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I Encontro <strong>de</strong> Pesquisa<strong>do</strong>res em Comunicação e Música Popular<br />

Tendências e convergências da música na cultura midiática<br />

21 a 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, UFMA, São Luis – MA.<br />

1<br />

Comunicação, <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>, censura 1 :<br />

Memória da ditadura em Raul Seixas<br />

Vitor Cei Santos (UFES) 2<br />

Resumo: Raul Seixas utilizava a música como meio <strong>de</strong> comunicação, apresentan<strong>do</strong> seu<br />

trabalho artístico como expressão pessoal e espírito social <strong>de</strong> sua época. Em sua obra<br />

encontramos uma memória das tensões que ocorriam no Brasil nos anos <strong>de</strong> ditadura militar.<br />

Atento ao teor testemunhal <strong>de</strong> seus escritos, procuro mostrar como os problemas históricosociais<br />

pós-1964 marcam os mesmos, tornan<strong>do</strong> a lírica raulseixista uma rememoração <strong>do</strong><br />

autoritarismo.<br />

Palavras-chave: censura, comunicação, <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>, indústria cultural.<br />

1. PREAMBULO<br />

Raul Seixas, em diversas entrevistas, evi<strong>de</strong>ncia a conveniência <strong>de</strong> comunicação<br />

através da música. Sua obra, mais <strong>do</strong> que arte, era meio <strong>de</strong> comunicação: “Porque eu não vejo<br />

a música como arte. Música é apenas a vomitada <strong>de</strong> cada pessoa. Uma cusparada. É a<br />

expressão <strong>de</strong> cada um” (SEIXAS, apud PASSOS, 2003, p. 27).<br />

Em um país com milhões <strong>de</strong> analfabetos, havia a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

comunicação com o público <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> educação formal, o que a literatura não<br />

proporcionava: “Mas vi que a literatura é uma coisa dificílima <strong>de</strong> fazer aqui, <strong>de</strong> comunicar tão<br />

rapidamente como a música” (SEIXAS, apud PASSOS, 2003, p. 87). A canção popular<br />

midiática, por ser <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong> rítmica e melódica, privilegian<strong>do</strong> o refrão e os<br />

versos <strong>de</strong> rápida assimilação, facilita a memorização e a compreensão <strong>do</strong> público.<br />

Theo<strong>do</strong>r W. A<strong>do</strong>rno (2000) já advertia que a reprodução técnica da arte e a indústria<br />

cultural, por visarem à produção em série e à homogeneização com fins comerciais, são<br />

esterilizantes. O sistema impõe aquilo que o pensa<strong>do</strong>r frankfurtiano <strong>de</strong>signou como<br />

“regressão da audição”, isto é, a incapacida<strong>de</strong> das massas <strong>de</strong> julgar a música criticamente,<br />

avalian<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o lixo que é ofereci<strong>do</strong> aos nossos ouvi<strong>do</strong>s pelos meios <strong>de</strong> comunicação.<br />

Todavia, Raul Seixas encontrou na música um meio <strong>de</strong> comunicação rápi<strong>do</strong> e eficiente<br />

para cultivar um diálogo profícuo entre o artista e o gran<strong>de</strong> público, se inserin<strong>do</strong> no jogo da<br />

comunicação <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela indústria cultural. Consciente que esta rechaça a possível função<br />

crítica e emancipatória que a arte em geral e a música em particular po<strong>de</strong>m ter, ele a<strong>do</strong>tou<br />

uma postura afirmativa diante da cultura da mídia, acreditan<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r manipulá-la para<br />

divulgar suas propostas.<br />

O cantor apostou no jogo <strong>do</strong>s ratos, como ele costumava <strong>de</strong>signar a vida na socieda<strong>de</strong><br />

administrada, se aprofundan<strong>do</strong> no conhecimento factual <strong>do</strong>s mecanismos <strong>de</strong> funcionamento<br />

da indústria cultural, tornan<strong>do</strong>-se para ele cada vez mais eminente a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apropriação <strong>de</strong>sse instrumento <strong>de</strong> caráter manipula<strong>do</strong>r e opressor:<br />

1 Trabalho apresenta<strong>do</strong> no I Encontro <strong>de</strong> Pesquisa<strong>do</strong>res em Comunicação e Música Popular – MUSICOM,<br />

realiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> 21 a 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, na UFMA, São Luis – MA.<br />

2 Professor <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Línguas e Letras da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Espírito Santo. Mestre em Letras<br />

(UFES), bacharel em Filosofia (UFES) e Comunicação Social (UVV). E-mail: vitorcei@yahoo.com.br.


I Encontro <strong>de</strong> Pesquisa<strong>do</strong>res em Comunicação e Música Popular<br />

Tendências e convergências da música na cultura midiática<br />

21 a 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, UFMA, São Luis – MA.<br />

2<br />

Como os Beatles, que apren<strong>de</strong>ram no estúdio, eu lá aprendi tu<strong>do</strong>, os macetes.<br />

Aprendi a fazer música fácil, comercial, intuitiva e bonitinha, que leva direitinho o<br />

que a gente quer dizer. Aí eu <strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> vez <strong>do</strong> livro que eu ia fazer, o trata<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

metafísica. Decidi chegar ao livro através <strong>do</strong>s discos, <strong>do</strong>s sulcos, das rádios. É mais<br />

positivo, é melhor (SEIXAS, apud PASSOS, 2003, p. 27).<br />

Atento à dimensão comunicativa da música, que no Brasil assume papel significativo,<br />

Raul tinha o anseio <strong>de</strong> oferecer suas canções como registro <strong>de</strong> seu tempo, entrelaçan<strong>do</strong><br />

conteú<strong>do</strong> autobiográfico e memória social. A sua obra, em gran<strong>de</strong> parte elaborada enquanto<br />

ocorriam no Brasil batalhas entre as forças <strong>de</strong> repressão e as <strong>de</strong> resistência, representa uma<br />

rememoração das tensões que ocorriam no Brasil durante a ditadura militar.<br />

Rememorar os anos <strong>de</strong> chumbo é comunicar - tornar comum - a barbárie <strong>de</strong> nosso<br />

passa<strong>do</strong> recente, com suas catástrofes, ruínas e cicatrizes. E, como indica Jaime Ginzburg,<br />

ainda é necessário rememorar o perío<strong>do</strong>, pois há um esforço conserva<strong>do</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar a<br />

memória das vítimas <strong>do</strong> autoritarismo. Nas palavras <strong>do</strong> crítico:<br />

A memória da ditadura militar brasileira se impõe como um problema fundamental<br />

para a crítica literária. Em um país em que as heranças conserva<strong>do</strong>ras são<br />

monumentais, e as dificulda<strong>de</strong>s para esclarecer o passa<strong>do</strong> são consolidadas e<br />

reforçadas, o papel <strong>de</strong> escritores, cineastas, músicos, artistas plásticos, atores e<br />

dançarinos po<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>r a uma necessida<strong>de</strong> histórica. Enquanto instituições e<br />

arquivos ainda encerram mistérios fundamentais sobre o passa<strong>do</strong> recente, o<br />

pensamento criativo po<strong>de</strong> procurar mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mediar o contato da socieda<strong>de</strong> consigo<br />

mesma, trazen<strong>do</strong> consciência responsável a respeito <strong>do</strong> que ocorreu (GINZBURG,<br />

2007, p. 43-44).<br />

A obra <strong>de</strong> Raul Seixas, marcada pelo caráter traumático das experiências coletivas <strong>de</strong> violência<br />

política, nos permite reelaborar as heranças <strong>do</strong> autoritarismo. Todavia, segun<strong>do</strong> Márcio Seligmann-<br />

Silva, a tarefa <strong>de</strong> rememorar a catástrofe é árdua e ambígua, pois envolve o confronto com as<br />

feridas abertas pelo trauma e a tentativa <strong>de</strong> sua superação. Ao mesmo tempo em que há<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lembrar e comunicar, na maioria das vezes aquilo que se rememora é o<br />

incomunicável, a morte - “[...] o indizível por excelência, que a toda hora tentamos dizer [...]”<br />

(SELIGMANN-SILVA, 2003, P. 52).<br />

Seja <strong>de</strong>dican<strong>do</strong> suas “cusparadas” à morte ou à vida, com melancolia ou <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>, a obra <strong>de</strong><br />

Raul Seixas nos oferece um diagnóstico <strong>de</strong> seu tempo. A sua lírica, nascida <strong>de</strong> experiências<br />

que brotam da concreta vida cotidiana, apresenta-se sob a tensão <strong>do</strong> caos vigente em que se<br />

mostram tanto as oportunida<strong>de</strong>s para a emancipação quanto os obstáculos reais a ela.<br />

2. DESBUNDE & CENSURA<br />

Desbun<strong>de</strong> era o nome que os militantes <strong>de</strong> esquerda davam para a atitu<strong>de</strong> da<br />

turma da contracultura, o pessoal que usava drogas, escutava rock, lia os poetas<br />

beat, fazia filmes em Super-8, não cortava os cabelos e preferia fumar maconha a<br />

pegar em armas. Contra as atitu<strong>de</strong>s beligerantes <strong>do</strong> sistema, ações pacíficas e irreverentes.<br />

Heloísa Buarque <strong>de</strong> Hollanda (2004) afirma que o <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>, longe <strong>de</strong> ser uma simples<br />

alienação naqueles anos <strong>de</strong> chumbo, foi uma atitu<strong>de</strong> intempestiva e marginal que transgredia<br />

as normas sociais e políticas então vigentes. Na procura <strong>de</strong> uma forma nova <strong>de</strong> pensar o<br />

mun<strong>do</strong>, o <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong> tornava-se uma perspectiva capaz <strong>de</strong> romper com a razão instrumental<br />

característica tanto da direita quanto da esquerda. Nas palavras <strong>de</strong> Wilberth Salgueiro:


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21 a 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, UFMA, São Luis – MA.<br />

3<br />

Ponto final da viagem contracultural iniciada pela geração beat, passan<strong>do</strong> pelos<br />

hippies, a galera <strong>do</strong> <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong> aprontou mil e umas. Radical como o seu avesso<br />

(censura & repressão), o <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong> – ainda que, dizem, por linhas tortas – colocou<br />

em xeque valores po<strong>de</strong>rosos como a racionalida<strong>de</strong>, a autorida<strong>de</strong>, a proprieda<strong>de</strong>, o<br />

belicismo (ε o beletrismo) e pontificou outros como o prazer, o lúdico, o<br />

comunitário. A liberação <strong>do</strong> corpo tange não só o sexual, mas a moda, os gestos, as<br />

drogas – o comportamento e o cotidiano, em geral (SALGUEIRO, 2002, p. 30).<br />

Raul Seixas, imbuí<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>, <strong>do</strong> espírito rebel<strong>de</strong>, lúdico e libertino <strong>do</strong>s<br />

inconforma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seu tempo, que preferiram a expressão à construção, utilizava um<br />

vocabulário polissêmico, simbólico, repleto <strong>de</strong> figuras <strong>de</strong> linguagem, metáforas, alegorias,<br />

metonímias, regionalismos nor<strong>de</strong>stinos, gírias urbanas e prosopopéias. Inseridas na indústria<br />

cultural, suas canções transmitem pensamentos sob forma figurada, disfarçada, muitas vezes<br />

ambígua, exigin<strong>do</strong> que o ouvinte interprete as idéias embutidas figurativamente em seus<br />

versos. Com essas características, suas canções nem sempre são bem aceitas pelos ativistas<br />

engaja<strong>do</strong>s, enquanto algumas vezes são incompreensíveis para as massas incultas.<br />

As brinca<strong>de</strong>iras com a linguagem efetuadas por Raul também po<strong>de</strong>m ser vistas como<br />

uma irônica tentativa <strong>de</strong> burlar os censores. Des<strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1970, data oficial <strong>de</strong><br />

instauração da censura prévia, os agentes da ditadura estavam instala<strong>do</strong>s nas casas <strong>de</strong><br />

espetáculo, nas emissoras <strong>de</strong> rádio e televisão, nas redações <strong>de</strong> jornais e em outros locais<br />

estratégicos. To<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> social e os espaços públicos eram virtualmente vigia<strong>do</strong>s.<br />

No LP Krig-ha, Ban<strong>do</strong>lo! (SEIXAS, 1973), como provocação aos censores, ele<br />

apresenta na capa um selo com a inscrição Imprimatur, “imprima-se”, palavra que a Igreja<br />

Católica utilizava durante o perío<strong>do</strong> da Inquisição para indicar as obras liberadas pela censura.<br />

A provocação se completa com a foto da capa, que mostra o cantor barbu<strong>do</strong>, magro, <strong>de</strong> peito<br />

nu, olhos quase fecha<strong>do</strong>s e braços abertos, aludin<strong>do</strong> a Jesus Cristo prega<strong>do</strong> na Cruz.<br />

Outros três discos com capas provocativas apresentam a inscrição Imprimatur. Gita<br />

(SEIXAS, 1974), em cuja fotografia da capa o cantor está vesti<strong>do</strong> à moda Che Guevara; Novo<br />

Aeon (SEIXAS, 1975), com uma foto em que ele exibe um charuto no bolso da camisa; e A<br />

Pedra <strong>do</strong> Gênesis (SEIXAS, 1988), último álbum solo <strong>do</strong> cantor e o penúltimo <strong>de</strong> sua<br />

carreira, que traz uma foto <strong>do</strong>s anos setenta em que Raul segura uma edição <strong>de</strong> língua inglesa<br />

<strong>do</strong> Livro da Magia Sagrada <strong>de</strong> Abra Melin, grimório <strong>do</strong> século XV.<br />

De acor<strong>do</strong> com o historia<strong>do</strong>r Marcos Napolitano (2004), o regime militar brasileiro,<br />

assim como as outras ditaduras latino-americanas, concentrou suas forças no controle e<br />

esvaziamento político <strong>do</strong> espaço público, com o intuito <strong>de</strong> garantir a “paz social” a partir da<br />

<strong>de</strong>smobilização política da socieda<strong>de</strong>. Se a violência policial, legal ou ilegal, era sistemática e<br />

utilizada contra inimigos e críticos mais ferrenhos <strong>do</strong> regime, a vigilância sobre a socieda<strong>de</strong><br />

civil também era constante.<br />

Napolitano (2004) ainda explica que a obsessão pela vigilância como forma <strong>de</strong><br />

prevenir a atuação “subversiva”, sobretu<strong>do</strong> naquilo que os manuais da Doutrina <strong>de</strong> Segurança


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4<br />

Nacional chamavam <strong>de</strong> propaganda subversiva e guerra psicológica contra as instituições<br />

<strong>de</strong>mocráticas e cristãs, acabava por gerar uma lógica da suspeita. Ao incorporar essa lógica,<br />

os milhares <strong>de</strong> agentes envolvi<strong>do</strong>s, fossem funcionários públicos ou <strong>de</strong>latores coopta<strong>do</strong>s,<br />

passavam a ver a esfera da cultura com suspeição a priori, pois o meio artístico seria o local<br />

em que os comunistas e subversivos estariam particularmente infiltra<strong>do</strong>s, procuran<strong>do</strong><br />

fomentar a revolta na socieda<strong>de</strong>.<br />

Em tal conjuntura, o campo da música popular midiática <strong>de</strong>stacava-se como um <strong>do</strong>s<br />

alvos preferi<strong>do</strong>s da vigilância. Conforme as coleções <strong>do</strong> DOPS disponíveis nos Arquivos<br />

Públicos <strong>de</strong> São Paulo e <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, o leque <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong>s agentes <strong>do</strong>s órgãos <strong>de</strong><br />

repressão junto ao meio musical foi <strong>de</strong> 1967 a 1982 (NAPOLITANO, 2004).<br />

Para ilustrar este fato <strong>de</strong> nosso passa<strong>do</strong> recente, leiamos um poema <strong>de</strong> 1983, em que<br />

Raul Seixas <strong>de</strong>bocha <strong>do</strong> então agonizante regime militar. “Para o Estadão” (SEIXAS, apud<br />

BUARQUE, 1997) foi <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> ao jornal que o poeta consi<strong>de</strong>rava arqui-reacionário.<br />

Está na praça, já chegou<br />

O dicionário <strong>do</strong> censor<br />

Des<strong>de</strong> A até o Z<br />

Tem o que você po<strong>de</strong> ou não po<strong>de</strong> dizer<br />

Antes <strong>de</strong> pôr no papel<br />

O que você pensou<br />

Veja se na sua frase<br />

Tem uma palavra que não po<strong>de</strong><br />

Substitua por uma que po<strong>de</strong><br />

Você não queria assim... mas que jeito?<br />

O dicionário <strong>do</strong> censor<br />

É que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, não o autor<br />

Um exemplo pra você<br />

Se na página <strong>do</strong> “p”<br />

Não consta a palavra “povo”<br />

Vê se no “o” tem escrito “ovo”<br />

Ovo po<strong>de</strong><br />

Se o senti<strong>do</strong> não couber<br />

Esqueça, risque tu<strong>do</strong>, compositor<br />

Seu <strong>de</strong>ver é <strong>de</strong>corar<br />

As que po<strong>de</strong> musicar<br />

No dicionário da censura<br />

Nem botaram “ditadura”<br />

O poema se apóia em rimas, estabelecen<strong>do</strong> uma sonorida<strong>de</strong> contínua e facilmente<br />

perceptível. A linguagem coloquial, em versos livres, imbuída <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong>, marca o texto. O<br />

autor expressa-se sem mediações, <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> direto e <strong>de</strong>scritivo a opressão da<br />

censura, fazen<strong>do</strong> coro aos engaja<strong>do</strong>s.<br />

Todavia, no início da década <strong>de</strong> 1970, para fugir ao sufoco <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção, o<br />

caminho segui<strong>do</strong> por Raul Seixas não foi o <strong>do</strong> combate direto, como no atípico poema<br />

supracita<strong>do</strong>, mas sim uma união <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong> e ataque alegórico, com as canções <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong><br />

o ambiente <strong>de</strong> sufoco <strong>do</strong>s anos <strong>de</strong> chumbo.<br />

A antropóloga Mônica Buarque observa que Raul Seixas, auto<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> “ator”,<br />

assumiu o personagem <strong>de</strong> rebel<strong>de</strong> <strong>do</strong> rock e bufão da mídia para fazer ataques à or<strong>de</strong>m social<br />

vigente sem receber represálias muito maiores que eventuais prisões e sugestões <strong>de</strong> autoexílio,<br />

o que <strong>de</strong> fato ocorreu com o baiano.<br />

Exemplar foi o primeiro show <strong>de</strong> Raul em São Paulo, no Teatro das Nações, em 26 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1973. Na ocasião, o irreverente cantor distribuiu o gibi/manifesto A Fundação <strong>de</strong>


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Krig-ha (SEIXAS, 2005) com texto em co-autoria com Paulo Coelho e <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> Adalgisa<br />

Rios. Misto <strong>de</strong> panfleto e história em quadrinhos, o gibi/manifesto apregoa uma nova era,<br />

expon<strong>do</strong>, com visual sujo e texto profético, apocalíptico, o <strong>de</strong>sbun<strong>de</strong> e o esoterismo presentes<br />

na contracultura da época.<br />

Os militares não gostaram da história. Suspeitan<strong>do</strong> que Raul Seixas estivesse<br />

envolvi<strong>do</strong> em uma organização comunista, a Polícia Fe<strong>de</strong>ral recolheu o gibi/manifesto,<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> material subversivo. Em 1974, com or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> prisão <strong>do</strong> Primeiro Exército, no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Raul foi <strong>de</strong>ti<strong>do</strong> e “convida<strong>do</strong>” a sair <strong>do</strong> país. Acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> subversão contra a<br />

ditadura <strong>de</strong> Geisel, exilou-se nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />

O breve exílio, cerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> ficções, versões e <strong>de</strong>satinos, supostamente termina com o<br />

sucesso <strong>do</strong> LP Gita, em virtu<strong>de</strong> <strong>do</strong> qual Raul Seixas teria si<strong>do</strong> convida<strong>do</strong> a retornar ao Brasil,<br />

comemoran<strong>do</strong> sua consagração no cenário brasileiro, coroada pelo primeiro disco <strong>de</strong> ouro.<br />

O LP Gita transmite inconformismo diante <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida constituí<strong>do</strong> a partir das<br />

conquistas <strong>do</strong> “milagre econômico” promovi<strong>do</strong> pelo regime militar. As canções, oscilan<strong>do</strong><br />

entre o tom melancólico e o eufórico, ironizam os costumes e crenças <strong>do</strong>minantes, disparan<strong>do</strong><br />

chistes contra os valores mais preza<strong>do</strong>s pelo conserva<strong>do</strong>rismo da época. Exemplar é a faixa<br />

“S.O.S.” (SEIXAS, 1974):<br />

Hoje é <strong>do</strong>mingo, missa e praia, céu <strong>de</strong> anil<br />

Tem sangue no jornal, ban<strong>de</strong>iras na Avenida Brasil<br />

Lá por <strong>de</strong>trás da triste e linda zona sul<br />

Vai tu<strong>do</strong> muito bem, formigas que trafegam sem por quê<br />

E da janela <strong>de</strong>sses quartos <strong>de</strong> pensão<br />

Eu, como vetor, tranqüilo eu tenho uma transmutação<br />

Ô ô ô seu moço <strong>do</strong> disco voa<strong>do</strong>r<br />

Me leve com você, pra on<strong>de</strong> você for<br />

Ô ô ô seu moço, mas não me <strong>de</strong>ixe aqui<br />

Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí...<br />

An<strong>de</strong>i rezan<strong>do</strong> pra totens e Jesus<br />

Jamais olhei pro céu, meu disco voa<strong>do</strong>r além<br />

Já fui macaco em <strong>do</strong>mingos glaciais<br />

Atlantas colossais, que eu não soube como utilizar<br />

E nas mensagens que nos chegam sem parar<br />

Ninguém po<strong>de</strong> notar, estão muito ocupa<strong>do</strong>s pra pensar<br />

Ô ô ô seu moço <strong>do</strong> disco voa<strong>do</strong>r<br />

Me leve com você, pra on<strong>de</strong> você for<br />

Ô ô ô seu moço, mas não me <strong>de</strong>ixe aqui<br />

Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí...<br />

A letra é composta em torno <strong>de</strong> antíteses, em que os versos nos remetem ao<br />

<strong>de</strong>sencanto, à fuga e à esperança. “S.O.S.” é uma crítica ao marasmo das classes médias<br />

brasileiras que, como “formigas que trafegam sem por quê”, se <strong>de</strong>ixavam iludir pelo “milagre<br />

econômico” da ditadura. Nas missas ou nas praias, fechavam os olhos para a truculência <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção. Das janelas <strong>de</strong> seus quartos <strong>de</strong> pensão, muito ocupadas para pensar,<br />

estavam ineptas para perceber as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resistência e mudança.<br />

Em tal conjuntura sufocante, o cantor ansiava por um disco voa<strong>do</strong>r que o libertasse <strong>do</strong><br />

autoritarismo. As espaçonaves que transportam seres <strong>de</strong> outros planetas ou <strong>de</strong> outras


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dimensões são uma conhecida crença da contracultura, segun<strong>do</strong> a qual elas trazem mensagens<br />

<strong>de</strong> salvação para a humanida<strong>de</strong>. A música é, assim, um pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> socorro - Save Our Souls,<br />

“salve nossas almas”. Seixas, em <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> com seu entorno, viu no espaço cósmico uma<br />

esperança – ou ao menos uma metáfora – <strong>de</strong> salvação.<br />

Aqui, vale reler o último verso, ambíguo e crucial: “Enquanto eu sei que tem tanta<br />

estrela por aí...”. Uma leitura possível é que se o universo é infinito, existin<strong>do</strong> inúmeras<br />

estrelas e planetas, não há porque permanecer num Brasil em que cotidianamente há sangue<br />

inocente sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>rrama<strong>do</strong>. Também po<strong>de</strong>mos ver nas “estrelas” uma siné<strong>do</strong>que para os<br />

militares, trocan<strong>do</strong> a parte pelo to<strong>do</strong>, pois a patente <strong>do</strong>s oficiais é simbolizada por estrelas. E<br />

os que têm mais estrelas nos uniformes são os generais. Assim, com tanta estrela por aí, isto é,<br />

com os militares no po<strong>de</strong>r, ele preferia embarcar num disco voa<strong>do</strong>r a permanecer no país.<br />

Se o moço <strong>do</strong> disco voa<strong>do</strong>r não apareceu para buscar Raul Seixas, ao menos os árabes<br />

contribuíram para uma recessão internacional que <strong>de</strong>rrubou o milagre econômico brasileiro já<br />

em 1973: a Primeira Crise Internacional <strong>do</strong> Petróleo. A Organização <strong>do</strong>s Países Produtores <strong>de</strong><br />

Petróleo embargou o fornecimento <strong>do</strong> produto ao Oci<strong>de</strong>nte, estabelecen<strong>do</strong> cotas <strong>de</strong> produção<br />

e quadruplican<strong>do</strong> os preços. O Brasil, que na época importava mais <strong>de</strong> 80% <strong>do</strong> petróleo<br />

consumi<strong>do</strong>, viu a prosperida<strong>de</strong> ruir (FAUSTO, 1999).<br />

A crise econômica e a <strong>de</strong>corrente redução <strong>do</strong> padrão <strong>de</strong> vida da população<br />

enfraqueceram o fascínio que o regime militar exercia sobre as massas, que passaram a se<br />

indignar e revoltar contra a ditadura. Para abafar a insatisfação popular, em janeiro <strong>de</strong> 1974 o<br />

general-presi<strong>de</strong>nte Ernesto Geisel <strong>de</strong>u início a abertura política “lenta, gradual e segura”. O<br />

ocaso da ditadura, ao menos no início, não melhorou muito a conjuntura, que ainda era <strong>de</strong><br />

sufoco e me<strong>do</strong>.<br />

3. A CENSURA NO OCASO DA DITADURA<br />

Na década <strong>de</strong> 1980, com o processo <strong>de</strong> transição <strong>do</strong> regime autoritário para a<br />

<strong>de</strong>mocracia, as novas formas <strong>de</strong> controle social e produção industrial da cultura e da arte<br />

substituíram gradativamente a censura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pela lógica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. Esta classifica,<br />

organiza e divi<strong>de</strong> autoritariamente os consumi<strong>do</strong>res, oferecen<strong>do</strong> uma ilusão <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia e<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolha: “O processo a que se submete um texto literário, se não na previsão<br />

automática <strong>de</strong> seu produtor, pelo menos pelo corpo <strong>de</strong> leitores, editores, redatores e ghostwriters<br />

<strong>de</strong>ntro e fora <strong>do</strong> escritório da editora, é muito mais minucioso que qualquer censura”<br />

(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13).<br />

A partir <strong>do</strong> ocaso da ditadura, po<strong>de</strong>mos perceber a apropriação das várias formas <strong>de</strong><br />

arte e cultura, populares e eruditas pelas corporações transnacionais para o consumo em<br />

massa. O resulta<strong>do</strong> são merca<strong>do</strong>rias ditas artísticas, mas padronizadas, óbvias e incipientes.<br />

Todavia, a música e outras manifestações artísticas e culturais ainda po<strong>de</strong>m transmitir mo<strong>do</strong>s<br />

irreverentes <strong>de</strong> agir e pensar, transvaloran<strong>do</strong> os valores <strong>do</strong>minantes.<br />

Mosca na sopa, Raul visava conscientizar a massa amorfa <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>res das<br />

merca<strong>do</strong>rias midiáticas. As suas canções estimulam o olhar para temas tabus não aborda<strong>do</strong>s<br />

abertamente pela socieda<strong>de</strong> brasileira conserva<strong>do</strong>ra. Por isso, ele ainda sofreu com a censura,<br />

que o atacava mais pelos aspectos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s imorais <strong>de</strong> suas canções <strong>do</strong> que por motivos<br />

políticos.<br />

Cláudio Roberto, parceiro <strong>de</strong> Raul no perío<strong>do</strong>, afirma que ele podia falar o que<br />

quisesse sobre política, mas era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um perverti<strong>do</strong>, censura<strong>do</strong> por ofen<strong>de</strong>r a moral e


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Tendências e convergências da música na cultura midiática<br />

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os bons costumes. Exemplar é a canção “Rock das ‘Aranha’” (SEIXAS, 1980), censurada<br />

pela Divisão <strong>de</strong> Censura <strong>de</strong> Diversões Públicas, cujas ativida<strong>de</strong>s só foram interrompidas com<br />

a Constituição <strong>de</strong> 1988.<br />

Subi no muro <strong>do</strong> quintal<br />

E vi uma transa que não é normal<br />

E ninguém vai acreditar<br />

Eu vi duas mulher botan<strong>do</strong> aranha prá brigar<br />

Duas aranha, duas aranha<br />

Duas aranha, duas aranha<br />

Vem cá mulher <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> manha<br />

Minha cobra quer comer a sua aranha<br />

Meu corpo to<strong>do</strong> se tremeu<br />

E nem minha cobra enten<strong>de</strong>u<br />

Cumé que po<strong>de</strong> duas aranha se esfregan<strong>do</strong><br />

Eu tô saben<strong>do</strong>, alguma coisa tá faltan<strong>do</strong><br />

É minha cobra<br />

cobra criada<br />

Vem cá mulher <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> manha<br />

A minha cobra quer comer a sua aranha<br />

Deve ter uma boa explicação<br />

O que é que essas aranha tão fazen<strong>do</strong> ali no chão<br />

Uma em cima, outra embaixo<br />

A cobra perguntan<strong>do</strong> on<strong>de</strong> é que me encaixo<br />

É minha cobra, cobra criada<br />

Vem cá mulher <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> manha<br />

A minha cobra quer comer a sua aranha<br />

Soltei a cobra e ela foi direto<br />

Foi pro meio das aranha prá mostrar cumé que é certo<br />

Cobra com aranha é que dá pé<br />

Aranha com aranha sempre <strong>de</strong>u em jacaré<br />

É minha cobra, cobra com aranha<br />

É minha cobra, com as aranha<br />

Vem cá mulher <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> manha<br />

A minha cobra quer comer a sua aranha<br />

É o rock das “aranha”,<br />

É o rock das “aranha”<br />

Vem cá mulher <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> manha<br />

Minha cobra quer comer a sua aranha<br />

A linguagem metafórica da canção <strong>de</strong>screve uma relação homossexual entre duas<br />

mulheres, colocan<strong>do</strong>-as como objetos <strong>do</strong> agressivo <strong>de</strong>sejo masculino. O tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira<br />

machista, que escracha com o homoerotismo, indica certo preconceito em relação ao<br />

homossexualismo feminino, entran<strong>do</strong> em contradição com a mensagem libertária sempre<br />

apregoada pelo compositor: “O homem tem direito <strong>de</strong> amar como ele quiser”, canta Raul em


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Tendências e convergências da música na cultura midiática<br />

21 a 23 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, UFMA, São Luis – MA.<br />

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“A Lei” (SEIXAS, 1988). Mas a censura não <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> um possível preconceito <strong>do</strong> cantor<br />

contra as lésbicas. Como justificativa para o veto, a técnica da censura escreveu em seu lau<strong>do</strong>,<br />

data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1980:<br />

A letra musical, supracitada, começa por <strong>de</strong>screver, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> chulo e direto, um<br />

relacionamento homossexual feminino, para logo em seguida relatar o ato<br />

heterossexual. A linguagem também é grosseira e clara, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina os órgãos<br />

sexuais femininos <strong>de</strong> “aranha” e o masculino <strong>de</strong> “cobra”, termos já conheci<strong>do</strong>s<br />

popularmente. Por consi<strong>de</strong>rar a obra <strong>de</strong> baixo nível e imprópria para o gênero<br />

proposto, o qual atinge o público em geral, opinamos pela NÃO LIBERAÇÃO, pois<br />

a matéria tem por objetivo único explorar a perversão sexual (Apud TEIXEIRA,<br />

2008, p. 87).<br />

Visto que, tratan<strong>do</strong>-se das novas formas <strong>de</strong> controle social e produção industrial da<br />

cultura e da arte, a lógica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> foi se sobrepon<strong>do</strong> ao Esta<strong>do</strong>, a indústria fonográfica, <strong>de</strong><br />

capital multinacional, não aceitava mais reduzir seus lucros <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao autoritarismo militar.<br />

Para tanto, a partir <strong>de</strong> 1978 passou a funcionar o Conselho Superior <strong>de</strong> Censura, órgão liga<strong>do</strong><br />

diretamente ao Ministério da Justiça.<br />

Segun<strong>do</strong> Napolitano, o conselho funcionou como uma espécie <strong>de</strong> segunda instância,<br />

para a qual recorreram aqueles que, ten<strong>do</strong> seu trabalho censura<strong>do</strong>, não concordaram com o<br />

veto. O Conselho era dividi<strong>do</strong> entre representantes <strong>de</strong> organismos governamentais e<br />

instituições da socieda<strong>de</strong> civil. Recorren<strong>do</strong> ao órgão, a canção foi liberada com ressalvas,<br />

fican<strong>do</strong> impedida sua transmissão em programas <strong>de</strong> rádio e TV. Nas palavras <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong><br />

Cravo Albin, membro da comissão <strong>de</strong> censura:<br />

[...] Por sinal, no próprio processo em que o serviço <strong>de</strong> censura interditou o Rock das<br />

aranhas há seis outras composições <strong>do</strong> próprio Raul, em que seu talento fica<br />

perfeitamente reconheci<strong>do</strong> e reabilita<strong>do</strong>, o talento <strong>de</strong>sse irreverente e quase sempre<br />

filosófico e instigante poeta-compositor baiano que é Raul Seixas. Por isso, por ser<br />

Raul Seixas quem é, torna-se difícil aceitá-lo em apelação tão abjeta e lastimável.<br />

Enfim, tamanha indigência Raul jamais se <strong>de</strong>veria permitir. Como, no entanto, ele se<br />

permitiu, vamos respeitar-lhe o direito, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer até lixo <strong>de</strong>sse nível. No<br />

entanto, preservamos igualmente o direito <strong>de</strong> quem quiser ouvi-lo. Portanto, sou pela<br />

liberação da música Rock das aranhas, fican<strong>do</strong> contu<strong>do</strong> restrita sua veiculação<br />

aberta, ou seja, através das emissoras <strong>de</strong> rádio e televisão (Apud TEIXEIRA, 2008,<br />

p. 88).<br />

Tais fatos nos levam a indagar sobre as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma arte crítica e libertária<br />

na vigência <strong>do</strong> capitalismo tardio. Escutan<strong>do</strong> o “Rock das ‘Aranha’”, po<strong>de</strong>mos ver o erotismo<br />

como uma forma <strong>de</strong> transgressão moral. A paródia subversiva tem função político-social, uma<br />

vez que exerce uma crítica corrosiva às estruturas culturais e morais da socieda<strong>de</strong> brasileira.<br />

A tematização <strong>de</strong> opções sexuais diferentes, escandalosas, prazeres vergonhosos,<br />

<strong>de</strong>vassidão, é mais um mo<strong>do</strong> que Raul Seixas encontrou para <strong>de</strong>nunciar o falso moralismo da<br />

socieda<strong>de</strong> conserva<strong>do</strong>ra, que se choca com o sexo, mas permanece indiferente diante <strong>de</strong><br />

tortura, censura, violência urbana, miséria, corrupção, guerras e outras barbáries.<br />

A hipocrisia da abertura política, dissimulada pelo falso moralismo, provocou em Raul<br />

Seixas um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> ânimo melancólico, combinan<strong>do</strong> tristeza e preocupação com o futuro. À<br />

incerteza sobre as conseqüências da re<strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> país, acrescentou-se o mal-estar<br />

referente ao passa<strong>do</strong>, história <strong>de</strong> catástrofe em que muitos são os excluí<strong>do</strong>s. Entre um passa<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> horror e um futuro <strong>de</strong> promessas, a melancolia configurou a obra <strong>de</strong> Seixas nos anos 1980,<br />

suscitan<strong>do</strong> reflexões atentas ao torvelinho <strong>de</strong> seu tempo. É o que veremos a seguir.


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4. KAMIKAZE EM MARCHA LENTA<br />

O Brasil da década <strong>de</strong> 1980 foi cenário da dissolução <strong>do</strong> i<strong>de</strong>alismo quanto à<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resistência ao sufoco ditatorial, haven<strong>do</strong> um clima <strong>de</strong> inquietação e impasse<br />

diante da gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sproporção das forças em conflito na luta contra o sistema. A<br />

<strong>de</strong>svalorização das utopias pelas quais lutaram – cada uma a seu mo<strong>do</strong> – a contracultura e a<br />

guerrilha, abriu espaço para o espírito <strong>de</strong> incerteza, dúvida, hesitação e <strong>de</strong>cepção, geran<strong>do</strong> a<br />

convicção da absoluta insustentabilida<strong>de</strong> da existência. Em um texto melancólico e<br />

fragmentário, intitula<strong>do</strong> “Hoje”, Raul escreveu (SEIXAS, 2005, p. 151):<br />

Tensão total<br />

Angústia<br />

Apatia<br />

Ansieda<strong>de</strong><br />

Dor <strong>de</strong> cabeça<br />

Depressivo<br />

Triste<br />

Desanima<strong>do</strong><br />

Culpa<strong>do</strong><br />

Desola<strong>do</strong><br />

Irrita<strong>do</strong><br />

Mentalmente fraco<br />

Existencialmente pesa<strong>do</strong><br />

Falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong><br />

Labilida<strong>de</strong><br />

O discurso <strong>de</strong> Seixas foi marca<strong>do</strong> pela tinta da melancolia. O compositor parecia estar<br />

impotente com relação às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transformação da socieda<strong>de</strong>. Ele, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u<br />

i<strong>de</strong>ais utópicos <strong>de</strong> emancipação <strong>do</strong> homem, se viu diante <strong>de</strong> “[...] uma abertura mentirosa”<br />

(SEIXAS, apud PASSOS, 2003, p. 115). No ocaso da ditadura, o artista parecia estar cansa<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> buscar uma alternativa <strong>de</strong> sobrevivência à violenta experiência vivida. Desgostoso com<br />

seus contemporâneos, ele assumiu um aspecto <strong>de</strong> extemporâneo e seguiu uma trajetória <strong>de</strong><br />

vida errática.<br />

Raul Seixas, inclina<strong>do</strong> à inação e à perda <strong>de</strong> interesse pelo mun<strong>do</strong>, pôs a realida<strong>de</strong> sob<br />

suspeição a partir <strong>de</strong> uma postura irônica, <strong>de</strong> humor áci<strong>do</strong> e autocrítico, encenan<strong>do</strong> seu<br />

próprio drama com um potencial <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>strutivida<strong>de</strong> significativo. Marcelo Nova (apud<br />

TEIXEIRA, 2008), em entrevista para a revista Veja <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1989, caracterizou o<br />

parceiro como um kamikaze em marcha lenta, que abdicou <strong>do</strong> instinto natural <strong>de</strong> preservação.<br />

O compositor sofria com <strong>de</strong>pressão, crises <strong>de</strong> pancreatite, alcoolismo e diabetes,<br />

necessitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>ses diárias <strong>de</strong> insulina. Em novembro <strong>de</strong> 1980 foi interna<strong>do</strong> no Hospital<br />

Albert Einstein, on<strong>de</strong> operou o pâncreas e ficou interna<strong>do</strong> por 60 dias. Também foram<br />

constantes as internações para <strong>de</strong>sintoxicação.<br />

Raul não foi o único kamikaze em marcha lenta <strong>de</strong> seu tempo. Segun<strong>do</strong> Heloisa<br />

Buarque <strong>de</strong> Hollanda, a partir da intensificação <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> tóxicos e da exacerbação das<br />

experiências sensoriais e emocionais, houve entre os poetas e artistas inúmeros casos <strong>de</strong><br />

internamentos, <strong>de</strong>sintegrações e até mesmo suicídios: “[...] levavam suas opções estéticas para<br />

o centro mesmo <strong>de</strong> suas experiências existenciais” (HOLLANDA, 2004, p. 78). O testemunho<br />

<strong>de</strong>ssas vivências po<strong>de</strong> ser li<strong>do</strong> e ouvi<strong>do</strong> na canção “Canceriano Sem Lar (Clínica Tobias<br />

Blues)” (SEIXAS, 1987):


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10<br />

Estou senta<strong>do</strong> em minha cama<br />

Toman<strong>do</strong> meu café pra fumar<br />

Tranca<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim mesmo<br />

Eu sou um canceriano sem lar<br />

Estou senta<strong>do</strong> em minha cama<br />

Toman<strong>do</strong> meu café pra fumar<br />

É, é, porém, mas, todavia<br />

Eu sou um canceriano sem lar<br />

Eu tomo café pra mim não chorar<br />

Pergunto à nuvem preta quan<strong>do</strong> o sol vai brilhar<br />

Estou <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> em minha vida<br />

E o soro que me induz a lutar<br />

Estou na Clínica Tobias<br />

Tão longe <strong>do</strong> aconchego <strong>do</strong> lar<br />

All right, man<br />

Play the blues<br />

Clínica Tobias Blues<br />

A canção é fruto <strong>de</strong> uma internação na Clínica Tobias, on<strong>de</strong> foi tratar <strong>do</strong> alcoolismo. A<br />

clínica, único lugar on<strong>de</strong> Raul gostava <strong>de</strong> se internar, oferecia um tratamento holístico e<br />

humanístico, fugin<strong>do</strong> aos padrões da medicina convencional.<br />

Devi<strong>do</strong> ao alcoolismo e outros problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ele não comparecia a muitos<br />

shows, ganhan<strong>do</strong> fama, segun<strong>do</strong> O Globo <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1983, <strong>de</strong> “antiprofissional,<br />

arruaceiro e instável” (TEIXEIRA, 2008, p. 90). Assim, a <strong>do</strong>ença o levou a uma má fase na<br />

carreira, envolven<strong>do</strong> conflitos com as grava<strong>do</strong>ras e com os meios <strong>de</strong> comunicação. Por isso, o<br />

artista se manteve distante <strong>do</strong> ambiente agita<strong>do</strong> da indústria cultural. Tranca<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />

mesmo, era na solidão que o compositor se entregava às suas reflexões. Segun<strong>do</strong> Sylvio<br />

Passos:<br />

Então ele quebrava altos paus, rompeu <strong>do</strong>is contratos com a Re<strong>de</strong> Globo, que<br />

podiam dar toda mídia possível, e ele: “não vou me ren<strong>de</strong>r ao sistema, eu vou usar o<br />

sistema para passar minhas mensagens, me ren<strong>de</strong>r ao sistema jamais”. E aí, por volta<br />

<strong>de</strong> 85, ele começou a ser uma figura evitada, profissionalmente começou a ficar<br />

muito complica<strong>do</strong> porque alguns empresários já não queriam mais saber <strong>de</strong> Raul<br />

Seixas, pessoal <strong>de</strong> mídia <strong>de</strong> TV, <strong>de</strong> rádio, porque ele estava com a fama <strong>do</strong><br />

alcoólatra, que marcava show e não ia, ficou meio Tim Maia. Não fez mais show,<br />

sumiu, ninguém mais queria saber, aparecia bêba<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> aparecia, não tinha<br />

mais nenhuma grava<strong>do</strong>ra queren<strong>do</strong> saber <strong>de</strong> história com o Raul, e mais os<br />

problemas pessoais (PASSOS, apud TEIXEIRA, 2008, p. 107).<br />

Canceriano sem lar, Raul não se sentia mais em casa no Brasil <strong>do</strong>s anos 1980. Da<br />

cama <strong>do</strong> seu quarto <strong>de</strong> hospital se assombrava com a própria solidão. Cansa<strong>do</strong> <strong>de</strong> assumir<br />

valores alternativos que não encontravam lugar no status quo, apenas o soro o induzia a lutar.<br />

A auto-absorção melancólica po<strong>de</strong>ria levar a um abismo sem fun<strong>do</strong>: “Agora não há nada, não<br />

está acontecen<strong>do</strong> nada. Os anos 1980 são isto: nada. Então, se no ataca<strong>do</strong> a coisa dançou, a<br />

gente tenta salvar algo no varejo” (SEIXAS, apud PASSOS, 2003, p. 53).<br />

Diante <strong>do</strong> vazio cultural que, segun<strong>do</strong>, Raul, se difundia no país naquele momento <strong>de</strong><br />

transição <strong>do</strong> regime autoritário para a <strong>de</strong>mocracia, ele tentou se esforçar para recuperar sua<br />

disposição para a resistência individual através <strong>de</strong> sua música. Nesse senti<strong>do</strong>, ele <strong>de</strong>senvolveu<br />

a maior parte <strong>de</strong> sua obra em torno das ruínas da então agonizante ditadura militar,


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estimulan<strong>do</strong> a reflexão sobre a experiência violenta <strong>do</strong> seu tempo. É o caso <strong>de</strong> duas<br />

entrevistas sobre o exílio, que o cantor conce<strong>de</strong>u em 1982 e 1987, respectivamente:<br />

Mas um certo dia eu estava em casa, foi no primeiro apartamento que eu comprei na<br />

minha vida, pela Caixa Econômica. Então entraram os agentes. Minha mãe, que<br />

estava passan<strong>do</strong> uns dias conosco, ficou assustadíssima, não enten<strong>de</strong>u nada. [...] Foi<br />

barra. Os agentes revistaram a casa toda, <strong>de</strong>ixaram tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> pernas para o ar, à cata<br />

<strong>de</strong> papéis sobre a Cida<strong>de</strong> das Estrelas. Minha mãe perguntou: “Quem são essas<br />

pessoas?” Respondi: “São meus amigos, eles são assim mesmo, meio bagunceiros”<br />

(risos). Depois disso, bicho, foi fogo. Prisão, exílio, aquilo tu<strong>do</strong> (SEIXAS, apud<br />

PASSOS, 2003, p. 123-124).<br />

Até hoje não sei realmente qual foi o motivo. Mas veio uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> prisão <strong>do</strong><br />

Primeiro Exército e me <strong>de</strong>tiveram no Aterro <strong>do</strong> Flamengo. Me levaram para um<br />

lugar que eu não sei on<strong>de</strong> era... tinha uns cinco sujeitos... bom, eu estava... imagine a<br />

situação... eu estava nu com uma carapuça preta que eles me colocaram. E veio <strong>de</strong> lá<br />

mil barbarida<strong>de</strong>s: choques em lugares <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>s... tu<strong>do</strong> para eu po<strong>de</strong>r dizer os nomes<br />

das pessoas que faziam parte da “Socieda<strong>de</strong> Alternativa” que, segun<strong>do</strong> eles, era um<br />

movimento revolucionário contra o governo. O que não era. Era uma coisa mais<br />

espiritual... eu preferiria dizer que tinha pacto com o <strong>de</strong>mônio a dizer que tinha parte<br />

com a revolução. Então foi isso – me levaram, me escoltaram até o aeroporto... [...]<br />

Fiquei apavora<strong>do</strong>, fui direitinho... (SEIXAS, apud PASSOS, 2003, p. 143).<br />

A contradição entre as duas versões nos remete a duas leituras possíveis.<br />

Primeiramente, o mal-estar físico e emocional provoca<strong>do</strong> pelo trauma leva a uma tensão no<br />

limite <strong>do</strong> suportável, apontan<strong>do</strong> para as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produzir um <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong>sse tipo.<br />

Recordar o passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> opressão envolve uma mútua necessida<strong>de</strong> e dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicar a<br />

barbárie: “Para o sobrevivente, a narração combina memória e esquecimento”<br />

(SELIGMANN-SILVA, 2003, P. 53).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, o irreverente Raul Seixas, bufão e “ator”, po<strong>de</strong> ter apresenta<strong>do</strong> várias<br />

versões diferentes sobre o exílio, misturan<strong>do</strong> ficção e testemunho, com o objetivo <strong>de</strong> compor<br />

seu personagem. E ele não foi o único autor a fazer isso. Na época, era impressionante o<br />

sucesso popular <strong>de</strong> testemunhos, memórias e ficções que exibiam nossas chagas políticas.<br />

Segun<strong>do</strong> Flora Süssekind (2004), após a anistia e o retorno <strong>do</strong>s exila<strong>do</strong>s, as memórias<br />

políticas, os relatos autobiográficos, o testemunho e a reconstituição <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>,<br />

oscilan<strong>do</strong> entre o ficcional e o factual, marcaram a literatura brasileira. Popularizaram-se os<br />

relatos <strong>de</strong> torturas, perseguições policiais, invasões <strong>do</strong>miciliares, experiências carcerárias e<br />

outros tipos <strong>de</strong> cerceamento.<br />

Esta ávida leitura da catástrofe parece apontar para um gran<strong>de</strong> mea culpa da classe<br />

média que apoiou ou ignorou o golpe militar <strong>de</strong> 1964. Raul entrou na moda, comentan<strong>do</strong> em<br />

diversas entrevistas sobre o seu suposto exílio nos EUA, “[...] para a <strong>de</strong>lícia <strong>de</strong> certo tipo <strong>de</strong><br />

leitor-vampiro” (SÜSSEKIND, 2004, p. 76). Exemplar é a canção “Metrô Linha 743”<br />

(SEIXAS, 1984), narrada a partir da perspectiva <strong>de</strong> um eu lírico que, vítima <strong>do</strong> autoritarismo,<br />

não consegue atribuir senti<strong>do</strong> à própria existência.<br />

Ele ia andan<strong>do</strong> pela rua meio apressa<strong>do</strong><br />

Ele sabia que tava sen<strong>do</strong> vigia<strong>do</strong><br />

Cheguei pra ele e disse: Ei amigo, você po<strong>de</strong> me ce<strong>de</strong>r um cigarro?<br />

Ele disse: Eu <strong>do</strong>u, mas vá fumar lá <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>!<br />

Dois homens fuman<strong>do</strong> juntos po<strong>de</strong> ser muito arrisca<strong>do</strong>!<br />

Disse: O prato mais caro <strong>do</strong> melhor banquete é o que se come cabeça <strong>de</strong> gente


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Que pensa e os canibais <strong>de</strong> cabeça <strong>de</strong>scobrem aqueles que pensam porque quem<br />

pensa, pensa melhor para<strong>do</strong>!<br />

Desculpe a minha pressa, fingin<strong>do</strong> atrasa<strong>do</strong>,<br />

Trabalho em cartório, mas sou escritor.<br />

Perdi minha pena nem sei qual foi o mês...<br />

Metrô Linha 743!!!<br />

O homem apressa<strong>do</strong> me <strong>de</strong>ixou e saiu voan<strong>do</strong><br />

Aí eu me encostei num poste e fiquei fuman<strong>do</strong><br />

Três outros chegaram com pistolas na mão, um gritou:<br />

Mão na cabeça, malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos<br />

Eu disse: Claro, pois não! Mas o que é que eu fiz?<br />

Se é <strong>do</strong>cumento, eu tenho aqui...<br />

Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí!<br />

Eu quero é saber o que você estava pensan<strong>do</strong><br />

Eu avalio o preço me basean<strong>do</strong> no nível mental<br />

Que você anda por aí usan<strong>do</strong><br />

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custan<strong>do</strong>.<br />

Minha cabeça caída, solta no chão<br />

Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez<br />

Metrô Linha 743!!!<br />

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha<br />

E eu era agora um cérebro vivo à vinagrete<br />

Meu cérebro logo pensou: Que seja, mas nunca fui tiete!<br />

Fui posto à mesa com mais <strong>do</strong>is, e eram três pratos raros.<br />

E foi o maître que pôs<br />

Senti horror ao ser comi<strong>do</strong> com <strong>de</strong>sejo por um senhor alinha<strong>do</strong><br />

Meu último pedaço, antes <strong>de</strong> ser engoli<strong>do</strong>, ainda pensou grila<strong>do</strong>:<br />

Quem será esse <strong>de</strong>sgraça<strong>do</strong> <strong>do</strong>no <strong>de</strong>ssa zorra toda!!!<br />

Já tá tu<strong>do</strong> arma<strong>do</strong>, o jogo <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res canibais<br />

Mas o negócio é que tá muito ban<strong>de</strong>ira!!!<br />

Tá ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>mais, meu Deus!!!<br />

Cuida<strong>do</strong> brother, cuida<strong>do</strong> sábio senhor<br />

Eu aconselho sério pra vocês<br />

Eu morri, e nem sei mesmo qual foi aquele mês<br />

Metrô Linha 743!!!<br />

É... Por aí!<br />

O metrô faz referência à cida<strong>de</strong> contemporânea, cenário <strong>de</strong>sta e <strong>de</strong> muitas outras<br />

canções <strong>de</strong> Raul Seixas. É nas cida<strong>de</strong>s contemporâneas, movidas pela lógica perversa <strong>do</strong><br />

capitalismo, que os elementos da violência pura e simples estão onipresentes e sempre no<br />

ponto <strong>de</strong> entrar em ação. O subterrâneo das metrópoles, por on<strong>de</strong> transitam os metrôs, po<strong>de</strong><br />

ser visto como o reverso <strong>do</strong>s arranha-céus e centros <strong>de</strong> compra, evocan<strong>do</strong> ainda os “porões”<br />

da ditadura.<br />

Se no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s anos <strong>de</strong> chumbo a violência policial, legal e ilegal, era sistemática e<br />

utilizada principalmente contra os chama<strong>do</strong>s subversivos, inimigos e críticos <strong>do</strong> regime, a<br />

vigilância sobre a socieda<strong>de</strong> civil também era constante. A obsessão pela vigilância e a lógica<br />

da suspeita levava os milhares <strong>de</strong> agentes repressores a querer “saber o que você estava<br />

pensan<strong>do</strong>”.<br />

Nessa atmosfera <strong>de</strong> censura e vigilância, o eu lírico evoca experiências que retratam o<br />

jogo <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res canibais <strong>de</strong> cabeça, com a violência que lhe é própria. No embate entre as<br />

forças <strong>de</strong> repressão e resistência, ele acaba sucumbin<strong>do</strong> aos seus algozes. Posto à mesa com<br />

mais <strong>do</strong>is pratos raros, ele se convertera em mártir.


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13<br />

Com “nem sei mesmo qual foi aquele mês”, Raul apresenta um <strong>do</strong>s elementos<br />

profun<strong>do</strong>s e instáveis <strong>do</strong> trauma das vítimas <strong>de</strong> violência, a <strong>de</strong>sorientação <strong>de</strong> sua perspectiva<br />

<strong>de</strong>corrente da <strong>de</strong>struição das referências <strong>de</strong> tempo, das noções lógicas <strong>de</strong> anteriorida<strong>de</strong> e<br />

regularida<strong>de</strong> (GINZBURG, 2007).<br />

A tentativa <strong>de</strong> reorientação expressa com intensida<strong>de</strong> o componente traumático da<br />

situação relatada. Todavia, martiriza<strong>do</strong> com o sufoco da ditadura, ele não encontrava lugar no<br />

status quo. Desejan<strong>do</strong> estar fora das cercas emban<strong>de</strong>iradas que circundam o sistema, a solidão<br />

tornou-se sua marca distintiva:<br />

Aos 43 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u para mim.<br />

Não faço nada com vonta<strong>de</strong>; não tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tocar, <strong>de</strong> escrever, só quero<br />

<strong>do</strong>rmir, só sonhan<strong>do</strong> sou mais feliz.<br />

Vivo só. Muito só (SEIXAS, 2005, p. 199).<br />

A ditadura militar buscou legitimação a partir <strong>de</strong> discursos e práticas <strong>de</strong> força<br />

coercitiva, cercan<strong>do</strong> e sufocan<strong>do</strong> a socieda<strong>de</strong>. Diante da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma mudança<br />

radical <strong>do</strong> sistema, a resistência cultural <strong>de</strong> Raul Seixas <strong>de</strong>finhou melancolicamente,<br />

projetan<strong>do</strong> um mun<strong>do</strong> dilacera<strong>do</strong> e <strong>de</strong> valores <strong>de</strong>grada<strong>do</strong>s.<br />

O teor testemunhal <strong>de</strong> sua obra, incluin<strong>do</strong>-se as canções, textos, entrevistas e<br />

<strong>de</strong>poimentos, traz à reflexão os problemas políticos, existenciais e socioculturais que<br />

animaram seu tempo, num questionamento das conexões entre produção cultural e vida social,<br />

<strong>de</strong>tectan<strong>do</strong>, amplian<strong>do</strong> e registran<strong>do</strong> os problemas <strong>do</strong> nosso país.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, o sucesso da investigação implica que o fim <strong>de</strong>ste artigo signifique um<br />

recomeço: o da tarefa <strong>de</strong> pensar os para<strong>do</strong>xos da formação social brasileira em diálogo com<br />

autores que em suas obras interpretaram e pensaram o seu tempo. Esperamos que cada leitura<br />

conduza a outros <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos possíveis, apontan<strong>do</strong> para novos problemas e questões <strong>do</strong><br />

múltiplo <strong>de</strong> nossa experiência cultural.<br />

Referências<br />

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filosóficos. Trad. Gui<strong>do</strong> Antonio <strong>de</strong> Almeida. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1985.<br />

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