A Contribuição de A Religião nos Limites da Mera Razão ... - Unimep
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Em À Paz Perpétua, publicado apenas dois<br />
a<strong>nos</strong> <strong>de</strong>pois do texto sobre a religião, Kant une a<br />
superação do princípio mau e o <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong> disposição<br />
moral no ser humano, ao constituir um estado<br />
jurídico público entre os Estados, mais especialmente<br />
por meio <strong>da</strong> aliança pela paz, distinta<br />
do contrato pela paz, ao tentar eliminar a guerra <strong>de</strong><br />
vez, mediante a con<strong>de</strong>nação racional <strong>da</strong> guerra<br />
como rotina do direito (ou seja, uma reprovação<br />
emana<strong>da</strong> do “trono do supremo po<strong>de</strong>r que legisla<br />
segundo a moral”). 28 A longo prazo, segundo<br />
Kant, isso só terá êxito se, em primeiro lugar, os<br />
Estados <strong>de</strong>rem a si mesmos uma constituição republicana<br />
(<strong>de</strong>mocrática, diríamos hoje em dia) e,<br />
em segundo lugar, agregarem-se numa República<br />
cosmopolita ou Estado <strong>da</strong>s gentes, conforme outra<br />
sua <strong>de</strong>signação, pois<br />
não po<strong>de</strong> haver para os Estados, na relação entre<br />
eles, outra maneira <strong>de</strong> abandonar a situação ilegítima,<br />
cheia <strong>de</strong> guerras, senão abdicar <strong>de</strong> sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
selvagem (ilegítima), assim como fazem indivíduos<br />
huma<strong>nos</strong>, conformar-se a leis coercivas públicas e<br />
constituir, <strong>de</strong>ssa maneira, um Estado <strong>da</strong>s gentes<br />
(civitas gentium) sempre crescente, que, afinal, abrigue<br />
todos os povos <strong>da</strong> Terra. 29<br />
Kant <strong>de</strong>ixa inequivocamente claro ser essa a<br />
exigência <strong>da</strong> razão prática em relação ao convívio<br />
<strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, e seu discernimento vem ganhando,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> sempre maior.<br />
O único argumento contrário a essa exigência, do<br />
ponto <strong>de</strong> vista dos escritos kantia<strong>nos</strong> sobre a paz<br />
perpétua, é que os Estados <strong>de</strong> facto ain<strong>da</strong> se atêm à<br />
antiga concepção do direito <strong>da</strong>s gentes <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong><br />
por Grotius, Pufendorf e Vattel, a qual não admite<br />
restrição alguma à soberania <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> Estado individual.<br />
Já que os Estados, <strong>de</strong> acordo com a sua<br />
idéia <strong>de</strong> direito <strong>da</strong>s gentes, discor<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> concepção<br />
kantiana <strong>de</strong> um novo direito regido pela paz<br />
entre os povos, negam-se a limitar sua soberania<br />
para que predomine entre eles uma situação <strong>de</strong><br />
paz incondicional, mediante a constituição <strong>de</strong> um<br />
direito global público, Kant requer o surgimento<br />
<strong>de</strong>, ao me<strong>nos</strong>, uma liga dos povos “em lugar <strong>da</strong><br />
28 Ibid., p. 355s.<br />
29 Ibid., p. 357.<br />
idéia positiva <strong>de</strong> uma República cosmopolita”.<br />
A tarefa <strong>de</strong>ssa liga seria impedir a guerra entre os<br />
Estados e expandir-se sempre mais. Assim, a fim<br />
<strong>de</strong> que “nem tudo se perca”, ele espera “refrear a<br />
correnteza <strong>de</strong> inclinações hostis e adversas ao direito”,<br />
as quais resultam <strong>da</strong> malva<strong>de</strong>z <strong>da</strong> natureza<br />
humana, estando, no entanto, consciente <strong>de</strong> que<br />
a liga dos povos jamais po<strong>de</strong>rá afastar por completo<br />
a “constante ameaça <strong>de</strong> um irrompimento”<br />
30 <strong>da</strong> disposição bélica dos seres huma<strong>nos</strong>.<br />
É notório que Kant, por razões políticopragmáticas,<br />
contradiga nesse aspecto sua própria<br />
argumentação. 31 E na discussão sobre a sua filosofia<br />
política, sobretudo quanto ao papel <strong>da</strong> República<br />
cosmopolita, há um ponto <strong>de</strong> vista partilhado<br />
pelos mais importantes intérpretes, 32 mas<br />
que po<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> ser complementado <strong>da</strong> perspectiva<br />
<strong>da</strong> “Terceira Parte” <strong>de</strong> A Religião <strong>nos</strong> <strong>Limites</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Mera</strong> Razão, a saber, <strong>da</strong> doutrina kantiana <strong>de</strong> uma<br />
essência ética comum. Como vimos, Kant fun<strong>da</strong>menta<br />
tal idéia em seu terceiro argumento, com<br />
base numa auto-referenciação necessária <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ou, mais exatamente, numa obrigação<br />
que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> tem diante <strong>de</strong> si mesma. Entre<br />
os pressupostos irrenunciáveis, necessários à instauração<br />
do povo <strong>de</strong> Deus, encontra-se o <strong>de</strong> que<br />
a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ixe para trás, em primeiro lugar,<br />
o estado natural global, ou seja, o estado natural<br />
jurídico internacional. Constituir uma or<strong>de</strong>m do<br />
direito público justo em nível mundial, capaz <strong>de</strong><br />
recusar a guerra <strong>de</strong> modo duradouro e <strong>de</strong> alcançar<br />
a paz por procedimentos <strong>de</strong>mocráticos, revela-se<br />
algo imprescindível à luz do terceiro argumento<br />
do escrito sobre a religião, caso se preten<strong>da</strong> chegar<br />
à instauração <strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> Deus sob leis éticas.<br />
Assim como, <strong>da</strong> perspectiva do segundo argumento,<br />
o estado natural ético tem <strong>de</strong> ser abandonado,<br />
caso lhe antece<strong>da</strong> a constituição <strong>de</strong> uma<br />
or<strong>de</strong>m jurídico-civil no Estado republicano, a instauração<br />
<strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> Deus pressupõe, <strong>da</strong> mesma<br />
forma, a constituição <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m jurídica<br />
global, ou seja, internacionalmente váli<strong>da</strong>. É essa<br />
30 Ibid.<br />
31 Para uma apreciação mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> do assunto, cf., <strong>de</strong> minha autoria,<br />
LUTZ-BACHMANN, 1996, p. 25-44.<br />
32 Cf. HÖFFE, 1995.<br />
Impulso, Piracicaba, 15(38): 95-104, 2004 103