strong>de</strong> fixi<strong>de</strong>z e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, em resposta à flui<strong>de</strong>z do<br />

mundo contemporâneo. Esse ponto <strong>de</strong> vista, porém, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado reacionário<br />

no sentido <strong>de</strong> o lugar per<strong>de</strong>r a sua conexão com o mundo, numa evasão da vida real.<br />

“Enquanto o tempo é visto como movimento e progresso, o espaço ou o lugar é equiparado<br />

a imobilismo e reação” (MASSEY, 2000, p. 181).<br />

Posto isso, reafirma-se a importância <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o lugar, numa tentativa <strong>de</strong> escapar<br />

das visões “reacionárias”, mantendo a idéia <strong>de</strong> diferença geográfica ou <strong>de</strong>, como<br />

sugere Harvey (2004), 2 <strong>de</strong>senvolvimentos geográficos <strong>de</strong>siguais em termos <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong><br />

e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> móveis.<br />

Segundo Massey (2000), a noção “reacionária” <strong>de</strong> lugar contém duas premissas básicas.<br />

Uma <strong>de</strong>las é a <strong>de</strong> que os lugares têm i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s singulares, imóveis, e a outra é<br />

98<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


a <strong>de</strong> que eles têm uma história introvertida, voltada para <strong>de</strong>ntro, uma história coesa e<br />

homogênea, fruto <strong>de</strong> uma tradição cultural “parada” no tempo. Essa concepção levaria<br />

a um traçado limitante entre os lugares, uma distinção entre interior e exterior.<br />

Entretanto os lugares, cada vez mais, “acontecem” na sua relação com o mundo. Não<br />

importa esboçar suas fronteiras e sim, enten<strong>de</strong>r seu movimento diante do mundo.<br />

Além disso, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s nos lugares não são coesas nem estáticas: estão em constante<br />

movimento e conflito, num processo <strong>de</strong> convergência e divergência <strong>de</strong> pessoas em<br />

suas relações com os lugares.<br />

A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, por sua vez, não é fruto apenas da relação individual da pessoa com o<br />

lugar. Por mais diversificada que seja, é também uma construção social apreendida através<br />

da percepção e da apropriação simbólica e material do espaço. I<strong>de</strong>ntificar-se é sempre<br />

um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com outra pessoa em algum lugar, uma busca por<br />

relacionamentos e alterida<strong>de</strong>s que se dão no encontro ou no <strong>de</strong>sencontro; por isso a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é sempre um processo relacional entre pessoas e lugares, isto é, um processo<br />

social (HAESBAERT, 1999).<br />

Uma coisa é certa: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não é dada <strong>de</strong> forma clara, sempre é um processo em<br />

curso. No processo <strong>de</strong> globalização, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são cada vez mais <strong>de</strong>scontínuas, fragmentadas<br />

e até mesmo sobrepostas a todo evento, formando, a cada instante, novas<br />

formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação propiciadas pelo confronto, gerando o conflito, ou pelo diálogo,<br />

daí ocorrendo a comunicação e a solidarieda<strong>de</strong>.<br />

A<strong>de</strong>mais, é preciso frisar que o sujeito assume várias i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s em momentos diferentes<br />

da sua trajetória <strong>de</strong> vida. I<strong>de</strong>ntificar-se é estar sempre em movimento no espaço.<br />

Segundo Hall (2004, p. 13), “<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós há i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s contraditórias, empurrando<br />

em diferentes direções, <strong>de</strong> tal modo que nossas i<strong>de</strong>ntificações estão sendo continuamente<br />

<strong>de</strong>slocadas” e colocadas em “xeque”.<br />

Afinal, a visão romântica <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> tradicional, fortemente estruturada no lugar,<br />

per<strong>de</strong> sentido à medida que os lugares, na contemporaneida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m conter várias<br />

comunida<strong>de</strong>s. Nesse sentido, o lugar é um híbrido, palco <strong>de</strong> transformação constante, <strong>de</strong><br />

convergência e divergência incessantes <strong>de</strong> múltiplas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

Pensando-se, pois, o lugar como o espaço relacional da política, da economia, da<br />

socieda<strong>de</strong> e da cultura, po<strong>de</strong>-se aprofundar o entendimento do lugar como um espaço<br />

on<strong>de</strong> se encontra e entrelaça-se uma multiplicida<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> relações socioespaciais.<br />

O lugar, com sua estrutura própria, estaria recebendo, constantemente, ações que partem<br />

do exterior e com elas interagindo. Segundo Santos (1997, p. 273), “cada lugar é, ao<br />

mesmo tempo, objeto <strong>de</strong> uma razão global e <strong>de</strong> uma razão local, convivendo dialeticamente”.<br />

Os lugares são, contudo, alvos <strong>de</strong> uma lógica global, funcionalida<strong>de</strong>s do todo e,<br />

ao mesmo tempo, contêm uma lógica local, uma reação à globalização.<br />

Na visão <strong>de</strong> Milton Santos (2005), os espaços da globalização ou os lugares apresentam<br />

cargas diferentes <strong>de</strong> conteúdos técnicos, <strong>de</strong> informação, <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong><br />

que se <strong>de</strong>finem por suas <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>s. A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> técnica é dada pelas diversas<br />

maneiras <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s exercidas no lugar, tendo, num extremo, uma natureza quase que<br />

intocada, quase sem presença técnica, e, no outro extremo, as tecnologias <strong>de</strong> ponta dis-<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

99


3<br />

Segundo Milton Santos (2003), não se po<strong>de</strong><br />

confundir pobreza com miséria. A miséria é a<br />

privação total, é a entrega, a <strong>de</strong>rrota perante<br />

a vida. Já os pobres são carentes <strong>de</strong> toda<br />

or<strong>de</strong>m, mas não se entregam: lutam, tomam<br />

relativa consciência do mundo, articulam-se,<br />

buscam um futuro possível.<br />

postas a aten<strong>de</strong>r as intenções daqueles que as produzem (empresas multinacionais). Quanto<br />

à <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> informacional, é concebida por uma racionalida<strong>de</strong> externa que se choca<br />

com o local, que é objeto <strong>de</strong> apropriação por alguns atores privilegiados. A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

comunicacional, porém, po<strong>de</strong> ser vista como a práxis intersubjetiva, o tempo plural do<br />

acontecer compartilhado, da co-habitação, da solidarieda<strong>de</strong> e da proximida<strong>de</strong>. É a partir<br />

da proximida<strong>de</strong> que se enten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> social e sua intrínseca relação com a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

comunicacional.<br />

A questão da proximida<strong>de</strong> é importante para a compreensão do lugar e da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

social. A noção <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve referir-se apenas às distâncias <strong>de</strong> comércio ou<br />

<strong>de</strong> produção, mas, sobretudo, à contigüida<strong>de</strong> física entre pessoas numa mesma extensão<br />

do espaço, num mesmo conjunto <strong>de</strong> pontos contínuos, vivendo juntas, co-habitando o<br />

mesmo lugar. Por isso, a dimensão do lugar torna-se menos importante. O interessante é<br />

captar as relações não só econômicas mas culturais e sociais <strong>de</strong> vizinhança, compreen<strong>de</strong>r<br />

a totalida<strong>de</strong> das relações acontecidas no extenso contínuo, não importando o tamanho<br />

do lugar e sim, suas relações socioespaciais.<br />

Assim, o lugar da or<strong>de</strong>m precisa e da ação condicionada bem como o lugar da contigüida<strong>de</strong>,<br />

da co-habitação, da vizinhança, da proximida<strong>de</strong> e da comunicação encontram<br />

seu núcleo nas gran<strong>de</strong>s metrópoles, on<strong>de</strong> há profusão <strong>de</strong> vários vetores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

tanto os representados pela lógica hegemônica quanto os que a ela se opõem. A<br />

cida<strong>de</strong> é, portanto, o gran<strong>de</strong> lugar da mistura <strong>de</strong> interpretações e ações no mundo.<br />

A cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, local da diversida<strong>de</strong> social, palco da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os capitais e<br />

<strong>de</strong> todos os tipos <strong>de</strong> trabalho, atrai a população, em sua maioria pobre, advinda <strong>de</strong><br />

todos os cantos do mundo. Essa presença aumenta a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> socioespacial, que se<br />

manifesta na produção <strong>de</strong> bairros, <strong>de</strong> favelas, às vezes tão contrastantes em sua dinâmica<br />

local. Isso favorece a ampliação das formas <strong>de</strong> divisão do trabalho e, contraditoriamente,<br />

possibilita as vias <strong>de</strong> interação entre elas.<br />

Nesse cenário encontram-se, também, os migrantes que trazem suas heranças e suas<br />

memórias e, ao contrário do que parece, não se sentem “<strong>de</strong>sterritorializados” na cida<strong>de</strong>,<br />

novo lugar que, não contendo, necessariamente, o passado, possibilita a eles encarar o<br />

futuro. Sem os pés na rotina do passado, a alienação causada na chegada <strong>de</strong>saparece para<br />

dar lugar à integração. Nesse lugar, eles estão con<strong>de</strong>nados a conhecer o mundo pelo que<br />

ele é e, também, pelo que ele ainda não é. O futuro – e não o passado – torna-se a<br />

âncora para a mudança. “A noção <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong>sconhecido per<strong>de</strong> a conotação negativa e<br />

ganha um acento positivo que vem do seu papel na produção da nova história” (SAN-<br />

TOS, 1997, p. 330).<br />

Conforme Milton Santos (1997), a carência e a escassez do consumo material e imaterial,<br />

do consumo político e <strong>de</strong> cidadania produzem um “<strong>de</strong>sconforto criador”. Os pobres<br />

encontram novos usos para os objetos, novas normas sociais e afetivas, novas articulações,<br />

em suma, buscam um futuro melhor. 3 Nas zonas opacas – lugares on<strong>de</strong> vivem<br />

as populações pobres, lugar aon<strong>de</strong> o tempo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> chega mais <strong>de</strong>vagar –, a<br />

percepção das imagens e das fábulas da globalização é maior, o que favorece a comunicação<br />

e a solidarieda<strong>de</strong> entre as pessoas.<br />

100<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


A população carente, então, manifesta sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> através dos movimentos sociais<br />

e culturais que surgem como alternativa <strong>de</strong> resistência à homogeneização global. A mudança<br />

<strong>de</strong> uma lógica alheia e estranha ao lugar para uma lógica local permite uma ação<br />

contestadora e criativa, enraizada no lugar em que se vive, encarregada <strong>de</strong> romper com<br />

o futuro pautado pelo presente (SANTOS, 1997).<br />

Vainer (2002) compartilha da visão <strong>de</strong> Milton Santos segundo a qual a cida<strong>de</strong> constitui<br />

não só a arena possível para a construção <strong>de</strong> estratégias para a transformação, como<br />

também o espaço amplo para a mudança na vida das classes e grupos subordinados. A<br />

cida<strong>de</strong> é, assim, o espaço crível para a política, o espaço para re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> propostas<br />

ambiciosas e realistas, o caminho para uma transformação urbana permanente. Nesse<br />

contexto, rejeita-se a idéia <strong>de</strong> que não há o que fazer.<br />

Vainer prossegue dizendo que os <strong>de</strong>safios a serem enfrentados partem muito mais <strong>de</strong><br />

uma estratégia nacional e, também, <strong>de</strong> movimentos sociais, do que “apenas” da população<br />

pobre, como afirma Milton Santos. Os objetivos para uma mudança <strong>de</strong> rumo, para<br />

uma alternativa política à globalização e a seu viés político – o neoliberalismo – seriam,<br />

conforme assinala Vainer (2002), a redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, a melhoria das condições<br />

<strong>de</strong> vida dos trabalhadores e o avanço e a radicalização <strong>de</strong> dinâmicas sociais, políticas e<br />

culturais que propiciem a articulação <strong>de</strong> movimentos populares e o enfraquecimento<br />

dos grupos e coalizões dominantes. Torna-se claro que as propostas políticas apresentadas<br />

encontram-se articuladas, conectadas. Resta, porém, uma dúvida: como pôr esse<br />

discurso em prática?<br />

O território: espaço <strong>de</strong> dominação política<br />

e <strong>de</strong> apropriação simbólica da realida<strong>de</strong><br />

Seguindo os passos <strong>de</strong> Vainer (2002), tanto a proposta global <strong>de</strong> cidadania quanto a local<br />

reacionária e autogestionária recusam a escala nacional. A suposta perda <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r do<br />

Estado nacional é <strong>de</strong>stacada por essas vertentes, às vezes saudadas, outras lamentadas,<br />

porém o que parece importante é a polarida<strong>de</strong> global/local. Sem a perspectiva nacional,<br />

a própria noção <strong>de</strong> cidadania per<strong>de</strong> o sentido.<br />

Além do mais, a nação é uma escala que está em condições <strong>de</strong> viabilizar uma alternativa<br />

viável à globalização. “A estratégia escalar, pensada como estratégia <strong>de</strong> resistência,<br />

está amplamente ancorada na esfera nacional e tem por foco a construção <strong>de</strong> um projeto<br />

nacional” (VAINER, 2002, p. 22). 4<br />

Para enten<strong>de</strong>r a perspectiva nacionalista, no presente texto, partiu-se do seu ente espacial,<br />

o território, ou seja, o espaço essencial para o entendimento da perspectiva nacional.<br />

5 Segundo Milton Santos (1994), é preciso retornar ao território para enten<strong>de</strong>r a<br />

dinâmica global/local. O território é a mediação necessária entre a globalização, a universalida<strong>de</strong><br />

e o lugar, a singularida<strong>de</strong>.<br />

A análise sobre o território envolve uma abordagem <strong>de</strong> dimensão mais “concreta”,<br />

objetiva, <strong>de</strong> caráter político-econômico. Tal análise remete à questão <strong>de</strong> domínio do<br />

território, <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> fluxos e acessibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas e mercadorias, <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcações<br />

<strong>de</strong> fronteiras e <strong>de</strong> limites <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. E, concomitantemente, essa análise remete<br />

4<br />

Muitos autores questionam a importância<br />

do Estado como produtor <strong>de</strong> uma nova<br />

racionalida<strong>de</strong>. Não cabem aqui, neste texto,<br />

maiores reflexões a esse respeito. O que importa,<br />

no momento, é esclarecer que a perspectiva<br />

nacional, territorial e, conseqüentemente,<br />

política extravasa o âmbito estatal<br />

ou <strong>de</strong> governo. Contudo, uma nova reflexão<br />

e uma nova práxis estão fortemente ancoradas<br />

numa perspectiva territorial, mediação<br />

essencial entre as escalas global e local.<br />

5<br />

A análise do território a partir <strong>de</strong> um ponto<br />

<strong>de</strong> vista nacional, presente neste texto, não<br />

preten<strong>de</strong> resumir o conteúdo do território<br />

somente nesse aspecto, mas apenas indicar um<br />

dos caminhos possíveis para a compreensão<br />

<strong>de</strong>sse espaço. Outras perspectivas enriquecem<br />

esse tema e serão mostradas neste texto, a<br />

seguir. Para ver uma reflexão sobre o território<br />

que extrapola a questão nacional, consultar<br />

Haesbaert (2004) e Raffestin (1993).<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

101


também a outra abordagem, mais “imaterial”, subjetiva, <strong>de</strong> caráter simbólico e cultural,<br />

constituída por grupos sociais, como forma <strong>de</strong> referência e representação, no processo<br />

<strong>de</strong> apropriação do espaço em que vivem. Dominação e apropriação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado<br />

espaço constituem, então, o território que, nesse sentido, é fruto <strong>de</strong> relações sociais no<br />

e com o espaço. Esses espaços são produzidos por um po<strong>de</strong>r político-econômico (dominação)<br />

e um po<strong>de</strong>r cultural-simbólico (apropriação), diferenciados no tempo e no<br />

espaço (HAESBAERT, 2004).<br />

No território associam-se e chocam-se o movimento geral da socieda<strong>de</strong> e o movimento<br />

particular do lugar. Esses movimentos acontecem simultaneamente com um processo<br />

<strong>de</strong> fragmentação do espaço, coor<strong>de</strong>nados pelos atores hegemônicos. O território<br />

rígido, coeso, fechado por suas fronteiras está, nos dias <strong>de</strong> hoje, cada vez mais fragmentado,<br />

<strong>de</strong>scontínuo, mas conectado por re<strong>de</strong>s informacionais. Uma visão, porém, não<br />

exclui a outra; ambas “convivem”, sobrepõem-se, formando um território híbrido, justaposto<br />

por tempos e espaços do passado, do presente e do futuro.<br />

Segundo Haesbaert (2004), as relações sociais no e com o espaço que constroem o<br />

território são produtos <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong>sigual <strong>de</strong> forças que envolvem o controle<br />

político-econômico e a apropriação simbólica do território por uma parte “privilegiada”<br />

da socieda<strong>de</strong>. Esses fatores apresentam-se ora conjugados e mutuamente reforçados,<br />

ora <strong>de</strong>sconectados e contraditoriamente articulados.<br />

Milton Santos (1994) <strong>de</strong>nomina essa diferença “relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> forças, <strong>de</strong> verticalida<strong>de</strong>s<br />

e horizontalida<strong>de</strong>s”. Segundo ele, as horizontalida<strong>de</strong>s são os domínios da contigüida<strong>de</strong>,<br />

da vizinhança territorial, do cotidiano e da proximida<strong>de</strong>. Já as verticalida<strong>de</strong>s<br />

são constituídas por locais distantes uns dos outros, mas conectados pela informação,<br />

por formas e processos sociais hegemônicos.<br />

As relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> força e, conseqüentemente, sua segregação espacial, social,<br />

econômica e política não <strong>de</strong>vem ser compreendidas simplesmente como um processo<br />

<strong>de</strong> exclusão social, porque essa parte da população segregada está incluída no processo<br />

econômico, mesmo que <strong>de</strong> forma precária. O que ocorre, <strong>de</strong> fato, são contradições <strong>de</strong><br />

um mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> produção capitalista. Essa população faz parte <strong>de</strong>sse momento<br />

histórico, seja negando ou afirmando esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento”, que não é só<br />

nacional mas, também, mundial.<br />

O território apresenta, portanto, uma condição complexa e dinâmica, na qual os “excluídos”<br />

ou precariamente incluídos tentam, a todo instante, se firmar como cidadãos. A falta<br />

<strong>de</strong> opção, a incerteza (o imóvel, “estável”) e o movimento, o fluxo (a instabilida<strong>de</strong>) <strong>de</strong>ssa<br />

população po<strong>de</strong>m aparentar <strong>de</strong>smobilização, conformismo, fruto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperança no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do país e <strong>de</strong> suas próprias vidas. Por outro lado, a inclusão precária que<br />

ten<strong>de</strong> a dissolver os laços territoriais po<strong>de</strong> levar, a partir <strong>de</strong> um sentimento coletivo <strong>de</strong><br />

cidadania, à organização <strong>de</strong> grupos sociais em torno <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias e esperanças <strong>de</strong> transformação<br />

<strong>de</strong> suas realida<strong>de</strong>s. Por conseguinte, assegurar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a cidadania à população<br />

menos favorecida e sua participação no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento social e econômico<br />

do país faz com que esses grupos locais se reúnam por suas necessida<strong>de</strong>s específicas,<br />

transformando-se em movimentos sociais <strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong> contracorrentes.<br />

102<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


Todavia, o mundo <strong>de</strong> hoje, dominado por re<strong>de</strong>s financeiras e pelo comércio transnacional<br />

apoiados pela ciência e pela técnica difundidas pelos sistemas <strong>de</strong> informação,<br />

procura a todo momento, através dos agentes hegemônicos, dissolver esses núcleos <strong>de</strong><br />

resistência. Os movimentos sociais <strong>de</strong> contestação ganham espaço na mídia, quase que<br />

somente por suas ações “controversas” e raramente pela questão social que eles realmente<br />

trazem. São exemplos disso o movimento dos sem-terras e as invasões <strong>de</strong> terras<br />

improdutivas, o movimento dos sem-casas e a invasão <strong>de</strong> prédios <strong>de</strong>socupados nas<br />

gran<strong>de</strong>s metrópoles, os movimentos anti-globalização e seus protestos nos encontros do<br />

comércio mundial, e o movimento dos <strong>de</strong>salojados por barragens, entre outros. Exemplos<br />

não faltam <strong>de</strong> movimentos sociais contestatórios, porém ainda existem pessoas que<br />

continuam a vê-los como questão <strong>de</strong> polícia e nunca como um problema social enraizado<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens da formação do território nacional.<br />

A perspectiva transescalar<br />

Vainer (2002) é muito perspicaz ao apontar que somente uma estratégia transescalar<br />

permitirá uma visão integrada dos fenômenos e uma transformação socioespacial. De<br />

fato, na vida cotidiana, estão expressas e impressas todas as escalas espaciais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

corpo, passando pelo lugar e percorrendo o território, até o espaço maior (no sentido <strong>de</strong><br />

global). As pessoas vivem no cotidiano do corpo, do lugar, do território e do mundo.<br />

Desse modo, uma visão apenas localista do cotidiano produz um i<strong>de</strong>alismo da esfera<br />

local, como se esta fosse constituída por comunida<strong>de</strong>s “tradicionais”, coesas e homogêneas.<br />

Feitas essas observações, os processos são, na perspectiva transescalar, analisados em<br />

sua totalida<strong>de</strong>. Nenhum recorte espacial tem primazia sobre os outros; ao contrário,<br />

todos são importantes para o entendimento do mundo contemporâneo. Destacando-se<br />

apenas um <strong>de</strong>les, po<strong>de</strong>-se correr o risco <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar levar por dogmatismos ou por<br />

“romantismos”. Deve-se compreen<strong>de</strong>r que cada escala espacial guarda um aspecto da<br />

realida<strong>de</strong>, ou uma significação do movimento <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>. Afinal é preciso enten<strong>de</strong>r<br />

que cada elemento é importante, uma vez que faz parte <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> fenômenos<br />

que se inter-relacionam.<br />

Infere-se, então, que a compreensão transescalar dos processos políticos, econômicos,<br />

sociais e culturais só é possível perante o entendimento <strong>de</strong> que a construção <strong>de</strong> escalas é<br />

fruto <strong>de</strong> um processo social, “isto é, a escala é produzida na e através da ativida<strong>de</strong><br />

societária, a qual, por seu turno, produz e é produzida pelas estruturas geográficas da<br />

interação social” (SMITH apud VAINER, 2002, p. 25).<br />

Nesses termos, as escalas são também processos e não apenas receptáculo das transformações<br />

sociais. Existem, então, processos socioespaciais em suas dimensões transescalares,<br />

porque, nos dias atuais, parecem não mais existir fenômenos <strong>de</strong> origem uniescalar,<br />

con<strong>de</strong>nados apenas a um espaço <strong>de</strong>terminado.<br />

Cumpre assinalar, ainda, que as escalas não são neutras por serem produzidas por<br />

processos heterogêneos e <strong>de</strong> conflito. Elas não estão dadas a priori nem são geometricamente<br />

<strong>de</strong>finidas. Elas são frutos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> apropriação e <strong>de</strong> dominação do<br />

espaço e, por isso, carregam consigo todo um conteúdo estratégico e político. Segundo<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

103


Castro (1997), a escala tomada enquanto medida proporcional resume-se apenas em<br />

medida matemática, em forma abstrata.<br />

As escalas são, portanto, produtos das ações sociais ao longo <strong>de</strong> processos históricos<br />

<strong>de</strong> confrontos envolvendo disputas que perpassam por todas as escalas espaciais, na<br />

maioria das vezes acontecendo simultaneamente. Não há, assim, legitimida<strong>de</strong> em afirmar<br />

qual a mais importante. Para a abordagem transescalar, isso não importa; o que<br />

interessa é a perspectiva que inter-relacione as escalas envolvidas no processo em foco.<br />

Ora, qualquer objeto <strong>de</strong> transformação socioespacial envolve táticas e estratégias que<br />

exigem entendimento e ação em cada uma das escalas em que se configuram os conflitos.<br />

Dessa maneira, somente mudanças estruturais profundas transescalares serão capazes<br />

<strong>de</strong> possibilitar uma reviravolta no quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e miséria social que<br />

atinge o mundo hoje (VAINER, 2002).<br />

Em síntese, a análise transescalar é a que parece ser não apenas a mais capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />

as inter-relações entre os fenômenos, pois articula os diversos espaços em seu<br />

processo <strong>de</strong> análise, mas também a que possibilita uma práxis socioespacial.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

O otimismo <strong>de</strong> Milton Santos, tendo o lugar como ponto <strong>de</strong> partida para as<br />

transformações sociais e a população carente e pobre como o principal agente <strong>de</strong>ssas<br />

transformações, parece não encontrar tanto respaldo na realida<strong>de</strong> socioespacial. As<br />

perspectivas <strong>de</strong> mudança ainda estão obscuras, bem como o próprio fenômeno da<br />

globalização. Até que ponto os movimentos <strong>de</strong> resistência assumem uma visão transescalar<br />

e emancipatória que conteste o mundo das mercadorias é uma questão que ainda não<br />

está tão nítida como sugere o professor, muito embora melhorias substantivas tenham<br />

sido conquistadas por esses movimentos sociais, como, por exemplo, maior número <strong>de</strong><br />

assentamentos rurais já concretizados, <strong>de</strong>sistência <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> barragens para<br />

hidrelétricas e, conseqüentemente, <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> pessoas, participação popular<br />

nas discussões sobre orçamentos municipais etc.<br />

É bom <strong>de</strong>stacar que Milton Santos, mesmo assumindo o lugar como ponto <strong>de</strong> partida<br />

das mudanças socioespaciais, pauta sempre sua análise por uma perspectiva transescalar<br />

que leve em conta as diversas escalas espaciais. Tal qual acontece com Vainer, que<br />

corrobora a perspectiva transescalar e vê, na cida<strong>de</strong>, o lugar ou o ponto <strong>de</strong> partida para<br />

a transformação social. O mesmo não se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> Massey, que <strong>de</strong>staca apenas a<br />

importância global/local para esse tipo <strong>de</strong> análise, e tampouco <strong>de</strong> Harvey, que vê muito<br />

mais na ação global a saída para a transformação socioespacial.<br />

Essa reflexão sobre as idéias apontadas por esses autores remete este ensaio à questão<br />

essencial para o aprofundamento e a conclusão do tema: a relação teoria e prática.<br />

Nesse sentido, algumas questões são pertinentes. Por exemplo: será que somente os<br />

discursos resolvem os problemas socioespaciais? É preciso somente agir? Ou ambos<br />

fazem parte <strong>de</strong> um mesmo processo <strong>de</strong> viver no mundo? Longe <strong>de</strong> traçar uma perspectiva<br />

ampla e coesa, preten<strong>de</strong>-se aqui, apenas brevemente, apontar um <strong>de</strong>ntre os vários<br />

possíveis caminhos para a compreensão da relação entre teoria e prática.<br />

104<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


Assim sendo, perguntar-se-ia: até que ponto teoria e prática andam junto? Dir-se-ia que<br />

a teoria e a produção do conhecimento só são possíveis através da existência e da prática<br />

cotidiana. A teoria não é um dado a priori do mundo ou, ainda, um ente distanciado <strong>de</strong>le:<br />

ela é composta pelo mundo em movimento e pelo sujeito; por isso toda teoria é carregada<br />

do momento histórico que a influencia. Nada impe<strong>de</strong>, porém, que ela ultrapasse esse momento,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tenha respaldo na própria realida<strong>de</strong> em que quer se inserir.<br />

Nota-se que, na contemporaneida<strong>de</strong>, as práticas estão se distanciando da teoria, preten<strong>de</strong>ndo<br />

ser “autônomas”. Sem o <strong>de</strong>vido cuidado ou preocupação teórica que embase<br />

as práticas, corre-se o risco <strong>de</strong> configurá-las em ações soltas, <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> sentido<br />

reflexivo, mais condizentes com o mundo em que se vive.<br />

Não se quer com isso renegar a importância da prática e tampouco compactuar com<br />

a divisão, muito comum na construção da ciência mo<strong>de</strong>rna, entre teoria e prática. Partese<br />

do pressuposto que as duas coisas se formam num só processo <strong>de</strong> existir no mundo.<br />

Todavia, num mundo contemporâneo em que a realida<strong>de</strong> socioespacial adquire gran<strong>de</strong><br />

complexida<strong>de</strong>, as práticas carecem, cada vez mais, <strong>de</strong> conteúdos teóricos, <strong>de</strong> reflexões<br />

condizentes com tal complexida<strong>de</strong>. É nesse sentido que cada reflexão teórica torna-se,<br />

também, uma forma genuína <strong>de</strong> prática, como sugere Adorno (1969).<br />

Assim, é preciso refletir sobre o espaço nas suas diversas escalas, pois ele representa<br />

muito bem essa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amalgamar prática e teoria. Segundo Gottdiener (1993,<br />

p. 127), refletindo a partir da obra <strong>de</strong> Henri Lefebvre, o espaço é “uma localida<strong>de</strong> física,<br />

uma peça <strong>de</strong> bem imóvel e ao mesmo tempo uma liberda<strong>de</strong> existencial e uma expressão<br />

mental. O espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilida<strong>de</strong> social<br />

<strong>de</strong> engajar-se na ação”.<br />

artigo recebido abril/2006<br />

artigo aprovado julho/2006<br />

Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

105


Referências<br />

ADORNO, Theodor.<br />

Entrevista. Der Spiegel,<br />

[s.l.], n. 19, n.p., 1969.<br />

CARLOS, Ana Fani<br />

Alessandri. A<br />

mundialização do espaço.<br />

In: MARTINS, José <strong>de</strong><br />

Souza (Org.). Henri Lefebvre<br />

e o retorno da dialética. São<br />

Paulo: Hucitec, 1999.<br />

p. 121-134.<br />

CASTRO, Iná Elias <strong>de</strong>.<br />

Problemas e alternativas<br />

metodológicas para a<br />

região e para o lugar. In:<br />

SOUZA, Maria Adélia (Org.).<br />

Natureza e socieda<strong>de</strong> hoje:<br />

uma leitura geográfica.<br />

São Paulo: Hucitec; ANPUR,<br />

1997. p. 56-63.<br />

GOTTDIENER, Mark. A<br />

produção do espaço urbano.<br />

São Paulo: Edusp, 1993.<br />

HAESBAERT, Rogério.<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s territoriais.<br />

In: ROSENDAHL, Zeny;<br />

CORRÊA, Roberto Lobato<br />

(Org.). Manifestações da<br />

cultura no espaço. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: UERJ, 1999. p.<br />

169-190. (Coleção<br />

Geografia Cultural).<br />

HAESBAERT, Rogério. O<br />

mito da <strong>de</strong>sterritorialização:<br />

do “fim dos territórios”<br />

à multiterritorialida<strong>de</strong>.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 2004.<br />

HALL, Stuart. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

cultural na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: DP&A, 2004.<br />

HARVEY, David. Espaços<br />

<strong>de</strong> esperança. São Paulo:<br />

Loyola, 2004.<br />

LEFEBVRE, Henri. Espacio<br />

y política. Barcelona:<br />

Península, 1976.<br />

MASSEY, Doreen. Um<br />

sentido global <strong>de</strong> lugar.<br />

In: ARANTES, Antônio<br />

(Org.). O espaço da diferença.<br />

Campinas: Papirus, 2000.<br />

p. 176-185.<br />

RAFFESTIN, Clau<strong>de</strong>. Por<br />

uma geografia do po<strong>de</strong>r. São<br />

Paulo: Ática, 1993.<br />

SANTOS, Milton. A<br />

natureza do espaço: técnica e<br />

tempo, razão e emoção.<br />

São Paulo: Hucitec, 1997.<br />

SANTOS, Milton. Da<br />

totalida<strong>de</strong> ao lugar. São<br />

Paulo: Edusp, 2005.<br />

SANTOS, Milton.<br />

O retorno do território.<br />

In: SANTOS, Milton (Org.).<br />

Território: globalização e<br />

fragmentação. São Paulo:<br />

Hucitec; ANPUR, 1994.<br />

p. 15-20.<br />

SANTOS, Milton. Por uma<br />

outra globalização: do<br />

pensamento único à<br />

consciência universal.<br />

São Paulo: Record, 2003.<br />

SANTOS, Milton. Território<br />

e socieda<strong>de</strong>: uma entrevista<br />

com Milton Santos. São<br />

Paulo: Fundação Perseu<br />

Abramo, 2000.<br />

VAINER, Carlos. As escalas<br />

do po<strong>de</strong>r e o po<strong>de</strong>r das<br />

escalas: o que po<strong>de</strong> o<br />

po<strong>de</strong>r local? Ca<strong>de</strong>rnos<br />

IPPUR, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

v. 15, n. 2, p. 13-32, <strong>de</strong>z. 2002.<br />

106<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização


Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

107


Resenha<br />

108<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

RESENHA O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46 Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho<br />

industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996


Resenha O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46<br />

Tânia Bittencourt Bloomfield<br />

Mestranda do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em<br />

Geografia – UFPR<br />

O fim das utopias, da História, da Arte,<br />

da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, dos territórios, do<br />

Estado-nação, do encantamento, das<br />

esperanças, da civilização, do mundo.<br />

Estamos vivendo em diferentes tempos e<br />

em diferentes espaços? Na chamada pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

há uma tendência <strong>de</strong><br />

homogeneização da socieda<strong>de</strong>, causada<br />

pelo processo <strong>de</strong> globalização?<br />

Essas e outras questões foram suscitadas<br />

pelo filme Co<strong>de</strong> 46 (Código 46), lançado<br />

no mercado em 2003. Trata-se <strong>de</strong> um filme<br />

<strong>de</strong> ficção científica, mas que pouca<br />

semelhança apresenta com outros filmes<br />

já vistos. Ele apresenta um futuro, não<br />

muito distante, que em vários aspectos se<br />

parece com a nossa realida<strong>de</strong>. Ainda que<br />

muitas coisas no filme pareçam familiares,<br />

o roteiro aponta para um <strong>de</strong>vir sombrio.<br />

Supostamente, é o que nos espera,<br />

imersos que estamos nas dimensões reificada<br />

e consensual, mediadas pelas i<strong>de</strong>ologias<br />

que nos <strong>de</strong>sumanizam.<br />

O filme po<strong>de</strong>ria ser resumido como um<br />

exercício <strong>de</strong> futurologia, uma metáfora da<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> consolidada. Nele po<strong>de</strong>m<br />

ser percebidas muitas das temáticas<br />

que são abordadas por diferentes disciplinas<br />

acadêmicas: a globalização, a genética,<br />

a <strong>de</strong>s-reterritorialização, o lugar, o não-lugar,<br />

os equipamentos e artefatos tecnológicos,<br />

a questão ambiental, a relação/<br />

percepção tempo-espaço, o multiculturalismo,<br />

a linguagem, a polarização corpo/mente,<br />

as intersubjetivida<strong>de</strong>s e suas<br />

relações com as estruturas políticas, econômicas<br />

e culturais.<br />

Antes <strong>de</strong> refletir sobre alguns aspectos<br />

do filme em questão, será necessário transcrever<br />

o Código 46, por se tratar da peça<br />

em torno da qual a narrativa está baseada.<br />

Artigo 1 – Dois seres humanos com o<br />

mesmo grupo <strong>de</strong> genes nucleares são<br />

consi<strong>de</strong>rados geneticamente idênticos. As<br />

relações <strong>de</strong> um são as relações <strong>de</strong> todos.<br />

Devido às técnicas <strong>de</strong> fecundação artificial<br />

e clonagem, é necessário prevenir qualquer<br />

reprodução geneticamente incestuosa,<br />

aci<strong>de</strong>ntal ou proposital. Portanto:<br />

a. Os futuros pais <strong>de</strong>vem ser geneticamente<br />

examinados, antes <strong>de</strong> conceberem. Se<br />

apresentarem 100%, 50% ou 25% <strong>de</strong><br />

igualda<strong>de</strong> genética, não po<strong>de</strong>rão conceber.<br />

b. Se a gravi<strong>de</strong>z não for planejada, o feto<br />

será examinado. Uma gravi<strong>de</strong>z vinda <strong>de</strong><br />

pais com 100%, 50% ou 25% <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong><br />

genética será imediatamente interrompida.<br />

c. Se os pais não sabiam da igualda<strong>de</strong><br />

genética entre eles, é permitida uma intervenção<br />

médica para prevenir o Código 46.<br />

d. Se os pais sabiam da igualda<strong>de</strong> genética<br />

antes <strong>de</strong> conceberem, trata-se <strong>de</strong> uma<br />

violação do Código 46.<br />

(CODE... 2003, n.p., tradução nossa)<br />

Apesar <strong>de</strong> aparentemente se tratar <strong>de</strong><br />

uma obra cinematográfica que põe em<br />

relevo a clonagem e <strong>de</strong>mais experiências<br />

Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães JúnioTânia Bittencourt Bloomfield RESENHA<br />

109


1<br />

É possível estabelecer, no contexto do filme,<br />

uma relação entre as palavras Sphinx e<br />

sphincter, já que a empresa supranacional<br />

Sphinx é a responsável pelo controle opressor<br />

que fecha ou abre fronteiras para os indivíduos,<br />

permitindo-lhes ou não realizarem<br />

seus trânsitos.<br />

Sphinx, do inglês, esfinge: Figura mitológica,<br />

com cabeça humana e corpo <strong>de</strong> leão. Pessoa<br />

enigmática. Na mitologia grega, a esfinge era<br />

um animal misterioso que propunha enigmas<br />

aos viajantes. Para Édipo, propôs o enigma<br />

“qual é o animal que anda sobre quatro pés<br />

<strong>de</strong> manhã, sobre dois ao meio-dia e sobre<br />

três à noite?”. Édipo, filho <strong>de</strong> Laio e Jocasta,<br />

separado <strong>de</strong> seus pais logo após o nascimento,<br />

foi criado pelo rei do Corinto, que mandou<br />

educá-lo. Já adulto, acabou matando seu pai,<br />

Laio, que lhe era <strong>de</strong>sconhecido, e casando-se<br />

com a rainha Jocasta, sua mãe biológica, sem<br />

o saber. Esses fatos ocorreram logo após ter<br />

<strong>de</strong>svendado o enigma proposto a ele pela<br />

Esfinge, monstro que atormentava o reino <strong>de</strong><br />

seus pais, feito que causou o suicídio do animal<br />

e levou Édipo, diretamente, para a relação<br />

incestuosa.<br />

Sphincter, do inglês, esfíncter: Músculo anular<br />

contrátil que serve para fechar e abrir<br />

orifícios ou ductos naturais do corpo, regulando<br />

o trânsito <strong>de</strong> matérias no interior <strong>de</strong><br />

diversos órgãos.<br />

com inseminação artificial e com DNA, não<br />

é essa, segundo seu diretor e seu roteirista,<br />

a principal discussão do filme. De acordo<br />

com seus autores, trata-se <strong>de</strong> uma história<br />

<strong>de</strong> amor, simples e mítica, apresentada<br />

como uma versão do complexo <strong>de</strong> Édipo.<br />

Todo o resto é pano <strong>de</strong> fundo. Porém,<br />

é justamente o patchwork composto<br />

pela relação entre os vários aspectos da<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, pano <strong>de</strong> fundo do filme,<br />

que interessa a esta discussão. A controvérsia<br />

sobre a oposição mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

x pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> – afinal, em qual das<br />

lógicas estamos imersos? – tem apaixonados<br />

<strong>de</strong>fensores, <strong>de</strong> um lado e <strong>de</strong> outro.<br />

Para efeito <strong>de</strong> provocação, ficaremos com<br />

Fre<strong>de</strong>ric Jameson (1997, p. 413):<br />

Eu também, como todo mundo, fico às<br />

vezes muito entediado com o slogan “pósmo<strong>de</strong>rno”,<br />

mas, quando começo a me<br />

arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> minha cumplicida<strong>de</strong> com ele,<br />

a <strong>de</strong>plorar seu uso errôneo e sua<br />

notorieda<strong>de</strong> e a concluir, com alguma<br />

relutância, que ele levanta mais problemas<br />

do que os resolve, eu me vejo parando<br />

para pensar se qualquer outro conceito<br />

po<strong>de</strong>ria dramatizar essas questões <strong>de</strong><br />

forma tão eficiente e econômica.<br />

O personagem do ator Tim Robbins,<br />

William, é uma espécie <strong>de</strong> investigador <strong>de</strong><br />

uma organização supranacional que controla<br />

a vida das pessoas no planeta. William<br />

é enviado para Xangai, China, para investigar<br />

quem, na fábrica <strong>de</strong> “passes” on<strong>de</strong><br />

trabalha Maria, encarnada pela atriz Samantha<br />

Morton, está fraudando o sistema,<br />

emitindo e ven<strong>de</strong>ndo os papelles no mercado<br />

negro. Essa organização, chamada<br />

Sphinx, 1 é a responsável pela concessão <strong>de</strong><br />

autorização para mobilida<strong>de</strong> das pessoas<br />

ao redor do mundo, garantida pela emissão<br />

<strong>de</strong> papelles. Para tudo o que as pessoas<br />

precisam fazer, especialmente viajar, é necessário<br />

ter os passes. E mesmo que alguém<br />

os solicite durante anos, po<strong>de</strong>rá ver<br />

os seus reiterados pedidos <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong><br />

negados, sem que nenhuma explicação lhe<br />

seja dada. Tudo tem a ver com o conhecimento<br />

que a organização tem da vida biológica,<br />

profissional e pessoal <strong>de</strong> cada indivíduo<br />

do planeta. É a Sphinx que arbitra<br />

sobre a violação do Código 46 e que aplica<br />

as sanções cabíveis.<br />

Segundo o art. 1 do Código 46, como<br />

visto anteriormente, não é permitido a duas<br />

pessoas conceberem um bebê, caso apresentem<br />

coincidência em seu material genético<br />

acima <strong>de</strong> 25%. Caso haja violação<br />

proposital do Código 46 e ocorra uma gravi<strong>de</strong>z,<br />

esta será interrompida. O casal terá<br />

toda a memória relativa ao evento retirada<br />

<strong>de</strong> suas mentes, esquecendo-se inclusive<br />

<strong>de</strong> seus parceiros, e, se houver agravantes<br />

ou reincidência, os dois po<strong>de</strong>rão ser<br />

banidos das cida<strong>de</strong>s e entregues a um <strong>de</strong>stino<br />

cruel em zonas chamadas al fuera, on<strong>de</strong>,<br />

aliás, a organização Sphinx pune todas as<br />

violações <strong>de</strong>ssa forma.<br />

Quando chega à região metropolitana <strong>de</strong><br />

Xangai, saindo <strong>de</strong> Seattle, EUA, William<br />

tem <strong>de</strong> atravessar enormes espaços vazios,<br />

<strong>de</strong>sérticos, transitando em uma estrada<br />

larga e longa, com <strong>de</strong>stino à cida<strong>de</strong>. Na<br />

fronteira da cida<strong>de</strong>, que no filme se chama<br />

<strong>de</strong> al fuera, existe uma praça <strong>de</strong> pedágio<br />

que se configura como posto <strong>de</strong> imigração.<br />

Circulando entre os carros que abordam<br />

o posto, encontram-se <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

pessoas andrajosas, que tentam ven<strong>de</strong>r<br />

quinquilharias. Se tiverem sorte, conseguirão<br />

driblar o inexpugnável cerco aos que<br />

não têm os papelles, para a<strong>de</strong>ntrar a cida<strong>de</strong>.<br />

A imagem dos mexicanos ou brasileiros<br />

110<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

RESENHA O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46 Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho<br />

industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996


tentando atravessar a fronteira do México<br />

com os Estados Unidos vem logo à mente.<br />

No filme, há alusões a gran<strong>de</strong>s espaços<br />

vazios, em que não ocorrem ligações <strong>de</strong><br />

afetivida<strong>de</strong>, chamados por Marc Augé<br />

(1994) <strong>de</strong> “não-lugares”. Esses espaços<br />

contrapõem-se aos espaços <strong>de</strong> significação,<br />

<strong>de</strong> conforto, <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> proteção:<br />

os “lugares”. Os não-lugares –<br />

saguões <strong>de</strong> hotéis, shoppings, supermercados,<br />

salas <strong>de</strong> embarque em aeroportos,<br />

por exemplo – são vácuos locacionais,<br />

<strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> significados para as pessoas<br />

que passam por eles. Sobre os lugares,<br />

encontraremos a conceituação <strong>de</strong> importantes<br />

e diferentes autores, tais como Henri<br />

Lefébvre, Rogério Haesbaert, Milton Santos<br />

e Yi-fu Tuan, entre outros.<br />

Espaços <strong>de</strong> trânsito, <strong>de</strong> nomadismo errante<br />

– no caso <strong>de</strong> Código 46, os não-lugares<br />

– acabam por ser o cenário dos <strong>de</strong>sterritorializados<br />

física e socialmente, como<br />

os que foram punidos e banidos para o al<br />

fuera. A idéia <strong>de</strong> território e <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>s<br />

envolve relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre grupos<br />

ou indivíduos, por via seja política,<br />

seja econômica ou cultural, como argumenta<br />

Rogério Haesbaert da Costa (2004,<br />

p. 95-96):<br />

Po<strong>de</strong>ríamos dizer que o território, enquanto<br />

relação <strong>de</strong> dominação e apropriação<br />

socieda<strong>de</strong>-espaço, <strong>de</strong>sdobra-se ao longo <strong>de</strong><br />

um continuum que vai da dominação<br />

político-econômica mais “concreta” e<br />

“funcional” à apropriação mais subjetiva<br />

e/ou “cultural-simbólica”. Embora seja<br />

completamente equivocado separar estas<br />

esferas, cada grupo social, classe ou<br />

instituição po<strong>de</strong> “territorializar-se” através<br />

<strong>de</strong> processos <strong>de</strong> caráter mais funcional<br />

(econômico-político) ou mais simbólico<br />

(político-cultural) na relação que <strong>de</strong>senvolve<br />

com os “seus” espaços, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da<br />

dinâmica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e das estratégias que<br />

estão em jogo. Não é preciso dizer que são<br />

muitos os potenciais conflitos a se<br />

<strong>de</strong>sdobrar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse jogo <strong>de</strong><br />

territorialida<strong>de</strong>s.<br />

A impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acessar as benesses<br />

da tecnologia também implica em processos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização. Em geral, a<br />

aparição <strong>de</strong> artefatos tecnológicos mirabolantes<br />

em filmes <strong>de</strong> ficção é recorrente<br />

e não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rada no roteiro.<br />

Curiosamente, não é o que acontece em<br />

Código 46. Nele são mostradas tecnologias<br />

que apresentam uma forte semelhança ou<br />

factibilida<strong>de</strong> em relação ao que a ciência e<br />

a indústria já po<strong>de</strong>m realizar hoje. Como<br />

exemplos, po<strong>de</strong>m ser vistos os seguintes<br />

elementos: espaços arquitetônicos hi-tech;<br />

sensores <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong> nos vidros das<br />

janelas, que substituem cortinas; telas <strong>de</strong> TV<br />

e monitores <strong>de</strong> computadores, com touchscreen,<br />

instalados em janelas ou pare<strong>de</strong>s que<br />

separam ambientes; controle <strong>de</strong> acesso aos<br />

lugares, por verificação biométrica; dispositivos<br />

“vestíveis” <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> realida<strong>de</strong><br />

virtual, para a prática <strong>de</strong> esportes; uso <strong>de</strong><br />

palavras-senha, emitidas por comando <strong>de</strong><br />

voz, para permitir o acesso a lugares, compras,<br />

pagamento <strong>de</strong> contas e registro e catalogação<br />

<strong>de</strong> dados. Da mesma forma<br />

como em nossa realida<strong>de</strong>, também em<br />

Código 46 essas tecnologias não estão disponíveis<br />

a todos os membros da socieda<strong>de</strong>.<br />

Algumas das novida<strong>de</strong>s tecnológicas<br />

mostradas no filme, que esperamos não se<br />

disponibilizem em tempo algum, são, <strong>de</strong><br />

qualquer maneira, intrigantes: procedimentos<br />

médicos que removem a memória<br />

pontual das mentes; operações que inoculam<br />

vírus <strong>de</strong> “empatia” – capacitando o<br />

indivíduo a adivinhar o pensamento alheio<br />

Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães JúnioTânia Bittencourt Bloomfield RESENHA<br />

111


2<br />

Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo foi lançado, recentemente,<br />

um empreendimento imobiliário chamado<br />

Edifício Mandarim. Trata-se <strong>de</strong> um<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> arquitetura pós-mo<strong>de</strong>rna e<br />

exemplifica uma tendência recente <strong>de</strong> valorização<br />

da cultura chinesa no mundo contemporâneo.<br />

Ver .<br />

– e vírus <strong>de</strong> repulsão a <strong>de</strong>terminada pessoa;<br />

instalação <strong>de</strong> vírus para se falar uma<br />

língua estranha, ou cantar maravilhosamente<br />

bem, instantaneamente; inserção <strong>de</strong><br />

plantas que são controladas cientificamente,<br />

por ter a radiação solar alcançado níveis<br />

perigosos, fazendo com que as temporalida<strong>de</strong>s<br />

das práticas cotidianas não<br />

sejam mais balizadas pelo dia.<br />

Outro aspecto interessante a ser notado<br />

no filme diz respeito à linguagem usada na<br />

narrativa. Como se fosse parte integrante e<br />

natural da língua universal, cuja matriz é o<br />

inglês contemporâneo, há a ocorrência <strong>de</strong><br />

vários vocábulos oriundos <strong>de</strong> outras línguas<br />

faladas no mundo real. As palavras, em sua<br />

maioria oriundas da Europa, usadas pelos<br />

personagens para se comunicar, natural e<br />

corriqueiramente, em qualquer lugar do<br />

mundo on<strong>de</strong> se encontrem, são as seguintes:<br />

palabra, porquoi, al fuera, bueno, comme ça,<br />

salam, par avion, chico, chica, coche, cosa, claro, hasta<br />

luego, papelle, un poco, lo siento, gracias, si, buenos<br />

dias, hombre, no funciona, <strong>de</strong>scontinuado, tu nombre,<br />

n’est-ce pàs, voilà, no lo se, la bas, anch io. E<br />

todos se enten<strong>de</strong>m. É como se fosse uma<br />

espécie <strong>de</strong> esperanto. Ainda que possamos<br />

ver, hoje em dia, a predominância da língua<br />

inglesa nas relações globais, em um futuro<br />

não muito distante po<strong>de</strong> ser que ela<br />

não continue a ser hegemônica. Talvez <strong>de</strong>vêssemos<br />

nos preocupar com o aprendizado<br />

<strong>de</strong> uma língua oriental.<br />

É relevante que, na maior parte do filme,<br />

o cenário seja Xangai. Os autores parecem<br />

querer enfatizar uma tendência no<br />

estreitamento das relações do Oci<strong>de</strong>nte<br />

com o Oriente, em um contexto pós-mo<strong>de</strong>rno<br />

e globalizado. A China alcançou o<br />

patamar <strong>de</strong> quarta maior economia no<br />

panorama econômico mundial, ultrapassando<br />

países europeus como a França e a<br />

Inglaterra. Dessa forma, por que não imaginar<br />

que, no futuro, estaremos falando o<br />

mandarim como segunda língua? Ou que<br />

adotaremos aspectos da cultura chinesa,<br />

como a moda e a arquitetura, 2 ao invés <strong>de</strong><br />

copiarmos mo<strong>de</strong>los europeus?<br />

Estranhamente, mesmo em um contexto<br />

configurado pelo controle do corpo,<br />

da mente, das relações e da liberda<strong>de</strong>, os<br />

personagens parecem estar conformados<br />

com o que lhes foi <strong>de</strong>terminado genética,<br />

política, econômica e culturalmente. Como<br />

um dos personagens secundários da trama<br />

diz: “Aqui, as pessoas não vivem. Elas<br />

sobrevivem” (CODE... 2003, n.p., tradução<br />

nossa). Aparentemente, somente os<br />

dois personagens principais é que burlam<br />

as regras e inserem o imprevisto, o caótico,<br />

o irracional, quando lutam contra o<br />

<strong>de</strong>stino que lhes foi imposto pela socieda<strong>de</strong><br />

em que vivem. Naquele tipo <strong>de</strong> organização,<br />

predominam o cientificismo, a racionalida<strong>de</strong>,<br />

o planejamento, o controle, a<br />

exclusão do erro. A violência a que são<br />

submetidos os personagens não é explosiva<br />

e explícita, mas difusa e sutil, nem por<br />

isso menos aterrorizante.<br />

O espaço e o tempo, na narrativa, são<br />

dimensões modificadas pela nova maneira<br />

<strong>de</strong> estar no mundo, ainda que o rompimento<br />

<strong>de</strong> algumas práticas cotidianas e<br />

institucionais do passado não tenha se dado<br />

<strong>de</strong> forma total. Já o espaço e o tempo do<br />

filme são modulados pelas gran<strong>de</strong>s panorâmicas<br />

e pelos movimentos lentos dos<br />

personagens, que atuam mais na esfera<br />

psicológica do que na física.<br />

A música é um outro elemento extremamente<br />

importante no filme, porque<br />

marca, com relações intertextuais, os lugares<br />

e os tempos psicológicos dos personagens.<br />

Dessa maneira, quando William se<br />

112<br />

Geografias Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

RESENHA O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46 Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho<br />

industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996


apaixona por Maria e está no limiar <strong>de</strong> infringir<br />

as regras <strong>de</strong> sua profissão e da lei,<br />

o dilema do personagem é marcado pela<br />

música Should I stay or should I go? 3 (Devo<br />

ficar ou <strong>de</strong>vor ir?), do grupo The Clash. Outro<br />

<strong>de</strong>sses momentos acontece quando ele,<br />

tendo sua memória sido apagada, reencontra<br />

a família nos Estados Unidos, após<br />

voltar da China, e seu filho canta Row, row,<br />

row the boat. 4 Ou ainda quando Maria, estando<br />

al fuera e esquecida, imagem-metáfora<br />

dos excluídos, dos <strong>de</strong>sterritorializados,<br />

é acompanhada pela música Warning<br />

sign 5 (Sinal <strong>de</strong> aviso), da banda inglesa Coldplay.<br />

As músicas, conhecidas/percebidas<br />

<strong>de</strong>ntro e fora da narrativa, são aspectos<br />

do passado que permanecem no presente<br />

<strong>de</strong>scrito pelo filme. São os elementos <strong>de</strong><br />

intermediação das dimensões espaço/tempo,<br />

porque espacializam e temporalizam<br />

as nossas representações em relação à história<br />

<strong>de</strong> William e Maria.<br />

Em entrevista sobre o filme, o ator Tim<br />

Robbins <strong>de</strong>clarou: “Há um modo <strong>de</strong> sermos<br />

livres em uma socieda<strong>de</strong> terrivelmente<br />

opressora, e há um modo <strong>de</strong> sermos escravos<br />

numa socieda<strong>de</strong> livre”. 6 Sob vários<br />

pontos <strong>de</strong> vista, o mundo permanece o<br />

mesmo; por outro lado, mudou, irremediavelmente.<br />

Existe, no mundo <strong>de</strong> hoje,<br />

espaço <strong>de</strong> manobra para que todos façamos<br />

essa opção <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>?<br />

3<br />

THE CLASH. Should I stay or should I go?. In:<br />

THE CLASH. Combat rock. Londres: Sonny,<br />

2002. 1 CD, digital, estéreo, faixa n. 3.<br />

Referências<br />

AUGÉ, Marc. Não-lugares:<br />

introdução a uma<br />

antropologia da<br />

supermo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Campinas: Papirus, 1994.<br />

CODE 46. Direção:<br />

Michael Winterbottom.<br />

Produção: Andrew Eaton.<br />

Intérpretes: Tim Robbins;<br />

Samantha Morton e outros.<br />

Edição: Peter Christelis.<br />

Direção <strong>de</strong> fotografia:<br />

Alwin Kuchler e Marcel<br />

Zyskind. Roteiro: Frank<br />

Cottrell Boyce. Música:<br />

The Free Association.<br />

Londres: MGM; United<br />

Artists; The UK Film<br />

Council; BBC FILMS, 2003.<br />

1 DVD (93 min.), color.,<br />

drama/romance.<br />

COSTA, Rogério<br />

Haesbaert da. O mito da<br />

<strong>de</strong>sterritorialização: do “fim<br />

dos territórios” à<br />

multiterritorialida<strong>de</strong>.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 2004.<br />

JAMESON, Fre<strong>de</strong>ric.<br />

Pós-mo<strong>de</strong>rnismo: a lógica<br />

cultural do capitalismo<br />

tardio. São Paulo:<br />

Ática, 1997.<br />

4<br />

Row, row, row the boat... (Reme, reme, reme<br />

seu barco <strong>de</strong>scendo a corrente, alegremente,<br />

alegremente, alegremente. A vida é um sonho...)<br />

é uma música tradicional inglesa, <strong>de</strong><br />

domínio público.<br />

5<br />

COLDPLAY. Warning sign. In: COLDPLAY. A<br />

rush of blood to the head. Londres: EMI, 2002.<br />

1 CD, digital, estéreo, faixa n. 8.<br />

6<br />

ROBBINS, Tim. [Entrevista]. In: CODE 46.<br />

Direção: Michael Winterbottom. Produção:<br />

Andrew Eaton. Intérpretes: Tim Robbins;<br />

Samantha Morton e outros. Edição: Peter<br />

Christelis. Direção <strong>de</strong> fotografia: Alwin<br />

Kuchler e Marcel Zyskind. Roteiro: Frank<br />

Cottrell Boyce. Música: The Free Association.<br />

Londres: MGM; United Artists; The UK Film<br />

Council; BBC FILMS, 2003. 1 DVD (93 min.),<br />

color., drama/romance. Making off.<br />

Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />

Geografias<br />

Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães JúnioTânia Bittencourt Bloomfield RESENHA<br />

113


Notas <strong>de</strong><br />

pesquisa<br />

114<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Notas <strong>de</strong><br />

pesquisa<br />

A expansão metropolitana<br />

<strong>de</strong> Belo Horizonte: dinâmica e<br />

especificida<strong>de</strong>s no eixo-sul<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Coor<strong>de</strong>nadora do Projeto Eixo-Sul<br />

O Projeto Eixo-Sul teve início em junho <strong>de</strong> 2002 e estará concluído no segundo semestre<br />

<strong>de</strong> 2006, tendo contado com financiamentos da Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pesquisa da UFMG, do<br />

CNPq e da FAPEMIG. Em linhas gerais, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado bastante bem sucedido em<br />

dois aspectos: a) tem propiciado uma reflexão importante sobre a dinâmica metropolitana<br />

recente, em particular no que se refere tanto aos processos <strong>de</strong> expansão urbana quanto<br />

às tentativas <strong>de</strong> regulação <strong>de</strong> tais processos nos campos urbano e ambiental; b) tem<br />

possibilitado a articulação <strong>de</strong> professores, pesquisadores e alunos <strong>de</strong> pós-graduação e<br />

graduação <strong>de</strong> diferentes cursos e unida<strong>de</strong>s da UFMG e fora <strong>de</strong>la, consolidando a pesquisa<br />

em caráter interdisciplinar e permanente em torno dos estudos urbanos e regionais. O<br />

projeto <strong>de</strong> pesquisa envolve onze professores pesquisadores <strong>de</strong> Programas <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

(Geografia, Demografia, Economia e Arquitetura e Urbanismo da UFMG e<br />

Ciências Sociais da PUC-<strong>Minas</strong>), da FAFICH/UFMG, um professor visitante (CSU, Chico,<br />

CA), além <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> graduação e pós-graduação.<br />

O projeto busca produzir e aprofundar o conhecimento sobre os processos recentes<br />

<strong>de</strong> produção do espaço urbano e metropolitano na Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />

com vistas a realimentar os <strong>de</strong>bates teóricos e contribuir para se repensar a<br />

questão metropolitana, tendo em vista a estruturação <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> planejamento e<br />

gestão calcado na cooperação e solidarieda<strong>de</strong> entre os municípios e que i<strong>de</strong>ntifique possibilida<strong>de</strong>s<br />

tanto <strong>de</strong> redução dos diferenciais <strong>de</strong> segregação e exclusão sociais como <strong>de</strong><br />

preservação das especificida<strong>de</strong>s socioambientais da região.<br />

Para tanto foram i<strong>de</strong>ntificadas e discutidas questões referentes aos seguintes aspectos:<br />

formas <strong>de</strong> organização socioespacial relacionadas com a emergência <strong>de</strong> alternativas econômicas<br />

envolvendo movimentos comunitários; políticas públicas municipais e metropolitanas<br />

indutoras da ocupação do território ou <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empreendimentos<br />

econômicos, em especial os procedimentos e implicações da regulação urbanística<br />

e ambiental e o papel das instâncias colegiadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação no controle e licenciamento<br />

das ativida<strong>de</strong>s; processos <strong>de</strong> segregação socioespacial e <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>ncial,<br />

vinculando-os à investigação do significado das novas formas associadas à valoração da<br />

natureza e da segurança, implícitas na proliferação <strong>de</strong> loteamentos <strong>de</strong> acesso restrito, os<br />

chamados “condomínios”, no seu potencial alimentador <strong>de</strong> um mercado imobiliário<br />

ascen<strong>de</strong>nte e segregador; transformações e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> permanência na região <strong>de</strong><br />

outras formas <strong>de</strong> urbanização, sejam os núcleos tradicionais, sejam as áreas “populares”<br />

<strong>de</strong> residência dos empregados em serviços domésticos e pessoais; estratégias do setor<br />

privado que po<strong>de</strong>m atuar na direção da socialização dos custos e privatização dos benefícios<br />

associados tanto à valorização fundiária quanto aos impactos socioambientais ne-<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

115


gativos (recursos hídricos, sistema viário, áreas <strong>de</strong> preservação, entre outros) dos investimentos<br />

realizados na região; estratégias das administrações municipais voltadas para a<br />

competição, via atração <strong>de</strong> moradores <strong>de</strong> alta renda e ativida<strong>de</strong>s terciárias superiores;<br />

articulações socioeconômicas e territoriais visando a contribuir para outras formas <strong>de</strong><br />

construção do exercício da política no nível do conjunto da metrópole.<br />

A produção do espaço no eixo-sul foi analisada como resultado <strong>de</strong> uma dinâmica<br />

urbana/metropolitana mais geral e <strong>de</strong> especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse recorte espacial. Trata-se <strong>de</strong><br />

Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental em conflituoso processo <strong>de</strong> institucionalização, com significativos<br />

mananciais <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água <strong>de</strong> alcance metropolitano, sendo também<br />

área historicamente ocupada pela mineração <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> ferro com todas as conseqüências<br />

ambientais associadas a tais usos, entre as quais se inclui uma expressiva concentração<br />

fundiária. Nas últimas décadas vem se configurando como área preferencial <strong>de</strong> expansão<br />

habitacional das chamadas “elites”.<br />

Os resultados <strong>de</strong> tal leitura permitiram i<strong>de</strong>ntificar gran<strong>de</strong> comparabilida<strong>de</strong> com processos<br />

gerais ocorridos em outras regiões metropolitanas, particularmente no que se<br />

refere às formas <strong>de</strong> segregação socioespacial e às novas formas <strong>de</strong> moradia usual e<br />

equivocadamente (em termos legais) referidas como condomínios. Longe <strong>de</strong> serem homogêneos,<br />

os chamados “condomínios” apresentam gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />

ocupação do espaço e <strong>de</strong> valores relacionados aos modos <strong>de</strong> vida, i<strong>de</strong>ntificando-se diferentes<br />

gerações <strong>de</strong> condomínios e distintas práticas socioespaciais dos moradores, com<br />

implicações diversas em relação às perspectivas para o futuro da metrópole. Discute-se<br />

a relação entre os processos <strong>de</strong> produção do espaço e a crescente segregação socioespacial,<br />

bem como a racionalida<strong>de</strong> da ocupação <strong>de</strong> espaços pela população <strong>de</strong> baixa renda,<br />

acompanhando aquela racionalida<strong>de</strong> que presi<strong>de</strong> a localização dos estratos <strong>de</strong> renda alta<br />

comandada pelo mercado imobiliário.<br />

Discute-se também a efetivida<strong>de</strong> da institucionalização e do planejamento das várias<br />

unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação presentes na região: APAs, unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proteção integral e <strong>de</strong><br />

proteção <strong>de</strong> mananciais, parques e um crescente número <strong>de</strong> RPPNs. A mais importante<br />

<strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s é a APA-SUL, que foi estabelecida com base em preocupações <strong>de</strong> cunho<br />

metropolitano e não exclusivamente ecológico. Criada há <strong>de</strong>z anos a partir <strong>de</strong> ampla<br />

mobilização <strong>de</strong> movimentos ambientalistas e sociais, até hoje permanece em situação<br />

in<strong>de</strong>finida quanto ao zoneamento ecológico-econômico, evi<strong>de</strong>nciando os fortes conflitos<br />

<strong>de</strong> interesses entre as ativida<strong>de</strong>s imobiliárias, minerárias e <strong>de</strong> preservação. As perspectivas<br />

<strong>de</strong> esgotamento da mineração prenunciam novas formas <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> “produtos<br />

da natureza”, como a comercialização da água e os lançamentos imobiliários<br />

certificados ambientalmente, transformando o valor <strong>de</strong> uso coletivo inerente à preservação<br />

ambiental em valor <strong>de</strong> troca, materializado na elevação dos valores fundiários e na<br />

elitização do acesso à moradia.<br />

A utilização <strong>de</strong> parâmetros da regulação ambiental na expansão urbana revelou-se uma<br />

área profícua <strong>de</strong> análise, mostrando, por um lado, o ganho e a importância <strong>de</strong> tal incorporação<br />

e, por outro, o quanto os instrumentos <strong>de</strong> gestão ambiental estão pouco adaptados<br />

para regular a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> como a urbanização. Um estudo<br />

116<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


sobre parâmetros <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong> nos condomínios <strong>de</strong>monstrou uma distância expressiva<br />

entre o discurso ambientalizado <strong>de</strong> moradores e promotores imobiliários e as<br />

poucas mudanças <strong>de</strong> valores no cotidiano dos moradores, bem como nas relações <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pendência entre tais fragmentos urbanos e áreas centrais. A questão da autonomia dos<br />

assentamentos é irreal e com poucas perspectivas <strong>de</strong> realização. Tem-se, pelo contrário, a<br />

extensão dos padrões e valores urbanos/metropolitanos a todo o território.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista do planejamento e gestão, o trabalho trouxe à tona a discussão das<br />

políticas urbanas e sua maior ou menor articulação com a discussão da gestão metropolitana.<br />

Observa-se o dilema por que vêm passando os governos municipais, face à crescente<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir alternativas que fortaleçam o po<strong>de</strong>r local, divididos entre<br />

dois paradigmas que vêm orientando a gestão urbana e ambiental contemporânea: a<br />

competição e a solidarieda<strong>de</strong>.<br />

O trabalho recuperou, <strong>de</strong> forma marcante, a centralida<strong>de</strong> da discussão das questões<br />

fundiárias para a compreensão dos processos mais amplos <strong>de</strong> produção do espaço. Em<br />

termos teóricos revisitam-se a abordagem da economia política da urbanização e sua ênfase<br />

no papel dos agentes que atuam no processo, i<strong>de</strong>ntificando-as como fundamentais, mas<br />

ainda assim insuficientes, para dar conta da complexida<strong>de</strong> contemporânea da expansão<br />

urbana. Introduz-se a discussão sobre a trajetória do pensamento ambiental, seus valores e<br />

percepções pre<strong>de</strong>terminadas em relação a processos urbanos, bem como sobre a influência<br />

<strong>de</strong> tais concepções na criação da regulação ambiental e <strong>de</strong> seus instrumentos. A partir<br />

daí busca-se a contribuição da ecologia política para a análise da urbanização contemporânea,<br />

em particular em contextos do Terceiro Mundo, como o caso brasileiro.<br />

Produção do Projeto Eixo-Sul (2002-2006)<br />

A produção do projeto po<strong>de</strong> ser assim sumarizada: um livro 1 composto por 20 capítulos,<br />

envolvendo 24 autores; dois capítulos <strong>de</strong> livros; um artigo em periódico nacional; 27<br />

trabalhos publicados em anais <strong>de</strong> diversos eventos científicos nacionais e internacionais,<br />

entre os quais se incluem encontros <strong>de</strong> associações como ANPUR, ABEP, ANPOCS, ANPPAS,<br />

WPSC e ANZAPS e congressos <strong>de</strong> cartografia, antropologia, economia, história da cida<strong>de</strong><br />

e do urbanismo, sociologia e geografia urbana; e um seminário para discutir a produção<br />

do projeto, com <strong>de</strong>batedores nacionais convidados. Foram realizadas oito dissertações<br />

<strong>de</strong> mestrado em Geografia, Ciências Sociais e Arquitetura e Urbanismo; duas monografias<br />

<strong>de</strong> especialização em Geoprocessamento; e seis <strong>de</strong> graduação em Economia e Geografia.<br />

O projeto envolveu bolsistas <strong>de</strong> apoio técnico (1), <strong>de</strong> iniciação científica (9) e <strong>de</strong> outras<br />

modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bolsas <strong>de</strong> graduação (5 PET e 1 PAD). Há ainda duas teses <strong>de</strong> doutorado<br />

e uma dissertação <strong>de</strong> mestrado em andamento.<br />

1<br />

COSTA, H. S. M.; COSTA G. M.; MENDONÇA,<br />

J. G.; MONTE-MÓR, R. L. M. (Org.). Novas<br />

periferias metropolitanas. Belo Horizonte: C/<br />

Arte, 2006.<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

117


Eventos<br />

118<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

EVENTOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Dia Meteorológico Mundial<br />

No dia 23 <strong>de</strong> março comemora-se o Dia<br />

Meteorológico Mundial, para lembrar a<br />

data, em 1950, da Convenção que criou a<br />

Organização Mundial <strong>de</strong> Meteorologia<br />

(OMM). A cada ano, o tema das comemorações<br />

é <strong>de</strong>finido pela OMM. Em 2006 o<br />

tema central é Prevenção e mitigação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres<br />

naturais. No Brasil várias comemorações<br />

foram feitas em Departamentos <strong>de</strong><br />

Meteorologia das <strong>Universida<strong>de</strong></strong>s Fe<strong>de</strong>rais<br />

e Estaduais, em Institutos <strong>de</strong> Pesquisa e<br />

no Instituto Nacional <strong>de</strong> Meteorologia<br />

(INMET). Em Belo Horizonte a comemoração<br />

ocorreu no dia 24 <strong>de</strong> março, no auditório<br />

do 6° andar do Conselho Regional<br />

<strong>de</strong> Engenharia e Arquitetura (CREA). O<br />

evento foi patrocinado pelo 5º Distrito <strong>de</strong><br />

Meteorologia (5º DISME) do INMET, pelo<br />

Núcleo Regional <strong>de</strong> Meteorologia <strong>de</strong> <strong>Minas</strong><br />

<strong>Gerais</strong> (NRMG), da Socieda<strong>de</strong> Brasileira<br />

<strong>de</strong> Meteorologia (SBMET), e pelo CREA.<br />

Inicialmente foi lida, pelo Professor Fulvio<br />

Cupolillo, diretor do 5º DISME, a<br />

mensagem da OMM sobre o tema central.<br />

A justificativa da Organização para o tema<br />

<strong>de</strong>ste ano está no fato <strong>de</strong> que mais <strong>de</strong> 90%<br />

dos <strong>de</strong>sastres naturais estão relacionados<br />

com eventos meteorológicos, climáticos e<br />

que envolvem a água. No período entre<br />

1992-2001 <strong>de</strong>sastres naturais ocasionaram<br />

mais <strong>de</strong> 622.000 mortes e afetaram aproximadamente<br />

2 bilhões <strong>de</strong> pessoas em<br />

todo o mundo. Em 2005 registraram-se<br />

prolongadas secas no norte da África e em<br />

regiões da Europa, da Ásia, da Austrália e<br />

do Brasil. A OMM, junto com outras instituições<br />

ligadas às Nações Unidas e associando-se<br />

a organismos internacionais em<br />

todos os 187 países membros, atua com<br />

ações significativas na discussão <strong>de</strong> estratégias<br />

para promover a prevenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres<br />

naturais.<br />

As palestras proferidas pelos convidados<br />

– Professor Rubens Leite Vianello, pesquisador<br />

do 5º DISME; Professora Magda<br />

Luzimar <strong>de</strong> Abreu, do Departamento <strong>de</strong><br />

Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>; Professor Luiz Cláudio Costa,<br />

da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Viçosa;<br />

Coronel Valter <strong>de</strong> Souza Lucas, da Coor<strong>de</strong>nadoria<br />

Municipal <strong>de</strong> Defesa Civil<br />

(COMDEC) da Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte<br />

(PBH); e Heloísa Moreira Torres Nunes,<br />

pesquisadora do Sistema <strong>de</strong> Meteorologia<br />

e Recursos Hídricos <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> do<br />

Instituto Mineiro <strong>de</strong> Gestão das Águas (SI-<br />

MGE/IGAM) – versaram, respectivamente,<br />

sobre os seguintes conteúdos:<br />

a. “Verão anômalo 2005/2006 em <strong>Minas</strong><br />

<strong>Gerais</strong>”, tratando <strong>de</strong> um estudo sobre<br />

as condições atmosféricas associadas à<br />

estiagem observada no último verão;<br />

b. “Aspectos climáticos da Região Metropolitana<br />

<strong>de</strong> Belo Horizonte”, abordando<br />

a dinâmica atmosférica relacionada<br />

com a climatologia da capital mineira e<br />

apresentando um estudo sobre dois casos<br />

<strong>de</strong> chuvas intensas que ocorreram,<br />

em março <strong>de</strong> 2006, na região;<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

EVENTOS<br />

119


c. “Institucionalização <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong><br />

monitoramento <strong>de</strong> eventos climáticos<br />

anômalos em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>”, tratando<br />

da importância da formação <strong>de</strong> um grupo<br />

<strong>de</strong> estudos sobre mudanças climáticas<br />

em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> e apresentando um<br />

estudo sobre a ocorrência <strong>de</strong> veranicos<br />

no Estado, aplicado à agricultura;<br />

d. “Paradigmas dos <strong>de</strong>sastres naturais e antrópicos:<br />

ações <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil em Belo<br />

Horizonte”, abordando as ações da <strong>de</strong>fesa<br />

civil na capital mineira frente a <strong>de</strong>sastres<br />

naturais, particularmente durante<br />

episódios <strong>de</strong> chuvas severas no verão;<br />

e. “Sistema <strong>de</strong> alerta <strong>de</strong> enchentes: bacias<br />

dos rios Sapucaí e Doce”, tratando das<br />

experiências do SIMGE na implementação<br />

<strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> alerta <strong>de</strong> enchentes e<br />

dos benefícios <strong>de</strong>ssas ações junto às comunida<strong>de</strong>s<br />

locais.<br />

Entre outros assuntos apresentados, <strong>de</strong>stacou-se<br />

a importância do monitoramento<br />

da distribuição espacial das chuvas na<br />

cida<strong>de</strong> e da implantação <strong>de</strong> tecnologias <strong>de</strong><br />

monitoramento <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong>s severas,<br />

como o radar meteorológico. Foi também<br />

enfatizada a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colaboração<br />

entre as várias entida<strong>de</strong>s que coletam e utilizam<br />

os dados meteorológicos, no sentido<br />

<strong>de</strong> disponibilizá-los entre si e para a<br />

comunida<strong>de</strong> acadêmica, promovendo<br />

ações que contribuam para o entendimento<br />

e o aprimoramento da previsão do tempo<br />

e clima na região.<br />

O evento contribuiu positivamente para<br />

o aprofundamento da discussão relativa<br />

aos impactos climáticos sobre a socieda<strong>de</strong>,<br />

particularmente os relacionados a extremos,<br />

<strong>de</strong>stacando-se a ocorrência <strong>de</strong> estiagens<br />

e seus impactos na agricultura e <strong>de</strong><br />

inundações tanto em regiões urbanas quanto<br />

no interior do Estado. Foi também uma<br />

excelente oportunida<strong>de</strong> para congregar<br />

especialistas <strong>de</strong> diversas áreas relacionadas<br />

à climatologia e <strong>de</strong> influência na socieda<strong>de</strong>,<br />

numa abordagem interdisciplinar.<br />

120<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

EVENTOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

EVENTOS<br />

121


Dissertações<br />

<strong>de</strong>fendidas no Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-graduação em<br />

Geografia/UFMG no<br />

primeiro semestre <strong>de</strong> 2006<br />

122<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


A evolução do relevo adjacente à margem<br />

continental passiva brasileira: das “chapadas” do<br />

Jequitinhonha à planície costeira do sul da Bahia<br />

Caio Mário Leal Ferraz<br />

Orientador<br />

Roberto Célio Valadão<br />

Estudos recentes da evolução do relevo adjacente às margens continentais passivas procuram<br />

correlacionar soerguimentos, alterações ao nível da base e <strong>de</strong>posição nas bacias<br />

marginais à geomorfologia continental. Este trabalho insere-se nesse contexto e analisa<br />

área localizada no NE <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, S da Bahia e NW do Espírito Santo, configurando<br />

um “corredor” que se esten<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o flanco oriental da Serra do Espinhaço à linha <strong>de</strong><br />

costa do Atlântico Sul, com arcabouço geológico composto por unida<strong>de</strong>s litológicas<br />

arqueano-proterozóicas e malha estrutural <strong>de</strong> lineamentos <strong>de</strong> direções principais NE e<br />

NW. Nela estão presentes três gran<strong>de</strong>s unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relevo: Planalto do Jequitinhonha,<br />

caracterizado pela ocorrência <strong>de</strong> “chapadas” e elevações residuais da Serra do Espinhaço;<br />

unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> dissecação fluvial estruturalmente orientada, em sua porção central; e<br />

tabuleiros na fachada sublitorânea. Para remontar à evolução meso-cenozóica do relevo<br />

da área investigada, responsável pela configuração da paisagem atual, estabeleceu-se uma<br />

metodologia baseada em interpretação cartográfica – incluindo confecção <strong>de</strong> seções<br />

topográficas regionais –, análise <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong> sensoriamento remoto, revisão bibliográfica<br />

e trabalhos <strong>de</strong> campo. Foram i<strong>de</strong>ntificadas duas superfícies <strong>de</strong> aplanamento. A<br />

mais antiga, neste trabalho <strong>de</strong>nominada Superfície Cimeira, teve sua gênese iniciada durante<br />

o Aptiano, a partir da organização da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> drenagem ao incipiente Atlântico Sul.<br />

Sua elaboração prolongou-se até o Neógeno (Mio-Plioceno), sendo encerrada por soerguimentos<br />

crustais que afetaram a área investigada. Os remanescentes <strong>de</strong>ssa superfície<br />

estão preservados em forma <strong>de</strong> “chapadas” que caracterizam o Planalto do Jequitinhonha,<br />

com altitu<strong>de</strong>s médias na cota dos 950m. A partir dos soerguimentos durante o Mio-<br />

Plioceno, iniciou-se a elaboração da Superfície Sublitorânea, cujo <strong>de</strong>senvolvimento alcançou<br />

o Pleistoceno (Calabriano), sendo interrompido por episódios <strong>de</strong> soerguimentos<br />

crustais pleistocênicos. Seus remanescentes ocorrem na fachada sublitorânea, muito bem<br />

caracterizados por tabuleiros que configuram o relevo da porção oriental da área.<br />

Impacto das novas técnicas <strong>de</strong> geoinformação nos estudos<br />

espaciais e nas representações cartográficas <strong>de</strong>stinados ao turismo<br />

No período pós-Segunda Guerra, o mundo passa por mudanças significativas quanto à<br />

forma <strong>de</strong> percepção do espaço geográfico. Essa nova visão é acompanhada pelas revo-<br />

Christian Rezen<strong>de</strong> Freitas<br />

Orientadora<br />

Ana Clara Mourão Moura<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

123


luções tecnológicas que afetam todos os aspectos da vida humana e, por conseqüência,<br />

alteram as formas e os usos dados a esse mesmo espaço geográfico. Ao se propor a<br />

realizar a gestão <strong>de</strong>sse novo espaço, o planejador <strong>de</strong>fronta-se com novos e mais complexos<br />

<strong>de</strong>safios e, para enfrentar essa realida<strong>de</strong>, dispõe <strong>de</strong> um conjunto variado <strong>de</strong> técnicas<br />

e ferramentas <strong>de</strong> análise espacial. Este trabalho visa a i<strong>de</strong>ntificar essa nova visão <strong>de</strong> espaço,<br />

particularmente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma visão turística, consi<strong>de</strong>rando que os processos e os<br />

fenômenos estudados po<strong>de</strong>m condicionar essa ativida<strong>de</strong> hoje bastante difundida. Até<br />

que ponto essa nova visão, associada ao novo conjunto <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> análise e representação<br />

espacial, influencia o Planejamento Turístico e para ele contribui? Quais as vantagens<br />

da utilização dos Sistemas <strong>de</strong> Informações Geográficos, em conjunto com as novas<br />

formas <strong>de</strong> comunicação cartográficas introduzidas pela nova mídia, a internet?<br />

Cláudia Almeida Sampaio<br />

Orientadora<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />

Avaliação da recuperação <strong>de</strong> área <strong>de</strong>gradada, através <strong>de</strong> indicadores<br />

ambientais biológicos e pedológicos, na APE Mutuca, Nova Lima<br />

Na busca pela recuperação dos ambientes naturais é imperativo fazer pesquisas voltadas<br />

para a avaliação <strong>de</strong> indicadores ambientais que <strong>de</strong>monstrem o grau <strong>de</strong> recuperação do<br />

solo e da flora. Esta dissertação objetivou analisar algumas características pedológicas e<br />

biológicas como possíveis indicadores ambientais que possibilitem reconhecer e avaliar<br />

o processo <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong>gradada. A área <strong>de</strong> estudo foi dividida em<br />

zonas: impactada (estrada), não impactada (mata nativa) e em recuperação. Esta última<br />

foi subdividida em Zona <strong>de</strong> Recuperação I (ZRI, correspon<strong>de</strong>nte à borda) e Zona <strong>de</strong><br />

Recuperação II (ZRII, correspon<strong>de</strong>nte ao centro). As amostras foram coletadas nas estações<br />

seca/2004 e chuvosa/2005, na APE Mutuca, Nova Lima-MG. Para a avaliação dos<br />

pedoindicadores foram analisadas porcentagem <strong>de</strong> argila, porcentagem <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> agregados, pH e matéria orgânica. Como bioindicadores foram avaliados índice <strong>de</strong><br />

área foliar, luz inci<strong>de</strong>nte, porcentagem <strong>de</strong> recobrimento do solo e respiração microbiana.<br />

Testes <strong>de</strong> Tukey e Kruskal-Wallis foram realizados em cada indicador para conhecer<br />

as similarida<strong>de</strong>s entre as zonas. As correlações entre pH e porcentagem <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> agregados, pH e porcentagem <strong>de</strong> matéria orgânica, e índice <strong>de</strong> área foliar e luz inci<strong>de</strong>nte<br />

mostraram-se inversas e significativas. As correlações entre índice <strong>de</strong> área foliar e<br />

porcentagem <strong>de</strong> recobrimento do solo, porcentagem <strong>de</strong> recobrimento do solo e respiração<br />

microbiana, e porcentagem <strong>de</strong> matéria orgânica e respiração microbiana indicaram<br />

tendência direta e significativa. As <strong>de</strong>mais tendências <strong>de</strong> correlações não pu<strong>de</strong>ram<br />

ser confirmadas. Consi<strong>de</strong>ra-se que os pedoindicadores selecionados informaram, a<strong>de</strong>quadamente,<br />

o grau <strong>de</strong> recuperação do solo, tendo os bioindicadores por sua vez <strong>de</strong>monstrado<br />

que a recuperação do componente biótico está sendo alcançada. Por fim, ressaltase<br />

que os projetos <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong>gradadas <strong>de</strong>vem ser avaliados periodicamente,<br />

a fim <strong>de</strong> garantir que seus objetivos sejam atingidos, no menor tempo possível.<br />

124<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Gênese, caracterização e cronologia<br />

das tufas da Serra das Araras, Mato Grosso<br />

Na face leste da Província Serrana mato-grossense em contato com a planície do Pantanal,<br />

na região da serra das Araras, ocorrem notáveis <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> tufas ativas e fósseis. Os<br />

primeiros são <strong>de</strong>pósitos essencialmente fluviais, <strong>de</strong> pequena espessura, estratificados,<br />

bastante friáveis, e <strong>de</strong> reduzida distribuição espacial na área <strong>de</strong> estudo. Os <strong>de</strong>pósitos<br />

fósseis, <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> formação Xaraiés, são representados por tufas calcárias<br />

distribuídas em cerca <strong>de</strong> 30km <strong>de</strong> extensão, com espessura máxima i<strong>de</strong>ntificada <strong>de</strong> 20m,<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> faciológica e <strong>de</strong> evolução complexa.<br />

O objetivo principal <strong>de</strong>ste estudo foi <strong>de</strong> caracterizar os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> tufas da serra das<br />

Araras e compreen<strong>de</strong>r sua gênese. A caracterização compreen<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>finição da área <strong>de</strong><br />

ocorrência e o limite do <strong>de</strong>pósito, sua estratigrafia interna e no contexto da geologia na<br />

qual está inserida, a discriminação faciológica dos litotipos e os processos atuantes sobre<br />

o <strong>de</strong>pósito. A fim <strong>de</strong> melhor caracterizar os <strong>de</strong>pósitos, amostras da formação Xaraiés<br />

foram datadas por meio do 230 Th/ 234 U por ICP/MS, e análises químicas por fluorescência<br />

<strong>de</strong> raios X foram aplicadas em diversas amostras.<br />

O mapeamento original existente para as rochas da formação Xaraiés foi refeito, resultando<br />

em ampliação da área do mapeamento anteriormente existente. A espessura do<br />

<strong>de</strong>pósito foi revista, indicando uma espessura confirmada <strong>de</strong> 20m, em contradição com<br />

dados existentes na literatura on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>pósito exibiria 100m <strong>de</strong> espessura.<br />

Daniel Corrêa<br />

Orientador<br />

Philippe Maillard<br />

Co-orientador<br />

Augusto Sarreiro Auler<br />

Do “pão com lingüiça” ao “hotel fazenda”: trajetória isolada ou caminho<br />

para a construção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento do espaço turístico em zona rural?<br />

O espaço rural brasileiro, há algumas décadas, era <strong>de</strong>stinado exclusivamente ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s agropecuárias. A renda proveniente <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> era responsável<br />

pela manutenção e sobrevivência das famílias rurais. Após uma forte crise agrícola, as<br />

famílias rurais introduziram no campo, como alternativa <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> renda, a prestação<br />

<strong>de</strong> serviços. Diversas ativida<strong>de</strong>s começaram a se <strong>de</strong>senvolver, reflexo da multifuncionalida<strong>de</strong><br />

rural. Entre tais ativida<strong>de</strong>s, o turismo no espaço rural vem se <strong>de</strong>senvolvendo com o<br />

objetivo <strong>de</strong> gerar renda e emprego para a comunida<strong>de</strong> local e contribuir para a qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> vida <strong>de</strong> sua população. A partir <strong>de</strong>ssa perspectiva, este trabalho pesquisou <strong>de</strong>zoito<br />

empreendimentos <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços aos turistas/visitantes, localizados às margens<br />

da BR-381 ou próximos a ela, no trecho <strong>de</strong> Ravena, distrito <strong>de</strong> Sabará, passando<br />

por Roças Novas, distrito <strong>de</strong> Caeté, e seguindo em direção à zona rural <strong>de</strong> Nova União<br />

e Bom Jesus do Amparo/<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, com o objetivo <strong>de</strong> analisar os impactos socioeconômicos<br />

proporcionados por essa ativida<strong>de</strong> naquelas localida<strong>de</strong>s. Diagnosticou-se<br />

que tais empreendimentos, por serem <strong>de</strong> diversas categorias e possuírem características<br />

distintas, contribuem <strong>de</strong> forma diferenciada no <strong>de</strong>senvolvimento da região. Além disso,<br />

por se estruturarem <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sarticulada, necessitam <strong>de</strong> planejamento para or<strong>de</strong>nar as<br />

ações empreen<strong>de</strong>doras, com intuito <strong>de</strong> promover um <strong>de</strong>senvolvimento rural na área <strong>de</strong><br />

Daysa Andra<strong>de</strong> Oliveira<br />

Orientador<br />

Allaoua Saadi<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

125


estudo que beneficie todos os atores envolvidos: a comunida<strong>de</strong> local, os empreen<strong>de</strong>dores<br />

e o po<strong>de</strong>r público. Para alcançar os objetivos <strong>de</strong>ste trabalho, realizou-se uma pesquisa<br />

<strong>de</strong> caráter exploratório-<strong>de</strong>scritivo, com análises quantitativa e qualitativa.<br />

Evilânia Alfenas Moreira<br />

Orientadora<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />

A ocupação da Bacia do Rio das Velhas<br />

relacionada aos tipos <strong>de</strong> solo e processos erosivos<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é i<strong>de</strong>ntificar e analisar as relações entre os tipos e a forma <strong>de</strong><br />

ocupação da bacia do Rio das Velhas, buscando a integração <strong>de</strong> parâmetros físicos e<br />

humanos. Para isso foi utilizada a técnica <strong>de</strong> geoprocessamento <strong>de</strong> sobreposição <strong>de</strong> níveis<br />

temáticos. A mineração, apesar <strong>de</strong> ter sido a base da ocupação da região, está concentrada<br />

em uma pequena área <strong>de</strong> Neossolos Litólicos no sul da bacia. Estes solos são<br />

rasos e favorecem, por isso, a exploração da rocha. Portanto, apesar <strong>de</strong> estar diretamente<br />

voltada para os recursos geológicos, a escolha da área a ser minerada po<strong>de</strong> ter uma<br />

influência, ainda que mínima, do tipo <strong>de</strong> solo predominante naquela região A análise dos<br />

solos e do seu uso na bacia do Rio das Velhas mostrou que, apesar <strong>de</strong> haver uma certa<br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> solos na região, com predomínio <strong>de</strong> Latossolos e Cambissolos, seu uso é<br />

menos diversificado, havendo predomínio da pastagem em praticamente todos os tipos<br />

<strong>de</strong> solo. A pastagem sobre Cambissolos vem sendo a responsável pela maioria dos<br />

processos erosivos acelerados na bacia. A opção pela pastagem po<strong>de</strong> ser justificada pela<br />

pouca aptidão agrícola que caracteriza praticamente todos os solos da bacia. As áreas <strong>de</strong><br />

lavouras são pouco expressivas e estão concentradas em Latossolos, que apresentam, no<br />

geral, uma melhor aptidão agrícola. As áreas mais conservadas correspon<strong>de</strong>m àquelas<br />

nas quais as condições naturais do solo inviabilizam seu uso. Os <strong>de</strong>mais solos concentram<br />

suas áreas mais conservadas próximo à Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />

sendo que neste caso sua conservação se <strong>de</strong>ve, principalmente, à criação <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Conservação, ou seja, por opção do próprio homem.<br />

Fernando Gomes Braga<br />

Orientador<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

Sistema urbano, re<strong>de</strong>s migratórias e integração territorial:<br />

um estudo da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s Centrais do Brasil<br />

Durante a última meta<strong>de</strong> do século XX a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s brasileiras sofreu gran<strong>de</strong>s<br />

transformações. Partindo <strong>de</strong> uma estrutura frágil e rarefeita, o sistema urbano nacional<br />

ganhou forma e consistência, alimentado pela crescente industrialização e pelo expressivo<br />

êxodo rural. Atualmente, mais <strong>de</strong> 80% da população brasileira vivem em cida<strong>de</strong>s, e as<br />

re<strong>de</strong>s urbanas são, sem dúvida, o elemento sintetizador da articulação territorial do Brasil.<br />

Tendo em conta a importância do estudo das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s, esta dissertação busca<br />

reunir subsídios para uma proposta <strong>de</strong> estudo da re<strong>de</strong> urbana nacional, apoiando-se em<br />

métodos <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s. Inicialmente apresenta-se uma proposta <strong>de</strong> abordagem do<br />

sistema <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s brasileiro a partir da seleção dos municípios <strong>de</strong> maior expressão, em<br />

termos <strong>de</strong> portes populacional e urbano, reunidos na <strong>de</strong>nominada Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s<br />

126<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Centrais (RLC) do Brasil. Esse recorte territorial é analisado entre os anos <strong>de</strong> 1940 e 2000,<br />

ressaltando-se as principais alterações em termos do surgimento <strong>de</strong> novos vínculos entre<br />

os lugares e novas territorialida<strong>de</strong>s impregnadas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atração para novos movimentos<br />

populacionais. Consi<strong>de</strong>rando-se a alta correlação entre as direções dos fluxos<br />

migratórios internos e as tendências do processo <strong>de</strong> urbanização, realiza-se um estudo<br />

<strong>de</strong>talhado das características dos movimentos e dos migrantes, qualificando-se a contribuição<br />

<strong>de</strong>stes para as economias locais. Finalmente, valendo-se <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> análise <strong>de</strong><br />

estruturas <strong>de</strong> relações sociais em re<strong>de</strong>s representadas por matrizes, realiza-se uma abordagem<br />

das trocas populacionais entre as localida<strong>de</strong>s da RLC, <strong>de</strong>screvendo-se as mais<br />

importantes características estruturais das articulações entre os municípios, como a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

e a centralida<strong>de</strong> dos vínculos entre os lugares.<br />

A legislação urbanística e a produção do espaço:<br />

estudo do bairro Buritis em Belo Horizonte<br />

O presente trabalho discute, a partir do estudo da estruturação do bairro Buritis, a inserção<br />

do planejamento urbano na produção do espaço <strong>de</strong> Belo Horizonte. Para tanto,<br />

toma como fio condutor da pesquisa a análise das principais leis municipais <strong>de</strong> parcelamento,<br />

ocupação e uso do solo, especialmente no tocante aos seus instrumentos <strong>de</strong> controle<br />

urbanístico e às suas relações com as instâncias <strong>de</strong> participação voltadas para a<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> políticas urbanas. A hipótese norteadora é que a evolução <strong>de</strong>sses instrumentos<br />

acompanhou a crescente complexida<strong>de</strong> dos processos envolvidos na produção do<br />

espaço do município e que a capacida<strong>de</strong> da legislação urbanística em contribuir para a<br />

melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e para o aumento da justiça social é potencializada pela<br />

forma como a socieda<strong>de</strong> se manifesta nessas instâncias. O estudo <strong>de</strong>ssas leis i<strong>de</strong>ntificou<br />

um importante movimento em direção a um tratamento mais integrado das questões<br />

urbanas, especialmente nos aspectos relacionados ao meio ambiente, às áreas precariamente<br />

ocupadas pelas populações mais carentes, ao tratamento das especificida<strong>de</strong>s locais<br />

e ao reforço do princípio da função social da proprieda<strong>de</strong>. De modo semelhante,<br />

notou-se uma ampliação na capacida<strong>de</strong> das instâncias <strong>de</strong> participação em contribuir para<br />

os alcances das legislações urbanísticas, refletindo o processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização do<br />

país e a mudança nos paradigmas adotados pelo planejamento urbano nacional. O estudo<br />

da formação do bairro Buritis investigou a transposição dos dispositivos previstos<br />

nas leis para as práticas socioespaciais e buscou a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> novas tendências para<br />

o planejamento urbano municipal, que seriam propiciadas pela incorporação dos conflitos<br />

gerados pelos processos <strong>de</strong> apropriação e dominação inerentes à produção do espaço.<br />

Nesse sentido, foram i<strong>de</strong>ntificadas duas situações que po<strong>de</strong>m contribuir para a emergência<br />

<strong>de</strong> novas práticas e políticas urbanas: a inserção do cidadão no processo <strong>de</strong><br />

planejamento urbano, manifestando <strong>de</strong>mandas originadas <strong>de</strong> práticas cotidianas, e a aplicação<br />

integrada das legislações urbanísticas e <strong>de</strong> controle ambiental.<br />

Letícia Maria Resen<strong>de</strong><br />

Epaminondas<br />

Orientador<br />

Geraldo Magela Costa<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

127


Marília Ferreira Gomes<br />

Orientador<br />

Philippe Maillard<br />

Estimativa da estrutura do cerrado a partir <strong>de</strong><br />

dados <strong>de</strong> multisensores e <strong>de</strong> dados históricos<br />

O cerrado é uma formação savânica lenhosa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> biodiversida<strong>de</strong>, que está sendo<br />

convertido em monocultura. Uma metodologia para sua caracterização a partir <strong>de</strong> dados<br />

<strong>de</strong> sensoriamento remoto não foi ainda <strong>de</strong>finida, sendo tema <strong>de</strong> pesquisa ativa.<br />

Dados óticos já <strong>de</strong>monstraram seu potencial e limitações, mas poucos trabalhos <strong>de</strong>dicaram-se<br />

à avaliação dos dados <strong>de</strong> radar orbitais e nenhum com dados do satélite cana<strong>de</strong>nse<br />

RADARSAT-l. Sendo formação aberta, o cerrado po<strong>de</strong> ser mo<strong>de</strong>lado como um<br />

mosaico <strong>de</strong> cobertura vegetal e <strong>de</strong> solo e a resposta <strong>de</strong> sensores radar <strong>de</strong>veria resultar <strong>de</strong><br />

combinação <strong>de</strong> retroespalhamento direto e volumétrico. Estudos sugerem que dados <strong>de</strong><br />

radar são mais eficientes quando utilizados em conjunto com dados óticos, abordagem<br />

contemplada na dissertação. Dados históricos <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradações, medidas alométricas e<br />

dados <strong>de</strong> umida<strong>de</strong> gravimétrica dos solos <strong>de</strong> 35 áreas <strong>de</strong> amostragem foram usados<br />

para caracterizar a ida<strong>de</strong> e as proprieda<strong>de</strong>s estruturais do cerrado em estado clímax e <strong>de</strong><br />

regeneração em área <strong>de</strong> proteção ambiental do norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, já usada como<br />

plantação <strong>de</strong> eucalipto: o Parque Estadual Veredas do Peruaçu (PEVP). A pesquisa avaliou<br />

dados RADARSAT-l a partir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> resposta <strong>de</strong> retroespalhamento em dois<br />

ângulos <strong>de</strong> incidência (26° e 45°) e duas estações fenológicas (abril e setembro), assim<br />

como o potencial <strong>de</strong> acrescentar a esses dados, um índice <strong>de</strong> vegetação (NDVI) extraído<br />

<strong>de</strong> dados óticos do satélite sino-brasileiro CBERS-2. Técnicas <strong>de</strong> correlação estatísticas e<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> regressão múltipla foram usados para mo<strong>de</strong>lar a possível contribuição <strong>de</strong>sses<br />

dados para a caracterização estrutural do cerrado. Os resultados mostraram que a<br />

umida<strong>de</strong> do solo tem um efeito dominante sobre o retroespalhamento das quatro imagens<br />

RADARSAT, especialmente nos dados <strong>de</strong> abril com 26°. A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> das árvores<br />

foi a variável estrutural com maior contribuição no retroespalhamento da estação úmida.<br />

O histórico <strong>de</strong> incêndios <strong>de</strong>monstrou influência sobre as características das amostras.<br />

A maioria dos mo<strong>de</strong>los teve sensibilida<strong>de</strong> fraca a mo<strong>de</strong>rada às diferenças estruturais da<br />

vegetação. Os dados <strong>de</strong> NDVI do CBERS-2 reiteraram resultados anteriores <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong><br />

à composição das comunida<strong>de</strong>s vegetais e aos parâmetros que <strong>de</strong>finem a proporção<br />

solo-vegetação. A união dos dados NDVI com os dados radar não contribuiu significativamente<br />

na caracterização estrutural do cerrado. A pesquisa permitiu melhor<br />

entendimento dos mecanismos <strong>de</strong> retroespalhamento radar na sua relação com a estrutura<br />

do cerrado, especialmente nas limitações em termos <strong>de</strong> freqüência e polarização.<br />

Possibilitou nova trajetória <strong>de</strong> pesquisa utilizando dados radar <strong>de</strong> outras configurações e<br />

no aprimoramento <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> dados em campo para estudos <strong>de</strong> sensoriamento<br />

remoto sobre o cerrado.<br />

128<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Leituras do “lugar-mundo-vivido” e do<br />

“lugar-território” a partir da intersubjetivida<strong>de</strong><br />

Este estudo, baseado na abordagem da fenomenologia-existencialista, <strong>de</strong> Maurice Merleau-Ponty,<br />

na sociologia fenomenológica, <strong>de</strong> Alfred Schutz, e na Teoria das Representações<br />

Sociais, segundo Serge Moscovici, teve como objetivo refletir, a partir da intersubjetivida<strong>de</strong>,<br />

acerca da construção social <strong>de</strong> duas categorias espaciais geográficas: o<br />

“lugar-mundo-vivido” e o “lugar-território”. A fenomenologia-existencialista, <strong>de</strong> Merleau-Ponty,<br />

discute a sensação e a percepção para explicar a manifestação dos fenômenos<br />

ou facticida<strong>de</strong> no espaço, consi<strong>de</strong>rando a inter-relação entre os sentidos compartilhados<br />

ou as percepções dos sujeitos envolvidos, sendo então possibilitado o fazer<br />

existencial. A sociologia fenomenológica, <strong>de</strong> Alfred Schutz, parte do cotidiano e da dinâmica<br />

do mundo-vivido, associando-o ao intercâmbio entre um sistema <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas<br />

subjetivas que, organizadas e em comunicação, constroem o mundo social. Já a Teoria<br />

das Representações Sociais visa a um melhor entendimento do processo <strong>de</strong> construção<br />

intersubjetiva da realida<strong>de</strong> entendida não como soma <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s, mas como relação<br />

entre estas últimas. Ela se constitui <strong>de</strong> uma fusão <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s que passam pelo<br />

encontro do imaginário, via comunicação, proporcionando ao fazer existencial o compartilhar<br />

<strong>de</strong> significado. Consi<strong>de</strong>radas essas colocações, buscou-se i<strong>de</strong>ntificar a ponte<br />

entre a subjetivida<strong>de</strong> e a construção intersubjetiva/social da realida<strong>de</strong>, a fim <strong>de</strong> averiguar<br />

suas relações com conceitos <strong>de</strong> “espaço” na Geografia. Neste caso, foram consi<strong>de</strong>radas<br />

as categorias “lugar-mundo-vivido” e “lugar-território”, não como categorias antagônicas,<br />

mas complementares, na ampliação da leitura espacial. Além das idéias dos teóricos<br />

abordados, as críticas também foram verificadas em outros autores, apontando-se os<br />

limites e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las. Após essas incursões teóricas, foram <strong>de</strong>stacadas<br />

as convergências e as divergências entre as abordagens trabalhadas por geógrafos,<br />

nas suas diversas linhas <strong>de</strong> pesquisa, frente às reflexões referentes às categorias “lugarmundo-vivido”<br />

e “lugar-território”. Diversos estudos <strong>de</strong> caso constituíram-se nos exemplos,<br />

mediando o diálogo entre as relações feitas e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ampliação teórico-metodológica.<br />

Assim, o estudo avançou no diálogo inter/transdisciplinar, trazendo à<br />

epistemologia geográfica novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compreensão da realida<strong>de</strong> espacial numa<br />

dimensão intersubjetiva da realida<strong>de</strong>.<br />

Matusalém <strong>de</strong> Brito Duarte<br />

Orientadora<br />

Doralice Barros Pereira<br />

Regiões em movimento: um olhar sobre a geografia<br />

histórica do Sul <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> e da Zona da Mata mineira<br />

Des<strong>de</strong> o tempo dos relatos <strong>de</strong> viagem, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> atraiu o interesse <strong>de</strong> vários pesquisadores.<br />

Sua história e economia são repletas <strong>de</strong> fatores que, <strong>de</strong> certa forma, a particularizam<br />

<strong>de</strong>ntro do contexto dos <strong>de</strong>mais estados brasileiros. Como exemplos <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>,<br />

po<strong>de</strong>mos lembrar <strong>de</strong> sua ocupação inicial precocemente urbana, ao contrário do<br />

restante do então Brasil colônia. Entre os diversos temas que contribuem para a elucidação<br />

do mosaico mineiro, o estudo do século XIX tem atraído especial interesse, dada a<br />

Rafael Rangel Giovanini<br />

Orientador<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

129


sua importância para a formação do espaço econômico mineiro nos dias atuais. Parte<br />

importante <strong>de</strong>ssa história se dá sobre os terrenos do Sul <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> e da Zona da Mata. A<br />

opção por esses espaços <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> sua importância no contexto da <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> do<br />

período, em que respondiam pela maior parte da arrecadação estadual e por gran<strong>de</strong><br />

parte da população. As interpretações e análises utilizadas baseiam-se no enfoque geohistórico.<br />

Trata-se do estudo das Geografias do passado, ou seja, da análise e interpretação<br />

da organização espacial das socieda<strong>de</strong>s do passado. Outro traço marcante <strong>de</strong>ssa abordagem<br />

é a inclusão <strong>de</strong> variáveis relativas à relação entre o meio natural e o homem, através<br />

do uso <strong>de</strong> trabalhos da Geografia Física. O período tratado vai <strong>de</strong> 1808 a 1897 e a<br />

regionalização utilizada é uma adaptação das Regiões <strong>de</strong> Planejamento elaboradas pela<br />

Secretaria <strong>de</strong> Estado do Planejamento e Coor<strong>de</strong>nação Geral (SEPLAN).<br />

Rodrigo Nunes Ferreira<br />

Orientador<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

Dinâmica do mercado <strong>de</strong> trabalho formal, migrações no emprego e o<br />

processo <strong>de</strong> reestruturação territorial no Brasil contemporâneo<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é investigar a relação entre a geração <strong>de</strong> empregos formais na<br />

década <strong>de</strong> 1990 e início do século XXI e a dinâmica das migrações no mercado formal<br />

<strong>de</strong> trabalho no período <strong>de</strong> 1995 a 2003. Esse período foi marcado por uma reestruturação<br />

da economia nacional, com impactos no or<strong>de</strong>namento territorial das ativida<strong>de</strong>s econômicas<br />

e, conseqüentemente, na configuração dos fluxos migratórios. Utilizam-se o<br />

recorte espacial da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s Centrais (RLC) e, como principal fonte dos<br />

dados secundários, a Relação Anual <strong>de</strong> Informações Sociais (RAIS). Primeiramente, apresentam-se<br />

as principais características da dinâmica espacial do mercado <strong>de</strong> trabalho formal<br />

no Brasil no período 1990-2002, precedidas <strong>de</strong> uma breve análise, fundamentada na<br />

literatura, sobre o seu funcionamento nas últimas décadas. Em seqüência, faz-se um estudo<br />

sobre a mobilida<strong>de</strong> geográfica <strong>de</strong> trabalhadores no mercado formal entre 1995 e<br />

2003, utilizando-se o recorte regional e hierárquico da RLC. Não obstante a manutenção<br />

das históricas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s espaciais, o estudo permitiu <strong>de</strong>stacar um maior dinamismo<br />

do mercado <strong>de</strong> trabalho em localida<strong>de</strong>s fora das gran<strong>de</strong>s aglomerações urbanas, o que<br />

vem possibilitando a essas territorialida<strong>de</strong>s emergentes atrair mão-<strong>de</strong>-obra migrante. Entretanto,<br />

as tradicionais regiões metropolitanas do Centro-Sul permanecem como a melhor<br />

alternativa, em termos salariais, para a mão-<strong>de</strong>-obra mais instruída. Assim, ficou evi<strong>de</strong>nte<br />

que a migração ainda é uma alternativa eficaz na manutenção ou melhoria dos rendimentos<br />

do trabalho, mas tal possibilida<strong>de</strong> mostrou-se diferenciada <strong>de</strong> acordo com o nível <strong>de</strong><br />

instrução, o tipo <strong>de</strong> inserção setorial e o local <strong>de</strong> origem ou <strong>de</strong>stino do imigrante.<br />

130<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Geografias <strong>de</strong>fine o seu perfil editorial a partir das linhas <strong>de</strong> pesquisa vigentes no Departamento<br />

<strong>de</strong> Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, incluindo as que fornecem sustentação<br />

ao seu Programa <strong>de</strong> Pós-graduação. Temáticas correlatas originárias do interior da ciência<br />

geográfica assim como outras originárias <strong>de</strong> seu contato com os <strong>de</strong>mais campos do saber são,<br />

também, <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> Geografias.<br />

Aos autores<br />

Os pesquisadores interessados em publicar na<br />

revista Geografias <strong>de</strong>vem preparar os originais dos<br />

seus trabalhos – artigos, notas ou resenhas – conforme<br />

as orientações que se seguem, exigências<br />

obrigatórias para o recebimento dos textos.<br />

Estes serão encaminhados para avaliação, conforme<br />

o previsto pelo regimento do periódico.<br />

1. Os textos enviados para esta revista <strong>de</strong>verão<br />

ser inéditos e redigidos em língua portuguesa<br />

ou em espanhol.<br />

2. Os artigos terão o máximo <strong>de</strong> 25 páginas e as<br />

resenhas o mínimo <strong>de</strong> duas páginas, em formato<br />

A4 (210 x 297 mm), impresso em uma<br />

só face, sem rasuras e/ou emendas.<br />

3. Os originais <strong>de</strong>verão ser entregues em duas<br />

vias impressas e uma via em disquete ou CD-<br />

ROM (digitados em Word for Windows), com a<br />

seguinte formatação:<br />

a. Título: centralizado, negritado e apenas com<br />

a primeira letra em maiúscula;<br />

b. Nome completo do(s) autor(es): na segunda<br />

linha, centralizado(s) e seguido(s) do<br />

nome da instituição <strong>de</strong> filiação e titulação,<br />

entre parênteses;<br />

c. Subtítulos <strong>de</strong> seções: sem recuo, sem numeração,<br />

negritados e apenas com a primeira<br />

letra em maiúscula;<br />

d. Texto digitado em fonte Times New Roman,<br />

tamanho 12;<br />

e. Espaço entre linhas <strong>de</strong> 1,5 e espaço duplo<br />

entre as seções do texto, assim como entre<br />

o texto e as citações longas, as ilustrações,<br />

as tabelas etc.;<br />

f. Margens superior e inferior <strong>de</strong> 3 cm, e margens<br />

esquerda e direita <strong>de</strong> 2,5 cm;<br />

g. Recuo <strong>de</strong> 2 cm no início do parágrafo e recuo<br />

<strong>de</strong> 4 cm nas citações longas;<br />

h. Uso <strong>de</strong> itálico para termos estrangeiros;<br />

i. Uso <strong>de</strong> itálico para títulos <strong>de</strong> livros e periódicos.<br />

4. As informações recolhidas <strong>de</strong> outros autores<br />

<strong>de</strong>vem ser apresentadas, no <strong>de</strong>correr do texto,<br />

da seguinte forma:<br />

a. quando se fizer referência ao autor no corpo<br />

do texto, seu nome <strong>de</strong>ve vir grafado somente<br />

com as iniciais em maiúsculas, seguido<br />

<strong>de</strong> data e página entre parênteses. Ex:<br />

De acordo com Milton Santos (1996, p. 23);<br />

b. quando o autor for citado sem que tenha<br />

seu nome sido mencionado no corpo do<br />

texto, <strong>de</strong>ve ser grafado apenas seu sobrenome,<br />

entre parênteses, com todas as letras<br />

em maiúsculas, seguido <strong>de</strong> data e página<br />

(SANTOS, 1996, p. 23). Essa regra <strong>de</strong>ve ser<br />

utilizada tanto para citações curtas como<br />

para citações longas.<br />

5. As citações textuais curtas, com 3 linhas ou<br />

menos, <strong>de</strong>vem ser apresentadas, no corpo do<br />

texto, entre aspas e sem itálico.<br />

6. As citações textuais longas, com mais <strong>de</strong> 3<br />

linhas, <strong>de</strong>vem ser apresentadas em fonte Times<br />

New Roman, tamanho 11, e espaço simples<br />

entre linhas. Elas <strong>de</strong>vem constituir um<br />

parágrafo próprio, separado do texto por espaço<br />

duplo, sem a necessida<strong>de</strong> da utilização<br />

das aspas.<br />

7. As notas explicativas <strong>de</strong>verão ser apresentadas<br />

em rodapé, com fonte Times New<br />

Roman, tamanho 10, e numeradas em algarismos<br />

arábicos.<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

MONOGRAFIAS E DISSERTAÇÕES<br />

131


8. Os artigos <strong>de</strong>verão ser precedidos por um<br />

resumo bilíngüe, em português e inglês, com<br />

200 palavras no máximo, em um só parágrafo.<br />

Deve ser adotada a fonte Times New Roman,<br />

tamanho 11, espaçamento simples. O<br />

resumo é seguido <strong>de</strong> palavras-chave do texto<br />

(no mínimo 3 e no máximo 6 palavras-chave).<br />

As palavras-chave <strong>de</strong>vem ser apresentadas<br />

também na versão em inglês.<br />

9. As referências bibliográficas <strong>de</strong>verão ser apresentadas<br />

no fim do texto, <strong>de</strong>vendo conter<br />

somente as obras citadas, em or<strong>de</strong>m alfabética,<br />

sem numeração, segundo as normas da<br />

ABNT. Algumas orientações básicas são a seguir<br />

apresentadas:<br />

a. Para livros: SOBRENOME DO AUTOR,<br />

Nome. Título da obra. Local <strong>de</strong> publicação:<br />

Editora, Ano <strong>de</strong> publicação.<br />

b. Para capítulo <strong>de</strong> livros: SOBRENOME DO<br />

AUTOR DO CAPÍTULO, Nome. Título do<br />

capítulo. In: SOBRENOME DO ORGA-<br />

NIZADOR, Nome. (Org.). Título da obra.<br />

Local <strong>de</strong> publicação: Editora, Ano <strong>de</strong> publicação.<br />

Página inicial-final do capítulo.<br />

c. Para artigos publicados em periódicos: SO-<br />

BRENOME DO AUTOR DO ARTIGO,<br />

Nome. Título do artigo. Título do periódico,<br />

Local <strong>de</strong> publicação, volume do periódico,<br />

número do fascículo, página inicial-final do<br />

artigo, mês e ano.<br />

10. As ilustrações (figuras, tabelas, <strong>de</strong>senhos,<br />

gráficos, mapas, fotografias etc.) <strong>de</strong>vem ser<br />

enviadas, preferencialmente, em arquivos digitais<br />

(formatos PCX, BMP ou TIF). Caso<br />

contrário, será adotado suporte <strong>de</strong> papel branco.<br />

Nesse caso, as fotografias <strong>de</strong>vem ter suporte<br />

brilhante, nas cores preto e branco. As<br />

dimensões máximas, incluindo legenda e título,<br />

são <strong>de</strong> 15 cm no sentido horizontal da<br />

folha e <strong>de</strong> 20,5 cm no seu sentido vertical.<br />

Deve-se indicar a disposição preferencial <strong>de</strong><br />

inserção das ilustrações no texto, utilizando,<br />

para isso, no local <strong>de</strong>sejado, a indicação da figura<br />

e o seu número. Deve-se também indicar<br />

a fonte da ilustração, conforme as normas<br />

da ABNT.<br />

11. Os autores <strong>de</strong>vem se responsabilizar pela<br />

correção ortográfica e gramatical, bem como<br />

pela digitação do texto, que será publicado<br />

exatamente conforme enviado. Recomendase<br />

aos autores que submetam seus textos à<br />

correção <strong>de</strong> um especialista.<br />

12. Todos os originais serão submetidos à apreciação<br />

da Comissão Editorial, que po<strong>de</strong>rá aceitar,<br />

recusar ou, ainda, reapresentá-los ao(s) autor(es)<br />

com sugestões <strong>de</strong> alterações na estrutura ou<br />

no conteúdo do texto. Os originais não aprovados<br />

serão <strong>de</strong>volvidos ao(s) autor(es).<br />

En<strong>de</strong>reço para remessa<br />

<strong>Revista</strong><br />

A/C Antônio Pereira Magalhães Jr.<br />

Instituto <strong>de</strong> Geociências/UFMG<br />

Av. Antônio Carlos 6627,<br />

Pampulha, CEP 31270-901<br />

Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brasil<br />

geografias@igc.ufmg.br<br />

132<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

MONOGRAFIAS E DISSERTAÇÕES Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!