A Contribuição de A Religião nos Limites da Mera Razão ... - Unimep
A Contribuição de A Religião nos Limites da Mera Razão ... - Unimep
A Contribuição de A Religião nos Limites da Mera Razão ... - Unimep
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
própria razão prática – a união <strong>de</strong> todos os homens<br />
sob a espécie <strong>de</strong> uma coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> pública é<br />
ilustrado, por Kant, com a seguinte imagem, cita<strong>da</strong><br />
com freqüência: “A razão que legisla por via<br />
moral implanta, a<strong>de</strong>mais <strong>da</strong>s leis que prescreve a<br />
ca<strong>da</strong> um, um estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> como ponto <strong>de</strong><br />
união para todos os que amam o bem, a fim <strong>de</strong><br />
que possam congregar-se sob ele e obter, enfim, o<br />
comando sobre o mal que os <strong>de</strong>safia sem <strong>de</strong>scanso”.<br />
15 Seu escrito sobre a religião traz o <strong>de</strong>sdobramento<br />
<strong>de</strong> três fun<strong>da</strong>mentos práticos <strong>da</strong> razão, <strong>de</strong>pondo<br />
em favor <strong>da</strong> constituição <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ético-pública ou também <strong>de</strong> uma essência ética comum.<br />
O primeiro fun<strong>da</strong>mento refere-se à autocompreensão<br />
do ser humano individual diante <strong>da</strong><br />
lei dos costumes; o segundo, à relação do homem<br />
com os <strong>de</strong>mais; e o terceiro articula as obrigações<br />
que, para Kant, o gênero humano tem diante <strong>de</strong> si.<br />
Designo esses três fun<strong>da</strong>mentos como argumento<br />
intra-subjetivo, intersubjetivo e <strong>de</strong> uma auto-referenciação<br />
necessária <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, respectivamente.<br />
Eles constroem-se uns sobre os outros <strong>de</strong><br />
maneira sistemática, o segundo pressupondo o<br />
primeiro, e o terceiro, os dois prece<strong>de</strong>ntes.<br />
O primeiro argumento em favor <strong>da</strong> unificação<br />
dos indivíduos numa essência ética comum<br />
situa-se no contexto <strong>da</strong> análise do inevitável combate<br />
entre a disposição do homem ao bem e sua<br />
propensão ao mal, na “Primeira Parte” e na “Segun<strong>da</strong><br />
Parte” do escrito kantiano sobre a religião.<br />
Suas reflexões referem-se a como ca<strong>da</strong> indivíduo<br />
<strong>de</strong>ve proce<strong>de</strong>r em face <strong>da</strong>s exigências <strong>da</strong> lei dos<br />
costumes em sua razão e <strong>da</strong> concomitante malva<strong>de</strong>z<br />
<strong>de</strong> seu coração. A superação intra-subjetiva<br />
<strong>da</strong> propensão ao mal surgi<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> nós,<br />
com base em <strong>nos</strong>sa própria liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que a razão<br />
prática <strong>nos</strong> exige só po<strong>de</strong> ser bem-sucedi<strong>da</strong> se<br />
for <strong>da</strong>do ao homem um mo<strong>de</strong>lo veraz <strong>de</strong> disposição<br />
sincera à virtu<strong>de</strong> e se ele mantiver para si<br />
esse apoio externo, <strong>de</strong> forma duradoura, numa<br />
comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> virtuosos. Essa comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
virtuosos cumpre aqui a função <strong>de</strong> apoiar a revolução<br />
do sentimento ético requerido do indivíduo,<br />
porém, não é constitutiva para a superação<br />
15 Ibid.<br />
do mal no próprio indivíduo, já que ele mesmo<br />
precisa <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>ssa tarefa. É isso que perfaz a<br />
liber<strong>da</strong><strong>de</strong> moral.<br />
O segundo argumento apóia-se na análise<br />
<strong>da</strong> ameaça sob a qual se encontra a etici<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser<br />
humano, a ser realiza<strong>da</strong> no âmbito <strong>de</strong> uma teoria<br />
<strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Conforme essa análise, a<br />
ameaça já está <strong>da</strong><strong>da</strong> com o factum dos <strong>de</strong>mais seres<br />
huma<strong>nos</strong>. “Basta”, escreve Kant, “que eles existam,<br />
estejam à sua volta e sejam seres huma<strong>nos</strong><br />
para que mutuamente um corrompa o outro em<br />
sua disposição moral e para que, um ao outro, se<br />
tornem maus”. 16 Para ilustrar tal enunciado, ele<br />
refere-se aos vícios insociais <strong>da</strong> inveja, <strong>da</strong> ânsia <strong>de</strong><br />
dominação e <strong>da</strong> cobiça. Contudo, não associa a tal<br />
constituição insocial do homem uma antropologia<br />
pessimista que contrarie fun<strong>da</strong>mentalmente<br />
a sua teoria <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> razão, como fez<br />
Thomas Hobbes. Em Kant, prevalece o argumento<br />
<strong>de</strong> que todo ser humano é mau em razão <strong>de</strong> sua<br />
livre <strong>de</strong>cisão própria. Na “Terceira Parte” <strong>de</strong> seu<br />
texto sobre a religião, surge novamente a idéia <strong>de</strong><br />
que são os outros homens os que dão ensejo ao<br />
erro moral do ser humano. Em analogia com a<br />
Doutrina do Direito, na Metafísica dos Costumes,<br />
sobre o estado natural (status naturalis) jurídico,<br />
Kant chama essa situação <strong>de</strong> estado natural ético,<br />
em que o homem encontra-se permanentemente<br />
hostilizado pelo mal “nele e, ao mesmo tempo,<br />
em ca<strong>da</strong> um dos <strong>de</strong>mais”. 17 De modo semelhante<br />
à exigência imposta pela razão prática na Doutrina<br />
do Direito, <strong>de</strong> que o estado natural <strong>de</strong>ve ser abandonado,<br />
também aqui Kant exige renunciar ao estado<br />
natural ético em direção a um estado éticocivil<br />
sob leis gerais <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong>, uma vez que o estado<br />
natural prejudica em todos o <strong>de</strong>vido anseio<br />
por uma disposição pura. Tal abandono <strong>de</strong>ve se<br />
<strong>da</strong>r <strong>de</strong> modo comunitário: não por uma <strong>de</strong>cisão<br />
individual <strong>de</strong> acordo com o mo<strong>de</strong>lo do ser humano<br />
exemplar, como no primeiro argumento, mas<br />
em conjunto com os <strong>de</strong>mais, por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>liberação<br />
na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem que se possa, para<br />
tanto, celebrar um contrato sob forma jurídica.<br />
16 Ibid.<br />
17 Ibid., p. 97.<br />
100 Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004