A Contribuição de A Religião nos Limites da Mera Razão ... - Unimep
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A Contribuição <strong>de</strong> A Religião<br />
<strong>nos</strong> <strong>Limites</strong> <strong>da</strong> <strong>Mera</strong> Razão,<br />
<strong>de</strong> Kant, à Filosofia Política<br />
<strong>da</strong>s Relações Internacionais<br />
THE CONTRIBUTION OF KANT’S RELIGION<br />
WITHIN THE LIMITS OF REASON<br />
ALONE TO A POLITICAL PHILOSOPHY<br />
OF INTERNATIONAL RELATIONS 1 1<br />
Resumo Neste artigo, ao perpassar as três partes do escrito <strong>de</strong> Kant sobre a religião,<br />
são abor<strong>da</strong>dos alguns motivos <strong>de</strong> interesse sistemático tanto para a sua filosofia <strong>da</strong> religião<br />
quanto para a sua filosofia política. Primeiro, trata do nexo entre filosofia moral<br />
e religião em Kant, referindo-se a alguns <strong>de</strong> seus textos mais antigos e aos <strong>de</strong>sdobramentos<br />
<strong>de</strong>les no pensamento kantiano, <strong>nos</strong> quais po<strong>de</strong>m-se constatar alguns<br />
enunciados do escrito sobre a religião. Num segundo passo, são reconstruídos três<br />
argumentos centrais <strong>de</strong> Kant, cuja finali<strong>da</strong><strong>de</strong> é revelar a irrecusabili<strong>da</strong><strong>de</strong> prática que,<br />
para ele, cabe imputar à instituição <strong>de</strong> uma essência ética comum. Da argumentação <strong>de</strong><br />
Kant em favor <strong>de</strong> uma essência ética comum também se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>m algumas<br />
conclusões úteis à controverti<strong>da</strong> questão <strong>de</strong> uma República cosmopolita, com as quais<br />
encerrarei minhas colocações.<br />
Palavras-chave KANT, I. – RELIGIÃO – ÉTICA – REPÚBLICA MUNDIAL [WELTREPUBLIK]<br />
– RELAÇÕES INTERNACIONAIS.<br />
MATTHIAS<br />
LUTZ-BACHMANN<br />
Universität Frankfurt<br />
am Main/Frankfurt/AL<br />
Lutz-Bachmann@<br />
em.uni-frankfurt.<strong>de</strong><br />
Abstract This paper examines the three parts of Kant’s book on religion, addressing<br />
some motives that are of systematic interest for both his philosophy of religion and<br />
his political philosophy. First, the nexus between moral philosophy and religion in<br />
Kant will be discussed, refesring to some of his previous texts and their unfolding in<br />
Kantian thinking, since they antecipate some points of his writing on religion.<br />
Second, three central arguments by Kant will be reconstructed, in or<strong>de</strong>r to reveal the<br />
practical impossibility of refusing the institution of a commom ethical essence. Out<br />
of this argumentation of Kant in favor of a common ethical essence there can be<br />
<strong>de</strong>duced some useful conclusions regarding the polemical question concerning a<br />
cosmopolitan Republic, with which I will concluse my consi<strong>de</strong>rations.<br />
Keywords KANT, I. – RELIGION – ETHICS – WORLD REPUBLIC [WELTREREPUBLIK]<br />
– INTERNATIONAL RELATIONS.<br />
1 Tradução do alemão para o português: PAULO ASTOR SOETHE (UFPR).<br />
Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004 95
N1. FILOSOFIA MORAL E RELIGIÃO<br />
o início do “Prólogo” à primeira edição <strong>de</strong> seu escrito<br />
sobre a religião, <strong>de</strong> 1793, Kant <strong>de</strong>ixa inequivocamente<br />
claro que a doutrina moral que serve <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong><br />
ao homem em sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong> prática, quando este faz uso<br />
<strong>de</strong> sua razão <strong>de</strong> maneira autônoma, não se apóia sobre<br />
um conceito <strong>de</strong> Deus cuja fun<strong>da</strong>mentação seja religiosa,<br />
teológica ou filosófica. A ética filosófica não precisa <strong>de</strong><br />
um legislador situado acima do ser humano para que<br />
este tome conhecimento do que <strong>de</strong>ve fazer, tampouco <strong>de</strong> um juiz vingador,<br />
<strong>de</strong> modo que ele faça o que “reconhece como algo ‘que se <strong>de</strong>va fazer’”.<br />
“A moral”, escreve Kant, “para a evocação <strong>de</strong> si mesma (...), seja como<br />
for, não carece <strong>da</strong> religião, mas em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> pura razão prática basta-se<br />
a si mesma”. 2 Sob uma consi<strong>de</strong>ração mais acura<strong>da</strong>, não é novo o que, na<br />
posição <strong>de</strong> Kant, po<strong>de</strong> soar para um leitor <strong>de</strong>savisado como típica conquista<br />
<strong>da</strong> filosofia do Esclarecimento. Platão, em seu diálogo “Eutífron”,<br />
já havia apontado as contradições internas <strong>de</strong> uma doutrina moral teonômica<br />
3 e, para Aristóteles, é justamente em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> distinção entre<br />
filosofia teórica e prática que não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir a ética partindo <strong>de</strong><br />
uma metafísica ou <strong>de</strong> uma doutrina relativa a Deus. 4 Mesmo Tomás <strong>de</strong><br />
Aquino, com sua distinção entre lex aeterna e lex naturalis, não a<strong>de</strong>re à<br />
concepção <strong>de</strong> uma filosofia moral cujo discernimento advém <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />
cósmico-divina, como haviam feito Agostinho ou representantes <strong>da</strong><br />
ética estóica. Ele visa, isso sim, a uma ética fun<strong>da</strong><strong>da</strong> apenas no discernimento<br />
racional prático do ser humano. 5<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> história <strong>da</strong> filosofia, portanto, não é nova a<br />
noção <strong>de</strong> que a ética não po<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>r-se numa doutrina sobre Deus.<br />
Original, porém, é a fun<strong>da</strong>mentação especial apresenta<strong>da</strong> por Kant em favor<br />
<strong>de</strong> sua argumentação. Ele enten<strong>de</strong> que a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ética prece<strong>de</strong>nte<br />
ao conceito <strong>de</strong> Deus fun<strong>da</strong>-se mesmo na estrutura do juízo moral.<br />
Em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> autonomia <strong>de</strong> quem emite eticamente o juízo, cabe ao<br />
juízo moral, segundo Kant, ignorar todos os propósitos materiais e encontrar<br />
tão-somente na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> generalização o critério em favor<br />
<strong>da</strong> retidão moral <strong>de</strong> <strong>nos</strong>sas máximas <strong>da</strong> ação. Para Kant, conseqüentemente,<br />
a moral “não carece, <strong>de</strong> modo algum, <strong>de</strong> um fun<strong>da</strong>mento <strong>de</strong>terminador<br />
material do livre arbítrio, isto é, <strong>de</strong> nenhum propósito, nem para<br />
tomar conhecimento do que seja obrigação, nem para ensejar que ela seja<br />
cumpri<strong>da</strong>: mas a moral bem po<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>ve, quando se trata <strong>da</strong> obrigação,<br />
abstrair todos os fins”. 6 Ain<strong>da</strong> que, <strong>de</strong> acordo com Kant, <strong>de</strong>vam permanecer<br />
livres a fonte do discernimento moral sobre o <strong>de</strong>ver moral e a motivação<br />
<strong>de</strong> quem age para a concretização prática do que se reconhece<br />
2 KANT, AA, VI, p. 3.<br />
3 Cf. PLATÃO. “Eutífron”. In: _______. Diálogos. 10 c-11 b.<br />
4 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, VI (1-2): 1.138 b 16-1.139 b 13.<br />
5 Cf. AQUINO, T. <strong>de</strong>. Summa Theologiae I-II, q.91, a.2.<br />
6 KANT, AA, VI, p. 3s.<br />
96 Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004
como <strong>de</strong>ver, isso não exclui o homem perguntar-se<br />
sobre o resultado, no todo <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> seu agir<br />
eticamente correto. Isso porque Kant sabe – também<br />
aqui em consonância com a tradição – que<br />
muito provavelmente trata-se para o homem –<br />
em seu agir, almejar e querer – <strong>da</strong> efetivação <strong>de</strong><br />
seus fins no todo <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>. Como quintessência<br />
<strong>de</strong>ssa auto<strong>de</strong>terminação do homem, a filosofia<br />
tem a seu dispor, no mais tar<strong>da</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
Aristóteles, o conceito <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> bem-sucedi<strong>da</strong> ou<br />
eu<strong>da</strong>imonia. Diversamente <strong>da</strong> ética aristotélica,<br />
porém, a doutrina moral em Kant não conquista o<br />
ponto <strong>de</strong> vista do que seja eticamente correto, ao<br />
assumir a perspectiva <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> bem-sucedi<strong>da</strong>,<br />
mas somente <strong>da</strong> concordância, exigi<strong>da</strong> em nós pela<br />
razão prática, entre o que se quer e o que se reconhece<br />
como <strong>de</strong>vido. Mas, diferentemente <strong>da</strong> ética<br />
estóica, para Kant o anseio do homem por felici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
não chega ao fim pretendido, quando ocorre<br />
a habitual conquista <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> moral, ou seja,<br />
quando se alcança a concordância entre a vonta<strong>de</strong><br />
livre e o <strong>de</strong>ver moral, segundo o discernimento <strong>da</strong><br />
razão prática. Resta ain<strong>da</strong> a pergunta <strong>da</strong> razão prática<br />
acerca do fim último do agir, concebi<strong>da</strong> por<br />
Kant como a concordância pretendi<strong>da</strong> entre a posse<br />
<strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> e a beatitu<strong>de</strong> (Glückseligkeit). É somente<br />
para <strong>de</strong>signar a realização <strong>de</strong>ssa concordância<br />
que Kant utiliza o conceito <strong>de</strong> sumo bem.<br />
Na Crítica <strong>da</strong> Razão Prática, publica<strong>da</strong> em<br />
1788, cinco a<strong>nos</strong> antes <strong>de</strong> A Religião <strong>nos</strong> <strong>Limites</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>Mera</strong> Razão, Kant <strong>de</strong>fendia que o projeto <strong>de</strong><br />
sua doutrina moral, para não fracassar, precisaria<br />
ter como pressuposto a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma resposta<br />
positiva à pergunta sobre o fim último <strong>de</strong><br />
<strong>nos</strong>so agir. Isso o levou a postular Deus como<br />
um ser santo, isto é, plenamente bondoso, ao<br />
mesmo tempo onisciente e onipotente, pois, para<br />
ele, só seria possível pensar por essa via a realização<br />
do sumo bem ao ser humano. Diversamente<br />
do uso corrente no idioma, Kant não enten<strong>de</strong><br />
como subordinado ao postulado <strong>da</strong> razão prática<br />
nem uma instrução prática para a ação, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong><br />
ao homem, nem um <strong>de</strong>sejo puro, e sim uma sentença<br />
teórica, a saber, um discernimento necessário<br />
<strong>da</strong> razão que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não constitui objeto<br />
algum no mundo físico <strong>da</strong>s coisas, por não se referir<br />
ao que há <strong>de</strong> material em <strong>nos</strong>sas intuições<br />
sensíveis. Mesmo assim, o postulado <strong>da</strong> existência<br />
<strong>de</strong> Deus e a assumpção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
divinas articulam, segundo Kant, uma<br />
noção irrecusável, ou seja, uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> racional<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e incondiciona<strong>da</strong> inseparavelmente<br />
uni<strong>da</strong> 7 à lei moral vigente <strong>de</strong> maneira incondiciona<strong>da</strong><br />
e a priori, e cuja reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>paramos em<br />
<strong>nos</strong>sa razão. Além disso, sem essa necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
racional ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e incondiciona<strong>da</strong> não se po<strong>de</strong>ria<br />
pensar, <strong>de</strong> acordo com Kant, o pressuposto<br />
<strong>de</strong> sua doutrina moral, isto é, a <strong>de</strong>terminação possível<br />
<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> humana pela razão.<br />
Kant amplia sua argumentação em favor <strong>da</strong><br />
assumpção <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> Deus, na Crítica <strong>da</strong><br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Julgar, <strong>de</strong> 1790. Pressupondo o <strong>de</strong>sempenho<br />
regulativo do conhecimento por parte<br />
<strong>da</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong> teológica do juízo, parece-lhe necessário<br />
pensar a natureza como um todo propositado<br />
e, por conseqüência, contemplar a realização do<br />
sumo bem como um plano subjacente à criação<br />
em sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tais reflexões não apenas contêm<br />
novos argumentos em favor <strong>da</strong> assumpção<br />
<strong>da</strong> existência <strong>de</strong> Deus, mas igualmente fazem<br />
saltar aos olhos a exigência <strong>de</strong> enxergar Deus não<br />
só como um legislador <strong>da</strong> natureza, “mas também<br />
como um coman<strong>da</strong>nte legislativo num reino<br />
moral dos fins”. 8 Kant <strong>de</strong>duz <strong>da</strong>í, além dos atributos<br />
clássicos <strong>de</strong> Deus – onisciência, onipotência,<br />
eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> e onipresença –, suas características<br />
relativas à bon<strong>da</strong><strong>de</strong> e à justiça. Nesse sentido,<br />
esclarece por que só então <strong>da</strong> teleologia moral <strong>da</strong><br />
razão <strong>de</strong>corre uma teologia, e não o inverso. 9<br />
O “Prólogo” à primeira edição do escrito<br />
sobre a religião retoma essas reflexões presentes<br />
na Crítica <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Julgar. Deixa claro por<br />
que a moral precisa renunciar ao conceito <strong>de</strong> fim<br />
propositado, na medi<strong>da</strong> em que trata o discernimento<br />
<strong>da</strong> razão prática quanto ao eticamente<br />
correto e a <strong>de</strong>terminação motivacional <strong>da</strong> ação do<br />
homem diante <strong>de</strong> seu agir. Mesmo assim, a noção<br />
<strong>de</strong> fim propositado é refuta<strong>da</strong> não somente em seu<br />
fun<strong>da</strong>mento, mas, segundo Kant, surge muito<br />
7 KANT, KpV, AA, V, p. p. 122.<br />
8 Ibid., p. 444.<br />
9 Ibid.<br />
Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004 97
mais <strong>da</strong> própria moral, porque só com auxílio<br />
<strong>de</strong>sta é que se po<strong>de</strong>m respon<strong>de</strong>r as perguntas <strong>da</strong><br />
razão prática, justifica<strong>da</strong>s e irrecusáveis, acerca do<br />
fim último <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e do agir huma<strong>nos</strong>, como também<br />
do mundo como um todo. Portanto, escreve<br />
Kant, “não se po<strong>de</strong> ficar indiferente à moral, se<br />
ela dá início ou não (...) ao conceito <strong>de</strong> um fim último<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas; porque somente por esse<br />
meio é possível conferir reali<strong>da</strong><strong>de</strong> objetivamente<br />
prática à ligação entre a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> proposita<strong>da</strong><br />
nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> proposita<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
natureza, <strong>da</strong> qual não po<strong>de</strong>mos prescindir”. 10<br />
Com essa argumentação, é prepara<strong>da</strong> uma nova e<br />
propulsora contribuição do escrito sobre a religião<br />
tanto à questão sobre Deus quanto à<br />
<strong>de</strong>terminação <strong>da</strong> doutrina moral. Tendo em vista<br />
a moral, a força inovadora <strong>de</strong> A Religião <strong>nos</strong> <strong>Limites</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>Mera</strong> Razão resi<strong>de</strong> especialmente no<br />
conceito <strong>de</strong> que não é na etici<strong>da</strong><strong>de</strong> (Sittlichkeit)<br />
do indivíduo que se <strong>de</strong>ve enxergar o fim último<br />
<strong>da</strong> criação (em sua posse <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>, portanto),<br />
tampouco na beatitu<strong>de</strong> do indivíduo, proporcional<br />
à sua felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Cabe, isso sim, ver que a etici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> em seu todo tem <strong>de</strong> ser o<br />
fim mais abrangente <strong>da</strong> razão prática.<br />
Na “Terceira Parte” <strong>de</strong> sua filosofia <strong>da</strong> religião,<br />
Kant chega finalmente à formulação do<br />
imperativo moral quanto a uma essência ética<br />
comum (ethisches gemeines Wesen) a ser alcança<strong>da</strong><br />
pela humani<strong>da</strong><strong>de</strong> como um todo, no sentido <strong>de</strong><br />
uma obrigação diante <strong>de</strong> si mesma. Suas consi<strong>de</strong>rações<br />
sobre o mal na natureza humana e a<br />
superação do mal pelo princípio bom, na “Primeira<br />
Parte” e na “Segun<strong>da</strong> Parte”, preparam o<br />
caminho para a <strong>de</strong>dução <strong>de</strong>ssa exigência.<br />
2. FUNDAMENTAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DE UMA<br />
ESSÊNCIA ÉTICA COMUM<br />
Cabe perguntar, primeiramente, em que<br />
consiste o mal na natureza humana e qual o seu<br />
significado para a questão sobre a relação entre filosofia<br />
moral e doutrina sobre Deus, apenas brevemente<br />
tangencia<strong>da</strong> neste texto. Em consonância<br />
com a sua doutrina <strong>de</strong> uma etici<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
na autonomia do ser humano, Kant enten<strong>de</strong> como<br />
10 I<strong>de</strong>m, AA, VI, p. 5.<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> na natureza humana uma disposição ao<br />
bem. Essa assumpção distingue Kant <strong>de</strong> Thomas<br />
Hobbes e, com isso, também se explicam as diferenças<br />
entre ambos no campo <strong>da</strong> filosofia política.<br />
A disposição do ser humano para o bem, assumi<strong>da</strong><br />
por Kant, inclui sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para a etici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
o que também quer dizer: a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> ao homem <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ouvir a razão legisladora<br />
e incondiciona<strong>da</strong> presente em si mesmo e <strong>de</strong><br />
agir segundo ela. A propensão do homem ao mal,<br />
entendi<strong>da</strong> como indissociável <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> humana,<br />
consiste, para Kant, em que todo homem –<br />
seja em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> natureza<br />
humana (fragilitas) seja por conta <strong>de</strong> uma impureza<br />
do coração (impuritas), seja ain<strong>da</strong> em conseqüência<br />
<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terioração (corruptio) – ten<strong>de</strong> a<br />
<strong>de</strong>sviar-se <strong>da</strong>s obrigações morais impostas pela lei<br />
dos costumes com base na liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e na razão<br />
próprias ao homem. Kant <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> aqui uma variante<br />
filosófica <strong>da</strong> doutrina do pecado original,<br />
<strong>de</strong> tradição teológica: enten<strong>de</strong> ser efetiva no homem<br />
uma propensão ao mal, como quali<strong>da</strong><strong>de</strong> geral<br />
<strong>da</strong> espécie marcante <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as pessoas, mas<br />
que – diversamente do que se po<strong>de</strong>ria pensar –<br />
não tem origem na natureza biológica do ser humano,<br />
como sua sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou concupiscência,<br />
isto é, sua natureza viciosa, e sim na própria liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
inteligível do homem. Nesse sentido,<br />
cabe também imputar essa propensão ao homem<br />
por via moral e, portanto, culpável, como expressão<br />
e <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> humana. Isso faz o<br />
ser humano radicalmente mau em sua natureza <strong>de</strong><br />
liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas não em sua constituição biológica.<br />
Tal informação em Kant, por sua vez, não significa<br />
que o ser humano como um todo ou sua razão<br />
sejam maus – essa qualificação faria <strong>de</strong>le um<br />
ser diabólico. Para Kant, o fato <strong>de</strong> o homem<br />
como membro <strong>da</strong> espécie humana ser radicalmente<br />
mau não <strong>de</strong>ve significar que ele negue a autori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> lei dos costumes ou perca, com isso,<br />
a sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois, com assumpções como<br />
essas, também se colocaria em questão a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> lei dos costumes como um factum <strong>da</strong> razão em<br />
nós. Em vez disso, ele sugere que o ser humano<br />
cumpre os man<strong>da</strong>mentos práticos <strong>da</strong> razão em<br />
virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras coisas que não apenas os fun-<br />
98 Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004
<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> razão prática; isso se revela no fato<br />
<strong>de</strong> o homem, via <strong>de</strong> regra, só agir eticamente em<br />
conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a obrigação, e não por obrigação.<br />
Ele afirma, em A Religião <strong>nos</strong> <strong>Limites</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Mera</strong> Razão:<br />
Por conseqüência (mesmo o melhor [dos homens])<br />
só é mau por inverter a or<strong>de</strong>m moral dos incentivos<br />
(Triebfe<strong>de</strong>r), no acolhimento <strong>de</strong>ssa mesma<br />
or<strong>de</strong>m em suas máximas: a lei moral, ele a acolhe ao<br />
lado <strong>da</strong> lei do amor-próprio, mas, quando se dá<br />
conta <strong>de</strong> que uma não po<strong>de</strong> subsistir ao lado <strong>da</strong><br />
outra, (...) faz dos incentivos do amor-próprio e <strong>de</strong><br />
suas inclinações a condição para o seguimento <strong>da</strong> lei<br />
moral. 11<br />
A malva<strong>de</strong>z <strong>da</strong> natureza humana, segundo<br />
Kant, não é uma mal<strong>da</strong><strong>de</strong> abissal. Ela consiste em<br />
que o homem, em sua disposição, escolhe o mal<br />
como mal e o transforma em incentivo <strong>de</strong> seu<br />
agir. Antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, a malva<strong>de</strong>z do homem<br />
<strong>de</strong>ve qualificar-se como uma inversão do coração<br />
que interpreta os man<strong>da</strong>mentos universais <strong>da</strong><br />
razão como regras gerais, <strong>da</strong>s quais é possível<br />
<strong>de</strong>sviar-se segundo um parâmetro <strong>de</strong> benefício<br />
próprio. Ela se articula num posicionamento<br />
pragmático em face <strong>da</strong> lei dos costumes, com o<br />
qual o homem toma a si mesmo como moralmente<br />
elevado, sempre fantasiando algo mais em<br />
favor <strong>da</strong> própria etici<strong>da</strong><strong>de</strong>. De acordo com Kant,<br />
cabe ao ser humano o man<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> superar,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fun<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> sua disposição, essa malva<strong>de</strong>z<br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> como inversão. Por outro lado,<br />
ele po<strong>de</strong> não ter sucesso nisso, justamente<br />
porque a malva<strong>de</strong>z é expressão e, ao mesmo tempo,<br />
conseqüência <strong>de</strong> sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por tal razão,<br />
ele necessita <strong>de</strong> outra solução: para Kant, a razão<br />
prática <strong>de</strong>ve ter em vista um ser humano exemplar,<br />
realizador do i<strong>de</strong>al <strong>da</strong> perfectibili<strong>da</strong><strong>de</strong> moral,<br />
ou seja, que não se <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong>terminar por essa inversão<br />
e resulte num mo<strong>de</strong>lo para nós. Nesse sentido,<br />
a exigência <strong>de</strong> Kant é <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “ser<br />
humano com disposição ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente divina,<br />
(...) por seus ensinamentos, conduta e sofrimento,<br />
dê o exemplo <strong>de</strong> um ser humano que, em si,<br />
seja agradável a Deus”, ocasionando “no mundo,<br />
11 Ibid., p. 36.<br />
por tudo isso, um bem moral notável, mediante<br />
uma revolução no gênero humano”. 12 É preciso<br />
imaginar esse ser humano <strong>de</strong> tal modo que, estando<br />
ele mesmo isento <strong>da</strong> malva<strong>de</strong>z em sua disposição,<br />
venha romper no princípio o domínio<br />
do mal sobre a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, como representante<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e exemplo para<br />
ela. Fica evi<strong>de</strong>nte que Kant, com esse ser humano<br />
exemplar buscado pela razão, <strong>de</strong>screve o programa<br />
<strong>de</strong> uma cristologia filosófica fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na<br />
filosofia moral.<br />
Porém, mesmo a “representação do princípio<br />
bom, ou seja, <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> (...) em sua perfectibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
moral como exemplo <strong>de</strong> imitação<br />
para qualquer um” 13 ain<strong>da</strong> não tem condições <strong>de</strong><br />
cumprir as expectativas <strong>da</strong> razão prática como<br />
um todo. Embora, com a aparição histórica <strong>de</strong>sse<br />
ser humano exemplar, o po<strong>de</strong>r universal do princípio<br />
do mal sobre a disposição <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
tenha se rompido, ao me<strong>nos</strong> <strong>de</strong> maneira rudimentar,<br />
e fun<strong>da</strong>mente-se, por essa via, uma pretensão<br />
<strong>de</strong> direito do princípio bom a predominar<br />
sobre o homem, a vitória <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>sse princípio<br />
exigi<strong>da</strong> pela razão ain<strong>da</strong> não está totalmente<br />
assegura<strong>da</strong>. Para tanto, torna-se imprescindível a<br />
realização moral do princípio bom pelos próprios<br />
seres huma<strong>nos</strong>. Eis por que Kant escreve, na<br />
“Terceira Parte” <strong>de</strong> seu escrito sobre a religião,<br />
que o domínio perene e <strong>de</strong>finitivo<br />
do princípio bom, até on<strong>de</strong> os homens são capazes<br />
<strong>de</strong> atuar, não po<strong>de</strong> ser alcançado <strong>de</strong> outra maneira,<br />
queremos crer, senão por meio <strong>da</strong> instauração e<br />
expansão <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> regi<strong>da</strong> segundo leis virtuosas<br />
e <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a evocar esse domínio; uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que se torne para a humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, em sua <strong>de</strong>cisão<br />
<strong>de</strong> levá-la a cabo mediante a razão e em todo<br />
o seu alcance, uma tarefa e uma obrigação. 14<br />
Isso porque só assim po<strong>de</strong>-se ter a esperança<br />
<strong>de</strong> um triunfo do princípio bom sobre o mau.<br />
O fato <strong>de</strong> a própria razão prática exigir – além <strong>da</strong><br />
obediência incondicional <strong>de</strong> todo ser humano à lei<br />
dos costumes, ou seja, ao discernimento <strong>de</strong> sua<br />
12 Ibid., p. 63.<br />
13 Ibid., p. 82.<br />
14 Ibid., p. 94.<br />
Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004 99
própria razão prática – a união <strong>de</strong> todos os homens<br />
sob a espécie <strong>de</strong> uma coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> pública é<br />
ilustrado, por Kant, com a seguinte imagem, cita<strong>da</strong><br />
com freqüência: “A razão que legisla por via<br />
moral implanta, a<strong>de</strong>mais <strong>da</strong>s leis que prescreve a<br />
ca<strong>da</strong> um, um estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> como ponto <strong>de</strong><br />
união para todos os que amam o bem, a fim <strong>de</strong><br />
que possam congregar-se sob ele e obter, enfim, o<br />
comando sobre o mal que os <strong>de</strong>safia sem <strong>de</strong>scanso”.<br />
15 Seu escrito sobre a religião traz o <strong>de</strong>sdobramento<br />
<strong>de</strong> três fun<strong>da</strong>mentos práticos <strong>da</strong> razão, <strong>de</strong>pondo<br />
em favor <strong>da</strong> constituição <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ético-pública ou também <strong>de</strong> uma essência ética comum.<br />
O primeiro fun<strong>da</strong>mento refere-se à autocompreensão<br />
do ser humano individual diante <strong>da</strong><br />
lei dos costumes; o segundo, à relação do homem<br />
com os <strong>de</strong>mais; e o terceiro articula as obrigações<br />
que, para Kant, o gênero humano tem diante <strong>de</strong> si.<br />
Designo esses três fun<strong>da</strong>mentos como argumento<br />
intra-subjetivo, intersubjetivo e <strong>de</strong> uma auto-referenciação<br />
necessária <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, respectivamente.<br />
Eles constroem-se uns sobre os outros <strong>de</strong><br />
maneira sistemática, o segundo pressupondo o<br />
primeiro, e o terceiro, os dois prece<strong>de</strong>ntes.<br />
O primeiro argumento em favor <strong>da</strong> unificação<br />
dos indivíduos numa essência ética comum<br />
situa-se no contexto <strong>da</strong> análise do inevitável combate<br />
entre a disposição do homem ao bem e sua<br />
propensão ao mal, na “Primeira Parte” e na “Segun<strong>da</strong><br />
Parte” do escrito kantiano sobre a religião.<br />
Suas reflexões referem-se a como ca<strong>da</strong> indivíduo<br />
<strong>de</strong>ve proce<strong>de</strong>r em face <strong>da</strong>s exigências <strong>da</strong> lei dos<br />
costumes em sua razão e <strong>da</strong> concomitante malva<strong>de</strong>z<br />
<strong>de</strong> seu coração. A superação intra-subjetiva<br />
<strong>da</strong> propensão ao mal surgi<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> nós,<br />
com base em <strong>nos</strong>sa própria liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que a razão<br />
prática <strong>nos</strong> exige só po<strong>de</strong> ser bem-sucedi<strong>da</strong> se<br />
for <strong>da</strong>do ao homem um mo<strong>de</strong>lo veraz <strong>de</strong> disposição<br />
sincera à virtu<strong>de</strong> e se ele mantiver para si<br />
esse apoio externo, <strong>de</strong> forma duradoura, numa<br />
comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> virtuosos. Essa comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
virtuosos cumpre aqui a função <strong>de</strong> apoiar a revolução<br />
do sentimento ético requerido do indivíduo,<br />
porém, não é constitutiva para a superação<br />
15 Ibid.<br />
do mal no próprio indivíduo, já que ele mesmo<br />
precisa <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>ssa tarefa. É isso que perfaz a<br />
liber<strong>da</strong><strong>de</strong> moral.<br />
O segundo argumento apóia-se na análise<br />
<strong>da</strong> ameaça sob a qual se encontra a etici<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser<br />
humano, a ser realiza<strong>da</strong> no âmbito <strong>de</strong> uma teoria<br />
<strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Conforme essa análise, a<br />
ameaça já está <strong>da</strong><strong>da</strong> com o factum dos <strong>de</strong>mais seres<br />
huma<strong>nos</strong>. “Basta”, escreve Kant, “que eles existam,<br />
estejam à sua volta e sejam seres huma<strong>nos</strong><br />
para que mutuamente um corrompa o outro em<br />
sua disposição moral e para que, um ao outro, se<br />
tornem maus”. 16 Para ilustrar tal enunciado, ele<br />
refere-se aos vícios insociais <strong>da</strong> inveja, <strong>da</strong> ânsia <strong>de</strong><br />
dominação e <strong>da</strong> cobiça. Contudo, não associa a tal<br />
constituição insocial do homem uma antropologia<br />
pessimista que contrarie fun<strong>da</strong>mentalmente<br />
a sua teoria <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> razão, como fez<br />
Thomas Hobbes. Em Kant, prevalece o argumento<br />
<strong>de</strong> que todo ser humano é mau em razão <strong>de</strong> sua<br />
livre <strong>de</strong>cisão própria. Na “Terceira Parte” <strong>de</strong> seu<br />
texto sobre a religião, surge novamente a idéia <strong>de</strong><br />
que são os outros homens os que dão ensejo ao<br />
erro moral do ser humano. Em analogia com a<br />
Doutrina do Direito, na Metafísica dos Costumes,<br />
sobre o estado natural (status naturalis) jurídico,<br />
Kant chama essa situação <strong>de</strong> estado natural ético,<br />
em que o homem encontra-se permanentemente<br />
hostilizado pelo mal “nele e, ao mesmo tempo,<br />
em ca<strong>da</strong> um dos <strong>de</strong>mais”. 17 De modo semelhante<br />
à exigência imposta pela razão prática na Doutrina<br />
do Direito, <strong>de</strong> que o estado natural <strong>de</strong>ve ser abandonado,<br />
também aqui Kant exige renunciar ao estado<br />
natural ético em direção a um estado éticocivil<br />
sob leis gerais <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>, uma vez que o estado<br />
natural prejudica em todos o <strong>de</strong>vido anseio<br />
por uma disposição pura. Tal abandono <strong>de</strong>ve se<br />
<strong>da</strong>r <strong>de</strong> modo comunitário: não por uma <strong>de</strong>cisão<br />
individual <strong>de</strong> acordo com o mo<strong>de</strong>lo do ser humano<br />
exemplar, como no primeiro argumento, mas<br />
em conjunto com os <strong>de</strong>mais, por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>liberação<br />
na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem que se possa, para<br />
tanto, celebrar um contrato sob forma jurídica.<br />
16 Ibid.<br />
17 Ibid., p. 97.<br />
100 Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004
18 Ibid., p. 94.<br />
19 Ibid., p. 97.<br />
20 Ibid.<br />
Assim como no abandono do estado natural jurídico,<br />
também aqui não há uma lei <strong>de</strong> permissão à<br />
coação <strong>de</strong> um outro ser humano para ingressar no<br />
estado ético-civil, pois este não constitui status<br />
entre as leis públicas do direito, e sim entre as leis<br />
<strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>. Kant acrescenta aqui a observação interessante<br />
<strong>de</strong> que esse estado ético-civil po<strong>de</strong><br />
prescindir <strong>de</strong> leis jurídicas, na medi<strong>da</strong> em que precisa,<br />
<strong>de</strong> qualquer modo, pressupor o status civilis<br />
jurídico; afinal, a essência ética comum não po<strong>de</strong><br />
ser cria<strong>da</strong> pelos homens sem já estar-lhe subjacente<br />
a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> público-jurídica <strong>da</strong> República política.<br />
18 Ain<strong>da</strong> voltarei a esse argumento.<br />
Como terceiro argumento em favor <strong>da</strong><br />
fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> uma coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> ético-civil, Kant<br />
menciona uma obrigação <strong>de</strong> espécie própria. 19 Não<br />
<strong>de</strong>signa, com isso, uma obrigação dos indivíduos<br />
huma<strong>nos</strong> em razão <strong>da</strong> lei dos costumes, <strong>de</strong> si<br />
mesmos e <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais pessoas, como ocorre no<br />
primeiro e no segundo argumentos. Ele fala agora,<br />
muito mais, <strong>de</strong> uma obrigação que o coletivo<br />
<strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> como gênero tem diante <strong>de</strong> si. O<br />
recurso a uma obrigação como essa, <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
perante ela mesma, pressupõe a idéia <strong>de</strong> uma<br />
razão apropria<strong>da</strong> ao conjunto <strong>de</strong> todos os homens.<br />
Tal noção remete à facul<strong>da</strong><strong>de</strong> teleológica do juízo e<br />
à dicção, que lhe é própria, sobre um reino dos<br />
fins <strong>de</strong> natureza moral: “Pois todo gênero <strong>de</strong> seres<br />
racionais, na idéia <strong>de</strong> razão, está objetivamente<br />
<strong>de</strong>terminado a um fim comunitário, a saber, ao<br />
fomento do sumo bem, como bem comunitário”.<br />
20 Kant recorre aqui ao conceito <strong>de</strong> sumo<br />
bem, como já o encontrávamos na Crítica <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Julgar. Mais exatamente, ele <strong>de</strong>signa o<br />
sumo bem como um bem comunitário próprio a<br />
todo o gênero, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> que o<br />
caracteriza. A união <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as pessoas numa essência<br />
ética comum não <strong>de</strong>corre negativamente <strong>da</strong><br />
intenção <strong>de</strong> superar o mal, o que equivale a dizer,<br />
<strong>da</strong>s ambivalências <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> prática manifesta<strong>da</strong>s<br />
na propensão ao mal. Essa união resulta, positivamente,<br />
<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>limitação última dos propósitos<br />
objetivamente <strong>da</strong><strong>da</strong> aos seres aptos à razão,<br />
ou seja, <strong>da</strong><strong>da</strong> na própria idéia <strong>da</strong> razão. Isso<br />
significa que nós, <strong>de</strong> acordo com Kant, só po<strong>de</strong>mos<br />
falar <strong>de</strong> um sujeito ético <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> sob<br />
o pressuposto <strong>de</strong>ssa noção racional <strong>de</strong> um fim.<br />
Dessa perspectiva, a essência ética comum chamase,<br />
em Kant, povo <strong>de</strong> Deus, pois a realização do<br />
sumo bem – <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> na Crítica <strong>da</strong> Razão<br />
Prática – apenas po<strong>de</strong> ser pensa<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo sensato<br />
como obra do próprio Deus. Da mesma maneira,<br />
somente é possível falar <strong>de</strong> um fim último<br />
<strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> em sentido estrito – como já o fizera<br />
a Crítica <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Julgar – se estiver<br />
apoiado num criador racional, mas, sobretudo,<br />
bondoso e justo. Tendo em vista essa idéia teleológica<br />
<strong>de</strong> razão e sua exigência <strong>de</strong> pensar o sumo<br />
bem como um bem comunitário <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
faz sentido, para Kant, falar <strong>de</strong> Deus como legislador<br />
público <strong>da</strong> essência ética comum. Como<br />
suas leis não são jurídicas, mas <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>, não é<br />
possível imaginá-las senão sob a forma <strong>de</strong> uma<br />
confirmação divina <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras obrigações<br />
éticas. Deus não é, nesse sentido, apenas o legislador<br />
supremo e senhor moral do universo. É<br />
também o juiz supremo, porque somente ele entrevê<br />
<strong>nos</strong> homens suas disposições éticas mais interiores.<br />
Essa unificação <strong>da</strong>s tarefas <strong>de</strong> Deus<br />
como legislador, executor e juiz <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong><br />
é o que distingue o povo <strong>de</strong> Deus como República,<br />
organiza<strong>da</strong> sob as leis <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>, <strong>da</strong> República<br />
política. O po<strong>de</strong>r político <strong>de</strong>ssa última<br />
emana unicamente do povo soberano, mas é necessário<br />
concebê-la como Estado <strong>de</strong> direito, sob<br />
a forma <strong>de</strong> uma divisão entre os po<strong>de</strong>res Legislativo,<br />
Executivo e Judiciário.<br />
3. UM NOVO ARGUMENTO EM FAVOR DA<br />
REPÚBLICA COSMOPOLITA<br />
A literatura especializa<strong>da</strong> sobre Kant tem<br />
certa razão em apontar a contribuição <strong>de</strong>sse filósofo,<br />
na “Terceira Parte” <strong>de</strong> A Religião <strong>nos</strong> <strong>Limites</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>Mera</strong> Razão, à discussão filosófica sobre uma<br />
possível comprovação <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> Deus. 21<br />
Esse novo argumento precisa ser entendido como<br />
prosseguimento <strong>da</strong>s colaborações <strong>de</strong> Kant na Crítica<br />
<strong>da</strong> Razão Prática e na Crítica <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Julgar.<br />
21 Cf., entre outros, BAUMGARTNER, 1995, p. 103-117, e 1992, p.<br />
156-167.<br />
Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004 101
A idéia <strong>de</strong> essência ética comum representa, sem<br />
dúvi<strong>da</strong>, um pensamento novo no escrito sobre a<br />
religião, porém, ela ain<strong>da</strong> não foi suficientemente<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como novo argumento em favor do<br />
<strong>de</strong>bate sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do postulado político<br />
<strong>de</strong> uma República cosmopolita. 22<br />
Como vimos, o segundo argumento, favorável<br />
à fun<strong>da</strong>mentação <strong>de</strong> uma essência ética<br />
comum, apóia-se no discernimento <strong>de</strong> que os homens<br />
não apenas querem superar em si mesmos<br />
a propensão ao mal, mas também só po<strong>de</strong>m concretizar<br />
tal essência em conjunto. Como passo<br />
para o estabelecimento <strong>da</strong> essência ética comum,<br />
ele pressupõe, contudo, que os homens já tenham<br />
abandonado o estado natural jurídico, uma<br />
vez que, sem ele, o estado ético-civil “não po<strong>de</strong>ria<br />
ser erigido pelos homens”. 23 Isso é bastante eluci<strong>da</strong>tivo,<br />
pois na<strong>da</strong> no homem <strong>da</strong>ria mais ensejo à<br />
inveja, ao <strong>de</strong>spotismo e à violência que o próprio<br />
estado natural jurídico, em que ca<strong>da</strong> um procura<br />
alcançar os próprios direitos pelas próprias forças.<br />
Assim, tal estado é <strong>de</strong>ficitário não apenas do<br />
ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> normativi<strong>da</strong><strong>de</strong> jurídica, mas<br />
também <strong>da</strong> moral-filosófica, sob o aspecto <strong>da</strong><br />
superação <strong>da</strong> propensão ao mal, segundo exigência<br />
<strong>da</strong> razão prática; ele <strong>de</strong>ve ser abandonado para<br />
que os seres huma<strong>nos</strong> possam realizar uns com<br />
os outros a essência ética comum.<br />
Num primeiro momento, parece não haver,<br />
no terceiro argumento, um nexo análogo entre<br />
direito e etici<strong>da</strong><strong>de</strong>, porque lemos em Kant que<br />
constituir o povo <strong>de</strong> Deus “é pois uma obra cuja<br />
execução não se po<strong>de</strong> esperar dos homens, mas<br />
somente <strong>de</strong> Deus”. 24 To<strong>da</strong>via, se é mesmo Deus<br />
o único a que cabe constituir esse povo e <strong>da</strong>r-lhe<br />
uma constituição relativa às leis <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>, Kant<br />
logo relativiza tal informação, ao acrescentar:<br />
Eis por que não se permite ao homem, no entanto,<br />
ficar passivo em face <strong>de</strong>ssa empresa e <strong>de</strong>ixar que aja<br />
somente a Providência, como se a ca<strong>da</strong> um fosse<br />
permitido cui<strong>da</strong>r apenas <strong>de</strong> suas próprias questões<br />
morais em particular, <strong>de</strong>scurando, porém, os assuntos<br />
todos do gênero humano, <strong>de</strong> modo a entregá-los<br />
22 Cf. LABERGE, 1992, p. 112-123.<br />
23 KANT, AA, VI, p. 94.<br />
24 Ibid., p. 100.<br />
(segundo a <strong>de</strong>terminação moral <strong>de</strong>les mesmos) a<br />
uma sabedoria superior. Ele precisa, muito mais,<br />
proce<strong>de</strong>r como se tudo lhe importasse, e apenas<br />
sob tal condição po<strong>de</strong>rá ter esperança <strong>de</strong> que uma<br />
sabedoria superior permita frutificar seu esforço<br />
bem-intencionado. 25<br />
Isso não quer dizer senão que os seres huma<strong>nos</strong>,<br />
<strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong> esperança prática quanto<br />
ao cumprimento <strong>de</strong> um sumo bem como bem<br />
comunitário – esperançosos, portanto, <strong>da</strong> constituição<br />
<strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> Deus vivendo sob as leis <strong>da</strong><br />
virtu<strong>de</strong> –, precisam fazer tudo ao alcance <strong>de</strong> seu<br />
po<strong>de</strong>r para superar o mal que se apóia sobre a<br />
constituição política do estado natural.<br />
O mal na constituição comunitária <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
como um todo está fun<strong>da</strong>do, porém,<br />
no fato <strong>de</strong> os Estados, em sua associação mútua,<br />
não estabelecerem uma relação <strong>de</strong> direito público,<br />
senão que ain<strong>da</strong> um direito <strong>de</strong> natureza jurídico.<br />
Eis por que Kant escreve, em seu escrito sobre a<br />
paz, <strong>de</strong> 1795: “a malva<strong>de</strong>z <strong>da</strong> natureza humana<br />
(não obstante velar-se muito no estado éticocivil,<br />
sob a coerção do governo) <strong>de</strong>ixa-se entrever”,<br />
“<strong>de</strong> maneira evi<strong>de</strong>nte”, na relação externa<br />
dos Estados uns com os outros. 26 Ele se refere<br />
criticamente à doutrina clássica do direito <strong>da</strong>s<br />
gentes, em Grotius, Pufendorf e Vattel, como<br />
subjacente ao direito internacional <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m vigente,<br />
estabeleci<strong>da</strong> para os Estados pela Paz <strong>da</strong><br />
Westfália. Essa or<strong>de</strong>m, segundo Kant, velaria com<br />
sua semântica o fato <strong>de</strong> que, no espaço entre os<br />
Estados, ou seja, no espaço internacional, não há<br />
direito a merecer esse nome. Contudo, a aparência<br />
<strong>de</strong> juridici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> doutrina clássica do direito<br />
<strong>da</strong>s gentes comprova que os Estados, ao resolver<br />
seus conflitos por meio <strong>da</strong> guerra, não po<strong>de</strong>m renunciar<br />
por completo à juridici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu agir.<br />
Para Kant, isso comprova “que há no homem<br />
uma disposição moral ain<strong>da</strong> maior, embora latente,<br />
<strong>de</strong> dominar o princípio mau que nele habita<br />
(não há como negar) e uma disposição <strong>de</strong> esperar<br />
o mesmo dos <strong>de</strong>mais”. 27<br />
25 Ibid.<br />
26 I<strong>de</strong>m, AA, VIII, p. 355.<br />
27 Ibid.<br />
102 Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004
Em À Paz Perpétua, publicado apenas dois<br />
a<strong>nos</strong> <strong>de</strong>pois do texto sobre a religião, Kant une a<br />
superação do princípio mau e o <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong> disposição<br />
moral no ser humano, ao constituir um estado<br />
jurídico público entre os Estados, mais especialmente<br />
por meio <strong>da</strong> aliança pela paz, distinta<br />
do contrato pela paz, ao tentar eliminar a guerra <strong>de</strong><br />
vez, mediante a con<strong>de</strong>nação racional <strong>da</strong> guerra<br />
como rotina do direito (ou seja, uma reprovação<br />
emana<strong>da</strong> do “trono do supremo po<strong>de</strong>r que legisla<br />
segundo a moral”). 28 A longo prazo, segundo<br />
Kant, isso só terá êxito se, em primeiro lugar, os<br />
Estados <strong>de</strong>rem a si mesmos uma constituição republicana<br />
(<strong>de</strong>mocrática, diríamos hoje em dia) e,<br />
em segundo lugar, agregarem-se numa República<br />
cosmopolita ou Estado <strong>da</strong>s gentes, conforme outra<br />
sua <strong>de</strong>signação, pois<br />
não po<strong>de</strong> haver para os Estados, na relação entre<br />
eles, outra maneira <strong>de</strong> abandonar a situação ilegítima,<br />
cheia <strong>de</strong> guerras, senão abdicar <strong>de</strong> sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
selvagem (ilegítima), assim como fazem indivíduos<br />
huma<strong>nos</strong>, conformar-se a leis coercivas públicas e<br />
constituir, <strong>de</strong>ssa maneira, um Estado <strong>da</strong>s gentes<br />
(civitas gentium) sempre crescente, que, afinal, abrigue<br />
todos os povos <strong>da</strong> Terra. 29<br />
Kant <strong>de</strong>ixa inequivocamente claro ser essa a<br />
exigência <strong>da</strong> razão prática em relação ao convívio<br />
<strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, e seu discernimento vem ganhando,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> sempre maior.<br />
O único argumento contrário a essa exigência, do<br />
ponto <strong>de</strong> vista dos escritos kantia<strong>nos</strong> sobre a paz<br />
perpétua, é que os Estados <strong>de</strong> facto ain<strong>da</strong> se atêm à<br />
antiga concepção do direito <strong>da</strong>s gentes <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong><br />
por Grotius, Pufendorf e Vattel, a qual não admite<br />
restrição alguma à soberania <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> Estado individual.<br />
Já que os Estados, <strong>de</strong> acordo com a sua<br />
idéia <strong>de</strong> direito <strong>da</strong>s gentes, discor<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> concepção<br />
kantiana <strong>de</strong> um novo direito regido pela paz<br />
entre os povos, negam-se a limitar sua soberania<br />
para que predomine entre eles uma situação <strong>de</strong><br />
paz incondicional, mediante a constituição <strong>de</strong> um<br />
direito global público, Kant requer o surgimento<br />
<strong>de</strong>, ao me<strong>nos</strong>, uma liga dos povos “em lugar <strong>da</strong><br />
28 Ibid., p. 355s.<br />
29 Ibid., p. 357.<br />
idéia positiva <strong>de</strong> uma República cosmopolita”.<br />
A tarefa <strong>de</strong>ssa liga seria impedir a guerra entre os<br />
Estados e expandir-se sempre mais. Assim, a fim<br />
<strong>de</strong> que “nem tudo se perca”, ele espera “refrear a<br />
correnteza <strong>de</strong> inclinações hostis e adversas ao direito”,<br />
as quais resultam <strong>da</strong> malva<strong>de</strong>z <strong>da</strong> natureza<br />
humana, estando, no entanto, consciente <strong>de</strong> que<br />
a liga dos povos jamais po<strong>de</strong>rá afastar por completo<br />
a “constante ameaça <strong>de</strong> um irrompimento”<br />
30 <strong>da</strong> disposição bélica dos seres huma<strong>nos</strong>.<br />
É notório que Kant, por razões políticopragmáticas,<br />
contradiga nesse aspecto sua própria<br />
argumentação. 31 E na discussão sobre a sua filosofia<br />
política, sobretudo quanto ao papel <strong>da</strong> República<br />
cosmopolita, há um ponto <strong>de</strong> vista partilhado<br />
pelos mais importantes intérpretes, 32 mas<br />
que po<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> ser complementado <strong>da</strong> perspectiva<br />
<strong>da</strong> “Terceira Parte” <strong>de</strong> A Religião <strong>nos</strong> <strong>Limites</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Mera</strong> Razão, a saber, <strong>da</strong> doutrina kantiana <strong>de</strong> uma<br />
essência ética comum. Como vimos, Kant fun<strong>da</strong>menta<br />
tal idéia em seu terceiro argumento, com<br />
base numa auto-referenciação necessária <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ou, mais exatamente, numa obrigação<br />
que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> tem diante <strong>de</strong> si mesma. Entre<br />
os pressupostos irrenunciáveis, necessários à instauração<br />
do povo <strong>de</strong> Deus, encontra-se o <strong>de</strong> que<br />
a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ixe para trás, em primeiro lugar,<br />
o estado natural global, ou seja, o estado natural<br />
jurídico internacional. Constituir uma or<strong>de</strong>m do<br />
direito público justo em nível mundial, capaz <strong>de</strong><br />
recusar a guerra <strong>de</strong> modo duradouro e <strong>de</strong> alcançar<br />
a paz por procedimentos <strong>de</strong>mocráticos, revela-se<br />
algo imprescindível à luz do terceiro argumento<br />
do escrito sobre a religião, caso se preten<strong>da</strong> chegar<br />
à instauração <strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> Deus sob leis éticas.<br />
Assim como, <strong>da</strong> perspectiva do segundo argumento,<br />
o estado natural ético tem <strong>de</strong> ser abandonado,<br />
caso lhe antece<strong>da</strong> a constituição <strong>de</strong> uma<br />
or<strong>de</strong>m jurídico-civil no Estado republicano, a instauração<br />
<strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> Deus pressupõe, <strong>da</strong> mesma<br />
forma, a constituição <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m jurídica<br />
global, ou seja, internacionalmente váli<strong>da</strong>. É essa<br />
30 Ibid.<br />
31 Para uma apreciação mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> do assunto, cf., <strong>de</strong> minha autoria,<br />
LUTZ-BACHMANN, 1996, p. 25-44.<br />
32 Cf. HÖFFE, 1995.<br />
Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004 103
or<strong>de</strong>m que lança os fun<strong>da</strong>mentos jurídicos para o<br />
povo <strong>de</strong> Deus po<strong>de</strong>r agir em consonância com<br />
suas obrigações morais, isto é, com as respectivas<br />
obrigações que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> tem em face <strong>de</strong> si<br />
mesma e observa<strong>da</strong>s pelo povo <strong>de</strong> Deus, segundo<br />
Kant, em razão <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> nele vigentes,<br />
em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma orientação interior.<br />
Incluem-se entre os pressupostos jurídicos<br />
<strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>al ético <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, sob uma formulação<br />
mais mo<strong>de</strong>rna, ao me<strong>nos</strong> os direitos huma<strong>nos</strong><br />
fun<strong>da</strong>mentais e os procedimentos jurídicos<br />
apropriados à sua imposição e preservação em<br />
âmbito global, mas também a constituição jurídica<br />
<strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m cosmopolita em que, <strong>de</strong> maneira<br />
eficaz, se possa refrear a guerra como meio político.<br />
Se, na linguagem do próprio Kant, <strong>de</strong>signamos<br />
tal postulado <strong>de</strong> sua filosofia, como República<br />
cosmopolita exigi<strong>da</strong> pela razão moral, ou,<br />
para evitar mal-entendidos, preferimos <strong>de</strong>nominá-la<br />
or<strong>de</strong>m jurídica pública global, constituí<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong>mocraticamente entre os Estados e situa<strong>da</strong><br />
acima <strong>de</strong>les em particular, essa hesitação terminológica<br />
parece secundária diante dos argumentos<br />
sistemáticos empregados por Kant e <strong>da</strong> imensa<br />
atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>les para a política internacional.<br />
No sentido do escrito kantiano sobre a religião, é<br />
preciso exigir essa or<strong>de</strong>m cosmopolita a fim <strong>de</strong><br />
que não pareça impossível a idéia <strong>da</strong> razão <strong>de</strong> um<br />
povo <strong>de</strong> Deus vivendo sob as leis <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>.<br />
A responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> política precisa conclamá-la,<br />
tendo em vista os atuais processos <strong>de</strong> globalização<br />
e transnacionalização, mas convém ain<strong>da</strong><br />
fazê-lo <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong> ética do direito, em<br />
nome <strong>da</strong> sobrevivência <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> como expressão<br />
<strong>de</strong> um comprometimento <strong>de</strong>la diante <strong>de</strong><br />
si mesma. Em sentido kantiano, provavelmente<br />
importa, hoje em dia, que a política dê passos<br />
firmes nessa direção e estabeleça um progresso<br />
jurídico que se aproxime sempre mais <strong>da</strong> idéia<br />
racional <strong>de</strong> uma República cosmopolita.<br />
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______. Zum Ewigen Frie<strong>de</strong>n. Berlim: Aka<strong>de</strong>mie Ausgarbe, VIII, 1902s.<br />
LABERGE, P. “Das radikale Böse und <strong>de</strong>r Völkerzustand”. In: RICKEN, F. & MARTY, F. (orgs.). Kant über Religion.<br />
Stuttgart: Kohlhammer, 1992.<br />
LUTZ-BACHMANN, M. “Kants Frie<strong>de</strong>nsi<strong>de</strong>e und <strong>da</strong>s rechtspolitische Konzept einer Weltrepublik”. In: LUTZ-<br />
BACHMANN, M. & BOHMAN, J. (orgs.). Frie<strong>de</strong>n durch Recht. Kants Frie<strong>de</strong>nsi<strong>de</strong>e und <strong>da</strong>s Problem einer neuen<br />
Weltordnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1996.<br />
Dados do autor<br />
Professor <strong>de</strong> filosofia na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Frankfurt (Alemanha)<br />
e na Saint Louis University (Estados Unidos),<br />
fun<strong>da</strong>dor do Instituto <strong>de</strong> Pesquisa sobre Filosofia <strong>da</strong> Religião,<br />
em Frankfurt, e membro <strong>de</strong> vários comitês internacionais.<br />
Recebimento do artigo: 24/set./04<br />
Consultoria: 28/set./04 a 21/out./04<br />
Aprovado: 19/nov./04<br />
104 Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004