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Mahfoud, M. & Massimi, M. (2012). Editorial: tecido de diversos fios. Memorandum, 23, 1-11. Recuperado em__ de<br />
_ _ , _ _ _ _ , de http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/editorial23<br />
Editorial<br />
Memorandum: memória e história em psicologia<br />
Número 23<br />
Tecido de diversos fios<br />
A edição 23 da Memorandum mostra que a busca por uma psicologia abrangente e<br />
integrada com as demais ciências humanas compõe um tecido de diversos fios.<br />
Algumas contribuições aqui apresentadas ressaltam a importância da empatia - e de<br />
modo geral da perspectiva fenomenológica em psicologia - para a compreensão de<br />
importantes fenômenos tais como alteridade, educação, ação em suas potencialidades sociais,<br />
dimensão religiosa de processos de subjetivação, cuidados psicológicos.<br />
A empatia como vivência de Leandro Penna Ranieri e Cristiano Roque Antunes Barreira<br />
aborda os aspectos centrais da vivência de empatia segundo de Edith Stein e suas<br />
implicações do ponto de vista psicológico e ético. Da empatia à compreensão empática: evolução<br />
do conceito no pensamento de Carl Rogers de Rebeca Cavalcante Fontgalland e Virginia Moreira<br />
apresenta um percurso evolutivo do conceito de empatia no pensamento de Rogers até<br />
chegar a definir a compreensão empática na clinica centrada na perspectiva do cliente. À<br />
terapia rogeriana e as suas aplicações em psicopatologia é dedicado também o artigo<br />
Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das paixões de Emanuel Meireles<br />
Vieira e José Célio Freire. A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de<br />
um projeto educativo que articula escola e bairro de Suzana Filizola Brasiliense Carneiro e Heloisa<br />
Szymanski propõe uma original aplicação da perspectiva fenomenológica ao estudo da<br />
articulação entre uma escola municipal de ensino fundamental na periferia de São Paulo e<br />
grupos de jovens que desenvolvem um trabalho de divulgação da cultura local por meio de<br />
oficinas de literatura marginal. Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita:<br />
investigação fenomenológica de Yuri Elias Gaspar e Miguel Mahfoud emprega a abordagem<br />
fenomenológica para investigar as inter-relações entre voluntariado e experiência religiosa<br />
vivida e revelada pelos sujeitos da experiência apontando para a realização de si como fator<br />
estruturante daquela modalidade de ação social.<br />
Um segundo conjunto de contribuições problematizam as possibilidades de<br />
abordagem das questões alteridade, cultura, religião e processos de subjetivação.<br />
Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas de Raquel Redondo<br />
Rotta e José Francisco Miguel Henriques Bairrão propõe a perspectiva de etnopsicologia para<br />
uma aproximação ao recurso ritual de caboclos na umbanda, contemplando sentidos e<br />
alcances psicológicos. De la Peña e l'evangelizzazione degli indios: epicheia e matrimoni nel Nuovo<br />
Mondo de Fabio Giovanni Locatelli é uma pesquisa histórica que apresenta a proposta de um<br />
teólogo do século XVI quanto ao uso da ética aristotélica (a epicheia), para adaptar as<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ editorial23
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2012). Editorial: tecido de diversos fios. Memorandum, 23, 1-11. Recuperado em__ de<br />
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normativas eclesiásticas aos processos relacionais e subjetivos próprios das culturas<br />
indígenas latino-americanas. Ainda no âmbito da investigação da história da cultura, o texto<br />
Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da modernidade ocidental e do Brasil<br />
colonial de Marina Massimi mostra a abordagem histórica a uma temática atual da psicologia,<br />
a saber, a da imagem e os processos de sua elaboração psíquica.<br />
Abordagens de cunho epistemológico podem discutir as mesmas temáticas na interface<br />
entre fenômenos culturais, educação e processos de subjetivação. É o que nos mostram as<br />
seguintes contribuições: O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai de<br />
Vitor Hugo Lopes Paese e Adriano Furtado Holanda investiga o sentido de Deus para<br />
Moreno enquanto um elemento fundamental para a compreensão da visão de mundo e de<br />
homem no psicodrama. O Bem, o Mal: é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth<br />
de Shakespeare de Dante Marcello Claramonte Gallian e Rafael Ruiz analisa, num dialogo com<br />
a filosofia antiga, moderna e contemporânea - segundo o itinerário delineado pela peça de<br />
Shakespeare - qualidades, força e efeitos da palavra no âmbito das paixões, dos atos e da<br />
ética. A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman de Luciana<br />
Helena Mussi e Beltrina Côrte aborda o tema da finitude e sua contextualização histórica.<br />
Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos epistemológicos propostos por<br />
Jansen e Qvortrup de Silvia Cabrera Berg discute os modelos epistemológicos no que diz<br />
respeito a estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas na sociedade plural e de valores<br />
culturais híbridos como a contemporânea.<br />
Outubro de 2012<br />
Miguel Mahfoud<br />
Marina Massimi<br />
Editores<br />
Editorial<br />
Memorandum: memory and history in psychology<br />
Issue 23<br />
Contexture of several threads<br />
The 23rd edition of Memorandum shows that the search for an extensive and<br />
integrated psychology with other human sciences comprises contexture of several threads.<br />
Some contributions presented here highlight the importance of empathy - and<br />
generally the phenomenological perspective in psychology - for the understanding of<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ editorial23
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2012). Editorial: tecido de diversos fios. Memorandum, 23, 1-11. Recuperado em__ de<br />
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relevant phenomena such as alterity, education, action on its social potentialities, religious<br />
dimension of subjectivation processes, and psychological care.<br />
Empathy as lived experience by Leandro Penna Ranieri and Cristiano Roque Antunes<br />
Barreira addresses the central aspects of the experience of empathy in accordance with Edith<br />
Stein and their implications from psychological and ethical views. From empathy to empathic<br />
comprehension: evolution of the concept in the thought of Carl Rogers by Rebeca Cavalcante<br />
Fontgalland and Virginia Moreira presents an evolutionary path of the concept of empathy<br />
in Rogers' thought up to the point of defining the empathic understanding in the clinic<br />
focused on client's perspective. The article Psychopathology and client centered therapy: for a<br />
clinic of the passions by Emanuel Meireles Vieira and José Célio Freire is also dedicated to<br />
Rogerian therapy and its applications in psychopathology. The contribution of phenomenology<br />
of Edith Stein to the understanding of an articulated education project between school and<br />
neighborhood by Suzana Filizola Brasiliense Carneiro and Heloisa Szymanski proposes an<br />
original application of the phenomenological perspective to the study of the relationship<br />
between a public elementary school on the outskirts of São Paulo and groups of young<br />
people who develop a project promoting local culture through workshops of marginal<br />
literature. The Voluntary action and religious experience in a Spiritist institution: phenomenological<br />
investigation by Yuri Elias Gaspar and Miguel Mahfoud employs the phenomenological<br />
approach to investigate the interrelationships between volunteering and religious experience<br />
lived and revealed by the subjects of the experience indicating the fulfillment of oneself as<br />
the factor of structuralization of that modality of social action.<br />
A second set of contributions problematize the possibilities of addressing the issues<br />
alterity, culture, religion, and subjective processes.<br />
The Meanings and psychological scope of caboclos in umbandist experiences by Raquel<br />
Redondo Rotta and Francisco José Miguel Henriques Bairrão proposes ethnopsychology<br />
perspective for an approximation to the ritual resource of caboclos in Umbanda,<br />
contemplating meanings and psychological scope. The De la Peña and the evangelization ofthe<br />
Indians: epikeia and weddings in the New World by Fabio Giovanni Locatelli is a historical<br />
research that presents the proposal of a sixteenth-century theologian regarding the use of<br />
Aristotelian ethics (the epicheia) in order to adapt ecclesiastical normativity to the relational<br />
and subjective processes from Latin America indigenous cultures. Also in the investigation<br />
range of history of culture, the text Imagination and images: concepts and practices in cultural<br />
traditions of the Western modernity and colonial Brazil by Marina Massimi shows the historical<br />
approach as a current topic of psychology, namely the image and processes of its psychical<br />
elaboration.<br />
Epistemological approaches can discuss the same topics at the interface among cultural<br />
phenomena, education, and processes of subjectivation. This is what the following<br />
contributions show: The meaning of God according to Jacob Levy Moreno in The Words of the<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ editorial23
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2012). Editorial: tecido de diversos fios. Memorandum, 23, 1-11. Recuperado em__ de<br />
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Father by Victor Hugo Lopes Paese and Adriano Furtado Holanda investigates the meaning<br />
of God according to Moreno as a key element for understanding world and man views in<br />
psychodrama. Good, Evil - are they all the same? The drama of the words and passions in<br />
Shakespeare's Macbeth by Dante Marcello Claramonte Gallian and Rafael Ruiz examines<br />
qualities, strength, and effects of the word in the ambit of the passions, acts, and ethics, in a<br />
dialogue with ancient, modern, and contemporary philosophes, according to the itinerary<br />
outlined by the Shakespeare play. The finitude as awareness of death in The Seventh Seal by<br />
Ingmar Bergman by Luciana Helena Mussi and Beltrina Côrte addresses the issue of finitude<br />
and its historical contextualization. Teaching strategies and pedagogical tools according to<br />
epistemological models proposed by Jansen and Qvortrup by Silvia Cabrera Berg discusses the<br />
epistemological models with regard to teaching strategies and pedagogical tools in the plural<br />
society with hybrid cultural values such as the contemporary one.<br />
October 2012<br />
Miguel Mahfoud<br />
Marina Massimi<br />
Editors<br />
Equipe/ Editorial Board<br />
Editores<br />
Miguel Mahfoud<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Marina Massimi<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Editores Assistentes<br />
Roberta Vasconcelos Leite<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Yuri Elias Gaspar<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Consultores externos Ad Hoc / Ad Hoc Consultants - Memorandum 23<br />
Belinda Piltcher Haber Mandelbaum<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Dante Marcello Claramonte Gallian<br />
Universidade Federal de São Paulo<br />
Brasil<br />
Jaime Roy Doxsey<br />
Universidade Federal do Espírito Santo<br />
Brasil<br />
José Eduardo Ferreira Santos<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Brasil<br />
Márcio Luiz Fernandes<br />
Pontifícia Universidade Católica do Paraná<br />
Brasil<br />
Marilia Ancona Lopez<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Orestes Diniz Neto<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Paulo José Carvalho da Silva<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Pierre Sanchis<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Paulo Roberto de Andrada Pacheco<br />
Universidade Presbiteriana Mackenzie<br />
Brasil<br />
Raul Cesar Gouveia Fernandes<br />
Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros<br />
Brasil<br />
Thiago Antonio Avellar de Aquino<br />
Universidade Federal da Paraíba<br />
Brasil<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Vera Lúcia Pereira Alves<br />
Pontifícia Universidade Católica de Campinas<br />
Brasil<br />
Walênia Silva<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Walter Cautella Junior<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Conselho Editorial/Advisory Board<br />
Adalgisa Arantes Campos<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Alcir Pécora<br />
Universidade de Campinas<br />
Brasil<br />
Angela Ales Bello<br />
Pontificia Universitas Lateranensis<br />
Italia<br />
Aníbal Fornari<br />
Universidad Católica de Santa Fe<br />
Universidade Católica de La Plata<br />
Argentina<br />
Anna Unali<br />
Università La Sapienza<br />
Italia<br />
Antonella Romano<br />
École des Hautes Études en Sciences Sociales<br />
France<br />
Belmira Bueno<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Caio Boschi<br />
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Celso Sá<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
Brasil<br />
Danilo Zardin<br />
Uni ver sità Cattolica Sacro Cuore<br />
Italia<br />
Eclea Bosi<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Francesco Botturi<br />
Uni ver sità Cattolica Sacro Cuore<br />
Italia<br />
Franco Buzzi<br />
Uni ver sità Cattolica del Sacro Cuore<br />
Italia<br />
Gilberto Safra<br />
Universidade de São Paulo<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Helio Carpintero<br />
Universidad Complutense<br />
España<br />
Hugo Klappenbach<br />
Universidad San Luis<br />
Argentina<br />
Isaías Pessotti<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Janice Theodoro da Silva<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
José Carlos Sebe Bom Meihy<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Luís Carlos Villalta<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Luiz Jean Lauand<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Maria Armezzani<br />
Università degli Studi di Padova<br />
Italia<br />
Maria do Carmo Guedes<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Maria Efigênia Lage de Resende<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Maria Fernanda Diniz Teixeira Enes<br />
Universidade Nova de Lisboa<br />
Portugal<br />
Martine Ruchat<br />
Université de Genève<br />
Suiss<br />
Michel Marie Le Ven<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Monique Augras<br />
Universidade Católica do Rio de Janeiro<br />
Brasil<br />
Olga Rodrigues de Moraes von Simson<br />
Universidade de Campinas<br />
Brasil<br />
Pedro Morande<br />
Universidad Católica de Chile<br />
Chile<br />
Pierre-Antoine Fabre<br />
École des Hautes Études en Sciences Sociales<br />
France<br />
Regina Helena de Freitas Campos<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Sadi Marhaba<br />
Università degli Studi di Padova<br />
Italia<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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William Barbosa Gomes<br />
Universidade Federal do Rio Grande do Sul<br />
Brasil<br />
Conselho Consultivo/ Board of editorial consultants<br />
Adone Agnolin<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Ana Maria Jacó-Vilela<br />
Universidade Estadual do Rio de Janeiro<br />
Brasil<br />
André Cavazotti<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Arno Engelmann<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Bernadette Majorana<br />
Università degli Studi di Bergamo<br />
Italia<br />
Davide Bigalli<br />
Università degli Studi di Milano<br />
Italia<br />
Deise Mancebo<br />
Universidade Estadual do Rio de Janeiro<br />
Brasil<br />
Edoardo Bressan<br />
Università degli Studi di Milano<br />
Itália<br />
Eugénio dos Santos<br />
Universidade do Porto<br />
Portugal<br />
Giovanna Zanlonghi<br />
Università Cattolica del Sacro Cuore<br />
Italia<br />
José Francisco Miguel Henriques Bairrão<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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^<br />
Marcos Vieira da Silva<br />
Universidade Federal de São João del Rei<br />
Brasil<br />
Maria Luisa Sandoval Schmidt<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Marisa Todeschan D. S. Baptista<br />
Universidade de São Marcos<br />
Brasil<br />
Mitsuko Aparecida Makino Antunes<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Nádia Rocha<br />
Faculdade Ruy Barbosa<br />
Brasil<br />
Rachel Nunes da Cunha<br />
Universidade de Brasília<br />
Brasil<br />
Raul Albino Pacheco Filho<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Vanessa Almeida Barros<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Equipe técnica/ Technical Team<br />
Márcia Bitelli Cerântola - tradução português-inglês editorial e revisão abstracts.<br />
Abraão Coelho - desenvolvedor web.<br />
Apoio/ Supported by<br />
LAPS - Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pós-Graduação<br />
em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.<br />
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH/UFMG.<br />
Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian, Universidade de<br />
São Paulo - USP/Ribeirão Preto.<br />
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,<br />
USP/Ribeirão Preto.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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A revista eletrônica Memorandum é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa<br />
"Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", vinculado ao<br />
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais - UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade<br />
de Filosofia, Ciências e Letras Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão Preto.<br />
The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the Research Group<br />
"Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória",<br />
linked to Departamento de Psicologia of Faculdade de Filosofia e Ciências<br />
Humanas of Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG and to Departamento de<br />
Psicologia e Educação of Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras of Universidade de São<br />
Paulo - USP/Ribeirão Preto.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ editorial23
Ranieri, L. P. & Barreira, C. R. A. (2012). A empatia como vivência. Memorandum, 23, 12-31. Recuperado em__ de<br />
_ _ , _ _ _ _ , de http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/ranieribarreira01<br />
A empatia como vivência<br />
Empathy as lived experience<br />
Leandro Penna Ranieri<br />
Cristiano Roque Antunes Barreira<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
O objetivo desta investigação é elucidar os aspectos centrais da vivência de empatia no<br />
pensamento de Edith Stein, compreendendo como estes aspectos são desenvolvidos em<br />
sua obra O problema da empatia (1917/1998). Parte-se da discussão acerca do tema na<br />
literatura científica recente, visando compreender os modos como a empatia é tratada,<br />
passando ao acesso da literatura especializada em fenomenologia, concepção norteadora<br />
da investigação, buscando os elementos envolvidos com o tema. A concepção da empatia<br />
como uma vivência, como reconhecimento do outro como outro eu, desdobra-se<br />
eticamente como um movimento de compreensão da experiência do outro, um<br />
testemunho sensível daquilo que ele vive.<br />
Palavras-chave: empatia; corporeidade; fenomenologia; psicologia<br />
Abstract<br />
The aim of this article is to elucidate the central aspects of the experience of empathy in<br />
the thought of Edith Stein, understanding how these aspects are developed in her work<br />
On the problem of empathy (1917/1998). The article starts with the discussion concerning<br />
the theme in recent scientific literature in order to understand the ways in which<br />
empathy is treated, passing to the access of specialized literature on phenomenology,<br />
guiding conception of this research, and seeking the elements involved with the issue.<br />
The conception of empathy as an experience, as a recognition of the other as another self,<br />
ethically unfolds as a movement for understanding the experience of the other, a<br />
sensitive testimony of which oneself lives.<br />
Keywords: empathy; corporeity; phenomenology; psychology<br />
Introdução<br />
A relação interpessoal tem sido objeto de análises de diversas áreas do conhecimento,<br />
podendo ser considerada como unidade que toma parte na constituição genética do<br />
emaranhado social 1 . Em determinadas profissões, como na área da saúde, há um enfoque na<br />
discussão sobre o papel da relação interpessoal no cuidado e no tratamento, tema caro, por<br />
exemplo, aos esforços pela humanização nas práticas da saúde. Na psicologia, a relação<br />
interpessoal se coloca frequentemente como problema prático - na atuação - e teórico.<br />
Primeiramente, deve-se pontuar que a pessoa está entre os objetos contemplados pelo estudo<br />
científico da psicologia; numa perspectiva fenomenológica, parte de seu propósito é<br />
Apoio financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ranieribarreira01
Ranieri, L. P. & Barreira, C. R. A. (2012). A empatia como vivência. Memorandum, 23, 12-31. Recuperado em__ de<br />
_ _ , _ _ _ _ , de http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/ranieribarreira01<br />
^<br />
descrever a estrutura constituinte da psique humana (Ales Bello, 2004) ou, antes,<br />
fundamentar a própria psicologia científica interrogando "originariamente o quê e o como<br />
da psique das pessoas" (Mahfoud & Massimi, 2008, p. 57). Assim, a relação interpessoal é<br />
própria dos seres humanos, na medida em que, por via desta relação intersubjetiva, o ser<br />
humano apreende a si mesmo e ao outro como pessoas, bem como, graças a ela, é capaz de<br />
apreender a camada humanizada do mundo enquanto unidade de objetos com sentidos<br />
compartilháveis.<br />
Há um elemento essencial que algumas vezes pode ser descolado ou simplesmente<br />
ignorado no momento de se analisar a relação intersubjetiva, dada sua natureza e sua<br />
característica implícita: a empatia. Por outro lado, muitas vezes a empatia vem à frente desta<br />
discussão como elemento e como conceito estrutural em algumas posições da psicologia,<br />
como a psicologia humanista. A partir do interesse pelo fenômeno da psique e da<br />
experiência vivida e intersubjetiva, a fenomenologia em sua vertente originária clássica<br />
tomou um posicionamento radical frente ao paradigma positivista que norteava<br />
predominantemente as ciências em geral, inclusive as ciências humanas. A fenomenologia<br />
fundamenta a filosofia como ciência de rigor para analisar os fenômenos, a partir de um<br />
método peculiar elaborado por Edmund Husserl (1859-1938) e seguido inicialmente por seus<br />
alunos, como Edith Stein (1891-1942), filósofa que tratou especificamente do tema da<br />
empatia.<br />
Este trabalho tem como objetivo elucidar os aspectos centrais da vivência de empatia<br />
no pensamento de Edith Stein, compreendendo como estes aspectos são desenvolvidos<br />
dentro de sua obra O problema da empatia (1917/1998), onde a autora investiga<br />
prioritariamente a temática anunciada no título. Num primeiro momento, busca-se<br />
compreender a descrição do conceito (A empatia: definição), seguindo-se a uma<br />
apresentação de como o conceito - referido a Stein - tem comparecido na literatura científica<br />
recente e não precisamente fenomenológica (A empatia de Stein nas ciências humanas), para,<br />
depois, relacionar os aspectos discutidos aos elementos desenvolvidos por Stein em sua obra.<br />
A empatia: definição<br />
Koss (2006) apresenta algumas ocorrências da palavra empatia (einfühlung) ao longo da<br />
história e em autores reconhecidos, principalmente nos séculos XIX e XX, em áreas como as<br />
artes. A palavra alemã Einfühlung consiste em duas partes: Ein, "em", efühlen, "sentir". Uma<br />
possível tradução, segundo Ales Bello (2004 e 2006) e Manganaro (2002), é entropatia,<br />
trazendo a expressão pathos do grego e podendo significar "sentir dentro", "sentir em". Na<br />
tradução da obra de Stein para as línguas neo-latinas (francês, italiano, espanhol e<br />
português), Einfühlung é traduzido normalmente como empatia, que se assemelha a<br />
entropatia, "sentir dentro o outro" (Manganaro, 2002). Há concordância entre Ales Bello e<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ranieribarreira01
Ranieri, L. P. & Barreira, C. R. A. (2012). A empatia como vivência. Memorandum, 23, 12-31. Recuperado em__ de<br />
_ _ , _ _ _ _ , de http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/ranieribarreira01<br />
Manganaro na definição da tradução por entropatia, incluse destacando os equívocos e<br />
confusões que permeiam este conceito, especialmente na psicologia. A empatia é<br />
frequentemente tratada como sinônimo de simpatia, o que, fenomenologicamente, é uma<br />
vivência psíquica, uma reação (Ales Bello, 2004); daí certa preferência destas autoras pela<br />
denominação do fenômeno como entropatia. A opção da fenomenóloga Natalie Depraz (1995)<br />
em suas traduções ao francês é renunciar tanto à versão empatia como à versão entropatia,<br />
mantendo o uso do original em alemão. Seu argumento é de que empatia carregaria o pathos<br />
como componente afetivo inadequado, alusivo a um sentido fusional. Já entropatia,<br />
argumenta Depraz, traria à cena um elemento binário (interior e exterior) também<br />
inadequado a um conceito como empatia que traz a imediaticidade da relação. Pode-se<br />
questionar se sua recusa pela tradução, embora prudente para evitar mal entendidos<br />
hermenêuticos, passa pelo próprio crivo fenomenológico, onde o afeto é componente<br />
essencial, necessário a qualquer percepção, a qualquer contato corpóreo vivente. O mesmo<br />
questionamento vale para o problema do elemento binário, já que, se a fenomenologia de<br />
Husserl, de fato, desenvolve-se se distinguindo de um naturalismo espacializante da<br />
interioridade e exterioridade da experiência subjetiva, ainda assim há contatos com as coisas<br />
e ideais que guardam a característica de superficialidade ou profundidade, propriedade e<br />
impropriedade, gradações de exterioridade e interioridade, onde esta última é conferida pela<br />
possibilidade de entrar no fenômeno, apreendê-lo em sua inerência. Mesmo que imediata e<br />
independente de um aprofundamento, o acesso à interioridade do fenômeno alter ego, à sua<br />
natureza, é dado pela empatia. Logo, embora as traduções possam trazer mal entendidos se<br />
contempladas por um crivo conceitual não fenomenológico, esse parece ser um risco<br />
constante que a fenomenologia corre pelo seu próprio anti-naturalismo, risco insuficiente,<br />
portanto, para justificar convincentemente a conservação da palavra em alemão. Nesse<br />
sentido, quer se considere justificáveis a convenção do uso da palavra em alemão ou da<br />
tradução por entropatia, a manutenção da versão empatia também o é. Isto porque se entende<br />
que uma das vocações da fenomenologia é o enfrentamento dos mal entendidos, a fim de<br />
que os conceitos utilizados pelas ciências, no caso pela psicologia, sejam fundamentados na<br />
revelação do que é próprio aos fenômenos a que fazem referência.<br />
Segundo Ales Bello (2004 e 2006) e Manganaro (2002), a empatia é um ato sui generis,<br />
uma vivência própria do ser humano, ao contrário de perspectivas psicológicas que tomam a<br />
empatia como simpatia ou, ao contrário, antipatia, que, do ponto de vista fenomenológico,<br />
são reações de ânimo e, portanto, psíquicas. Empatizar é reconhecer o outro como alter ego,<br />
como outro eu. Este é, segundo Manganaro (2002), o ponto nodal da essência da empatia: "o<br />
colhimento do 'tu' como alter ego" (p. 44, tradução própria). Sintetizando as características<br />
próprias ao fenômeno, Pezzela (2003) dá uma definição de empatia partindo da perspectiva<br />
fenomenológica seguida por Stein:<br />
um instrumento natural, imediato, tipicamente humano através do qual se<br />
consegue colher e compreender os outros seres humanos, as suas vivências,<br />
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A empatia de Stein nas ciências humanas<br />
os seus estados de alma, os sentimentos. Não é uma prática que se aprende<br />
ou aplica quando há necessidade, mas é co-natural ao ser humano (p. 110,<br />
tradução própria).<br />
Como sugerido acima, fora da produção filiada à fenomenologia, a relevância do tema<br />
da empatia tem tido algum destaque na literatura do campo da saúde, especificamente na<br />
relação interpessoal no atendimento entre médico/enfermeiro/fisioterapeuta e<br />
paciente/usuário. Koss (2006), em outra perspectiva, envolve este tema com outras áreas,<br />
como a arte, trazendo conceitos como empatia estética e empatia psicológica. Alguns autores<br />
tentam trazer a contribuição da análise do fenômeno empatia feita por Stein para suas<br />
respectivas práticas envolvendo esta relação (Määtä, 2006; Davis, 1990). Diga-se que a<br />
aplicação do conceito na prática é o principal objetivo destes trabalhos. Mesmo trazendo<br />
contribuições importantes para as suas respectivas práticas, enriquecendo e valorizando as<br />
possibilidades de abordagem da experiência vivida nas relações em saúde, os autores, ao se<br />
focarem neste objetivo, parecem perder de vista elementos essenciais da empatia. Tal fato<br />
pode ser evidenciado primeiramente no próprio objetivo: a aplicação do conceito. Conforme<br />
Määtä (2006), também fazendo referência a Davis (1990), é possível "preparar-se para o<br />
processo empático [empathetic] com a ajuda de treino" (p. 6, tradução própria). Essa posição<br />
não está em consonância com a definição de orientação fenomenológica, pois a empatia é um<br />
ato natural, imediato; sendo assim, não é preparado. O que é possível é evidenciar a empatia,<br />
o que talvez apontasse para essa preparação como um movimento de evidenciação<br />
fenomenológica da vivência empática. Davis (1990) também comenta sobre uma possível<br />
facilitação para o acontecimento da empatia. Na verdade, fenomenologicamente, havendo<br />
encontro, a empatia como vivência sempre acontece e irá acontecer; o que é possível é<br />
facilitar a tomada de consciência da empatia como elemento presente na relação<br />
intersubjetiva. Portanto, mesmo com as contribuições fundamentais da explicitação da<br />
presença da empatia na área da saúde, estimulando a atenção à importância deste conceito,<br />
os equívocos associados à tomada da vivência empática como sendo um conceito<br />
instrumental esvaziam a própria cena ética, originada por essa experiência e garantida pela<br />
re-atualização da orientação fenomenológica ao mundo da vida (Barreira, 2011).<br />
Hollan e Throop (2008) trazem a questão da empatia para o âmbito da antropologia,<br />
fazendo alusões a outras perspectivas também. No entanto, os autores oscilam entre<br />
elementos fenomenológicos da vivência empática - destacando o papel do aperfeiçoamento e<br />
estímulo da consciência da relação intersubjetiva - e posicionamentos que reduzem o<br />
conceito de empatia a um comportamento ou ato que pode ser ativado ou não. Um exemplo<br />
deste ponto é a menção a um estudo etnográfico que aponta como, em certa sociedade, o<br />
"conhecimento empático" pode ser tomado por essas pessoas como "uma intrusão ou<br />
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ataque". Esta noção parece tomar a empatia como um ato deliberadamente dirigido, se<br />
distanciando da noção experiencial - e, portanto, fenomenológica - empática, que é natural,<br />
intencional e imediata. Nunca é excesso de prudência ressaltar o fato de que a<br />
intencionalidade na fenomenologia não corresponde à intenção deliberada, mas ao simples<br />
tender a, próprio da consciência.<br />
Estas leituras brevemente descritas tendem a tomar a empatia, para além daquilo que é<br />
enquanto experiência imediata descrita por Stein e Husserl, como espécie de ação deliberada<br />
de compreensão da alteridade, deslizando de modo pouco discriminado entre a vivência da<br />
empatia em si e a tomada de consciência da relação intersubjetiva que se desenvolve da<br />
vivência empatizada à empatia iterativa, isto é, ao ir e vir próprio ao cruzamento de vivências.<br />
Este cruzamento de vivências se dá individual e comunitariamente, podendo implicar, por<br />
exemplo, reação ou juízo do ato de um outro, mas também o dar-se conta da reação e do<br />
juízo do outro em relação a si e, assim, necessariamente, dos posicionamentos assumidos<br />
pelo sujeito que caracterizam a iteratividade. A partir desse deslize conceitual, não sem<br />
consequências éticas potencialmente maiores, discutir a possível aplicação da "empatia", seu<br />
aperfeiçoamento ou questionar se há pessoas que nascem com maior possibilidade de<br />
manter relações empáticas, são exemplos encontrados nos artigos mencionados. A título de<br />
esclarecimento, portanto, a última questão talvez só faça sentido para patologias graves que<br />
porventura afetem radicalmente o domínio da percepção; já as demais questões fazem<br />
sentido enquanto não tratem mais da empatia por si mesma, mas das possibilidades de uso e<br />
aperfeiçoamento da compreensão empática.<br />
Por outro lado, outros dois trabalhos recentes, que não podem ser considerados<br />
filiados à fenomenologia clássica, merecem destaque pela maneira apropriada com que<br />
fazem referência ao conceito segundo o pensamento de Edith Stein.<br />
Astell (2004) buscou diferenciar a empatia de outros conceitos de teorias<br />
contemporâneas, como o contágio e o mimetismo, elaborados por René Girard, articulando<br />
seus argumentos também às perspectivas trazidas por Simone Weil e Robert M. Gordon. O<br />
plano de fundo desta articulação é colocar o conceito numa perspectiva comparativa,<br />
destinada à compreensão da moral. Ao delinear a análise da experiência de empatia e de<br />
suas especificidades em Stein, o autor a distingue do contágio mimético e de seus efeitos 2 ,<br />
atribuindo ao último as próprias fontes do mal e à primeira, o substrato para o modelo de<br />
2 Segundo a "teoria mimética", a mímesis, imitação, é o próprio caráter do desejo. Diferentemente, por exemplo, da<br />
triangulação freudiana, não a mãe como objeto do desejo faz do pai um rival, mas o desejo do pai faz da mãe um<br />
objeto desejável. O desejo submete-se, assim, à imitação, segue um modelo que designa o que é desejável. Este<br />
mesmo modelo, no entanto, ao mesmo tempo em que designa o desejo, comparece como obstáculo, espécie de<br />
interdição, de impedimento a seu acesso. Desenvolve-se a rivalidade entre o modelo e o sujeito, posto que ambos<br />
desejam a mesma coisa e são, respectivamente, obstáculo e ameaça à posse da coisa. No limite, com a<br />
intensificação da imitação, não há mais distâncias entre desejo e rivalidade, entre rivalidade e violência, entre<br />
modelo e sujeito, quando, então, desejo mimético se converte em ataques mútuos. O contágio mimético ocasiona<br />
indiferenciação, borram-se as fronteiras entre as partes, as coisas, as hierarquias, as identidades. Para uma visão<br />
panorâmica e crítica do pensamento e obra do autor, veja-se: Andrade (2011).<br />
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santidade. O modelo de santidade equivale tanto a üustragao maior do bem, quanto à<br />
expressão das dificuldades que fazem a adesão ao bem um sacrifício das tendências<br />
impulsivas curtas, próprias ao contágio mimético. Assim, obedecendo aos princípios<br />
distintivos do fenômeno empatia, tais quais descritos por Edith Stein, Astell (2004) enxerga<br />
na imitação do modelo de santidade, não uma forma de fusão indiferenciadora, um ceder a<br />
um desejo impulsivo, mas uma árdua imitação deliberada, empenhada que, sobretudo,<br />
sustenta a individualidade e a responsabilidade pessoal pelas ações cumpridas. Portanto, o<br />
autor extrai e articula consequências relevantes do conceito junto a um exercício de filosofia<br />
moral.<br />
No âmbito da clínica psicológica, Safra (2006) traz algumas consequências relevantes<br />
das análises de Edith Stein na orientação de seu próprio pensamento. Procurando<br />
fundamentar a abordagem clínica em acordo com uma ontologia da condição humana e da<br />
constituição da pessoa, Gilberto Safra revê proposições psicanalíticas, referenciando-se de<br />
modo muito articulado na filosofia, mas também na literatura e na teologia, por exemplo,<br />
conduzindo-se a uma perspectiva existencial que caracterizará como hermenêutica. É,<br />
portanto, a situação clínica que está em pauta quando o autor apresenta aspectos<br />
importantes das análises de Stein, entre estes, a explicitação do que se passa na empatia. Na<br />
relação que se desenvolve entre o analista e o analisando, Safra destaca a corporeidade como<br />
estrato primário da empatia, ressaltando a possibilidade do analista acompanhar a<br />
experiência do paciente. Esse acompanhamento, ensina Stein, não corresponde a viver de<br />
forma originária o que o outro vive, mas é realizar em seu próprio corpo o circuito de<br />
sensibilidade da experiência deste outro. O autor não deixa de considerar também a<br />
possibilidade empática de acompanhar o circuito da articulação do pensamento do outro.<br />
Mas, afastando-se das abordagens representativas, apegadas a noções que tratam a relação<br />
terapêutica por via de processos mentais, para Safra, é primeiramente o que se apresenta que<br />
vem em destaque, realçando-se a sensibilidade corporal como condição de compreensão dos<br />
sentimentos alheios. Há uma comunicação intercorpórea, em que "o analista intui o que se<br />
passa (...) pelo fato de seu corpo estar sendo <strong>continuamente</strong> afetado pela forma de ser do<br />
paciente" (Safra, 2006, p. 48). A maneira como a situação clínica se compõe plasticamente<br />
pelo modo de se apresentar do paciente, informa e explicita questões que não estão ditas em<br />
palavras. Na situação clínica, a clareza do conceito de empatia incorre na distinção entre<br />
sensibilidade e sentimentalismo, pelo que se evidencia uma posição na "qual podemos<br />
acompanhar o paciente subjetivamente e nos discriminarmos dele, sem que para isso seja<br />
necessária a objetificação do analisando" (idem).<br />
Fenomenologia e o problema da empatia<br />
A fenomenologia, ciência e método elaborados por Husserl, é a reflexão acerca dos<br />
fenômenos, estes tomados por aquilo que se manifesta à consciência. Então, grosso modo, as<br />
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experiências vividas ou as coisas acompanhadas de seus atos conscienciais correlativos são o<br />
objeto de estudo da fenomenologia, isto é, como tais vivências se dão no fluxo de consciência<br />
das pessoas, uma vez que consciência, nesta perspectiva, é sempre consciência de algo (Ales<br />
Bello, 2006). A redução eidética e a redução transcendental são os momentos decisivos dentro da<br />
fenomenologia como método nos quais há a passagem da atitude natural - existência factual<br />
dos fenômenos - à fenomenológica, visando a essência dos fenômenos, aquilo que constitui<br />
estruturalmente as experiências e como estas se dão à consciência dos sujeitos. A partir das<br />
análises configuradas nas reduções é que Husserl objetivava constituir uma solidez<br />
conceitual para as ciências humanas, valendo-se da filosofia.<br />
Conforme lembram Salum e Mahfoud (2012), Ales Bello (2004 e 2005) e Manganaro<br />
(2002), ao refletir sobre os atos vividos, Husserl (1931/2001a), se questiona se sua reflexão<br />
não é solipsista, isto é, se seu caminho analítico não está fechado sobre si mesmo. Diante de<br />
uma redução transcendental do eu, Husserl pergunta: "mas o que acontece então com os<br />
outros egos?" (Husserl, 1931/2001a, p. 105). Sua resposta alude diretamente ao tema da<br />
empatia, embora seu desenvolvimento alcance também outras esferas fenomenológicas que<br />
serão apenas indicadas: "Eles não são por certo simples representações e objetos<br />
representados em mim das unidades sintáticas de um processo de verificação que se<br />
desenvolve 'em mim', mas justamente nos 'outros'" (idem), de tal forma que "percebo-os ao<br />
mesmo tempo como sujeitos desse mundo: sujeitos que percebem o mundo - esse mesmo<br />
mundo que eu percebo - e que têm, dessa forma, a experiência de mim, como tenho a<br />
experiência do mundo e nele, dos 'outros'" (Husserl, 1931/2001a, p. 106). Esta preocupação<br />
explicitada na quinta das Meditações cartesianas (Husserl, 1931/2001a), mas presente menos<br />
ou mais implicitamente em toda a reflexão husserliana, é intrínseca, segundo apontam as<br />
autoras, à questão da intersubjetividade. O modo fenomenológico de abordar a subjetividade<br />
da pessoa (eu psicológico) em relacionamento, isto é, na dimensão entre subjetividades,<br />
passa necessariamente pela análise da dimensão da consciência dos atos vividos (unidades<br />
apreensíveis no fluxo de consciência), ou seja, as experiências vividas por cada um através de<br />
uma redução que coloca toda a sua atenção naquilo que se passa aí, deixando o restante em<br />
suspenso, entre parênteses. Portanto, aquilo que se passa individualmente, na singularidade<br />
da experiência concreta de cada pessoa, encontrará, a partir da redução transcendental -<br />
análise de como se dão os atos ao eu puro, à consciência - a existência de um aspecto<br />
universal, um elemento comum (a todos nós): uma essência (eidos). Portanto,<br />
podemos considerar desde já como estabelecido o fato de que tenho em<br />
mim, no quadro de minha vida de consciência pura transcendentalmente<br />
reduzida, a experiência do "mundo" e dos "outros" (...) não como uma obra<br />
de minha atividade sintética de alguma forma privada, mas como um<br />
mundo estranho a mim, "intersubjetivo", existente para cada um (Husserl,<br />
1931/2001a, p. 106).<br />
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Segundo Ales Bello (2005 e 2006), para elucidar tal questionamento, Husserl percorre<br />
um caminho analisando primeiramente o que é a percepção "externa", dos objetos, animais e<br />
pessoas. Assim, ele nota que é a partir da propriedade diferenciada das próprias coisas, de<br />
suas essências, que as pessoas conseguem, imediatamente, perceber e diferenciar o que tem<br />
vida daquilo que não tem, ou mesmo diferenciar as coisas que se apresentam de<br />
determinado modo, com suas qualidades, algumas semelhantes ao eu, outras diversas (Ales<br />
Bello, 2003b). Tal ação, segundo Husserl, é a vivência específica, chamada Einfühlung,<br />
empatia ou entropatia. Enquanto para Husserl, "a empatia é o pressuposto que consente o<br />
alcance do conhecimento do mundo objetivo, cuja constituição é, de qualquer maneira,<br />
resultado ligado à relação transcendental intersubjetiva" (Manganaro, 2002, p. 45-46,<br />
tradução própria), para Stein, através da empatia pode-se chegar "ao conhecimento da<br />
consciência estranha (a alteridade pessoal)" (Manganaro, 2002, p. 46, tradução própria). Estas<br />
podem ser pontuadas como as preocupações mais específicas a cada um dos autores, Husserl<br />
e Stein, embora não possam ser reduzidas a isto, já que estão necessariamente articuladas a<br />
outros problemas filosóficos abordados por ambos. Note-se que estas preocupações<br />
husserlianas têm suas equivalências com a própria fenomenologia transcendental e atravessa<br />
propriamente toda a noção de objetividade e sua constituição (Salum & Mahfoud, 2012).<br />
Husserl deixa este aspecto muito claro afirmando que "o mundo da experiência contém<br />
objetos determinados por predicados 'espirituais', que, conforme sua origem e sentido,<br />
remetem a sujeitos e, geralmente, a estranhos a nós mesmos e a sua intencionalidade<br />
constituintes" (Husserl, 1931/2001a, p. 107). Ou seja, o problema da existência do outro, do<br />
alter ego, da impossibilidade de constituir em mim e a partir de mim a estranheza própria do<br />
conteúdo vivido por um alter ego - o que leva à delimitação da originariedade e nãooriginariedade<br />
abaixo tratadas - coloca-se para Husserl em sua natureza ampliada: "De início<br />
isso tem que ver com qualquer alter ego, mas depois com tudo aquilo que, pelo seu sentido<br />
existencial, implique um alter ego; em suma, o mundo objetivo, no sentido pleno e próprio do<br />
termo" (idem, p. 109).<br />
Edith Stein (1891-1942) foi aluna e assistente de Husserl. Teve formação em psicologia<br />
e cultura germânica pela Universidade de Breslávia entre 1911 e 1913, transferindo-se para<br />
Göttingen para complementar sua formação filosófica e estudar a fenomenologia de Husserl<br />
(Ales Bello, 2000; Stein, 1917/1998). Como objeto de sua tese de doutorado, a empatia foi<br />
tematizada sob análise do método fenomenológico, aplicado com o rigor da fenomenologia<br />
husserliana, chegando a resultados muito próximos das reflexões feitas pelo mestre. Stein<br />
teve contato com inúmeros manuscritos do filósofo, inclusive transcrevendo a obra Idéias<br />
para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica II e, após 1916, ano da defesa de sua<br />
tese, continuou assistindo voluntariamente Husserl (idem). Considera-se, conforme indica<br />
parte do referencial bibliográfico acessado, que Stein se aprofundou no problema da empatia<br />
de maneira original valendo-se da fenomenologia como ciência de rigor, buscando,<br />
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sobretudo, os limites de seu objeto, dialogando com a psicologia da época e com outros<br />
autores como Max Scheler, Theodor Lipps e Wilhelm Dilthey, tendo produzido uma tese que<br />
se constitui como uma fonte de potenciais contribuições a esta última ao tomar a empatia<br />
como uma vivência e ver seu alcance estrutural para a constituição da pessoa.<br />
O tema da empatia está diluído em escritos de Husserl que se espalham de 1905 a 1935<br />
reunidos em publicações póstumas que se intitulam Sobre a intersubjetividade (Husserl,<br />
1973/2001b e 1973/2001c), sendo, portanto, um tema antigo e desafiador na obra de Husserl,<br />
presente dentro da ampla esfera de discussão sobre a intersubjetividade (Ales Bello 2004,<br />
2005 e 2006; Depraz, 1995 e 2007; Manganaro 2002). Em O problema da empatia, há uma fina<br />
sintonia com essa amplitude abordada por Husserl ao longo da vida e, além do<br />
aprofundamento na vivência da empatia - tratando de suas modalidades essenciais,<br />
comparando com outras vivências e fazendo uma descrição da unidade da pessoa em seus<br />
estratos corporais, psicológicos e espirituais -, Stein cumpre uma aproximação entre<br />
psicologia e fenomenologia, destacando o alcance e os limites da primeira ao tratar do tema<br />
da empatia (Manganaro, 2002; Stein, 1917/1998).<br />
Em Ideias II, Husserl aplica o método descrito em Ideias I à análise da constituição das<br />
naturezas material (corporal), animal (psíquica) e espiritual (pessoal) do ser humano<br />
(Husserl, 1952/2004), cujo tratamento claramente inspirou as questões abordadas por Stein.<br />
Com a possibilidade desse contato com o trabalho de Husserl, mencionado por ela no<br />
prefácio de sua obra (Stein, 1917/1998, p. 66), a autora segue os passos analíticos<br />
fenomenológicos sem deixar de atribuir explicitamente ao mestre a preeminência e o<br />
exemplo filosófico como estímulos para o desenvolvimento de sua própria investigação.<br />
Os momentos e o duplo movimento da empatia<br />
A partir do desenvolvimento que veio sendo feito acima se pode retomar alguns<br />
elementos característicos da vivência da empatia. O primeiro é o caráter imediato do ato da<br />
empatia, ou seja, "sentimos imediatamente que estamos em contato com outro ser humano"<br />
(Ales Bello, 2006, p. 63), sendo, "portanto, uma apreensão de semelhança imediata" (idem).<br />
Constatar que se reconhece, que se colhe um outro semelhante, não idêntico (Ales Bello,<br />
2004), significa conferir que se reconhece vida humana ou, de modo mais geral, que<br />
"captamos que estamos diante de seres viventes como nós" (Ales Bello, 2006, p. 65). Assim, a<br />
vivência empática também contempla esse reconhecimento mais genérico da vida animal,<br />
todavia, nesta relação não se reconhece um outro semelhante, mas divergente, o que se dá<br />
primeiramente pela corporeidade que, de imediato, se mostra estruturalmente diferente da<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
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humana 3 . Portanto, pode-se destacar um primeiro momento na atuação da empatia: o<br />
reconhecimento do outro que, como eu, vive.<br />
A seguir, segmentando o processo de maneira esquemática, passa-se para a percepção<br />
de que o outro humano tem a mesma estrutura vivencial que a minha, bem como ao<br />
movimento aperceptivo e ético de aprofundar o relacionamento, conforme ad verte Ales Bello<br />
(2004):<br />
Reconheço imediatamente: sei que ele tem todas as características estruturais<br />
que eu tenho, todas as possibilidades que eu tenho. Não sei, porém, quais<br />
possibilidades ele ativou verdadeiramente. Este é um segundo momento.<br />
Devo tentar entender, no sentido de sentir, quais possibilidades ele ativou, o<br />
que ele está vivendo (p. 185).<br />
Entretanto, mesmo as possibilidades vivenciais entre as pessoas humanas sendo as<br />
mesmas, ou seja, ainda que a estrutura essencial das vivências seja universal, sua ativação<br />
(vivência efetiva) em primeira pessoa é diferente, obedecendo à marca da singularidade<br />
própria a cada um, com seu horizonte perceptivo, historicidade e núcleo pessoal particulares.<br />
Isso não significa uma impossibilidade de comunicação, mas que sentir e entender a<br />
experiência vivida do outro dependem da sensibilidade intercorpórea e do nexo<br />
motivacional. Em relação ao entendimento, trata-se de acompanhar e apreender a relação<br />
motivacional que é "uma relação compreensível e significante, por oposição àquele causal"<br />
(Stein, 1917/1998, p. 185, tradução própria). Assim, "compreender não quer dizer nada<br />
diferente de viver (não um objetivar) a passagem de uma parte a outra no interior de uma<br />
totalidade de vivências e, tudo aquilo que é objetivo, todo o sentido do objeto, se constitui<br />
somente mediante vivências desta espécie [motivação]" (idem, p. 186, tradução própria).<br />
Compreender, então, corresponde a acompanhar os nexos significativos de uma ação vivida.<br />
Nesse sentido, existe<br />
a possibilidade de eu sentir que o outro está vivendo aquilo que eu mesmo<br />
posso viver. Isso significa que nos comunicamos, mas ao mesmo tempo<br />
somos diferentes: nós temos uma vida autônoma, apesar de existirem<br />
estruturas comuns que, de vez em vez, se ativam (Ales Bello, 2004, p. 119).<br />
Portanto, o que a empatia também carrega como elemento essencial é a possibilidade<br />
de proximidade (Ales Bello, 2004), conservando aquilo que é original e próprio da pessoa<br />
(Manganaro, 2002).<br />
3 Stein coloca que o corpo próprio e seus membros "não são dados precisamente como tipo fixo, mas como<br />
realização casual de um tipo variável dentro de limites imutáveis" (1917/1998, p. 150). Assim, quanto à<br />
corporeidade, "existem tipos com vários graus de generalidade e a esses correspondem vários graus de<br />
possibilidade de empatia" (idem). Com um cão, por exemplo, é possível certa transposição empática, como com<br />
relação à dor, no caso em que haja um ferimento; mas, num animal, quando se trata de certas atitudes e<br />
movimentos é possível haver a transposição apenas na forma de representações vazias, sem preenchimento<br />
intuitivo. Constata-se que "quanto mais se distancia do tipo homem, tanto menores se tornam as possibilidades<br />
de preenchimento" (idem, p. 151).<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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As faces fundamentais da empatia analisadas por Edith Stein<br />
De acordo com os aspectos aqui levantados por meio da literatura, na tese de Stein O<br />
problema da empatia, após apresentar o percurso metodológico utilizado, orientado pela<br />
fenomenologia, a autora começa a descrever a empatia a partir da comparação de outros<br />
atos, se questionando inicialmente: o que é dar-se conta da vivência estranha?<br />
Ela confronta a empatia, primeiramente, com a percepção externa afirmando a<br />
impossibilidade de se perceber uma vivência estranha em si mesmo, isto é, perceber em mim<br />
uma vivência vivida por um outro de modo idêntico ao outro, mesmo sendo possível<br />
perceber consequências e reações da mesma. Segundo Stein, "a percepção externa é um título<br />
de atos no qual o ser coisal espaço-temporal e o seu realizar se dão em carne e osso"<br />
(1917/1998, p. 72, tradução própria). Seguindo o próprio exemplo dado por ela, é possível<br />
perceber a expressão de dor, como a modificação na face de um outro que sofre pela perda<br />
de um parente querido, mas esta modificação do rosto não é a dor enquanto manifesta, não é<br />
este sentimento em si mesmo. A dor é percebida "em um rosto com expressão dolorosa, rosto<br />
que percebo exteriormente e 'junto' ao qual a dor vem dada" (Stein, 1917/1998, p. 72,<br />
tradução própria).<br />
Para se entender aquilo que é original, o vivido em primeira pessoa, e aquilo que é nãooriginal,<br />
o que se empatiza, é preciso enunciar uma lei simples: "o dado entropatizado não<br />
pode ser idêntico ao dado entropatizante" (Ales Bello, 2005, p. 50, tradução própria). Assim,<br />
aquilo que o outro vive não é idêntico em relação ao conteúdo, sendo apenas universal em<br />
sua estrutura. O dado empatizado está diante de mim; a pessoa está em "carne e osso" e é<br />
vivente, sendo que eu posso compreender o que ela vive, mas não viver o mesmo ato em<br />
primeira pessoa. O conteúdo, dado não-originário, pode ser vivido em múltiplos modos, em<br />
múltiplas possibilidades. A vivência da empatia se diferencia de outras vivências, como o<br />
recordar e o fantasiar, sendo, portanto, para a individuação do ato experiencial que é a<br />
empatia, necessária a distinção entre o ato originário (o "dar-se conta") e o ato não originário<br />
(o conteúdo do ato vivido pelo outro) (Ales Bello, 2003a, p. 45, tradução própria). Eu não<br />
abstraio aquilo que o outro está vivendo em minha frente, mas intuo a sua vivência, como<br />
um testemunho. Embora a intuição eidética, ou ideação, seja "um ato originário que permite<br />
colher intuitivamente relações essenciais", a empatia, também originária, "não é uma<br />
ideação, dado que se trata de colher isto que existe 'hic et nunc' [aqui e agora]" (Stein,<br />
1917/1998, p. 73, tradução própria). Por "originárias se dizem todas as nossas vivências<br />
presentes entendidas como tais" (idem). Em outras palavras, a marca da originariedade é o<br />
dar-se agora da coisa. Ao contrário, dar-se conta de algo (coisa) que não está aqui e agora, mas<br />
que esteve no passado, é não-originário: "a não-originariedade do 'agora' envia à<br />
originariedade de então: o agora tem o caráter de ser um agora que foi; com isso a recordação<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
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tem o caráter de posição, enquanto aquilo que é recordado tem o caráter de ser" (Stein,<br />
1917/1998, p.75, tradução própria). Ao comparar a empatia com o ato de recordar - que,<br />
assim como outros atos, o esperar e o fantasiar, lhe são notavelmente análogos -, Stein<br />
explicita a diferença entre tais atos a partir do momento em que há um sujeito recordado,<br />
que se torna presentificado, mas que não coincide com aquele que vive a recordação de<br />
maneira originária, mesmo ha vendo certa identidade, um "outro" (de então) de minha<br />
experiência própria, permanecendo "a diversidade entre o Eu originário que recorda e o Eu<br />
não-originário que vem recordado" (Stein, 1917/1998, p. 75, tradução própria). Já na vivência<br />
da empatia,<br />
o sujeito empatizado, porém, não é o mesmo que cumpre o ato de empatizar,<br />
mas um outro [...] a partir do momento em que os dois sujeitos estão<br />
reciprocamente separados, não co-ligados como no outro caso através de<br />
uma consciência de identidade, uma continuidade nos vividos (idem, p. 79,<br />
tradução própria).<br />
Assim, no caso da empatia, "é precisamente o outro sujeito aquele que experimenta de<br />
maneira viva a originariedade, se bem que eu não viva tal originariedade" (idem), ou seja,<br />
na minha experiência vivida não originária, eu me sinto acompanhado de<br />
uma experiência vivida originária, a qual não foi vivida por mim, apenas se<br />
anuncia em mim, manifestando-se na minha experiência vivida não<br />
originária. De tal modo, nós chegamos por meio da empatia a uma espécie de ato<br />
experiencial sui generis" (idem).<br />
Portanto, uma descrição geral da empatia sob a perspectiva analítica do eu puro, meta<br />
inicial de Stein no começo da obra, seria "a empatia enquanto experiência da consciência<br />
estranha" (idem).<br />
Após um debate com algumas teorias sobre a empatia, a autora começa a tratá-la como<br />
um problema de constituição, descrevendo primeiramente como se configura<br />
fenomenologicamente a individualidade da pessoa humana, buscando entender como se dá<br />
o ato da empatia, como é o colhimento da psique do outro. Tendo em consideração que a<br />
empatia é uma vivência que se dá entre dois eus, um que será reduzido a eu puro e outro que<br />
mantém-se como eu estranho, como outro, o esclarecimento da vivência proposto por Stein é<br />
iniciado pela distinção descritiva do eu puro, sujeito da experiência, que empatiza, para se<br />
entender o outro eu que é empatizado. Deve-se considerar que a redução ao eu puro aponta à<br />
"experiência vivencial privada de qualidade e não descritível diferentemente" (Stein,<br />
1917/1998, p.120, tradução própria), isto é, vivência abstraída das coisas, além do fato de que<br />
"vive no presente" (p. 121, tradução própria). O eu puro experimenta a sua individualidade<br />
"não pelo fato de que se encontra diante de um outro, mas pelo fato de que sua<br />
individualidade (...) vem em destaque no confronto com a alteridade do outro" (Stein,<br />
1917/1998, p. 121, tradução própria). Este vir em destaque é uma característica singular à<br />
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individualidade, sendo que, num primeiro momento em que a análise se atém ao eu puro,<br />
uma individualidade não se distingue qualitativamente de outra; a diversidade é revelada<br />
pelo fato de que a outra é uma outra individualidade, ou seja, o outro se mostra como outro<br />
eu (tu) e que vive como eu (idem).<br />
Stein também considera o eu como uma unidade de um fluxo de consciência, em que o<br />
elemento temporal é o que é evidenciado. O eu que vive atualmente (no presente) não está<br />
em todo momento em uma mesma vivência, mas está em um fluxo ininterrupto de vivências<br />
que se dão para ele. É na atualidade vivencial deste eu, atualidade definidora do eu puro, que<br />
é possível re-percorrer vivências anteriores, atingi-las novamente, tomá-las como vivências<br />
que foram anteriormente presentes e que, retidas, sejam trazidas de volta por um "ato de<br />
presentificação memorativa" (idem). Embora essa presentificação não seja uma retomada<br />
direta (em carne e osso) das vivências que se obscurecem no passado, é a retomada de<br />
vivências ligadas ao eu puro que as viveu originalmente. Essa ligação constitui a unidade do<br />
fluxo. Nesse sentido, o eu, unidade de um fluxo, pode estar diante de um outro fluxo, o do<br />
outro. Segundo Stein, a diversidade qualitativa dos fluxos está no conteúdo de uma vivência<br />
singular, mais especificamente a posição que tal vivência ocupa na consciência.<br />
Após o esclarecimento de como se constitui o indivíduo próprio, o sujeito psicofísico,<br />
sinteticamente definido como sendo uma ligação simultânea e indissociável entre o corpo<br />
próprio e a alma (psique), pode-se passar a como se constitui o indivíduo estranho, sendo este<br />
movimento pautado no relacionamento empático. Primeiro, o sujeito é um ser unitário,<br />
no qual a unidade da consciência de um Eu e um corpo físico se conjugam<br />
indissoluvelmente; para tanto, cada um dos dois assume um caráter novo: o<br />
corpo se apresenta como corpo próprio, enquanto a consciência se apresenta<br />
como alma do indivíduo unitário (Stein, 1917/1998, p. 147, tradução<br />
própria).<br />
Dado o caráter imediato da empatia, portanto caráter não representativo ou reflexivo, a<br />
dimensão constitutiva básica desta vivência será aquela privilegiada aqui. Esta dimensão<br />
corresponde à esfera da corporeidade que abrange, pela sua natureza viva, a psique. Embora<br />
Stein examine também a esfera espiritual atuando nas vivências empáticas, na reciprocidade<br />
intersubjetiva, deve-se notar que Stein considera "uma necessidade eidética o fato de que o<br />
espírito possa entrar em relação recíproca com o espírito somente através da mediação da<br />
corporeidade" (Stein, 1917/1998, p. 228-229, tradução própria) 4 .<br />
As precisas análises do corpo próprio presentes no texto de Stein, certamente<br />
inspiradas direta ou indiretamente nos manuscritos das aulas dadas em 1907 por Husserl<br />
(1973/2009), não serão retomadas a não ser enquanto indicação de resultados e naquele que<br />
4 A esfera espiritual na fenomenologia clássica é aquela correspondente à dos atos volitivos e intelectivos, lidos<br />
como momentos entrelaçados, mas qualitativamente diferenciáveis de outros como os impulsivos e sensíveis<br />
próprios às esferas psíquica e corporal. Essa diferenciação qualitativa, contudo, não equivale a uma separação,<br />
mas ao efeito distintivo da redução fenomenológica, capaz de qualificar esses momentos e seus atos próprios.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
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parece ser o elemento fundamental e paradigmático para haver uma compreensão adequada<br />
da empatia. A particularidade do corpo próprio é a de ser contemporaneamente objeto e<br />
sujeito. Como objeto, à diferença dos demais corpos, o corpo próprio "está sempre 'aqui',<br />
enquanto todos os outros objetos estão sempre 'lá'" (Stein, 1917/1998, p. 125, tradução<br />
própria). Essa característica faz do corpo próprio o ponto zero de orientação, "enquanto ao<br />
contrário todos os corpos se encontram de fora deste ponto" (p. 128). As sensações táteis são<br />
fundantes para o corpo próprio e para a localização de suas partes. Todavia, paradigmático é<br />
o fato de que o "corpo próprio se constitui de modo duplo - como corpo sensível (percebido<br />
com o corpo próprio) e como corpo do mundo externo percebido exteriormente" (p. 128).<br />
Enquanto corpo que contata outros corpos, pode-se distinguir três elementos apercebidos na<br />
unidade dessa constituição. Primeiro: o dedo que toca uma mesa, exemplifica a autora, dá a<br />
sensação tátil. Segundo: "a dureza da mesa e o ato correlativo de percepção externa".<br />
Finalmente, "em terceiro lugar, a ponta do dedo que toca e o ato correlativo da percepção do<br />
corpo próprio" (p. 129).<br />
O entendimento da passagem constitutiva para a empatia neste estrato mais<br />
fundamental que é o corpo próprio, no caso da empatia, o corpo próprio estranho, depende<br />
da compreensão da experiência de co-originariedade. A co-originariedade é bem<br />
exemplificada pela percepção de uma coisa externa (espacial) que, quando tem um lado<br />
visto, não é percebida apenas por esse lado, mas é percebida no seu todo, isto é, em seu<br />
interior e com a antecipação de seus outros lados. Esta visão do todo, isto é, esta visão<br />
originária acompanhada de seu horizonte próprio, torna então aquelas faces co-originárias<br />
em originárias, no sentido de que é uma implicação necessária que um objeto visto por um<br />
lado tenha outros lados não vistos, mas implícitos por essência.<br />
O contato com um corpo próprio estranho dá-se junto - por co-originariedade - a seu<br />
campo sensorial, isto é, apreende-se intuitivamente o lado sensível (não visível) desse corpo,<br />
lado que o faz ser corpo próprio, corpo vivente, não mero objeto, mas sujeito. Mesmo que tal<br />
lado não possa jamais se tornar originário - já que é próprio de um outro -, é sua<br />
característica ser preenchido pela presentificação empatizante. Tem-se pela co-originariedade<br />
acesso à camada sensível da dupla constituição do corpo vivo, necessário correlato da faceta<br />
objetiva do corpo vivo.<br />
Ainda na esfera corpórea ocorre a importante passagem de meu corpo próprio como<br />
ponto zero de orientação à posição de orientação do outro, apreendido também como corpo<br />
próprio. Segundo Stein, não é uma substituição, ou seja, eu não passo do meu referencial<br />
corporal para o outro, mas se trata "de obter empaticamente a outra orientação de modo não<br />
originário" (Stein, 1917/1998, p. 154, tradução própria). Assim, "partindo do ponto zero de<br />
orientação obtido mediante a empatia, devo considerar agora o meu próprio ponto zero não<br />
mais como ponto zero, mas como um ponto espacial entre muitos" (Stein, 1917/1998, p. 156,<br />
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tradução própria). Aqui, a autora destaca o papel da experiência intersubjetiva como<br />
condição de possibilidade de constituição do indivíduo próprio e do mundo real externo.<br />
A empatia e alguns desdobramentos<br />
Tomada de modo estritamente reduzido, a empatia é um ato que colhe imediatamente<br />
o outro como alter ego. Portanto, este ato é especial em relação à percepção de uma coisa<br />
tomada como objeto, pois o outro se apresenta como "coisa" psicofísica, tendo assim sua<br />
própria subjetividade que é acessível para o eu apenas indiretamente. O que é direto, o que é<br />
imediato é o dar-se como alter ego, não a subjetividade própria deste alter ego, não sua<br />
vivência em primeira pessoa e originariamente. Excetua-se a possibilidade de colhimento<br />
originário da experiência do outro - já que esta nunca pode ser vivida pelo eu; caso o fosse,<br />
este outro não seria um alter ego, mas um ego idêntico a mim, portanto, seria o eu mesmo.<br />
Depraz (1995) encontra no conjunto da obra husserliana resultados analíticos que ela<br />
denomina alteridade a si, pontuando duas experiências constitutivas desse fenômeno de<br />
duplicação do eu: a temporalidade e a imaginação. Essas experiências permitem o dar-se conta<br />
de um eu passado e, respectivamente, de um eu potencial. A duplicação do eu não corresponde<br />
a uma divisão do eu, a uma espécie de esquizofrenia, mas, justo ao contrário, à própria<br />
individualização do eu concreto, da mônada, que articula passado e devir com a unidade do<br />
fluxo de consciência, isto é com um dar-se conta próprio, originário, a consciência<br />
transcendental ou eu puro. Nesse caso, as diferentes experiências vividas não pertencem a um<br />
alter ego enquanto são articuladas à experiência originária do ego. É também com a presença<br />
das atividades temporalizante e imaginária, determinantes para haver uma<br />
intrasubjetividade, que se efetiva a intersubjetividade. Esta, contudo, tem que ser<br />
"antecipada" pela vivência empatizante, isto é, a empatia é um pressuposto. Comparando os<br />
achados de Depraz (1996) a partir dos manuscritos husserlianos (Husserl, 1973/2001b;<br />
1973/2001c) com O problema da empatia de Stein, observa-se a proficuidade das análises de<br />
Stein que não deixa passar a descrição dos atos que ensejam a alteridade a si e tampouco deixa<br />
de tangenciar as análises genéticas que, na dimensão da corporeidade, evidenciam aspectos<br />
constitutivos que anunciam a condução às sínteses passivas estudadas a fundo por seu<br />
mestre (Husserl, 1998) 5 .<br />
5 Após analisar algumas condições de possibilidade para a empatia sensorial, camada mais elementar do<br />
fenômeno, Stein conclui sinalizando sua prudência e o limite de seu propósito analítico: "Aqui se colocam<br />
questões importantes para a investigação. Devemos nos contentar com o que dissemos e tê-lo presente como um<br />
ponto de referência para questões 'transcendentais' que possam surgir, sem podermos proceder a um exame mais<br />
aprofundado" (Stein, 1917/1998, p. 151). É interessante pontuar que, precisamente com relação a esse estrato<br />
constitutivo da empatia, o que Stein nomeou como "empatia sensorial" ou "endosensação", Husserl fez<br />
importantes avanços a partir de análises transcendentais (Salum & Mahfoud, 2012), desvelando o que se nomeou<br />
"analogia vivida" e "emparelhamento" de corpos próprios (Depraz, 1996, 2007; Husserl, 1931/2001a, 1973/2001b,<br />
1973/2001c).<br />
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Alguém pode empatizar a si mesmo? Em princípio não, contudo, apenas em princípio.<br />
Isto porque a experiência primeira, a vivência da experiência de alguma coisa, sendo vivida<br />
por um eu não pode ser vivida por um outro, portanto, a empatia aqui é um non sens. Tratase<br />
de constatar que se o eu empatizasse diretamente a si mesmo não estaria empatizando um<br />
alter ego, um outro, logo não estaria vivendo o ato de empatizar, mas um simples voltar a<br />
atenção à experiência própria do eu, princípio do movimento reflexivo. Em segunda mão, ou<br />
seja, representativamente, porém, alguém pode sim se colocar em segunda pessoa, ver-se<br />
imaginariamente nesta condição e empatizar com este outro imaginado. Stein trata disso<br />
como "empatia reiterada" atribuindo a esta a condição de possibilidade da constituição do<br />
indivíduo próprio, onde há "doação espelhada de mim mesmo na recordação e fantasia"<br />
(Stein, 1917/1998, p. 156, tradução própria), espelhamento corporal, central para a<br />
constituição do indivíduo psicofísico. Pode-se também haver um desprendimento da própria<br />
experiência vivida e um voltar da atenção a um objeto ou a um encadeamento narrativo<br />
impessoal que remetam a uma subjetividade passível de ser empatizada enquanto<br />
subjetividade correspondente àquele episódio narrado ou àquele objeto apresentado. Essa é a<br />
condição para que se efetive uma apreciação objetiva de si mesmo, uma apreciação que se<br />
volte reflexivamente não ao eu propriamente dito, mas à ação enquanto tal, ao objeto, àquilo<br />
que é posto diante de um eu. Isto realiza num eu referido a um si mesmo impessoalizado a<br />
"intersubjetividade". Esta é, por exemplo, a condição para que haja senso de justiça, senso<br />
cuja essência passa pela noção de equitativo (Ricoeur, 2008). Estas possibilidades acima<br />
descritas formalmente com o recurso de atos implicados na intersubjetividade, isto é, daquilo<br />
que se passa na redução ao eu puro, não podem, entretanto, obscurecer o fato de que estes<br />
atos devem, por força de legalidade transcendental, vincularem-se a coisas, a fenômenos.<br />
Assim, imaginação, por exemplo, deve ser imaginação de alguma coisa. Ao empatizar<br />
concreto tem-se não apenas um outro, mas um outro situado, vinculado no mundo:<br />
adormecido, desperto, distraído de algo, vigoroso, engajado em algo, acabrunhado, etc.<br />
Testemunhar este outro existindo lança o sujeito que testemunha àquilo que o outro vive, ao<br />
seu mundo presente, às coisas com que está envolvido, ao seu mostrar-se desvelador no<br />
mundo, portanto, abre o sujeito empatizante ao vivido pelo sujeito empatizado, lança-o a<br />
essa apreensão e permite-lhe vivê-la por sua própria vez. Vivê-la por sua vez é dar-se conta<br />
daquilo de que se dá conta o outro, daquilo a que se dirige o outro. Este compartilhar<br />
possibilita a intersubjetividade, uma passagem constitutivamente dependente da empatia,<br />
mas não idêntica a esta.<br />
Considerações Finais<br />
O tema da empatia está na base, ou melhor, é preliminar e fundante, de qualquer<br />
reflexão "sobre o mundo circundante comum, sobre a possibilidade da comunicação<br />
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interpessoal, sobre as múltiplas formas de associação humana, sobre o valor da relação ética<br />
e do diálogo" (Manganaro, 2002, p. 43, tradução própria). A partir da discussão de Stein<br />
sobre este problema, há uma nítida tentativa da autora em fazer uma aproximação efetiva<br />
entre psicologia e fenomenologia. No entanto, tal afirmação implica uma crítica ao modo de<br />
se conceber o problema da empatia em cada uma das disciplinas. Enquanto na psicologia ou,<br />
conforme a definição do tempo de Stein, na psicologia genética, o elemento causal originário é<br />
um problema intrinsecamente definido, por outro lado, a fenomenologia está interessada na<br />
essência, ou seja, como no caso do tema estudado, no que é a empatia em sua essência, sem<br />
conceber outras ciências como elementos norteadores da investigação (Stein, 1917/1998). Tal<br />
clarificação é necessária para se saber o ponto de partida, os limites e o alcance de cada uma<br />
das ciências, considerando ambas não autônomas e sem subordinar a fenomenologia aos<br />
resultados e paradigmas da psicologia. No caso deste trabalho, a localização e a concepção<br />
da empatia, segundo os autores referenciados e a própria Stein, como uma vivência, como<br />
reconhecimento do outro como outro eu, implica que, "é necessária uma abertura ao outro<br />
(...) um primeiro grau para a compreensão, para a possibilidade de entendimento, e só onde<br />
há abertura e disponibilidade, existe a possibilidade de fundar uma comunidade que possa<br />
verdadeiramente dizer-se humana" (Pezzela, 2003, p. 115, tradução própria). O que pode ser<br />
depreendido é um movimento que passa pela empatia e vai à compreensão da experiência<br />
do outro, um testemunho daquilo que o outro vive frente a nós. Além dessa abertura para<br />
outro, há a possibilidade de desenvolvimento de uma autoavaliação, um autoconhecimento<br />
frente ao outro, pela constatação e consideração da apercepção do outro diante de nossa<br />
experiência.<br />
Contudo, existe a possibilidade de obscurecimento do fenômeno empático em função<br />
da presença de roupagens de ideias a seu respeito, isto é, ideias a respeito da possibilidade<br />
de apreensão do outro. Essas roupagens podem formar concepções de empatia que a tomam<br />
como representações dependentes de certas condições, treinamento, projeção/introjeção, por<br />
exemplo, artificializando-a. Assim, a abertura ao outro, embora permaneça sempre sendo um<br />
ato imediato de fundo, passa a ser acompanhada na superfície por representações que, ao<br />
assumirem definições de certas condições para se acessar o outro, tendem a se desdobrar<br />
tecnicamente numa instrumentalização desse acesso visando certos fins (terapêuticos ou<br />
analíticos, por exemplo). Pode-se perguntar o que, no limite, tal roupagem não faz com o<br />
próprio ser humano ao torná-lo reconhecido através do produto de um treinamento técnico?<br />
Nesse caso, deixa-se de lidar com o que é manifesto pelo outro, para se lidar com o que se faz<br />
dessa manifestação, como se a instrumentaliza - o que pode ser particularmente adequado a<br />
determinados momentos e determinadas tarefas profissionais, mas eticamente informa o<br />
comprometimento com o terrível mito progressista que anima o espírito da modernidade<br />
(Maffesoli, 2007). Essas finalidades técnicas, contudo, não autorizam que se parta delas para<br />
se chegar à definição do conceito de empatia desde seu modo de se manifestar. Elas devem,<br />
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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por outro lado, ensejar a definição precisa destas tarefas e dos conceitos que lhe sejam<br />
pertinentes, podendo valer-se de modo adequado do que está posto pela evidenciação da<br />
empatia. Daí a importância, por exemplo, de se assumir a empatia como é para que se tenha<br />
consciência de que a companhia humana não se confunde com intimismo, tecnicismo, mas se<br />
define por um estar com que pode se enriquecer na atenção recíproca, na resposta àquilo e no<br />
compartilhamento daquilo que se manifesta, avanço intersubjetivo que é assegurado pela<br />
convicção da possibilidade de proximidade do compartilhamento de vivências com a<br />
possibilidade da garantia de se guardar a distância que mantém eu e outro como diferentes.<br />
Os exemplos de Safra (2006) e Astell (2004), respectivamente no campo da clínica e da moral,<br />
mostram bem a fecundidade do fenômeno desvelado por Stein para se cumprir avanços<br />
significativos nas ciências humanas.<br />
Conclui-se também que a literatura científica recente, mas não especializada em<br />
fenomenologia, ganha em considerar conceitos oriundos dessas análises, mas teria ganhos<br />
ainda mais substanciais ao buscar fundamento metodológico na própria fenomenologia. Isto<br />
não apenas para orientar a discussão sobre o tema da empatia, onde frequentemente se<br />
incorre num deslize conceitual que a confunde com a consciência da relação intersubjetiva,<br />
mas também para uma fundamentação científica fenomenologicamente orientada.<br />
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Nota sobre os autores<br />
Leandro Penna Ranieri - graduado em Ciências da Atividade Física e mestre em<br />
Ciências, área de concentração Estudos do Esporte, pela Universidade de São Paulo.<br />
Atualmente é professor da União das Instituições Educacionais do Estado de São Paulo.<br />
Contato: ranierileandro@gmail.com<br />
Cristiano Roque Antunes Barreira - psicólogo, doutor em Psicologia pela Faculdade de<br />
Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP (2004), professor da Escola de Artes,<br />
Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo entre 2005 e 2009, é atualmente<br />
docente da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (USP). Contato:<br />
crisroba@gmail.com<br />
Data de recebimento: 16/03/2012<br />
Data de aceite: 20/08/2012<br />
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Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no<br />
pensamento de Carl Rogers<br />
From empathy to empathic comprehension: evolution of the concept in the thought of<br />
Carl Rogers<br />
Rebeca Cavalcante Fontgalland<br />
Virginia Moreira<br />
Universidade de Fortaleza<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
Este artigo tem como objetivo compreender a evolução do conceito de empatia no<br />
pensamento de Carl Rogers, a partir das fases propostas pelos comentadores de suas<br />
obras. Inicialmente, Rogers não utilizava diretamente o termo empatia, mas já era<br />
possível perceber o nascimento desse conceito em seu pensamento, desde as primeiras<br />
obras, uma vez que para ele o terapeuta deveria compreender os problemas do cliente,<br />
sem julgamento, sem preconceito e sem identificação emocional descontrolada. No<br />
decorrer de seu pensamento esse conceito evoluiu de apenas um estado para um<br />
processo, sendo mais do que apenas uma atitude, mas uma compreensão empática, que<br />
está muito além de uma compreensão do senso-comum. Essa compreensão empática<br />
consiste em experimentar o que o outro está sentindo dentro de uma condição de "como<br />
se" estivesse no lugar dele, vendo através da perspectiva do cliente, podendo dividir com<br />
ele toda essa compreensão, favorecendo o desenvolvimento da personalidade do cliente.<br />
Palavras-chave: Carl Rogers; fases; empatia<br />
Abstract<br />
This article aims at understanding the evolution of the concept of empathy in the<br />
thinking of Carl Roger from the phases proposed by commentators of his works. Initially,<br />
Rogers did not directly use the concept of empathy, but it was possible to see the birth of<br />
this concept in his thought since the early works once he believed the therapist should<br />
understand the client's problems without judgment, without prejudice, and without<br />
uncontrolled emotional identification. In the course of his thought, this concept has<br />
evolved from a state to a process, being more than just an attitude, but an empathic<br />
understanding, which is far beyond a common sense understanding. This empathic<br />
understanding consists of the therapist experiencing what the client is feeling within a<br />
condition of "as if" the former were in the place of the latter. By seeing through the<br />
perspective of the client, the therapist may share with him his understanding, thus<br />
favoring the development of the personality of the client.<br />
Keywords: Carl Rogers; phases; empathy<br />
Carl Rogers praticou a psicologia desde 1927, realizou estudos diagnósticos com<br />
crianças e propôs formas de tratamento 1 . Fez aconselhamento com pais, estudantes, adultos,<br />
1 Este artigo é fruto da dissertação de mestrado A experiência de ser empático para o psicoterapeuta humanistafenomenológico<br />
iniciante, defendida pela primeira autora sob orientação da segunda autora. As autoras agradecem<br />
aos Professores Dra. Márcia Tassinari e Dr. Francisco Cavalcante Junior, cujos comentários como componentes da<br />
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além de ter realizado psicoterapia com pessoas ditas normais, neuróticas, psicóticas e<br />
portadoras de problemas. Formulou uma teoria inovadora de psicoterapia, foi um facilitador<br />
do desenvolvimento pessoal e pioneiro na pesquisa em psicoterapia, a partir da qual se<br />
baseou a sua evolução teórica. Inicialmente, dedicou-se à psicoterapia individual e,<br />
posteriormente, às experiências grupais (Rogers, 1974/1977a). Em seus últimos anos, seu<br />
foco passou a ser cada vez mais psicossocial, preocupando-se com grupos intensivos,<br />
comunidades e relações diplomáticas. Ao longo de sua trajetória profissional, Rogers sempre<br />
se dedicou a compreender o fenômeno humano, buscando elementos que propiciassem uma<br />
melhor maneira de ser (Messias, 2001).<br />
A experiência, adquirida por Rogers, vem de sua orientação dada à psicoterapia, que<br />
foi elaborada ao longo dos anos (Rogers, 1961/1987). Sua abordagem terapêutica foi<br />
desenvolvida em torno da ideia de que existe um movimento natural dentro de cada pessoa.<br />
Esse movimento para o crescimento consiste na tendência atualizante. Ao postular isso,<br />
Rogers tinha a finalidade de fundar uma "maneira peculiar e revolucionária de se entender o<br />
organismo humano" (Tassinari, 2003, p. 57), que passou a ser um postulado fundamental da<br />
sua teoria da personalidade de Rogers. E ao confiar nessa tendência do cliente para o<br />
crescimento, o terapeuta tem como papel criar um clima favorável interpessoal que promova<br />
seu desenvolvimento no indivíduo (Bozarth, 2001). Isto se dá quando se estabelece uma<br />
relação significativa que promova o encontro (Távora, 2002).<br />
Esse conceito está fundamentado em um movimento maior, a tendência formativa, que<br />
é entendida como sendo a própria Vida atuando no universo e na Terra, mas não atua no<br />
nível da personalidade, como é o caso da tendência atualizante, que está mais vinculada à<br />
experiência organísmica (Branco, 2008); é uma tendência à mudança que se dá de forma<br />
súbita e criativa em direção a estados novos e complexos (Moreira, 2007).<br />
A partir dessa premissa, Rogers trouxe para o campo psicoterápico a ideia das<br />
condições facilitadoras e das atitudes que um terapeuta deveria ter para proporcionar<br />
condições de mudança na personalidade do cliente. Estas condições deveriam ser vistas<br />
pelos psicoterapeutas em sua profundidade e não apenas em meras formas de agir,<br />
representando um grande desafio para o psicoterapeuta.<br />
As seis condições, estipuladas como facilitadoras por Rogers, foram ressaltadas em seu<br />
artigo As condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica na personalidade<br />
(1957/2008). Dentre essas condições, três são comumente designadas como atitudes<br />
fundamentais ao terapeuta em relação ao cliente para uma mudança construtiva de<br />
personalidade: a Autenticidade ou Congruência, a Aceitação e a Compreensão Empática.<br />
comissão julgadora muito enriqueceram este trabalho. Agradecem, ainda, à Fundação Cearense de Apoio ao<br />
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP, pelo financiamento desta pesquisa.<br />
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Podemos compreender congruência, em Rogers (1961/1987), como sendo o<br />
integralmente verdadeiro, na qual a pessoa transluz aquilo o que verdadeiramente é,<br />
mostrando-se transparente, tal como uma criança que demonstra e expressa tudo aquilo que<br />
está sentindo. O terapeuta age sem máscaras e ao estar em acordo interno possibilita ao<br />
cliente uma atmosfera adequada para o seu crescimento. A congruência apresenta-se em<br />
diferentes níveis dependendo da situação apresentada, pois estes ní veis dizem respeito à<br />
intensidade que podem ocorrer, e isso dependerá, exclusivamente, da aceitação que se tem<br />
da experiência do outro, se o terapeuta se esquivará da situação ou a aceitará. Disso resulta o<br />
que O'Leary (2008) ressalta, que a congruência consiste em o terapeuta não tentar fazer mais<br />
do que aquilo que poderia fazer.<br />
A aceitação positiva incondicional reside, enquanto condição facilitadora, para Rogers<br />
(1961/1987), na calorosa preocupação do terapeuta pelo cliente, que não poderia ser<br />
possessiva. É uma forma de considerar o outro "como uma pessoa separada, digna de<br />
respeito por um mérito que lhe é próprio. É uma confiança básica - uma crença de que esta<br />
outra pessoa é, de alguma maneira fundamental, digna de confiança" (Rogers, 1974/1977a,<br />
p.149). E diz respeito a mais do que apenas o terapeuta aceitar o cliente, mas sim, que<br />
igualmente deve existir uma aceitação do psicoterapeuta de si mesmo, o que para Vieira e<br />
Freire (2006), não é algo totalizado, mas sim que existe uma abertura para possíveis<br />
imprevisibilidades que possam ocorrer no decurso da terapia.<br />
A empatia ou compreensão empática, como uma dessas condições facilitadoras, se<br />
tornou fundamental na teoria rogeriana quando Rogers ressaltou a necessidade de o<br />
terapeuta desenvolver uma compreensão empática pelo seu cliente (Sampaio, Camino &<br />
Rozzio, 2009), a qual passou a ser compreendida como sendo uma parte essencial do<br />
trabalho do psicoterapeuta (Grant, 2010). Este artigo tem como foco esta atitude facilitadora,<br />
descrevendo uma pesquisa que buscou aprofundar este conceito tal como ele aparece ao<br />
longo da teoria de Carl Rogers, identificando sua evolução sob a perspectiva das fases de seu<br />
pensamento divididas por comentadores de suas obras (Shlien & Zimring, 1970; Cury, 1993;<br />
Holanda, 1994; Boainain, 1999; Moreira, 1990, 2001, 2007, 2009a, 2010).<br />
A ideia embrionária de empatia no pensamento de Carl Rogers<br />
Ainda que não seja utilizado diretamente, em sua primeira obra O tratamento clínico da<br />
criança problema de 1939, podemos perceber que o conceito de empatia começa a ser<br />
delineado no pensamento de Carl Rogers ao explicar o conceito de "Tratamento<br />
Interpretativo" - que busca que o indivíduo compreenda de forma plena suas reações e seus<br />
comportamentos -, salientando a importância da compreensão dos problemas do cliente por<br />
parte do terapeuta para o tratamento. Para Rogers, o sucesso dessa técnica terapêutica estaria<br />
conectado à capacidade do cliente de aceitar a interpretação realizada pelo terapeuta, além<br />
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de ser importante uma compreensão do ponto de vista dos clientes pelo terapeuta, sem<br />
identificação emocional.<br />
Ao abordar um tipo de tratamento descritivo, no qual o profissional desempenha um<br />
papel mais ou menos passivo, Rogers defende a necessidade de não deixar o paciente<br />
dependente de suas interpretações, porque a responsabilidade das decisões é do paciente e<br />
não do terapeuta. Nessa forma de terapia uma das qualificações do terapeuta seria a<br />
objetividade, a partir da qual deveria existir uma compreensão sem qualquer julgamento<br />
moral, ou seja, sem preconceito por parte do terapeuta para com seus pacientes. Essa atitude<br />
de respeito não deveria ser exageradamente sentimental, assim como não poderia ser fria e<br />
impessoal. Seria uma atitude autêntica, receptiva, que colaborasse com a compreensão dos<br />
sentimentos do cliente sem uma exagerada identificação por parte do terapeuta, com o<br />
intuito de não prejudicar o tratamento. Uma identificação "descontrolada" por parte do<br />
profissional propiciaria uma confusão dos sentimentos dele e do paciente, corroborando uma<br />
identificação emocional.<br />
É possível notar que nessa obra, Rogers (1939/1978) dá inicio a uma definição<br />
embrionária de empatia como sendo uma compreensão, por parte do terapeuta, dos<br />
sentimentos apresentados pelo paciente, o que colaboraria para a obtenção de um ambiente<br />
terapêutico. Essa atitude - que posteriormente contribuiria para a formulação do conceito de<br />
empatia - enfatiza uma relação terapêutica baseada na objetividade. Uma relação na qual o<br />
centro estaria, ainda, mais voltado para o terapeuta, pois ele interpretaria o comportamento<br />
do paciente.<br />
A abordagem rogeriana foi estudada por muitos autores que dividiram e descreveram<br />
em fases a evolução do pensamento de Rogers, que se deu a partir de sua experiência de<br />
pesquisador e de psicoterapeuta. Essas fases descritas do pensamento rogeriano têm início a<br />
partir de 1940, que é quando Rogers começa a desenvolver uma teoria própria de<br />
psicoterapia, tendo como marco sua famosa palestra em dezembro de 1941. Existem algumas<br />
divisões das fases de Rogers, mas a mais comumente utilizada é a formulada por Hart &<br />
Tomlinson de 1970, que foram abordadas por outros autores como Cury em 1987, Wood em<br />
1983, Holanda em 1994, sendo ampliada por Moreira em 1990, 2001, 2007 e mais<br />
recentemente em 2010. Essas fases estão divididas da seguinte forma: a fase não-diretiva<br />
(1940-1950); a fase reflexiva (1950-1957); fase experiencial (1957-1970); fase coletiva e interhumana<br />
(1970-1987) e mais recentemente, a fase pós-rogeriana (1987-atualidade).<br />
Evolução da ideia embrionária na fase não-diretiva (1940 - 1950)<br />
Nessa primeira fase, chamada não-diretiva, Rogers estava na Universidade de Ohio, no<br />
período de 1940 a 1950. Caracteriza-se por ter uma proposta de terapia não-diretiva, na qual,<br />
segundo Messias (2001), deveria haver um ambiente propício, que facilitasse ao cliente o<br />
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desenvolvimento de seu potencial e que pudesse assumir a responsabilidade pelo seu<br />
próprio processo.<br />
Para Moreira (2010), essa psicoterapia não-diretiva<br />
parte de conceitos que têm como base o impulso individual para o<br />
crescimento e para a saúde, dá maior ênfase aos aspectos de sentimento do<br />
que aos intelectuais, enfatiza o presente ao invés de enfatizar o passado do<br />
indivíduo, o foco de interesse maior é o indivíduo e não o problema, e toma<br />
a própria relação terapêutica como uma experiência de crescimento (p. 5).<br />
Os aspectos fundamentais de uma relação terapêutica são estabelecidos na principal<br />
obra concernente a esta fase, Psicoterapia e consulta psicológica (1942/1973), em que Rogers<br />
propõe como primeiro aspecto na terapia o calor e a capacidade de resposta do terapeuta,<br />
que torna possível o surgimento de uma relação e a evolução gradativa para um nível mais<br />
profundo de entendimento.<br />
Esta fase caracteriza-se pela permissividade na terapia, na qual os terapeutas não<br />
diretivos estimulam seus clientes a falarem mais e livremente; portanto há a predominância<br />
da atividade do paciente, visto que permite que o mesmo assuma a maior parte do seu<br />
percurso, da conversação de seus problemas (Rogers, 1942/1973).<br />
Rogers assume nesta fase inicial, quando ele cria uma proposta inovadora de<br />
psicoterapia, uma posição de suposta neutralidade (Messias, 2001; Moreira, 2010) e<br />
objetividade, na qual a intervenção do terapeuta deveria ser mínima, pois o cliente tem seu<br />
mundo subjetivo e sua forma de reagir em relação a ele. Neutra no sentido de o terapeuta<br />
não interferir "no direcionamento ou na construção de um jeito subjetivo de ver o mundo e<br />
reagir a ele" (Messias, 2001, p. 31). E objetiva, pois se dá pelo empirismo e o rigor nas<br />
pesquisas realizadas.<br />
Essa ideia de não-diretividade ocasionou muitos mal entendidos acerca da atuação do<br />
psicoterapeuta pouco ativo ou que não fala na sessão (Moreira, 2010). A permissividade de<br />
Rogers sofreu muitas críticas, quando na verdade, como lembra Holanda (1994), seu objetivo<br />
era desarticular a ideia de que o terapeuta estava em uma posição de autoridade.<br />
A evolução do conceito de empatia começa a ser observada na fase não-diretiva, a<br />
partir do livro Psicoterapia e consulta psicológica (1942/1973), quando Rogers descreve o<br />
conceito de hipótese base da consulta psicológica, ao defini-la como sendo uma "relação<br />
permissiva, estruturada de uma forma definida que permite ao paciente alcançar uma<br />
compreensão de si mesmo num grau que o capacita para progredir à luz da sua nova<br />
orientação" (Rogers, 1942/1973, p. 29).<br />
Nesta obra, Rogers (1942/1973) propõe uma nova forma de psicoterapia - a<br />
psicoterapia não-diretiva, cujo objetivo não é o de resolver um problema particular do cliente,<br />
mas sim o de colaborar com o indivíduo para que ele possa se desenvolver, podendo assim<br />
enfrentar o problema presente e os futuros de uma forma mais integrada. Essa psicoterapia<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Fontgalland, R. C. & Moreira, V. (2012). Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no pensamento de<br />
Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de ^<br />
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tem como um de seus aspectos, uma confiança mais profunda de que o indivíduo pode<br />
orientar-se para a maturidade, para a saúde e para a adaptação (Rogers, 1942/1973).<br />
Essa nova experiência terapêutica possibilita uma vivência de desenvolvimento ao<br />
sujeito, pois nela "o indivíduo aprende a compreender-se a si mesmo, a optar de uma forma<br />
independente e significativa, a estabelecer com êxito relações pessoais de uma forma adulta"<br />
(Rogers, 1942/1973, p. 42). Todavia, é ressaltado que o conselheiro não tem a obrigação de<br />
dar respostas certas, pois tem como função proporcionar um ambiente e uma atmosfera, nos<br />
quais os problemas possam ser refletidos e as relações apreendidas com maior clareza<br />
(Rogers, 1942/1973). Ou seja, o psicoterapeuta não diz ao paciente o que é o seu problema,<br />
nem diz a este o que deve fazer, mas proporciona uma atmosfera adequada, para o<br />
desenvolvimento do cliente, em um ambiente terapêutico. Transmite confiança que<br />
possibilite ao cliente expor todas as suas dificuldades e, assim, no decorrer da psicoterapia<br />
bem sucedida, compreender e resignificar seus problemas.<br />
Rogers ressalta que é interessante - em determinadas situações - que o terapeuta seja<br />
mais prudente, tentando evitar os extremos da reserva ou da ultraimplicação, criando uma<br />
relação qualificada pelo calor, pelo interesse, capacidade de resposta e uma dedicação afetiva<br />
num grau limitado com clareza e precisão (Rogers, 1942/1973).<br />
É possível perceber indícios do conceito de empatia no pensamento de Rogers, já nesta<br />
época, quando ele menciona a importância do terapeuta não censurar o paciente, com<br />
respostas críticas e reprovadoras, nem ser excessivamente simpático ou demasiado<br />
compreensivo. O terapeuta deve procurar manter uma atitude mais equilibrada, a fim de que<br />
o paciente possa se afastar dos mecanismos de defesa, sendo mais autêntico, permitindo um<br />
melhor enfrentamento da realidade e um acesso aos seus problemas de adaptação (Rogers,<br />
1942/1973).<br />
Neste momento, podemos observar traços do que viria a ser o conceito de empatia,<br />
uma vez que Rogers afirma que a não-identificação e a resposta não-reprovadora<br />
possibilitam que o cliente se sinta livre para expressar seus sentimentos contraditórios. A<br />
não-identificação é, posteriormente, enfatizada por Rogers, em sua conceituação de empatia,<br />
como sendo uma condição de "como se" estivesse no lugar do outro. Tal como a resposta<br />
empática que viria a ser o abster-se de uma resposta crítica e reprovadora. Segundo Bozarth<br />
(1998/2001), Rogers não mencionava o termo empatia, mas vários de seus comentários<br />
abriram caminho para este conceito, na medida em que se referia à conceituação de bom<br />
terapeuta, à capacidade de compreensão como se fosse ele próprio, à ausência de coerção ou<br />
pressão e ao calor da aceitação.<br />
Nesta fase, não cabe mais ao terapeuta a interpretação do comportamento do cliente.<br />
Aqui, Rogers ressalta que o cliente pode alcançar uma compreensão de si mesmo. O<br />
terapeuta colabora com esse processo criando uma atmosfera agradável e propícia, que<br />
permita que o cliente possa se sentir aceito. Os possíveis indícios das condições facilitadoras<br />
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em psicoterapia já podem ser percebidos dentro da obra Psicoterapia e consulta psicológica<br />
publicada em 1942, que traz a ideia de um ambiente propício, onde possa existir um calor da<br />
aceitação, sem preconceitos e que o terapeuta tenha uma capacidade de resposta que torne a<br />
relação possível e que tenha uma atitude mais equilibrada.<br />
Antes, a responsabilidade de interpretar o comportamento do cliente era do terapeuta,<br />
que agora deixa de assumir esse papel, para que, por meio de um calor que possibilita a<br />
expressão do cliente, de uma atmosfera psicológica facilitadora em que possa existir<br />
aceitação e o terapeuta seja uma pessoa compreensiva e não-avaliativa, o cliente possa ter<br />
uma maior compreensão de si mesmo.<br />
Surge o conceito de empatia na fase reflexiva (1950-1957)<br />
A fase reflexiva caracteriza-se pela prática do reflexo de sentimentos e corresponde à<br />
Terapia Centrada no Cliente, tendo como principal obra Terapia centrada no cliente (1951). Esta<br />
fase corresponde à passagem da "não-diretividade" à "centrada no cliente", na qual o<br />
terapeuta torna-se mais ativo - ao contrário da fase anterior que era mais passivo - e o cliente<br />
passa a ser alvo da atenção do terapeuta (Cury, 1993; Holanda, 1994; Moreira, 2010; Shlien &<br />
Zimring, 1970). Cury (1993) enfatiza que "se, anteriormente, seu papel era o de ficar fora do<br />
caminho do cliente, agora ele é levado a comprometer-se numa busca por compreensão<br />
empática do sistema de referência de outra pessoa" (p. 45).<br />
No momento em que Rogers passou a denominar sua terapia de centrada no cliente,<br />
deixando para trás a denominação não-diretiva, observa-se o desenvolvimento da noção do<br />
quadro de referência do cliente (Grant, 2010). Branco, Cavalcante e Oliveira (2008) afirmam<br />
que nesta fase Rogers passou a perceber que o terapeuta tinha condições de se tornar mais<br />
ativo na relação com o cliente, podendo adentrar em sua experiência, deixando de ser apenas<br />
um observador. Sobretudo, pelas atitudes empáticas do terapeuta.<br />
É em seu livro Terapia centrada no cliente (1951/1992), que Rogers, inicialmente, procura<br />
diferenciar duas formas de atitude, a declarativa e a empática, mostrando que o terapeuta<br />
deve estar focado nesta última, pois corresponde a uma forma de passar o conteúdo<br />
expressado de forma mais suave - diferente da primeira, que é mais rígida - tendo um<br />
caráter empático e compreensivo, podendo o cliente entender que tem mais possibilidade de<br />
se expressar. Assim, as atitudes do terapeuta não seriam de esclarecer as atitudes do cliente,<br />
mas que seria um experimentar ativo, juntamente com ele (Rogers, 1951/1992).<br />
Nos relacionamentos terapêuticos mais satisfatórios, o terapeuta tem como função<br />
assumir, da melhor maneira possível, uma estrutura de referência interna do cliente, para que<br />
possa perceber o mundo como o cliente o vê, deixando de lado todos os a priori, enquanto<br />
estiver na relação, passando algo de sua compreensão empática ao cliente (Rogers,<br />
1951/1992).<br />
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Rogers (1951/1992) refere que a conceituação dos termos compreensão e aceitação<br />
passaram a ser primordialmente considerados pelo terapeuta, uma vez que o mesmo<br />
dedicou-se ao entendimento profundo do mundo íntimo do cliente. A partir de uma maior<br />
concentração nesses conceitos, o terapeuta busca observar de maneira mais profunda o que o<br />
cliente está vivenciando, ou até mais intensamente do que o próprio cliente é apto a<br />
compreender no momento, e quando perceber a estrutura de referência interna do cliente,<br />
indicar em que medida está captando seu mundo.<br />
Com o intuito de conseguir alcançar essa meta e de tornar a relação terapeuta-cliente<br />
única, o terapeuta tem que deixar de lado o seu próprio self, ou seja, a si mesmo, para poder<br />
entrar no mundo do cliente a fim de ajudá-lo. É possível entender a relevância dessa<br />
compreensão para com o cliente na terapia, na medida em que Rogers (1951/1992) assinala<br />
que o terapeuta acaba cometendo menos erros ao deixar de tentar interpretar o que o cliente<br />
está trazendo. O terapeuta tem como objetivo, na relação terapêutica, buscar a reconstrução<br />
do campo perceptivo do cliente no momento em que ele se expressa, por meio de sua<br />
habilidade e sensibilidade. Para que a empatia possa existir na relação, o terapeuta deve estar<br />
atento, pois sem atenção ele não conseguirá compreender o que o cliente está sentindo e<br />
dessa forma não existirá uma comunicação plena.<br />
Ao discutir algumas tendências significativas no treinamento de terapeutas, Rogers se<br />
reporta à necessidade dos mesmos passarem por uma experiência terapêutica, pois a terapia<br />
pode ajudá-los a se sensibilizar em meio aos sentimentos e atitudes que o cliente vivencia,<br />
tornando-os mais empáticos em um nível mais profundo. Desta maneira, o terapeuta poderia<br />
experienciar todos os fenômenos empatic amente, a fim de que pudesse existir uma melhor<br />
compreensão do mundo do sujeito. No entanto, Rogers lembra que é impossível alcançar<br />
esse ideal.<br />
Diferentemente de suas obras anteriores, no livro Terapia centrada no cliente (1951/1992)<br />
Rogers trabalha com um conceito de terapia menos diretivo, já considerando explicitamente<br />
que empatia é uma atitude necessária durante o processo para a criação de um ambiente que<br />
facilite a compreensão do cliente de que ele é capaz de se autoatualizar. E, acaba se voltando<br />
mais para essa capacidade do homem de acreditar em si. Para Bozarth (2001), "à medida que<br />
Rogers começou a empregar o termo 'empatia', descreveu-a como o desenvolvimento, por<br />
parte do terapeuta, de um interesse e receptividade em relação ao cliente e a busca de uma<br />
compreensão profunda e não crítica" (p. 86).<br />
Rogers (1951/1992) afirma que para ser um terapeuta eficaz é necessário que se utilize<br />
um método ou uma técnica que seja adequada, ou seja, compatível com as suas atitudes<br />
pessoais. O objetivo desse orientador seria trabalhar com o cliente acreditando que ele tem<br />
condição suficiente para suportar positivamente os eventos de sua vida, que possam,<br />
potencialmente, alcançar a percepção consciente. Isso seria possível, na medida em que o<br />
cliente encontra uma situação favorável para que esse material chegue à sua consciência, e<br />
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uma demonstração considerável de aceitação e capacidade de conduzir a si mesmo por parte<br />
do terapeuta. Essa situação favorável ocorre por meio de uma relação de compreensão<br />
verdadeira, na qual se produz uma atitude empática.<br />
Isso se dá por meio da unicidade do experienciar, que Rogers menciona em seu artigo<br />
Pessoas ou ciência? uma questão filosófica (1955/2008). Neste artigo mostra que essa unicidade é<br />
como uma forma de estar junto com o cliente em seu mundo interno, numa relação<br />
verdadeira. É um experienciar único numa relação com o cliente, mas sem qualquer<br />
diagnóstico sobre o que o cliente está sentindo. É apenas compreender o cliente, por meio de<br />
uma relação verdadeira, entrando nessa relação como uma pessoa.<br />
Rogers (1955/2008) relata ter se lançado nessa relação terapêutica com uma hipótese,<br />
de que a confiança, a estima e a compreensão do mundo do cliente proporcionariam um<br />
significativo processo do vir-a-ser. Para ele, o cliente deve ser visto como pessoa dentro da<br />
relação terapeuta-cliente, pois só desta forma ele poderá enxergar a si mesmo como pessoa.<br />
Rogers <strong>continuamente</strong> lembra ao leitor de suas obras a importância da nãoidentificação,<br />
ao descrever acerca do experienciar os sentimentos do cliente sem ter qualquer<br />
pensamento ou diagnóstico, o que sugere sua preocupação em explicitar que compreender<br />
empaticamente não significa se identificar com o cliente, ideia que será retomada adiante em<br />
seus escritos.<br />
Da empatia à compreensão empática na fase experiencial (1957-1970)<br />
Na terceira fase de seu pensamento, também chamada fase de Wisconsin, Rogers tem<br />
como foco a experienciação do cliente e expressão da experienciação do terapeuta,<br />
representando, segundo Holanda (1994), um grande salto no seu trabalho, influenciado pelo<br />
conceito de experienciação de Gendlin. Segundo Tassinari (2003), Rogers "com a inspiração<br />
de Gendlin, ocupa-se em sistematizar a experiência e os processos internos que se referem à<br />
mudança na personalidade, promovendo uma mudança de paradigma (sistêmico e não mais<br />
mecanicista)" (p. 52). Esse conceito de experiência estipulado por Gendlin visava, de acordo<br />
com Boainain (1999), esclarecer o foco orientador o centrar-se do terapeuta rogeriano, sendo<br />
entendido como "o fluxo de significados sentidos, isto é, o processo de eventos interiores e<br />
pré-verbais fisicamente sentidos aos quais a pessoa pode ter acesso direto e concreto em sua<br />
experiência" (Boainain, 1999, p. 85).<br />
Segundo Holanda (1994), nesta fase existe a intenção de ajudar o cliente a utilizar<br />
plenamente sua experiência, permitindo uma congruência do selfe um desenvolvimento das<br />
relações. A autenticidade do terapeuta passa, também, a ser importante e a fazer parte da<br />
relação terapeuta-cliente (Moreira, 2010). Ou seja, Cury (1993) entende que existe aí uma<br />
bicentralidade, pois existe uma exploração de dois mundos (cliente e terapeuta) que se<br />
esforçam em interagir em benefício do cliente.<br />
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De acordo com Moreira (2001, 2007, 2010), na fase experiencial a prática clínica de<br />
Rogers se aproxima da tradição fenomenológica, na medida em que passa a focalizar a<br />
experiência intersubjetiva, mais do que apenas se focar na pessoa, ou seja, ao se focar na<br />
experiência intersubjetiva entre cliente e terapeuta, Rogers se aproxima, neste aspecto, de<br />
uma visão fenomenológica.<br />
Para Boainain (1999), quando Rogers foi para Wisconsin, em 1957, surgiram algumas<br />
tendências e inovações que configuraram uma nova e importante fase para a Terapia<br />
Centrada no Cliente, na qual houve uma aproximação do referencial existencialfenomenológico,<br />
pois nesta época Rogers era opositor das ideias behavioristas de Skinner.<br />
Em seu artigo As condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica na<br />
personalidade publicado na fase experiencial, Rogers (1957/2008) tem como preocupação<br />
estabelecer teorias acerca da psicoterapia, da personalidade e das relações interpessoais,<br />
englobando e contendo os fenômenos de sua experiência, além de definir as condições<br />
básicas para o processo de mudança construtiva na personalidade. Para ele, essa mudança só<br />
ocorreria caso houvesse a existência dessas condições por um determinado período de<br />
tempo. Essas condições seriam:<br />
1. Que duas pessoas estejam em contato psicológico;<br />
2. Que a primeira, a quem chamaremos cliente, esteja num estado de<br />
incongruência, estando vulnerável ou ansiosa;<br />
3. Que a segunda pessoa, a quem chamaremos de terapeuta, esteja<br />
congruente ou integrada na relação;<br />
4. Que o terapeuta experiencie consideração positiva incondicional pelo<br />
cliente;<br />
5. Que o terapeuta experiencie uma compreensão empática do esquema de<br />
referência interno do cliente e se esforce por comunicar esta experiência ao<br />
cliente;<br />
6. Que a comunicação ao cliente da compreensão empática do terapeuta e<br />
da consideração positiva incondicional seja efetivada, pelo menos num grau<br />
mínimo (Rogers, 1957/2008, p. 145).<br />
Segundo O'Leary (2008), a quinta condição - compreensão empática - é o coração da<br />
terapia, consistindo na arte de compreender com precisão o mundo de cada indivíduo, e o<br />
terapeuta deve experimentar, com uma exata compreensão, essa estrutura interna do cliente,<br />
esforçando-se em comunicar esta experiência.<br />
Rogers (1957/2008) compreende empatia como sendo sentir o mundo do cliente como<br />
se fosse o seu próprio mundo, mas o terapeuta, nesse momento, não pode perder a qualidade<br />
de "como se" estivesse no mundo do outro. Para Bozarth (2001), "o terapeuta deve<br />
<strong>continuamente</strong> estar consciente dos seus próprios sentimentos, como se eles fossem os<br />
sentimentos do cliente, talvez 'como eles realmente são' e não 'como se fossem'" (p. 106).<br />
Empatia consiste, portanto, em o terapeuta sentir o que o cliente está sentindo, a raiva, o<br />
medo, como se fossem seu verdadeiramente, sem ao menos sentir ou se envolver com os<br />
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sentimentos expressos pelo cliente (Rogers, 1957/2008), e comunicar essa compreensão a ele,<br />
tanto o que é claro quanto o que pode estar pouco consciente para o cliente.<br />
Importante entendermos que comunicar a compreensão ao cliente não quer dizer que<br />
seja um reflexo da fala dele, mas que é passar uma compreensão apurada permitindo um<br />
processo de resignificação do mundo interno do cliente. Bozarth (2001) alerta que respostas<br />
de "reformulação de sentimentos" não devem ser confundidas com empatia, pois Rogers<br />
salienta que essas respostas não são uma condição essencial na terapia, mas que servem de<br />
canal técnico, através da qual as condições são veiculadas.<br />
Bozarth (2001) busca esclarecer o que seria essa reformulação de sentimentos:<br />
1. A reformulação é um modo do terapeuta se tornar empático, de verificar<br />
se compreende o cliente e de lhe comunicar esta compreensão.<br />
2. [...]. A reformulação é uma maneira de o terapeuta entrar no mundo do<br />
cliente 'como se' o terapeuta fosse o cliente. A reformulação é uma técnica<br />
que pode ajudar o processo.<br />
3. A reformulação não é empatia. É um modo de ajudar o terapeuta a<br />
tornar-se mais empático.<br />
4. A empatia não é reformulação. É um processo de o terapeuta entrar no<br />
mundo do cliente 'como se' o terapeuta fosse o cliente. A reformulação é<br />
uma técnica que pode ajudar o processo (pp. 98-99).<br />
Para Bozarth (2001), Rogers deixou claro que fazer uso de técnicas seria pouco valoroso<br />
se porventura as mesmas não estivessem enraizadas nas atitudes do terapeuta, pois essas<br />
atitudes ajudam a provocar uma mudança construtiva da personalidade e do<br />
comportamento do cliente. De acordo com Rogers (1961/2008), essa mudança ocorre devido<br />
às atitudes do terapeuta, e não devido ao que ele estudou, aos seus conhecimentos e às suas<br />
técnicas, mas como ele age na relação. Estas descobertas significam, para Rogers, que a<br />
terapia é um relacionamento que desafia o terapeuta a ser a pessoa que é, e a sua afeição e<br />
compreensão empática podem ajudar na promoção de crescimento do cliente.<br />
O conceito de compreensão empática, propriamente dito, enquanto uma evolução do<br />
conceito de empatia, desenvolvido na fase experiencial, consiste em o terapeuta ser "sensível<br />
aos sentimentos e às reações pessoais que o cliente experiencia a cada momento, quando<br />
pode apreendê-los 'de dentro' tal como o paciente os vê, e quando consegue comunicar com<br />
êxito alguma coisa dessa compreensão ao paciente" (Rogers, 1961/1987, p. 66).<br />
Esse tipo de compreensão difere daquela que nós, com frequência, recorremos ao<br />
dizermos ao outro que compreendemos seu problema, que sabemos o que o levou a agir de<br />
determinada maneira. Esta seria uma compreensão do senso-comum, o que para Rogers<br />
(1961/1987) consiste naquelas compreensões que normalmente damos e recebemos, que<br />
julga do exterior. Mas quando a pessoa que ouve, compreende sem querer analisar ou julgar,<br />
proporciona o crescimento e o desabrochar do outro. Ou seja, quando o terapeuta apreende a<br />
experiência do cliente "momento a momento em seu mundo interior, como este o sente e o<br />
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vê, sem que a sua própria identidade se dissolva nesse processo de empatia, então a<br />
mudança pode ocorrer" (Rogers, 1961/1987, p. 66).<br />
No trabalho com seus clientes, Rogers procurava criar um clima e um ambiente que<br />
houvesse segurança, calor e compreensão empática. Para ele, mesmo que seja mínima, a<br />
compreensão empática é fundamental; mas, evidentemente, como afirma Rogers (1961/1987),<br />
a ajuda é muito maior quando o terapeuta é capaz de captar e formular com clareza o que<br />
experimentou do cliente. Podemos dizer que, neste sentido, o terapeuta tem a capacidade de<br />
se abandonar e de se permitir adentrar na experiência do outro a fim de compreendê-lo, não<br />
existindo barreiras que o impeça de chegar a esse objetivo, de sentir o que ele próprio e o<br />
cliente sentem no momento da relação, transmitindo esse sentimento ao cliente, transmitindo<br />
a sua compreensão empática acerca do que fora apreendido no mundo do cliente.<br />
Rogers (1961/1987) mostra que ao se lançar nessa relação a confiança e a compreensão<br />
do mundo interno do outro estimularão um significativo processo de mudança, de<br />
transformação. Ou seja, insiro-me numa relação pessoal, olhando o cliente como sujeito e não<br />
como um objeto. Para tanto,<br />
abandono-me ao caráter imediato da relação ao ponto de ser todo o meu<br />
organismo, e não simplesmente a minha consciência, que é sensível à relação<br />
e se encarrega dela. Não respondo conscientemente de uma forma planejada<br />
ou analítica, mas reajo simplesmente de uma forma não reflexiva para com o<br />
outro indivíduo, baseando-se a minha reação (embora não conscientemente)<br />
na minha sensibilidade total organísmica a essa outra pessoa. Eu vivo a<br />
relação nesta base (pp. 181-182).<br />
Diante do explanado, a empatia é compreendida como sendo o experimentar uma<br />
compreensão do mundo particular do cliente, o que justifica a evolução do conceito de<br />
empatia para compreensão empática, captando assim seu mundo particular de uma maneira<br />
"como se" tivesse sentindo seus medos, suas angústias, seus receios, enfim, do que ele<br />
expressou, sem se afetar por isso. É o movimentar-se pelo mundo do cliente, compreendendo<br />
esse mundo e comunicando ao cliente essa compreensão obtida. Esse acesso ao mundo do<br />
cliente se dá por meio dos sentimentos manifestados, que passo a passo o terapeuta escuta,<br />
parte do ponto de vista do cliente e "entra" no mundo deste. Dessa forma acurada, o cliente<br />
passa a sentir segurança na relação e a ter novas e variadas formas de se relacionar com o<br />
mundo e consigo mesmo. Portanto, a eficácia do terapeuta apresenta-se quando ele é sincero,<br />
quando aceita o cliente tal como ele é e a si mesmo dentro de um estado de acordo interno, e<br />
manifesta uma empatia total, na qual possa enfrentar o mundo do cliente a partir dos olhos<br />
deste. Rogers (1961/1987) afirma que a congruência, a aceitação e a empatia do terapeuta<br />
devem ser comunicadas com êxito ao cliente e não é suficiente apenas que o terapeuta as<br />
tenha.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/fontgallandmoreira01
Fontgalland, R. C. & Moreira, V. (2012). Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no pensamento de<br />
Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/fontgallandmoreira01<br />
A compreensão vem relacionada ao fato do cliente ser aceito pelo terapeuta e este o<br />
tratar como pessoa, acreditando que o cliente tem a capacidade de crescer e resolver seus<br />
próprios problemas. Devemos ser facilitadores dentro de um processo de "como se", com o<br />
cliente e não por ele ou sobre ele. Assim, ser empático provoca uma aceitação pelo outro,<br />
contribuindo para atitudes positivas e suscetíveis de levar a soluções (Rogers, 1961/1987).<br />
Em Conceito de pessoa em funcionamento pleno (1963/2008) Rogers presume que uma<br />
pessoa que possui uma relação intensa e extensa com a Terapia Centrada no Cliente e se essa<br />
terapia é bem sucedida, então, significa que o terapeuta é capaz de entrar numa relação<br />
pessoal com o cliente, e que essa relação se dá de forma subjetiva e intensa. À medida que<br />
isso acontece, está ocorrendo aí uma relação de pessoa para pessoa, na qual o terapeuta sente<br />
o cliente como uma pessoa, independentemente de sua condição, de seu comportamento ou<br />
de seus sentimentos, o cliente é visto como uma pessoa incondicionalmente valorosa.<br />
Na obra Psicoterapia e relações humanas (Rogers & Kinget, 1965/1977), Rogers afirma que<br />
a empatia é uma das noções relativas à fonte de conhecimento. Para ele, empatia<br />
consiste na percepção correta do ponto de referência de outra pessoa com as<br />
nuances subjetivas e os valores pessoais que lhe são inerentes. Perceber de<br />
maneira empática é perceber o mundo subjetivo do outro 'como se' fossemos<br />
essa pessoa - sem, contudo, jamais perder de vista que se trata de uma<br />
situação análoga, 'como se'. A capacidade empática implica, pois, em que,<br />
por exemplo, se sinta a dor ou o prazer do outro como ele os sente, em que<br />
se perceba sua causa como ele a percebe (isto é, em se explicar os<br />
sentimentos ou as percepções do outro como ele os explica a si mesmo), sem<br />
jamais se esquecer de que estão relacionados às experiências e percepções de<br />
outra pessoa. Se esta última condição está ausente, ou deixa de atuar, não se<br />
tratará mais de empatia, mas de identificação (p. 179, grifo do autor).<br />
É importante lembrar que a compreensão empática está relacionada às experiências e<br />
percepções de outra pessoa, não às nossas, por isso a não-identificação - preocupação já<br />
antiga de Rogers. Para Vieira e Freire (2006), esse "como se" se apresenta como uma abertura<br />
a visitação do estranho, do que não é reconhecido como nosso. Nessa visitação entramos em<br />
contato com o que é do outro, e ao experimentarmos uma compreensão empática do ponto<br />
de referência interno do cliente, temos que informar explicitamente ao cliente, ou seja,<br />
verbalmente que as estamos experienciando. Isso deve acontecer, mesmo que minimamente.<br />
No entanto, o terapeuta não deve fingir que as está vivenciando, pois ele só deve comunicar<br />
ao cliente se ele estiver realmente experimentando esses sentimentos. Isso quer dizer que, o<br />
terapeuta deve estar em eficaz estado de acordo interno para que possa experimentar os<br />
sentimentos que supõe ter de experimentar (Rogers & Kinget, 1965/1977).<br />
Ao explicar as condições do desenvolvimento de uma relação que se deteriora, Rogers<br />
demonstra que se as condições facilitadoras, de um processo terapêutico, não forem<br />
devidamente implantadas na relação, essa relação se torna negativa. Caso o cliente não esteja<br />
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sentindo uma relação empática, ele se sentirá menos confortável para expressar o que sente,<br />
se sentirá menos capaz de expressar sentimentos relativos ao eu, sua percepção será menos<br />
diferenciada, ele estará menos capacitado a perceber e a exprimir o desacordo existente entre<br />
os dados de sua experiência e a imagem que faz de si próprio, ele se tornará menos<br />
habilitado a reorganizar sua imagem (Rogers & Kinget, 1965/1977).<br />
Após vivenciar todo esse processo facilitador, proposto pelo terapeuta, o cliente viverá<br />
uma experiência ótima, conseguindo se entregar a uma exploração progressiva de<br />
pensamentos e de sentimentos porque percebeu que o terapeuta o aceitava de modo<br />
incondicional (Rogers & Kinget, 1965/1977). Essa aceitação incondicional por parte do<br />
terapeuta faz com que o cliente perceba esta disponibilidade e se sinta compreendido e<br />
respeitado enquanto pessoa. Desta forma, os sentimentos que antes não eram expressos vêm<br />
a tona, possibilitando ao cliente uma maior compreensão de suas dificuldades, de seus<br />
problemas, de seu mundo interno.<br />
Percebe-se uma ligação existente, desde o início dos escritos de Rogers, entre aceitação<br />
positiva incondicional e empatia, nos quais podemos observar que uma não pode se<br />
apresentar sem a outra, havendo assim uma espécie de complementação, pois a partir dessa<br />
consideração positiva incondicional para com o cliente é que vai existir uma possibilidade de<br />
compreensão empática. Isso é observado, quando Rogers afirma que a consideração positiva<br />
incondicional é realizada através da compreensão empática (Rogers & Kinget, 1965/1977).<br />
Bozarth (2001) enfatiza essa concepção de Rogers afirmando que para que o olhar<br />
incondicional positivo ocorra é preciso que se dê dentro de um processo de compreensão<br />
empática.<br />
As atitudes estipuladas por Rogers são inseparáveis e interdependentes. A<br />
compreensão empática é uma manifestação e um veículo de comunicação da consideração<br />
positiva incondicional. Além do que a congruência do terapeuta está completamente<br />
interligada à compreensão empática, e isto quer dizer que ao ser transparente, verdadeiro,<br />
mais intensa será a empatia do terapeuta em relação ao seu cliente.<br />
A compreensão empática como um processo na fase inter-humana ou coletiva (1970-1987)<br />
Diante de possíveis nomenclaturas para essa fase, é necessário justificar a posição de<br />
cada um dos precursores das mesmas. Moreira (2010) a nomeia como sendo Fase Coletiva,<br />
porque Rogers passou a se interessar por questões referentes às atividades de grupo e às<br />
relações humanas coletivas, que o fizeram abandonar suas atividades de terapeuta<br />
individual, assumindo uma definição mais ampla de seu trabalho, passando de Psicoterapia<br />
para Abordagem.<br />
Holanda (1994), ao repensar as fases do pensamento de Rogers, denomina essa fase de<br />
Inter-Humana baseando-se na linguagem buberiana, pois considera que "'coletiva' privilegia<br />
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demasiado uma outra dimensão da existência humana, a social, representada pelo grupo<br />
onde temos a realização desse coletivo, mas que, em geral, suprime o elemento pessoal,<br />
individual, 'justamente o elemento mais importante'" (p. 9). Além dessas nomenclaturas<br />
citadas para essa quarta fase, é importante citar ainda a ideia de Boainain (1999), que em sua<br />
descrição da Abordagem Centrada na Pessoa - ACP, mantém as denominações das três fases<br />
anteriores e quanto às duas últimas as designa como sendo a quarta fase, a Fase dos Grupos<br />
de Encontro (anos 60 a meados de 70) e a quinta fase, a Fase dos Grandes Grupos (de meados<br />
dos anos 70 em diante).<br />
A Fase dos "Grupos de Encontro" corresponde, segundo Boainain (1999), ao momento<br />
em que Rogers praticamente abandona suas atividades individuais, tais como, terapeuta,<br />
pesquisador e professor universitário, passando a se tornar um escritor, um conferencista e<br />
um facilitador de grupos.<br />
Na Fase dos "Trabalhos de Grandes Grupos", proposta por Boainain (1999), três<br />
aspectos centrais merecem ser destacados, pois caracterizam a última década da vida de<br />
Rogers. O primeiro destes aspectos corresponde ao surgimento da modalidade de trabalho<br />
grupal, denominado de trabalho com grandes grupos, tais como as comunidades de<br />
aprendizagem, encontros de aprendizagem comunitária, workshops comunitários, ou outras<br />
grandes reuniões de pessoas. O segundo aspecto refere-se à conscientização das<br />
potencialidades políticas de Rogers desenvolvido pelo seu pensamento e sua prática. O<br />
terceiro consiste na aproximação, que vem crescendo, com a perspectiva místico-espiritual,<br />
que se caracteriza, atualmente, como sendo o movimento transpessoal em psicologia..<br />
Independentemente da denominação dada a esta fase, o fato é que nos seus últimos<br />
anos de vida, Rogers estende sua visão para mais do que apenas workshops; estende para<br />
visões mais universais, para questões relacionadas a desacordos internacionais propondo<br />
para seus membros e parlamentares que sejam adeptos do ouvir, da compreensão e do<br />
respeito mútuo, e volta-se para questões educacionais, familiares, organizacionais e tudo<br />
quanto exista uma visão universal de humanidade, respeito e coletividade.<br />
Para Holanda (1994), esta fase correspondeu à transcendência de valores e ideias, na<br />
qual Rogers demonstrou preocupação com o futuro da humanidade e do mundo. Essa seria,<br />
então, segundo Holanda, uma fase mística e holística de Rogers, voltada para a<br />
transcendência da existência humana. E, de acordo com Boainain (1999), corresponde,<br />
também, à perspectiva místico-espiritual.<br />
Nesta fase, Rogers assume a denominação de Abordagem Centrada na Pessoa, pois<br />
não diz respeito apenas à relação entre cliente e terapeuta na psicoterapia, mas a toda e<br />
qualquer relação de desenvolvimento humano.<br />
E é nesta fase que, dentre os vários escritos de Rogers sobre empatia e compreensão<br />
empática, Rogers escreveu seu famoso artigo Uma maneira negligenciada de ser: a maneira<br />
empática (1975), no qual afirma a necessidade de dar uma maior importância à resposta<br />
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empática e mirar a empatia com novos olhos, passando a considerá-la como talvez um fator<br />
mais relevante numa relação e como sendo um dos fatores mais importantes para a<br />
promoção de mudanças e aprendizagem (Rogers, 1975/ 1977b). Assim, Rogers defende a tese<br />
de se reexaminar uma maneira especial de ser, a maneira empática. Para ele, é uma maneira<br />
sutil e poderosa no funcionamento pessoal, mas é raramente encontrada integralmente numa<br />
relação interpessoal.<br />
Rogers havia dado inúmeras definições de empatia até então, mas necessitava formular<br />
uma definição mais atual, e para tanto lançou mão do conceito de vivência de Gendlin para<br />
nortear suas ideias mais recentes sobre a empatia.<br />
Para Rogers, Gendlin entende que existe no sujeito um fluxo de vivência, que o<br />
indivíduo se reporta inúmeras vezes e o usa como ponto de referência para encontrar o<br />
significado de sua existência. E a empatia, em Gendlin, é justamente "ressaltar com<br />
sensibilidade o 'significado sentido' que o cliente está vivenciando num determinado<br />
momento, a fim de ajudá-lo a focalizar este significado até chegar à sua vivência plena e<br />
livre" (Rogers, 1975/1977b, p. 72).<br />
Logo após essa retaguarda conceitual, Rogers passa então a formular uma definição<br />
mais atual de empatia, a qual não é mais, definitivamente, vista como um estado, mas como<br />
um processo. Como nos esclarece Amatuzzi (1995), esse processo não é um estado, mas um<br />
movimento, pois "quando o processo se instaura é a própria estrutura que se questiona, se<br />
flexibiliza, se transforma" (p. 65). Diante dessa nova maneira de compreender a empatia,<br />
surgiu uma conceituação mais atual estabelecida por Rogers (1974/1977a), cuja empatia<br />
significa penetrar no mundo perceptual do outro e sentir-se totalmente a<br />
vontade dentro dele. Requer sensibilidade constante para com as mudanças<br />
que se verificam nesta pessoa em relação aos significados que ela percebe, ao<br />
medo, à raiva, à ternura, à confusão ou ao que quer que ele/ela esteja<br />
vivenciando. Significa viver temporariamente sua vida, mover-se<br />
delicadamente dentro dela sem julgar, perceber os significados que ele/ela<br />
quase não percebe, tudo isto sem tentar revelar sentimentos dos quais a<br />
pessoa não tem consciência, pois isto poderia ser muito ameaçador. Implica<br />
em transmitir a maneira como você sente o mundo dele/dela à medida que<br />
examina sem viés e sem medo os aspectos que a pessoa teme. Significa<br />
frequentemente avaliar com ele/ela a precisão do que sentimos e nos<br />
guiarmos pelas respostas obtidas. Passamos a ser um companheiro confiante<br />
dessa pessoa em seu mundo interior. Mostrando os possíveis significados<br />
presentes no fluxo de suas vivências, ajudamos a pessoa a focalizar esta<br />
modalidade útil de ponto de referência, a vivenciar os significados de forma<br />
mais plena e a progredir nesta vivência. Estar com o outro desta maneira<br />
significa deixar de lado, neste momento, nossos próprios pontos de vista e<br />
valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos; num certo<br />
sentido, significa pôr de lado nosso próprio eu (p.73).<br />
Essa definição foi analisada por Freire (2000), que percebeu que Rogers engloba três<br />
facetas do modo de ser empático. Designou-as, portanto, como sendo "experiência empática",<br />
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"compreensão empática" e "reflexo de sentimentos". Para esta autora, a primeira faceta diz<br />
respeito à maneira de estar na relação e a segunda se refere ao conhecimento dos significados<br />
e dos sentimentos que o outro está experienciando na relação. E o reflexo de sentimentos,<br />
apresenta-se como método ou uma maneira de se comunicar com o cliente (Freire, 2000).<br />
Por mais que aparente ser sutil e suave, ser empático é algo complexo, pois exige muita<br />
doação, disponibilidade e aprendizado. Rogers (1974/1977a) nos mostra que muitas<br />
pesquisas demonstraram o quanto existe uma correlação entre a empatia transmitida pelo<br />
terapeuta, a autoexploração do paciente e as mudanças que ocorrem no cliente. Para tanto,<br />
faz-se necessário ouvir o cliente de forma interessada e não-avaliativa. Isso é um fator muito<br />
poderoso dentro do processo psicoterapêutico, pois se estabelece uma alta sintonia entre<br />
ambos. Nesse momento, o cliente desenvolve, a partir da compreensão, sua identidade. A<br />
empatia confirma isso, de que existimos como pessoa, que possuímos uma identidade, valor<br />
e unicidade. Ou seja, o cliente passa a perceber um novo aspecto de si mesmo. Daí em diante,<br />
"o comportamento modifica-se no sentido de corresponder ao self que acaba de ser<br />
percebido" (p. 83). Trata-se de pro ver, por meio da empatia, a aprendizagem do respeito a si<br />
mesmo, ao seu mundo interno, e entrar em contato com uma variedade maior de suas<br />
vivências, permitindo seu fluxo normal. Isto quer dizer que a pessoa passa a ser promotora<br />
de seu crescimento.<br />
Na relação terapeuta-cliente, ser compreendido proporciona que o cliente tome posse<br />
de si mesmo; e nas relações grupais, permite que os sentimentos sejam expressos, esclarecidos<br />
e entendidos pelos participantes dos grupos. A expressão do sentimento se dá por meio de<br />
uma comunicação aberta, na qual as atitudes e sentimentos são levados em consideração não<br />
importando a intensidade deles (Rogers, 1977/1986). "É evidente que as atitudes facilitadoras<br />
podem criar uma atmosfera onde seja possível uma expressão aberta. Expressão aberta, neste<br />
tipo de clima, leva à comunicação. Melhor comunicação leva, frequentemente, à compreensão<br />
e compreensão derruba muitas das antigas barreiras" (p. 131).<br />
Rogers orgulhava-se dos membros de seus grupos quando estes mostravam<br />
preocupação e tinham um interesse mais amplo uns pelos outros. Para ele, quando existia<br />
um clima facilitador, desenvolvia-se um comportamento responsável tanto entre jovens,<br />
quanto nos idosos. Esse interesse significa que o outro, ao qual demonstro essa abertura,<br />
precisa simplesmente ser ouvido. Seus sentimentos, sua raiva devem ser levados a sério e<br />
compreendidos com empatia.<br />
Em Um jeito de ser (1980/2007), Rogers destaca a importância de um ouvir atento as<br />
experiências e as perspectivas pessoais do cliente e das pessoas. Deve ser uma escuta atenta e<br />
não-avaliativa, pois é necessário que a pessoa não fique julgando ou tentando assumir a<br />
responsabilidade pela outra, é preciso ouvir de forma empática, sensível e concentrada.<br />
Trata-se de escutar os pensamentos, o significado pessoal dos sentimentos, do que está por<br />
trás da consciência, mesmo que seja um grito humano profundo. Esse ouvir o significado real<br />
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existe de três formas: o terapeuta ouvir a si mesmo, o terapeuta ouvir ao cliente e o cliente<br />
ouvir a si mesmo. Esse ouvir provoca muitas mudanças significativas, tanto em terapia<br />
individual, quanto nas experiências intensivas de grupo, pois os indivíduos passam,<br />
gradualmente, a ouvir uns aos outros.<br />
Quando as pessoas são aceitas e consideradas, elas acabam por considerar mais os seus<br />
sentimentos. Ao serem ouvidas de modo empático as pessoas podem, igualmente, ouvir de<br />
forma mais detalhada o fluxo de suas experiências internas. Dessa forma, o cliente torna-se<br />
mais congruente com suas próprias experiências, torna-se assim propiciador do seu próprio<br />
crescimento (Rogers, 1980/2007).<br />
O conceito de empatia na fase pós-rogeriana (1987 - Atual)<br />
Moreira (2009a, 2010) nomeou de fase pós-rogeriana a produção da Abordagem<br />
Centrada na Pessoa por parte de outros autores após a morte de Rogers, compreendendo o<br />
período de 1987 até a atualidade. Durante esses últimos vinte e cinco anos, em vários lugares<br />
do mundo, a Abordagem Centrada na Pessoa vem se desenvolvendo por meio de várias<br />
vertentes (clássica, experiencial, existencial-fenomenológica, transcendental, analítica, entre<br />
outras) e a partir das diferentes fases do pensamento de Rogers (Moreira, 2010).<br />
É importante ressaltar que, assim como existem inúmeras vertentes contemporâneas<br />
baseadas no pensamento de Carl Rogers, a partir de diferentes fases de seu pensamento, mas<br />
que seguem seu próprio caminho, o conceito de empatia também tem sido retomado pelos<br />
vários autores das várias vertentes teóricas contemporâneas de seu pensamento. A empatia,<br />
como as outras atitudes facilitadoras, continua sendo fundamental nestas várias vertentes<br />
contemporâneas que partem do pensamento rogeriano (Moreira, 2010). Algumas dessas<br />
conceituações merecem ser citadas para ilustrar uma melhor compreensão dos vários<br />
desenvolvimentos pós-rogerianos.<br />
Bozarth (2001) analisa como o conceito de empatia evoluiu na Teoria Centrada no<br />
Cliente. Para ele, Rogers considerava a empatia como sendo uma noção essencial terapêutica<br />
e a tornou a chave da mudança no processo terapêutico. A essência da terapia rogeriana seria<br />
fundamentada, então, na empatia não-diretiva, que seria expressa em termos de atitude do<br />
terapeuta. É por meio da compreensão empática que o olhar incondicionalmente positivo é<br />
transmitido ao cliente, dentro de um contexto de congruência.<br />
Bozarth (2001) finaliza sua investigação, tratando da empatia na estrutura básica da<br />
Terapia Centrada no Cliente, da mesma forma que Rogers a considerava. Assim, ela é um<br />
conceito terapêutico fundamental, uma atitude e uma experienciação, um processo<br />
interpessoal, e faz parte de uma atitude global na qual existe a inter-relação entre as atitudes<br />
facilitadoras.<br />
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Já Cavalcante (2008), mostra-nos três níveis nos quais a empatia é compreendida por<br />
Maria Bowen: o nível de relacionamento; o nível de energia (cujo trabalho terapêutico<br />
acontece de duas formas: pela escuta ativa e por meios habilidosos); e o nível da unidade. O<br />
primeiro é compreendido como sendo aquele que inicialmente refere-se ao conteúdo e aos<br />
sentimentos que surgem na relação terapeuta-cliente. E a principal função do terapeuta seria<br />
"criar um espaço de confiança no qual os clientes possam explorar e manifestar diferentes<br />
partes de si mesmos e experienciar as suas próprias energias curativas, em seus tempos e<br />
ritmos próprios" (Cavalcante, 2008, p. 25). Neste nível, o trabalho terapêutico tem como<br />
material de trabalho o que o cliente traz à tona em terapia, as atitudes do terapeuta e a<br />
relação existente entre ambos (Cavalcante, 2008).<br />
O nível da energia mostra-nos um poder que pode passar despercebido ou<br />
subestimado, como é o caso da escuta ativa, pois uma escuta de qualidade pode ter um<br />
poder curativo não sendo necessário, muitas vezes, que o psicoterapeuta faça ou diga<br />
alguma coisa (Cavalcante, 2008). Os meios habilidosos são aqueles que "depende do nível de<br />
desenvolvimento espiritual do terapeuta. Quando o que ele utiliza em terapia não é somente<br />
uma técnica isolada, mas algo que se tornou intrinsecamente parte experiencial da sua vida"<br />
(Cavalcante, 2008, p. 26, grifo do autor), por exemplo, os exercícios de visualização de<br />
sonhos, meditações, entre outros que possuam o objetivo de proporcionar e facilitar ao<br />
cliente o contato com seus recursos internos (Cavalcante, 2008).<br />
No nível da unidade, terapeuta e cliente passam a compartilhar, como um só, do<br />
mesmo mundo. A empatia passa a ser entendida como sendo uma ferramenta a ser utilizada<br />
dentro de uma perspectiva de trabalho com o cliente, dentro de uma realidade<br />
compartilhada, transcendendo cada um dos envolvidos na relação, de forma individual<br />
(Cavalcante, 2008).<br />
O referido autor em seu texto, A empatia formativa é!, tem a intenção de ampliar a noção<br />
de empatia no nível da unidade. Para tanto, utiliza-se do pensamento de Maria Bowen, a<br />
respeito da unidade: "para se operar no nível da unidade, a conexão entre os terapeutas e os<br />
clientes tem que estar presente, mesmo sendo transcendida para além da relação, incluindo<br />
uma energia que ultrapassa a mente consciente" (Bowen, 1992 citado por Cavalcante, 2008, p.<br />
59). A esse tipo de fluxo terapêutico, Cavalcante denomina de Empatia Formativa.<br />
Essa Empatia Formativa "brota do cosmo, que vive em nós e nos convida a nele<br />
mergulhar onde ele e eu somos um" (Cavalcante, 2008, p. 60, grifo do autor). Não se trata<br />
apenas de adentrar na realidade do outro como se fosse a nossa, é a empatia que faz nosso<br />
espírito nos mover a dizer algo que brota, simultaneamente, de dentro e de fora (Cavalcante,<br />
2008).<br />
Cavalcante (2008) afirma que para Maria Bowen é no nível da unidade que a intuição<br />
está relacionada com um elevado grau de empatia. Ele cita textualmente uma carta aberta de<br />
Bowen (sobre o que Rogers lhe escrevera), onde esta afirma que "a intuição é uma forma<br />
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elevada de empatia, e eu concordo com ele que ela somente acontece em momentos especiais<br />
em terapia e que, quando acontece, traz a ela uma qualidade poderosa de cura" (Bowen, 1991,<br />
citado por Cavalcante, 2008, p. 61, grifo do autor).<br />
Cavalcante e Bowen consideram a Empatia Formativa como uma expressão da mística<br />
da ACP, referindo-se o primeiro autor à dimensão mística e espiritual. Essa dimensão,<br />
segundo Cavalcante, foi subestimada por Rogers e outros autores da ACP.<br />
Boainain (1999) já concordava com essa questão da intuição, para ele a "intuição<br />
extraordinária revelada em momentos de excelência terapêutica associados à alteração<br />
ampliadora da consciência descrita por Rogers tem sido algumas vezes considerada, na<br />
literatura da ACP, como uma forma particularmente profunda e potente da habitual atitude<br />
rogeriana da empatia" (p. 204).<br />
Já em outra vertente, a humanista-fenomenológica, retomamos o conceito de empatia a<br />
partir do pensamento de Rogers, quando este a compreende como sendo uma maneira de<br />
penetrar no mundo perceptual do outro e captar com precisão seus sentimentos e<br />
significados pessoais, numa condição de "como se" e comunicar essa compreensão ao<br />
cliente. Moreira (2009b) enfatiza essa posição acrescentando que ser empático possibilita ao<br />
terapeuta além de entrar no mundo do cliente, se mover na companhia do mesmo, em busca<br />
de compreender sua experiência vivida.<br />
Para Vanaerschot (1990), o terapeuta quando é empático entra em contato com as<br />
partes do mundo fenomenológico do cliente, e é por meio da escuta empática que o<br />
terapeuta se familiariza com esse mundo fenomenológico. Por isso, ainda de acordo com<br />
Vanaerschot (1990), o terapeuta pode ter a sensação de que está em fusão com o cliente, mas<br />
essa sensação não implica na perda da condição de "como se". Isso é importante, pois o<br />
terapeuta tem que estar ciente de que o que está experimentando naquele momento vem e<br />
pertence ao cliente e que não é dele.<br />
Nesta vertente, trata-se, "em primeira instância, de buscar o significado da experiência<br />
vivida, ou seja, compreender o Lebenswelt, o mundo vivido" (Moreira, 2009b, p. 51, grifo do<br />
autor). Essa compreensão é captada em sua totalidade, pois se dá a partir do entrelaçamento<br />
que ocorre entre as experiências objetivas e subjetivas. Trata-se de compreender o indivíduo<br />
tal como ele é, de acordo com suas experiências: "Quando, como psicoterapeuta, busco<br />
compreender o significado do Lebenswelt, busco captar esta mistura do vivido, que é,<br />
simultaneamente, tanto subjetivo como objetivo, tanto consciente como inconsciente, tanto<br />
individual como social e, portanto, ambíguo" (Moreira, 2009b, p. 52, grifo do autor).<br />
Dentro do processo psicoterapêutico, existe um entrelaçamento entre os lebenswelten do<br />
cliente e do terapeuta. Neste entrelaçar que se estabelece, o psicoterapeuta caminha com seu<br />
cliente de mãos dadas no mundo vivido dele, mas numa condição de "como se", sem se<br />
separar de seu lebenswelt. E isso é possível por meio da empatia (Moreira, 2009b).<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Fontgalland, R. C. & Moreira, V. (2012). Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no pensamento de<br />
Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de ^<br />
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É por meio da empatia que se compreende os significados do sofrimento do cliente, e<br />
essa compreensão somente é possível quando o cliente aceita receber o psicoterapeuta em<br />
seu mundo vivido. Esse sofrimento pode ser compartilhado com o psicoterapeuta, e este o<br />
compreende como um facilitador empático. Desta forma, ocorre uma possibilidade de<br />
resignificação do sofrimento pelo cliente.<br />
Por meio da redução fenomenológica, o terapeuta pode colocar suas opiniões acerca do<br />
cliente em suspenso, para compreender o mundo do cliente na perspectiva deste e deixá-lo<br />
percorrer seu caminho, por mais que essa redução não seja completa (Moreira, 2009b).<br />
Vanaerschot (1990) afirma que o terapeuta deve escutar o cliente e estar comprometido com<br />
o que ele está dizendo, praticando a redução fenomenológica. Neste sentido, reduzir<br />
fenomenologicamente consiste em o terapeuta deixar de lado seu conhecimento teórico,<br />
opiniões e expectativas, além de suspender a sua própria estruturação, organização,<br />
conhecimentos, entre outros para penetrar no mundo do cliente e entrar em um processo de<br />
profunda compreensão.<br />
Enfatiza Moreira (2009b), que com o decorrer do tempo o cliente passa a conhecer<br />
melhor seu Lebenswelt, passando a identificar os melhores caminhos, seus limites e suas<br />
potencialidades. Além disso, "na medida em que aprende sobre seu Lebenswelt, o cliente<br />
aprende sobre os significados de sua experiência vivida, tanto os significados negativos<br />
como os positivos, tanto sobre os seus ganhos como sobre suas perdas" (Moreira, 2009b, p.<br />
56, grifo do autor).<br />
Podemos entender que, no enfoque humanista-fenomenológico a compreensão<br />
empática é a capacidade de penetrar no mundo vivido do cliente, por meio da redução<br />
fenomenológica, e aprender, juntamente com o cliente, sobre sua experiência vivida.<br />
Estes desenvolvimentos teóricos mais recentes sobre a empatia, que fazem parte da<br />
fase pós-rogeriana, ilustram aqui no Brasil a preocupação dos autores em pensar e repensar a<br />
compreensão empática enquanto um recurso precioso na facilitação do crescimento do outro,<br />
nos mais distintos desdobramentos teóricos do pensamento de Carl Rogers (Moreira, 2010;<br />
Cavalcante, 2008; Bowen, 1987).<br />
Considerações Finais<br />
O conceito de empatia evoluiu de apenas um estado para um processo, sendo mais do<br />
que apenas um conceito, mas uma atitude fundamental, uma compreensão profunda,<br />
verdadeira e sem julgamentos, por meio de um ver e ouvir verdadeiros, proporcionando<br />
todo um ambiente ideal de acolhimento e de facilitação para que o cliente se sinta<br />
compreendido e caminhe em prol do crescimento e amadurecimento de sua personalidade.<br />
Para tanto, é fundamental que o terapeuta esteja em estado de acordo interno para<br />
proporcionar todo esse ambiente ideal ao seu cliente, pois este está ali confiando na<br />
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
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Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de<br />
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possibilidade de crescer como pessoa, confiando na integridade e disponibilidade de<br />
facilitação do terapeuta. Ou seja, o terapeuta é um facilitador desse processo, buscando em<br />
sua autenticidade, em sua congruência, subsídios para uma maior consideração positiva<br />
incondicional e uma compreensão empática mais adequada a cada situação dos fenômenos<br />
emergentes.<br />
Este artigo mostra que este conceito fundamental surge e ganha cada vez mais espaço<br />
no pensamento de Carl Rogers, passando a ser entendido como um processo. Compreender<br />
empaticamente na psicoterapia, nos grupos ou nas várias situações clínicas ou de<br />
crescimento pessoal é um processo que exige um constante esforço por parte da pessoa. Este<br />
conceito, ainda que com desenvolvimentos teóricos recentes, segundo as várias vertentes<br />
contemporâneas do pensamento rogeriano, foi, sem dúvida, uma das mais geniais<br />
compreensões e desenvolvimentos de Carl Rogers em sua busca de facilitar e compreender o<br />
outro no sentido de seu amadurecimento e crescimento, e merece muito mais pesquisas que<br />
contribuam para a compreensão e incrementação de seu potencial facilitador.<br />
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Nota sobre as autoras<br />
Rebeca Cavalcante Fontgalland - Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade de<br />
Fortaleza - UNIFOR. Email: rebecavalcante@gmail.com<br />
Virginia Moreira - Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da<br />
Universidade de Fortaleza, onde coordena o APHETO - Laboratório de Psicopatologia e<br />
Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica. É Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-<br />
SP, com Pós-Doutorado em Antropologia Médica por Harvard University. É membro da<br />
World Association of Person Centered and Experiential Psychotherapy e da Associação<br />
Universitária de Pesquisadores em Psicopatologia Fundamental. Endereço Institucional:<br />
Universidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Washington<br />
Soares 1321 (Bairro Edson Queiroz). CEP 60811-905. Fortaleza/CE, Brasil. E-mail:<br />
virginiamoreira@unifor.br<br />
Data de recebimento: 13/04/2012<br />
Data de aceite: 20/08/2012<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
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Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das<br />
paixões<br />
Psychopathology and Client Centered Therapy: for a clinic of the passions<br />
Emanuel Meireles Vieira<br />
Universidade Federal do Pará<br />
José Célio Freire<br />
Universidade Federal do Ceará<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
A psicopatologia é tema central na clínica psicológica. Tentativas de definições de<br />
normalidade e patologia estão presentes nas teorias e engendram práticas clínicas<br />
diferenciadas. O objetivo deste trabalho é discutir psicopatologia na Terapia Centrada no<br />
Cliente, através da noção de pessoa em pleno funcionamento, de Carl Rogers. Questionase<br />
esta noção, baseado na ética da alteridade radical, de Emmanuel Lévinas, reafirmando<br />
o pathos como paixão e reconhecendo a necessidade de a psicoterapia centrada na pessoa<br />
escutar o radicalmente Outro. Aponta-se, finalmente, a desconstrução da ideia de pessoa<br />
em pleno funcionamento, por esta desconsiderar a diferença do Outro, numa concepção<br />
totalizante da subjetividade.<br />
Palavras-chave: alteridade; psicopatologia; terapia centrada no cliente<br />
Abstract<br />
Psychopathology is the central theme on clinical psychology. Endeavors for statements of<br />
normality and pathology are presented in the theories and engender different clinical<br />
practices. The aim of this work is to discuss psychopathology on Client Centered Therapy<br />
through the notion of person in fully functioning by Carl Rogers. Questions are made,<br />
based on the ethics of radical alterity by Emmanuel Lévinas, reaffirming the pathos as<br />
passion and recognizing the necessity of the person centered psychotherapy to be open to<br />
listen to the radically Other. Finally, the desconstruction of the idea of fully functioning<br />
person is pointed, once it disregards the difference of the Other, in a whole conception of<br />
subjectivity.<br />
Keywords: alterity; psychopathology; client centered therapy<br />
Introdução<br />
A psicopatologia atravessa toda a história dos saberes psicológico e psiquiátrico. As<br />
produções de discurso sobre esse tema, ao longo da história (Pessotti, 1999), nos mostram<br />
quão diversos são os modos de compreensão do fenômeno psicopatológico. Tal diversidade<br />
é, em todas variedades teóricas destes saberes, marcada por uma discussão cara a<br />
Canguilhem (1943/2002): o que é normal e o que é patológico? Os vários saberes "psi" e suas<br />
diversas variações se depararam com essa pergunta e ofereceram variadas respostas.<br />
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Entre as diversas correntes em psicologia que tiveram que lidar com a questão está a<br />
Terapia Centrada no Cliente (TCC), desenvolvida por Carl Rogers. Este sempre se furtou a<br />
definir aquilo que seria normal ou patológico, em sua teoria psicológica. Segundo o aludido<br />
autor, o psicodiagnóstico seria, inclusive, perda de tempo (Evans, 1979), e, em seu<br />
desenvolvimento, desconsideraria a pessoa em terapia, ou seja, poder-se-ia aprisioná-la num<br />
determinado diagnóstico e desconsiderar sua singularidade, ou, nos dizeres rogerianos,<br />
deixar-se-ia de vê-la como uma pessoa.<br />
Apesar de seu desejo e esforço em não criar, nem se utilizar de categorias<br />
psicopatológicas, Rogers não consegue fugir dessa questão, principalmente por suas<br />
concepções de pessoa em pleno funcionamento (Rogers, 1978) e de tendência atualizante<br />
(Rogers & Wood, 1978).<br />
Baseado nas ideias de Berlinck (1997), Freire (2000), Moreira (2002, 2007) e Vieira e<br />
Freire (2006), este trabalho visa a questionar o lugar desses conceitos na concepção do<br />
patológico na terapia centrada na pessoa e propor a prática psicoterápica, não como uma<br />
ferramenta ortopédica (Berlinck, 1997; Freire, 2000), mas como escuta do pathos - aqui<br />
compreendido como paixão, desmesura. Assim, situa-se numa perspectiva crítica do modelo<br />
de saúde mental apresentado por Rogers, e visualiza novas possibilidades para a<br />
compreensão do patológico na TCC.<br />
Considerações sobre o patológico na TCC<br />
Rogers produziu bastante acerca do processo terapêutico. Especificamente, pesquisou,<br />
como ninguém havia feito até então, o fenômeno da mudança da personalidade envolvido<br />
nesse processo (Rogers, 2001), a ponto de conseguir descrever aquilo que denominou<br />
condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica da personalidade (Rogers,<br />
1994).<br />
A definição de categorias psicopatológicas, contudo, é algo que passa ao largo de toda<br />
a produção rogeriana. Em diálogo com Buber, por exemplo, ocorrido em 1959 e só<br />
recentemente traduzido e publicado em português, Rogers explicita sua posição a respeito<br />
do estabelecimento de categorias diagnósticas, quando, questionado por Buber sobre seu<br />
relacionamento em terapia com pessoas doentes, afirma:<br />
Sinto que se, do meu ponto de vista, esta for uma pessoa doente, então, eu<br />
não o ajudarei tanto quanto eu poderia. Sinto que essa é uma pessoa. Sim,<br />
outros podem chamá-lo de doente, ou se eu olhar para ele de um ponto de<br />
vista objetivo, então eu poderia concordar, também, "Sim, ele está doente."<br />
Mas ao entrar em uma relação, me parece que, se estou olhando para isso<br />
como "eu sou uma pessoa relativamente bem e esta é uma pessoa doente [...]<br />
não servirá de nada." (Rogers & Buber, 2008, p. 236).<br />
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Rogers responde a Buber, como se o fato de considerar o outro como uma pessoa<br />
resolvesse o imbróglio que envolve a questão. Não há dúvida de que a consideração positiva<br />
incondicional, a empatia e a genuinidade são elementos cruciais para o bom andamento do<br />
processo terapêutico. Contudo, conforme Moreira (2007) nos mostra, a noção de pessoa -<br />
implicada com as atitudes do terapeuta diante do indivíduo em terapia - traz diversos<br />
problemas para o pensamento rogeriano, a se destacar a concepção individualista de pessoaindivíduo,<br />
a dicotomia dentro-fora, o não-reconhecimento dos múltiplos contornos que<br />
compõem a subjetividade e uma liberdade meramente subjetiva, descolada das condições<br />
socioculturais.<br />
Além disso, Rogers (1978) define uma pessoa em pleno funcionamento, a partir do<br />
seguinte questionamento: "qual (...) o ponto final ótimo da psicoterapia, o ponto de maior<br />
crescimento psicológico possível?" (p. 264). Esse conceito não se foca na patologia, e<br />
apresenta uma perspectiva do potencial do cliente, que seria caracterizado, após um processo<br />
psicoterápico bem-sucedido, pelos seguintes atributos: abertura à experiência, vivência de<br />
modo existencial (vivendo cada momento como único) e confiança no organismo.<br />
De acordo com a descrição acima, podemos perceber que se trata de um modo de viver<br />
cujos fundamentos repousam sobre o conceito fundamental da TCC, qual seja, o de<br />
tendência atualizante, corolário do conceito de autorrealização de Kurt Goldstein, em sua<br />
teoria Organísmica. A presença dessa tendência em todos os seres humanos significa que "o<br />
homem tem uma tendência inata para desenvolver todas as suas capacidades destinadas a<br />
manter ou a melhorar seu organismo - a pessoa total, mente e corpo. Esse é o único<br />
postulado básico da terapia centrada no cliente" (Rogers & Wood, 1978, p. 194-195). Os seres<br />
vivos, portanto, segundo tal conceito, tenderiam sempre a agir em função de sua preservação<br />
e crescimento.<br />
Rogers salienta que a ciência deu muita atenção aos processos de autodestruição dos<br />
seres vivos (a entropia - nível de desorganização inerente aos sistemas), e não se focou na<br />
sintropia, uma "tendência sempre atuante em direção a uma ordem crescente e a uma<br />
complexidade inter-relacionada, visível tanto no nível inorgânico quanto no orgânico"<br />
(Rogers, 1983, p. 45). A ênfase rogeriana, decididamente, é na possibilidade de<br />
desenvolvimento da tendência atualizante, com base em uma visão otimista e, por vezes,<br />
ingênua, do ser humano (Moreira, 2001).<br />
Na pessoa em pleno funcionamento, pois, todas as escolhas do indivíduo teriam como<br />
parâmetro a sabedoria organísmica (Rogers & Kinget, 1977) do indivíduo, isto é, levaria em<br />
conta aquilo que sente no momento, e não o que as pessoas significativas esperariam que<br />
sentisse ou fizesse. A conformação entre o self (imagem que indivíduo constrói acerca de si<br />
mesmo) e o organismo resultaria numa fronteira cada vez mais fluida e menos nítida entre<br />
eles.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/vieirafreire01
Vieira, E. M. & Freira, J. C. (2012). Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das paixões.<br />
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É a imagem dessa pessoa que Rogers (2001) transmite, quando descreve as etapas do<br />
processo terapêutico. Divididas em sete, essas etapas iriam de uma não-comunicação de<br />
aspectos pessoais do indivíduo à fluidez da vivência imediata de um sentimento antes não<br />
reconhecido pelo indivíduo, dada a cisão entre seu organismo (instância pré-reflexiva) e seu<br />
self. Para Rogers (2001), "nas novas vivências imediatas que ocorrem nesses momentos, os<br />
sentimentos e os conhecimentos interpenetram-se, o eu está subjetivamente presente na<br />
experiência, a vontade é (...) de um equilíbrio harmonioso na direção organísmica" (p. 181).<br />
Aplicando raciocínio inverso ao desenvolvido por Rogers, podemos perceber o que não<br />
seria saudável a partir de uma perspectiva centrada na pessoa, e logo vemos que aquele que<br />
se encontra na escala um dos sete níveis do processo psicoterapêutico estaria nessa condição.<br />
Ou seja, não conseguir estabelecer uma boa comunicação entre o self e o organismo para a<br />
atualização de possibilidades é algo característico de alguém que desenvolveu algum tipo de<br />
patologia.<br />
Rogers (1994), inclusive, coloca como uma das condições necessárias e suficientes para<br />
a mudança da personalidade a necessidade de que o cliente esteja em estado de desacordo<br />
interno. Este desacordo ocorre, segundo a teoria rogeriana da personalidade (Rogers, 1975),<br />
por um desvirtuamento da tendência autorreguladora do organismo. A necessidade de<br />
manutenção do selfpassa a concorrer com a do organismo, de modo que os comportamentos<br />
passam a ser confusos, sem a clareza da real necessidade sentida pelo indivíduo.<br />
Compreensões dos sentidos do psicopatológico<br />
Conforme Pessotti (1999), em A loucura e as épocas, a psicopatologia é uma invenção<br />
recente que encontra suas referências históricas na apropriação do fenômeno da loucura pela<br />
ciência médica. A princípio, faziam parte dos asilos todos aqueles que não se encaixavam na<br />
sociedade, não havendo necessidade de comprovação clínica de seu estado "patológico".<br />
Patológico, portanto, seria aquilo que foge às normas sociais, aquilo que, não<br />
encontrando abrigo na sociedade, era depositado em asilos, sem uma clara distinção entre<br />
seus habitantes. O patológico, nessa concepção, significa sofrimento, padecimento,<br />
adoecimento. Quem sofre de uma patologia deve ser curado.<br />
Berlinck (1997), ancorado no referencial psicanalítico, tece uma crítica ao modo<br />
tradicional (curativo) de compreensão da psicopatologia, apresentando o pathos não como<br />
doença, mas como paixão, excesso, desmesura. Sublinha o autor: "Pathos, então, designa o<br />
que é pático, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência" (p.18).<br />
A visão trazida por Berlinck, a que chama psicopatologia fundamental, inaugura um<br />
novo modo de pensar o psicopatológico. Se, usualmente, se pensa o psicopatológico como<br />
algo a ser extirpado, uma condição a ser superada por uma intervenção corretiva, neste<br />
referencial o termo adquire a perspectiva de reconhecimento de uma condição de desmesura<br />
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na constituição da subjetividade. Mais do que extirpar o patológico, deve-se acolhê-lo, deixar<br />
que se manifeste como constituinte da tragédia humana.<br />
Moreira (2002) faz uma retrospectiva da construção do conceito de psicopatologia,<br />
desde Emminghaus, passando por Ribot e Jaspers, sem esquecer a importância de Freud,<br />
enfatizando a mudança de paradigmas - alienação mental, doenças mentais e grandes<br />
estruturas. De fato, o que ela busca é uma psicopatologia crítica, mundana, com fundamento<br />
nos estudos de Merleau-Ponty, Tatossian e de autores culturalistas.<br />
Noutro campo de discurso que não os de Berlinck, Pessotti e Moreira, o filósofo francolituano<br />
Emmanuel Lévinas desenvolveu uma perspectiva conhecida como ética da alteridade<br />
radical (Pivatto, 2000). Não nos caberia aqui discorrer sobre a filosofia social de Lévinas,<br />
dada sua complexidade e o escopo deste trabalho.<br />
Interessa-nos saber que, para Lévinas (1998), a subjetividade se funda na<br />
responsabilidade para com o Outro - alteridade infinitamente distante e que nos coloca uma<br />
exigência absoluta. Lévinas, judeu, ex-prisioneiro de campos de concentração nazistas,<br />
desenvolveu uma filosofia que se contrapõe à noção de totalidade construída pela tradição<br />
filosófica (Lévinas, 1961/2000), a partir da ideia de Infinito, e denuncia a violência para com<br />
o Outro que os saberes praticam, quando se debruçam sobre a questão do ser. O Infinito não<br />
se dá a conhecer, revelando-se por um Rosto não-fenomênico, tensionando a interioridade,<br />
na assunção da exterioridade como constitutiva da subjetividade.<br />
Lévinas (1961/2000) coloca o ser em questão e afirma que aquilo que constitui o<br />
humano não pode ser totalizado. Há sempre um aspecto da subjetividade que escapa ao<br />
entendimento totalizante do saber científico moderno. Para Lévinas, assim como para<br />
Berlinck, a subjetividade é marcada pela paixão, pela afecção, por uma dimensão de<br />
estranhamento que questiona a mesmidade e institui uma incondição humana. Incondição,<br />
porque não há escolha: sou tomado pelo Outro contra minha vontade. De acordo com Freire<br />
(2002, p. 46), isso significa "(...) estar cara-a-cara com a alteridade (...) oferecer o rosto à<br />
bofetada (...) não há opção, não há decisão, só intimação pelo Outro".<br />
A temporalidade, por tal ponto de vista, vem do Outro, que me fala de um lugar<br />
inatingível, quer dizer, a relação com ele, além de se dar de modo diacrônico, e não<br />
sincrônico - como pressupõe, por exemplo, o diálogo em Buber (Holanda, 1997) -, é<br />
assimétrica. O Outro, também, não pode ser "capturado" por uma imagem de seu rosto,<br />
muito menos apreendido no tempo - o que reforça o aspecto excedente que lhe é peculiar. O<br />
Outro, portanto, não pode ser desvelado, mas se revela em seu mistério e singularidade.<br />
Como se pode perceber, tanto em Berlinck, quanto em Lévinas, há uma dimensão de<br />
afecção por uma diferença que me excede, e um reconhecimento desta, não como algo que<br />
deve ser suplantado, mas acolhido. Segundo Pivatto (2000), "no acolhimento, o outro é<br />
referido na sua alteridade, o eu o acolhe no seu em-si" (p. 90), ou seja, não se trata de uma<br />
relação de poder, mas, sobretudo de ser afetado por essa diferença. A partir dessas ideias - e<br />
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dialogando com outras desenvolvidas por Freire (2000), Moreira (2007) e Vieira e Freire<br />
(2006) -, procederemos a um questionamento a respeito do psicopatológico na TCC.<br />
Psicopatologia e estranhamento na clínica das paixões<br />
Conforme já citado acima, categorias psicopatológicas não só são evitadas, como<br />
rechaçadas por Rogers, em sua produção intelectual. Quando, por exemplo, realizou estudos<br />
com esquizofrênicos, Rogers (1976) evidenciou que essa condição de seus "pacientes" nada<br />
mais é do que um jeito singular da experiência, como pode ser visto na seguinte passagem:<br />
"a alucinação, a ilusão, a linguagem ou postura excêntricas têm, naturalmente, o seu sentido<br />
na dinâmica psicológica do indivíduo esquizofrênico. Mas no relacionamento terapêutico<br />
simplesmente forma uma linguagem mais difícil de comunicação" (p. 220).<br />
Como se percebe, há uma compreensão, por parte de Rogers, da idiossincrasia<br />
apresentada por seu cliente, uma vez que o considera uma pessoa, digna de aceitação.<br />
Moreira (2007), no entanto, questiona a noção de pessoa em Rogers, utilizando a<br />
fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Entre as críticas elaboradas por ela, encontram-se<br />
a insistência de Rogers em colocar o indivíduo como centro - ideia a que se opõe o<br />
reconhecimento da mútua constituição entre homem e mundo, que toma de empréstimo a<br />
Merleu-Ponty -, a visão dicotômica de Rogers acerca da relação externo-interno e a<br />
insistência na categoria "pessoa" para o desenvolvimento do processo terapêutico. Esta<br />
última crítica nos interessa mais, para o presente trabalho.<br />
Moreira (2007) afirma que<br />
todas as vezes em que sua concepção teórica de pessoa é priorizada em<br />
detrimento do próprio processo terapêutico, Rogers deixa de intervir<br />
fenomenologicamente para voltar a centrarse na pessoa (...) a noção de<br />
pessoa (...) aparece como um biombo entre o terapeuta e a experiência da<br />
relação (p. 215).<br />
Moreira (2007) prossegue, apontando a necessidade de superar "a idéia de<br />
centramento, que mantém a psicoterapia de Carl Rogers presa e a impede de se realizar<br />
fenomenologicamente. É importante que esta evolua para uma concepção de homem mundano<br />
(...) como fenômeno em mútua constituição com o mundo" (p. 219).<br />
Como se pode perceber na crítica elaborada por Moreira, a noção de pessoa, presente<br />
em toda a obra rogeriana, se traz o respeito pelo indivíduo como algo fundamental ao<br />
processo terapêutico (e isso, sem dúvida, é digno de louvor), aprisiona o desenrolar do<br />
processo terapêutico. Mesmo guiado pelo respeito ao outro como pessoa digna de respeito e<br />
aceitação por parte do terapeuta, Rogers captura outras possibilidades que possam advir na<br />
relação terapêutica, com base nessa noção, como criticada por Moreira.<br />
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Freire (2000), por sua vez, aponta uma surdez na Terapia Centrada no Cliente em lidar<br />
com o absolutamente Outro. As atitudes propostas por Rogers, para esse autor, não avançam<br />
em direção à radicalidade do Outro, tal como concebida por Emmanuel Lévinas. Todavia,<br />
Freire (2000) identifica alguma proximidade entre a TCC e a filosofia dialógica de Buber,<br />
visto que há uma tentativa de mutualidade na relação terapêutica, tal como proposta por<br />
Rogers<br />
Vieira e Freire (2006) tecem crítica semelhante, ao afirmarem que a pessoa em pleno<br />
funcionamento, descrita por Rogers e por nós já explicitada, "seria quase a imagem e<br />
semelhança do terapeuta, pois se caracteriza por uma maior abertura (...), viveria de maneira<br />
existencial (...) e sentiria seu organismo como digno de confiança" (p. 429). Partindo dessas<br />
ideias, questionam se "tornar-se pessoa" significa tornar-se um ideal de pessoa préestabelecido<br />
pelo terapeuta e frisam que, caso assim seja, "a abertura à diferença, tão<br />
presente e marcante no que se refere à teoria rogeriana, seria uma técnica ortopédica de<br />
transformação do outro numa réplica daquele que se 'abre' a sua diferença (em nosso caso, o<br />
terapeuta)" (p. 429).<br />
Tendo apresentado de forma breve as críticas realizadas por tais autores e as<br />
concepções expostas anteriormente sobre o pathos, retomamos agora a noção do<br />
psicopatológico, presente na teoria rogeriana, enfocando, principalmente, a tendência<br />
atualizante e a pessoa em pleno funcionamento.<br />
Rogers sustenta, em diversos momentos de sua obra, que o processo terapêutico se<br />
caracteriza como devir. Assim, nem cliente, nem terapeuta têm ao certo um ponto fixo ao<br />
qual o processo terapêutico deva conduzir. Todavia, nas etapas do processo terapêutico<br />
descritas por Rogers (2001) e por nós já explicitada alhures, o cliente parte de um modo<br />
impessoal de expressão a uma comunicação fluida consigo e com o psicoterapeuta. Essa<br />
fluidez indicaria uma maneira saudável de se comunicar e se relacionar consigo e com os<br />
outros.<br />
Isso indica que, mesmo que Rogers afirme que cliente e terapeuta se entregam ao fluxo<br />
do devir experiencial, há a previsão de um jeito de ser esperado pelo terapeuta. O "biombo"<br />
a que Moreira (2007) faz alusão, em passagem já citada, se interpõe em todo o processo<br />
terapêutico, nessa concepção. Vejamos o que diz Rogers (2001) sobre o desenvolvimento das<br />
etapas do processo terapêutico: "No extremo superior do contínuo nunca se verifica mais do<br />
que uma incongruência temporária entre a vivência e a consciência, pois o indivíduo já não<br />
tem necessidade de se defender contra os aspectos ameaçadores da sua própria experiência"<br />
(p. 180).<br />
Conforme podemos perceber, na passagem transcrita, fica evidente a concepção de<br />
subjetividade que é valorizada na perspectiva centrada na pessoa. Só se torna pessoa -<br />
parafraseando a famosa expressão utilizada por Rogers - aquele que se desenvolve na<br />
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direção do extremo superior do desenvolvimento na terapia. E aqueles que não o fazem?<br />
Representariam eles o fracasso do processo terapêutico?<br />
A compreensão de Rogers a respeito do clássico caso Ellen West pode nos indicar algo<br />
nesse sentido. Rogers (1986) se posiciona desde o início nitidamente contra a ideia de o<br />
suicídio de Ellen ter sido considerado como resolução de seu conflito. A hipótese de Rogers é<br />
de que a famosa paciente de Binswanger não encontrou um terapeuta que pudesse<br />
compreendê-la, de modo que ela "(...) mesma estaria se relacionando com outras pessoas, e<br />
ela novamente descobriria que não é perigosamente inseguro, mas antes muito mais<br />
satisfatório, ser o eu real ao se relacionar com os outros" (Rogers, 1986, p. 101).<br />
Mesmo sem conhecer Ellen West, ou tê-la atendido, Rogers nos mostra que, com ela,<br />
apostaria no processo de tornar-se pessoa, aproximando-a de sua sabedoria organísmica.<br />
Neste ponto, cabe uma ressalva importante: a ideia que nos passa Rogers é de certa<br />
"fabricação" em torno da subjetividade, de sorte que é desejado que todos aqueles que se<br />
submetam ao processo terapêutico desenvolvam ao máximo possível as características de<br />
uma pessoa em pleno funcionamento. De fato, podemos entender as psicoterapias como<br />
dispositivos de constituição de subjetividades, nisso não nos afastando muito de ideias<br />
foucaultianas que podemos identificar em Figueiredo (2009) e Ferreira (2004). O que faz a<br />
diferença aqui é que há um ideal de pessoa a ser perseguido, em Rogers, o que o aproximaria<br />
perigosamente de uma posição disciplinadora.<br />
Dessa forma, tornar-se pessoa pode significar tornar-se um tipo de pessoa que Rogers<br />
identificou como o de funcionamento ótimo da personalidade. Podemos constatar, assim, a<br />
inabilidade de Rogers em lidar com o pathos como paixão, uma vez que, a partir da leitura<br />
que ele faz do caso Ellen West, é possível perceber que as manifestações que faziam Ellen<br />
sofrer necessariamente deveriam ser suplantadas por uma forma mais autêntica e aberta à<br />
experiência. A abertura ao outro, portanto, se dá apenas na medida em que este atinja um<br />
modo de funcionamento desejado pelo psicoterapeuta. Ou seja, essa abertura não se dá de<br />
fato para a diferença do outro, mas para sua semelhança com o mesmo - no caso, o<br />
terapeuta.<br />
Esse funcionamento ótimo da personalidade encontraria seu fundamento na tendência<br />
atualizante. Mesmo que noutro momento tenhamos imaginado tal tendência como uma<br />
constante renovação de padrões, um processo alimentado pela diferença (Vieira & Freire,<br />
2006), há um aspecto nela que merece ser destacado - sua unidirecionalidade. Retomando a<br />
análise que Rogers faz do caso Ellen West, vemos que sua compreensão é de que a tendência<br />
atualizante de Ellen apenas não encontrou um clima propício para seu desenvolvimento. De<br />
acordo com Rogers (1986), somente quando se relaciona com o outro, considerando-o como<br />
uma pessoa, "(...) existe um encontro de uma profundidade tal que dissolve, tanto no cliente<br />
quanto no terapeuta, o sofrimento da solidão" (p. 101).<br />
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O desenvolvimento da tendência atualizante de Ellen West garantiria o dissolver de<br />
sua solidão e, quem sabe, poderia fazer com que ela pudesse experimentar uma "vida boa"<br />
(Rogers, 2001), pela perspectiva apresentada por Rogers. A abertura que Rogers dá ao<br />
cliente, a partir de sua consideração positiva incondicional, que, segundo Vieira e Freire<br />
(2006), pode ser uma via de acesso ao Outro, em Rogers, mostra-se limitada no sentido de<br />
que essa abertura implica que haja um desenvolvimento numa dada direção.<br />
O pathos como paixão a ser ouvida e acolhida no processo terapêutico se dissolve na<br />
expectativa de que o indivíduo venha a se tornar mais congruente, mais criativo, enfim, mais<br />
próximo de sua sabedoria organísmica, em profunda conexão com sua tendência atualizante.<br />
A perspectiva de saúde explicitada por Rogers (e seu avesso, na concepção por ele<br />
desenvolvida de psicopatologia) parece desconhecer a desmesura do humano. Ao tentar<br />
fazer com que o processo terapêutico facilite a ação da tendência atualizante e que, portanto,<br />
o cliente se perceba como uma pessoa, Rogers ignora a possibilidade de que outras formas de<br />
ser possam ser igualmente saudáveis.<br />
As concepções rogerianas de processo terapêutico e de tendência atualizante indicam,<br />
por conseguinte, que o acolhimento do pathos poderia dar-se de modo normativo. Isso<br />
caracterizaria tal abordagem, como bem salienta Freire (2000), como uma prática ortopédica<br />
de psicologia.<br />
Uma clínica das paixões, conforme postulada por este texto, coloca o psicoterapeuta<br />
numa posição de des-inter-esse (não haveria uma troca entre seres) pelo Outro, isto é, não há<br />
um ponto a se chegar ou um tipo de subjetividade a ser moldada, durante o trabalho<br />
psicoterapêutico. Compreendemos que se trata de um aprofundamento da atitude de<br />
consideração positiva incondicional do terapeuta com relação ao cliente, um respeito pelas<br />
experiências expressas, bem como pelo direcionamento que a expressão dessas experiências<br />
pode dar ao desenrolar do processo.<br />
Retomemos a ideia de consideração positiva incondicional. Para Kinget (1977), "o<br />
objeto desta atitude incondicional não é alguma abstração tal como 'o cliente enquanto ser<br />
humano', 'ser potencial', 'a personalidade que poderá tornar-se, ou poderia ter sido'. É o<br />
cliente em sua totalidade, tal qual existe, hic et nunc" (p. 136, grifos da autora).<br />
Como podemos perceber, na passagem acima, a atitude de consideração positiva<br />
incondicional acarretaria a aceitação plena do cliente, sem pretensões, inclusive, de que ele<br />
venha a se tornar algo pré-estabelecido. Todavia, o que se observa no modo como Rogers<br />
descreve o desenvolvimento do processo terapêutico indica a expectativa e a aceitação, por<br />
parte do terapeuta, quanto ao que o cliente pode vir a se tornar - uma pessoa.<br />
Considerar positiva e incondicionalmente o cliente, de acordo com essa proposta, é<br />
compreender que o direcionamento do processo terapêutico pode, por vezes, ser distinto<br />
daquilo que Rogers (2001) descreve como seu objetivo, ou seja, que o cliente se torne o que é.<br />
Tal frase, segundo o próprio Rogers (2001), inspirada em Kierkegaard, denota, na obra<br />
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rogeriana, certa essencialidade presente, por exemplo, no conceito de tendência atualizante.<br />
Em Kierkegaard, ela evidencia a tensão entre o ser e a doença mortal, o homem perante Deus<br />
e a existência, cindido e bem distante de um ponto de vista essencialista. Portanto, ser o que<br />
já se é, ou mesmo já se foi, quando poderíamos ter uma compreensão diferente - ser o que se<br />
pode vir a ser (Nietzsche), criar um novo modo de ser (Foucault), ou mesmo sair do ser em<br />
direção ao outro (Lévinas).<br />
Agir assim significa abrir-se à diferença do Outro ou, no dizer levinasiano, estar aberto<br />
a visitação do estranho, sem que se estabeleça uma teleologia a priori ao trabalho terapêutico.<br />
Clínica das paixões, pois, pressupõe uma ótica do Outro como radicalmente diferente de<br />
mim e possivelmente distante de minhas expectativas.<br />
Considerações finais<br />
O fato de não criar categorias de psicopatologia não quer dizer que um autor não tenha<br />
concepções do psicopatológico, em sua produção intelectual. Com Rogers não é diferente,<br />
conforme pudemos verificar com este trabalho. Adotar a noção de pessoa no trabalho<br />
psicoterapêutico, por mais respeitoso que possa parecer, a princípio, pode trazer à tona o<br />
risco de tomar o outro como algo a ser transformado num desejo do terapeuta.<br />
Carl Rogers se insere na Matriz Romântica do pensamento psicológico, numa<br />
submatriz Vitalista e Naturista, a partir da categorização de Figueiredo (1991). Isso implica<br />
numa démarche que parte do intuicionismo de Bergson, passando pelo humanismo de<br />
Maslow até chegar ao não-diretivismo do primeiro Rogers. Nesse sentido, apesar de<br />
contrapor-se ao modelo positivista, não o faz com a "virulência crítica" de pensadores como<br />
Nietzsche e Schopenhauer, por exemplo, que apostaram num irracionalismo que prima pela<br />
negatividade.<br />
Aproximar a perspectiva centrada na pessoa de autores como Kierkegaard, Husserl,<br />
Heidegger ou Merleau-Ponty, não deixa de ser um exercício epistêmico aceitável, mas as<br />
diferenças precisam estar demarcadas. Há que se superar o ideal de pessoa plena, aberta à<br />
experiência de tornar-se o que é, e abrir-se à estranheza de si e do outro.<br />
Ir para além da pessoa, como propõe Moreira (2001, 2007), pode significar abster-se de<br />
toda expectativa criada em torno da relação terapêutica e entregar-se, de fato, ao devir que<br />
essa relação cria, sem a necessidade da expectativa de que o cliente "se torne uma pessoa".<br />
Estas críticas não significam, porém, que a Terapia Centrada no Cliente não possua<br />
interessantes possibilidades de escuta do Outro. Como demonstram Vieira e Freire (2006),<br />
essa abordagem possui elementos que desconsideram a diferença na constituição da<br />
subjetividade, ao mesmo tempo em que apresenta possibilidades de lidar com tal alteridade,<br />
a partir de uma abordagem ex-cêntrica da pessoa.<br />
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Portanto, não se trata aqui de dizer que todos os aspectos da TCC são alérgicos à<br />
diferença, senão apresentar questões relativas ao tratamento dado à psicopatologia, nessa<br />
abordagem, em direção aos descentramentos propostos por Moreira (2001, 2007) e Vieira e<br />
Freire (2006), e a necessária condição ética de reconhecer a psicoterapia, não como escuta de<br />
uma pessoa, mas, sobretudo, um fluxo de paixões (pathos) possíveis.<br />
Algumas questões, contudo, permanecem: de que modo lidar com a psicoterapia, sem<br />
que se tenha uma expectativa de resultado em torno dela? Quais as implicações práticas de<br />
tal perspectiva? Que parâmetros estabelecer para o bom andamento do trabalho? Que<br />
possibilidades empíricas pode oferecer tal perspectiva da clínica, no referencial da TCC?<br />
Essas e outras questões merecem melhor tratamento, em trabalhos posteriores.<br />
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http:/ / www.fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ vieiraf reire01<br />
Nota sobre os autores<br />
Emanuel Meireles Vieira. Professor Assistente da Faculdade de Psicologia da<br />
Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do<br />
Ceará (UFC) e coordenador do projeto Plantão Psicológico na Clínica-Escola da UFPA. E-<br />
mail: emeireles@ufpa.br<br />
José Célio Freire. Professor Associado do Departamento de Psicologia e do Mestrado em<br />
Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Professor Tutor do Programa de Educação<br />
Tutorial (PET-SESu/MEC), grupo PET Psicologia. Investiga questões vinculadas à relação<br />
entre Alteridade e Subjetividade, Ética e psicologias e Literatura e Psicologia, no âmbito do<br />
Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). E-mail:<br />
jcfreire@ufc.br.<br />
Data de recebimento: 08/05/2012<br />
Data de aceite: 24/09/2012<br />
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Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um<br />
projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________,<br />
_ _ , de http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01<br />
^<br />
A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão<br />
de um projeto educativo que articula escola e bairro<br />
The contribution of Edith Stein's Phenomenology of Edith Stein for the comprehension<br />
understanding of an articulated education project between school and neighborhood<br />
Suzana Filizola Brasiliense Carneiro<br />
Heloisa Szymanski<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
A pesquisa relatada teve por objetivo compreender a articulação entre uma escola<br />
municipal de ensino fundamental situada na periferia de São Paulo e grupos de jovens<br />
que desenvolvem um trabalho de divulgação da cultura local por meio de oficinas de<br />
literatura marginal. Foram feitas observações participantes; encontros com gestores,<br />
educadores e com o responsável pelas oficinas; e uma entrevista reflexiva com os alunos.<br />
O fenômeno da articulação mostrou-se como importante ação educativa à medida que<br />
aproximou os alunos da literatura, ajudou-os a tomarem consciência de sua participação<br />
na sociedade e a perceberem o conhecimento como ferramenta para transformação social.<br />
O jovem responsável pelas oficinas também se transformou ao descobrir-se educador. As<br />
mudanças ocorridas no nível individual repercutiram positivamente nas duas<br />
comunidades envolvidas no projeto: escola e bairro (coletivos).<br />
Palavras-chave: fenomenologia e educação; Edith Stein; relação escola-comunidade;<br />
literatura marginal<br />
Abstract<br />
This research aimed at understanding the articulation between a public elementary<br />
school on the outskirts of São Paulo and groups of young people who develop a work of<br />
divulgation of the local culture through workshops of marginal literature. The research<br />
involved participant observations; meetings with the managers, educators, and the<br />
responsible for the workshops; and a reflexive interview with the students. The<br />
phenomenon of articulation revealed itself as an important educational action insofar it<br />
brought the students to the Literature - it helped them to be aware of their role in society,<br />
and to realize knowledge as a tool of social transformation. The young person in charge<br />
of the workshops was also transformed when he found himself as an educator. The<br />
changes occurred in the individual level have positively had repercussions in both<br />
communities involved in the project: the school and the neighborhood (collectives).<br />
Keywords: phenomenology and education; Edith Stein; school-community relationship;<br />
marginal literature<br />
Introdução<br />
Esta pesquisa insere-se em um projeto mais amplo denominado "Articulação e<br />
Diálogo", que estuda a inter-relação entre instituições educativas formais e informais,<br />
localizadas na periferia da Zona Norte da cidade de São Paulo. Coordenado pelo grupo de<br />
pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional à Escola, Família e<br />
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projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________,<br />
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Comunidade (ECOFAM), do programa de pós-graduação em Psicologia de Educação<br />
(Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o projeto visa<br />
compreender o processo construtivo de propostas articuladas, bem como o contexto de<br />
ensino e aprendizagem que delas emerge, apontando possibilidades, obstáculos e caminhos,<br />
com o intuito de contribuir para as políticas públicas em Educação. Inserido nesse contexto, o<br />
estudo aqui apresentado investigou o processo de articulação entre uma escola municipal de<br />
ensino fundamental (EMEF) e grupos de jovens do bairro - auto denominados coletivos - que<br />
buscam a transformação social através da produção e divulgação da cultura periférica<br />
(trabalham com literatura, música, fotografia, grafite, entre outros). A investigação ocorreu a<br />
partir de oficinas de literatura marginal ministradas por um jovem dos coletivos aos alunos<br />
do ensino fundamental II da escola.<br />
De acordo com Nascimento (2006), "literatura marginal" refere-se à produção de<br />
autores que vivenciam situações de marginalidade (social, editorial ou de outras formas) e<br />
que trazem para o campo literário os temas, termos e o linguajar igualmente "marginais".<br />
Visa à expressão do que é peculiar aos espaços tidos como marginais. É uma produção que<br />
se refere especialmente às periferias das grandes cidades.<br />
O termo articulação foi utilizado neste estudo com dois sentidos complementares. O<br />
primeiro corresponde à compreensão dos participantes do projeto "Articulação e Diálogo" a<br />
respeito de uma ação articulada. Durante uma reunião do projeto, eles a formularam da<br />
seguinte maneira:<br />
Um encontro dialógico entre pessoas que compartilham objetivos comuns, para a<br />
construção de conhecimento com a participação de representantes de idade, gênero,<br />
escolaridade, experiências, origens diferentes, envolvendo a criação de vínculos entre<br />
os protagonistas e compartilhamento de responsabilidade entre eles. Essas ações<br />
resultam em ganhos para todos os que dela participam e um sentimento de satisfação<br />
pessoal.<br />
O segundo sentido dado à articulação apoia-se sobre a visão de comunidade de Edith<br />
Stein, discutida no próximo item do artigo. A articulação, neste caso, é vista e discutida como<br />
o encontro entre duas comunidades: a "comunidade-escola" e a "comunidade-bairro"<br />
(representada pelos coletivos).<br />
A articulação escola e bairro<br />
A importância de projetos educativos que articulam escola e bairro é um tema bastante<br />
discutido por autores contemporâneos, que os apontam como um caminho alternativo para a<br />
recuperação do sentido da vida cotidiana e para a superação de uma "pedagogia da<br />
exclusão" (Barroso, 2005). Segundo Torres (2003), a única possibilidade de assegurar<br />
educação e aprendizagem permanente, relevante e de qualidade é fazer da educação uma<br />
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necessidade e tarefa de todos. Isto implica a superação da distinção convencional entre escola<br />
e comunidade, educação formal, informal e não formal, e a integração entre saber científico e<br />
saber comum (Torres, 2003; Gohn, 2004; Afonso, 2001). Como resposta à necessidade de<br />
diversificar a oferta educativa, Torres (2003) propõe o modelo de "comunidade de<br />
aprendizagem", caracterizada como:<br />
uma comunidade humana organizada que constrói um projeto educativo e<br />
cultural próprio para educar a si própria, suas crianças, seus jovens e<br />
adultos, graças a um esforço endógeno, cooperativo e solidário, baseado em<br />
um diagnóstico não apenas de suas carências, mas, sobretudo, de suas forças<br />
para superar essas carências (Torres, 2003, p. 83).<br />
Como vemos, a autora propõe uma visão sistêmica do sistema escolar, segundo a qual<br />
o projeto educativo não é apenas institucional, mas o resultado de ações articuladas entre<br />
escola e bairro (Torres, 2003; Blank, Johnson & Shah, 2003).<br />
A importância da articulação estudada também pode ser vislumbrada pela análise<br />
sociológica de Berger e Luckmann (2005), que apontam para o importante papel das<br />
"instituições intermediárias" como forma de evitar a crise de sentido que ameaça a sociedade<br />
moderna. Por instituições intermediárias, os autores compreendem aquelas instituições<br />
capazes de fazer uma ponte entre o indivíduo e os padrões de experiência e ação<br />
estabelecidos pelos macrossistemas sociais. Essas instituições colaboram para que as pessoas<br />
participem da construção do acervo social de sentido, deixando, assim, de experimentá-lo<br />
como algo imposto e prescrito autoritariamente. Neste sentido, apostamos que uma escola<br />
aberta à comunidade local possui, ao menos em potencial, o importante papel de instituição<br />
intermediária. A articulação entre pequenos grupos locais e a instituição escolar traria, assim,<br />
a possibilidade de construção, partilha e comunicação de sentidos que, através da escola,<br />
poderiam chegar às instâncias de governo como Secretaria de Ensino, Subprefeitura, entre<br />
outras, contribuindo efetivamente para a construção de um novo modelo escolar.<br />
Vimos, portanto, o contexto maior em que este estudo se insere (Projeto "Articulação e<br />
Diálogo"); o sentido dado à articulação; e a relevância do tema para o contexto atual. A<br />
seguir, apresentaremos a visão de comunidade e formação de Edith Stein - autora de<br />
referência para a análise do fenômeno estudado -, seguida de breve apresentação dos grupos<br />
comunitários envolvidos (escola e coletivos) e da descrição das oficinas de literatura<br />
marginal. Posteriormente, descreveremos os procedimentos metodológicos, seguidos da<br />
análise e discussão dos principais resultados apreendidos.<br />
Comunidade e formação em Edith Stein<br />
A visão de comunidade apresentada por Edith Stein é fruto de investigações<br />
fenomenológicas que a autora realizou a respeito da estrutura da vida associativa. Ao<br />
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analisar as relações interpessoais, ou seja, ao estudar as vivências de um indivíduo em<br />
relação ao outro, Stein percebeu variações no grau de abertura e na ênfase dada às<br />
dimensões corpórea, psíquica e espiritual do ser humano. Tais variações lhe permitiram<br />
identificar três tipos de agrupamento social: a massa, a sociedade e a comunidade. Embora<br />
cada um deles tenha sido analisado separadamente, Stein afirma que não existe uma forma<br />
de agrupamento pura, ou seja, os agrupamentos são mistos e dinâmicos, refletindo os<br />
movimentos pessoais de seus membros.<br />
A massa é compreendida como uma forma de reação coletiva fundada na<br />
excitabilidade da psique individual. As pessoas se juntam por reação a algo externo a elas, o<br />
que significa que as relações são pautadas por vivências corpóreas e psíquicas. A dimensão<br />
espiritual do ser humano - responsável pela abertura a si mesmo, ao outro e ao mundo, e<br />
pela possibilidade de avaliação e tomada de posição consciente e pessoal- não está presente.<br />
Isto significa que uma massa não possui projetos próprios, mas caminha conduzida por um<br />
líder externo que dela se aposse. Na massa, portanto, os sujeitos não possuem autonomia,<br />
mas servem a um projeto alheio.<br />
Na sociedade - segundo tipo de agrupamento -, as pessoas se relacionam em função<br />
de objetivos comuns. Sua união depende de um ato voluntário, o que indica a presença da<br />
dimensão espiritual nesse tipo de agrupamento. A sociedade é constituída por relações<br />
objetivas, determinadas pelo papel específico de cada membro em uma estrutura prédefinida<br />
de acordo com a finalidade que a gerou.<br />
O terceiro tipo de agrupamento social, para o qual voltaremos nossa atenção neste<br />
artigo, é a comunidade. Uma comunidade se origina da relação recíproca entre as pessoas,<br />
olhadas na sua totalidade. Os vínculos são corpóreos, psíquicos e espirituais e o trabalho de<br />
cada membro depende de suas características particulares e não de um papel determinado<br />
de antemão como na sociedade. Por isso, Stein compara a comunidade a um organismo vivo,<br />
em que cada pessoa é um órgão único no todo.<br />
A abertura ao outro é uma característica fundamental nas relações comunitárias.<br />
Segundo Ales Bello (2000), a vida comunitária acontece quando "os indivíduos estão abertos<br />
uns a respeito dos outros, onde as tomadas de posição de um não ficam sem efeito sobre o<br />
outro, mas o estimulam e desenvolvem a própria eficácia" (p. 167). Mahfoud (2007) afirma<br />
que uma relação se torna comunidade quando "a alma do outro é apreendida no concreto da<br />
vida cotidiana; quando nos voltamos para uma pessoa na experiência que lhe é própria e<br />
passamos a viver com ela algo em comum" (p. 120).<br />
A formação de uma vivência comunitária é ilustrada por Stein (1999b) pela<br />
comunicação de um pensamento, maneira pela qual a ciência se desenvolve. A autora nos<br />
apresenta o seguinte exemplo: Quando uma pessoa me comunica o seu pensamento, ela me<br />
abre passo a passo à compreensão do sentido que se constituiu originalmente no seu<br />
pensamento. Vivendo o mesmo sentido, este me impulsiona a continuar a pensar não mais<br />
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como uma reprodução do pensamento do outro, mas como uma produção originária.<br />
Desenvolve-se, assim, pela comunicação, um pensar junto no qual o pensamento de ambos é<br />
movido pela mesma motivação. O desenvolvimento da ciência ocorre desta maneira<br />
segundo Stein (1999b). O que oferecemos como contribuição própria cresce sobre o<br />
fundamento de um patrimônio já acumulado e aceito por nós. Tal contribuição, por sua vez,<br />
se transforma no fundamento sobre o qual outros construirão depois de nós (Stein, 1999b).<br />
A vivência comunitária implica, portanto, uma experiência de "nós", de pertença, que<br />
não é puramente subjetiva, mas se pauta sobre um conteúdo comum, denominado por Stein<br />
núcleo de sentido comum (Coelho Jr, 2006). A autora (Stein, 1999b) distingue a vivência<br />
comunitária de uma vivência pessoal comparando-as a partir de uma situação de perda. A<br />
dor pela perda de uma pessoa amiga é uma vivência diferente da dor pela perda do<br />
comandante de uma tropa da qual faço parte. No primeiro caso, o sujeito da experiência é<br />
um "eu", enquanto no segundo, é um "nós", já que a dor é partilhada por todos os membros<br />
da tropa. Neste exemplo, o núcleo de sentido comum é a perda de uma pessoa importante<br />
para a tropa. Tal núcleo gerou uma vivência comum de tristeza. Podemos dizer que a tristeza<br />
é uma vivência comunitária porque a dor de todos os membros da tropa está voltada para o<br />
mesmo núcleo de sentido comum: a perda do comandante. Segundo Edith Stein (1999b), o<br />
núcleo de sentido comum possui um significado objetivo que será colhido e vivido por cada<br />
membro de maneira pessoal quanto à continuidade, profundidade e intensidade. No<br />
exemplo citado, cada pessoa terá um tempo de luto e uma intensidade de dor particular.<br />
Stein chama de invólucro esta maneira específica como cada pessoa vivencia as significações<br />
do núcleo de sentido comum, e afirma que a vivência comunitária é constituída pelos vários<br />
invólucros de seus membros (Coelho Jr, 2006). A interação entre os diferentes invólucros<br />
contribui para uma maior aproximação do significado objetivo do núcleo de sentido comum<br />
e expressa a forma como uma comunidade vivencia algo.<br />
Edith Stein compara a comunidade a uma personalidade individual que se forma a<br />
partir da interação entre as vivências pessoais de seus membros. Esta interação não é de tipo<br />
somatório e sim constitutivo, ou seja, o conjunto dos invólucros forma uma nova totalidade<br />
que é supraindividual (Stein, 1999b). Isto significa que cada membro, com suas<br />
particularidades, contribui para a constituição da vida comunitária, enriquecendo-a de forma<br />
a ampliar a compreensão do significado objetivo do núcleo de sentido comum. Na<br />
comunidade Anarcopunk (uma das comunidades às quais pertencia o educador da oficina<br />
de literatura marginal), por exemplo, quanto mais um membro vive o ser anarcopunk de<br />
forma única e pessoal, mais ele contribui para a sua comunidade. Ao mesmo tempo, o fato<br />
de estar inserido nesta comunidade o ajuda a crescer e desenvolver-se no seu modo de ser<br />
anarcopunk. Nesse sentido, Stein (1999b) demonstra que há uma interdependência<br />
ontológica entre pessoa e comunidade. A pessoa enriquece a comunidade com o seu modo<br />
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de ser próprio, ao mesmo tempo em que a vida comunitária a auxilia no caminho formativo<br />
de tornar-se cada vez mais si mesma.<br />
Entramos, assim, na visão de formação de Edith Stein, que poderia ser brevemente<br />
traduzida como um caminho através do qual a pessoa torna-se cada vez mais si mesma.<br />
Formação ou "Bildung" - palavra utilizada pela autora em língua alemã - significa "conduzir<br />
a uma sabedoria de vida, à realização plena de si" (Stein, 1999c, p. 21). Stein compara o<br />
processo formativo das matérias inanimadas a animadas e, ao abordar estas últimas,<br />
especifica semelhanças e diferenças entre o grupo dos vegetais, dos animais e no ser<br />
humano. Apresenta os três grupos de forma hierárquica, de acordo com o grau de<br />
autonomia de cada um neste processo.<br />
Nas matérias inanimadas, a formação ocorre de acordo com uma forma exterior<br />
imaginada, por exemplo, por um artesão que talha um pedaço de madeira. A matéria<br />
inanimada depende necessariamente de uma intervenção externa, caso contrário<br />
permanecerá imutável. Nos organismos vivos, ao contrário, é possível observar uma<br />
transformação autônoma, sem qualquer intervenção. Isto, segundo Stein (1999c), pelo fato de<br />
existir uma ação plasmadora que acontece a partir do interior. Neste caso, o modelo não é<br />
algo pronto e nem externo, mas um princípio dinâmico que constitui o organismo e que pode<br />
sofrer modificações de acordo com as influências do ambiente. Na pessoa, este princípio não<br />
é tão estruturante como nos vegetais e animais; ele é uma referência interna que a auxilia no<br />
processo de escolhas, que aponta limites e possibilidades do desenvolvimento pessoal sem,<br />
contudo, determiná-lo. De fato, Stein (1999c) afirma que a formação da pessoa acontece a<br />
partir da integração entre esse princípio vital (fator interno), fatores externos (ambiente) e do<br />
livre arbítrio daquele que é formado. Mas como isso ocorre?<br />
Como vimos, o princípio vital, presente no íntimo da alma humana (ou no "núcleo"-<br />
"Kern"- de acordo com a nomenclatura utilizada por Stein), age de forma dinâmica<br />
oferecendo parâmetros de referência para o desenvolvimento. O núcleo não se desenvolve,<br />
mas contém as predisposições originárias da pessoa, possíveis de serem desenvolvidas. Esta<br />
é, portanto, a contribuição do fator interno. Os fatores externos por sua vez, fornecem o<br />
alimento necessário a esse desenvolvimento. Enquanto o corpo alimenta-se de substâncias<br />
que provêm do mundo material, a alma se abastece de "bens culturais", ou seja, de<br />
"produtos do espírito humano que contribuem para a constituição do mundo interior"<br />
(Stein, 1999c). Os sentidos e o intelecto são responsáveis por procurar o material espiritual e<br />
eles possuem uma força íntima denominada "animo" (complexo de afetos e sentimentos)<br />
capaz de sentir quais das provisões adquiridas possuem valor para a finalidade formativa.<br />
Segundo Stein (1999c), somente o que é acolhido no íntimo da alma, pelo núcleo, torna-se<br />
parte integrante da pessoa. Este é o papel do livre arbítrio na formação.<br />
Stein (1999c) afirma que "toda educação é autoeducação"; ou seja, o material espiritual<br />
trazido do exterior é submetido à vontade, que irá repeli-lo ou acolhê-lo de acordo com a<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01
Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um<br />
projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________, "<br />
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abertura e a disposição da alma para se deixar transformar por aqueles valores (Stein, 1999c,<br />
p. 30). Essa livre escolha pode ser tanto aleatória quanto pautada sobre modelos externos em<br />
que o sujeito aspira algo que não se harmoniza com suas predisposições naturais. Em ambos<br />
os casos, a pessoa acaba alienando-se de si mesma. Por outro lado, as escolhas pessoais<br />
podem seguir as orientações contidas no núcleo. Neste caso, o sujeito se aproxima de um<br />
caminho formativo de autorrealização, ou seja, de tornar-se cada vez mais si mesmo. É<br />
importante notar que o processo formativo é dinâmico e que as três formas de escolhas<br />
(aleatórias, pautadas em modelos externos e/ou de acordo com as orientações do núcleo)<br />
acontecem a todo instante.<br />
Segundo Stein, é papel do educador auxiliar o educando a "viver de acordo com a<br />
própria alma" (Rus, 2006, p. 181). Isto significa auxiliá-lo em um processo de<br />
autoconhecimento, explicitando a importância de suas referências internas para a formação.<br />
Significa, ainda, "colocar a pessoa em contato com a diversidade dos campos da cultura,<br />
ajudando-a a conhecer o campo que lhe é indicado por seu talento natural" (Stein, 1999a, p.<br />
236).<br />
Stein é muito atenta à dupla tarefa educativa, ou seja, a individual e a comunitária.<br />
Neste sentido, ao falar em autoconhecimento e referências internas, a autora não nos aponta<br />
para algum tipo de individualismo ou ensimesmamento. Pelo contrário, vimos<br />
anteriormente como ela afirma a importância da comunidade para a formação humana. "A<br />
vida comunitária desperta na pessoa aptidõese características que poderiam permanecer<br />
adormecidas na falta deste ambiente". Além disso, "ela possibilita a apreensão de<br />
significados e valores compartilhados que, talvez, sozinha a pessoa não apreendesse"<br />
(CoelhoJr, 2006, p. 62).<br />
Diante destas constatações, percebemos que formação para Edith Stein implica<br />
abertura: abertura a si mesmo, ao outro e ao mundo. Neste sentido, é papel da escola<br />
promover situações que favoreçam esta abertura. Stein (1999b, p. 226) afirma, por exemplo,<br />
que uma classe escolar em si mesma se caracteriza como uma sociedade, e que é papel do<br />
educador ajudá-la a ser comunidade. Além disso, dentro de uma mesma comunidade, ela<br />
diferencia o grau de participação de seus membros. Quanto maior a abertura de uma pessoa<br />
e a comunicação de seu mundo interior, maior o seu envolvimento na vida comunitária.<br />
Àquele que vive a vida na comunidade "a partir de sua alma", cujas ações particulares<br />
refletem o sentido do todo, a este Stein denomina "sustentador" de uma comunidade. No<br />
projeto educativo apresentado, um dos objetivos dos educadores pareceu-nos ser justamente<br />
este; ou seja, auxiliar os alunos a se inserirem na vida comunitária escolar e do bairro com<br />
maior abertura e comprometimento.<br />
Antes de finalizarmos este item, vale lembrar que Stein aponta para as possíveis<br />
repercussões do encontro entre duas comunidades. Afirma que, quando falta a uma<br />
comunidade uma fonte de força interna (proveniente de seus membros), ela pode buscar esta<br />
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fonte fora, por exemplo, no contato com outra comunidade. O encontro entre comunidades<br />
foi um dos sentidos dado à articulação nesta pesquisa: encontro entre a comunidade-bairro,<br />
representada pelos coletivos, e a comunidade-escola. Passaremos agora à descrição dos<br />
coletivos, da escola e das oficinas de literatura marginal.<br />
Os coletivos<br />
Os coletivos a que nos referimos neste trabalho são movimentos político-culturais<br />
formados por jovens da periferia da Zona Norte de São Paulo que visam transformar o<br />
bairro buscando despertar os moradores para o seu papel político através de uma produção<br />
cultural própria. Existem diferentes coletivos, organizados de acordo com uma determinada<br />
forma de expressão: alguns trabalham com música, outros com literatura, outros ainda com<br />
vídeo e fotografia. Embora as expressões variem, os objetivos sociais são comuns. As letras<br />
de rap cantadas, as poesias declamadas nos saraus e os desenhos grafitados nos muros<br />
denunciam as precárias condições de vida dos habitantes da periferia; ao mesmo tempo em<br />
que anunciam, com esperança, um protagonismo capaz de transformar estas condições. São<br />
jovens profetas que anunciam, nas ruas, nas praças, nas escolas, um amanhã melhor; e<br />
convocam a população para "arquitetá-lo" em conjunto, somando forças em uma<br />
" coletividade".<br />
Em 2008, um dos coletivos, cujo trabalho centra-se na literatura, começou a se reunir<br />
semanalmente em um bar da região para a realização de saraus abertos à comunidade. O<br />
sarau foi definido pelo educador das oficinas como "uma esquina onde os coletivos se<br />
conheceram". Deste encontro surgiu o desejo de maior integração entre eles, dando início ao<br />
movimento de criação de um "Espaço Cultural". Ocuparam um cinema abandonado do bairro<br />
e começaram a se organizar para que cada coletivo tivesse a sua sede ali instalada e os<br />
projetos acontecessem de forma mais articulada. Mas a ocupação não durou muito tempo.<br />
Tiveram dificuldades com o proprietário do imóvel e acabaram saindo do local. Foi nesse<br />
período - início de 2009 - que a escola chegou ao bairro.<br />
A escola<br />
A EMEF iniciou suas atividades em 2009, com o objetivo de atender às famílias da<br />
região e de bairros pobres mais distantes, cujas condições não permitem a instalação de uma<br />
escola. A história de vida do diretor, desde cedo atuante em movimentos sociais e políticos,<br />
contribuiu para a consolidação de uma visão particular de educação. Possui o desejo de<br />
oferecer uma "educação humanista" e acredita que o caminho para isto seja a "abertura da escola<br />
para a comunidade" do entorno. Espera que os professores selecionem conteúdos relacionados<br />
a realidade local, ajudando os alunos a problematizarem esta realidade. Movido por esses<br />
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princípios e buscando colocá-los em prática no dia a dia da escola, elaborou vários projetos<br />
de articulação com a comunidade, sendo a oficina de literatura marginal um deles. Ao<br />
conhecer alguns jovens dos coletivos e saber da dificuldade de encontrarem um local para se<br />
reunir, o diretor cedeu-lhes uma sala na EMEF e propôs - em meio a outras atividades<br />
promovidas por eles neste novo "Espaço Cultural"- a realização de oficinas de literatura<br />
marginal, descritas a seguir.<br />
As oficinas de literatura marginal<br />
As oficinas foram oferecidas aos alunos do ensino fundamental II da escola. Elas<br />
faziam parte de um conjunto diversificado de atividades (como teatro, xadrez, grafite e<br />
leitura) coordenadas por diferentes pessoas (professores da escola e pessoas do bairro) que<br />
aconteciam no mesmo horário. Os alunos se inscreviam de acordo com seu interesse. As<br />
oficinas de literatura marginal aconteciam uma vez por semana, durante o horário letivo e<br />
duravam duas horas. O educador responsável era um jovem pertencente ao movimento<br />
Anarcopunke membro do coletivo de literatura. O objetivo era aproximar os alunos da<br />
literatura, trabalhando produções de pessoas do bairro - moradores que eles conheciam -,<br />
além de poemas tirados de outros contextos que lhes fossem familiares, como letras de rap<br />
ou frases grafitadas nos muros. Inicialmente os conteúdos das produções eram discutidos de<br />
forma a proporcionar ao aluno uma reflexão acerca da sua própria realidade. Em seguida,<br />
eram encorajados a se posicionar como autores, produzindo fanzines, poemas, raps, e que<br />
posteriormente eram expressos em livretos organizados pelo educador, ou em saraus<br />
promovidos pela escola.<br />
Tendo explicitado o contexto geral desta pesquisa, passaremos à apresentação dos<br />
procedimentos metodológicos, descritos como caminhos para a emergência e compreensão<br />
do fenômeno.<br />
Procedimentos metodológicos<br />
A emergência do fenômeno da articulação foi possibilitada por três diferentes vias. A<br />
primeira delas foi o acompanhamento quinzenal das oficinas de literatura, durante um<br />
semestre letivo. Este acompanhamento se configurou como uma observação participante<br />
através da qual a pesquisadora interagia com o grupo de acordo com solicitação do<br />
educador. As observações tinham como intenção compreender a proposta das oficinas<br />
(objetivos e metodologias), a relação dos alunos entre si e a relação destes com o educador. A<br />
segunda via percorrida foi a realização de conversas individuais e informais (pois não foram<br />
previamente agendadas) com o próprio educador, com a coordenadora pedagógica e com o<br />
diretor da EMEF, o que possibilitou a compreensão do contexto individual desses<br />
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participantes do projeto e dos sentidos pessoais desvelados ao longo da experiência. A<br />
terceira via foi a realização, ao final do semestre, de uma "entrevista reflexiva" (Szymanski,<br />
2010) com o grupo de alunos participantes, com a finalidade de compreender os sentidos<br />
desta experiência para eles. Seguindo a proposta de Szymanski (2010), a entrevista se iniciou<br />
com uma atividade de aquecimento em que os alunos confeccionaram crachás com os seus<br />
nomes e lembraram as atividades realizadas nas oficinas. Em seguida iniciou-se uma<br />
conversa ao longo da qual a pesquisadora propôs as seguintes questões:<br />
- Quando vocês se inscreveram na oficina de literatura, o que buscavam?<br />
- Vocês tiveram o que queriam?<br />
- Vocês tiveram outras coisas que não esperavam?<br />
- O que mais gostaram?<br />
Durante a entrevista, buscou-se apresentar aos alunos a compreensão de suas falas de<br />
forma a garantir maior fidedignidade, além de possibilitar ao entrevistado pensar a respeito<br />
do seu discurso, decidindo mantê-lo ou não de acordo com sua própria compreensão.<br />
Segundo Szymanski (2010), este procedimento favorece um movimento reflexivo e permite<br />
que a entrevista se configure como uma construção conjunta de conhecimento.<br />
Este material foi organizado em forma de "narrativas" (Benjamin, 1994), compostas<br />
pelas mãos da pesquisadora e das poesias dos artistas da quebrada: alunos, educador, jovens<br />
dos coletivos e diretor da EMEF. As narrativas foram o texto de referência a partir do qual<br />
realizou-se uma "análise compreensiva" de acordo com os passos metodológicos sugeridos<br />
por Szymanski (2010, p. 2):<br />
-Transcrição da entrevista e registro dos encontros ocorridos no contexto de pesquisa;<br />
- Elaboração do texto de referência para a análise (narrativas): transformação da<br />
linguagem oral em escrita e inclusão de impressões, sentimentos e percepções do<br />
pesquisador;<br />
- Devolutiva aos participantes da pesquisa;<br />
- Explicitação de significados: seleção de unidade de significados;<br />
- Agrupamento das unidades de significado de acordo com o tema, dando origem às<br />
categorias de análise ou "constelações" (Szymanski, 2004) 1 ;<br />
- Descrição e análise de cada constelação;<br />
- Análise final em diálogo com o referencial teórico adotado;<br />
- Devolutiva aos participantes da pesquisa.<br />
Este procedimento foi realizado em primeiro lugar com os dados de cada participante<br />
(diretor, coordenadora pedagógica, educador das oficinas, professores de artes e português e<br />
1 O termo "constelação" é utilizado por Szymanski (2004) em comparação às constelações celestes, que variam de<br />
acordo com a localização geográfica e a cultura de quem as observa. Com isso, Szymanski chama a atenção para o<br />
fato de que a compreensão do fenômeno pelo pesquisador é circunstancial, ou seja, depende daquilo que ele pode<br />
enxergar a partir do lugar que ele ocupa no "vasto universo de possibilidades de interpretação" (Szymanki, 2004,<br />
p.3).<br />
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alunos). Em seguida, as constelações surgidas a partir dos movimentos individuais foram<br />
analisadas em conjunto, dando origem a quatro grandes constelações: 1. Sentidos<br />
desvelados; 2. O vivido; 3. Desafios e 4. Repercussões (da articulação). Apresentaremos a<br />
seguir cada constelação com breve descrição e análise dos resultados em cada uma delas.<br />
Resultados e análise das constelações<br />
1. Sentidos desvelados<br />
Esta constelação discute de forma relacional as motivações e expectativas que<br />
colocaram cada participante da experiência de articulação em movimento. Explicita, desta<br />
forma, os sentidos desvelados para o diretor e a coordenadora pedagógica da escola, para o<br />
educador responsável pelas oficinas e para os alunos participantes. O diretor compreendia<br />
que abrir a escola para os coletivos (e para outros grupos do bairro) havia sido uma<br />
consequência natural de sua história de vida. Contou que foi atuante em movimentos de<br />
jovens, na pastoral operária, nas comunidades eclesiais de base e no sindicato do professores,<br />
entre outras atividades, e afirmou que "pela sua história, quando veio para a escola, já tinha um<br />
olhar para os movimentos so ciais". A sua proximidade com esses grupos, a abertura em relação<br />
às pessoas foi um compromisso que ele manteve como ação educativa no âmbito<br />
profissional. Manifestou o desejo de construir uma "escola humanista" e acreditava na<br />
articulação com a comunidade local como um caminho para isso.<br />
A coordenadora pedagógica, por sua vez, via nas oficinas de literatura marginal a<br />
possibilidade de "despertar o interesse dos alunos", deajudá-los a descobrir algo que gostam de<br />
fazer. Contou que "ficou impressionada com a paixão dos jovens [dos coletivos] pela literatura" e<br />
achava que eles poderiam "passar essa paixão para os alunos". Via a escola não como um local<br />
para "passar conteúdos" e sim como "um espaço que abre lugar para vivências", e acreditava que<br />
as oficinas trariam isto. Achava que a proposta dos coletivos se alinhava aos objetivos da<br />
escola no sentido de promover uma "reflexão da pessoa como ser histórico, inserido em uma<br />
sociedade". Em suas palavras, "o coletivo traz essa reflexão para os alunos. Uma literatura com<br />
consciência política: o que sou na comunidade?"<br />
A visão da coordenadora pedagógica a respeito dos coletivos coincidiu, de fato, com<br />
uma das motivações que levaram o educador responsável a participar do projeto. No início<br />
das oficinas, contou que esta va fazendo este trabalho "porque acredita[va] que esse tipo de ação<br />
pode transformar a visão dos alunos"; e ainda que queria "tentar fazer com que o máximo de alunos<br />
[tomassem] gosto pela literatura, que [tomassem] a poesia como um meio de se expressar". Além da<br />
transformação dos alunos, o educador via na articulação com a EMEF e no Espaço Cultural -<br />
que passou a funcionar em uma sala da escola - a possibilidade de maior integração entre os<br />
coletivos, dando visibilidade e fortalecendo o seu trabalho.<br />
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Em relação aos alunos, a escolha pela oficina de literatura marginal tinha como<br />
motivação "melhorar a leitura", "escrever poemas" e "conhecer novas formas de literatura"<br />
(referiam-se à literatura marginal). O principal interesse da grande maioria, entretanto, era<br />
aprender a grafitar. Isto porque, como estratégia para promover uma aproximação dos<br />
alunos à literatura, a escola associou a oficina de grafite à de literatura marginal. Assim,<br />
quem quisesse participar do grafite teria que frequentar também a de literatura. Após alguns<br />
mal entendidos em função desta regra, parte dos alunos inscritos no grafite mudaram de<br />
atividade e outros ficaram e participaram das duas oficinas. Estes últimos acabaram<br />
aproveitando bastante a literatura marginal. Escreveram poemas, aprenderam a fazer rimas e<br />
também grafitaram os muros da escola, expressando em seus desenhos os temas discutidos<br />
na literatura.<br />
Os sentidos acima apresentados revelam que, apesar de cada participante apresentar<br />
motivações particulares em relação ao projeto, é possível traçarmos elementos comuns, ou, se<br />
quisermos, "núcleos de sentidos comuns" de acordo com a visão de comunidade de Edith<br />
Stein. O diretor, coordenadora pedagógica e o educador responsável pareciam se unir em<br />
torno da luta pela humanização, pela transformação social, do querer despertar os alunos<br />
para uma participação mais consciente e ativa na vida comunitária do bairro e da própria<br />
escola, e da crença na articulação e na literatura como caminhos para a concretização destes<br />
ideais. Já os alunos pareceram unir-se a esta vivência comunitária a partir da literatura.<br />
Embora alguns não tivessem ligação com ela no início das oficinas, a convivência com o<br />
educador os ajudou a descobri-la como canal de expressão pessoal e de transformação social.<br />
Tendo apresentado os sentidos da articulação para os participantes, passaremos agora à<br />
discussão da articulação vivida, segunda constelação da análise.<br />
2. O vivido<br />
O vivido trata dos relatos e observações da experiência dos participantes. Aborda o<br />
projeto de articulação não do ponto de vista dos ideais, expectativas ou motivações, mas do<br />
ponto de vista prático, sendo o resultado de uma análise das ações e das tomadas de posição<br />
das pessoas no acontecer cotidiano. Abordamos principalmente os movimentos pessoais do<br />
diretor e do educador responsável, contemplando, desta forma, um representante de cada<br />
um dos grupos comunitários envolvidos na articulação: escola e bairro (coletivos).<br />
Com relação ao diretor, este relatou que havia tido uma experiência em outra escola<br />
como coordenador pedagógico, onde atuara em um projeto de articulação com o bairro. O<br />
relato desta experiência desvelou o papel fundamental do diretor de uma instituição escolar<br />
para a realização de projetos educativos em que a escola abre suas portas para a comunidade<br />
local. Na experiência relatada, contou-nos que "a diretora o incentivava, mas não havia um apoio<br />
de fato" , ou seja, que "ela não se envolvia" e que ele, como coordenador pedagógico, "não tinha<br />
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tanta liberdade para negociar com as instituições, fazer a coisa acontecer. Com isso, o projeto ficou<br />
impossibilitado".<br />
Diferentemente da experiência relatada, o diretor foi um dos principais motivadores e<br />
sustentadores da articulação estudada. Buscou diálogo e apoio de diferentes instituições,<br />
interveio com frequência no sentido de alinhar o projeto aos princípios da escola e mantevese<br />
aberto apesar dos frequentes desafios surgidos na articulação. Como exemplo do seu<br />
comprometimento, podemos citar uma conversa que ele teve com o educador das oficinas a<br />
respeito do muro da escola. Os alunos tinham começado a grafitar o muro na oficina anterior<br />
e o desenho só seria terminado no encontro seguinte. Ao ver o muro inacabado, o diretor<br />
alertou o educador para o fato de ser um "atrativo para pichadores", e pediu que ele desse um<br />
acabamento para não prejudicar o trabalho. Ao perceber a vulnerabilidade da situação, o<br />
diretor poderia ter se posicionado no sentido de fechar as portas da escola ao grafite, por<br />
exemplo, o que não ocorreu. Houve, sim, um zelo em relação à escola, mas sua intervenção<br />
foi no sentido de alertar e dar continuidade, sem romper.<br />
Tomadas de posição como esta revelaram o quanto o diretor esteve comprometido com<br />
o ideal da articulação, que, em última instância, alinhava-se ao seu ideal pessoal de<br />
proporcionar uma educação mais humana. Podemos dizer que o diretor trouxe uma<br />
contribuição importante para a comunidade-escola ao colocar à disposição desta, valores<br />
pessoais e um modo de ser próprio; ao compartilhar o seu mundo interior, contribuindo para<br />
a realização de um projeto educativo rico e complexo como o da articulação.<br />
Em sintonia com a ideia de que uma comunidade sustentada apenas por um único<br />
líder acaba por perecer (Stein, 1999b), o diretor manifestou desde o início o receio de que a<br />
importância de uma "escola aberta" fosse um sentido não partilhado pelos outros membros da<br />
comunidade-escola, restringindo-sea um projeto pessoal seu. Na prática, entretanto, houve a<br />
adesão da coordenadora pedagógica e da auxiliar de administração, por exemplo,<br />
reconhecida por ele como tendo sido essencial para a concretização desta ação. Nas palavras<br />
do diretor, "é fundamental uma equipe articulada, aberta eflexível para lidar com os desafios que esse<br />
tipo de projeto exige".<br />
O grau de envolvimento do educador das oficinas com a escola e com os alunos<br />
também parece ter sido um fator decisivo para a articulação. O longo tempo que permanecia<br />
voluntariamente na EMEF, cuidando não apenas das oficinas, mas da gestão do Espaço<br />
Cultural e das atividades dele decorrentes (como saraus e cine debates abertos à comunidade<br />
local), mostrou-nos uma doação que nos permitiu identificá-lo também como um<br />
sustentador do projeto. O educador correspondia ao que Stein (1999b) chama de pessoas que<br />
"participam com sua alma da vida comunitária" (p. 223).<br />
Tal posicionamento pode ser exemplificado pelo fato de ele ter assumido a oficina de<br />
grafite após desistência dos jovens responsáveis (membros de coletivos de grafite), que<br />
alegaram dificuldade em lidar com os alunos, além de uma expectativa de remuneração não<br />
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correspondida. Ao se deparar com a interrupção do grafite, o educador não hesitou em<br />
assumir a oficina, pois compreendeu que "o trabalho não podia parar no meio". Esta mesma<br />
consideração em relação ao trabalho e aos alunos foi observada na sua ação pedagógica, em<br />
sala de aula. Acolhia cada aluno na sua singularidade, apresentando o material de acordo<br />
com a possibilidade de aproveitamento de cada um. Para alguns, por exemplo, emprestou<br />
livros densos, que iam além da programação, por perceber interesse e possibilidade de<br />
leitura. Além disso, mostrou uma expectativa de coerência dos alunos entre seus<br />
posicionamentos nas discussões e suas atitudes concretas na vida. Em umas das oficinas, ao<br />
se deparar com brigas entre os colegas manifestou-se da seguinte maneira: "- Vocês escrevem<br />
coisas bonitas, mas estas coisas bonitas estão sendo da boca prafora porque as atitudes são de violência.<br />
Aqui não é teoria, é prática. Vocês têm que colocar em prática o que falam". Esta fala expressa o<br />
sentido de formação apresentado por Edith Stein. Ao exigir coerência entre palavra e ação, o<br />
educador auxiliou os alunos a refletirem e se posicionarem a partir de princípios de<br />
convivência que eles mesmos manifestavam nas discussões, ajudando-os a darem uma<br />
resposta pessoal perante os acontecimentos eevitando reagircegamente aos estímulos<br />
externos.<br />
A postura dialógica do educador em relação aos alunos contribuiu para que se<br />
construísse uma relação de respeito mútuo entre eles e, em alguns casos, até mesmo de<br />
solidariedade. Como vimos, para Edith Stein uma classe escolar por si mesma é uma<br />
sociedade onde todos têm uma meta comum escolhida voluntariamente; mas pode tornar-se<br />
uma comunidade se as pessoas que dela fazem parte estabelecerem relações com vínculos<br />
espirituais mais profundos, evitando exclusão dos mais fracos e apresentando atitudes de<br />
ajuda mútua. Este parece ter sido o caso das oficinas. Liderada pelo educador e, neste<br />
sentido, orientada pelos seus posicionamentos no dia a dia, as oficinas pareceram<br />
proporcionar aos alunos uma experiência de sair da massa para expressar a própria<br />
singularidade.<br />
Vimos, portanto, a partir de atitudes do diretor e do educador das oficinas, como os<br />
movimentos pessoais destes dois participantes foram importantes para a sustentação da<br />
articulação. Conforme afirmamos, entretanto, os avanços do projeto não ocorreram isentos<br />
de desafios. Tais desafios serão apresentados na constelação a seguir.<br />
3. Desafios<br />
Esta terceira constelação aborda os desafios vividos pelos participantes durante o<br />
desenvolvimento das oficinas de literatura marginal e de outras ações decorrentes<br />
daarticulação. De modo geral, podemos dizer que a maioria das situações enfrentadas se<br />
inseria no desafio de integrar cultura escolar e cultura local. Um exemplo foi a adaptação do<br />
formato de oficinas que normalmente o coletivo de literatura oferecia em outros contextos às<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01
Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um<br />
projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________, "<br />
_ _ , de http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01<br />
necessidades e princípios da EMEF. Originalmente as oficinas eram compostas por quatro<br />
encontros nos quais trabalhavam o conceito de literatura marginal, poesia, fanzine e a<br />
produção de um livreto apresentado em um sarau de fechamento. Na escola, embora estes<br />
conteúdos tenham permanecido, foi acrescentado o tema da "Cultura de Paz" e a proposta<br />
de um tempo maior de duração (um semestre). Tais mudanças repercutiram de modo<br />
diferente nos membros do coletivo. O educador responsável, por exemplo, buscou adaptarse<br />
a esta realidade. Estudou "Cultura de Paz" e se envolveu cada vez mais com a escola,<br />
desenvolvendo um trabalho com continuidade, que durou maisde um ano. Já os outros<br />
membros compreenderam que a natureza do coletivo e das oficinas era ser itinerante, e<br />
optaram por não permanecer na escola. Com isso, o educador acabou se afastando do<br />
coletivo e assumindo sozinho tanto as oficinas de literatura e grafite, quanto a gestão do<br />
Espaço Cultural.<br />
Como vimos, o sentido inicial dado pelos coletivos à articulação com a EMEF era o de<br />
uma gestão partilhada do Espaço Cultural em que todos os coletivos estivessem<br />
representados e as ações acontecessem de forma mais articulada entre eles. Na prática,<br />
porém, isto não ocorreu. Segundo o educador, as pessoas não tinham a disponibilidade<br />
necessária para se dedicarem a este projeto. O fato de não serem remunerados pelos<br />
trabalhos (principalmente pelas oficinas) também foi algo que interferiu na adesão dos<br />
membros dos coletivos. Para o educador, esta situação também era difícil, mas a crença na<br />
possibilidade de transformação das pessoas através deste tipo de trabalho pareceu falar mais<br />
alto do que as dificuldades enfrentadas pela falta de verba. Segundo ele, "apesar do<br />
voluntariado, o que ele faz é uma coisa legal".<br />
É importante ressaltar que havia uma preocupação do diretor e da coordenadora<br />
pedagógica em oferecer uma remuneração para o educador, e que eles buscavam a verba<br />
para isto apresentando o projeto a instituições que pudessem financiá-lo. Tiveram o retorno<br />
de um investidor quase dois anos depois do início do projeto, época em que o educador<br />
começara um novo trabalho fora da escola, e não tinha mais a mesma disponibilidade de<br />
tempo do início para dar continuidade ao projeto. Isto porque o fato de o Espaço Cultural<br />
estar localizado dentro da instituição escolar exigiu diálogo e articulação entre a escola e o<br />
educador, o que significava disponibilidade de tempo e uma organização compartilhada. No<br />
Espaço funcionava, por exemplo, uma biblioteca comunitária que exigia a presença de<br />
alguém por longos períodos para atender as pessoas. Além disso, muitas atividades<br />
aconteciam à noite ou aos finais de semana. Na prática, isto exigia a presença de um<br />
segurança e um responsável para abrir a escola fora do horário letivo. Este é apenas um<br />
exemplo da complexidadede detalhes e negociações necessárias para colocar em prática a<br />
articulação.<br />
Outro desafio enfrentado foi a dificuldade de integrar as oficinas de literatura marginal<br />
e o trabalho desenvolvido pelo professor de português da escola. Este desejo inicial da<br />
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coordenadora pedagógica não se concretizou por opção dos dois educadores, que decidiram<br />
trabalhar separadamente por não enxergarem pontos convergentes em suas propostas. Para<br />
o professor da escola, "eles [jovens do coletivo de literatura] não tinham as mesmas preocupações<br />
de um professor de português, como corrigir a parte gramatical por exemplo. A proposta era trabalhar<br />
a literatura da periferia, uma coisa mais livre". Ao compreenderem as diferenças entre literatura<br />
escolar e literatura marginal como obstáculo para um trabalho conjunto, os educadores<br />
fecharam-se às oportunidades que um trabalho articulado poderia proporcionar.<br />
Esta situação exprime a visão do diretor de que a cultura escolar é rígida e há uma<br />
resistência em buscar formas alternativas de trabalho. Acha que "há uma resistência dos<br />
professores em ousar porque faz parte do humano a busca por segur ança", que neste caso seria o<br />
trabalho dentro de um modelo já instituído de antemão na escola - modelo este que não<br />
contempla a abertura para a comunidade do entorno. Aliada a esta dificuldade de<br />
flexibilidade em relação à cultura instituída na escola, a falta de estratégias por parte da<br />
gestão para integrar os professores na articulação e o pouco tempo disponível acabaram<br />
comprometendo a participação deles no projeto. A professora de artes, por exemplo, alegou<br />
não conhecer a proposta das oficinas de literatura marginal. Segundo ela, "cada um prepara a<br />
sua oficina, mas não sabe da oficina do outro pela falta de tempo".<br />
Com isso, a articulação acabou restringindo-se a atividades periféricas, permanecendo<br />
o desafio de incorporar experiências como esta ao projeto político pedagógico da EMEF. Por<br />
outro lado, ao contemplarmos a articulação como um processo, não podemos esquecer que<br />
esta pesquisa acompanhou uma das primeiras ações com a comunidade, ou seja,<br />
acompanhou apenas o início de um processo que tenderá a amadurecer com o tempo. De<br />
acordo com o diretor, "transformar a visão e o modo de trabalhar da escola exige tempo".<br />
Foi também o diretor quem nos alertou para outro grande desafio da articulação com a<br />
comunidade local, não tão aparente à primeira vista. Segundo ele, existem conflitos na<br />
comunidade e esses conflitos podem ser trazidos para dentro da escola.<br />
a comunidade tem conflitos e as pessoas querem se expressar onde há visibilidade.<br />
Um acerto de contas, por exemplo, pode acontecer no meio de umafesta [da escola]<br />
(...) O que vemos acontecer nas oficinas é o aparente, e este aparente é o resultado de<br />
um longo processo de encontros e negociação de conflitos.<br />
Segundo ele, este é "o lado oculto da articulação", e seu papel é zelar para que as ações<br />
estejam alinhadas aos princípios da escola. Alertou para o fato de que a escola não é um<br />
"centro de eventos", dando a entender que, se os projetos acontecem, é porque colaboram para<br />
o processo educacional dos alunos.<br />
Por fim, podemos dizer que manter a abertura ao outro parece ser o grande desafio<br />
para a sustentação de um projeto de articulação. Embora o ideal perseguido fosse o do<br />
diálogo e da gestão democrática, manter essa postura o tempo todo parece impossível. Voltar<br />
o nosso olhar para as relações comunitárias no sentido apresentado por Stein pode nos<br />
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auxiliar neste caminho. Segundo Stein, as relações comunitárias contemplam a<br />
singularidade, vista como contribuição para a comunidade. Neste ideal de convivência<br />
humana, o diferente é tido como riqueza e não como ameaça. Sendo assim, o modo de ser<br />
anarcopunk, o modo de ser acadêmico e os diversos modos de ser dos participantes do<br />
projeto deixam de ser excluídos como obstáculos para serem acolhidos como contribuição.<br />
Neste caso, o desafio seria o de buscar pontos de convergência ou "núcleos de sentido<br />
comuns" em torno dos quais a articulação se torna possível, sem absolutizar os modos<br />
pessoais de concretizá-la.<br />
Passaremos a seguir para a quarta e última constelação, que trata das repercussões do<br />
projeto.<br />
4. Repercussões<br />
Este item descreve as repercussões das oficinas de literatura marginal tanto do ponto<br />
de vista individual quanto coletivo. Explicitamos o percurso pessoal do educador e de um<br />
dos alunos participantes, e discutimos as repercussões da articulação para as duas<br />
comunidades envolvidas: escola e bairro (coletivos).<br />
Iniciaremos a análise das repercussões, a partir do percurso pessoal de um aluno e do<br />
educador responsável pelas oficinas, por ilustrarem como o projeto de articulação se<br />
configurou como um contexto formativo -no sentido steiniano - ao ajudar as pessoas a<br />
tornarem-se mais si mesmas. O aluno em questão poderia ser descrito como um dos jovens<br />
cuja falta de interesse preocupava a coordenadora pedagógica. Falava bastante durante as<br />
oficinas, provocava os colegas e a atitude que mais parecia "atrapalhar" a sala eram os<br />
constantes batuques que ele fazia com uma caneta sobre a carteira. No início, este aluno<br />
participou da oficina de literatura porque não queria perder o grafite. Afirmou que o<br />
educador "só deixou ir pra parede quem estava frequentando a literatura". Entretanto, o contato<br />
com as oficinas despertou nele um novo interesse. Escreveu poemas, fez rimas e gostou.<br />
Descreveu esta experiência de seguinte forma: "você vai se abrindo, você flutua, você viaja na<br />
maionese". Descobriu que a literatura tinha ligação com um interesse seu que até então havia<br />
sido compreendido como bagunça, barulho: a música. Passou a compor raps, como este:<br />
O grafite é uma oficina que você vem pra aprender<br />
Depois de um tempo, ta aí você vai ver<br />
O grafite tá na veia e também no coração<br />
Um abraço, pra todos, pra todos os meus irmãos<br />
O percurso deste aluno ilustra repercussões que aconteceram também com os outros<br />
alunos das oficinas, que, além de se aproximarem da literatura, tornaram-se mais conscientes<br />
da sua participação na vida da comunidade local. Compreenderam a aquisição de<br />
conhecimento como uma ferramenta que permitiria a eles contribuir para o desenvolvimento<br />
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desta comunidade. Um dos alunos explicou que na oficina "a gente aprendeu a ver o lado bom<br />
da periferia e a usar o conhecimento para perceber, por exemplo, que o fato da televisão mostrar as<br />
coisas ruins [do seu bairro] não significa que seja verdade". Tal experiência trouxe visibilidade e<br />
autonomia aos alunos, que puderam vivenciar a passagem de relações massificadas para<br />
relações pessoais de comunidade.<br />
O educador também viveu transformações pessoais durante o projeto. A principal<br />
delas parece ter sido o fato de descobrir-se educador. Relatou ter se surpreendido ao ser<br />
chamado de "educador" por uma pessoa de uma instituição que visitou com os alunos.<br />
Contou como esta experiência o fez lembrar-se de sua época de escola, quando faziam<br />
excursões e bagunçavam como os alunos, e que "o estranho é de repente estar do outro lado,<br />
responder pelo B.O dos caras"; ou seja, passar a ser o educador-responsável. A partir desta<br />
experiência, resgatou a dimensão educativa do movimento anarcopunk através da<br />
pedagogia libertária e passou a direcionar sua vida profissional para esta área. Algum tempo<br />
depois, começou a trabalhar como educador em um centro cultural da região. Retomando as<br />
ideias de Stein, vemos como esta vivência comunitária foi importante para o crescimento do<br />
educador à medida que o despertou para novos valores, suscitando propósitos que<br />
motivaram novos posicionamentos e ações concretas.<br />
Segundo Stein, as transformações pessoais dos membros de uma comunidade acabam<br />
repercutindo na comunidade como um todo, uma vez que a vida comunitária é comparada a<br />
um organismo vivo, onde o singular e o coletivo se inter-relacionam. Desta forma, podemos<br />
dizer que a articulação repercutiu na comunidade-escola e na comunidade-bairro (coletivos),<br />
promovendo transformações nas dimensões física, psíquica e espiritual destes grupos. O<br />
aspecto físico pode ser ilustrado pelas transformações ocorridas na escola devido à ocupação<br />
de uma sala pelos coletivos. Pode ser ilustrado também pelo fato de ela ter aberto novos<br />
horários de funcionamento (à noite e aos finais de semana) e ter crescido em número de<br />
membros, com a presença de pessoas da comunidade local. Os coletivos também se<br />
modificaram no aspecto físico, sendo a transformação mais evidente, o fato de passarem a ter<br />
um local concreto (um território) para se reunirem.<br />
A dimensão psíquica também sofreu alterações em ambas as comunidades. Tanto<br />
escola como coletivos pareceram se fortalecer no contato uns com os outros. O educador<br />
transmitiu aos alunos a paixão pela literatura, despertando neles proximidade e interesse por<br />
esta forma de expressão. Os coletivos, por sua vez, ganharam visibilidade com o trabalho na<br />
escola e uma experiência com as oficinas que lhes abriu novos campos de trabalho em outras<br />
instituições escolares.<br />
Finalmente, do ponto de vista espiritual a articulação enriqueceu as duas comunidades<br />
por ter provocado uma reflexão no sentido de reverem seus objetivos e ideais e de darem<br />
uma resposta pessoal às provocações que o encontro com o diferente promoveu. Um<br />
exemplo deste tipo de repercussão foi o fato de o coletivo de literatura ter se conscientizado<br />
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de que seu papel era ser itinerante e não permanecer em um único lugar por longo período.<br />
Vemos, portanto, que apesar dos desafios, a articulação teve um papel importante e<br />
enriquecedor tanto para a comunidade-escola como para a comunidade-bairro (coletivos).<br />
Tendo apresentado as quatro constelações de análise, passaremos à discussão final<br />
deste artigo, buscando sintetizar os pontos que julgamos relevantes para a compreensão da<br />
articulação estudada.<br />
Discussão<br />
O fenômeno da articulação mostrou-se como possibilidade de formação de vivências<br />
comunitárias no sentido steiniano do termo; ou seja, como unidades de vida que se formam<br />
em torno de núcleos de sentido comuns. Esta percepção pode ser ilustrada por duas<br />
vivências. A primeira envolveu o diretor e a coordenadora pedagógica da EMEF com o<br />
educador das oficinas; e segunda, os alunos com o educador.<br />
No primeiro caso, o núcleo de sentido partilhado foi a visão de pessoa e os objetivos do<br />
projeto. O fato de trabalharem pautados em uma visão de ser humano comum foi um<br />
aspecto importante que favoreceu a aproximação entre a escola e os coletivos, dando origem<br />
a um projeto educativo como a oficina de literatura marginal. Segundo Edith Stein (1999a), a<br />
visão de ser humano é a base para se traçarem os objetivos e os meios do processo<br />
educacional e, portanto, compartilhá-la, neste caso, foi um ponto importante para o diálogo e<br />
para o início da articulação.<br />
Os três envolvidos (diretor, coordenadora pedagógica e educador das oficinas)<br />
compreendiam o ser humano como um ser histórico, inserido em uma sociedade, e<br />
buscavam despertar nos alunos a consciência desta participação na vida da social. Tal<br />
objetivo se alinha à visão de Stein a respeito da dupla tarefa educativa. Para a autora, "ao se<br />
desenvolver, o sujeito contribui para o desenvolvimento da sua comunidade, e esta, por sua<br />
vez, o encoraja a manifestar sua singularidade em direção ao pleno desenvolvimento" (Rus,<br />
2006, p. 186).<br />
A consciência da própria inserção na sociedade também diz respeito ao modo como<br />
Stein se refere ao envolvimento das pessoas em uma comunidade. Como vimos, a autora<br />
(Stein 1999b) afirma que existem diferentes graus de envolvimento com a vida comunitária,<br />
podendo variar desde pessoas que vivem fechadas em si mesmas, que não partilham seu<br />
mundo interior e, portanto, vivem à margem da vida comunitária, até uma inserção em que<br />
seus membros se envolvem com sua alma, tornando-se sustentadores da mesma. Partindo<br />
desta ideia, podemos dizer que um dos objetivos das oficinas de literatura marginal era<br />
transformar a relação dos alunos com a sua "comunidade-bairro". De membros passivos<br />
foram encorajados a se descobrirem como membros fundamentais para a dinâmica da vida<br />
comunitária, sustentadores da mesma. Isto ocorreu de fato com alguns alunos. Os<br />
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depoimentos durante a entrevista e os poemas produzidos nas oficinas revelaram um novo<br />
olhar para a periferia: não mais a periferia transmitida pela mídia, vista apenas pelo lado<br />
sombrio das dificuldades; mas a periferia a qual pertencem e cuja vivência cotidiana lhes<br />
permite enxergar bem mais do que apenas pobreza e violência.<br />
O olhar ampliado sobre a própria realidade, a consciência de que a periferia não é algo<br />
genérico, abstrato, mas uma comunidade de pessoas na qual estão inseridos pode ser<br />
ilustrado pelo poema abaixo, produzido por outro aluno:<br />
Periferia não é sinônimo de violência<br />
Por isso escrevo esse poema<br />
Pra mostrar pra família da comunidade<br />
Que seus sonhos podem se tornar realidade<br />
O autor escreve o poema "pra mostrar pra família da comunidade que seus sonhos podem se<br />
tornar realidade". Com isso, ele demonstra uma participação ativa na vida comunitária.<br />
Podemos dizer que este aluno se reconheceu como membro da "comunidade-bairro" e, como<br />
membro, percebeu que possui um conhecimento a respeito dela maior do que aqueles que<br />
estão de fora (mídia), cuja visão é parcial e negativa. Neste sentido ele denuncia: "periferia não<br />
é sinônimo de violência". Ao mesmo tempo, anuncia que os "sonhos" da sua comunidade<br />
"podem se tornar realidade". Ao denunciar uma visão parcial e anunciar um amanhã promissor<br />
através de um poema, este aluno se une aos objetivos dos coletivos, tornando-se com eles<br />
produtor de cultura, agente de transformação social. Este exemplo ilustra uma das<br />
repercussões das oficinas e do projeto de articulação na vida dos alunos. Demonstra a<br />
mudança de postura como membro comunitário e, ao mesmo tempo, explicita um caminho<br />
de aproximação da literatura - caminho este confirmado tanto pelas produções nas oficinas,<br />
quanto pelo aumento gradativo do número de participantes e do grau de envolvimento deste<br />
nos saraus e, ainda, pela percepção do professor de português de que as meninas estavam<br />
lendo mais.<br />
A segunda vivência comunitária percebida - além daquela citada entre educador,<br />
diretor e coordenadora pedagógica da EMEF - foi entre os alunos e o educador no contexto<br />
das oficinas. As transformações relatadas em relação aos alunos a respeito da aproximação<br />
da literatura e da consciência de sua pertença à "comunidade-bairro" ocorreram inseridas<br />
neste contexto comunitário. De fato, pudemos observar como, ao longo do semestre, a<br />
relação dos alunos com o educador se configurou como uma relação de abertura e<br />
reciprocidade, através da qual cada um foi afetado pessoalmente ampliando a visão de si e<br />
dos colegas. Uma situação que ilustra a construção de relações comunitárias foi o fato de um<br />
dos alunos ter decidido participar de uma oficina que ocorrera fora do horário letivo mesmo<br />
tendo outro compromisso naquele horário. Ele foi o único a participar daquela oficina e, em<br />
conversa com a pesquisadora, manifestou o que o motivara a isto. Explicou que sabia que os<br />
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colegas não poderiam estar presentes e que não gostaria de deixar o educador sozinho. Tal<br />
atitude demonstra solidariedade do aluno em relação ao educador; demonstra um deixar-se<br />
afetar pelo outro que é consequência da abertura característica das relações comunitárias<br />
compreendidas por Edith Stein.<br />
Esta abertura também se desvelou no percurso de outro aluno cujo interesse inicial<br />
centrava-se exclusivamente no grafite e que se ampliou com a participação nas oficinas. O<br />
aluno que no início do projeto afirmava ser seu único desejo "pegar na lata", ao entrar em<br />
contato com os poemas escritos por pessoas do bairro e produzir os seus próprios, encontrou<br />
sentido na literatura. O processo de escrita lhe proporcionou abertura ao seu mundo interior<br />
e o acesso dos colegas a este mundo. Após ele ler um poema seu em voz alta para o grupo,<br />
uma aluna comentou: "Nossa, você está mostrando outro lado seu. Estou gostando". Falou de si,<br />
mas não só. Experimentou novas aptidões compondo letras de rap. Além de toda essa<br />
riqueza, o contato com o educador das oficinas também lhe possibilitou ampliar o olhar a<br />
respeito do ser punk. Relatou o olhar preconceituoso que tinha a respeito deste modo de ser,<br />
antes de conhecer o educador, e conta como este olhar se transformou a partir da<br />
convivência com ele nas oficinas: "Punk vê as coisas de outro jeito, imagina outro mundo. É bom<br />
ser punk porque você aprende mais".<br />
As relações comunitárias configuradas nas oficinas também repercutiram no educador.<br />
Tal experiência o provocou no sentido de querer estudar e buscar formas de aliar o "ser<br />
educador" ao trabalho profissional, o que gerou um movimento reflexivo de articulação<br />
interna, através do qual buscou integrar esta nova dimensão de seu ser. A resposta a esta<br />
integração, ele pareceu encontrar de duas formas: pela decisão de estudar de forma<br />
autônoma (não acadêmica) e, apoiando-se na visão da pedagogia libertária que, segundo sua<br />
interpretação, fora concebida por anarquistas.<br />
Vemos, portanto, que o encontro entre as comunidades escola e bairro fez germinar<br />
novas relações comunitárias, fecundas para o processo formativo dos seus membros.<br />
Conforme relato, percebe-se que a articulação envolveu principalmente os gestores da EMEF,<br />
seus alunos e o educador. Parece que um dos desafios a serem enfrentados em projetos<br />
futuros seria o de encontrar formas de envolver também os professores, membros essenciais<br />
da "comunidade-escola" e, portanto, essenciais também para que experiências como esta<br />
sejam incorporadas ao projeto político pedagógico da mesma, conforme desejo do diretor.<br />
Por fim, de acordo com a visão de Edith Stein, podemos dizer que as transformações<br />
ocorridas nos membros da "comunidade-escola" e da "comunidade-bairro" contribuíram<br />
para o crescimento destas comunidades, gerando reflexão e maior consciência a respeito de<br />
seus ideais e de seu modo concreto de ser e viver. O acompanhamento deste projeto nos<br />
permitiu afirmar que a articulação é um caminho educativo fecundo. Caminho cujos<br />
pressupostos de abertura e diálogo por parte dos envolvidos possibilitam a formação de<br />
vivências comunitárias, tão importantes para a formação humana na visão de Edith Stein.<br />
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Nota sobre as autoras<br />
Suzana Filizola Brasiliense Carneiro é mestre em Educação (Psicologia da Educação) pela<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutoranda do Programa de Psicologia<br />
Clínica da Universidade de São Paulo. E-mail: sf.carneiro@uol.com.br<br />
Heloisa Szymanski é doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia<br />
Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora titular do Programa de<br />
Estudos Pós-graduandos em Educação: Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade<br />
Católica de São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa em Práticas Educativas e<br />
Atenção Psicoeducacional à Escola, Família e Comunidade (ECOFAM). E-mail:<br />
hszymanski@uol.com.br<br />
Data de recebimento: 20/09/2011<br />
Data de aceite: 09/09/2012<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
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Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação<br />
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
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9 3<br />
Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita:<br />
investigação fenomenológica<br />
Voluntary action and religious experience in a spiritist institution: phenomenological<br />
investigation<br />
Yuri Elias Gaspar<br />
Miguel Mahfoud<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
Dada a atualidade da discussão da significação do voluntariado em determinado<br />
contexto religioso, objetivamos investigar a inter-relação entre voluntariado e experiência<br />
religiosa vivida e revelada pelos sujeitos da experiência. Para tanto, selecionamos uma<br />
instituição espírita como ocasião de apreensão dessa inter-relação pois, além de<br />
compreender que o Espiritismo propõe o voluntariado de modo próprio, percebemos<br />
como a religiosidade daquelas pessoas se apresenta enquanto elas se dedicam ao trabalho<br />
voluntário. Os dados foram coletados em entrevistas semi-estruturadas e analisados<br />
fenomenologicamente. A análise indica que (1) ação voluntária é vivida como abertura à<br />
experiência religiosa: doando-se ao outro em gestos, a pessoa reconhece sua ação<br />
sustentada por presenças transcendentes e direcionada à afirmação de horizonte<br />
absoluto; (2) vivência da religiosidade ordena a compreensão da realidade,<br />
fundamentando e direcionando a ação reconhecida como dever correspondente a si.<br />
Conclui-se que realização de si é fator estruturante da mútua-constituição entre<br />
voluntariado e experiência religiosa.<br />
Palavras-chave: psicologia fenomenológica; voluntariado; religiosidade; auto-realização<br />
Abstract<br />
Given the current discussion of the significance of volunteering in a specific religious<br />
context, we aimed at investigating the inter-relationship between volunteering and the<br />
religious experience, lived and revealed by the subjects that have such experience. To this<br />
end, we selected a spiritist institution as occasion for the understanding of this interrelationship<br />
because, besides understanding that Spiritism proposes volunteerism in its<br />
own way, we realized how the religiousness of those people was presented while they<br />
engage in volunteer work. We collected data in semi-structured interviews and analyzed<br />
them phenomenologically. The analysis indicates that (1) voluntary action is experienced<br />
as an openness to religious experience: by giving themselves to the other through<br />
gestures, people recognize their actions both supported by transcendent presences and<br />
pointed to the assurance of the absolute horizon; (2) the experience of religiousness<br />
arranges the understanding of reality, basing and guiding the recognized action as a<br />
corresponding duty to oneself. We conclude that the self-fulfillment is a structural factor<br />
of mutual-constitution between volunteering and religious experience.<br />
Keywords: phenomenological psychology, volunteering; religiosity; self actualization<br />
Introdução<br />
Dada a atualidade da discussão da significação do voluntariado em determinado<br />
contexto religioso, estudos acadêmicos têm se voltado para o tema partindo da realidade<br />
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
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brasileira. 1 Dentre tais estudos, emergem investigações que dão visibilidade a movimentos<br />
culturais que há muito propõem o voluntariado, em que se destaque o movimento espírita<br />
(cf. Cavalcanti, 1983; Giumbelli 1998; Sampaio, 2009; Stoll, 2003). Embora existam diferenças<br />
importantes no modo de interpretação da constituição do Espiritismo na realidade brasileira,<br />
é unanimidade entre os investigadores o reconhecimento da centralidade do voluntariado<br />
nesta constituição.<br />
Tomamos como referência as propostas de Giumbelli (1998) e Sampaio (2009), que<br />
evidenciam que, não obstante a recorrente associação genérica e pejorativa ao<br />
assistencialismo, a experiência de voluntariado no âmbito da Doutrina Espírita carrega uma<br />
complexidade que lhe é própria.<br />
Ambos os autores demonstram que tal experiência remete direta ou indiretamente à<br />
noção de caridade, um dos pilares do Espiritismo. No entanto, alertam que não é suficiente<br />
explicar o investimento espírita na assistência social somente aludindo ao compromisso<br />
doutrinário com a caridade. É preciso considerar as novas formas de envolvimento e<br />
elaboração da assistência social que vêm emergindo no contexto espírita. Trata-se de<br />
configuração emergente que ressalta a "caridade como cidadania, mas também cidadania<br />
afirmada pela caridade" (Giumbelli, 1998, p. 165).<br />
Essa discussão ganha nova consistência ao aproximarmos da experiência de pessoas<br />
que trabalham voluntariamente numa instituição espírita. Vislumbramos nesse contexto<br />
ocasião preciosa de compreender a articulação entre voluntariado e experiência religiosa, na<br />
medida em que percebemos como a religiosidade daquelas pessoas se apresenta enquanto<br />
elas se dedicam àquele trabalho. Nesse sentido, objetivamos neste artigo investigar a interrelação<br />
entre ação voluntária e experiência religiosa, tal como vivida e revela pelos sujeitos<br />
da experiência.<br />
1. Referencial teórico<br />
Encontramos na Fenomenologia de Husserl (1952/2006a, 1924/2006b, 1954/2008) e<br />
Stein (1932-33/2003, 1922/2005) o referencial teórico-metodológico capaz de nos auxiliar a<br />
investigar a experiência em sua unidade e complexidade, pois solicita um modo de olhar que<br />
parte das provocações daquilo que se manifesta - o fenômeno - tendo como meta<br />
compreendê-lo, deixando-o viver (Ales Bello, 1998, 2004). Olhar que repousa na relação que<br />
se estabelece entre o eu e o mundo, na realidade enquanto percebida por alguém (van der<br />
Leeuw, 1933/1964). Para apreender tal relação, a Fenomenologia se volta para a vivência,<br />
1<br />
O presente artigo é baseado na dissertação de mestrado "Ser voluntário, ser realizado: investigação<br />
fenomenológica numa instituição espírita" (Gaspar, 2010), orientada pelo prof. Miguel Mahfoud, defendida no<br />
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Apoio CAPES.<br />
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que se refere justamente à unidade entre ato do sujeito e fenômeno por ele apreendido (Ales<br />
Bello, 2004; van der Leeuw, 1933/1964).<br />
1.1. Dimensões constitutivas da pessoa<br />
Por meio da análise das vivências, Husserl identifica uma estrutura compartilhada,<br />
propriamente humana, que se configura como a base da subjetividade. Estruturalmente,<br />
somos capazes de perceber, sentir, imaginar, refletir, agir, embora o conteúdo dessas<br />
vivências possa ser variado. Apreendendo diferenciações qualitativas das vivências, a<br />
Fenomenologia reconhece três dimensões constitutivas do humano: a corpórea (corpo<br />
vivente), a psíquica (esfera do que nos acontece, vivências de reação) e a espiritual (esfera do<br />
posicionamento, vivências volitivas e intelectivas) (Ales Bello, 1998; Husserl, 1952/2006a;<br />
Stein, 1922/2005).<br />
Constituído por dimensões diferenciadas, o ser humano é uno e único, existente como<br />
eu-no-mundo, ser de relações. Para descrevê-lo, a Fenomenologia retoma o conceito de<br />
pessoa, que contempla a unidade humana singular e dinâmica, capaz de abertura para dentro<br />
(autoconsciência) e para fora (esfera de relações). Estruturalmente, o ser pessoal possui um<br />
princípio formativo que lhe confere potências e limites, e permite-lhe ordenar aquilo que<br />
recebe de modo a se constituir e a intervir no mundo externo (Stein, 1932-33/2003).<br />
1.2. Pessoa em ação<br />
Giussani (2009) abre caminho para apreender os elementos constitutivos da pessoa ao<br />
propor como ponto de partida a observação do eu em ação (Gaspar & Mahfoud, 2009).<br />
Ao analisar a constituição da pessoa em ato, Stein (1922/2005) destaca a radicalidade<br />
da dinâmica de motivação como capaz de desvelar as especificidades da experiência<br />
humana. É pela motivação que os atos se conectam, não automaticamente, pois o eu é o<br />
ponto de origem desse processo. Ao se voltar para o modo como os motivos se realizam na<br />
ação, Stein apreende o valor do ato livre enquanto plenamente motivado, isto é, em que o eu<br />
se expressa a partir de suas exigências radicais mobilizadas no mundo.<br />
Wojtyla (1982) destaca ainda que é somente em ação que a pessoa se revela em sua<br />
unidade e totalidade. Toda ação contém auto-realização, embora nem toda ação realize<br />
plenamente quem age, o que explicita a centralidade de um posicionamento moral que<br />
corresponda, a um só tempo, ao núcleo da pessoa e às solicitações da realidade.<br />
1.3. A pessoa e o mundo-da-vida<br />
Para compreender o substrato que possibilita ao sujeito elaborar a própria experiência<br />
em mútua constituição com o mundo que o cerca, Husserl (1954/2008) formula o conceito de<br />
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mundo-da-vida: mundo histórico-cultural concreto, fundamentado intersubjetivamente em<br />
usos e costumes, saberes e valores (Zilles, 1996). A um só tempo baseado na experiência<br />
pessoal e coletiva, o mundo-da-vida é "constituído por toda a bagagem de experiências<br />
vivenciais que cada ser humano possui e compartilha com o grupo ao qual pertence", e, por<br />
isso, é o fundamento sob o qual se assentam elaborações mais complexas que se constituem<br />
como cultura (Ales Bello, 1998, p. 38).<br />
O mundo-da-vida refere-se ao que é habitual, que nos confere segurança para nos<br />
movermos no campo da vida prática, cotidiana e, portanto, configura-se como estável e préreflexivo,<br />
embora possa posteriormente tornar-se objeto de reflexão (Ales Bello, 1998). Assim,<br />
cada pessoa não precisa inventar soluções novas a cada problema que surge: pode percorrer<br />
caminhos já trilhados por outros, sem se sentir sozinho e sem precisar lidar sempre com o<br />
desconhecido (Schutz cf. Wagner, 1979). Dando-lhe certezas, fornece a coragem para<br />
enfrentar o desconhecido e fazer um trabalho pessoal ao elaborar aquilo que encontra,<br />
podendo chegar até mesmo a questionar elementos do seu próprio mundo-da-vida.<br />
1.4. Expressão pessoal e experiência religiosa<br />
Ao se voltar para a análise do modo como se constitui a experiência propriamente<br />
humana, Giussani (2009) evidencia a possibilidade de um juízo diante do que se vive a partir<br />
de um critério imanente à estrutura originária da pessoa, chamado experiência elementar:<br />
conjunto de evidências e exigências (liberdade, justiça, beleza, felicidade, verdade, amor)<br />
constitutivas da pessoa.<br />
Em sua dinâmica característica, a experiência elementar é um ímpeto existencial de<br />
abertura à realidade que busca nela pontos de correspondência e de realização desse ímpeto,<br />
"face interior" da pessoa (Giussani, 2009, Mahfoud, 2012). Essa abertura pessoal, fator<br />
constituinte da razão, se exprime em certas perguntas radicais e inextirpáveis da vida do eu e<br />
pedem uma resposta total. E quanto mais a razão se volta na tentativa de respondê-las, mais<br />
se evidencia a desproporção dramática entre a resposta dada e o horizonte total que a solicita<br />
(Giussani, 2009). No impacto com a realidade, a vida desperta perguntas cujas respostas<br />
estão para além da medida do homem, mas que, existencialmente, em vez de paralisá-lo, o<br />
instiga cada vez mais (Giussani, 2009; Mahfoud, 2001, 2012).<br />
Esse dinamismo, denominado senso religioso, refere-se à "capacidade que a razão tem<br />
de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o lócus da consciência que o<br />
homem tem da existência" (Giussani, 2009, p. 88, grifos do autor). Isso significa que o ápice da<br />
conquista da razão consiste justamente em se abrir à totalidade dos fatores, aceitar<br />
maravilhado a provocação da realidade e perceber o sinal da Presença de um ser<br />
transcendente do qual tudo e todos dependem. Esta é a idéia de mistério. Portanto, o senso<br />
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religioso é a base da experiência religiosa, que consiste no relacionamento do eu com esta<br />
Presença misteriosa reconhecida como fonte de sentido (Giussani, 2009).<br />
Tal definição aproxima-se das elaborações de van der Leeuw (1933/1964) sobre a<br />
estrutura interna irredutível do fenômeno religioso. Analisando diferentes religiões, o<br />
fenomenólogo pôde identificar que todas apontam para o reconhecimento de um Poder<br />
transcendente, surpreendente e altamente solicitador. A experiência religiosa é, então, a<br />
resposta concreta que tenta realizar a busca propriamente humana por um sentido último e<br />
por um relacionamento com o Mistério que a transcende.<br />
2. Procedimentos metodológicos<br />
A partir da imersão na realidade de uma instituição espírita - a que chamaremos de<br />
Casa Espírita - de reconhecida notoriedade dentro do Movimento Espírita Mineiro e<br />
oficialmente vinculada à Federação Espírita Brasileira (FEB), selecionamos intencionalmente<br />
pessoas-referência quanto ao modo ideal de trabalhar ali, isto é, pessoas reconhecidas como<br />
modelos pelo modo como se envolvem pessoalmente e como vivenciam sua religiosidade<br />
naquele trabalho voluntário.<br />
Coletamos os dados por meio de entrevista semi-estruturada com a proposta de<br />
privilegiar não opiniões sobre o assunto, mas a expressão da experiência (Amatuzzi, 2008).<br />
Em momentos propícios à elaboração, solicitamos aos sujeitos que discorressem sobre o<br />
trabalho voluntário que realizam 2 . Ao longo da entrevista, buscamos não induzir que os<br />
sujeitos falassem aquilo que esperávamos deles, respeitando a dinâmica de elaboração de<br />
cada um, mas com cuidado para auxiliá-los a retomarem o foco na experiência sempre que<br />
necessário (Thompson, 1992). Como forma de resguardar os sujeitos, alteramos todos os<br />
nomes próprios.<br />
Os registros sonoros gravados foram transcritos integralmente, com cuidado para<br />
manter os estilos de linguagem de cada sujeito. Incluímos nas transcrições dados não verbais<br />
que pudessem ser reveladores da vivência dos sujeitos no momento da entrevista.<br />
Posteriormente, realizamos a textualização das transcrições com vistas a facilitar a leitura e a<br />
compreensão da experiência comunicada, com cuidado para que não fosse perdida sua<br />
vitalidade e complexidade original (Mahfoud, 2003).<br />
2.1. Análise dos dados: método fenomenológico<br />
A análise dos dados guiou-se pelo método fenomenológico (van der Leeuw,<br />
1933/1964), que toma os relatos como expressão do vivido e escava a subjetividade e o<br />
mundo-da-vida. Com esse procedimento, podemos chegar à constituição mútua eu-mundo e<br />
' A entrevista também foi acompanhada pela leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.<br />
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á estrutura das vivências, como elas se organizam e se manifestam (Amatuzzi, 1996; Ales<br />
Bello, 2004).<br />
Essa análise é viabilizada pela atitude de epoché, que consiste em suspender concepções<br />
prévias para voltar-se ao fenômeno buscando colher seus elementos essenciais. Tal postura<br />
crítica e antiespeculativa quer evitar sobreposição de construções categoriais ao significado<br />
do fenômeno estudado, para favorecer que emerja o que lhe é mais próprio, sua estrutura<br />
(Ales Bello, 1998, 2004; van der Leeuw, 1933/1964; Zilles, 1996).<br />
Como procedimento de análise, realizamos leituras sucessivas do material buscando,<br />
num primeiro momento, apreender o movimento da pessoa, seu modo próprio de<br />
elaboração. Num segundo momento, procuramos compreender os dados do ponto de vista<br />
da experiência de nosso interesse, atentando para o modo como a ação voluntária e a<br />
experiência religiosa se inter-relacionam.<br />
Como meio de apreender metodicamente a dinâmica da experiência e chegar a<br />
delimitar uma experiência-tipo a partir dos dados colhidos, tomamos como referência as<br />
diretrizes metodológicas propostas por van der Leeuw (1933/1964):<br />
(1) Nomeação: ato de dar nome às vivências, de modo a delimitar um problema a ser<br />
investigado. (2) Inserção na própria vida: vivência consciente e metódica das ressonâncias<br />
que o fenômeno em estudo provoca no pesquisador. Não "mergulhamos" de modo<br />
inconsciente nos dados, mas sim buscamos colher com rigor o impacto das vivências do<br />
outro como indicativos de um sentido a ser apreendido. (3) Inserção entre parênteses:<br />
suspensão da faticidade e de convicções pessoais prévias para a captação do sentido e da<br />
estrutura da vivência. (4) Elucidação: clarificação das vivências contempladas, em que se<br />
estabelecem categorias que ressaltem as conexões de sentido existentes. (5) Compreensão:<br />
espécie de união ou culminância das diretrizes antecedentes, na qual "a realidade caótica,<br />
inerte, converte-se (...) em uma informação, em uma revelação" (p. 648). (6) Retificação<br />
contínua: correção das compreensões alcançadas a partir do confronto com outros materiais.<br />
(7) Reconstrução da experiência vivida pelo sujeito visando a sua apresentação a terceiros de<br />
modo a possibilitar o acesso à compreensão da vivência alcançada.<br />
3. Resultados<br />
3.1. Olívia<br />
Manhã de sábado. O café da manhã é servido no refeitório às pessoas menosfavorecidas,<br />
os assistidos, que procuram a Casa Espírita em busca de assistência social. Já os<br />
voluntários que trabalham na Casa Espírita são conhecidos como tarefeiros. Alguns destes<br />
organizam-se para distribuir o café, o leite achocolatado, o pão com manteiga. Continuando<br />
em frente, saímos do refeitório e adentramos outro ambiente: cerca de vinte tarefeiros<br />
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vestidos com jaleco branco, touca, bocal e luvas debruçam-se sobre vasilhas picando frutas.<br />
Ao lado, outros tarefeiros preparam uma espécie de suco que será misturado às frutas<br />
picadas num grande recipiente, com capacidade para mais de cem litros. Terminada esta<br />
primeira etapa, enquanto alguns cuidam da limpeza das vasilhas utilizadas, outros<br />
distribuem a mistura em pequenos potes. Está pronta a salada de frutas. Mais tarde, a partir<br />
das onze horas, ela será servida aos assistidos como sobremesa da sopa.<br />
Acompanhando todo o processo, destaca-se a figura de Olívia, 54 anos, contadora<br />
aposentada e coordenadora desta tarefa. Ela não somente segue de perto a preparação da<br />
salada de frutas, verificando a quantidade precisa de cada ingrediente e o modo de distribuíla<br />
nos potes, como recebe de braços abertos todos os tarefeiros que vão chegando, verifica<br />
quem está presente e quais são suas atividades, orienta a redistribuição de funções, solicita<br />
que todos acelerem a tarefa caso seja necessário. O modo como Olívia realiza essas<br />
atividades chama nossa atenção: são marcantes sua alegria que contagia e dita o tom de<br />
como os tarefeiros realizam a tarefa, sua afeição autêntica com cada pessoa que encontra e o<br />
gosto de cuidar de cada detalhe para que a tarefa aconteça da melhor forma.<br />
Para tantas pessoas que encontramos na Casa Espírita, Olívia é a grande referência da<br />
tarefa da Salada de Frutas, não somente por ser coordenadora, mas principalmente por seu<br />
empenho em dar continuidade à tarefa e em defender a Salada nos mais variados contextos.<br />
Ao ser indagada sobre este trabalho que realiza no sábado, Olívia nos conta de seu<br />
"carinho especial" pela Salada, destacando os percalços que enfrentou ao longo da<br />
consolidação desta tarefa.<br />
Acontece. Igual outro dia: um dos colaboradores saiu... (...) Qualquer dinheiro<br />
para nós faz falta. Aí no mesmo dia em que eu estava falando com a Mariana<br />
chegou uma tarefeira e falou: "Olívia, eu queria colaborar, mas eu só posso dez por<br />
mês." Então já não é vinte que eu preciso, é dez, né? Que nós [ênfase] precisamos.<br />
Falei: "mas lógico, é muito bem-vindo." Aí chegou outro: "Olívia, posso colaborar<br />
com dez reais?" Inteirou os vinte! [risos] Eu fico feliz porque é a resposta da<br />
Espiritualidade, a resposta de Jesus para nós, certo? Porque se não fosse uma tarefa<br />
que fosse feita com amor, já tinha acabado, não ia durar tanto tempo. Quando eles<br />
dão essa resposta rápida, tipo assim: "é isso mesmo, eu estou no caminho". Então,<br />
você faz parte desse negócio todo sabendo que está no caminho. Eu estou dando o<br />
meu melhor e a Espiritualidade está aí, concordando com a gente.<br />
Justamente porque são as pessoas que assumem financeiramente a tarefa da Salada,<br />
colaborando com o próprio dinheiro voluntariamente, há o risco de alguém deixar de<br />
contribuir, e isso acontece. Quando um dos colaboradores saiu porque não tinha mais condições de<br />
ajudar, sustentar financeiramente a tarefa ficou mais difícil, uma vez que qualquer dinheiro faz<br />
falta. Mas, algo inesperado acontece: uma tarefeira quis contribuir, outro tarefeiro pediu para<br />
colaborar, e eis que inteirou os vinte reais necessários para continuar sustentando a tarefa. Ao<br />
se dar conta do caráter providencial deste acontecimento, isto é, quando reconhece que ele se<br />
dá segundo um desígnio que lhe é favorável, Olívia fica feliz, se realiza identificando neste<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ gasparmahfoud02
Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação<br />
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 1<br />
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fato a intervenção de presenças de ordem superior, porque é a resposta da Espiritualidade, a<br />
resposta de Jesus para nós. Para Olívia, a rapidez com que esta resposta é dada indica que ela<br />
está no caminho, e o fato dela dar o seu melhor neste caminhar mostra que esta presença da<br />
Espiritualidade está concordando com ela. Sem a intervenção desta ordem, a tarefa não ia durar<br />
tanto tempo, porque as pessoas da Salada não dariam conta, por si mesmas, de efetivamente<br />
assumi-la. Portanto, fazer com amor é fazer sabendo que não é só você quem faz.<br />
Para Olívia, é a percepção de que a Espiritualidade e Jesus estão facilitando e<br />
concordando com o caminho percorrido que direciona a ação voluntária por ela<br />
desenvolvida. Embora distintos, esses dois níveis de vivência se entrecruzam: é por<br />
trabalhar, isto é, por realizar a tarefa que Olívia pode perceber a intervenção divina<br />
providencial e, reconhecendo essa experiência religiosa como realizadora de si, ela a toma<br />
como resposta que sustenta e orienta o modo de agir voluntariamente.<br />
E como se dá o relacionamento de Olívia com a Espiritualidade?<br />
As vezes em que nós passamos dificuldades, a gente fala: "Paulo, você é mentor da<br />
Salada, meufilho, dá um jeito aípra gente." (...) E ele responde em atos. A gente<br />
passava sábados com pouco para dar para as crianças, (...) a gente punha aquele<br />
pouquinho... "ô tia, eu quero mais...". E eufalava "ó, Paulo, você se vira aí, meu<br />
filho. Nós estamos aqui e está muita pouca fruta." Aí no sábado seguinte sempre a<br />
gente ganhava mais uma caixa daqui, alguém que doava algum dinheiro, entendeu?<br />
Então, ele faz bem o papel dele de mentor. [risos]<br />
Em momentos de dificuldade, é a Paulo, mentor espiritual da tarefa, que Olívia recorre:<br />
dá um jeito aí pra gente. Para ela, o modo como Paulo responde é fazendo algo acontecer que<br />
resolva a situação, pois ele responde em atos. É por isso que para Olívia ele faz bem o seu papel de<br />
mentor. Trata-se de um relacionamento tão pessoal que Olívia tem a liberdade de pedir para<br />
ele "se virar aí" e a intimidade de chamá-lo de meufilho.<br />
Fico muito feliz quando a gente mentaliza João Alberto e Paulo, eles estão juntos,<br />
né? Não é só Paulo, tem o João Alberto, e, mais que tudo, Jesus. A gente está<br />
sempre lembrando que a tarefa é para Ele. Ele falou: "o que fizeres para qualquer<br />
um dos pequeninos épara mim quefazeis".<br />
Ao mentalizar João Alberto e Paulo, que estão juntos enquanto mentores da Sopa e da<br />
Salada de Frutas, atividades do departamento de Assistência Social, Olívia fica feliz por<br />
entrar em sintonia com a Espiritualidade. E entrar em sintonia com a Espiritualidade é entrar<br />
em sintonia, mais que tudo, com Jesus. Por que mais que tudo? No modo como Olívia toma a<br />
frase do Evangelho, é razoável entendermos que, para ela, servir salada de frutas para os<br />
assistidos é realizar a tarefa para Ele.<br />
Mais uma vez, Olívia nos comunica como a vivência religiosa incide diretamente no<br />
objetivo de sua ação voluntária. Não há como desvencilhar uma da outra: no ato mesmo de<br />
trabalhar voluntariamente para os assistidos, Olívia amplia seu horizonte de observação e<br />
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compreende que está atendendo ao chamado de Jesus e, portanto, trabalhando para Ele. E<br />
Jesus é, mais que tudo, sentido último da tarefa que direciona o modo concreto de doar para<br />
os assistidos.<br />
Esta compreensão ajuda Olívia a problematizar o sentido da tarefa:<br />
Toda tarefa, afinalidade dela éessa [a reforma íntima]. (...) A gente, aqui na Casa<br />
Espírita, tenta sempre passar isso para as pessoas, que ser tarefeiro é muito mais<br />
que ser voluntário. Porque o voluntário, no conceito geral, é aquela pessoa que vai<br />
quando tem uma horinha, quando pode. Têm alguns até que são persistentes, mas se<br />
prendem à palavra "voluntário". "Eu sou voluntário." (...) Já o tarefeiro, ele tem<br />
um compromisso [ênfase] com a Casa. Ele tem um horário a cumprir (...) É um<br />
trabalho, mas para Jesus, não é para nenhum de nós. Então, o compromisso é muito<br />
grande. Não que o voluntário também não faça. Mas a gente, dentro da Casa<br />
Espírita, tem que ter muita consciência disso. (...) E... se você falta e eu falto,<br />
sempre tem alguém. Mas é pela nossa própria necessidade.<br />
Para Olívia, tomar a reforma íntima como finalidade da tarefa é um ponto que diferencia<br />
a postura do tarefeiro da postura do voluntário. Enquanto o voluntário, no seu conceito geral,<br />
trabalha quando pode e faz questão de dizer que é voluntário, se auto-afirmando sob o próprio<br />
trabalho, o tarefeiro, para ser considerado como tal, precisa ter a consciência do compromisso<br />
assumido consigo mesmo, com a Casa Espírita e com o sentido último que a tarefa expressa,<br />
isto é, com um trabalho para Jesus. Esse compromisso assumido não significa auto-afirmação<br />
voluntarista, pois se você falta e eu falto, sempre tem alguém, a tarefa vai continuar. Isso significa<br />
que, para Olívia, não estão somente no indivíduo a força e o sentido da tarefa: pelo contrário,<br />
a pessoa deve trabalhar percebendo e afirmando sua participação em uma obra maior,<br />
reconhecendo que está ali pela sua própria necessidade. Em síntese, ser tarefeiro é muito mais que<br />
ser voluntário, é ser capaz de aderir a uma proposta feita por um outro com consciência dos<br />
objetivos a serem alcançados, com clareza do sentido último a ser afirmado e com<br />
comprometimento com o próprio processo de crescimento pessoal.<br />
Para Olívia, fazer a tarefa é um dever que não elimina a possibilidade de realização que<br />
este fazer contém. A todo o momento, Olívia descreve a satisfação que a tarefa lhe traz,<br />
independente de qual seja:<br />
Eu tenho outra tarefa na segunda, que é de Passe, que é outra gratificante, porque o<br />
passista, ele é o primeiro a receber mesmo. Então quando você sai, conclui essa<br />
tarefa, você sai altamente revigorado, sabe? Você sai com uma energia que dá<br />
vontade de abraçar o mundo! Porque você é um canal. A Espiritualidade pega<br />
energia sua, trabalha nessa energia e a passa para aquele paciente. E é por isso que<br />
você tem que ter uma entrega principalmente no dia da tarefa. (...) Aliás, toda<br />
tarefa tem que vir com o seu melhor.<br />
Olívia se realiza na tarefa do Passe por reconhecer que é a primeira a receber, pois fazer<br />
esta tarefa a revigora de um modo tal que lhe dá vontade de abraçar o mundo. Então é<br />
gratificante, mas isso não significa que o foco principal seja favorecer o tarefeiro, pois o que é<br />
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característico dessa tarefa é o fato de o passista ser canal para que a Espiritualidade trabalhe<br />
passando energia para aquele paciente. Para Olívia, ser este canal a solicita a empenhar-se e a<br />
cuidar-se no dia a dia de modo a estar efetivamente disposta para que a tarefa se concretize.<br />
Reconhecendo essa sua entrega ao trabalhar como passista, Olívia apreende um critério que<br />
deve orientar todas as tarefas: tem que vir com o seu melhor.<br />
Portanto, ela se realiza ao perceber que sua atividade a transforma em instrumento da<br />
Espiritualidade: ela recebe e doa energia para o outro e, nesse processo, toma para si o que<br />
recebe, vitalizando-se e sentindo-se mobilizada a agir considerando horizontes de totalidade.<br />
E na tarefa de Visita aos Lares, em que ela também atua, não é diferente:<br />
Na terça, eu faço Visita aos Lares, que também é gostoso. (...) A gente vai levar o<br />
Evangelho [ênfase] de Jesus para dentro da casa da pessoa. E a gente sabe que<br />
quando é pedido um passe no lar, a pessoa está com o comprometimento espiritual<br />
maior. (..) Muitas vezes não é a pessoa que está tomando o passe, ela é só um canal<br />
para dentro de casa. E nunca você está sozinho naquele ambiente, tem irmãos que<br />
estão vendo do plano espiritual e que estão tão necessitados quanto. (...) A gente faz<br />
um pequeno culto. Você vai cantar um hino para sintonizar; fazer uma oração<br />
inicial; fazer uma leitura; (...) comentar a leitura; dar o passe e encerrar. É um<br />
culto isso aí. (...) são vinte minutos em que a gente percebe a ansiedade que a<br />
pessoa fica esperando a gente, sabe? "Ah, vocês chegaram!" Então não pode nem<br />
atrasar, porque a gente sabe da ansiedade do outro. É um quadro gostoso.<br />
Olívia enumera vários fatores envolvidos na tarefa de Visita aos Lares: o<br />
comprometimento espiritual da pessoa que é visitada, o fato de ela ser um canal para dentro de<br />
casa, a presença naquele ambiente de Espíritos desencarnados tão necessitados quanto; mas<br />
reafirma que a questão é levar o Evangelho de Jesus. Todo o conhecimento espírita e a estrutura<br />
de como se deve fazer este pequeno culto estão em função desse objetivo. O alcance deste<br />
objetivo, acrescido da espera de quem será visitado e do cuidado que isso desperta em<br />
Olívia, compõem para ela um quadro gostoso. E que gosto é esse que Olívia vivencia?<br />
Entáo... é difícil, a pessoa está com uma dificuldade... mas o gostoso é perceber...<br />
Igual, um lar que a gente adentrou de uma pessoa muito chorosa. (...) E essa<br />
semana, que ela está tomando o quarto passe, é outra pessoa. O prazer... é um<br />
prazer enorme. Vocêfala: "pó\...". Cara, eu chego em casa (...) efalo assim: "Jesus,<br />
você me deixa [ênfase] participar disso!", sabe como? Eu vou agradecer: "Jesus,<br />
você me deixa [ênfase] participar dessa maravilha de...". Lógico que eu tenho<br />
consciência que não sou eu, não é a minha dirigente, nem a equipe. Nós fazemos<br />
parte, Ele deixa a gente fazer parte, porque... vê se Ele precisa da gente, né? Então<br />
por isso que a gente tem que ter essa cautela [ênfase] de não achar [ênfase], não é?<br />
Se achar [ênfase], não. Ele só deixa a gente participar. Para, quem sabe um dia,<br />
desenvolver a caridade real... Hoje em dia a gente aindafaz porque precisa, mas um<br />
dia a gente vai fazer com esse desprendimento com que a Espiritualidade faz,<br />
simplesmente porque ama. Não tem outro sentido a não ser esse. Então, é<br />
gratificante. Essa semana ela [está] mais centrada, mais tranquila...<br />
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Embora envolvida em uma situação difícil, em que precisa lidar com pessoas em<br />
dificuldade, Olívia vivencia um prazer enorme por poder ajudar uma pessoa a sair de uma<br />
postura chorosa, de modo a ficar mais centrada, mais tranqüila. Retomando essas experiências<br />
quando chega em casa, ela se dá conta de que a maravilha desse acontecimento não está<br />
unicamente em sua mãos. Olívia tem clareza de que não é ela que faz o processo acontecer,<br />
porque sabe que nem Jesus nem a Espiritualidade precisam dela para fazer a caridade: vê se<br />
Ele precisa da gente, né? Olívia, a dirigente e a equipe participam dessa experiência, mas não a<br />
sustentam por si mesmos, pois é um Outro que a faz: Ele só deixa a gente participar. Por isso<br />
não há sentido em se achar. Por isso o fato dela poder participar dessa experiência gratificante<br />
é reconhecido como uma oportunidade concedida, despertando gratidão: "Jesus, você me<br />
deixa participar disso!". Gratidão também porque tais experiências se constituem como ocasião<br />
de aprendizado e crescimento pessoal, pois, se hoje ela aindafaz porque precisa, sua esperança<br />
é de que a prática a conduza a fazer com esse desprendimento com que a Espiritualidade faz.<br />
Em síntese, o maravilhamento diante de um acontecimento solicita Olívia a reconhecer<br />
que esta experiência lhe foi dada por Alguém. Assim, não há porque se auto-afirmar<br />
exaltando o próprio trabalho: a resposta que lhe corresponde é a gratidão por poder<br />
participar de algo que ultrapassa sua própria capacidade. Essa experiência abre horizontes<br />
que a permitem vislumbrar sua espera pela caridade real, espera por um dia poder agir com<br />
desprendimento, simplesmente porque ama. Chegar a fazer por amor: é por isso que Olívia se<br />
dedica à tarefa, porque não tem outro sentido a não ser esse, e gostaria que todos soubessem de<br />
quê se trata:<br />
Tarefa é muito gostoso. Se as pessoas soubessem a força, a grandeza que é essa<br />
oportunidade... de estar junto de Jesus fazendo o que Jesus fazia, contente,<br />
caminhando lado a lado, ombro a ombro... acho que o mundo todo abraçava, cada<br />
um abraçava uma coisa para fazer.<br />
Retomando todo seu percurso de elaboração sobre o sentido da tarefa e sobre o gosto<br />
que se vive ao realizá-la, Olívia pode expressar com convicção que se as pessoas soubessem o<br />
que ela sabe, o mundo todo abraçava. Partindo do âmbito circunscrito da sua experiência<br />
pessoal, da alegria por estar junto a uma Presença tão significativa para ela, por caminhar<br />
ombro a ombro com Ele e por se realizar na tarefa em Sua companhia, Olívia é capaz de dar<br />
um juízo que se abre para a humanidade inteira. Ela identifica aforça e a grandeza, isto é, o<br />
valor da oportunidade oferecida pela tarefa e daí extrai a potência que o conhecimento desse<br />
valor tem de provocar o ser humano a se mover, a abraçar uma coisa para fazer.<br />
Assim, tantos sentidos abertos pela tarefa, tantas possibilidades de realização e de<br />
vivência de experiências religiosas de integração com a divindade retornam ao elemento<br />
mais concreto, à ação: tudo isso é possível pelo fazer e convida a fazer. É a concretude da<br />
tarefa realizada, com esforço e cuidado, que possibilita e sustenta essa dinâmica.<br />
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3.2. Telma<br />
No sábado pela manhã, logo após as onze horas, cresce a fila de assistidos na porta do<br />
refeitório. Crianças, suas mães e pessoas idosas têm preferência e adentram o salão enquanto<br />
os demais aguardam. Os caldeirões já foram dispostos nas cabeceiras das mesas e estão<br />
cheios de sopa fervilhante. Enquanto os assistidos são instruídos a se acomodarem nas<br />
mesas, tarefeiros executam suas respectivas funções: preparar e colocar a sopa nos<br />
caldeirões, servir a sopa nos pratos, entregá-la aos assistidos, repor a sopa para aqueles que<br />
solicitam repetição, limpar as mesas quando necessário e todo o salão ao final da tarefa. O<br />
ritmo é ditado pelo número de assistidos que receberão a refeição e, para que o processo<br />
tenha continuidade, é preciso que os pratos e talheres utilizados sejam constantemente<br />
lavados para serem reutilizados.<br />
A "lavação dos pratos" é feita por quatro a cinco tarefeiros num espaço próximo ao<br />
refeitório. Sobre uma bancada, bacias cheias de água e produtos de limpeza são instrumento<br />
para um processo cuidadoso de lavagem. Nesse espaço, o rigor com que são cumpridas as<br />
normas de higiene é entremeado por gargalhadas. É lá que encontramos Telma, uma dona de<br />
casa de 60 anos que caminha com dificuldade e que por onde passa leva um sorriso no rosto,<br />
sendo alvo constante de brincadeiras. Suas risadas são inconfundíveis. Embora não seja<br />
coordenadora, Telma, que há trinta anos trabalha na Casa Espírita, é uma figura bastante<br />
conhecida e respeitada no setor de nutrição por sua simplicidade, vivacidade e trajetória de<br />
vida. Para muitos, é surpreendente que ela continue perseverando na tarefa mesmo com a<br />
saúde debilitada por problemas de articulação nos joelhos e por uma catarata progressiva,<br />
que ameaça roubar-lhe completamente a visão. É também digno de nota o fato de que ela<br />
não possui sequer o ensino fundamental completo, freqüenta a Igreja Católica e que, sendo<br />
muito pobre, mora em um bairro periférico distante e por isso precisa pegar dois ônibus para<br />
chegar até a Casa Espírita.<br />
Não admira que Telma seja alguém capaz de solicitar tanto os demais tarefeiros, sendo<br />
considerada referência por muitos. Vejamos o que ela mesma comunica da sua experiência<br />
na tarefa.<br />
Yuri: Eu queria saber como é o trabalho que vocêfaz, o que vocêfaz aqui na Casa...<br />
Telma: De uns tempos para cá, agora, eu estou só na sexta e no sábado. Na sextafeira<br />
a gente vem, corta legumes, lava tudo direitinho e guarda. E cozinha ofeijao...<br />
põe tudo no freezer e guarda tudo direitinho. E lava tudo, as vasilhas, tudo<br />
direitinho, seca e guarda. Isso na sexta, né?<br />
Yuri: Vocês cortam o legume para sábado?<br />
Telma: Corta tudo, separa, guarda o que tem que guardar na geladeira e... casca<br />
tudo, corta e lava com muito cuidado para não sair nada errado. [tom de<br />
brincadeira]<br />
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Ao iniciar o relato sobre seu trabalho, Telma enfatiza a dimensão cronológica das<br />
tarefas que realiza: de uns tempos para cá, agora, eu estou só na sexta e no sábado. Nessa primeira<br />
afirmação, é possível colher seu interesse em comunicar que já esteve envolvida em outras<br />
tarefas, dando a entender que está na Casa Espírita há algum tempo e que, comparado ao que<br />
ela já fez, o trabalho que ela realiza atualmente é pouco: estou só na sexta e no sábado. A ênfase<br />
nesses dois fatores, o tempo de trabalho e a quantidade de atividades realizadas, sugere-nos<br />
o valor, para Telma, do ato de fazer tarefa. Outro indício desse valor pode ser apreendido no<br />
modo como ela, ao listar suas tarefas de sexta, destaca seu empenho para que saia tudo<br />
direitinho. Não basta vir, separar, cortar, cozinhar, lavar, secar e guardar, é preciso realizar<br />
cada uma dessas atividades com muito cuidado para não sair nada errado. Descrevendo o<br />
cotidiano da tarefa, Telma ressalta seu empenho e zelo com cada alimento e objeto<br />
manuseado: tudo é cuidado assim.<br />
[Hoje] eu fico mais é na lavação no sábado. Justamente agora que eu não tenho<br />
muita força nas pernas, também não estou enxergando direito, então eu me imagino<br />
no meio do povão lá dentro, eu tenho medo de esbarrar em alguém e cair, tenho<br />
medo de tropicar e cair. Então para cá eu fico mais segura. Então, de qualquer<br />
maneira, é a tarefa que está saindo. Mas se precisar de mim ali no meio do povão, é<br />
lógico que vou. Comigo não tem escolha de serviço não. Qualquer [ênfase] lugar na<br />
Casa que precisar de mim, eu vou lá. Por enquanto eu estou para cá, eu estou<br />
contente [risos]. Está tudo certo.<br />
Diante de sua fragilidade física e do medo daí decorrente, Telma opta por não realizar<br />
tarefas dentro do refeitório onde é servida a sopa, e por se dedicar à tarefa de lavação, pois lá<br />
ela se sente mais segura. Entretanto, mesmo diante dessas limitações, Telma faz questão de<br />
afirmar que não é essa condição que a determina, já que a tarefa está saindo, ela está contente e,<br />
como conclusão, está tudo certo. Independente de sua fragilidade ou da atividade a ser<br />
realizada, Telma reafirma o gosto por permanecer trabalhando e sua disposição para<br />
continuar: se precisar de mim, é lógico que vou, pois comigo não tem escolha de serviço não.<br />
Mais uma vez, emerge o valor da ação voluntária para Telma, valor que é exacerbado<br />
seja na descrição das condições adversas, seja na afirmação da disposição por superá-las.<br />
Nessa elaboração, Telma sublinha as restrições ao mesmo tempo em que comunica seu<br />
empenho: o ponto é explicitar que ela se dedica onde for preciso. Trata-se de uma dedicação<br />
que reformula o modo como ela concebe o próprio trabalho.<br />
[Antes], se eu fizesse o trabalho e visse alguém ganhar alguma coisa, eu também<br />
queria. Eu achava que eu também trabalhei, entáo... Só que a gente, assim, no<br />
íntimo da gente, a gente ganha muito mais do que... né? Então é isso que me dá<br />
força.<br />
Telma reconhece que ao trabalhar ganha muito mais do que alguma coisa. Com o tempo,<br />
ela descobriu que fazer a tarefa lhe traz uma gratificação muito maior que qualquer<br />
recompensa material. Trabalhando, Telma acredita ter se modificado, tornando-se capaz de<br />
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não levar em consideração o que não lhe faz "bem", em suas palavras. Sua ação voluntária<br />
abriu possibilidade de rever posicionamentos e caminhar desprendendo-se do que lhe é<br />
nocivo. Além disso, reconhecer o verdadeiro ganho, aquele que se dá no íntimo, lhe dá força.<br />
Força para quê?<br />
Telma: Me dá força, nossa! Igual, hoje mesmo eu acordei sentindo tanta [ênfase]<br />
dor nas pernas. Falei: "ô meu Deus, eu não vou lá não, porque eu não vou dar<br />
conta." Aí depois eu pensei: "meu Deus, éferiado. Eu vou tomar o remédio e vou!"<br />
Aí tomei o remédio, enfiei debaixo do chuveiro e estou lá: "ai, João Alberto, dá força<br />
nas minhas pernas, dá força nas minhas pernas...". Quando eu me vi eu estava<br />
aqui! [risos] É engraçado isso, né? É muito engraçado! Eu não dou sossego para o<br />
João Alberto não, eu peço força para o João Alberto o tempo todo. Nó! Tenho fé<br />
mesmo, muito.<br />
Yuri: E você quis vir no feriado, por quê?<br />
Telma: Porque eu imaginei que viria pouca gente. Aí falei: "gente, deixa eu ir lá."<br />
A força que Telma ganha é disposição para trabalhar superando as dificuldades,<br />
disposição sustentada pelafé. Sofrendo com a dor nas pernas, ela dialoga com Deus, dizendolhe<br />
acreditar que não conseguirá realizar a tarefa: eu não vou dar conta. Mas a intuição de que<br />
no feriado poderia haver pouca gente trabalhando na tarefa reacende em Telma o juízo de se<br />
dedicar ao trabalho sempre que for preciso. Retomando esse ponto, as hesitações<br />
desaparecem, e Telma pode se posicionar a favor do que reconhece como mais<br />
correspondente: eu vou tomar o remédio e vou! Entretanto, ela sabe que cuidar do que lhe<br />
corresponde não é algo que possa fazer sozinha: por isso pede ajuda a João Alberto, mentor<br />
espiritual da tarefa, para sustentar sua disposição para o trabalho. O reconhecimento da<br />
resposta imediata, quando eu me vi eu estava aqui, é vivido com surpresa, levando-a a retomar<br />
suafé em João Alberto, a quem ela recorre o tempo todo: Eu não dou sossego para o João Alberto<br />
não.<br />
Telma reafirma constantemente o seu ímpeto por superar os obstáculos para<br />
permanecer se dedicando à tarefa e, neste trecho, ela nos comunica que seu empenho é<br />
sustentado por interlocutores de seu diálogo íntimo: Deus e João Alberto. Nesse sentido, a<br />
vivência religiosa de relacionamento com figuras transcendentes incide no modo como ela<br />
realiza a ação voluntária: é a elas que Telma recorre quando percebe que não consegue<br />
sustentar sozinha o seu posicionamento. Observando que adquire forças para trabalhar<br />
mesmo quando acredita que não vai dar conta, Telma compreende que é a intervenção deles<br />
que opera modificando a realidade e instigando-a a continuar.<br />
3.3. Márcia<br />
Num espaço próximo ao refeitório em que são servidos o café da manhã, a sopa e a<br />
salada de frutas, bebês e crianças de até quatro anos transitam no colo ou de mãos dadas com<br />
tarefeiras vestidas de aventais. O modo como as crianças saem dali, limpinhas, cheirosas,<br />
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com cabelo bem penteado e roupa impecável chama atenção de todos que as vêem e já<br />
anuncia o que elas foram fazer: tomar banho. O "Banho Infantil" é uma tarefa que acontece<br />
todos os sábados, das nove às onze e meia da manhã. Embora a tarefa aconteça há muitos<br />
anos, o local em que é realizada foi recentemente alterado: é o "Banho novo". Em virtude da<br />
alteração do local, hoje, todo o setor da Assistência Social acompanha o trânsito de crianças e<br />
tarefeiras e são notáveis o cuidado e o carinho com que os pequenos são tratados.<br />
Aproximando-nos do local do Banho, vemos por uma vidraça que cada tarefeira cuida de<br />
uma criança em uma etapa diferente do processo: primeiro tirar a roupa, depois dar o banho<br />
propriamente dito, secar, vestir a roupa, arrumar o cabelo.<br />
Em meio a este trabalho, destaca-se a figura alegre de Márcia, coordenadora da tarefa.<br />
Ela possui 59 anos, é atriz e produtora executiva, trabalha na Casa Espírita há treze anos e, há<br />
nove, começou no Banho Infantil. Sua vivacidade e a proximidade que demonstra ter com as<br />
crianças e as mães bem como o modo como orienta as colegas de trabalho indicam-nos sua<br />
centralidade na execução daquela tarefa.<br />
Ao nos mostrar o espaço do Banho Infantil, Márcia opta por descrever cada etapa do<br />
trabalho, voltando-se para a sua experiência de modo a nos comunicar a importância do<br />
cuidado da preparação, da organização e do cuidado no desenvolvimento da tarefa.<br />
Acompanhemos como Márcia se propõe a transmitir às mães esse cuidado:<br />
Por exemplo, aconteceu um caso aqui muito interessante e toda vez eu cito. Tinha<br />
uma mãe que não dava banho aqui porque tinha medo. Ela falava "eu não conheço<br />
as pessoas que dão banho, não sei como é que é". Aí eu a trouxe aqui para conhecer<br />
o Banho. Ela achou lindo: "eu vou deixar o meu neném tomar banho com vocês."<br />
Mas a irmã dela não quis deixar: "você nem conhece, como é que você vai deixar?".<br />
No outro sábado, eufalei para ela: "e aí?", e elafalou: "minha irmã acha que eu não<br />
devo." E o que aconteceu? A menina dela teve uma diarréia tão grande que sujou<br />
até a raiz do cabelo, de tanto que a menina ficou suja. Aí ela chegou com a menina<br />
aqui e falou: "gente, pelo amor de Deus, me ajuda." Eufui, dei banho e botamos a<br />
menina toda cheirosa, toda linda. Quando eu entreguei para a mãe, ela viu, olhou<br />
para mim e falou: "de hoje em diante, minha menina vai tomar banho aqui todos os<br />
sábados." Essa menina... quando a gente chega lá, ela fica doida! Desde<br />
pequenininha até hoje, quando a gente chega, ela fica com os bracinhos. Eu tenho<br />
que pegá-la e ela fica o tempo todinho comigo porque sabe que vem dar banho. E se<br />
eu a devolvo para a mãe, ela não quer. O que ela quer? Tomar banho. Então, para<br />
você ver, como até mesmo os Espíritos encaminham, porque sabem que aquela<br />
criança está precisando.<br />
Para mostrar como constrói seu relacionamento com as mães, Márcia se ancora em um<br />
caso que ela cita toda vez por considerar muito interessante. Diante da opção de uma mãe por<br />
não deixar sua filha tomar banho devido ao medo por não conhecer as tarefeiras nem o modo<br />
de realização da tarefa, Márcia se posiciona levando-a para conhecer o Banho. Mesmo<br />
impactada pela beleza do que viu, a mãe mantém a decisão de não deixar a filha lá,<br />
influenciada pela opinião da irmã. Mas eis que um novo fato acontece: a menina, com<br />
diarréia, suja-se muito, obrigando a mãe a recorrer à ajuda de Márcia para limpar sua filha. A<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ gasparmahfoud02
Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação<br />
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de ^"<br />
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mãe, provocada pelo resultado final do trabalho, que deixou sua filha toda cheirosa, toda linda,<br />
reformula sua decisão: "de hoje em diante, minha menina vai tomar banho aqui todos os sábados." E<br />
não foi só a mãe que gostou. A menina, quando vê Márcia, já sabe que é a hora do banho,<br />
ficando doida porque quer tomá-lo. Para Márcia, toda essa experiência é uma evidência da<br />
intervenção dos Espíritos que, neste caso, encaminharam esta criança para o banho porque<br />
sabem que ela está precisando.<br />
Compreendemos que, para Márcia, este caso é interessante porque evidencia diversos<br />
aspectos que ela considera essenciais em sua ação voluntária no Banho Infantil: o fato de que<br />
é a reflexão sobre situações concretas por ela vivenciadas que orienta o modo de conduzir a<br />
tarefa; o valor do cuidado e do respeito no relacionamento com as mães; a experiência de<br />
maravilhamento que essa tarefa provoca em quem a conhece; a importância de, pelo<br />
trabalho, despertar o gosto e conquistar a confiança tanto das crianças quanto das mães; o<br />
reconhecimento da intervenção dos Espíritos em função da necessidade da pessoa.<br />
Com relação a este último aspecto, Márcia afirma:<br />
Porque o banho não é só um banho. Como a sopa. Os Espíritos põem dentro da sopa<br />
tudo aquilo que... Eles estão nos vendo e sabem o que a gente precisa. Então, cada<br />
assistido vai comer aquela sopa e vai ter ali dentro o que ele necessita para poder...<br />
E eu acho que o banho é assim também. A tarefeira está dando um passe na criança,<br />
e [transmitindo] o amor que elas têm pelas crianças. Aquilo faz com que aquela<br />
criança, quando está doente, melhore; a mãe, quando está com problema, melhora.<br />
Ao comparar o banho com a sopa, entendemos que Márcia objetiva explicitar o modo<br />
de intervenção dos Espíritos na tarefa, ressaltando o saber que eles têm sobre o que a pessoa<br />
precisa. Para ela, enquanto na sopa os Espíritos colocam ali dentro o que é necessário, no<br />
banho a intervenção é via passe, isto é, as tarefeiras são instrumentos que repassam energia<br />
para a criança. Soma-se a isso a transmissão do amor que elas têm e, como resultado, Márcia<br />
apreende como a ação realizada na tarefa do banho faz com que aquela criança, quando está<br />
doente, melhore; a mãe, quando está com problema, melhora.<br />
É nesse sentido que o banho não é só um banho. Compreendemos que, na experiência de<br />
Márcia, está implícito algo a mais nessa atividade, pois sua ação é ocasião tanto de abertura<br />
para o relacionamento com presenças que transcendem o plano material, mas que intervêm<br />
material e espiritualmente em função do que é preciso, quanto de concretização do amor que<br />
o tarefeiro nutre pela criança assistida. Contemplando esse processo, Márcia conclui que a<br />
comunhão desses fatores faz com que aconteçam transformações na vida dos assistidos, o<br />
que significa que, para ela, sua ação voluntária atinge horizontes mais amplos do que sua<br />
finalidade imediata.<br />
E como Márcia lida com o reconhecimento destes horizontes presentes na tarefa?<br />
No começo do ano, o marido de uma das mães foi assassinado. Uma das menininhas<br />
deles tomava banho aqui. E elaficou assim... ela presenciou tudo. Sempre quando<br />
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ela chegava aqui, a gente se reunia, fazia uma oração para ela e para o pai. Porque a<br />
gente sabe que [se a pessoa] morrer naquelas circunstâncias, fica por aí. E ele era<br />
muito apegado com ela. A menina o via, sabe? Falava para a mãe: "olha o meu pai<br />
ali." Quer dizer, não está, mas ele estava presente. Ele não queria ir embora. Então<br />
nós fizemos muita oração para eles, todas as tarefeiras. Toda vez lá em casa, no<br />
Culto no Lar, colocamos o nome dele. São pessoas que a gente nunca viu, não<br />
conhece, mas o nome e o endereço estão ali para orarmos.<br />
O fato de que uma das crianças assistidas presenciou o assassinato do próprio pai<br />
provoca Márcia profundamente. De acordo com a sua compreensão calcada na Doutrina<br />
Espírita, morrer naquelas circunstâncias leva a pessoa a ficar por aí, o que justificaria o fato de<br />
que a menina o via e a conclusão de que ele não queria ir embora. A provocação vivida diante<br />
deste acontecimento e a compreensão sobre o que nele está implícito mobilizam Márcia e as<br />
demais tarefeiras a reformularem o modo de lidar com a menina, reunindo-se antes de<br />
recebê-la no Banho para fazer uma oração para ela e para o pai. Esse movimento de oração se<br />
estende para fora dos muros da instituição, pois Márcia também ora para ele em sua casa, no<br />
Culto no Lar.<br />
Na forma como Márcia narra este caso e apresenta seu posicionamento a respeito,<br />
vislumbramos como, de modo semelhante ao que afirmou a respeito dos Espíritos, ela age<br />
buscando levar em consideração o que a mãe e a criança estão precisando em suas vidas. E,<br />
ao relatar que ora em sua casa por pessoas que nunca viu, ela indica como sua experiência<br />
religiosa contribui no modo como ela se relaciona pessoalmente com os assistidos,<br />
especialmente com as mães.<br />
Você ter essa relação também com as mães. De ver o que a gente pode fazer para<br />
diminuir um pouco o sofrimento delas, porque não é fácil não. É uma vida muito<br />
difícil a delas. A gente, que não passa por esse tipo de coisa, acha às vezes que nem<br />
existe (...) mas acontece, e muito. E aqui a gente aprende essa lição. Aprende a<br />
agradecer a família que a gente tem, aprende a agradecer ter nascido espírita e saber<br />
da Doutrina Espírita. Porque tudo que a gente faz, a Doutrina Espírita dá uma<br />
força para a gente.<br />
Márcia, que não passa por esse tipo de dificuldade, acha às vezes que nem existe, mas a<br />
convivência com as mães proporcionada pela tarefa lhe ensinou a lição de que é preciso<br />
reconhecer que os problemas acontecem, e muito, e de que é preciso fazer o que se pode para<br />
diminuir um pouco o sofrimento delas. Diante dessa provocação, Márcia também colhe a lição da<br />
gratidão: aprende a agradecer a família que tem, aprende a agradecer ter nascido espírita e saber da<br />
Doutrina Espírita. Gratidão pelo fato de ter uma base familiar e religiosa que lhe dá umaforça<br />
em tudo que ela faz.<br />
Compreendemos que, para Márcia, a experiência de trabalhar voluntariamente é<br />
ocasião de abertura para o relacionamento com o outro em toda a sua dramaticidade, isto é,<br />
nas dificuldades que ele enfrenta em sua vida e na possibilidade concreta de se posicionar<br />
pessoalmente ajudando-o a enfrentar e diminuir seus problemas. Além disso, ao se dar conta<br />
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dessa realidade, Márcia agradece por aquilo que recebeu, seja no âmbito familiar, seja no<br />
âmbito religioso, e que lhe dá sustentação e lhe impulsiona em tudo que ela faz, inclusive em<br />
sua ação voluntária.<br />
Além disso, nas palavras de Márcia, as tarefeiras "estão aqui aprendendo", ou seja, ela<br />
destaca a função de aprendizado que a tarefa do Banho Infantil possui:<br />
Inclusive, tem uma tarefeira que está de licença, a Joana. Ela chegou aqui e falou<br />
assim: "gente, eu vim para cá para aprender a ser mãe. E eu já estou tentando ter<br />
um filho há uns três anos e não consigo. Então eu vim porque eu quero aprender<br />
como é que se cuida de uma criança, como se dá banho. Porque quando o meu<br />
vier...". Elaficou aqui com a gente trabalhando e um tempo depois estava grávida.<br />
A nossa mentora é a Mirian. Então a Mirian deu a... "é agora! Está na hora, elajá<br />
aprendeu." Agora ela está de licença e veio aqui esse mês para mostrar a barriga<br />
dela para gente. Então assim, é uma tarefa que eu acho abençoada.<br />
O aprendizado como fator constitutivo da tarefa é tão explícito para Márcia que ela faz<br />
questão de apresentar o exemplo de uma pessoa que procurou o Banho Infantil justamente<br />
para aprender a ser mãe, aprender como é que se cuida de uma criança, como se dá banho. Neste<br />
exemplo, a mulher que há três anos tentava ter um filho, ao trabalhar no Banho Infantil, um<br />
tempo depois ficou grávida e, já de licença, retornou para compartilhar o fato com as demais<br />
tarefeiras. Ao relatar-nos esse caso, Márcia afirma que o trabalho voluntário, além do<br />
aprendizado, proporciona também outros ganhos, pois a gravidez da tarefeira é descrita<br />
como uma benção e sua convivência com as demais, que começou com um interesse<br />
específico, transformou-se em amizade: mesmo tendo interrompido suas atividades, ela foi<br />
ao encontro das outras tarefeiras para mostrar a barriga.<br />
Em sua elaboração sobre a gravidez aparentemente improvável, mais uma vez vemos<br />
como, para Márcia, a atuação dos Espíritos incide sobre a ação voluntária. Anteriormente,<br />
compreendemos como ela descreve a ação como um canal para a atuação da Espiritualidade,<br />
bem como se descobre amparada ao agir voluntariamente em benefício daqueles que<br />
precisam. E, neste trecho, ao definir a gravidez como uma bênção recebida a partir da<br />
intervenção da mentora Mirian, Márcia novamente ressalta como, em sua experiência, a ação<br />
voluntária não se separa da intervenção providencial dessas presenças. Intervenção que,<br />
para ela, não prescinde do posicionamento daquele que será beneficiado: a tarefeira precisou<br />
aprender para que chegasse a sua hora, ou seja, precisou se empenhar para merecer aquilo<br />
que tanto almejava.<br />
3.4. Shirley<br />
Quinta-feira. São quase oito horas da noite. As pessoas chegam à Casa Espírita para a<br />
reunião pública. Enquanto algumas ficam no primeiro andar para serem atendidas, para<br />
irem à livraria ou à biblioteca, a grande maioria sobe para o segundo andar, acomodando-se<br />
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nas cadeiras do salão onde acontecerá a reunião, que está prestes a começar. No terceiro<br />
andar, onde se localiza o departamento de Evangelização, o cenário é dominado pelas<br />
crianças: enquanto algumas, tímidas, ficam encostadas na parede, outras conversam<br />
animadamente sentadas sobre uma mesa, e outras, subvertendo a ordem, ainda correm pelos<br />
corredores onde se localizam as salas de evangelização, sendo rapidamente repreendidas<br />
pelos pais e pelos evangelizadores que se encontram por perto. Muitos dizem que se trata de<br />
um verdadeiro "colégio" devido tanto à quantidade de crianças quanto à disciplina, à<br />
responsabilidade e ao trabalho que são exigidos. Adentrando a sala da coordenação,<br />
encontramos evangelizadores conversando descontraidamente sobre a vida cotidiana e, logo<br />
depois, reunindo-se em volta de uma mesa para a realização de "leitura edificante" e da<br />
prece do dia, antes de irem para as suas respectivas salas de evangelização.<br />
É nesse ambiente que somos recebidos pela dirigente geral da Evangelização Infantil,<br />
Shirley, que nos convida para sentar à mesa de reuniões. Formada em pedagogia, trabalhou<br />
durante vinte e um anos como professora e hoje, aos 46 anos, não exerce a profissão. É a ela<br />
que as pessoas se referem quando o assunto é evangelização. Observando a dinâmica de<br />
funcionamento desse departamento, percebemos como Shirley destaca-se como referência<br />
não só pelo cargo de direção que ocupa e pelo fato de ser filha de um casal que atuou na Casa<br />
Espírita desde a sua fundação. É visível o quanto Shirley é querida pelos evangelizadores,<br />
que a ela recorrem para sanar dúvidas concretas, para compartilhar preocupações,<br />
conquistas e alegrias, seja a respeito do cotidiano da tarefa, seja com relação outros<br />
acontecimentos da vida. A disposição, a alegria e a seriedade com que Shirley conduz o<br />
trabalho contagia e dita o tom da conversa nesta sala de reuniões.<br />
Ao ser questionada sobre a função da evangelização para as crianças, Shirley diz:<br />
Uai... é divulgar mesmo os ensinamentos de Jesus à luz da Doutrina Espírita às<br />
crianças que aqui vêm! Ensinar para elas desde pequenininhas os ensinamentos de<br />
Jesus, para que elas possam, ao longo da vida, da sua caminhada evolutiva, focar a<br />
sua vida nesses ensinamentos. Então a gente lança essas sementes.<br />
Diante da pergunta pelo objetivo, a resposta emerge como pura evidência: uai. É tão<br />
óbvio para Shirley, está tão perto, que ela se surpreende ao explicitá-lo, uai. O motivo é<br />
simples no sentido de ser transparente, evidente, é divulgar mesmo. Entendemos que não é<br />
divulgar qualquer coisa de qualquer jeito: é divulgar ensinamentos de Jesus a partir das luzes<br />
lançadas pela Doutrina Espírita, ou seja, é apresentar às crianças conhecimentos iluminados<br />
por parâmetros precisos. É isso, simplesmente, ensinar. Para Shirley, este é um ensino que, ao<br />
mesmo tempo em que se propõe a focar, lança; ao mesmo tempo em que é para crianças,<br />
pequenininhas, é para o decorrer da vida, da caminhada evolutiva. Nesse sentido, sua ação<br />
voluntária consiste em propor um modo educativo de responder à vida a partir de certos<br />
ensinamentos. Um modo focado, mas não fechado, pois a aposta é que estes ensinamentos<br />
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repassados sejam sementes lançadas no presente com consciência de sua possível fecundidade<br />
futura, ao longo da caminhada da vida.<br />
Ao aprofundar os modos como se empenha nessa tarefa, Shirley recorre a elementos de<br />
sua própria história como professora para justificar o porquê desta tarefa, concluindo que,<br />
embora tenha parado de dar aulas profissionalmente, continuou com a evangelização porque<br />
"é a missão da gente mesmo!". O que isso significa?<br />
Porque teve épocas que tive vontade de sair da tarefa de evangelizar, e eu falava<br />
assim "eu já dava aula, mexia com meninos e ainda tinha de noite [voz de<br />
preguica]... e tinha queficar e tal". Passou pela minha cabeça essa questão, sabe?<br />
E quando eu pedi uma orientação para o mentor da Casa Espírita, ele falou: "não,<br />
essa tarefa é missionária." Então assim, quando foi colocado dessa forma, aí que eu<br />
realmente senti que era uma oportunidade única que estavam me dando e que eu<br />
precisava persistir nela.<br />
Estamos perplexos... Por que Shirley reconhece como missão a adesão a uma tarefa<br />
que vai contra a sua vontade? Que missão é essa que, proposta (outros diriam, "imposta")<br />
por um outro, é vivida como oportunidade única? Esta persistência na missão não seria, no<br />
fundo, alienação?<br />
Vejamos como Shirley se debruça sobre o acontecimento relatado anteriormente:<br />
"Quando ele falou isso [que a tarefa é missionária], eufalei "nossa! Eu não posso sair né? É uma<br />
responsabilidade muito grande! Eu que assumi isso daqui perante a Espiritualidade." Então agora eu<br />
tenho que abraçar."<br />
Não foi o desejo de querer fazer uma coisa diferente ou o estado de preguiça que<br />
orientou a decisão de Shirley. É verdade que passou pela sua cabeça, mas esse não foi o fator<br />
preponderante na sua resolução por continuar ou não naquele caminho. O fato de o caráter<br />
missionário da tarefa de evangelização ser apontado por um outro não elimina o<br />
posicionamento pessoal de Shirley. Pelo contrário, exalta-o. Foi diante da proposta do<br />
mentor de considerar a tarefa enquanto missão que Shirley sentiu realmente a provocação que<br />
estava contida ali, retomando a grandeza da oportunidade e da responsabilidade dessa ação<br />
voluntária. Além disso, na resposta ao anúncio recebido, Shirley afirma compreender que foi<br />
ela mesma quem assumiu isso perante a Espiritualidade: diante da proposta do outro,<br />
apresenta-se como resposta à consciência do eu. O chamado é assim reconhecido como dever<br />
que a convoca a persistir na tarefa, a continuar abraçando-a.<br />
Ao tomar a tarefa de Evangelização enquanto missão, Shirley indica-nos que essa ação<br />
voluntária é vivida como oportunidade concreta de realização do sentido da sua vida. Tratase<br />
de uma experiência em que, a partir de algo que é dado, apontado por um outro, emerge<br />
um posicionamento pessoal de seguir as indicações recebidas, um posicionamento que não é<br />
alienado porque se vincula ao reconhecimento desse dado como correspondente a si mesmo.<br />
Daí a responsabilidade que essa ação carrega para Shirley e o reconhecimento de dever<br />
realizá-la no mundo, realizando-se como pessoa nesse ato.<br />
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É nesse sentido que a Espiritualidade, para Shirley, é companhia que a ajuda a tomar nas<br />
mãos o próprio percurso. O modo como ela adere ao chamado da Espiritualidade evidencianos<br />
a importância e a incidência que esse relacionamento tem em sua vida.<br />
Essa compreensão continua a nos interrogar: qual a natureza desse relacionamento?<br />
Que modo é esse de responder ao chamado da Espiritualidade? Quais os desdobramentos<br />
dessa resposta em sua vida? Iniciemos do primeiro questionamento:<br />
A Espiritualidadefica mais próxima da gente. (...) Eu não tenho vergonha de pedir,<br />
não tenho vergonha de implorar tem hora, você entendeu ? Porque acaba tendo tanta<br />
intimidade que a gente não tem nem vergonha mais de ficar escondendo. Por que<br />
esconder? Esconder o quê?<br />
Trata-se de um relacionamento pessoal, de tanta intimidade, que permite a Shirley se<br />
mostrar por inteiro: não existe vergonha de pedir, de implorar. A Espiritualidade é, portanto,<br />
reconhecida como companhia que acolhe tanto o que é pedido, implorado, quanto a própria<br />
fragilidade de quem solicita ajuda. Por isso não há sentido em ficar escondendo.<br />
Compreendemos que a elaboração sobre a ação voluntária de Shirley não pode ser<br />
dissociada de sua experiência religiosa. Fazer a tarefa, para ela, é ocasião de proximidade<br />
com a Espiritualidade, reconhecida como presença que transcende o plano material (e que<br />
não deixa de ser uma companhia na experiência) que prepara, intui e ampara, convocando-a<br />
a persistir no trabalho anunciado e reconhecido como missão. Nesse sentido, apreendemos<br />
como a ação voluntária é vivida por Shirley como experiência que possibilita a conexão com<br />
o transcendente e que se configura como abertura, abraçando a totalidade da sua existência.<br />
Diante da oportunidade concedida, Shirley é provocada a se mover, levando-nos à<br />
questão do modo como ela responde ao que lhe é proposto no relacionamento com a<br />
Espiritualidade. Acompanhemos sua elaboração:<br />
Quando você descobre que você está com alguma coisa, quando você descobre que<br />
uma pessoa que você ama, que você gosta, está com uma coisa grave, a primeira<br />
coisa que você tem é aquele choque! Às vezes você tenta entrar no desespero, e<br />
quando você vê, começa acontecer alguma coisa que te acalma, te aserena [sic]. (...)<br />
Eu tefalo assim, a sintonia com a Espiritualidade é tão grande que até o tempo de<br />
sofrimento é pequeno.<br />
Ao vivenciar situações dramáticas, a primeira reação de Shirley é o choque. Se algo<br />
inesperado entra no horizonte de sua experiência, pode provocar desespero, mas quando você<br />
vê, isto é, quando Shirley abre os olhos para sintonizar-se com a Espiritualidade, um<br />
acontecimento se dá, alguma coisa a acalma, levando-a a refletir:<br />
Se tiver que passar, vai passar com tranqüilidade, se tiver que sofrer alguma coisa,<br />
vai sofrer com tranqüilidade. (...) O que vai diferenciar um do outro vai ser como<br />
você vai passar, se vai ser com mais sofrimento, ou com menos sofrimento, ou com<br />
nenhum sofrimento. Eu acho às vezes impossível, porque um pouquinho, nem que<br />
seja um pouquinho, a gente sofre. (...) Mas é o tempo mesmo de sofrimento, é a<br />
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importância que você dá para determinadas coisas. Então é assim, a vida vai dando<br />
oportunidade de demonstrar "poxa, você estuda tanto, fala tanto e tal. Então vamos<br />
pôr uma prova, vamos passar agora um pouquinho para ver se você realmente fixou<br />
aquilo." Às vezes a gente capenga mas vai [risos]. Não desiste.<br />
Nessa reflexão, vemos que Shirley, ao reconhecer que a duração do sofrimento<br />
depende do posicionamento da pessoa, do modo como ela vai passar, explicita valores a<br />
serem cuidados: o tempo mesmo de sofrimento, a importância que a pessoa dá para determinadas<br />
coisas. Portanto, para ela, a dinâmica própria da vida convida à fixação da compreensão, à<br />
elaboração da experiência. Sofrer, nem que seja um pouquinho; ficar capenga, às vezes. Mas o<br />
foco da questão não é eliminar por completo o sofrimento ou nunca mais capengar. O ponto<br />
é que o fato de não desistir, de continuar persistindo, é que faz a pessoa ir, caminhar.<br />
O caminhar da gente é assim, é altos e baixos. Ninguém está aqui só para colher os<br />
louros. Está todo mundo aqui para passar por uns pedacinhos. Mas tudo é<br />
passageiro. Você tem que ter muita paciência, prudência, e ter a certeza de que a<br />
nossa caminhada aqui é evolutiva. A evolução não dá saltos. Tudo é no seu tempo.<br />
Do seu caminhar, isto é, da elaboração sobre seu modo de responder ao amparo<br />
concedido pela Espiritualidade, Shirley passa a discorrer sobre o caminhar da gente, de todas<br />
as pessoas. Retomando a sua história, ela colhe a certeza de que a nossa caminhada aqui é<br />
evolutiva porque é capaz de apreender para quê todo mundo está aqui e que tudo é passageiro,<br />
no sentido de que as pessoas passam pelas coisas e de que as coisas mesmas passam. Isso<br />
significa que, partindo da sua experiência circunscrita de responder às oportunidades que<br />
lhe são dadas pela Espiritualidade, ela amplia horizontes de compreensão sobre o que é a<br />
vida, uma evolução que não dá saltos, e sobre como todos precisam se posicionar diante dela,<br />
com muita paciência e prudência.<br />
Retomemos agora o percurso que nos permite apreender o modo como Shirley se<br />
posiciona ante a proposta da Espiritualidade, ante a tarefa de Evangelização e, por que não,<br />
ante a própria vida. Vimos que ela reconhece na Espiritualidade uma companhia segura,<br />
para a qual ela se mostra por inteiro e não tem vergonha de pedir, vivendo assim uma<br />
experiência de intimidade e de compartilhamento da vida. Com a certeza desse<br />
relacionamento, ela pode vivenciar situações dramáticas em que suas reações frágeis são<br />
acompanhadas pela possibilidade de reconhecer intervenções que a tranqüilizam. Só então<br />
ela é capaz de ir além do desespero e de pedir à Espiritualidade que lhe dê a possibilidade de<br />
se posicionar naquela situação de sofrimento em prol de uma renovação da vida. E, ao se<br />
empenhar para aproveitar essas oportunidades, Shirley reflete e toma nas mãos suas<br />
experiências, apreendendo critérios de orientação que ampliam sua compreensão da vida.<br />
Trata-se de uma compreensão que mobiliza responsabilidade com o próprio processo de<br />
crescimento pessoal, que a realiza enquanto pessoa e que desperta gratidão:<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação<br />
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 1<br />
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Aqui, eu só tenho alegrias, só tenho que agradecer mesmo as bênçãos de Deus por<br />
ter me dado essa chance, essa oportunidade de trabalhar. Agradeço sempre a<br />
Espiritualidade, (...) por terem confiado no meu trabalho, na minha postura aqui<br />
dentro. É um trabalho que eu levo com muita seriedade. Isso aqui eufaço como meu<br />
trabalho, onde eu não tenho o salário em espécie, mas a gente sabe dos bônus!<br />
Então, para mim, trabalhar neste departamento aqui, meu filho, é uma benção. Eu<br />
me considero uma pessoa privilegiada pela Casa ter me concedido essa oportunidade<br />
de trabalho, porque a grandeza desse departamento aqui é uma coisa imensurável.<br />
Não tem como medir o trabalho que é desenvolvido aqui com essas crianças. Porque<br />
eu sempre penso assim: "poxa vida, eu estou tendo a oportunidade de trabalhar<br />
num departamento onde a gente está trabalhando a nova geração com valores, com<br />
posturas, com exemplos do Cristo." Então assim, para mim, foi uma dádiva divina<br />
ter sido me dada essa oportunidade de estar aqui servindo essa Casa nesse<br />
departamento.<br />
Admirando-se com a grandeza do departamento de Evangelização, reconhecendo a<br />
oportunidade que lhe foi concedida de participar e de crescer interiormente nesta tarefa e<br />
conscientizando-se da confiança que lhe foi depositada e dos bônus recebidos, Shirley só tem<br />
a agradecer mesmo às bênçãos de Deus e à Espiritualidade. Doando-se na tarefa, ela se percebe<br />
como beneficiada e é grata por isso. A oportunidade de trabalhar voluntariamente na<br />
Evangelização é vivida por Shirley como uma dádiva que lhe foi dada por alguém, e por isso<br />
a gratidão por quem permitiu e possibilitou que isso acontecesse, e a realização de si, cheia<br />
de alegria, por poder agradecer e desfrutar desta benção recebida.<br />
4. Discussão dos resultados: a aç ã o voluntária como abertura ao relacionamento com<br />
presenças transcendentes 3<br />
Os relacionamentos se mostram centrais na experiência de voluntariado dos sujeitos<br />
que encontramos e, dentre esses relacionamentos, um se destaca como especial. Olívia,<br />
Telma, Márcia e Shirley, todas elas reconhecem que são acompanhadas e sustentadas pela<br />
Espiritualidade, isto é, por presenças transcendentes que atuam de modo providencial sobre<br />
a realidade. Atribuindo tais intervenções a entidades individualizadas e benfeitoras, os<br />
sujeitos buscam constituir relacionamentos pessoais com essas entidades percebidas como<br />
companhias. Nos depoimentos, eles fazem referência a Deus, a Jesus e à Espiritualidade,<br />
sendo esta última a interlocutora mais constante.<br />
Apreendemos nesse movimento a configuração de relacionamentos de fé, nos quais os<br />
sujeitos constroem o diálogo por meio da oração e do pedido e reconhecem mudanças no<br />
curso dos acontecimentos como respostas que lhes são dadas. Respostas que podem não<br />
atender exatamente ao que foi solicitado, mas sempre se constituem como intervenção<br />
benéfica, que a pessoa reconhece como correspondente por orientar-se em favor do critério<br />
que fundamenta o pedido. E, tendo a certeza de serem beneficiados pelas presenças<br />
3 Termo cunhado para designar o reconhecimento, na experiência, de entidade(s) que transcende(m) o plano<br />
material, mas que não deixa(m) de ser vivida como presença, companhia, numa relação de proximidade.<br />
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transcendentes que operam transformando o mundo, os sujeitos também se vêem solicitados<br />
a agir, a dar a sua resposta como contribuição à obra dos benfeitores.<br />
Comprometendo-se com essa obra que os ultrapassa por meio de sua ação voluntária,<br />
os sujeitos apreendem que os resultados de sua ação são potencializados pela intervenção<br />
superior e reconhecem que conseguem persistir na tarefa porque são fortalecidos. Sentindose<br />
gratos pelas oportunidades que lhes são dadas, eles se realizam nesse processo por se<br />
perceberem amparados e por vislumbrarem que estão progredindo no caminho que mais<br />
corresponde a eles mesmos e ao ideal que carregam.<br />
Vimos a partir das elaborações de Giussani (2009) tanto a importância do senso<br />
religioso como dimensão humana que fundamenta a estrutura da experiência religiosa,<br />
quanto a importância de apreender a expressão do eu em ação.<br />
A explicitação desse dinamismo permite-nos afirmar com maior segurança como a<br />
experiência religiosa articula-se à ação voluntária no contexto sociocultural da Casa Espírita.<br />
Compreendemos que a experiência religiosa é vivida intensamente pelos sujeitos, chegando<br />
a ordenar sua apreensão da realidade e a fundamentar e direcionar sua ação voluntária. A<br />
percepção do caráter providencial da realidade os realiza como pessoa, mobilizando-os a<br />
buscar contribuir, com a totalidade da sua pessoa, para a concretização de um bem que<br />
supera seus interesses imediatos. E esse bem que os ultrapassa também os abraça: eles se<br />
sentem pertencentes a um horizonte totalizante, um horizonte cuja amplitude lhes permite<br />
dar a sua contribuição sem se prenderem aos resultados concretos do seu gesto. Um<br />
horizonte, portanto, que os convida a ampliar o olhar sobre a ação e sobre o que ela indica,<br />
convida-os a se perguntarem sobre o sentido da realidade e sobre o modo como têm se<br />
orientado nela.<br />
Em síntese, a compreensão de como Olívia, Telma, Márcia e Shirley elaboram sua<br />
experiência permite-nos afirmar como, no contexto sociocultural da Casa Espírita, a interrelação<br />
entre voluntariado e religiosidade constitui-se por duas vias: (1) a ação voluntária é<br />
vivida como abertura para a experiência religiosa, pois, doando-se ao outro em gestos<br />
concretos, os sujeitos reconhecem que sua ação é sustentada por presenças transcendentes e<br />
direcionada à afirmação de um horizonte absoluto; (2) a vivência da religiosidade ordena o<br />
modo da pessoa compreender a realidade, fundamentando e direcionando sua ação,<br />
reconhecida como dever e como correspondente a si.<br />
5. Conclusão<br />
Essa pesquisa nasceu da provocação de experiências que nos solicitaram a adentrar o<br />
universo do voluntariado em sua relação com a experiência religiosa. Assim impactados e<br />
mobilizados com os resultados apreendidos, nos perguntamos: o que colhemos de essencial<br />
dessa experiência?<br />
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fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
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Identificamos evidências de como a religiosidade aparece concretamente no modo<br />
como os sujeitos trabalham voluntariamente. Não de modo setorizado, pois reconhecemos o<br />
movimento de pessoas que, doando de si ao outro, expressam-se inteiramente. Doação<br />
vivida como realização correspondente ao centro da pessoa, doação capaz de contemplar<br />
horizontes mais amplos do que a concretude do gesto mesmo. Portanto, essa ação voluntária<br />
sustenta e é sustentada por uma obra da qual cada um participa de modo próprio. Obra que<br />
é maior também porque se abre para a experiência religiosa, situando-a num horizonte de<br />
totalidade. Nesse sentido, o gesto voluntário de cada sujeito é concretização do<br />
relacionamento com a transcendência, em que a doação de si ao outro é doação de si a um<br />
Outro. Além disso, trata-se de um gesto que, abrindo-se para tudo aquilo que o mobiliza, é<br />
vivido como profundamente realizador da pessoa. Tal realização mostrou-se então como<br />
fator estruturante da inter-relação profunda entre experiência religiosa e voluntariado.<br />
Portanto, ficamos, por um lado, com a certeza quanto à potência da experiência<br />
religiosa de impulsionar à ação, de estruturar o modo como o gesto é realizado e o modo<br />
como a pessoa se realiza nesse gesto; e por outro, com a capacidade da ação voluntária de<br />
abrir horizontes de compreensão, realização e de vivência profunda da própria religiosidade.<br />
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Notas sobre os autores<br />
Yuri Elias Gaspar é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do<br />
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. E-mail: yurieliasgaspar@yahoo.com.br<br />
Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor associado do Departamento de<br />
Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas<br />
Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Suas pesquisas referem-se às áreas de memória, cultura e<br />
subjetividade. E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br<br />
Data de recebimento: 13/06/2012<br />
Data de aceite: 06/09/2012<br />
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Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas<br />
Meanings and psychological scope of caboclos in umbandist experiences<br />
Raquel Redondo Rotta<br />
José Francisco Miguel Henriques Bairrão<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
Os caboclos são entidades espirituais largamente encontradas no panteão umbandista. O<br />
objetivo deste estudo foi revelar, no recurso ritual a caboclos na umbanda, os seus<br />
sentidos e alcance psicológicos. Para tanto foi realizada uma escuta participante, atenção<br />
flutuante aos significantes que se repetiram, para ouvir em profundidade a enunciação na<br />
rede de interlocução em questão. Entre esses significantes, repetiram-se alguns termos<br />
como terra, luz, água, raiz, amadurecimento, liberdade e ideal, que podem assumir mais<br />
de um nível de significância, por meio de uma 'escrita por imagens'. Percebeu-se que as<br />
pessoas em contato com os caboclos estão diante de uma elaboração de suas raízes (pais,<br />
ancestrais) que, bem cuidadas e iluminadas (conhecidas e elaboradas), em terra fértil,<br />
resultam em plantas (pessoas) fortes e bonitas, que desenvolvem seu potencial,<br />
amadurecem. E este amadurecimento inclui o desprendimento em relação às figuras<br />
paternas ou autoridades, o que remete à liberdade.<br />
Palavras-chave: etnopsicologia; umbanda; alteridade; caboclos<br />
Abstract<br />
Caboclos are spiritual entities frequently found in umbandist pantheon. The aim of this<br />
study was to reveal their psychological senses and range in the ritual resource for<br />
caboclos in Umbanda. To this end, a participative listening was carried out through a<br />
floating attention to recurrent significants, in order to deeply listen to the enunciation in<br />
the focused inter-location net. Among those significants some terms were repeated as<br />
earth, light, water, root, matureness, freedom, and ideal, which may assume more than<br />
one level of significance, by means of 'writing by images'. It was shown that people in<br />
contact with caboclos are faced to an elaboration of their roots (parents, ancestors) that,<br />
when well-cared and enlightened (known and elaborated) in fertile soil, produce strong<br />
and beautiful plants (people), who develop their potential and get maturate. And this<br />
matureness includes being released in relation to the figures of parents or authorities;<br />
what leads to freedom.<br />
Keywords: ethnopsychology; Umbanda; alterity; caboclos<br />
Introdução<br />
A umbanda é considerada uma religião afro-brasileira 1 , cuja prática raramente está<br />
atrelada a um controle rígido ou unificação severa dos rituais, o que abre espaço para transes<br />
diversificados (Maggie, 2001). De acordo com Concone (2004), a variedade de personagens<br />
presentes na sua mitologia e cerimoniais concede-lhe uma gama de possibilidades infinitas,<br />
Apoio FAPESP.<br />
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porém com margens definidas por alguns tipos espirituais comuns, especialmente caboclos e<br />
pretos velhos. A autora defendeu que personagens espirituais como exus, caboclos, pretos<br />
velhos, baianos e boiadeiros, entre outros, têm como base as figuras sociais típicas da<br />
realidade brasileira. Caboclos (representação dos índios brasileiros) e pretos velhos<br />
(divindades relacionadas aos escravos), para ela, corresponderiam a uma dimensão mítica da<br />
sociedade, pois são mitos e símbolos fundantes da brasilidade (Concone, 1973).<br />
Dessa forma, o alcance dos estudos a respeito dessa religião não se restringe ao seu<br />
caráter religioso. Brumana e Martínez (1991) afirmaram que a umbanda pode ser<br />
considerada "um código para a interpretação e para a ação que permeia a sociedade brasileira e<br />
cujas marcas se manifestam em diversos registros" (p. 30, grifos do autor). O contexto<br />
umbandista comporta uma grande riqueza discursiva e ritual que inclui tradições culturais<br />
expressas por músicas, danças, fatos, narrativas etc. E a partir desses materiais simbólicos,<br />
"patrimônio comum da nacionalidade", são elaborados conflitos (psíquicos) de uma grande<br />
parte de sujeitos brasileiros em contato com esse imaginário (Bairrão, 1999, pag. 26). O<br />
mesmo autor defendeu que a umbanda proporciona a circulação de significantes que não se<br />
reduzem a elementos verbais e escapam ao domínio do ego individual, estabelecendo laços<br />
entre pessoas, atingindo cada participante de maneira singular e não restrita à consciência,<br />
delineando identidades. Tais significantes são veiculados socialmente, em rituais religiosos e<br />
fora deles, na convivência diária entre pessoas pertencentes a esse universo.<br />
Neste trabalho, estão em foco os inegáveis efeito e alcance do contexto simbólico<br />
umbandista na vida psíquica dos seus adeptos, tanto do ponto de vista subjetivo (pessoal)<br />
quanto na esfera social, sem de forma alguma pretender reduzir o religioso ao psicológico. É<br />
nesta perspectiva, até o momento pouco explorada, que se insere a proposta deste artigo:<br />
desvelar sentidos e o alcance psicológicos de caboclos espirituais na umbanda.<br />
Caboclas e caboclos<br />
Caboclas e caboclos são conhecidos não só na umbanda. Entre as figuras sagradas<br />
presentes nas várias religiões afro-brasileiras, eles formam uma linha de entidades<br />
espirituais bastante recorrente. Seus fiéis relacionam-se com os espíritos caboclos durante os<br />
rituais e fora deles, na suas vidas cotidianas. Pode-se dizer que suas manifestações<br />
satisfazem anseios e dão sentidos a vivências dos praticantes contemporâneos desses cultos,<br />
pois possuem significativo espaço e força entre seus adeptos.<br />
Esta linha de entidades também é bastante conhecida na comunidade acadêmica. Os<br />
espíritos caboclos foram estudados por diversos autores, que os associam a uma imagem do<br />
indígena brasileiro. Carneiro (1964) afirmou que em rituais onde eles aparecem, podem-se<br />
observar acessórios como penas, cocares, tacapes, arcos e flechas, além de um linguajar que<br />
traz alguns termos supostamente do tupi-guarani. De acordo com Santos (1995), os caboclos<br />
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Rotta, R. R.. & Bairrão, J. F. M. H. (2012). Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas.<br />
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podem ser vistos como "molde de uma representação que dá conta do índio como legítimo<br />
'dono da terra'" (p. 12). Negrão (1996) defendeu que, para os fiéis das religiões afrobrasileiras,<br />
caboclo é índio na condição de espíritos de luz após sua morte. Seriam espíritos<br />
dos antepassados indígenas brasileiros (Ortiz, 1980). Silva (1994) afirmou que eles são os<br />
representantes dos índios que viviam no Brasil antes da chegada de brancos e negros. Boyer<br />
(1993) descreveu esta categoria no Norte do país (Belém do Pará), porém sem adentrar uma<br />
análise do seu significado psicológico.<br />
Apesar de estes espíritos serem cultuados em diversas partes do país, em várias<br />
religiões de influência africana, restringe-se este estudo, por questão de recorte<br />
metodológico, ao contexto umbandista no interior paulista, rico em material simbólico que<br />
"concretiza-se em tradições vivas, psiquicamente intervenientes em dinâmicas pessoais e<br />
sociais" (Bairrão, 2003, p. 285). E, apesar de existirem muitos estudos sobre o assunto,<br />
apresenta-se aqui uma pesquisa com enfoque etnopsicológico, que objetiva revelar os<br />
sentidos e alcance psicológicos do recurso ritual a caboclos na umbanda.<br />
Metodologia<br />
Esta pesquisa foi desenvolvida em terreiros de umbanda (seis, do interior de São<br />
Paulo) em que, regularmente, manifestam-se caboclos. Em média, os terreiros foram<br />
frequentados quinzenalmente no período de dois anos. O trabalho de campo abrangeu<br />
convivência com os frequentadores, conversas informais com os médiuns, pais e mães de<br />
santo e consulentes, com registros em diário de campo e gravações em áudio e vídeo. Com<br />
base nesse convívio com os terreiros colaboradores, foi realizado um levantamento dos<br />
dados etnográficos a eles referentes, com informações no que concerne ao espaço físico, à<br />
organização do culto, a seus frequentadores, a imagens e entidades mais ou menos cultuadas<br />
e a detalhes que se fizeram importantes em cada caso.<br />
Foram realizadas e registradas entrevistas livres com onze médiuns que incorporam<br />
esta linha de entidades, além de entrevistas com eles incorporados. Os dizeres dos chefes de<br />
terreiros e de seus filhos sobre a linha dos caboclos também foram considerados, com o<br />
objetivo de se obter explicações por meio da linguagem e do saber do outro.<br />
Realizou-se uma escuta participante, atenção flutuante aos significantes que se<br />
repetiram nesse contexto, para ouvir em profundidade a enunciação na rede de interlocução<br />
em questão (Bairrão, 2005). Deu-se ouvido ao que os médiuns dizem dos seus caboclos e ao<br />
que eles próprios dizem de si e de seus médiuns, por meio de sonhos, transe de possessão,<br />
intuições ou outros meios reconhecidos pelos umbandistas como comunicações autênticas.<br />
As entrevistas, passes e conversas com os médiuns em transe (incorporados pelas<br />
entidades caboclas, especialmente), foram 'ouvidos' considerando-os como alteridade<br />
veiculadora de significantes, que colocam em circulação conteúdos inconscientes, deslocando<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Rotta, R. R.. & Bairrão, J. F. M. H. (2012). Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas.<br />
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significados entre sujeitos e comunidades. Cabe ressaltar que, ao entender as entidades<br />
caboclas como alteridade veiculadora de significantes, não se nega seu estatuto de sagrado<br />
tal como os religiosos as consideram, nem se pressupõe a existência metafísica de entidades<br />
espirituais. Houve a suspensão do juízo de realidade em relação ao fenômeno, para que sua<br />
manifestação e consequências nas vivências dos umbandistas possam ser entendidas.<br />
Neste estudo, mostrou-se mais adequado, ao invés de um modelo mais tradicional de<br />
pesquisa de campo, adotar a concepção de campo-tema proposta por Spink (2003), em que<br />
campo se refere à processualidade de um tema determinado. Para ele, não há um campo<br />
independente ou um lugar físico específico, o do pesquisado, onde o pesquisador entra para<br />
observar e coletar os dados e sai com eles registrados, para serem analisados no laboratório,<br />
ou na biblioteca, ou em outro ambiente do pesquisador. De acordo com Spink (2003), o campo<br />
é "um processo contínuo e multi-temático no qual as pessoas e os eventos entram e saem dos<br />
lugares" (p. 23). Nesse sentido, pode ser considerado o argumento no qual o pesquisador se<br />
insere, que acontece em muitos lugares. Os terreiros de umbanda, onde os colaboradores se<br />
reúnem para realizar os rituais coletivos e mais estruturados, assim como as entrevistas<br />
propriamente ditas, não configuraram a totalidade do que o autor chama de territorialidade<br />
do campo-tema. Esta incluiu as casas dos médiuns, cozinhas dos terreiros, reflexões e<br />
comentários sobre o assunto em momentos inesperados, conversas em locais públicos etc.<br />
Resultados e discussões<br />
1. Gênero: uma questão relevante?<br />
Com o objetivo de revelar os sentidos e alcance psicológicos do recurso ritual a<br />
caboclos na umbanda, a pesquisa teve como base inicial uma pergunta relativa à pertinência<br />
ou não de subdividir essa categoria espiritual em masculina e feminina. Partiu-se dessa<br />
hipótese porque é sabido que no catimbó (religião encontrada principalmente no nordeste<br />
brasileiro, com influências africanas e indígenas e onde se manifestam essas entidades) os<br />
espíritos de caboclas e de caboclos são tratados de forma distinta, com funções diferentes. No<br />
interior de São Paulo, encontra-se essa distinção? E se sim, seria útil para este estudo?<br />
Através desse ponto de partida, inicialmente as pombagiras, outra linha de entidades,<br />
fizeram-se notar. Muitas vezes, foi necessário conversar com as colaboradoras incorporadas<br />
por elas, antes de obter um contato maior com as caboclas e os caboclos. Outras vezes, as<br />
médiuns falaram mais sobre essas entidades, mesmo quando as perguntas se referiam às<br />
caboclas. Uma delas insistiu para que sua interlocutora conhecesse a sua "mulher da<br />
esquerda". As próprias, incorporadas em suas médiuns, indicaram a importância de se<br />
trabalhar com as pombagiras: "precisa aprender a fazer fogo para se virar na mata" (Cabocla<br />
Ianka). 'Fogo' associa-se comumente às pombagiras, enquanto 'matas' refere-se geralmente à<br />
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linha dos caboclos. Este fato está de acordo com a organização do culto umbandista, cujos<br />
rituais não começam antes de se homenageá-las juntamente com os exus. Além disso, essas<br />
entidades são comumente relacionadas à defesa das pessoas e dos rituais em curso. É preciso<br />
se deixar conhecer por elas para que se obtenha um efetivo acesso ao universo umbandista.<br />
Pesquisadores então devem mostrar-se, explicitar seus objetivos, o que buscam e o que<br />
pretendem deixar ali e levar dali.<br />
Percorrendo o caminho necessário, que passa pelas conversas com (e sobre) as<br />
pombagiras, foi possível acessar o universo relativo aos caboclos. Inicialmente, houve uma<br />
sutil diferenciação entre gêneros. As entidades caboclas, masculinas e femininas, ora<br />
pareciam iguais, ora eram vistas e sentidas como diferentes. Durante a investigação dessas<br />
possibilidades, repetiu-se o fato de se pedir para conversar com as caboclas e ser<br />
encaminhada para um caboclo. Pesquisadora: "mas eu gostaria de conversar com uma cabo cla" .<br />
Umbandista: "ah, é tudo a mesma coisa". Por outro lado, uma das médiuns, por exemplo, disse<br />
saber intuitivamente que caboclas e caboclos são diferentes, apesar de o objetivo do trabalho<br />
de cada um ser o mesmo: "Não sei explicar bem, mas sinto que elas são mais doces, mais carinhosas.<br />
Os caboclos são mais diretos, mais 'pá-puf’". Portanto, na umbanda, da perspectiva das suas<br />
funções rituais, não parece haver distinção entre gêneros. Já do ponto de vista da vivência<br />
psíquica e da interação pessoal entre eles e os médiuns, a história poderá ser outra, posto<br />
serem muito singulares e específicas as inter-relações entre as personificações de caboclos (na<br />
forma de construtos narrativos que articulam e mobilizam elementos simbólicos<br />
característicos que se lhes associam) e os traços de personalidade e biográficos dos seus<br />
médiuns (Bairrão, 2003).<br />
Nomeadamente, sentidos de beleza e emoção repetiram-se de forma significativa no<br />
que diz respeito às caboclas 2 . Como exemplo, o relato de uma médium vidente que, em<br />
prantos, definiu a Cabocla Sete Cascatas como "uma imagem assim muito delicada mesmo, bonita<br />
de se ver". Não foram raras as ocasiões em que a pesquisadora se emocionou diante da beleza<br />
relacionada ao contexto das caboclas. Já em relação aos caboclos, sentidos entre o peso e a<br />
leveza se fizeram perceber. Um dos médiuns relatou que "eu sinto quase que palpável a energia<br />
dele [caboclo], as minhas pernas pesam (...) parece que eu 'tô segurando um peso dele". O pai de<br />
santo, cujo Caboclo Ogum da Mata é seu chefe de cabeça (sua entidade espiritual principal),<br />
considera sua vivência religiosa como uma missão, um peso que ele deve carregar até sua<br />
morte. "Enquanto burro [médium] puder trambucar [trabalhar] vai trambucando", disse o Caboclo<br />
Ogum da Mata, comparando o trabalho espiritual a um fardo. Ainda, a médium do Caboclo<br />
Flecha Dourada disse ficar muito leve quando incorporada por ele, sentindo um enorme<br />
peso quando ele vai embora: "essa energia dele que é muito leve, muito suave, que quando eu<br />
recobro a minha consciência, eu sinto meu corpo muito pesado."<br />
' Para este assunto, ver Rotta e Bairrão (2010) sobre as caboclas especificamente.<br />
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Contudo, beleza e emoção também foram encontradas entre os caboclos. Por exemplo,<br />
o médium do Rompe Mato revela que quando fala "dele, (...) me emociono, é uma coisa muito<br />
forte." E as caboclas também podem veicular nuances entre a leveza e o peso. A médium da<br />
Flecha da Mata disse sentir "seu peso, sua vibração", assim como a da Caboclinha, que sente<br />
sua presença como "uma coisa como se tivesse alguém te empurrando, um peso". É como se a<br />
experiência de campo dialogasse com a pergunta inicial, negando em princípio uma<br />
distinção categórica entre caboclas e caboclos, no atinente a gênero, mas ao mesmo tempo<br />
assinalando nuances.<br />
Da mesma forma, a princípio a beleza em forma de flores parecia mais comumente<br />
relacionada às caboclas e ao feminino. Uma das colaboradoras disse que "elas [caboclas] nos<br />
trazem flores (...) para tornar nossa caminhada mais cheia de coloridos", e a médium da Caboclinha<br />
sabe da presença dela quando sente o cheiro de flores do campo. Mas elas aparecem também<br />
relacionadas a um dos caboclos colaboradores: o Flecha Dourada trabalha com uma flor<br />
branca nas mãos.<br />
O significante "água" também se repetiu com frequência no cenário relacionado às<br />
caboclas (Rotta & Bairrão, 2010). Apesar de mais rara, existe também uma ligação entre<br />
caboclos e esse elemento. Entre os colaboradores desta pesquisa, o Caboclo Gira Mundo<br />
confirmou a existência de caboclos das águas. E o Ogum da Mata contou que "vive na beira da<br />
mata, na beira do rio, ã?".<br />
Esses resultados mostraram que, apesar de certa diferenciação, a delimitação de<br />
significantes em função de gênero não parece tão relevante. Concone (1996) defende que "A<br />
umbanda costuma escapar das generalizações; reserva sempre uma surpresa àquele que se<br />
aventura a enquadrá-la num modelo simplificador" (p. 9). Os resultados encontrados<br />
corroboram essa afirmação, na medida em que evidenciaram a necessidade de manter os<br />
"ouvidos abertos" ao que nossos interlocutores dizem, para evitar conclusões precipitadas. A<br />
pertinência de uma análise com base no rastreamento de símbolos supostamente femininos<br />
ou masculinos mostrou-se menos importante do que se pensou a princípio. O campo<br />
incumbiu-se de ir desfazendo essa primeira suposição, embora essa negativa apenas se<br />
tivesse consumado com clareza no momento da análise dos dados.<br />
Continuemos então com os resultados, "abrindo os ouvidos" para outros sentidos. A<br />
Cabocla Flecha da Mata contou que não pensava em casar e ter filhos, "essa nã. Essa índia essa<br />
pensava só essafazer caça, essafazer pesca, essa cuidar da tribo". Buscava o sustento fora do lar,<br />
como fazem tantas mulheres contemporâneas. O Caboclo Ogum da Mata não tinha como<br />
missão correr atrás do pão de cada dia: "Oguna saía caçar também, mas as mulher caçava mais,<br />
ã?". A Cabocla Flecha Pequena disse que todas as crianças (meninas e meninos) eram<br />
preparadas para buscar o sustento se fosse preciso: "pequena aprenda na mata, corra, caça",<br />
assim como a Ianka, que contou que todos eram livres para aprender, iam "se virando, porque<br />
se faltar algo, sobrevivem." Porém, ao contrário da Flecha da Mata, a tarefa da Cabocla Ianka<br />
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era cuidar dos filhos enquanto seu marido caçava. Se o foco fosse a divisão sexual do<br />
trabalho, percebe-se que não se trata de uma simples inversão de papéis e sim de<br />
composições originais. Mais uma vez, quando interpeladas a respeito de diferenças<br />
substanciais e estáticas entre papéis masculinos e femininos, essas entidades espirituais<br />
comunicam-se desconstruindo estereótipos de gênero. Um estudo com quatro caboclas e<br />
suas médiuns (Bairrão, 2003) também relata essa abertura de possibilidades, desde que as<br />
caboclas (Jupiras das Matas) "valorizam muito a vida familiar e gostam de cuidar de<br />
crianças. Mas ao contrário de outras mulheres da sua época, eram guerreiras, acompanhando<br />
os homens nas lides da guerra" (p. 297).<br />
Essa mesma abertura de possibilidades aparece também na biografia dos médiuns.<br />
Como exemplo, uma das médiuns, em sua vida cotidiana, exerce funções de liderança:<br />
comanda uma equipe em seu trabalho, foi candidata a vereadora e dirige uma escola de<br />
samba. Em consonância com suas características, a cabocla que a acompanha (Sete Espadas)<br />
é guerreira e decidida. Disse ela que "fazia, esse buscador, esse ajudador, prafazer esse alimentar<br />
todos". As duas apresentam habilidades que se distanciam do ideal de passividade ligado<br />
tradicionalmente ao gênero feminino. Ao mesmo tempo, este espírito feminino contou que<br />
se enfeitava para "ficar formosa, cabocla sempre gostou deficar muito formosa, bonita". Diz que vai<br />
a guerra sem perder a 'feminilidade', ajudando sua médium a lidar com as vivências de uma<br />
mulher que tenta conciliar o trabalho, o cuidado com os filhos e o lar (é uma mãe cuidadosa),<br />
sem deixar de cuidar de si. Além de sua cabocla, essa mesma mulher incorpora um caboclo,<br />
homem, chamado Flecha Dourada. Ele, quando incorporado, exala "Este, serenidade, filha."<br />
Trabalha de forma calma e com uma flor. E comove, como as caboclas. Disse uma médium<br />
que ao entrar em contato com ele, "chorava que nem criança". Mas também traz consigo a ideia<br />
de liderança por ser seu nome o mesmo que o do caboclo chefe do terreiro. Dessa forma, o<br />
panteão pessoal reflete e ilumina a complexa combinatória de aspectos do sujeito que muitas<br />
vezes são superficialmente vistos como antagônicos ou incompatíveis. Ou seja, é a partir<br />
dessa complexa combinatória de significantes que circulam entre humanos e espíritos que os<br />
médiuns podem compor e vivenciar suas próprias maneiras de ser e seus conflitos.<br />
Além das mulheres líderes, foram encontrados homens, esposos e pais emotivos, de<br />
choro fácil, que incorporam caboclas. A característica tradicionalmente feminina de chorar<br />
facilmente pode ser associada ao conjunto de alteridades sagradas que acompanham suas<br />
vivências. O médium da Cabocla Sete Cascatas, ao se descrever "um cara pacato, chorão", ou<br />
ao dizer que se emociona em contato com suas entidades, se identifica com seu panteão<br />
pessoal, na medida em que incorpora uma cabocla de Oxum (entidade feminina ligada à<br />
água doce), além de ser regido por esse orixá. Homem não chora? Caboclas e caboclos, ao<br />
constituírem-se como alteridade que reflete modos diferentes de ser (feminino ou<br />
masculino), parecem abrir possibilidades para que humanos, ao se espelharem no mundo<br />
espiritual, elaborem suas vivências, relacionadas ao ambiente profissional, às relações<br />
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familiares, e inclusive às características tradicionalmente ligadas a cada gênero. Há uma<br />
reiteração do desprendimento de estereótipos, não obstante os caboclos se dizerem<br />
masculinos ou femininos. Porém, se gênero aparece como uma questão secundária ou menos<br />
relevante, talvez essa primeira impressão tenha sido suscitada pela preponderância de<br />
sentidos relacionados à família e à vida social.<br />
Frente aos resultados apresentados até agora, talvez seja útil continuar refletindo sobre<br />
a abertura de possibilidades para diversos significados proporcionada pela relação com as<br />
entidades espirituais caboclas, com base em uma escrita imagética, cujos significantes que<br />
mais se repetiram são apresentados a seguir.<br />
2. Terra luminosa e flechas certeiras<br />
No âmbito desta enunciação plástica no contexto das entidades caboclas, alguns<br />
elementos se fizeram notar. A "luz", em seus vários sentidos, é um deles. Como exemplo,<br />
disse a médium da Caboclinha: "eu consegui enxergar, estava escuro, né (...) essa luz era ela<br />
[cabocla]". Complementa: "Quando ela chega, parece que o ambiente fica mais claro, parece que a luz<br />
aumenta." A estrela desenhada no ponto riscado 3 da Cabocla Jurema serve "para iluminar a<br />
fiarada da terra".<br />
Outro termo recorrente foi "terra": uma das médiuns disse que sua cabocla é pé no<br />
chão, é "da terra, mesmo". Ou a Cabocla Ianka, que ensina como identificar sua presença: "se<br />
ouvir bater no chão com o pé, sou eu". Sua médium diz que adora andar descalça, sentindo o<br />
chão nos seus pés. A confluência entre luz e terra se relaciona com sentidos de caminho,<br />
caminhada (orientação). O chão, a terra é "o que te dá subsídios pra caminhar", disse uma das<br />
médiuns. O Caboclo Rompe-Mato oferece à pesquisadora "auxiliar, essa cada passador [passo],<br />
dos vosso caminhar".<br />
Mesclado com a ideia de caminho a ser percorrido, evidenciou-se também, entre<br />
caboclas e caboclos, sentidos de força, firmeza, luta pela vida e assertividade, muitas vezes<br />
ilustrados pelas flechas, presentes nos nomes, e pelos pontos riscados e/ou discursos de<br />
espíritos caboclos. Como exemplo, disse o Caboclo Rompe Mato que "Essa que vem essa a<br />
frente, fia, essa que não teme o que tem a campreendê e esse enfrentá (...) essa flecha essa caboclo essa<br />
cantinua essa rampendo essa os dificuldade que essa caboclo é imposto, essa romper". Mais uma vez,<br />
encontramos coincidências com o estudo de Bairrão (2003), cujas caboclas se dizem<br />
determinadas, exigentes e firmes, com toques de serenidade. "Personalidades fortes e<br />
rigorosas, gostam do que é certo e nunca deixam de fazer algo que considerem necessário,<br />
nem guardam para si algo que avaliem que deva ser dito, não temendo as conseqüências" (p.<br />
296-297). São como flechas certeiras.<br />
Desenho ritual.<br />
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3. Aldeias e famílias ideais<br />
A Cabocla Jurema contou que vivia em "oca grande, com muitos índios (...) todos eram pais,<br />
todos filhos (...) tudo ali junto", veiculando sentidos relativos à vida em comunidade, assim<br />
como as Jupiras das Matas descritas por Bairrão (2003), que fazem referências à família e à<br />
aldeia e também às florestas e às águas. A Cabocla Sete Espadas também descreve que em<br />
vida "fazia o que toda aldeia fazia (...) prafazer esse alimentar todos (...) Todos esses ficava junto". O<br />
sentido de vida que flui, numa situação ideal, aparece mesclado com a ideia de vida<br />
comunitária. Cada um tem seu lugar, dentro de uma comunidade, como explica o Caboclo<br />
Ogum da Mata: "esse cada índio tem triba [tribo], (...) cada um tinha sua triba".<br />
Os sentidos de aldeia e comunidade se mesclam com a ideia de uma vida harmoniosa<br />
com os parentes mais próximos, muitas vezes em contraste com a vivência de conflitos<br />
familiares por parte dos médiuns. A Cabocla Sete Flechas descreveu um ambiente doméstico<br />
harmônico: "cabocla esse tinha muita alegria esse de tá esse junto com esses irmãos, esse mamãe, esse<br />
papai". Considera-se teimosa, mas quando desobedecia, "esse paizico essa mãezica foram<br />
entendendo esse, foi encaminhando, ã?". Percebe-se um desprendimento em relação aos seus<br />
progenitores, que ela chamou de teimosia. Essa teimosia pode ser entendida como<br />
determinação. E em uma família ideal, o processo de formação de uma personalidade<br />
própria é facilmente entendido e aceito pelos mais velhos. Já entre humanos, essa etapa pode<br />
ser mais complexa. Sua médium vê sua mãe como "uma pessoa complicada, (...) é a coisa mais<br />
certa nesse mundo pra dar trauma, é a mãe", não tão compreensiva, ao contrário do modelo de<br />
ideal veiculado pela sua cabocla. A relação desta com a mulher que acompanha é permeada<br />
por afeto e entendimento, enquanto a médium diz que "não tinha carinho da minha mãe". O<br />
médium do Caboclo Rompe Mato também reconheceu alguns problemas decorrentes de sua<br />
criação. Diz que "às vezes eu acho que eu precisava dar um soco em alguém, na escola (...) meu pai<br />
num gostava, então a gente também num desenvolveu", enquanto não existem falhas nos<br />
ensinamentos de seu caboclo, que "tá na mata pra atender quem necessita de conhecedor".<br />
Esse médium possui uma família muito unida. Os pais e irmãos, assim como<br />
cunhados, primos e agregados, compartilham as tarefas do cotidiano de forma significativa.<br />
Formam uma aldeia. E valorizam a união: "nós não vamos nos separar"'. Seu caboclo, em<br />
muitos momentos, ressalta a importância da vida em comunidade. Diz ele que "essa caboclo<br />
Rompe Mato essa trás essa afinidade esse Caboclo Guarani, esse como Sete Mata, essa Sete Foia, essa<br />
Tupinambá, (...) essa com Sete Flecha". Cada um destes caboclos incorporam em um dos<br />
médiuns da casa, e a união deles é tida como "(...) tão forte, fia, essa aqui é capaz essa de unir essa<br />
espiritualidade, essa da mesma forma fia, essa que em outro casuá [casa]". Em qualquer lugar que<br />
estejam, estes espíritos e humanos formam uma comunidade. Contudo, esta forte união<br />
parece estar sendo posta em foco por esta família, no sentido de detectar os possíveis<br />
problemas relacionados a uma 'superproteção', decorrente deste modo de viver. No discurso<br />
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do médium sobre suas entidades caboclas, ele contou que "trabalhei a vida toda com meu pai, na<br />
própria empresa, depois na do meu tio, até que eu dei um grito de liberdade que eu to cansado de<br />
trabalhar com a família". De acordo com o médium, "a gente mudou muita coisa na nossa vida"<br />
com a ajuda da espiritualidade. "Queimamos algumas placentas e [a gente] se desprendeu, foi<br />
aonde a gente começou a caminhar pra frente e pra cima". Caminhar para frente e para cima como<br />
a direção das flechas em muitas das imagens de caboclos. Continuaram juntos, porém<br />
'desgrudados'.<br />
Caboclas e caboclos podem estar empiricamente a serviço de uma 'reedição'<br />
aperfeiçoada da função simbólica do pai e da família, que recria, compensa ou recupera algo<br />
perdido ou desfavorecido nas percepções de experiências pessoais, que podem facilitar o<br />
amadurecimento, desde que ajuda a compor a relação harmônica com a família, sem<br />
detrimento da uma abertura para o desenvolvimento das particularidades de casa um.<br />
Afinal, de acordo com os caboclos, todos têm sua tribo. E dentro de cada tribo, cada um tem<br />
seu lugar.<br />
E essa 'reedição' da ancestralidade pode ocorrer tanto no sentido imediato (com os pais<br />
concretos) como de uma forma mais ampla, numa linhagem ou afiliação indígena mítica. O<br />
Caboclo Rompe Mato se descreve "essa fio essa cá essa pátria". "Ele éfilho do Brasil, ele não é de<br />
longe, daqui de onde nós tamo hoje geograficamente", explica seu cambono 4 . E a Cabocla Sete<br />
Espadas valoriza as qualidades de onde viveu: "sabe ondefica? Aqui mesmo nessa terra, filha (...)<br />
esse lugar, filha, esse formoso", trazendo à tona sentidos de valorização da pátria e o<br />
pertencimento a um passado comum mítico, que culminam em um modelo de ideal, e que,<br />
por meio da relação entre humanos e espíritos caboclos, possibilitam reelaborações referentes<br />
a ancestralidade, edificando identidades inspiradas em ideais originais, tanto pessoais como<br />
construídos coletivamente. De acordo com Bairrão (2003), nesse contexto,<br />
a palavra 'aldeia' reporta-se a vivências comunitárias e a um ordenamento<br />
das dificuldades de convivência familiar e conflitos sociais. Também é um<br />
modo de dar lugar a uma filiação e ao retorno dignificado de ancestrais<br />
indígenas, historicamente maltratados, que se tentaram eliminar psicológica<br />
e simbolicamente das biografias de nacionais e da história do país. O<br />
desrecalcamento de uma filiação mal vista, uma vez benquisto, permite<br />
organizar, re-atar e expressar elos atuais (p. 300).<br />
As entidades caboclas, ao 'desenharem' imagens de uma convivência tranquila com<br />
parentes e uma vida comunitária perfeita, passando pela elaboração da ancestralidade,<br />
expressam ideais de convivência harmônica. Ensina a Cabocla Jurema que, em sua aldeia,<br />
não era preciso muito trabalho, como hoje em dia, pois Tupã trazia "toda la correrada", ou<br />
seja, tudo o que era necessário. A vida flui. O Caboclo Rompe Mato ensina que cada caboclo<br />
faz o seu trabalho: "essa num é essa imposto. Essa porque essa espiritualidade, essa cando essa<br />
Pessoa desincorporada que auxilia a entidade espiritual a realizar seus trabalhos.<br />
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canvidado, essa aceitado essa trabalhador, essa faz essa fluir". Assim como a cabocla Ianka, que<br />
sabia desde criança qual o índio que iria ser seu companheiro, num misto de destino e<br />
escolha. Escolhe-se o que está destinado. Ainda, a médium da Cabocla Flecha da Mata disse<br />
que acorda em paz como se tudo fosse perfeito, quando tem contato com sua cabocla durante<br />
o sono. O Caboclo Flecha Dourada disse que trabalha para "preservar este vida, filha. E fazer<br />
este vida florescer". Assim, o ideal parece estar relacionado a uma serenidade decorrente do<br />
autoconhecimento e da maturidade. Essa complexa arquitetura de significantes que<br />
perfazem as entidades espirituais aqui estudadas pode remeter a ideias de um desabrochar<br />
da vida, com raízes (ancestralidade) bem tratadas (reelaboradas), promovendo o<br />
amadurecimento ou desenvolvimento do potencial de pessoas e comunidades em<br />
interlocução com os caboclos.<br />
Considerações<br />
A umbanda tem sido estudada pelas ciências humanas por múltiplos enfoques.<br />
Sociólogos, historiadores e psicólogos trabalham a partir de um olhar diferente e<br />
complementar sobre o contexto umbandista e seus desdobramentos na vida dos adeptos.<br />
Sabe-se que nenhuma disciplina acadêmica esgota o estudo sobre tal assunto, pois o<br />
fenômeno religioso não se reduz às descrições e análises de nenhuma área de conhecimento,<br />
nem à soma dos resultados de todas elas. E que "o fato de provavelmente ninguém jamais ter<br />
tido acesso à totalidade do sistema e às suas significações não implica que ele seja destituído<br />
de coerência" (Bairrão, 2003, p. 286). Assim, os diversos focos de estudo, apesar de não<br />
darem conta da totalidade do assunto, são úteis na elucidação de nuances dessa religião, cuja<br />
estrutura cultural é subjacente a todos os setores das vidas dos que são permeados por ela,<br />
possivelmente originando, fundamentando e motivando as suas manifestações existenciais.<br />
Percebeu-se que as pessoas em contato com os caboclos se veem frente a suas raízes<br />
(pais, ancestrais). De acordo com essa etnoteoria, pode-se dizer, a partir de uma metáfora<br />
entre plantas e humanos, que essas raízes, bem cuidadas e iluminadas (conhecidas e<br />
elaboradas), em terra fértil, resultam em plantas fortes e bonitas, que desenvolvem todo seu<br />
potencial, amadurecem. E o amadurecimento, no caso dos humanos, inclui o<br />
desprendimento em relação às figuras paternas, o que remete à liberdade.<br />
Isso se aplica inclusive aos pesquisadores, que foram obrigados a se livrar, a partir do<br />
movimento desenhado pelo andamento da pesquisa, de suas premissas (ou pré-conceitos<br />
iniciais). O contato com o contexto umbandista revelou uma plasticidade em relação aos<br />
significantes que supostamente distinguiriam o feminino do masculino e que a princípio<br />
pareciam indicadores importantes para os caminhos que o estudo percorreria. Sentidos como<br />
liberdade, amadurecimento e imagens de autorrealização mostraram-se mais relevantes que<br />
a atenção à subdivisão das entidades caboclas por gênero. Assim, o trabalho, inicialmente<br />
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Rotta, R. R.. & Bairrão, J. F. M. H. (2012). Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas.<br />
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permeado pela busca de traços de feminino e de masculino, permitiu que viessem à tona<br />
outros sentidos que caboclas e caboclos inspiram, constituintes de uma base segura para a<br />
elaboração de questões mais radicais. Mais do que ser homem ou ser mulher, está em<br />
questão ser.<br />
A relação com as entidades caboclas intervém na vivência dos umbandistas,<br />
veiculando significantes que trazem à tona questões subjetivas a que poderiam não ter acesso<br />
por outras vias. Parecem incitar à liberdade de viver e de lidar com as marcas identitárias de<br />
cada um (ou de uma comunidade), que vão significando os sujeitos durante suas vivências e<br />
os situam em uma posição mais ou menos confortável. Caboclas e caboclos podem espelhar<br />
esses contrastes - eventualmente conflitos humanos - entre o ser e o dever/querer ser,<br />
flexibilizando-os e proporcionando um caminho fértil para a elaboração de contradições<br />
inerentes à condição humana. Ressalta-se que esses sentidos dialogam ainda com aspectos<br />
relacionados ao amadurecimento e a imagens de autorrealização. Configuram-se como<br />
imagens de ideais não estereotipados, desde que construídos a partir de marcas pessoais e<br />
comunitárias entrelaçadas com o universo simbólico umbandista. No lugar de modelos de<br />
perfeição extrínsecos ao próprio ser, são vistos como imagens personalizadas de<br />
autorrealização, ou o produto do potencial da pessoa envolvida. A umbanda, com suas<br />
caboclas e seus caboclos, abre assim espaço para acolher amplamente o humano em sua<br />
complexidade.<br />
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Nota sobre os autores<br />
Raquel Redondo Rotta. Mestre em Psicologia pela FFCLRP-USP e pesquisadora<br />
(doutoranda) do Laboratório de Etnopsicologia da mesma instituição. E-mail:<br />
raquelrrotta@yaho.com.br, raquelrotta@pg.ffclrp.usp.br<br />
José Francisco Miguel Henriques Bairrão. Docente e pesquisador da FFCLRP-USP e<br />
coordenador do Laboratório de Etnopsicologia da mesma instituição. E-mail:<br />
bairrao@ffclrp.usp.br<br />
Data de recebimento: 18/04/2012<br />
Data de aceite: 29/08/2012<br />
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De la Peña e l'evangelizzazione degli indios: epicheia e matrimoni nel<br />
Nuovo Mondo<br />
De la Peña and the evangelization of the Indians: epikeia and marriages in the New World<br />
Fabio Giovanni Locatelli<br />
Università degli studi di Milano<br />
Italia<br />
Riassunto<br />
Il presente lavoro analizza il significato della virtù dell'epicheia nell'Itinerario para<br />
parrocos de indios, manuale destinato ai parroci del Nuovo Mondo redatto dal vescovo di<br />
Quito Alonso de la Peña Montenegro. Secondo il vescovo le leggi in ambito<br />
matrimoniale, formulate dal Concilio di Trento allo scopo di disciplinare la celebrazione<br />
dei matrimoni, possono essere interpretate e adattate alle circostanze di vita del Nuovo<br />
Mondo. Attraverso l'epicheia è possibile correggere il decreto Tametsi e, così, permettere<br />
agli indios e agli abitanti delle campagne di contrarre matrimonio. I contraenti possono<br />
godere dei diritti e dei benefici che derivano dall'integrazione legittima per via<br />
matrimoniale alla società cristiana. La Chiesa si estende nei luoghi più distanti e,<br />
soprattutto, compie il suo mandato universale.<br />
Parole chiave: matrimonio; inclusione sociale; psicologia e religione<br />
Abstrat<br />
This work analizes the meaning of epikeia in the handbook Itinerario para parrocos de<br />
indios written by the bishop of Quito Alonso de la Peña Montenegro. In the opinion of the<br />
bishop marriage laws, established by Trento's Council to regulate marriages, can be<br />
interpreted and adapted for the life of Indians. Through epikeia, it is possible to<br />
particularly correct the decree Tametsi, and thus allow the Indian and rural people to<br />
contract marriage. Thus, the contractors can enjoy the rights and benefits that derive from<br />
legitimate integration by marriage into Christian society. So the Church extends in the<br />
farthest places and, above all, it performs its universal mandate.<br />
Keywords: marriage; social inclusion; psychology and religion<br />
Introduzione<br />
Alonso de la Peña Montenegro naque a Padrón (Galizia) nel 1596. Trascorse la prima<br />
parte della sua vita in Spagna, dove si impegnò sia nella carriera ecclesiastica, sia in ambito<br />
accademico. Si formò nella tradizione di pensiero legata alla Seconda Scolastica, che<br />
influenzò fortemente il suo pensiero. Divenne dottore in teologia e fu rettore dell'università<br />
di Santiago de Compostela. Nel 1654 abbandonò per sempre l'Europa e giunse a Quito per<br />
ricoprire la carica episcopale. Governò la diocesi fino alla morte, sopraggiunta nel 1687 1 .<br />
Nel Nuovo Mondo non abbandonò la pratica dello studio e, così, nel 1668 comparve a<br />
Madrid l’Itinerario para parrocos de indios. Si tratta di un'opera vasta e approfondita nella<br />
1 Sulla figura di de la Peña si dispone della biografia redatta da Manuel Bandín (1951). Attualmente Pilar Pérez<br />
Ordoñez (Flacso-Ecuador) sta conducendo ricerche circa il "potere pastorale" nella vita e opera di de la Peña. La<br />
studiosa sta dedicando una parte delle ricerche al ruolo dell'epicheia come strumento di governo.<br />
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quale de la Peña condensò sia la sua elevata cultura accademica, maturata in Europa, sia le<br />
riflessioni nate durante la sua esperienza pastorale a Quito. Il suo obiettivo era fornire a<br />
parroci e missionari consigli, indicazioni e riflessioni per migliorare la qualità e l'efficacia<br />
dell'evangelizzazione. L’ Itinerario contiene molte informazioni utili per conoscere la storia<br />
degli uomini e della società dell'America Latina del XVII secolo. Si contraddistingue per il<br />
livello di approfondimento e la sensibilità che de la Peña impiega per analizzare - a livello<br />
interiore (le dinamiche psicologiche) e a livello sociale - la vita quotidiana degli abitanti del<br />
Nuovo Mondo (indios, spagnoli, neri o meticci che fossero) 2 .<br />
In questo lavoro si analizzeranno le riflessioni proposte da de la Peña circa l'epicheia.<br />
Questa virtù poteva essere applicata per correggere le norme che disciplinavano il<br />
matrimonio (stabilite dal Concilio di Trento), per favorirne l’amministrazione. Il fine era<br />
integrare gli indios emarginati nella società e permettere loro di accedere alla salvezza<br />
eterna. Si cercherà inoltre di capire se l'oggetto di studio può offrire informazioni sulle<br />
dinamiche dell'evangelizzazione cattolica attuata nell'età moderna.<br />
I problemi e le modalità dell’amministrazione dei sacramenti all'epoca dell'espansione<br />
europea hanno sollevato notevole interesse storiografico in Italia. In particolare è utile<br />
segnalare due raccolte di articoli: la prima dedicata ai dubia circa sacramenta (Broggio,<br />
Castelnau-L'estoile & Pizzorusso, 2009); la seconda dedicata all’amministrazione dei<br />
sacramenti in Europa e nel resto del mondo in ottica comparata (Politiche, 2010). Per quanto<br />
riguarda il matrimonio, che nell'ambito di questa letteratura è oggetto di particolare<br />
interesse, è utile ricordare che negli ultimi anni si sono condotte ricerche negli archivi per<br />
comprendere quali conseguenze le nuove norme matrimoniali tridentine ebbero sulla società<br />
italiana (Seidel Menchi & Quaglioni, 2001). Per il Nuovo Mondo, Benedetta Albani (2008-<br />
2009) si è occupata (e continua ad occuparsi in vista di una futura pubblicazione) della<br />
concessione di dispense da parte delle autorità romane per favorire la celebrazione dei<br />
matrimoni nella Nuova Spagna. Se al centro di queste ricerche c'è lo studio dei rapporti tra<br />
centro (Roma) e periferia (le realtà concrete nel resto del mondo), nell'ambito di questo<br />
articolo si metteranno in evidenza, relativamente alle esperienze descritte da de la Peña, sia<br />
l'impossibilità di prendere contatto con le autorità romane per richiedere le dispense a causa<br />
2 L'Itinerario para parrocos de indios fu pubblicato per la prima volta a Madrid nel 1668 "por Joseph Fernández<br />
Buendía". La voluminosa opera è divisa in cinque libros, ciascuno di questi è suddiviso in tratados, a loro volta<br />
composti da secciones, che al loro interno contengono capoversi numerati. I libri, i trattati e le sezioni hanno<br />
ciascuno un titolo che ne identifica l'argomento. Tale struttura era necessaria perché i parroci potessero accedere<br />
agilmente all'argomento che interessava loro. Il manuale non era destinato esclusivamente alla missione presso<br />
gli indios, ma era utile per la pastorale presso tutti gli abitanti del Nuovo Mondo (Itin., Dedicatoria; de la Peña<br />
Montenegro, 1668/1995, p. 76). Tra le altre opere di de la Peña si segnala un gruppo di sermoni conservati<br />
all'archivio del Banco central del Ecuador (Flores, 1997).<br />
Per questo studio utilizzo la versione dell'Itinerario pubblicata a Madrid in due volumi tra 1995 (I e II libro e<br />
appendici) e 1996 (III, IV e V libro). Il primo volume contiene saggi introduttivi redatti dagli stessi curatori<br />
dell'edizione. In questo lavoro, cito Y Itinerario con l'abbreviazione "Itin." seguita dai numeri del libro, del trattato,<br />
della sezione e del capoverso. Accanto, inserisco i dati nella forma prevista APA.<br />
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delle enormi distanze, sia la necessità di amministrare il matrimonio indipendentemente<br />
dall'ottenimento delle autorizzazioni da parte di Roma, attraverso l'applicazione<br />
dell'epicheia.<br />
É difficile individuare una definizione esaustiva di epicheia perché, a seconda delle<br />
epoche e delle prospettive, ha assunto diverse connotazioni e significat i . In questo lavoro (nel<br />
paragrafo "De la Peña e la legge") sarà analizzata la definizione che ne dà de la Peña, il quale<br />
sostiene che l'epicheia possa essere detta anche equità. Il dibattito plurisecolare sull'idea di<br />
epicheia ebbe origine nel pensiero greco (D'Agostino, 1973) e, dopo aver subito una rilettura<br />
da parte della cultura cristiana, fu vivo anche in epoca medievale (D'Agostino, 1976).<br />
Durante il medioevo, l'epicheia fu oggetto di particolare attenzione nell'ambito del diritto<br />
canonico. Tra XII e XVI secolo i giuristi ne rielaborarono gli antichi significat i greco (epicheia),<br />
romano (aequitas) e patristico (misericordia) (Caron, 1971). Nella prima età moderna, Francisco<br />
Suárez diede uno dei maggiori contributi alla riflessione. Con Suárez cambiò soprattutto<br />
l'impostazione del problema. Ciò si intende se si confronta il suo pensiero con quello di<br />
Tommaso d'Aquino. Angel Rodrìguez Luño (1997) sostiene che se Tommaso d'Acquino (che<br />
diede un notevole contributo alla riflessione) affrontò il problema dell'epicheia nella<br />
prospettiva morale, all'epoca di Suárez il problema fu affrontato secondo la prospettiva<br />
canonica-politica per "difendere la libertà del singolo nei confronti di una legislazione civile<br />
o ecclesiastica troppo invadente" (pp. 227-236). Il pensiero di Suárez rimase per secoli il<br />
fondamento di tutte le riflessioni sull'epicheia (Rodríguez Luño, 1998). Si può ritenere che<br />
l'epoca postrident i na e il contesto culturale della Seconda Scolastica - nei quali si inseriscisce<br />
la vita e l’opera di de la Peña, che cita con frequenza l’opera di Suárez - cost i tuiscano un<br />
punto d'osservazione privilegiato sul problema dell'applicazione dell'epicheia 3 .<br />
In questo art i colo, in primo luogo si proporranno riflessioni sull'applicazione del<br />
Tridentino e le relative norme matrimoniali tra Europa e Nuovo Mondo. Poi si analizzerà,<br />
dal punto di vista teorico, l’idea di epicheia (nelTámbito della riflessione circa la legge) nel<br />
pensiero di de la Peña. Dal punto di vista pratico, si analizzeranno tre casi di applicazione<br />
dell'epicheia tra le parrocchie (nelle "terre di crist i ani") e le "terre d'infedeli".<br />
Note su Trento e Tametsi tra Europa e Nuovo Mondo<br />
Per comprendere il problema dell'applicazione dell'epicheia, si rit i ene utile iniziare con<br />
alcune riflessioni sul valore del Concilio di Trento e sui problemi connessi alla sua<br />
interpretazione. La storiografia ha messo in rilievo come, durante il Concilio, la Chiesa, per la<br />
3 Angel Rodríguez Luño (1997), nell'introduzione del suo lavoro, spiega di volersi concentrare sull'epicheia non<br />
solo dal punto di vista teorico, ma desidera affrontare anche il problema della sua applicazione. In particolare,<br />
suo obiettivo è capire se è possibile amministrare la comunione ai fedeli divorziati risposati attraverso<br />
l'applicazione dell'epicheia. Anche in anni recenti si riflette sull'applicazione dell'epicheia per la soluzione dei<br />
casi problematici che sorgono dall'intreccio tra matrimonio, diritto canonico e morale.<br />
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prima volta nella storia, abbia chiaramente distinto i dogmi, cioè la dottrina, dal diritto<br />
positivo, cioè la disciplina. I dogmi non sono modificabili mentre la disciplina lo è, in quanto<br />
concepita come una qualsiasi altra legge umana: è passibile di essere modificata in base alla<br />
mutazione delle circostanze storiche (Prodi, 2000, pp. 271-283). La Chiesa però, attraverso la<br />
bolla Benedictus Deus del 1564, riservò esclusivamente a sé - all'organo romano della<br />
Congregazione Cardinalizia del Concilio - la possibilità di interpretare e modificare i decreti.<br />
Inoltre la Chiesa, attraverso il divieto di ogni interpretazione dei decreti che non fosse quella<br />
romana e, per evitare il pericolo di promuovere la critica, la mancata divulgazione degli atti<br />
conciliari (cioè la cronaca delle dinamiche, dibattitti e conflitti vissuti durante l'assemblea),<br />
impedì la nascita di una letteratura giurisprudenziale e storiografica sulle decisioni<br />
tridentine. Così gli esecutori non poterono disporre della letteratura giurisprudenziale, che<br />
avrebbe fornito loro gli strumenti teorici per applicare al meglio le nuove norme, "la chiave<br />
ermeneutica necessaria per la comprensione e l'interpretazione stessa dei decreti". Le nuove<br />
regole tridentine dovettero essere applicate in modo univoco, "soltanto in quanto<br />
formulazioni finali e formali, astratte dal contesto che le aveva prodotte" (Prodi, 1972, pp.<br />
195-196). I problemi non riguardavano solo l'interpretazione, ma anche l'applicazione<br />
quotidiana dei decreti disciplinari. Le nuove regole dovettero scontrarsi con abitudini e<br />
usanze secolari. Le società cattoliche - i laici come gli ecclesiastici - impiegarono molti<br />
decenni prima di cambiare e adeguarsi al modello e agli stili di vita proposti dal Tridentino.<br />
Sembra che in Europa l'istituzione parrocchiale, strumento fondamentale per l'affermazione<br />
del cattolicesimo moderno, cominciò ad essere ben funzionante ed efficiente soltanto nel<br />
corso del XVIII secolo (Châtellier, 1994).<br />
Nel resto del mondo si dovettero applicare, con molte difficoltà, le norme Tridentine<br />
che erano state pensate e redatte per una Chiesa di dimensioni mediterranee. Adriano<br />
Prosperi (2001) sostiene che si sia verificata una "storia che non passò da Trento". Durante il<br />
Concilio non si prese in considerazione neppur minimamente l'attività missionaria, la quale<br />
comunque caratterizzò "il mondo della Controriforma" (pp. 143-164). Per quanto riguarda il<br />
Nuovo Mondo, la Corona spagnola, che aveva competenze in ambito ecclesiastico in virtù<br />
del patronato regio, non consentì che i vescovi del Nuovo Mondo partecipassero al Concilio.<br />
Si può ritenere che anche questa esclusione abbia contribuito a determinare le difficoltà di<br />
applicazione delle norme Tridentine. A ciò si aggiunga che nel Nuovo Mondo i contatti<br />
umani - e quindi la possibilità di applicare correttamente le norme e svolgere regolarmente<br />
l'attività pastorale - erano rallentati e ostacolati dall'isolamento e dalle distanze - problemi<br />
frequentemente presenti e fortemente accentuati nell’ Itinerario.<br />
Malgrado le difficoltà, nel Nuovo Mondo - in particolare, nel vicereame del Perù - si<br />
ebbe una storia che, anche se "non passò", fu condizionata da Trento. Nella seconda metà del<br />
XVI secolo, si celebrarono importanti concili (come il Terzo Concilio di Lima) per rinnovare,<br />
secondo l'impostazione tridentina, anche la Chiesa del Nuovo Mondo. Il rinnovamento<br />
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avvenne non solo per mezzo di assemblee, ma anche attraverso persone (laici ed ecclesiastici)<br />
che diedero applicazione e incarnarono lo spirito Tridentino sia attraverso le loro attività, sia<br />
con la pubblicazione di importanti opere. Si tratta di Francisco de Toledo, san Toribio de<br />
Mogrovejo, José de Acosta e Juan de Solórzano y Pereira 4 , solo per citarne alcuni. Il<br />
Tridentino, dunque, rinnovò la Chiesa non solo in Europa, ma anche nelle Indie.<br />
Il Concilio riformò anche l'istituto matrimoniale, al quale nell'Itinerario è dedicato<br />
molto spazio e si attribuisce grande importanza 5 . De la Peña specifica che anche molti casisti<br />
della sua epoca hanno dedicato pagine a questo sacramento ("De esta materia de matrimonio<br />
tratan todos los sumistas") e altri hanno redatto numerose ed eccellenti opere ("doctísimos y<br />
provechosísimos tomos enteros") dedicate esclusivamente al matrimonio (Itin., III, IX,<br />
prólogo, 7; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 232). Del resto l'esperienza matrimoniale<br />
era, come anche oggi, una importante espressione della vita umana a livello sia psichico, sia<br />
biologico. Era sia un'opportunità per esprimere i sentimenti e finalizzarli ad un progetto di<br />
vita, sia uno strumento per la continuità biologica della specie umana. Nel Nuovo Mondo la<br />
vita e le scelte matrimoniali erano minacciate dagli abusi e dalle violenze perpetrate dagli<br />
spagnoli a danno degli indios (Bernard, 1988). Di conseguenza si riducevano sia la<br />
popolazione (in termini quantitativi), sia le prospettive di condurre una buona vita sociale e<br />
familiare. De la Peña, in un significativo passaggio dell'Itinerario, descrive le ingiustizie che<br />
potevano colpire le famiglie indigene e, così, esprime implicitamente il grande valore che<br />
attribuisce al matrimonio e alla famiglia. Afferma che gli encomenderos quando, al fine di<br />
distribuire meglio la forza lavoro sul territorio, separavano i mariti dalle mogli e dai figli,<br />
commettevano un crimine contro l’umanità, si dichiaravano "enemigos crueles del género<br />
humano" (Itin., II, IX, X, 3; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 591-592)6.<br />
A parte il significato e i problemi specifici del matrimonio nel Nuovo Mondo, si può<br />
ritenere che la concezione generale di de la Peña sul sacramento fosse coerente con quanto<br />
stabilito dal Concilio di Trento, che - nel "Decretum de reformatione matrimonii" (1563) -<br />
definì chiaramente la dottrina e la disciplina del sacramento. Per quanto riguarda la dottrina,<br />
i padri conciliari affermarono il carattere sacramentale del matrimonio e la validità delle sole<br />
unioni monogamiche. Il decreto confermò la necessità che i contraenti esprimessero il loro<br />
consenso (Zarri, 2000, pp. 234-238). Il primo capitolo della parte disciplinare della sessione<br />
XXIV o Tametsi (è detto Tametsi perché inizia con questo termine) affermava in primo luogo<br />
che i matrimoni clandestini (cioè celebrati unicamente mediante lo scambio dei consensi),<br />
nonostante siano proibiti e peccaminosi, erano comunque vere unioni. Ciò significa che la<br />
4 Per quanto riguarda Juan de Solórzano y Pereira, la sua opera fu messa all' Indice a causa delle posizioni<br />
"regaliste". Ciò non esclude che il giurista fosse fedele all'idea di disciplinare e cristianizzare il Nuovo Mondo<br />
secondo lo spirito Tridentino (García Hernán, 2007).<br />
5 Le riflessioni sul matrimonio proposte da de la Peña sono state oggetto di studio nell'ambito della mia tesi di<br />
laurea magistrale (Locatelli, 2011, pp. 149-192).<br />
6 Il problema delle conseguenze demografiche delle dinamiche sociali nell'ambito del Nuovo Mondo è stato<br />
approfondito da Massimo Livi Bacci (2008).<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/locatelli01
Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.<br />
Memorandum, 23, 133-157. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/locatelli01<br />
Chiesa, seppure stabilì la necessità di rispettare determinate formalità, riconobbe<br />
implicitamente la possibilità di contrarre matrimonio senza rispettare alla lettera il Tametsi<br />
(Gismondi, 1952-1953; Rasi, 1953-1954). De la Peña attribuisce grande importanza al<br />
consenso dei nubendi: afferma che i "consentimientos legítimos" di entrambi i contraenti<br />
sono la forma e la materia del sacramento (Itin., III, IX, prólogo, 4; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, pp. 230-231).<br />
Di seguito, il Tametsi elenca le formalità da rispettare per amministrare i matrimoni.<br />
Per evitare la bigamia (intesa come sovrapposizione di un matrimonio a un altro contratto in<br />
precedenza) 7 il matrimonio si può celebrare solo dopo che il parroco ha fatto, durante la<br />
messa, le pubblicazioni per tre domeniche successive. Il matrimonio deve essere celebrato<br />
d'innanzi alla chiesa (al suo interno solo dal 1614, come stabilito dal rituale romano), alla<br />
presenza di due o tre testimoni e da parte del parroco che deve interrogare i contraenti,<br />
accertare il loro consenso e poi dichiarare la loro unione attraverso una determinata formula.<br />
Le pubblicazioni possono essere ridotte od omesse, dietro licenza del vescovo, qualora si<br />
tema che qualcuno possa maliziosamente impedire il matrimonio. Chi si unisce in forma<br />
diversa rispetto a quella descritta è dichiarato incapace e l'unione è annullata. Tutte le<br />
persone responsabili di aver celebrato in forma diversa (che siano il parroco, i testimoni o i<br />
contraenti) devono essere punite dall'ordinario. È vietata la convivenza prematrimoniale. Il<br />
celebrante può essere unicamente il proprius parochus (cioè quello del domicilio delle parti o<br />
di una di esse) o un sacerdote autorizzato dal curato o dal vescovo. I sacerdoti che celebrano<br />
matrimoni senza autorizzazione devono essere sospesi. Il parroco deve tenere un registro sul<br />
quale annotare i contratti. I coniugi devono ricevere il sacramento della confessione e<br />
dell'eucarestia prima del matrimonio o tre giorni prima della consumazione. Gli ordinari<br />
hanno il dovere di divulgare il Tametsi con particolare intensità nel primo anno dal momento<br />
della pubblicazione. Infine, il Tametsi conclude indicando che le norme elencate entrano in<br />
vigore trenta giorni dopo la pubblicazione del decreto stesso in parrocchia.<br />
Gli obiettivi del Tametsi erano definire chiaramente il vero matrimonio (rispetto a<br />
quello protestante) e disciplinarne la celebrazione attraverso l'imposizione di una chiara<br />
forma cerimoniale (Zarri, 2000, pp. 203-250). Il Tridentino dichiarò illegale il matrimonio<br />
contratto unicamente mediante lo scambio dei consensi e attribuí una funzione determinante<br />
alle formalità e ai rituali ai fini della validità del contratto (Rasi, 1941). Tra medioevo ed età<br />
moderna la gente comune subordinava il consenso al matrimonio dei nubendi agli interessi<br />
familiari, soprattutto quando si trattava di matrimoni tra persone appartenenti a ceti sociali<br />
elevati. I genitori intervenivano nelle decisioni, perché il matrimonio era concepito come un<br />
affare utile al fine di tessere alleanze familiari (Bossy, 1990, pp. 24-32). Così si usava formare<br />
(o, meglio, contrattare) le coppie quando i futuri sposi erano ancora in tenera età. Spesso i<br />
7 Sul fenomeno della bigamia, ritenuto "un delitto specificamente «americano» e coloniale" (Bernard-Gruzinsky,<br />
1988, p. 191), si veda Presta (2011).<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.<br />
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giovani convivevano sotto lo stesso tetto per molto tempo prima che si celebrassero<br />
solennemente le nozze. Con il Concilio di Trento si volle porre termine a questi costumi<br />
matrimoniali in uso da secoli tra la gente comune in Europa. Da un lato si confermò<br />
l'importanza cruciale del consenso, dall'altro il matrimonio fu trasformato da affare privato,<br />
domestico e gestito dal paterfamilias in tempi lunghi in cerimonia pubblica, celebrata in chiesa<br />
e guidata dal parroco attraverso un rito che immediatamente e solennemente cambiava lo<br />
status dei contraenti (Prosperi, 1996, pp. 630-662).<br />
Nel corso della prima età moderna il cattolicesimo si espanse a livello universale e le<br />
novità introdotte dal Tametsi dovettero essere applicate nei diversi luoghi del mondo. Il<br />
Tametsi, ricorda de la Peña, indicava che "no obligue hasta que en cada parroquia se<br />
publique": sarebbe entrato in vigore trenta giorni dopo la pubblicazione nella parrocchia<br />
(Itin., III, IX, VI, 9; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 248). La Chiesa all'epoca del<br />
Tridentino era in fase di espansione globale. Avrebbe avuto bisogno di molto tempo per<br />
stabilire le parrocchie nelle quali pubblicare il decreto. Il Tametsi così entrò in vigore a livello<br />
universale nel 1908. Soltanto a partire da questa data divenne vincolante per tutti i cattolici<br />
del mondo. Nel periodo compreso tra la chiusura dei lavori tridentini e il 1908 si registrarono<br />
diverse situazioni (Jemolo, 1997, p. 368). In primo luogo, il Tametsi entrò in vigore solo nei<br />
paesi nei quali fu pubblicato come in Italia, Spagna e Portogallo, non senza sollevare dubbi e<br />
problemi (Gismondi, 1952-1953). In secondo luogo, altri paesi, per diversi motivi, non ebbero<br />
l'occasione di pubblicarlo; quindi continuarono legittimamente per diversi secoli a non<br />
seguire la normativa tridentina (Jemolo, 1997, p. 65). Di queste situazioni era consapevole<br />
anche de la Peña; egli stesso indica che il Tametsi non era in vigore "en tierras de cristianos"<br />
dove "no está recibido" come in Grecia e in Polonia (Itin., III, IX, VI, 9; de la Peña<br />
Montenegro, 1669/1996, p. 248). In terzo luogo, il Tametsi non vincolava nemmeno le<br />
minoranze cattoliche che vivevano in paesi dove la maggioranza era di altra fede, perché in<br />
questi paesi il decreto non era stato pubblicato e non c'erano parroci. Le minoranze cattoliche<br />
avevano la possibilità di contrarre matrimonio in "forma straordinaria". Questa modalità era<br />
stata concepita dalla Congregazione del Concilio per i cattolici perseguitati d'Olanda nella<br />
seconda metà del XVI secolo e successivamente fu estesa in altri luoghi del mondo<br />
(Gaudemet, 1989, pp. 232-233). È lo stesso de la Pena a specificare che i cattolici prigionieri in<br />
"tierras de infieles" (ad esempio in Algeria) oppure i mercanti cattolici che risiedevano in<br />
paesi dove la maggioranza era di confessione diversa (come in Turchia) potevano unirsi in<br />
matrimonio senza rispettare la forma del Tametsi. Infine esisteva il caso dei paesi che<br />
pubblicarono il Tametsi, ma che al loro interno contenevano enclave dove non era stato<br />
pubblicato. In questi territori, come in alcuni luoghi della Francia, dice de la Peña, i cattolici<br />
potevano legittimamente contrarre matrimonio senza rispettare la forma del Tametsi (Itin.,<br />
III, IX, VI, 9; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 247-248).<br />
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Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.<br />
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La Chiesa accettò - e de la Peña conosceva bene la questione - che in alcune realtà,<br />
speciali per motivi geografici, politici, sociali e religiosi, si celebrassero i matrimoni in forme<br />
eterogenee rispetto a quella canonica. Nella prossima sezione si analizzerà il pensiero<br />
giuridico di de la Peña e si cercherà di capire quali possibilità di correzione, interpretazione e<br />
modifica della legge disponessero i missionari (cioè gli esecutori delle norme) nei vari angoli<br />
del Nuovo Mondo.<br />
De la Peña e la legge<br />
Date le citazioni sul Tametsi tratte dall’ Itinerario alle quali si è fatto riferimento, si<br />
presume che de la Peña fosse competente in ambito giuridico. L'impressione è confermata<br />
dalle numerose e notevoli riflessioni sul diritto canonico che sono proposte nell'Itinerario 8 . Il<br />
trattato "De los preceptos de la Iglesia y de la ley natural que deben guardar los indios"<br />
(Itin., IV, I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 319-338) è specificamente dedicato ai<br />
problemi della definizione, applicazione e interpretazione della legge. In questo trattato de la<br />
Peña afferma, coerentemente al pensiero di Tommaso d'Aquino e della Seconda Scolastica,<br />
che la legge è l'ordine di compiere o no una determinata azione e la sua funzione è stabilire il<br />
bene comune. Sostiene inoltre che può essere classificata in questo modo: esiste il diritto<br />
divino, istituito e imposto da Dio, e il diritto umano, istituito e imposto dagli uomini. Il<br />
diritto divino si divide in diritto naturale, che è impresso nella ragione naturale, e in diritto<br />
divino positivo, che è stato rivelato attraverso il Vangelo. Il diritto umano si divide in diritto<br />
ecclesiastico (o canonico), che è quello posto da pontefici, concili, vescovi e altri prelati, e<br />
diritto secolare (o civile), posto da imperatori, re e repubbliche (Itin., IV, I, prólogo, 1-2; de la<br />
Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 319-320). Nelle diverse sezioni del trattato, dopo aver<br />
definito e classificato la legge, esprime considerazioni circa le responsabilità degli indios.<br />
De la Peña dedica, con grande entusiasmo ("Cuestiòn es esta que la trato aquí de buena<br />
gana"), l'ultima sezione del trattato al problema "Si se podrá interpretar la ley en algunos<br />
casos de manera que sea lícito a los súbditos ir contra las palabras expresas de ella" 9 . Gli<br />
esecutori (parroci e missionari) nell'atto di applicare letteralmente la legge ("la observancia<br />
de la ley") si possono accorgere che l'esecuzione è problematica od ostacola la realizzazione<br />
del suo fine, il bene ("estorba mayor bien"). Questi effetti negativi sono dovuti al fatto che i<br />
legislatori "ponen [la legge] universalmente" - si presume che il vescovo voglia dire che la<br />
legge ha una forma testuale standard breve e generica. De la Peña prosegue e asserisce che il<br />
8 Molte opinioni di de la Peña sono studiate da storici del diritto. A tal proposito è interessante segnalare il lavoro<br />
di Francisco Cuena Boy (2006) dedicato al significato dell'epicheia (non nell'ambito del diritto canonico ma, più<br />
generalmente, del Derecho Indiano) secondo i pareri di tre giuristi della prima età moderna, tra i quali de la Peña<br />
occupa notevole spazio.<br />
9 De la Peña specifica che l'epicheia si può applicare unicamente alla "ley humana escrita" e non al diritto<br />
naturale (Itin. IV, I, V, 2; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 336).<br />
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testo della legge non può contemplare tutti i futuri casi di applicazione. Molti casi non sono<br />
contemplati nel testo della legge per la loro singolarità ("suceden casos singulares") e<br />
imprevedibilità ("todos los sucesos y casos que pueden acontecer"). Il testo della legge è<br />
dunque limitato, per cui è dannoso ostinarsi ad applicarlo in modo letterale ("fuera dañoso<br />
atarse a las palabras de la ley") e indiscriminato in qualsiasi situazione. Una volta avvertite le<br />
difficoltà nell'applicazione della legge, gli esecutori dovrebbero ricorrere alle autorità<br />
romane cui compete l'interpretazione in caso di dubbio - cioè il Papa e le congregazioni<br />
romane preposte - che sono però troppo distanti (Itin., IV, I, V; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, pp. 336-338). In un'altra sezione de la Peña ricorda che esiste anche la possibilità<br />
di ottenere una dispensa ma, anche in questo caso, l'autorità è troppo distante (Itin., V, I, VI,<br />
3; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 462).<br />
De la Peña sostiene che sia possibile applicare l'epicheia per agire diversamente da<br />
quanto indicato nel testo della legge (Itin., IV, I, V, 3-4; de la Peña Montenegro, 1668/1996,<br />
pp. 337-338). Che cosa è l'epicheia? Nella sezione in questione non se ne trova una<br />
definizione, che invece si trova in una sezione diversa 10 . De la Peña asserisce che epicheia è<br />
un termine di origine greca sinonimo di equità. È una virtù che si trova in tutte le altre virtù e<br />
la sua funzione è correggere o interpretare la "ley promulgada". Attraverso l'epicheia è<br />
possibile contraddire ("yendo contra") la lettera ("al semblante que parece por defuera")<br />
della legge, per interpretarla in sintonia con le intenzioni profonde del legislatore ("sigue<br />
antes el pensamiento de quien la promulgó") 11 . L'epicheia è necessaria nelle remote regioni<br />
del Nuovo Mondo sia a causa della distanza dal legislatore che potrebbe dare delucidazioni<br />
("para que explique la ley"), sia perché quando il legislatore stabilisce ("en hacer") una legge<br />
si riferisce unicamente a "lo que más ordinario acontece" e non ai casi straordinari. In alcuni<br />
casi particolari è dunque possibile "rasgar la letra" al fine di mantenere "entero" il "sentido"<br />
della legge. Infine de la Peña richiama alla "mucha costa de prudencia" - si potrebbe dire<br />
l'equilibrio - necessaria a chi deve applicare l'epicheia. Da un lato, non si deve perdere il<br />
rispetto nei confronti delle parole della legge, usandola come pare e piace ("conforme a su<br />
antojo"). Dall'altro, le parole non devono essere osservate così rigorosamente che, per<br />
rispetto dell'"orden del Derecho", si permetta che "den en tierra mayores intereses" (Itin., III,<br />
IX, VI, 11-12; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 249) 12 . Dopo aver esposto l'idea di<br />
10 La definizione di epicheia si trova nella sezione: "Si en las partes remotas de las Indias, donde no se hallan ni se<br />
pueden hallar párrocos, podrá un simple sacerdote asistir al matrimonio o los proprios contrayentes casarse sin<br />
párrocos" (Itin., III, IX, VI; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 244-249). Questa sezione sarà analizzata anche<br />
nel paragrafo "Tra «tierras de infieles» e «tierras de cristianos»", in merito al problema del l ’applicazione concreta<br />
dell'epicheia.<br />
11 De la Peña usa le espressioni quali l'"intencion del legislador" (Itin., III, IX, VI, 6; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, p. 246), il "pensamiento de quien la promulgó" e il "sentido de la ley" (Itin., III, IX, VI, 11-12; de la<br />
Peña Montenegro, 1668/1996, p. 249) non per indicare lo scopo per cui è nata una legge (la ratio legis), ma per<br />
riferirsi alla volontà del legislatore storico (Cuena Boy, 2006, pp. 21-22).<br />
12 De la Peña specifica che l'epicheia è una virtù e quindi non può essere utilizzata in caso di dubbio, ma solo<br />
quando, a causa delle distanze e della situazione di emergenza, non si può ricorrere al legislatore. In caso di<br />
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epicheia di de la Peña, è ora il momento di analizzare tre sezioni dell'Itinerario nelle quali<br />
sono descritti casi concreti di applicazione della virtù tra parrocchie e "terre di infedeli".<br />
Vita, matrimoni e morte nelle parrocchie rurali del Nuovo Mondo<br />
Attraverso le descrizioni e le riflessioni disseminate fra le varie sezioni dell'Itinerario, è<br />
possibile ricostruire quali fossero i problemi dei parroci e dei parrocchiani di Quito. Le<br />
parrocchie dell’immensa diocesi erano collocate su territori vasti e ricchi di ostacoli<br />
geografici, quali fiumi del bacino amazzonico, monti, vulcani, foreste, paludi e deserti. Il cura<br />
viveva, con alcuni fedeli, nel "pueblo principal", cioè il centro abitato dove era situata la<br />
chiesa "matriz". Il resto dei fedeli viveva in "pueblos anejos", precari insediamenti di<br />
capanne ("ranchos") abitati da piccole comunità tribali-familiari ("aillo") disperse<br />
("desparramados") nel territorio. Le vie di comunicazione scarseggiavano o, se esistevano,<br />
erano in pessimo stato. Il parroco si recava presso le comunità satelliti solo una o due volte<br />
l'anno e, in ciascuna visita, si fermava tra i sei e gli otto giorni "enseñando la doctrina<br />
cristiana, bautizando a los que hallan nacidos de nuevo y casando a los que quieren tomar<br />
estado de matrimonio". Oltre alla catechesi, il parroco si occupava di amministrare soltanto<br />
due sacramenti, il battesimo e il matrimonio. Si trattava di due "riti di passaggio" 13<br />
fondamentali attraverso i quali gli uomini cambiavano il loro status: il primo segnava<br />
l'ingresso nella comunità cristiana e la subordinazione ai precetti cristiani; con il secondo si<br />
formava una nuova unità con la persona scelta e, come con il battesimo, si assumevano<br />
nuove responsabilità. De la Peña fa notare che gli indios di campagna erano cattolici solo di<br />
"estado" - erano solo nominalmente cristiani - poiché avevano un rapporto occasionale e<br />
approssimativo con il catechismo, con i sacramenti e con il parroco.<br />
dubbio l'esecutore non può interpretare autonomamente la legge, ma deve contattare un superiore che faccia<br />
chiarezza, perché l'epicheia non toglie alla legge la propria sfera di competenza (Itin., V, IV, VIII, 4; de la Peña<br />
Montenegro, 1668/1996, p. 603).<br />
Missionari e parroci, durante la prima età moderna, se avevano dubbi sulle norme, in particolare in merito<br />
all'amministrazione dei sacramenti, dovevano contattare le congregazioni romane che avevano il compito di<br />
chiarire, come la Congregazione del Concilio, il Sant'Uffizio e De Propaganda Fide. Della corrispondenza<br />
"verticale" tra le periferie della cristianità e il centro romano sopravvive oggi la documentazione detta dei dubia<br />
circa sacramenta (Administrer, 2009). Ben diverso era il caso in cui, a causa delle enormi distanze, non c'erano né il<br />
tempo, né la possibilità di contattare i superiori. Quando il bene comune era in serio pericolo, era necessario<br />
abbandonare il campo proprio della legge e interpretare la norma attraverso l'applicazione della virtù<br />
dell'epicheia.<br />
Il rapporto tra la virtù e la legge impone una riflessione sulla storia della relazione tra coscienza e diritto. Il<br />
problema è stato studiato da Paolo Prodi (2000) e, per quanto riguarda la casistica italiana della prima età<br />
moderna, da Miriam Turrini (1991). Nell'ambito di questo articolo è sufficiente segnalare che la legge in<br />
determinate occasioni non era in grado di adempiere il suo fine - il bene comune - e, quindi, doveva essere<br />
necessariamente coadiuvata dall'autorità della coscienza, che si orientava attraverso la virtù dell'epicheia.<br />
13 L'espressione "Riti di passaggio", ampiamente diffusa tra gli esperti di scienze sociali, è utilizzata anche da<br />
Adriano Prosperi per illustrare il ruolo del battesimo, del matrimonio e della morte nell'azione evangelizzatrice<br />
condotta dai missionari presso le popolazioni rurali delle penisola italiana nel corso della prima età moderna<br />
(1996, pp. 630-662). L'espressione, come segnala lo stesso Prosperi, è tratta dal titolo dell'af fascina te opera di<br />
Arnold Van Gennep (2006), pubblicata per la prima volta nel 1909.<br />
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Il pessimo stato spirituale degli indios si manifestava in tutta la sua gravità nei<br />
momenti in cui si approssimava la morte, alla quale de la Peña dedica la sezione "Si estará<br />
obligado el doctrinero a la asistencia de los que están in articulo mortis para ayudarles" 14 . De<br />
la Peña lamenta che nella prassi quotidiana la pastorale in articulo mortis è fortemente<br />
ostacolata dall'isolamento degli indios e della loro ignoranza circa la dottrina (del resto<br />
anche il problema della mancanza d'istruzione in materia religiosa era dovuto al fatto che gli<br />
indigeni vivevano isolati senza avere contatti con catechisti o maestri). Gli indios muoiono<br />
senza sapere quanto è necessario conoscere per ottenere la salvezza; al massimo, si affidano a<br />
qualche oggetto simbolico ("cuando mucho con una cruz en las manos"). De la Peña<br />
riconosce che gli indios versano in stato di abbandono spirituale, ma giustifica i curas perché<br />
patiscono enormi difficoltà per raggiungere gli indios: è "molestísimo irlos a buscar con dos<br />
mil incomodidades de malos caminos, pasos peligrosos, faltos de comida, metidos de unas<br />
chozas pequeñas". Che cosa doveva e/o poteva concretamente fare il parroco in condizioni e<br />
in momenti così difficili?<br />
Si può ritenere che a de la Peña non interessasse soltanto dare consigli concreti, ma<br />
sembra volesse far comprendere ai lettori dell’Itinerario l'importanza del momento della<br />
morte. De la Peña dedica poco spazio (soltanto il capoverso conclusivo della sezione) ad<br />
indicare come assistere concretamente i moribondi. Afferma che il parroco debba insegnare a<br />
due persone per ogni villaggio il "modo de catequizar y excitar" i moribondi. I due fungono<br />
da sostituti del parroco, quando questi è assente, nella guida spirituale dei moribondi 15 . Tutti<br />
gli altri capoversi mirano a sensibilizzare i parroci circa l'importanza capitale del momento<br />
di passaggio della morte. De la Peña afferma che "No tiene el mundo cosa de tanta<br />
importancia ni de tanta dificultad como morir bien". La morte è un momento di passaggio<br />
importante ed impegnativo; perciò, de la Peña non si limita a richiamare i parroci alle loro<br />
responsabilità giuridiche, ma si appella alle loro coscienze, perché si predispongano in modo<br />
virtuoso alla pastorale in articulo mortis 16 . Spiega che, dal punto di vista del diritto canonico,<br />
l'assistenza spirituale dei moribondi è un servizio pastorale che rientra nella cura animae, per<br />
la quale i parroci ricevono una retribuzione dagli stessi fedeli. Afferma che l'autorità della<br />
legge ("aprietos de ley") non è però sufficiente a vincolare i parroci al rispetto dei loro<br />
doveri. La realtà del Nuovo Mondo richiede una predisposizione straordinaria. In ragione di<br />
ciò, de la Peña invita i parroci a riporre particolare impegno nella pastorale in articulo mortis<br />
non solo perché è previsto per legge, ma soprattutto perché "la caridad y equidad son su<br />
aprieto" (Itin., I, IV, IV; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 216-220).<br />
14 Il rapporto tra morte e conversione nell'esperienza degli indios andini è stato oggetto di studio da parte di<br />
Gabriela Ramos (2011).<br />
15 Le istruzioni per la guida spirituale dei moribondi sono proposte nella sezione "Exhortación breve para los<br />
indios que están al cabo de la vida, para que el sacerdote u otro alguno les ayude a bien morir" (Itin., I, IV, V; de<br />
la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 220-221).<br />
16 Sul rapporto tra coscienza e diritto si veda quanto indicato in nota 12.<br />
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Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.<br />
Memorandum, 23, 133-157. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/locatelli01<br />
La pastorale in articulo mortis era un'attività eccezionale che richiedeva un impegno<br />
speciale. In un momento così delicato e per gli emarginati indios era necessario richiamare i<br />
parroci ad agire secondo le virtù della carità e l'equità, tra le quali esisteva un profondo<br />
legame (Caron, 1971). Di seguito, si metteranno in evidenza gli elementi comuni, nei contesti<br />
rurali, tra il momento di passaggio della morte e il rito del matrimonio. Si cercherà di capire<br />
perché in entrambi i momenti fosse necessario applicare al diritto la virtù dell'equità, e quali<br />
interessi fossero in gioco.<br />
De la Peña dedica una sezione al problema che sorge quando "Halla el confesor un<br />
indio enfermo en casa de su manceba: ¿que hará en este caso?" (Itin., III, IV, XIX; de la Peña<br />
Montenegro, 1668/1996, pp. 155-157). Suo proposito è spiegare come si deve comportare il<br />
parroco nella veste di confessore - la sezione è collocata nel trattato "Del confesor" (Itin., III,<br />
IV; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 113-159) - quando in luoghi isolati della propria<br />
parrocchia incontra, com'era già successo ad alcuni parroci, un indio moribondo assistito da<br />
una donna, concubina dell'agonizzante 17 . I due condividono una relazione sentimentale<br />
extramatrimoniale e, quindi, illegittima e peccaminosa. Non è possibile separarli perché così<br />
l'uomo rimarrebbe solo nel mezzo della foresta (non è possibile affidare il malato alle cure di<br />
qualcun altro a causa dell'isolamento del luogo) e la donna dovrebbe abbandonare l'amato<br />
compagno in un momento molto delicato; si tratterebbe di una vera e propria<br />
"inhumanidad" (Itin., III, IV, XIX, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 156). De la Peña<br />
specifica (basandosi sulle opinioni di diversi teologi morali) che se i due non si separano,<br />
l'agonizzante non può essere assolto, perché permane esposto alla tentazione. Il confessore<br />
deve presumere che peccherà di nuovo: "qui periculum amat, peribit in illo" (Itin., III, IV,<br />
XIX, 2; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 156). Non è nemmeno possibile unire i due in<br />
matrimonio a causa di ostacoli tecnici. Il matrimonio deve essere celebrato osservando le<br />
condizioni previste dalle norme tridentine del decreto Tametsi. Nel caso in questione il<br />
parroco è presente, i testimoni ci sono, ma non si sono precedentemente fatte le<br />
pubblicazioni: il matrimonio non può essere celebrato. Visto che al moribondo rimangono<br />
soltanto poche ore di vita, non c'è nemmeno il tempo necessario per ottenere una dispensa<br />
da parte del papa o del vescovo per sollevare la coppia dal vincolo delle pubblicazioni.<br />
Considerate le circostanze eccezionali, de la Peña sostiene che il parroco possa<br />
applicare l'epicheia per dispensare virtualmente dall'obbligo delle pubblicazioni, così da<br />
poter amministrare il matrimonio. Attraverso l'applicazione dell'epicheia, si interpreta<br />
secondo il criterio della "benignidad" - il fine è il bene -l"intención" del Concilio di Trento<br />
espressa nel Tametsi - che si può ritenere fosse quella di promuovere l'amministrazione dei<br />
17 Si può ritenere che la confessione fosse un sacramento cruciale in articulo mortis. Era l'ultima possibilità del<br />
moribondo per convertirsi e ottenere il perdono. Sulle incertezze, dubbi e problematiche della confessione nel<br />
mondo della prima età moderna si veda lo studio di Claudia di Filippo Bareggi (2009).<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.<br />
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sacramenti e la promozione della salus animarum 18 . Gli indios, se e solo se non hanno la<br />
possibilità di ricorrere alle autorità, "se entienden dispensados [si tratta di una dispensa non<br />
reale, ma virtuale] por el Pontífice" e così possono contrarre matrimonio (Itin., III, IV, XIX, 3;<br />
de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 156).<br />
Attraverso l'epicheia la Chiesa adattava il matrimonio alle condizioni degli indios. Con<br />
l’amministrazione del matrimonio si attuavano la normalizzazione e cristianizzazione della<br />
coppia di fatto - si convertiva lo status scandaloso di concubini in quello legittimo di marito e<br />
moglie. In questo modo, il moribondo poteva legittimamente trascorrere le ultime ore di vita<br />
con la donna. A costei era concesso di stare accanto al marito nelle ultime ore per sostenerlo.<br />
Per quanto riguarda la cura spirituale, il parroco nel ruolo di confessore - che è il<br />
protagonista della sezione in questione - poteva assolvere il moribondo, che così era, in<br />
seguito all'assoluzione, pronto per la morte.<br />
Al centro di questo articolo è l'applicazione dell'epicheia rispetto al decreto Tametsi,<br />
ma, nell’ Itinerario, la questione è trattata anche rispetto ad altri problemi 19 . Qui di seguito ci si<br />
soffermerà sulla sezione "Si en los pueblos retirados de montañas podrá sin privilegio<br />
dispensar el párroco con sus feligreses, para poder pedir el débito" (Itin., III, X, XII; de la<br />
Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 303-307), perché in queste pagine de la Peña si sofferma<br />
diffusamente, citando il pensiero di diversi doctores, sul problema dell'applicazione<br />
dell'epicheia. In questione è la possibilità di applicare l'epicheia non per celebrare le nozze,<br />
ma per risolvere i problemi che derivavano dal peccato dell'incesto tra persone sposate.<br />
In base alle descrizioni del vescovo (che si possono trovare in varie sezioni<br />
dell'Itinerario), è possibile ricostruire il contesto socio-culturale nel quale si verificava il<br />
problema dell'incesto. Poteva capitare che un uomo, di etnia indigena o spagnola che fosse,<br />
residente nelle distanti regioni di barbacoas, mocoa, sucumbios, quixos, maynas della diocesi di<br />
Quito, commettesse un incesto carnale o spirituale (Itin., III, X, XII, 2; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, p. 304). L'incesto era un fenomeno diffuso tra gli abitanti delle campagne, non<br />
solo tra gli indios, ma in generale tra la "gente rústica" (Itin., V, III, IV, 8; de la Peña<br />
Montenegro, 1668/1996, p. 584). De la Peña non segnala alcuna differenza su base etnica<br />
nella pratica dell'incesto e, quindi, non identifica il problema con l'appartenenza a un<br />
gruppo. Piuttosto tratta di persone che, poiché vivevano in luoghi sperduti, erano<br />
particolarmente esposte al rischio di commetterlo. I villani vivevano in comunità composte<br />
da pochi individui e avevano scarse opportunità di comunicare e socializzare con membri<br />
appartenenti ad altri villaggi. Per questo motivo era probabile che eventuali relazioni<br />
nascessero all'interno delle comunità, nelle quali, a causa dell'esiguo numero dei<br />
componenti, erano tutti quanti parenti a livello naturale, "civile" o spirituale. Inoltre gli<br />
abitanti delle campagne, come è descritto in varie sezioni dell'Itinerario, erano inclini ad<br />
18 Del resto il fine del diritto canonico, del quale l'epicheia è la sostanza, è la salus animarum (Pompedda, 1993).<br />
w Cfr. nota 8.<br />
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assumere comportamenti sessuali degenerati perché, in ragione della mancanza di maestri e<br />
scuole che li educassero alla vita civile, erano solitamente ignoranti e selvaggi.<br />
De la Peña spiega che i mariti o le mogli che commettono il peccato dell'incesto<br />
perdono il diritto di chiedere il debito coniugale al coniuge, diritto che sor ge in virtù del<br />
contratto matrimoniale. Non solo perdono il diritto, ma permangono in tale stato di<br />
privazione, perché i parroci non dispongono dell'autorità necessaria per riabilitarli. Gli<br />
incestuosi, qualora desiderino riacquistare tale diritto, devono recarsi dal Papa o dal<br />
vescovo, che detengono l'autorità per assolvere l'incestuoso dalla colpa. A causa delle<br />
enormi distanze, è però impossibile che gli impediti possano raggiungere agevolmente le<br />
autorità alle quali chiedere le dispense (Itin., III, X, XII, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1996,<br />
p. 303). De la Peña aggiunge che la condizione degli incestuosi peggiora con il passare del<br />
tempo ed ha pesanti conseguenze sulle loro coscienze. Gli impediti, in quanto tali, devono<br />
astenersi dall'"uso del matrimonio". Più il tempo passa più l'impedito è tentato ed è sempre<br />
più difficile che possa controllare e reprimere le pulsioni sessuali. Così l'incestuoso corre, in<br />
modo sempre più intenso, il "peligro próximo de incontinencia" e quindi aumenta il rischio<br />
che commetta "mayores pecados" contro la legge divina e naturale, come la polluzione e la<br />
fornicazione (Itin., III, X, XII, 2; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 304). Questo rischio era<br />
aggravato da altre circostanze alle quali de la Peña fa riferimento in altre sezioni. I villani,<br />
afferma, comunemente ignorano che, qualora commettano un incesto, devono rinunciare a<br />
chiedere il debito (Itin., III, IX, IX, 4; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 255). Ignorano<br />
pure quali siano i gradi di parentela entro i quali una relazione è definita incestuosa (Itin., V,<br />
III, IV, 8; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 584). Infine, anche se ammoniti dal<br />
confessore, continuano comunque a chiedere il debito al coniuge (Itin., III, IV, VIII, 2; de la<br />
Peña Montenegro, 1668/1996, p. 133).<br />
I vincoli della legge, trasgredita per ragioni di fragilità o di mancanza di alternative,<br />
esponevano le persone al rischio di peccare e, contemporaneamente, le escludevano dalla<br />
possibilità di rimediare agli errori. Si tratta di un paradosso: gli abitanti delle campagne<br />
versavano in stato di emarginazione - ignoranti, poveri e isolati - e, a causa dei vincoli della<br />
legge (il cui fine era, in teoria, il bene comune), rischiavano di peggiorare ancor più - non<br />
solo cadevano, ma permanevano nello stato di peccatori.<br />
Per risolvere questi gravi problemi, de la Peña sostiene che il parroco, attraverso<br />
l'applicazione dell’epicheia, possa dispensare gli impediti. Il cura, se rileva la presenza di<br />
gravi ostacoli spaziali e temporali che impediscono l'accesso alle autorità, se "teme<br />
prudentemente" che il peccatore non potendo chiedere il debito al coniuge sia a rischio di<br />
commettere "mayores pecados" e se valuta ("juzgando") che la forma della legge è generica<br />
e non si riferisce alle situazioni di emergenza ("no quiso comprehender casos con tan<br />
apretadas circunstancias"), può correggerla e adattarla al caso degli impediti, in favore del<br />
bene ("juzgar por benigna interpretación"). Senza potestà ordinaria, può dispensare "sin<br />
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privilegio" l’incestuoso, che così può riprendere a chiedere legittimamente il debito<br />
coniugale al coniuge (Itin., III, X, XII, 1-4; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 304-305). In<br />
questo modo, attraverso l'epicheia, il parroco aveva la possibilità di reintegrare gli impediti<br />
alla normale vita coniugale e di ricondurli sulla via della salvezza.<br />
Tra "tierras de infieles" e "tierras de cristianos"<br />
Dopo aver analizzato i casi in cui è possibile applicare l'epicheia nell'ambito della<br />
pastorale parrocchiale, è ora interessante spostare l'attenzione verso quanto accadeva<br />
nell'esterno della diocesi di Quito, nell'area missionaria del Dorado. A partire dalle<br />
descrizioni che si ritrovano a più riprese in diverse sezioni áeW! Itinerario, è possibile<br />
ricostruire la geografia dei territori nei quali sono contestualizzati i problemi affrontati da de<br />
la Peña. Nella Quito del XVII secolo, dal punto di vista istituzionale, era possibile<br />
individuare un interno, cioé Tarea organizzata in parrocchie, e un esterno, cioé Tarea priva sia<br />
di un'organizzazione ecclesiastica, sia civile. Il Dorado (situato ad occidente rispetto alla città<br />
di Quito, nella regione amazzonica), che può essere considerato l’esterno, non era un'area<br />
completamente priva di cristiani. Era, piuttosto, un luogo dove il cattolicesimo era in<br />
espansione, i cattolici, se c'erano, costituivano la minoranza della popolazione e nel quale<br />
non era stato ancora organizzato il sistema parrocchiale. Il Dorado non era solo una regione<br />
geografica ma, poiché era per gran parte sconosciuto e misterioso, era anche luogo<br />
dell’immaginario nel quale si concentravano speranze e illusioni degli uomini del tempo, i<br />
quali partivano alla ricerca di fortune nel tentativo di trasformare i loro sogni in realtà 20 .<br />
Ci si soffermerà ora sulla sezione "Si en las partes remotas de las Indias, donde no se<br />
hallan ni se pueden hallar párrocos, podrá un simple sacerdote asistir al matrimonio o los<br />
proprios contrayentes casarse sin párrocos" (Itin., III, IX, VI; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, pp. 244-249), che conclude con la definizione di epicheia (che si è analizzata<br />
precedentemente nel paragrafo "De la Peña e la legge"). De la Peña descrive che soldati,<br />
avventurieri e missionari si avventurano in barca lungo i corsi d'acqua del bacino fluviale nel<br />
territorio della diocesi di Quito, "por el río Napo, que está en los quijos, o por el Caqueta en<br />
mocoa o por el río Marañon en los xibaros". Spesso però le imprese falliscono: "cada día" si<br />
verificano incidenti alle imbarcazioni che vengono trascinate dalle correnti, naufragano o<br />
affondano perché troppo cariche. Gli avventurieri rimangano bloccati lungo le rive di<br />
qualche fiume o vengano catturati dagli indios, con i quali entrano in relazione.<br />
20 De la Peña descrive, basandosi sulle testimonianze di esploratori e missionari, che nel Dorado c'erano sia oro,<br />
sia un'eleva ta quantità di indios ignoranti in fatto di costumi civili, privi di un'organizzazione poli tica e, i più<br />
selvaggi tra loro, privi di una religione (Itin., II, IV, III, 8; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 473-474). De la<br />
Peña descrive il Dorado come un luogo attraente sia per gli avventurieri in cerca di fortune, sia per i missionari in<br />
cerca di anime da convertire (Itin., IV, I, I, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 323). La stessa idea di Dorado<br />
é confermata dagli studi di Massimo Livi Bacci (2005).<br />
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De la Peña si chiede: "Ahora pregunto yo si este sacerdote y soldados convierten<br />
algunos gentiles a la ley de Cristo y quieren contraer matrimonio, ¿dejará de casarlos porque<br />
no es cura?" (Itin., III, IX, VI, 4; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 245). In seguito al<br />
naufragio, i cristiani entrano in contatto con gli infedeli e li portano a convertirsi - per via<br />
battesimale - alla religione cattolica. In seguito al battesimo si contraevano responsabilità<br />
giuridiche, come è spiegato in un'altra sezione 21 . Qui de la Peña asserisce che, attraverso la<br />
contrazione del battesimo, i neoconvertiti sono subordinat i al rispetto delle leggi divine ed<br />
ecclesiastiche. I vincoli contratti impegnano il contraente in ogni luogo. Se un battezzato si<br />
trova "entre gentiles" (come i neofiti del caso in questione) e desidera sposarsi, non è a tal<br />
fine sufficiente che contragga matrimonio senza gli impedimenti previsti dalla legge del<br />
luogo ("que usan los gentiles en aquellas partes"), ma deve necessariamente contrarlo<br />
"conforme a las leyes de la Iglesia", cioè senza gli impedimenti previsti dal diritto canonico.<br />
In base a quanto sostenuto da de la Peña, si può affermare che i cattolici per contrarre<br />
matrimonio, in qualunque luogo si trovassero, dovevano sposarsi secondo le formalità<br />
previste dal Tamesti, in particolare alla presenza di un parroco e non di un qualsiasi<br />
sacerdote 22 . Questo significa che il sacerdote presente nell'esperienza del naufragio nel<br />
Dorado, visto che non era un parroco, non poteva amministrare il matrimonio.<br />
De la Peña si chiede se sia opportuno rinviare l’amministrazione del matrimonio per<br />
non trasgredire il diritto canonico. Dubita circa l'opportunità di rinviare le nozze, perché<br />
l'attesa eccessivamente protratta nel tempo potrebbe dar luogo a seri danni. In primo luogo,<br />
escludere indios neoconvertiti dalla normalizzazione per via del matrimonio - cioè dallo<br />
status di sposi legittimi autorizzati a vivere la sessualità - significa dar loro occasione di<br />
compiere peccati sessuali ("adulterios y amancebamientos"). Ciò è particolarmente vero per<br />
gli indios, perché non sono in grado di reprimere le esigenze della carne (Itin., III, IX, VI, 4;<br />
de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 245). In secondo luogo, l'attesa non è conciliabile con i<br />
tempi ristretti di chi sta lottando contro la morte. Gli indios neo-battezzati in questione<br />
potrebbero essere in fin di vita e quindi a rischio di morire da peccatori, in quanto concubini,<br />
e a rischio di non salvarsi. Se i problemi relativi all'incontinenza sessuale e alla mancata<br />
preparazione al momento della morte sono già stati sollevati da de la Peña (e già analizzati in<br />
questo lavoro), vi è un terzo problema non ancora considerato, l'illegittimità del nucleo<br />
familiare e dei figli. De la Peña spiega che se il genitore agonizzante dovesse morire prima<br />
dell'arrivo del parroco per l’amministrazione del matrimonio, i figli subirebbero un enorme<br />
21 Si tratta della sezione "Si los indios gentiles que viven entre cristianos se han de casar conforme a las leyes de su<br />
gentilidad. Y si algún cristiano viviendo entre gentiles, queriendo casarse con mujer gentil, si este matrimonio ha<br />
de ser conforme allí se usa, o conforme a las leyes de la Iglesia" (Itin., V, IV, IX; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, pp. 604-607).<br />
22 Il decreto Tametsi prevedeva la possibilità che il matrimonio venisse celebrato da un qualsiasi sacerdote, ma<br />
soltanto dietro l'autorizzazione del parroco o del vescovo. Nel caso in questione i neoconvertiti si trovavano in un<br />
luogo nel quale non esistevano né parrocchie né diocesi e, quindi, né parroci né vescovi che avrebbero potuto<br />
autorizzare il sacerdote perché celebrasse legittimamente le nozze.<br />
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danno. Rimarrebbero irrimediabilmente - per tutta la vita - nello status di illegittimi (Itin., III,<br />
IX, VI, 8; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 247).<br />
Durante la prima età moderna i figli illegittimi erano vittime di discriminazioni in<br />
ambito economico e sociale. Gli illegittimi non avevano diritto all'eredità. Tuttavia, si può<br />
presumere che questa fosse una discriminazione poco avvertita dagli indios, perché, come<br />
ricorda lo stesso de la Peña, la maggior parte di essi erano così poveri che non avvertivano la<br />
necessità di tutelare i loro interessi patrimoniali (Itin., I, XI, II, 1; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1995, p. 346). La discriminazione più grave si può ritenere fosse la penalizzazione degli<br />
illegittimi in termini di diritti civili sia nell'ambito dello Stato, sia della Chiesa. Il Concilio di<br />
Trento decretò chiaramente la forma del matrimonio legittimo e, così, definì implicitamente<br />
la distinzione tra famiglie legittime e illegittime, tra figli legittimi e illegittimi (Twinam,<br />
1999). Il Tridentino inoltre chiuse esplicitamente le porte della Chiesa all'accesso degli<br />
illegittimi al sacerdozio. De la Peña ricorda, nel libro dedicato alla figura del parroco 23 , che il<br />
diritto canonico e la recente normativa tridentina confermano che "los ilegítimos son por<br />
derecho irregulares [...] están inhábiles para recibir Ordenes Sagradas [...] también lo serán<br />
de tener beneficios" (Itin., I, I, XIX, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1995, p. 153). Paolo Prodi<br />
(1989; 1997), oltre a denunciare la mancanza di studi sul problema dello status giuridico<br />
degli illegittimi, ha messo in evidenza la complessità del problema nell'ambito della Chiesa<br />
del XVI secolo. Lo storico conclude spiegando che, tra gli estensori del Concilio di Trento, ci<br />
furono tendenze di apertura in favore dell'integrazione degli illegittimi - come quella del<br />
celebre vescovo di Bologna Gabriele Paleotti, il quale basava il suo pensiero proprio sull'idea<br />
di equità canonica - ma queste aspirazioni furono ben presto ridimensionate per tutelare il<br />
matrimonio legittimo, funzionale alle crescenti esigenze di disciplinamento sia dello Stato,<br />
sia della Chiesa.<br />
De la Peña era consapevole delle conseguenze negative che poteva avere l'osservanza<br />
del diritto, per cui esprime i suoi dubbi circa l'opportunità di applicare letteralmente il<br />
Tametsi: "Pregunto yo: si en este tiempo se ofrece un caso de urgente necesidad, ¿han de<br />
cerrar la puerta al remedio?". Si chiede se sia opportuno osservare scrupolosamente la legge<br />
in ogni situazione, anche quando ciò potrebbe danneggiare delicati e fondamentali interessi.<br />
La risposta è negativa: "verdaderamente fuera vicio seguir siempre la corteza de la ley" (Itin.,<br />
III, IX, VI, 10; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 249). Nelle frasi successive (che<br />
concludono la sezione) si trova la definizione di epicheia precedentemente analizzata.<br />
Come si poteva applicare concretamente l'epicheia in favore degli indios neo-battezzati<br />
del Dorado? De la Peña afferma che sia possibile celebrare il matrimonio anche in assenza<br />
dei testimoni e del parroco. Per dare un fondamento autorevole alla sua opinione, riporta le<br />
23 Si tratta del libro "En que se trata de la elección y canonica institución del párroco y de todas las demás<br />
obligaciones que tiene el doctrinero" (Itin., I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 77-381).<br />
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voci favorevoli e sfavorevoli a questo tipo di modifica del Tametsi 24 . Molti doctores, afferma,<br />
ritengono che il Concilio di Trento abbia posto come forma essenziale e sostanziale la<br />
celebrazione del matrimonio alla presenza del parroco e dei testimoni e che "de otra manera<br />
sea irríto o nulo, quedan las personas inhábiles para contraer". Esiste, però, anche una<br />
corrente minoritaria di doctores, i quali sostengono che in casi di "urgentísima necesidad será<br />
valido el matrimonio sin la formula que puso el Concilio; que la epiqueia interpretando la<br />
intención del legislador se colige prudentemente de su piadoso gobierno, que no quiso poner<br />
por forma esencial del matrimonio la asistencia del párroco y testigos". De la Peña specifica<br />
che quest'ultima è un'opinione meno certa rispetto a quella della maggioranza dei doctores,<br />
ma in caso di "gran necesidad, cuando hay algún grande inconveniente" si può sostenere<br />
l'opinione meno probabile 25 . L'"urgentísima necesidad" si può ritenere fosse la condizione<br />
degli indios agonizzanti o residenti in luoghi isolati che non avevano la possibilità di<br />
attendere l'arrivo del parroco e dei testimoni previsti dal Concilio. De la Peña ritiene<br />
possibile trasgredire la "formula" Tridentina e interpretare prudentemente l'intenzione<br />
dell'autore del Tametsi - il Concilio di Trento - che, specifica, si contraddistingue per il suo<br />
"piadoso gobierno". Il rispetto della "formula" non è essenziale, perché con "aquel decreto<br />
[il Tametsi] [il Concilio] no quiso obligar a lo imposible". La forma posta dal Concilio si deve<br />
intendere "prudentemente": non vincola - sono "excusados de aquel precepto y ley" - quei<br />
contraenti che non possono disporre del parroco e non hanno nemmeno la speranza di<br />
disporne a breve termine. In ragione di ciò, il matrimonio può essere contratto in assenza del<br />
parroco e/o in assenza dei testimoni (Itin., III, IX, VI, 1-9; de la Peña Montenegro, 1668/1996,<br />
p. 244-246). Con la contrazione del vincolo, si riduceva il rischio che gli indios commettessero<br />
peccati sessuali, si aumentava la probabilità che le anime si salvassero e si legittimava lo<br />
status giuridico dei figli.<br />
Attraverso l'applicazione dell'epicheia non solo si sottraevano gli indios dal rischio di<br />
contrarre irrimediabilmente lo status illegittimo, ma era pure possibile amministrare il<br />
sacramento dell'ordine agli illegittimi. Si è detto che nell’Itinerario sono riportate le norme<br />
tridentine che vietavano l'ordinazione e la consacrazione degli illegittimi. De la Peña<br />
specifica, sulla scia di quanto argomentato da altri doctores, che attraverso l'epicheia è<br />
possibile correggere anche il divieto Tridentino e, così, gli ordinari possono dispensare gli<br />
illegittimi affinché accedano agli ordini e al presbiterato. Non solo: confessa ai lettori<br />
dell'Itinerario di aver egli stesso dispensato a favore di alcuni illegittimi perché si<br />
candidassero per ottenere doctrinas de indios (Itin., I, I, XIX, 7; de la Peña Montenegro,<br />
24 Miriam Turrini, che si è concentrata sullo studio della casistica italiana della prima età moderna, ha messo in<br />
rilievo come il modo di argomentare dei casisti del Seicento fosse cambiato rispetto a quello degli autori del<br />
secolo precedente. Nel XVI avrebbe dominato l'affermazione della veritas, mentre nel XVII secolo questa venne<br />
meno in favore dell’opinio (Turrini, 1991).<br />
25 Si può ritenere che le condizioni straordinarie della pastorale nelle estremità del mondo imponessero<br />
l'assunzione di opinioni probabiliste.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.<br />
Memorandum, 23, 133-157. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 1<br />
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1668/1995, p. 157). Sostiene che sia necessario aprire le porte agli illegittimi sia per<br />
aumentare la quantità di persone potenzialmente ordinabili, sia perché essi, essendo nati<br />
nelle Indie, detengono un capitale umano fondamentale: sanno comunicare - quindi<br />
predicare e confessare - nelle lingue particolari del Nuovo Mondo (Itin., V, I, V-VI; de la Peña<br />
Montenegro, 1668/1996, pp. 458-466). De la Peña pensava che gli illegittimi non dovessero<br />
essere discriminati per la loro origine familiare. Sosteneva che dovessero essere valorizzati e<br />
inseriti nella società per la loro capacità di comunicare - fondamentale per l'esercizio della<br />
pastorale (Agnolin, 2010). Attraverso l'epicheia era possibile aggirare i limiti e i pregiudizi<br />
insiti nella legge e, quindi, promuovere sia l'emancipazione delle persone, sia la<br />
cristianizzazione. Si tratta di un ribaltamento sorprendente: i margini della società e gli<br />
esclusi dal diritto divenivano la speranza per il futuro della Chiesa del Nuovo Mondo 26 .<br />
De la Peña era dunque favorevole all'integrazione degli illegittimi per aumentare la<br />
quantità, oltre che per migliorare la qualità, del clero. Si può ritenere che alla base di questa<br />
predisposizione per l'integrazione ci fosse l'esigenza concreta di parroci e missionari per<br />
promuovere l'esercizio della pastorale in tutti i territori del Nuovo Mondo 27 .<br />
Il clero mancava nelle "terre di infedeli", ma anche nelle parrocchie la mancanza del<br />
parroco poteva protrarsi per anni. Per questo, nella sezione che si è analizzata in merito ai<br />
problemi nella celebrazione dei matrimoni nel Dorado (Itin., III, IX, VI; de la Peña<br />
Montenegro, 1668/1996, pp. 244-249), de la Peña ritiene possibile applicare l'epicheia per<br />
celebrare il matrimonio senza parroco né testimoni non solo "en tierras de gentiles", ma<br />
anche "en pueblos de cristianos" - nei territori formalmente organizzati in parrocchie. Non si<br />
riferisce a casi astratti, ma riporta la sua testimonianza concreta: confessa che "Cuando esto<br />
escribo, he visto irse prolongando los edictos de un beneficio de montañas, llamado las<br />
Caballerías [...] y estarse más de año y medio sin cura". Per un anno e mezzo le persone che<br />
risiedevano a las Caballerías non hanno avuto nessuno che si occupasse di loro. De la Peña<br />
specifica che non si tratta di una circostanza rara. "Cada día" può succedere che in una<br />
26 La possibilità di applicare l'epicheia per ordinare gli illegittimi valeva anche per gli indios. De la Peña, nella<br />
sezione "Si pueden ser ordenados los indios, sin que para ello tengan necesidad de dispensación", sostiene che gli<br />
indios per ricevere il sacramento dell'ordine non hanno bisogno di nessuna dispensa, almeno che non si tratti di<br />
illegittimi. De la Peña sostiene che gli indios non solo hanno diritto al sacramento dell'ordine, ma devono essere<br />
preferiti nell'attribuzione di benefici e prebende perché sono "naturales y por lo mucho que aprovechan a los<br />
demás indios por saber mejor su idioma" (Itin., III, VIII, II; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 219-221). La<br />
questione dell'ordinabilità degli indios è stata affrontata da Juan Carlos Estenssoro Fuchs. Lo storico ha messo in<br />
rilievo che soltanto a metà del Settecento si riconobbe formalmente agli indios la possibilità di ricevere il<br />
sacramento dell'ordine (Estenssoro Fuchs, 2003).<br />
27 La scarsità di parroci e missionari si può ritenere sia uno dei motivi per cui de la Peña ha dedicato molto spazio<br />
alla possibilità di riscattare gli illegittimi. Al problema sono dedicate le seguenti sezioni: "Si los ilegítimos pueden<br />
tener doctrinas, así de indios como de españoles" (Itin., I, I, XIX; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 153-158);<br />
"Si los ilegítimos pueden ser ordenados"(Itin., III, VIII, I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 215-219); "Bula<br />
de Gregorio XIII, despachada año de 1576, para que los obispos puedan dispensar en las Indias con los<br />
ilegítimos" (Itin., V, I, I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 449-451); "Si por bula de Pio V o el concilio de<br />
Trento podrán los obispo dispensar para órdenes con los ilegítimos" (Itin., V, I, III; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, pp. 453-455) "Advertencia sobre la bula de Gregorio XIII, para dispensar con los ilegítimos" (Itin., V, I,<br />
V; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 458-466).<br />
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parrocchia "de las muy retiradas" il parroco muoia improvvisamente. La sostituzione del<br />
prete è concretamente molto faticosa per una serie di motivi. Innanzitutto, a causa delle<br />
distanze, si ritarda nell'avvisare il vescovo perché proceda nella sostituzione, la quale<br />
avviene per mezzo di un lento iter burocratico 28 . Il problema non è tanto la procedura<br />
elettiva, ma è dato dal fatto che è molto difficile trovare un sostituto. Nel Nuovo Mondo il<br />
clero scarseggia numericamente e le parrocchie di campagna sono "beneficios tenues", cioè<br />
istituzioni economicamente depresse appena sufficienti a garantire la sussistenza del parroco<br />
titolare. Passa molto tempo prima di trovare un sacerdote che sia disposto a trasferirsi a<br />
vivere in montagna per fare una vita "da fame" in solitudine o con la sola compagnia di<br />
indios selvaggi. Alla luce di ciò, se nei luoghi isolati - nelle terre di infedeli come nelle<br />
giursidizioni parrocchiali - ci fossero due persone che vogliono sposarsi e "no hay cura ni<br />
esperanza de que lo habrá tan presto", il matrimonio può essere celebrato in assenza del<br />
parroco attraverso lo scambio dei consensi (Itin., III, IX, VI, 10; de la Peña Montenegro,<br />
1668/1996, pp. 248-249).<br />
Conclusione<br />
De la Peña riteneva necessaria l'applicazione dell'epicheia alle norme della Chiesa per<br />
favorire la celebrazione del matrimonio. Si trattava di un sacramento fondamentale per il<br />
progresso del bene temporale e spirituale degli abitanti del Nuovo Mondo. Non poteva<br />
essere messo in discussione da eventuali vincoli imposti dalla forma della legge.<br />
Il Concilio di Trento rinnovò la dottrina e la disciplina del sacramento matrimoniale<br />
attraverso il decreto Tametsi. In alcuni luoghi però non c'erano le condizioni per rispettarlo e<br />
non era possibile ricorrere alle autorità che avrebbero potuto interpretarlo e adattarlo alle<br />
circostanze. Per favorire l'amministrazione dei matrimoni nelle periferie del Nuovo Mondo -<br />
dove la Chiesa non era ancora solidamente affermata - il Tametsi doveva essere corretto<br />
attraverso l'applicazione della virtù dell'epicheia. Sono state analizzate tre sezioni<br />
dell'Itinerario per capire come e in quali occasioni applicarla. Le sezioni sono precedute da<br />
una riflessione sulla pastorale in articulo mortis, che si può ritenere fondamentale per<br />
comprendere le necessità umane e spirituali che richiedevano l'applicazione dell'epicheia. La<br />
morte era infatti un momento di passaggio molto importante. I parroci dovevano fare tutto il<br />
possibile per assistere i moribondi. Nelle sezioni successive si è cercato di mostrare perché<br />
fosse necessario integrare il diritto con la virtù dell'epicheia. L'ordine delle sezioni è<br />
funzionale a mostrare che più ci si allontanava dalle parrocchie e dai centri ove risiedevano<br />
parroci e vescovi, più era difficile rispettare le norme della Chiesa. Nella prima sezione<br />
analizzata, l'epicheia poteva essere applicata per dispensare i nubendi dal vincolo delle<br />
28 L'iter è descritto nella sezione "Cómo se debe haber la elección de los doctrineros de indios" (Itin., I, I, II; de la<br />
Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 83-93).<br />
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pubblicazioni. La seconda sezione analizzata non riguarda il Tametsi, ma mostra quali<br />
fossero i problemi degli sposati che vivevano in campagna. In entrambe le sezioni, attraverso<br />
l'applicazione dell'epicheia, il parroco poteva dispensare i fedeli, che così venivano sottratti<br />
al rischio di peccare. Nella terza sezione de la Peña asserisce che è possibile, nelle "tierras de<br />
infieles" e in caso di emergenza, contrarre matrimonio in modo aformale senza<br />
pubblicazioni, testimoni e parroco. La stessa possibilità era però valida anche nei territori<br />
parrocchiali, perché di fatto, al di là delle definizioni giuridiche, nelle parrocchie si<br />
verificavano gli stessi problemi che si registravano al loro esterno.<br />
De la Peña sostiene che sia possibile trasgredire quanto stabilito dal Tametsi e contrarre<br />
matrimonio in modo aformale. La Chiesa però, durante il Concilio di Trento, aveva deciso di<br />
imporre il Tametsi proprio per contrastare i matrimoni clandestini. Si capisce perché de la<br />
Peña abbia fornito la definizione di epicheia proprio nella sezione ove legittimava i<br />
matrimoni aformali: si può ritenere che avvertisse l'esigenza di giustificare con solide basi<br />
un'opinione condivisa soltanto da pochi doctores e che metteva fortemente in discussione le<br />
norme stabilite dalla Chiesa 29 . La proposta di de la Peña privava della loro importanza le<br />
formalità del matrimonio, ma ne rispettava la natura sacramentale. Il matrimonio poteva<br />
essere celebrato in modo aformale e cioè semplicemente con l'espressione, da parte dei<br />
nubendi, dei consensi - che erano la materia e la forma del sacramento. Del resto, come si è<br />
detto nel paragrafo "Note su Treno e Tamesti tra Europa e Nuovo Mondo", il testo del<br />
Tametsi iniziava con la condanna dei matrimoni aformali in quanto peccaminosi, ma<br />
contemporaneamente ne riconosceva la validità.<br />
De la Peña riteneva possibile revocare, per mezzo dell'applicazione dell'epicheia, le<br />
formalità stabilite dal Tametsi, ma attribuiva grande importanza al rispetto dei consensi e di<br />
altre esigenze sociali, familiari e psicologiche degli emarginati. Anzi, era necessario applicare<br />
l'epicheia proprio per il bene dei nubendi, delle loro famiglie e della società.<br />
Per adempiere a queste esigenze, parroci e missionari dovevano adottare atteggiamenti<br />
di grande sensibilità e umanità. Le miserie temporali e spirituali degli uomini del Nuovo<br />
Mondo erano allo stesso tempo una sfida e il principale obiettivo dei missionari. Nelle aree<br />
rurali, laici ed ecclesiastici erano costretti a lottare per affermare la vita e il vangelo in<br />
condizioni difficili. Le numerose difficoltà quotidiane e lo stato di perenne emergenza non<br />
giustificavano bassi e scadenti livelli di umanità, civiltà e servizio pastorale. Per attuare<br />
l'estensione universale della Chiesa presso gli ultimi (spagnoli o indios che fossero) delle<br />
periferie del mondo, era necessaria la massima dedizione. Le situazioni intricate degli<br />
29 Si può ritenere che l'atteggiamento di de la Peña rispecchi le dinamiche e i problemi che attraversarono la<br />
Chiesa della prima età moderna. A parere di Alain Tallon (2004) "ovunque la storia dell'applicazione della<br />
riforma tridentina segna più insuccessi, più arretramenti e compromessi che avanzate spettacolari" (p. 89); ma<br />
dopo il Concilio "tutti hanno ormai davanti agli occhi un modello morale e pastorale al quale non sempre si<br />
conformano, ma con la netta consapevolezza di fare una trasgressione" (p.95).<br />
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emarginati erano l'opportunità per agire secondo le più alte virtù della tradizione cristiana -<br />
la carità e l'equità.<br />
Il matrimonio era un sacramento fondamentale perché era legato ad aspetti essenziali<br />
profondamente umani, quali l'amore e la procreazione. A ciò si aggiunga, come si è visto<br />
negli esempi riportati, che il sacramento nelle aree rurali del Nuovo Mondo s'intrecciava a<br />
momenti di passaggio di notevole valore per la vita del cristiano, come il battesimo e la<br />
morte. Era necessario celebrare il matrimonio perché poteva essere occasione irrinunciabile<br />
per promuovere il bene comune temporale e spirituale. Di conseguenza, poteva essere<br />
celebrato anche senza aver fatto le pubblicazioni, senza testimoni e in assenza del parroco.<br />
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Nota sull'autore<br />
Fabio Giovanni Locatelli si è laureato in Storia presso l'Università degli Studi di Milano<br />
con una tesi sull'Itinerario para parrocos de indios. E-mail: fabioargentino@hotmail.com<br />
Data de recebimento: 18/05/2012<br />
Data de aceite: 19/08/2012<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/locatelli01
Massimi, M. (2012). Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da modernidade ocidental e do<br />
Brasil colonial. Memorandum, 23, 158-184. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 15 8<br />
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Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da<br />
modernidade ocidental e do Brasil colonial<br />
Imagination and images: concepts and practices in cultural traditions of the Western<br />
modernity and colonial Brazil<br />
Marina Massimi<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
O artigo aborda a integração entre os universos dos conceitos e o das práticas acerca da<br />
ordenação da imaginação e do uso das imagens na Idade Média e na Idade Moderna no<br />
Ocidente e no Brasil colonial. Evidencia que o funcionamento da imaginação é tomado de<br />
modo integrado aos processos do conhecimento sensorial, da memória e do<br />
entendimento, dos afetos e da vontade. Focaliza o estudo da imagem e do treino da<br />
imaginação no âmbito da retórica. Enfatiza as múltiplas dimensões das imagens<br />
enquanto processos culturais e a importância de apreender esta complexidade inclusive<br />
ao investigar os processos psíquicos por elas estimulados. Ao abordar esta temática,<br />
apresenta algumas sugestões metodológicas que se situam na interface entre a história<br />
cultural, a história dos saberes psicológicos e a psicologia. Propõe exemplos de<br />
transmissão de conceitos sobre imagens e imaginação e de utilização das imagens<br />
visando mobilizar o dinamismo psíquico dos destinatários em práticas culturais do Brasil<br />
colonial, tais como na pregação através do uso das metáforas, nas festas através do uso de<br />
alegorias, emblemas, figuras e estátuas; e nas narrativas do gênero alegóricos.<br />
Palavras-chave: imaginação; imagem; história dos saberes psicológicos; retórica<br />
Abstract<br />
The article approaches the integration between the universes of concepts and practices<br />
concerning the arrangement of imagination and use of images in the Middle Age and<br />
Modern Age in the West and in colonial Brazil. It evidences that the functioning of<br />
imagination is viewed in an integrated manner to processes of sensory knowledge,<br />
memory and understanding, affections and will. It focuses on the study of the image and<br />
the training of the imagination in the field of rhetoric. It emphasizes the multiple<br />
dimensions of the images as cultural processes and the importance of understanding this<br />
complexity even when investigating the psychical processes stimulated by them. In<br />
dealing with this issue, it presents some methodological suggestions that lie at the<br />
interface among cultural history, history of psychological knowledge, and psychology. It<br />
proposes examples of transmission of concepts concerning images and imagination and<br />
of use of these images aiming at mobilizing the psychical dynamism of the recipients in<br />
cultural practices of colonial Brazil, such as in preaching through the use of metaphors, in<br />
parties through the use of allegories, emblems, figures and statues, and in narratives of<br />
allegorical genre.<br />
Keywords: imagination, image, history of psychological knowledge; rhetoric<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Brasil colonial. Memorandum, 23, 158-184. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 1<br />
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Introdução<br />
No presente estudo, investigamos a integração entre os universos dos conceitos e o das<br />
práticas acerca da ordenação da imaginação e do uso das imagens na Idade Média e na Idade<br />
Moderna no Ocidente e no Brasil colonial. Desse modo, abordaremos o conhecimento<br />
disponível na Idade Moderna acerca das influências da imagem (verbal, visual, etc..) sobre o<br />
dinamismo psíquico dos ouvintes e acerca das potências psíquicas diretamente implicadas<br />
neste processo e as práticas culturais nele inspiradas, no horizonte do universo histórico de<br />
sua produção e em suas influências no contexto espaço-temporal do Brasil colonial.<br />
A discussão acerca da função da imagem e da imaginação nas culturas, ao longo do<br />
tempo, demanda integrar as perspectivas da história cultural, da história dos saberes<br />
psicológicos e da psicologia: ao propor este horizonte polivalente queremos resgatar uma<br />
possibilidade de diálogo entre psicologia, história e cultura.<br />
Tendo o objetivo de apresentar e discutir esta temática, traçaremos aqui um percurso<br />
com os seguintes passos:<br />
1. A posição de alguns historiadores da cultura acerca da dimensão polivalentes<br />
das imagens e da articulação entre imaginação e memória<br />
2. Os alicerces conceituais acerca de imagem e imaginação na cultura ocidental e<br />
brasileira, acompanhando assim a constituição do universo do pensável<br />
3. As relações entre universo do pensável e universo das práticas quanto a<br />
tematização e uso das imagens no universo sociocultural brasileiro do período<br />
colonial.<br />
4. Imagens e imaginação no Brasil da Idade Moderna<br />
Eliade e o debate acerca da dimensão polivalente das imagens<br />
Mircea Eliade (1952/1991) atribui o interesse pelos temas da imagem e da imaginação<br />
difundido na cultura contemporânea a vários fatores, sejam de natureza cultural, sejam<br />
ligados às ciências humanas e notadamente às ciências psicológicas. Assinala, por exemplo, a<br />
influência da psicanálise por ter introduzido na mentalidade atual o uso de termos como<br />
imagem e símbolo. Evidencia também a exigência em âmbito filosófico de superar o<br />
cientificismo, o positivismo e o racionalismo através da tematização do papel do imaginário;<br />
e a importância do movimento surrealista na arte. Segundo Eliade, o pensamento simbólico e<br />
o recurso à imagem são próprios de todo ser humano, precedendo a linguagem e o raciocínio<br />
discursivo. Todavia, a experiência humana primordial onde se insere a emergência do<br />
simbólico e do imaginário, não pertence ao domínio do reino animal ou a um substrato<br />
orgânico vitalista (conforme se acreditava no século XIX).<br />
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Eliade afirma que Freud, ao formular a doutrina do inconsciente, devido ao viés de sua<br />
formação positivista, reduziu as imagens inconscientes a elementos instintivos; e que Jung<br />
superou o reducionismo da psicanálise freudiana ao retomar a significação espiritual da<br />
imagem. O ponto crucial da crítica é a modalidade de Freud conceituar o nexo entre a<br />
sexualidade, núcleo central da psicanálise, e o imaginário.<br />
Antes de mais nada, é incabível, segundo Eliade (1952/1991), reduzir a sexualidade<br />
humana à pura vivência psíquica: "Freud, fascinado pela sua missão (...) não podia dar-se<br />
conta de que a sexualidade nunca foi pura, pois em todo tempo e lugar ela é uma função<br />
polivalente cujo valor primeiro e possivelmente supremo é a função cosmológica" (p. 18,<br />
trad. nossa). Com efeito, investigando os significados da sexualidade em outros horizontes<br />
culturais, vê-se que "fora do mundo moderno, a sexualidade em todo tempo e lugar é uma<br />
hierofânia, sendo o ato sexual, algo integral e, portanto, podendo ser tomado inclusive como<br />
meio de conhecimento" (idem). Desse modo, ao investigarmos a função da sexualidade, ao<br />
longo do desenvolvimento humano e notadamente infantil, devemos considerar que "o<br />
atrativo da criança para com a mãe e seu corolário, o complexo edípico, (...) devem ser<br />
apresentados conforme sua natureza: enquanto Imagens" (idem). Pois o que está emjogo no<br />
processo rotulado por Freud como complexo edípico é "a verdadeira imagem da Mãe e não<br />
uma ou outra mãe específica, hic et nunc ” (idem). Esta imagem é fundamental para o<br />
desenvolvimento da pessoa, pois "é a imagem da Mãe que revela - e somente pode revelar -<br />
a cada um, sua realidade e função ao mesmo tempo cosmológica, antropológica e<br />
psicológica" (idem). Se, por um lado, "a atração pela mãe, interpretada no plano imediato e<br />
concreto enquanto desejo de possuir a própria mãe, não significa nada mais do que diz", por<br />
outro, se levamos em conta a possibilidade de tratar-se da Imagem da Mãe originaria, então,<br />
o desejo de possuí-la, adquire múltiplos significados. Com efeito, trata-se do "desejo de<br />
reencontrar a beatitude da Matéria vivente ainda não formada com todas suas possíveis<br />
fraturas, o atrativo que a Matéria exerce sobre o Espírito, a nostalgia da unidade primordial e<br />
o desejo de abolir os opostos, as polaridades" (1952/1991, p. 18). Evidentemente, há casos em<br />
que "a psique fixa uma imagem num único plano de referência" e o símbolo da Mãe é<br />
reduzido ao desejo incestuoso da própria mãe: "trata-se, porém, de um sinal de desequilíbrio<br />
psíquico (...), é o sinal de uma crise psíquica" (idem).<br />
Portanto, "as imagens, por sua mesma estrutura, são polivalentes" (Eliade, 1952/1991,<br />
p. 18). De modo que, "traduzir as imagens em termos meramente factuais é uma operação<br />
sem sentido: claro que as imagens englobam todas as referências ao concreto, assim como<br />
foram evidenciadas por Freud, mas a realidade que elas buscam expressar não se esgota<br />
nestas referências ao concreto" (idem). Reduzir uma imagem "apenas a um dos termos de<br />
referência (...), significa aniquila-la enquanto instrumento de conhecimento" (p. 19).<br />
Desse modo, a partir do questionamento acerca da apreensão da imagem segundo a<br />
visão psicanalítica, Eliade (1952/1991) elabora uma critica mais ampla aos reducionismos de<br />
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vária natureza que restringem a interpretação de certa imagem de modo unívoco e arbitrário.<br />
A univocidade ocorre na medida em que é assinalada apenas uma dentre as múltiplas<br />
dimensões próprias daquela imagem, ao passo de que esta possui um "feixe de significados"<br />
(p. 19). Ainda segundo Eliade, ditos reducionismos são característicos da história recente da<br />
cultura ocidental, tendo sido introduzidos pelas filosofias empiristas nos séculos XVII e XVIII<br />
e reafirmados pelo positivismo no século XIX.<br />
A posição de Eliade evidencia o fato de que as investigações acerca dos processos<br />
imaginativos no âmbito da subjetividade, necessariamente devem tomar a imagem como<br />
elemento essencial de seu domínio; mas que, ao mesmo tempo, devem cuidar para não<br />
reduzir os significados deste fenômeno cultural ao âmbito conceitual, metodológico e<br />
terminológico próprio da ciência psicológica.<br />
Outros autores discutem as implicações metodológicas decorrentes da natureza<br />
pluridimensional da imagem. Saxl (1957/2005), por exemplo, define a imagem como<br />
"coagulo de ondas mnemônicas que devem ser gravadas e recuperadas em suas origens e ao<br />
longo de seus percursos" (p. 10). Esta metáfora lhe sugere uma perspectiva metodológica:<br />
"somente por este método (utilizando o estudo histórico como um sismógrafo ultra-sensível)<br />
podemos ler uma imagem (...) apreendendo cada vibração interna e cada significação"<br />
(idem).<br />
A articulação entre imaginação e memória na perspectiva historiográfica<br />
Uma proposta metodológica que nos parece significativa para abordar esta temática é<br />
sugerida no âmbito da história cultural por Michel de Certeau (2000): segundo este autor, a<br />
história dos conceitos (ou seja, do universo do pensável, numa determinada época histórica)<br />
deve ser articulada com a história das práticas sociais em determinados recortes espaçotemporais.<br />
As articulações entre estes dois planos se transformam ao longo do tempo.<br />
Segundo De Certeau (2000), deve-se também levar em conta a possibilidade de que, numa<br />
mesma sociedade, aconteça uma pluralidade de desenvolvimentos heterogêneos mas<br />
combinados, tendo-se assim uma "evolução pluridimensional" que permite conceber "estas<br />
dimensões como articuladas e compensadas, obedecendo no entanto à lógicas próprias e a<br />
diferentes ritmos de crescimento" (p. 127).<br />
Consideremos o objeto de nossa investigação no âmbito do domínio da história dos<br />
saberes psicológicos na cultura brasileira, sob a perspectiva indicada por De Certeau. Neste<br />
âmbito, nossa escavação histórica visará apreender de modo integrado, no período entre o<br />
fim do século XVI e meados dos séculos XVIII, tanto os processos de elaboração e<br />
transmissão de conceitos acerca da imagem e das correlatas potências do dinamismo<br />
psíquico, quanto as "práticas" (ou seja, das condutas e dos dispositivos utilizados para<br />
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transformá-las) inerentes ao uso da imagem e à mobilização das potências psíquicas<br />
correlatas.<br />
Outra proposta interessante na abordagem dos conceitos de imagem e imaginação que<br />
utilizaremos de modo complementar às dicas metodológicas de De Certeau, nos é oferecida<br />
pelos recentes estudos históricos desenvolvidos sobre o tema da imagem e da memória por<br />
Carruthers (2006). A pesquisadora inglesa, ao abordar de forma crítica o tema da<br />
mnemotécnica, terreno de estudo histórico já explorado pelos trabalhos clássicos de Francis<br />
Yates (1985), assinala a importância da arte da memória no que diz respeito aos processos<br />
cognitivos em culturas orais e à relevância das articulações entre psicologia e retórica. O<br />
campo das investigações de Carruthers abrange o treino da memória e das práticas retórica,<br />
em universidades, mosteiros e cortes medievais. Carruthers (2006) afirma que a memória,<br />
nestes contextos, não era utilizada, apenas, como meio persuasivo e sim de modo mais<br />
amplo, em função da invenção e da construção do pensamento. Tece estas considerações com<br />
base no significado etimológico da palavra latina inventio - uma das componentes<br />
fundamentais da arte retórica - que assume o duplo significado de inventar e de inventariar,<br />
recolher e ordenar a informação.<br />
A abordagem proposta por Carruthers (2006) é possibilitada pela inclusão na análise<br />
histórica de corpos documentais diversos dos manuais e textos de retórica (analisados por<br />
Yates e pelos demais estudiosos do tema). Segundo a autora, as fontes conventuais e<br />
monásticas, tais como regras e regimes, revelam um uso da retórica diferente do modo<br />
próprio da oratória política ou religiosa, modo este que já fora amplamente investigado.<br />
O uso da retórica destacado por Carruthers ocorre no campo da educação: se trata do<br />
processo por ela denominado de ortopraxi, ou seja, a construção de uma experiência<br />
disciplinada que permite ao usuário conhecer-se a si mesmo com base numa vivência<br />
reconhecida como original e estruturante. As fontes analisadas foram elaboradas no período<br />
medieval e antecedem, portanto, os "Exercícios espirituais" inacianos que formulados no<br />
século XVI, propõem práticas similares, ao longo a Idade Moderna.<br />
No que diz respeito ao uso das imagens e à decorrente mobilização da imaginação no<br />
âmbito da ortopraxi, Carruthers (2006) destaca que a criação das imagens mentais não é<br />
sugerida tanto pela imitação de objetos tidos como representativos da realidade, quanto pela<br />
função cognitiva a ser desenvolvida. De fato, um elemento pontual é mais facilmente<br />
localizável se pertencer a um conjunto (por exemplo, pode-se mais facilmente localizar uma<br />
estrela numa figura de constelação, como o urso, o carro, o cruzeiro, etc..); ou se pertencer a<br />
uma narrativa. Carruthes lembra que algo semelhante foi demonstrado, na psicologia<br />
científica contemporânea, pelos experimentos de F.C. Bartlett (1886-1969) acerca dos<br />
processos de memorização: a eficácia mnemônica das narrativas é aumentada quanto mais<br />
forem afetivamente intensas e cognitivamente inusitadas. Assim, na tradição retórica<br />
analisada por Carruthers, a construção das imagens obedece não a regras de conteúdo e sim<br />
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a regras de forma: as imagens servem para compor relações e redes de relações úteis tendo<br />
em vista a retenção, na memória, de conceitos importantes, e para auxiliar descobertas.<br />
Podemos descrever as relações entre as imagens e os processos mnemônicos,<br />
afirmando que uma específica configuração de imagens mentais propicia a memorização. As<br />
formas e figuras dessas configurações pertencem a inventários sociais e mentais que<br />
proporcionam mapas de orientação do pensamento e das condutas. A imagem é assim uma<br />
espécie de veículo dos conteúdos da memória, sendo a imaginação utilizada para construir<br />
estes mapas e para decifrar os percursos sugeridos.<br />
Carruthers (2006) fornece como exemplo destes processos práticas muito freqüentes na<br />
Idade Média e nos inícios da Idade Moderna: as peregrinações e as procissões. As<br />
peregrinações para determinados lugares e as procissões de fieis seguindo imagens sagradas<br />
nos andores não eram valorizadas tanto pela autenticidade histórica dos lugares e das<br />
estátuas, quanto pelo fato de que estas práticas proporcionavam o reconhecimento de<br />
imagens da memória. De modo que "a atividade física do deslocamento de um lugar para<br />
outro, espelhava fielmente a atividade mental na qual se empenhavam os participantes da<br />
procissão" (p. 68, trad. nossa). Neste sentido, a imagem era reconhecida não tanto pela<br />
descoberta de seu significado e sim pela sua função. As imagens eram utilizadas como<br />
suportes para o pensamento e inclusive sua forma estética e os apelos sensoriais e afetivos<br />
por elas suscitados, deviam ser funcionais ao exercício do pensamento.<br />
A concepção não mecanicista da memória implicada nestas práticas e as possibilidades<br />
mnemônicas assim alcançadas proporcionam uma mais ampla compreensão do uso das<br />
imagens mentais e das articulações entre os processos mentais da memória e da imaginação.<br />
Com efeito, por um lado, a visualização do pensamento em esquemas organizados<br />
compostos por imagens aproxima estes métodos a resultados importantes da psicologia<br />
contemporânea, como os já citados experimentos de Bartlett. Por outro, esta concepção de<br />
memória ativa (e não apenas repetitiva) que constrói esquemas e percursos de imagens para<br />
organizar seus conteúdos, remete à memória coletiva, sendo esquemas e lugares, expressão<br />
de fenômenos sociais e culturais influentes na construção desta arquitetura mental.<br />
Os estudos de Carruthers mostram assim que os processos cognitivos e os métodos<br />
para aprender a pensar, utilizados pelas culturas orais do Ocidente, pressupunham uma<br />
articulação entre memória, imaginação, sensibilidade, afeto, pensamento e decisão. Nesta<br />
articulação a memória tinha um papel ativo e a imagem ocupava um lugar específico não<br />
tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma. Subentendia-se, portanto, uma diferente<br />
concepção do dinamismo psíquico e do processo de conhecimento.<br />
Se utilizarmos a abordagem proposta por Carruthers no estudo de práticas culturais e<br />
religiosas difundidas no Brasil colonial, podemos reconhecer dinamismo análogo ao descrito<br />
pela historiadora inglesa a partir das fontes medievais.<br />
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Trata-se, nesse caso também, do emprego de uma maquina retórica visando transmitir<br />
e ensinar certo tipo de elaboração da experiência a ser memorizada e reinventada. Sua<br />
proposição é realizada em grande parte pelas congregações, irmandades e ordens religiosas<br />
atuantes na sociedade colonial e lusitana que possivelmente apoiadas na memória coletiva<br />
de vivências e matrizes culturais próprias de suas tradições específicas, elaboraram e<br />
reinventaram estas práticas, acomodando-as ao contexto em que deviam ser efetivadas.<br />
Nelas, a mobilização do dinamismo psíquico dos destinatários, visando promover neles certo<br />
tipo de elaboração da experiência, parece ser orientada conforme a perspectiva da ortopraxi<br />
descrita por Carruthers.<br />
Os alicerces conceituais acerca de imagem e imaginação na cultura ocidental e brasileira<br />
Tendo em vista nossa proposta de investigar o significado das imagens e da<br />
imaginação na cultura brasileira da Idade Moderna, cabe compreender seja o universo do<br />
pensável em que esses temas são abordados seja as práticas de seu uso assim como descritas<br />
e interpretadas pelos documentos da época. No caso brasileiro, devemos ressaltar a forte<br />
influência da tradição jesuítica que como já evidenciamos em pesquisas anteriores<br />
(sobretudo, veja-se Massimi, 2005) considerava a imago como veiculo sensível, afetivo e<br />
intencional, no âmbito de uma antropologia unitária de cunho aristotélico tomista<br />
(Zanlonghi, 2002). Por vez esta tradição se põe como transmissora de um universo conceitual<br />
mais antigo do qual vale assinalar algumas concepções que permaneceram numa longa<br />
duração, e ainda vigoram no universo cultural da Idade Moderna.<br />
Do universo cultural da filosofia grega, destacamos, pela sua influência no contexto<br />
dos saberes da Companhia de Jesus, transmitidos no Brasil da Idade Moderna, a visão da<br />
psicologia filosófica aristotélica (Aristóteles, século IV aC./2005): nesta, o funcionamento da<br />
imaginação ocorre no âmbito do dinamismo psíquico, que envolve os cinco sentidos<br />
externos, mas também os sentidos internos (a imaginação, a memória, a potência cogitativa, o<br />
senso comum). Os dados obtidos pelos sentidos externos, são re-apresentados interiormente<br />
pelos sentidos internos e a seguir atingem e movem os afetos, o entendimento e a vontade. A<br />
imaginação ocupa um lugar de mediação entre a percepção sensível e o pensamento, sendo<br />
sua atuação determinada pela vontade. Pode haver imaginação de algo sem percepção,<br />
como, por exemplo, nos sonhos, quando as coisas nos aparecem sem que as vejamos pelos<br />
olhos: "é possível que produzamos algo diante dos nossos olhos, tal como aqueles que,<br />
apoiando-se na memória produzem imagens" (p. 110). Por este motivo, a percepção sensível<br />
é sempre fidedigna, ao passo de que a imaginação pode ser falsa. Na concepção do<br />
dinamismo psíquico, Aristóteles destaca as importantes relações entre memória e<br />
imaginação: à pergunta "como é possível recordar o que não está presente", responde que "a<br />
impressão produzida graças à sensação, na alma e na parte do corpo implicada com a<br />
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sensação, é semelhante a um desenho, inscrito na memória. De fato o movimento produz no<br />
espírito quase que um traço de sensação" (Aristóteles, século IV a.C/1993, p. 69, trad. nossa).<br />
Exerce notável influência nos saberes da tradição ocidental medieval e moderna<br />
também a concepção de imaginação e imagem formulada por Agostinho de Hípona (354-<br />
430), que em várias obras filosóficas e teológicas aborda a questão do conhecimento humano<br />
e o tema da imagem nesta perspectiva. Seu ponto de partida é a investigação acerca do<br />
processo de conhecimento, não somente das pessoas cultas e letradas, como também das<br />
pessoas analfabetas. Para tanto, Agostinho analisa o dinamismo psíquico pelo qual o homem<br />
conhece. Em "O Mestre" (389/1985), ele procura responder à questão afirmando que cada<br />
homem retém em sua memória as imagens das coisas experimentadas pelos sentidos e<br />
contempladas pelo espírito, de modo que, ao ouvir as palavras, pode reconhecer as coisas<br />
referidas, por meio das imagens que traz consigo. Por isto, nós podemos conhecer lendo os<br />
textos escritos assim como também através da vista de uma imagem: "trazemos assim essas<br />
imagens nos recessos da memória, como uma espécie de ensinamentos das coisas<br />
anteriormente sensoriadas, e contemplando-as no espírito, em boa consciência não mentimos<br />
quando falamos". (389/1985, p. 102). É este o motivo pelo qual podemos ter algum tipo de<br />
referência cognitiva em nós acerca de algo não diretamente experimentado, mas que é de<br />
algum modo nosso e pode ser partilhado com os outros.<br />
A imagem mobiliza a potência psíquica da memória: por exemplo, ao olharmos uma<br />
imagem, reconhecemos que representa um dado acontecimento, pelo fato da referida<br />
imagem estar associada a um conteúdo já armazenado na memória. Na obra "A Trindade"<br />
(422/1995), Agostinho formula uma teoria unitária do psiquismo e do sujeito pessoal onde as<br />
potências (memória, afeto, entendimento) funcionam de modo conjunto: nela, a eficácia da<br />
imagem no dinamismo psíquico é novamente associada à memória: "o que representa para o<br />
sentido corporal algum objeto localizado, representa para o olhar da alma a imagem de um<br />
corpo presente na memória" (p. 346). No livro décimo primeiro do tratado, Agostinho<br />
aborda também o papel da memória, da consciência e da vontade, na formação da imagem.<br />
Afirma que há semelhança entre a imagem conservada na memória e a que se forma "no<br />
olhar interior" do sujeito (ou seja, na consciência que o sujeito tem do que ele está<br />
experimentando). Se, porém, a atenção do sujeito se retirar daquela imagem, esta não<br />
permanecerá. Por isto, é decisivo o papel da vontade: esta "daqui para ali leva e traz o olhar<br />
da alma para informá-lo e o ligar ao objeto" (p. 345). No caso da vontade se concentrar toda<br />
numa determinada imagem interior, "será encontrada tal semelhança entre a figura corporal<br />
impressa na memória com a expressão da lembrança, que nem a própria razão conseguirá<br />
discernir se o que vê é um corpo extrínseco, ou se é o pensamento formado em seu interior"<br />
(idem). Agostinho relata casos de "pessoas que, seduzidas ou atemorizadas perante uma<br />
representação por demais viva de coisas visíveis, ergueram exclamações repentinamente,<br />
como se realmente participassem dessas ações ou se com elas sofressem" (idem). O mesmo<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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vale para as imagens oníricas, e nos casos em que o sujeito imprima no "olhar da alma"<br />
diversas imagens de objetos sensíveis, tendo a ilusão de perceber realmente. Tais<br />
"impressões imaginativas" não se produzem somente "quando a alma tem um desejo forte e<br />
fixa o olhar nelas", mas também pelo medo que "coage a se ocupar delas, embora sem o<br />
desejar" (Agostinho, 422/1995, p. 346). De modo que, "quanto mais forte for o medo ou o<br />
desejo, tanto mais atento é o olhar". Desse modo, Agostinho descreve o percurso psicológico<br />
e somático pelo qual a imagem adquire eficácia: esta age no nível anímico dos sentidos, da<br />
memória, dos afetos e da vontade, mas também pela mediação corporal.<br />
Para Agostinho (422/1995), a memória é o lugar fundamental do "homem interior", ou<br />
seja, da consciência de si mesmo: assim podemos conhecer a nossa experiência psíquica<br />
somente através da memória. A partir do material contido na memória, a imaginação pode<br />
construir imagens infinitas, conforme a vontade dirigir a imaginação: "Por exemplo, lembrome<br />
e apenas um sol, porque apenas vi um, como de fato só existe um. Mas, se quiser, posso<br />
imaginar, ser informado pela memória que me faz recordar (...). E assim dele me lembro<br />
como o vi, mas imagino-o como quero". (p. 356). Nesta relação entre memória, imaginação e<br />
vontade, pode surgir a possibilidade o engano: "como essas formas dos objetos são corporais<br />
e sensíveis, a alma às vezes se engana ao pensar que elas são exteriormente como julga e<br />
pensa em seu interior, (...) não porque devido à infidelidade de tal recordação, mas à<br />
mutabilidade da imaginação" (idem).<br />
Agostinho (422/1995) aborda também o tema da influência da palavra ouvida sobre a<br />
imaginação e a memória e descreve em pormenores o dinamismo desta articulação. Diante<br />
de algo que ouço, "o que me represento são as imagens dos corpos que o narrador quer<br />
significar com suas palavras e sons. Ora, penso nessas imagens, não recordando, mas<br />
ouvindo". Todavia, se observarmos mais atentamente, nesse caso também intervém a<br />
potência da memória: "pois eu não poderia entender o narrador e não me teria lembrado de<br />
cada uma de suas frases" se não houver correspondência com "alguma recordação genérica<br />
guardada por ela. Por exemplo, se alguém me conta que um monte foi desmatado e está<br />
plantado de oliveiras, estará narrando algo sobre o que me lembro a respeito de imagens de<br />
montes, florestas e oliveiras". Por isto, sempre recorremos à memória, "para aí encontrar o<br />
modo e a medida de todas as formas que se representa com o pensamento. Ninguém pode<br />
pensar em um a cor ou forma corpórea que nunca viu; num som que nunca ouviu; num<br />
sabor que nunca provou; nem em aroma que nunca aspirou; nem contato corporal que nunca<br />
sentiu". (pp. 357-58).<br />
Outra doutrina sobre a imagem e a imaginação que exerceu grande influência na<br />
cultura ocidental e brasileira, é a que Tomás de Aquino (1225-1274) formula na "Suma<br />
Teológica" (1265-73/2001) e no tratado "Questões discutidas sobre a verdade" (1261-<br />
64/2000): ao elaborar uma teoria do conhecimento fundada na doutrina aristotélica, segundo<br />
a qual todo o conhecimento racional do homem se baseia na alma sensorial, retoma a idéia<br />
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1<br />
aristotélica de que a imaginação teria um papel intermediário entre sensação e cognição. Na<br />
parte primeira da "Suma", Tomás descreve o papel do dinamismo psíquico no processo de<br />
conhecimento: em primeiro lugar os sentidos externos e depois os sentidos internos; em<br />
terceiro lugar, aborda o estudo das potências intelectivas, ou seja, da razão, e por fim discute<br />
se o conhecimento intelectual pode ser adquirido a partir das coisas sensíveis. Coloca-se aqui<br />
a função mediadora de imagens, cenas, dramatizações, metáforas, bem como da palavra: em<br />
suma, do uso de estímulos sensíveis para desencadear o processo de conhecimento. Ao<br />
discutir a apreensão de conceitos, inclusive no âmbito da teologia, Tomás afirma que é<br />
conveniente "apresentar uma verdade mediante imagens" usando metáforas, por ser<br />
"natural ao homem elevar-se ao inteligível pelo sensível, porque todo o nosso conhecimento<br />
se origina a partir dos sentidos" (p. 152).<br />
Nas "Questões discutidas sobre a verdade" (1261-64/2000), Tomás buscando<br />
responder à pergunta se exista falsidade nos sentidos, delineia assim o processo de<br />
conhecimento:<br />
o nosso conhecimento, que parte das coisas, segue essa ordem: principia nos<br />
sentidos e completa-se na inteligência, de forma que os sentidos corporais se<br />
situam de certa maneira a meio caminho entre as coisas e a inteligência.<br />
Comparados às coisas, são como que algo de espiritual-intelectual;<br />
comparados ao conhecimento espiritual, são como que coisas" (p. 121-122).<br />
Acerca da apreensão por parte dos sentidos, Tomás (1261-64/2000) afirma que<br />
existe certa força apreensiva, que apreende a imagem sensível das coisas<br />
como um sentido criado especialmente para isto, quando a coisa sensível<br />
está presente. Existe também uma outra força, que apreende a imagem<br />
sensível das coisas, quando estas estão ausentes: tal é a imaginação" (p. 124).<br />
E ao definir as funções da percepção e da imaginação coloca que<br />
os sentidos apreendem sempre a coisa como é na realidade, a não ser que<br />
haja algum impedimento no órgão ou na transmissão. Ao contrário, a<br />
imaginação via de regra apreende a coisa diferente do que é, porquanto<br />
apreende a coisa como presente, estando ela ausente (Tomás de Aquino,<br />
1261-64/2000, p. 124).<br />
Do universo do pensável ao universo das práticas<br />
A transmissão do pensamento de Agostinho e de Tomás de Aquino na cultura<br />
brasileira ocorreu pela mediação dos filósofos da Companhia de Jesus, especialmente os do<br />
Colégio das Artes de Coimbra (Góis, 1602). No fim do século XVI estes interpretes modernos<br />
da teoria aristotélico-tomista afirmam que o homem pode conhecer somente a partir da<br />
mediação do corpo: os dados sensíveis são obtidos pelos sentidos externos; sendo, por sua<br />
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vez, processados pelos sentidos internos (imaginação, potência cogitativa, memória, senso<br />
comum): o resultado é chamado de "fantasma". A potência cogitativa é ratio particularis, por<br />
manifestar no sensível, alguns elementos que remetem à essência (universal). O ato de<br />
pensar requer a presença de imagens depositadas na memória, onde elas repousam prontas<br />
para despertar novamente diante da solicitação da imaginação. A vontade pressupõe o<br />
conhecimento e depende também do apetite sensitivo o qual, por sua vez, é orientado pela<br />
imaginação. De modo que, em virtude da unidade alma-corpo, a esfera pré-racional dos<br />
sentidos externos e internos, dos apetites e das paixões interfere profundamente, seja no<br />
conhecimento, seja no livre arbítrio. A vontade, por sua vez, pode também agir sobre os<br />
apetites, para orientá-los e discipliná-los, tratando-os como "cives" da alma e não como<br />
servos, sendo submetidos "politicamente" e não de maneira "despótica". Este caminho para<br />
realizar um governo político da alma passa através dos sentidos internos, os quais operam a<br />
mediação entre o intelecto e vontade (Zanlonghi, 2002).<br />
O destaque acerca da influência da vontade no dinamismo da imaginação é derivado<br />
também do pensamento de Agostinho, que é também significativa fonte inspiradora da<br />
filosofia jesuítica. A transmissão da concepção de Agostinho na Modernidade ocorreu dentre<br />
outros pela mediação da vertente filosófica dos pensadores franciscanos. Dentre eles<br />
destacamos frei Boaventura (1221-1274), autor do "Itinerario mentis in Deum" (1259) teólogo e<br />
filósofo da Ordem dos Menores: para ele, o percurso do conhecimento de Deus é estruturado<br />
em degraus onde todos os níveis do dinamismo psíquico e espiritual humano são<br />
progressivamente envolvidos e mobilizados pela relação com o mundo. O mundo sensível é<br />
por ele considerado como "um espelho pelo qual chegamos a Deus criador" (1259/1983, p.<br />
48).<br />
Estas concepções filosóficas e teológicas abrem caminho às práticas em que o recurso<br />
da imagem é utilizado enquanto veiculo que leva do visível ao invisível. A importância<br />
destas práticas no âmbito da tradição cultural do catolicismo medieval e moderno é<br />
amplamente documentada pelas pesquisas de Bolzoni (2002). Ao pesquisar a pregação<br />
popular, a autora descobre uma "estrutura retórica recorrente" dotada de uma "versão<br />
visual", gerando-se assim um domínio onde há uma correspondência precisa entre palavras<br />
e imagens. Esta estrutura retórica tem sede na mente tomando forma através de vários<br />
instrumentos, colocando-se na fronteira entre palavra e imagem, visível e invisível, leitura e<br />
escrita, fórum individual e público, didática e mística; criam-se assim vias de comunicação e<br />
modalidades de tradução e reconversão entre diferentes níveis da realidade. Bolzoni<br />
descreve magistralmente, o procedimento utilizado para a criação de imagens eficazes para<br />
construir metáforas, organizado em três fases: em primeiro lugar, evidencia-se um detalhe<br />
sensível, fixando-se a atenção sobre ele; depois, transforma-se este detalhe sensível, pelo uso<br />
da analogia, numa imagem espiritual; por fim, carrega-se tal imagem de eficácia operacional,<br />
ou seja, de sentidos morais que influenciam o comportamento. Desse modo "a imagem<br />
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inicialmente capaz de falar aos olhos do corpo, torna-se imagem capaz de falar também aos<br />
olhos da alma" (p. 58, trad. nossa) Trata-se antes de mais nada de agir sobre as três<br />
faculdades da alma: intelecto, memória e vontade, sendo esta ação realizada pelas imagens<br />
sensíveis, ponto de partida necessário para alcançar conceitos mais abstratos:<br />
Estas imagens são as mediadoras entre mundo exterior e interior: por isto,<br />
torna-se necessário controla-las, modifica-las e aumentar sua eficácia. (....) A<br />
intenção é a de moldar os vastos espaços da alma, preenchendo todos os<br />
"lugares" com imagens afetivamente eficazes, tais que sejam duráveis na<br />
memória, e que falem ao intelecto através do jogo dos sentidos alegóricos<br />
(Bolzoni, 2002, p. 57).<br />
Estes sentidos alegóricos, carregados pelas diversas componentes da imagem (matéria,<br />
cor, forma) sugerem comportamentos morais correspondentes: "a memória proporciona a<br />
mediação entre o intelecto que sugere as significações e a vontade, a prática moral". (Bolzoni,<br />
2002, p. 67).<br />
Huizinga (1919/1995) observa que a cultura da Idade Moderna é marcada pela<br />
tendência de que o pensamento se solidifique e expresse em "figuras", por uma "vontade<br />
desenfreada de dar forma figurativa a todas as coisas sagradas, de conferir uma forma a cada<br />
idéia de caráter religioso, de modo que essa se imprima no cérebro através de uma imagem<br />
clara e precisa" (p. 205, trad. nossa).<br />
Nos inícios da Modernidade, esta forma de pensamento inspira práticas de utilização<br />
da imagem para desencadear processos de conhecimento com ênfase na potência<br />
imaginativa. Trata-se de: imagens mentais e verbais (metáforas), pinturas e estátuas;<br />
emblemas e empresas.<br />
Um exemplo muito significativo do recurso à imagem em âmbito desta última tradição<br />
e de grande relevância para a cultura brasileira é oferecido pelos "Exercícios espirituais" de<br />
Loyola (1542/1982), sobretudo na proposta do método contemplativo da compositio loci.<br />
Neste âmbito, destacamos o acento acerca da composição visual (n. 82, 91,103,112,151, 232,<br />
92, 115,116) e da vista pela imaginação (65, 66,91). Inácio retoma alguns aspectos da cultura<br />
tardo medieval, acima assinalados, para elaborar uma vivência espiritual modelar, onde as<br />
imagens assumem a função de instrumentos de elevação do visível e terreno para o invisível<br />
e espiritual (Bergamo, 1991).<br />
Inácio considera a imagem como sendo eficaz pela sua ação na subjetividade da<br />
pessoa, especialmente na memória, de modo a facilitar a meditação. Usa para isto imagens<br />
narrativas (exemplo, a da viagem de Maria e José que fogem do Egito), mas também imagens<br />
simbólicas.<br />
Inácio (1542/1982) descreve o método da compositio loci, especialmente no primeiro<br />
prelúdio do primeiro exercício, onde alerta acerca de duas maneiras diferentes para realizar<br />
uma construção visual: distingue entre a res corporea (o tema visível), composta por imagens<br />
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de tipo narrativo, e a res incorporea (tema invisível), construída por conceitos e argumentos<br />
representáveis somente pelo modo simbólico. Em primeiro lugar, deve-se "compor o<br />
ambiente imaginando-o de modo visível", e neste caso "a composição consistirá em ver pela<br />
vista da imaginação o lugar material onde se encontra aquele que quero contemplar. Digo<br />
um local material, como seria, por exemplo, um tempo ou um monte (...) - segundo a cena<br />
que quero contemplar" (p. 25, n. 114). Já na contemplação, ou meditação de um tema<br />
invisível, "a composição consistirá em ver pela vista da imaginação" (idem). Tratando-se de<br />
argumentos que se referem a uma dimensão puramente espiritual (pecado, morte, paraíso,<br />
amor de Deus), a imagem utilizada será simbólica, ou alegórica. Neste caso, as imagens<br />
poderiam ser retiradas dos livros de Emblemas e do material didático inspirado neste gênero<br />
muito utilizado no ensino dos Colégios da Companhia.<br />
Com efeito, na Idade Moderna, a retórica introduz o uso dos emblemas e das empresas<br />
no universo cultural do ocidente: tratava-se de dois gêneros alegóricos que utilizavam seja a<br />
imagem seja o texto escrito. Acerca da empresa e do emblema, o pensador jesuíta Emanuele<br />
Tesauro escreve (Veneza, 1678/1965): "a empresa (...) fundamentada em metáfora de<br />
proporção, pela forma de argumento poético de semelhança, vem a significar um<br />
pensamento particular e heróico", devendo ser "ser acompanhada por uma frase aguda,<br />
breve". Ao invés, "por emblema entendemos um símbolo popular, composto por figura e<br />
palavras, que significa pela maneira do argumento, algum documento pertencente à vida<br />
humana". Assim, o emblema é "exposto por decoração nas salas, nas academias, nos<br />
aparatos, ou nos livros de imagens e explicações, destinados ao público ensino do povo" (p.<br />
455, trad. nossa). Ambas, são "metáforas simbólicas e por isso cada uma têm um significante<br />
sensível e um significante inteligível, e mostrando uma coisa, acenam para outra" (idem). A<br />
origem do emblema remonta aos hieroglíficos egípcios redescobertos no Renascimento pelo<br />
achado de um manuscrito grego (Hieroglyphica), significando a possibilidade de exemplificar<br />
de modo figurado o sentido alegórico das idéias.<br />
A suma destas imagens alegóricas encontra-se na obra de Andrea Alciati (1492-1550),<br />
"Emblemata", (1531/1577) - protótipo absoluto destas produções. O texto foi aumentado e<br />
reeditado muitas vezes. O objetivo do texto nas palavras o autor, é o de servir para "horas<br />
festivas, decorando roupas e chapéus e para que os interessados saibam escrever com<br />
linguagens secretas" (p. 6, trad. nossa). A empresa na Idade Média era uma figura simbólica<br />
que ornava as vestes ou as armas dos cavaleiros, sempre acompanhada por uma frase<br />
alegórica; e na Idade Moderna assume um significado específico por ser destinado a pessoas<br />
específicas ou a uma realidade precisa, sendo uma representação simbólica de um propósito<br />
ou de uma linha de conduta por meio de uma palavra e de uma figura que se interpretam<br />
uma a outra. O texto de Picinelli Mondo simbólico (Milão, 1653) é uma espécie de dicionário<br />
das empresas.<br />
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No século XVI, emblema e empresa começam a assumir um significado explicitamente<br />
religioso, ligando-se assim à tradição da imaginética simbólica cristã, destinada, sobretudo a<br />
um público culto. Nos colégios da Companhia de Jesus, a composição dos emblemas era um<br />
dos exercícios didáticos propostos aos estudantes do curso de retórica; vários professores de<br />
retórica e de humanidades publicaram textos de emblemas, seguindo a tradição clássica, mas<br />
com matriz cristã, operando assim uma sorte de cristianização da tradição da emblemática<br />
clássica 1 . Além do mais, em diversas Províncias, os jesuítas publicaram textos ilustrados por<br />
diversas imagens alegóricas ou simbólicas, tendo por objetivo auxiliar a meditação<br />
individual e nela o trabalho da compositio loci e tendo por temas vários argumentos religiosos.<br />
Dentre outros, destacamos o "Imago Primi Saeculi" (1640/2004) produzido no colégio de<br />
jesuítas de Anversa, na ocasião do centenário da fundação da Companhia e publicado por<br />
Balthasar Moretus.<br />
Na pregação, o recurso à imagem mental é viabilizado pelo uso das metáforas. No<br />
século XVII, uma conceituação muito precisa do significado e do uso das metáforas encontrase<br />
na obra do já citado Tesauro (especialmente, na obra "Cannochiale aristotélico", 1670). Para<br />
este pensador, a metáfora pode ser definida come uma espécie de luneta aristotélica (por ter<br />
sido esta expressão utilizada por Aristóteles), cuja função é a de pôr os objetos de baixo dos<br />
olhos para bem observa-los. Ela torna a linguagem aguda, de modo análogo ao efeito que a<br />
luneta produz na pupila. Desse modo, a metáfora penetra e investiga as noções mais<br />
abstrusas para acopla-las de modo genial, tendo como resultado uma dilatação do campo<br />
semântico ordinário, "parecendo à mente de quem ouve, ver num só vocábulo, um teatro<br />
pleno de maravilhas" (citado em Jori, 1998, p. 156; trad. nossa).<br />
As regras que modelam o recurso à imagem na pregação são ditadas pelos manuais de<br />
retórica sagrada. Paolo Aresi, um dos representantes mais significativos da arte retórica<br />
inspirada ao Concílio de Trento, em seu tratado Arte di predicar bene (1627, em Ardissino,<br />
2001) descreve o mecanismo psicológico do conhecimento por imagens, capazes de<br />
representar os objetos como se fossem presentes, de modo tal que as potências anímicas se<br />
1 Na Ratio studiorum elaborada por Giacomo de Ledesma, na primeira redação cujo título era De ratione et ordine<br />
studiorum Collegi Romani de 1564-56, está escrito acerca das atividades públicas ao longo do ano acadêmico:<br />
"podem-se expor vários gêneros de composições como os enigmas pintados com elegância acompanhados por<br />
poesias e quem os adivinha vence. Também epigramas, epístolas, orações, traduções, emblemas e tábuas acerca<br />
de algum autor, ou as figuras incisas e ordenadas destes argumentos acompanhadas poesias". (cit. p. 31 em<br />
Lukács, Monumenta Paedagogica II, p. 552, Roma, 1986). Portanto, as imagens são consideradas juntamente com as<br />
composições literárias. Na Ratio studiorum de 1586, onde discute-se acerca das composições literárias dos alunos,<br />
afirma-se que estas composições e as imagens emblemáticas podem ser penduradas no vestíbulo ou no refeitório<br />
do colégio, mas o recurso à imagem é justificado apenas em termos de sua estreita conexão com a parte escrita:<br />
"ela é assim esvaziada de qualquer significação estética e decorativa. A palavra escrita torna-se suporte da<br />
imagem mesma e por isso somente nesta roupagem é aceita no âmbito da didática jesuítas"(p. 33). Na edição de<br />
1591 da Ratio, o emblema é incluído definitivamente e nas Regras para os professores de retórica e de<br />
humanidades, sugere-se que os alunos sejam ensinados também em fazer desenhos para ilustrar os emblemas. O<br />
mesmo uso é recomendado nas Academias dos Colégios - sendo as Academias um grupo de estudantes<br />
escolhidos entre todos os alunos que se reúnem sob a presidência de um dos jesuítas, com finalidade educativa.<br />
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mobilizem como se estivessem diante dos próprios objetos (Ardissino, 1998). Para ele, a<br />
imagem tem a capacidade de atrair a atenção e ao mesmo tempo é funcional à memória:<br />
As coisas, quanto mais são sensíveis e aptas ao deleite dos olhos, tanto mais<br />
podem mover o intelecto e permanecer impressas na memória. As imagens<br />
nós nos representam as coisas como sensíveis, como presentes e vistas por<br />
nós e por isso possuem a força de despertar a nossa memória (citado em<br />
Ardissino, p. 22, trad. nossa).<br />
Aresi afirma que a imagem oferece um suporte eficaz para o processo mnemônico:<br />
Parece-me que esta seja a diferença entre o decorar com o apoio das imagens<br />
e o decorar sem elas: é a mesma diferença que há entre andar a cavalo e<br />
andar a pé; pois assim como quem anda a pé cansa com facilidade e percorre<br />
um breve trato do caminho, pelo contrário, quem anda a cavalo quase não<br />
percebe o cansaço e mais rapidamente chega aonde quer. Da mesma forma,<br />
a memória sem a ajuda das coisas sensíveis representadas à imaginação,<br />
lembra de algumas coisas; caminhando apenas com as suas forças,<br />
facilmente cansa e para no caminho, pois não consegue lembrar-se mais.<br />
Todavia, utilizando-se do recurso das imagens, quase não percebe o cansaço<br />
e levada pela imagem realiza a viagem até ao destino, felizmente (citado em<br />
Ardissino, 1998, p. 23, trad. nossa).<br />
Reafirmando os objetivos da retórica sacra estabelecidos pela tradição (docere, delectare e<br />
movere) Aresi evidencia a importância de que, pelo sermão, o pregador agia sobre todas as<br />
potências do dinamismo humano: "considerem-se quais sejam as coisas que induzem deleite<br />
ao intelecto, à vontade, ao apetite sensitivo e aos sentidos externos, pois discorrendo destas<br />
coisas o pregador estimulará o prazer nos ouvintes" (citado em Ardissino, 1998, p. 67).<br />
Assim, a linguagem metafórica representa as coisas de modo tal que "pareça de ver a coisa<br />
presente diante dos olhos - mais do que de ouvir - mesmo que se trate de algo do passado"<br />
(idem, p. 112). Pois o sentido da vista é o principal órgão cognitivo: através dele, o mundo<br />
exterior é representado ao intelecto e à imaginação.<br />
A disputa entre católicos e reformados acerca da arte sacra potencializa a atenção à<br />
imagem em âmbito católico. A polêmica verte acerca da representação de Cristo, ponto de<br />
encontro entre humano e divino: segundo os protestantes, a natureza do Redentor não<br />
poderia ser representada; segundo os católicos, ao contrário, sendo Cristo não dividido em<br />
duas naturezas e sim união hipostática (pessoa), a visão de Sua imagem pintada é útil para<br />
que o fiel possa relacionar-se também com a Sua Pessoa (Scavizzi, 1981).<br />
A grande força de persuasão atribuída pela reforma católica à pintura e ao uso da<br />
imagem, é documentada pelas diretrizes fornecidas pelos teólogos do Concílio de Trento e<br />
pelos textos normativos que possibilitaram a aplicação de ditas orientações no Brasil,<br />
especialmente as "Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia" (1707/2010),<br />
promulgadas pelo Arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro da Vide.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/massimi06
Massimi, M. (2012). Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da modernidade ocidental e do<br />
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Merece destaque devido à sua influência inclusive na redação das "Constituições" da<br />
Bahia, o livro do cardeal Gabriele Paleotti ("Discorso intorno alle immagini sacre e profane",<br />
1582/2002). O livro afirma a importância das imagens baseado na tese de que essas penetram<br />
o ânimo dos fieis com maior eficácia do que as palavras, induzindo-os a crer nas verdades<br />
não demonstrá veis através da razão, pelo apelo às experiências visuais.<br />
Paleotti, ao considerar o valor universal da imagem, apóia-se na doutrina tomista e<br />
afirma que, em primeiro lugar, a imagem deve produzir prazer e a experiência do prazer<br />
deve estar associada à beleza da imagem. O prazer que experimentamos diante da imagem<br />
possui três níveis: o primeiro é o prazer sensorial; o segundo é o prazer racional; e o terceiro<br />
é o prazer espiritual. Ao se referir ao prazer sensorial, Paleotti (1582/2002) afirma que<br />
quanto aos sentidos, (...) a vista recebe um prazer enorme e uma sensação<br />
maravilhosa pela contemplação das pinturas, pela variedade das cores, pelas<br />
sombras, pelas figuras, pelas decorações e por todas as coisas que são<br />
representadas, como montanhas, rios, jardins, cidades e outras coisas mais"<br />
(p. 72, trad. nossa).<br />
Quanto ao "prazer da razão", "além do gosto específico que cada um pode<br />
experimentar conforme a qualidade das coisas representadas" há "um aspecto<br />
universalmente reconhecido" (Paleotti, 1582/2002, p. 72), pois, o que acontece, no nível da<br />
razão, quando vemos uma coisa bonita, é que queremos também aprender com ela, imitá-la.<br />
Pode-se então reconhecer que a imitação é parte do processo de conhecimento e consiste no<br />
fato de "saber aprender as coisas e depois saber transformar-se nelas" (idem). Desse modo,<br />
diante de uma pintura aprendemos por meio dela, ao ponto de poder nos transformar, de<br />
alguma forma, no que ela representa. Paleotti coloca um terceiro nível de prazer que nasce<br />
do conhecimento espiritual, não derivado apenas da apreensão da cena representada pela<br />
pintura, mas também advindo de uma mais ampla atitude intelectual, ao considerar o<br />
significado pleno da cena, que ele (e a tradição filosófica e teológica que ele representa)<br />
chama de contemplação.<br />
A experiência sensorial proporcionada pela imagem age em níveis anímicos mais<br />
profundos. Paleotti (1582/2002), inspirado em Agostinho e Tomás, afirma que "as imagens<br />
vêm em auxílio às três faculdades da nossa alma: intelecto, vontade e memória" (p. 65). Com<br />
efeito, "as imagens instruem o nosso intelecto como se elas fossem livros populares, pois o<br />
povo pode compreender, através da pintura, aquilo que os acadêmicos compreendem<br />
através dos livros" (idem). A vista das imagens devotamente pintadas aumenta os desejos<br />
positivos da vontade, suscitando o desejo de imitar o sujeito retratado. A memória permite<br />
que a imagem se fixe: "a memória voluntária, é suscitada em nós pelo uso das imagens"<br />
(idem). A ostentação repetida da imagem, ou de uma cena, favorece este dinamismo,<br />
possibilitando uma aproximação maior ao modelo real por uma impressão mais intensa,<br />
como se o espectador estivesse diante da presença real da personagem representada. O<br />
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espectador é assim modificado em seu dinamismo psíquico pela presença da imagem ou da<br />
cena e, através desta modificação, começa a identificar-se com o objeto representado pela<br />
imagem ou a sentir-se parte da cena representada.<br />
De fato,<br />
ao admirarmos a imagem, formam-se em nós diversos pensamentos. O<br />
primeiro é voltado para a matéria, que é avaliada pelo valor, pela riqueza,<br />
pela cores e assim diante. O segundo pode ser voltado para a capacidade<br />
técnica do desenho e a sua precisão. O terceiro é voltado para a imagem que<br />
produz o efeito de representar uma coisa real e desse modo, não nos<br />
referimos mais à obra como apenas matéria ou figura, mas à coisa<br />
representada pela imagem mesma e a esta voltamos a nossa atenção. Neste<br />
terceiro modo, nós olhamos as imagens não como simples figuras, mas como<br />
atos de uma representação. (Paleotti, 1582/2002, pp. 96-97).<br />
Olhar assim as imagens não é apenas ver simples figuras, mas é ato, conforme continua<br />
o texto: "não se trata de dois atos distintos, que visam duas finalidades diferentes, mas de<br />
um único ato voltado para um único objeto, para o mesmo objeto, mesmo que de uma<br />
maneira que põe a diferença entre a imagem e o imaginado" (Paleotti, 1582/2002, p. 98).<br />
Os efeitos produzidos pelas imagens não se restringem apenas ao nível do dinamismo<br />
psíquico (impressões sensoriais, representações, afetos e movimentos da vontade), mas<br />
também atingem o nível corpóreo passando pelo psíquico:<br />
Conforme ao que afirmam filósofos e médicos, conforme os conceitos que<br />
em nossa fantasia criam-se a partir das formas reais, em nós geram-se<br />
impressões tão fortes que produzem alterações e sinais visíveis no próprio<br />
corpo. Um exemplo deste fenômeno é fornecido pela experiência quotidiana<br />
que nos mostra partes do corpo visivelmente marcadas por manchas e<br />
figuras: vinho, frutas, membros de animais, e outros. (Paleotti, 1582/2002, p.<br />
80).<br />
Desse modo, tais concepções vêm validar práticas onde o uso das imagens visa atingir<br />
determinados objetivos no individuo e na coletividade, práticas essas que como veremos a<br />
seguir tiveram ampla difusão no Brasil da Idade Moderna.<br />
Imagens e imaginação no Brasil da Idade Moderna<br />
Na cultura brasileira colonial, são propostas várias práticas tendo o objetivo de<br />
mobilizar os processos de imaginação, de conhecimento e de decisão dos destinatários,<br />
através de recurso imaginéticos: a pregação e o uso freqüente das metáforas; as novelas<br />
alegóricas ou textos literários de outro tipo utilizando alegorias, o uso de estátuas, emblemas<br />
e alegorias em procissões, cerimônias religiosas e civis.<br />
a) Na pregação<br />
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No Brasil, a concepção acerca do significado da imagem e de sua elaboração através do<br />
processo psíquico da imaginação, foi mediada pela pregação, especialmente jesuítica que ao<br />
transmitir a visão teológica da realidade enquanto sinal do mistério divino, afirma o valor<br />
sacramental da imagem.<br />
Pecora (1994) assinala que o modelo sacramental está na origem da maneira de<br />
conhecer a realidade de Antônio Vieira, figura exemplar que encarna no Brasil colonial o<br />
catolicismo da Idade Moderna. O modo sacramental é "o movimento característico através<br />
do qual o que é da ordem de Deus - e, portanto, por natureza transcendente e não<br />
determinado (...), - toma espécies visíveis, existentes no mundo da determinação material, e<br />
imprime nelas a substância única e pessoal do seu Ser" (p. 113). O sinal exige do homem o<br />
uso da capacidade de livre arbítrio: pois deste depende que a leitura do real seja realizada<br />
em chave correta. O fato de a realidade mundana expressar a incansável atividade divina<br />
que a sustenta, implica que o sagrado se explicite inclusive através das imagens.<br />
A leitura das imagens remete ao trabalho da imaginação, discutida por Vieira no<br />
"Sermão do Demônio Mudo" de 1661: "Dentro da nossa fantasia, ou potência imaginativa,<br />
que reside no cérebro, estão guardadas, como em tesouro secreto, as imagens de todas as<br />
cousas que nos entraram pelos sentidos, a que os filósofos chamam espécies". (Vieira, 1679-<br />
1748/1993, Vol. I, p. 1173). A ordenação e composição das imagens devem ser regidas pelo<br />
juízo, a saber, o entendimento guiado por um critério, uma diretriz; com efeito, se esta<br />
operação da imaginação for entregue ao dinamismo dos apetites sensoriais, poderá ocorrer<br />
que as imagens preservadas na memória se componham de maneira enganosa. Com efeito,<br />
devemos nos precaver quanto ao "engano do amor-próprio", bem como ao engano do<br />
"demônio mudo": este usa das imagens "ordenando-as, e compondo-as como mais lhe serve,<br />
pinta e representa interiormente à nossa imaginação, o que mais pode inclinar, afeiçoar, e<br />
atrair o apetite" (idem).<br />
Daqui deriva a importância da educação da imaginação, da ortopraxi descrita por<br />
Carruthers (2006) que abordamos na parte anterior deste trabalho. Na tradição jesuítica, os<br />
"Exercícios" (1542/1982), sobretudo na proposta do método contemplativo da compositio loci<br />
acima descrito, constituem-se num recurso exemplar deste método. Neste âmbito, outros<br />
dispositivos também são elaborados, com a mesma finalidade de dirigir e educar a<br />
imaginação de modo a elaborar as imagens segundo determinado percurso.<br />
A importância e o significado da imagem, na oratória sagrada, são enfatizados por<br />
outros pregadores, além de Vieira. Eusébio de Mattos (1629-1692), irmão do poeta Gregório,<br />
destacado pregador jesuíta, o qual posteriormente passou à Ordem dos Carmelitas, exerceu<br />
suas atividades principalmente na Bahia. Num sermão dedicado às exéquias dos membros<br />
da Irmandade dos Passos, discute a função do "ver" uma imagem - objeto real ou ficção que<br />
seja -, na medida em que esta pode ser considerada um "espelho": "Quem põe os olhos em<br />
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hum espelho para o ver, não vê ao espelho somente, senão que se vê a si mesmo<br />
representado no espelho" (1694, p. 171). Neste sentido, a imagem adquire importante função<br />
como auxiliar para o conhecimento de si mesmo. Por outro lado, as palavras podem se tornar<br />
imagens, ao retratar objetos ou situações dispostos pelo pregador para a contemplação dos<br />
fieis. Por isto, Mattos, em outro sermão dedicado às dores de Maria, conclui a prática<br />
dizendo querer aliviar os olhos de Maria pelo "retrato" de seu discurso: "visto que os<br />
retratos servem de alivio nas ausências, aqui ofereço a vossos olhos este ensangüentado<br />
retrato" (p. 225).<br />
Determinadas figuras são mais recorrentes do que outras, nos sermões. Tópicos<br />
freqüentes são as imagens referentes ao mundo físico (água, luzes e objetos luminosos); as<br />
imagens referentes ao mundo sensorial (sons e objetos que estimulam o ouvido como<br />
instrumentos musicais, e a vista como os livros); imagens referentes ao mundo animado<br />
(animais e fisiologia do corpo) (Massimi, 2008).<br />
O uso das estatuas também pode acompanhar a palavra pregada para dirigir a<br />
imaginação dos ouvintes à contemplação do conteúdo doutrinário por ambas figurado. Um<br />
documento que comprova este uso é o sermão pregado pelo jesuíta Antônio de Sá na Sé da<br />
Bahia no ano de 1660, diante da estátua de Nossa Senhora das Maravilhas, em desagravo<br />
pelo "desacato que se fez à Nossa Senhora e ao seu amado Filho". O desacato ao qual Sá se<br />
refere é um gesto sacrílego realizado contra a referida imagem, por um grupo de indivíduos<br />
que reduziram em pedaço a estatua do menino Jesus e quebraram os braços da Mãe que o<br />
carregava. Nas palavras do pregador, a destruição da imagem identifica-se totalmente com a<br />
destruição do corpo real de Cristo: no exórdio do sermão afirma: "em fim que chegarão a ver<br />
os nossos olhos a Deus Menino esquartejado!" (Sá, 1744, p. 1). E amplifica o ocorrido<br />
estabelecendo uma analogia entre o corpo de Jesus e o corpo do próprio homem, inclusive de<br />
quem foi capaz de realizar o ato ofensivo: "E como, dizes, desfizeste com tuas mãos a<br />
Imagem daquele Artífice Onipotente, que te fez à sua Imagem com as suas?" (idem). Ao<br />
longo do sermão, estabelece também a analogia entre o corpo do Menino Deus e a própria<br />
Igreja de Salvador: "Pois aonde está mais atropelada a autoridade eclesiástica que na Bahia?"<br />
(p. 22). O que interessa para os efeitos de presente investigação é um dos argumentos<br />
utilizados por Sá, retomando um passo bíblico (Zacarias, capítulo 3, versículo 9), que se<br />
refere ao fato de que o Verbo divino comunicou-se a si mesmo na forma de uma pedra.<br />
Diante da pergunta acerca de como seria possível ao Deus onisciente abaixar-se a assumir a<br />
forma néscia de uma pedra, Sá responde que é porque "de tal modo se há de portar um seu<br />
amor, sabendo, como se pudera portar ignorando" (Sá, 1744, p. 12). Ou seja, o rebaixamento<br />
de Deus à ignorância de uma pedra, é expressão de Seu extremado Amor pelo homem. Desse<br />
modo, a mesma pedra torna-se manifestação do Amor divino. Por isto, ultrajar a imagem<br />
sagrada, em sua materialidade, significa recusar e destruir esta amorosa oferta que Deus faz<br />
de si mesmo ao homem, e especialmente à comunidade cristã da Bahia. Aqui, vemos,<br />
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portanto, explicitado o sentido sacramental da imagem, estabelecido pela palavra do<br />
pregador que por vez sustenta-se na palavra sagrada da Bíblia (Santos & Massimi, 2005).<br />
b) Em procissões e festas<br />
O recurso às imagens e à imaginação perpassa também o universo das práticas da<br />
cultura brasileira colonial. O uso dos emblemas e alegorias nas festas é freqüente, conforme<br />
evidenciado pelas narrativas: dentre elas é bem conhecida a do "Triunfo Eucarístico" evento<br />
realizado em Outro Preto na ocasião do translado do Santíssimo Sacramento entre a Igreja do<br />
Rosário e a Matriz do Pilar, reedificada em 1733. Neste evento, narrado pela crônica de<br />
Simão Machado (1734/1967), coreografias, imagens, carros alegóricos, empresas e emblemas<br />
são utilizados com profusão tendo em vista envolver a população de Vila Rica no significado<br />
religioso e político da festa: o reconhecimento da participação de cada um ao grande corpo<br />
místico e político da sociedade cristã da Colônia.<br />
A procissão é aberta com uma dança de turcos e cristãos, em numero de trinta e dois<br />
personagens, divididos em partes iguais e trajando uniformes militares estilizados,<br />
representando a hierarquia das cortes, do imperador ao soldado, e proporcionando assim a<br />
memória dos seculares conflitos entre cristãos e muçulmanos. Em seguida, dois carros<br />
alegóricos acompanhados por músicos e dançarinos, trazem as figuras enigmáticas de uma<br />
serpente, um cavaleiro e uma abobada; e na continuidade do cortejo, vão quatro figuras<br />
personificando os quatro ventos, nomeados pelos quatro pontos cardeais, montadas em<br />
cavalos ricamente ajaezados, e trajando vestimentas luxuosas e estilizadas, cada qual<br />
tentando esboçar pelas cores dos adereços e gestos a "personalidade" dos ventos. Os ventos<br />
apresentam-se pela seguinte ordem: Oeste; Sul; Norte e Leste. Após o desfile dos ventos<br />
entram em cena duas figuras alegóricas, definidas na crônica como as mais majestosas de<br />
toda a procissão: "era seu adorno vagaroso empenho da vista, continuada novidade dos<br />
olhos, agitada esfera da riqueza, notável aparato da magnificência" (1734/1967, p. 207), uma<br />
representando a Fama e a outra o Ouro Preto.<br />
A imagem alegórica da Fama, vestia-se à trágica, provavelmente usando<br />
uma máscara, o que lhe atribuía uma silhueta de mistério e severidade. Em<br />
sua cabeça repousava um toucado de flores de diamantes e plumas brancas,<br />
no peito, bordados, em ouro e pedrarias e um broche de diamantes e nas<br />
costas possuía duas azas de penas brancas e folhas de ouro. Na mão<br />
esquerda segurava uma haste de prata em forma de cruz e na mão direita<br />
um estandarte pintado em uma face a Arca da Aliança na outra uma<br />
custódia e a inscrição em letras de ouro; Eucharistia in Tranlatione vinctrix.<br />
(Machado, em Ávila, 1734/1967, p. 215).<br />
A parte do desfile que se segue é o cortejo dos sete planetas, incluindo-se sol e lua.<br />
Apesar dos conhecimentos astronômicos dos séculos XVII e XVIII terem revelado que nem o<br />
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Sol nem a Lua são planetas, na organização do cortejo optou-se por utilizar os conceitos da<br />
astrologia e alquimia medievais, tendo em vista a função metafórica das figuras. Inclusive na<br />
figuração dos planetas são evidenciados traços de personalidade, segundo padrões<br />
representativos das influencias sociais e psicológicas por estes exercidas.<br />
A representação simbólica da igreja matriz finaliza o desfile: a figura majestosa<br />
montada num cavalo branco ajaezado de veludo azul com franjas de ouro, traz na cabeça<br />
uma caraminhola azul bordada com flores e cordões de ouro e diamantes e um cocar de<br />
plumas brancas, veste chamalote azul cravejado de jóias de diamantes e franjas de ouro. No<br />
braço esquerdo, segura um escudo dourado com a pintura da igreja matriz e os seguintes<br />
dizeres: Hac est domus Domini firmiter edificata; e na mão direita segura uma haste com um<br />
estandarte. Num lado deste, está pintada Nossa Senhora do Pilar com a inscrição: Ego dilecto<br />
meo e na outra face a custódia da Eucaristia com a inscrição: Et ad me conversio ejus. A<br />
personificação da igreja matriz denota esta ser assunto de grande importância: ao estilizá-la<br />
sob a forma humana, os organizadores da festa atribuem-lhe uma natureza viva e interativa,<br />
de modo que a igreja extrapola sua condição intrínseca de templo para assumir personalidade<br />
própria.<br />
c) Em novelas alegóricas<br />
Outro exemplo de recurso às imagens visando promover, e ao mesmo tempo orientar,<br />
o dinamismo da imaginação é o da novela alegórica. Dentre elas, tomemos o caso da<br />
"História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito" (1685), de autoria do jesuíta<br />
baiano Alexandre de Gusmão (1629-1724). O texto inaugura no Brasil a introdução do gênero<br />
da novela alegórica (Moises, 2004). Construído com base na alegoria do homem como<br />
peregrino - lugar comum da tradição judaico-cristã e retomada na modernidade pela teologia<br />
protestante através da obra de Bunyan (1678/2004) - o texto propõe-se a ser uma versão<br />
católica da mesma história. A peregrinação é aqui colocada não apenas como sendo o<br />
percurso interior da consciência humana que se abre a Deus conforme a leitura da teologia<br />
reformada e sim como movimento pessoal norteado pelo posicionamento da liberdade<br />
diante de relacionamentos, acontecimentos e encontros. A função do texto e de sua leitura é<br />
para que nesta história, "quem quiser considera-la, devagar", veja "nela retratada a história<br />
de sua vida, ou a que vive, ou a que devia viver; e achará nela utilíssimo documento para se<br />
salvar" (Gusmão, 1685, p. 1).<br />
O rumo do percurso é decidido por posicionamentos realizados em cada etapa, pelas<br />
duas personagens principais, cujos significativos nomes são: Predestinado e Precito. A<br />
escolha destes nomes possivelmente é recurso semântico com significado teológico.<br />
Predestinando significa aquele que está destinado de antemão a alguma coisa, quem Deus<br />
destinou à glória eterna; eleito de Deus. Precito é o condenado, o réprobo, o maldito.<br />
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Aparentemente, portanto, estes nomes evocam a teologia reformada da predestinação,<br />
especialmente a interpretação calvinista do tema da liberdade e da graça na teologia de<br />
Agostinho de Hipona. A ênfase dada por Agostinho ao fato de que a salvação do homem<br />
demanda sempre a intervenção da graça divina foi lida e proposta por Calvino (1509-1564)<br />
como a doutrina de que Deus predestina previa e absolutamente a humanidade, escolhendo<br />
dentre os homens aqueles que irão salvar-se e aqueles que irão ser condenados. Retira assim<br />
ao homem qualquer possibilidade de rejeitar ou aceitar livremente a graça. Portanto, a<br />
novela de Gusmão pelo titulo escolhido a partir dos nomes de seus protagonistas, poderia<br />
atrair leitores calvinistas, mas ao mesmo tempo desfazer ao longo da leitura os "erros" desta<br />
perspectiva, recolocando a concepção católica do dinamismo da graça divina e da liberdade<br />
humana. Desta forma, os dois protagonistas, na verdade, vão decidindo seu rumo ao longo<br />
do percurso e em cada etapa. Trata-se de uma estratégia profundamente jesuítica de abordar<br />
e debater a questão teológica e ao mesmo tempo transmitir aos leitores (e convence-los) sua<br />
versão da discussão afirmada como a ortodoxa.<br />
Os conceitos fundamentais da teologia católica são tematizados na novela através de<br />
topos alegóricos: as seis cidades que o peregrino e seu irmão atravessam ao longo do<br />
percurso que o leva ao destino final (podendo este ser ou Jerusalém, ou Babel) e que<br />
organizam a estrutura do livro em seis partes; a composição da família de cada um dos<br />
protagonistas: as esposas Razão e Própria vontade; e os filhos de ambos os casais: Bom<br />
Desejo e Reta Intenção, de um lado; e Mau Desejo e Torta Intenção, de outro. Vales, colinas,<br />
jardins, palácios, portas, animais, personagens com seus ofícios, trajes e características<br />
psicossomáticas: são todos estes elementos que se fazem presentes na novela. São imagens<br />
alegóricas utilizadas por Gusmão para construir sua narrativa mobilizando seus leitores para<br />
que se empenhem no conhecimento verdadeiro de si anunciado como objetivo no prólogo.<br />
Neste, Gusmão (1685) declara que a novela "vem a ser em Parábola a historia de todo aquele,<br />
que seguindo os passos, que nesta vida leva, seguindo o caminho, que tomou, ou se salva, ou<br />
se condena". Afirma ter optado por esta forma da narrativa "assim para mover a<br />
curiosidade do leitor, como para imitar o estilo de Cristo nosso Mestre e Senhor, do qual diz<br />
o Evangelista, que nunca jamais pregava ao povo senão debaixo de alguma parábola, como<br />
que explicava a verdade de sua doutrina" (p. 6). A novela com suas imagens e figuras deve<br />
servir ao leitor como um espelho para refletir sobre si mesmo (ver a si mesmo) em seu<br />
movimento pessoal norteado pelo fim escolhido como sentido do próprio percurso<br />
existencial: "no caminho e sucesso destes Peregrinos verá o leitor por onde se vai no Céu e<br />
por onde se vai ao inferno". De modo que "será este livrinho como um roteiro de vida, ou<br />
morte sempiterna, para que conforme a ele governe seus passos, e vendo não tenha escusa,<br />
ao se perder" (idem).<br />
A possibilidade de "governar seus passos", a saber, de ordenar suas condutas em<br />
função de uma experiência modelar, que demanda ser conhecida e escolhida, à qual<br />
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conformar a própria pessoa, depende da possibilidade de ver. O ver proporcionado pelas<br />
imagens e pelos seus efeitos no dinamismo psíquico do destinatário, é parte de um percurso<br />
de conhecimento (o desengano) que integra o trabalho da ordenação do homem ao seu<br />
sentido último que o realiza.<br />
Conclusão<br />
Voltemos agora à proposta de Carruthers (2006) acerca do uso das imagens visando<br />
tecer redes de relações úteis para reter na memória conceitos importantes e auxiliar<br />
descobertas. Este parece o efeito pretendido seja pela composição do percurso imaginário da<br />
peregrinação da novela de Gusmão, seja pelo percurso real da procissão alegórica do Triunfo<br />
eucarístico, seja pelo percurso verbal do sermão. Em todos os casos, as imagens, verbais,<br />
alegóricas, materiais que sejam, servem para auxiliar um processo de conhecimento onde<br />
existe uma forte relação entre imagens e processos mnemônicos. Nestes percursos, a<br />
específica configuração e a posição ocupada por cada imagem, permitem estimular os<br />
sentidos, captar a atenção, suscitar a memorização, comover os afetos, solicitar a reflexão e a<br />
decisão. Por sua vez, cada imagem pode ser decifrada pelos destinatários remetendo-se a<br />
inventários sociais e mentais próprios de seu universo sociocultural de pertença; e estes<br />
percursos funcionam quais mapas de orientação dos pensamentos e das condutas.<br />
Em suma: o estudo da imagem e dos processos imaginativos no período da Idade<br />
Moderna nos introduziu num mundo onde o universo do pensável e o universo das práticas<br />
sociais eram profundamente enlaçados. Ao terminar este percurso, esperamos com ele ter<br />
contribuído ao entendimento quanto à importância cultural e psicológica do uso das imagens<br />
visando mobilizar a imaginação e as demais potências anímicas nos destinatários, no<br />
contexto espaço temporal do Brasil colonial.<br />
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1<br />
Nota sobre autora<br />
Marina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e<br />
Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,<br />
Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na<br />
Cultura Luso-Brasileira. Contato: Departamento de Psicologia e Educação. Avenida<br />
Bandeirantes, 3900, CEP 14040-901, Ribeirão Preto (SP), Brasil. E-mail:<br />
mmassimi3@yahoo.com<br />
Data de recebimento: 29/06/2011<br />
Data de aceite: 26/09/2012<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
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ISSN 1676-1669<br />
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Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.<br />
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O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai<br />
The Meaning of God according to Jacob Levy Moreno in The Words of the Father<br />
Vitor Hugo Lopes Paese<br />
Adriano Furtado Holanda<br />
Universidade Federal do Paraná<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
O artigo se refere a uma pesquisa de cunho epistemológico, que tem como objetivo<br />
estudar o sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em seu livro As Palavras do Pai. São<br />
discutidos seus argumentos sobre o sentido de Deus frente aos conceitos de<br />
espontaneidade, de criatividade e de momento. Nas considerações finais, levanta-se a<br />
possibilidade de Deus enquanto um elemento fundamental para a compreensão da visão<br />
de mundo e a visão de homem no psicodrama de Moreno.<br />
Palavras-chave: Deus; Jacob Levy Moreno; epistemologia; psicodrama; ética<br />
Abstract<br />
The article refers to an epistemological research which aims at studying the meaning of<br />
God according to Jacob Levy Moreno in his book The Words of the Father. His arguments<br />
regarding the meaning of the concept of God are discussed in face of the concepts of<br />
spontaneity, creativity, and moment. In closing remarks, the possibility of God as a key<br />
element for understanding the world and man views in psychodrama of Moreno is<br />
raised.<br />
Keywords: God; Jacob Levy Moreno; epistemology; psychodrama; ethics<br />
Introdução<br />
Este artigo tem por objetivo estudar a noção de Deus para J. L. Moreno, em seu livro As<br />
Palavras do Pai, cuja versão utilizada é a tradução de 1992, para o português, da obra de 1941<br />
publicada em inglês pela editora Beacon House de Nova York, pertencente ao próprio J. L.<br />
Moreno. Esta edição americana é a tradução e a ampliação da obra de 1920, Das Testament des<br />
Vaters (O Testamento do Pai) em alemão. Assim, o livro utilizado neste artigo, na versão em<br />
português, torna-se relevante pois contém dois momentos históricos de sua confecção, 1920 e<br />
1941, assim como, exclusivamente contém o prefácio de Zerka T. Moreno - esposa de J. L.<br />
Moreno - para a edição brasileira, que esclarece o seguinte:<br />
A versão inglesa era diferente em alguns aspectos em relação à versão<br />
original alemã, na medida em que Moreno escreveu alguns dos seus<br />
poemas-orações especificamente inspirados em sua vivência nos Estados<br />
Unidos e uma grande parte do que ele tinha escrito originalmente foi<br />
retirada (Z. T. Moreno, 1920/1992, p. 7).<br />
A motivação para a escrita deste artigo deriva da hipótese de que uma epistemologia<br />
psicodramática começa por um olhar para uma teologia implícita, associada a uma noção de<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.<br />
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Divindade psicodramática. Essa hipótese ganha corpo e pode ser sintetizada na seguinte<br />
frase dita por Moreno, num breve relato seu, aos 85 anos de idade, dado - pouco antes de<br />
morrer - a Pierre Weil quando da sua visita ao criador do psicodrama em 1974: "Passei a<br />
vida procurando Deus e não o encontrei" (Moreno citado por Motta, 2008, p. 46).<br />
Nosso trabalho é compreender, entre outras coisas, o peso desta frase de Moreno, visto<br />
que a menção a Deus parece estar presente em grande parte, senão, em toda sua obra escrita,<br />
como temos, por exemplo, em sua autobiografia, organizada no Brasil por Luis Cuchnir<br />
(Moreno, 1997), onde encontramos a seguinte frase de Moreno:<br />
Todas as minhas tentativas científicas no campo da psicoterapia tinham<br />
fortes tendências religiosas por trás (...). Todas essas realizações e avanços<br />
não se enganam quanto ao fracasso de concretizar o estabelecimento do Pai-<br />
Deus para todas as pessoas como uma ligação de união entre elas (...). Em<br />
nossa era, Deus não deveria estar apenas numa ou noutra igreja, mas em<br />
todos os meios que ligam as pessoas umas às outras, em todas as telas de<br />
TV, em todos os barcos, em todos os aviões, em todos os sonhos. Se Ele não<br />
está, deveria estar. Ele deveria ser feito para ser. O final do mundo pode vir,<br />
mas não o fim do Deus-Pai, enquanto houver coisas para criar (p. 155-157).<br />
A justificativa para a relevância deste estudo se constitui pelo modo direto e enfático<br />
pelo qual J. L. Moreno aborda a temática sobre Deus e Sua importância na construção de<br />
toda a teoria e prática psicodramática (Moreno, 1920/1992; 1997). Já, na apresentação de seu<br />
livro As Palavras do Pai (Moreno, 1920/1992, p. 9), J. L. Moreno faz referência ao significado<br />
de Deus como uma concepção a ser explorada e compreendida em seus estudos. Tal<br />
compreensão permeia a construção das ideias e da teoria psicodramática de modo profundo<br />
e consistente: "Foi esse novo modelo de um Mestre Divino 'operacional' anunciado no The<br />
words of the Father que se tornou minha escada para o sistema sociométrico" (Moreno, 1997,<br />
p. 99).<br />
Existem outros trabalhos já publicados que também abordam a temática de Deus e que<br />
focam, em especial, as correlações com o existencialismo e a fenomenologia para<br />
fundamentar e explicar a obra moreniana. Cabe aqui citá-los, tão somente: Martín (1978),<br />
Naffah Neto (1979, 1980), Fonseca Filho (1980), Gonçalves (1988), Aguiar (1990), Almeida<br />
(1988,1991), Blatner & Blatner (1996), Costa (2001) e Calderoni (2010), entre outros.<br />
Há um livro, em especial, escrito por B. W. Nudel (1994) que devemos aqui apresentar<br />
como sendo de grande relevância para o assunto que fala sobre as influências religiosas na<br />
vida e obra de J. L. Moreno. Nudel (1994) destaca que seu trabalho é uma tentativa de<br />
estabelecer uma ligação entre os princípios filosóficos morenianos e o hassidismo 1 , haja vista<br />
que na presença de Moreno circularam pessoas tais como Chaim Kellmer, Martin Buber e<br />
Guershom Scholem, judeus hassídicos.<br />
1 Hassidismo é uma vertente mística do judaísmo criada no século XVIII, no leste da Europa.<br />
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Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.<br />
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1<br />
Cabe aqui também salientar alguns elementos sobre o hassidismo. De acordo com<br />
Nudel (1994), a origem judaico-sefaradim de Moreno remete ao povo judeu que migrou da<br />
península Ibérica em direção à Turquia. Segundo Nudel (1994), o hassidismo surge enquanto<br />
uma corrente dentro do judaísmo no ano de 1750 e tem como fundador Israel Ben Eliezer, o<br />
Baal Shem Tov (o Bescht 2 ). Dentre os preceitos básicos do hassidismo está a possibilidade de<br />
transformar a vida num constante e perpétuo contato com a divindade, indo além dos<br />
templos e dos ofícios sagrados. "Hassidismo significa piedade devota, devoção total a<br />
serviço de Deus" (Nudel, 1994, p. 44), o que leva a um senso de totalidade na união com<br />
Deus (Holanda, 1996). O Bescht saía das sinagogas e prega va junto à natureza, iniciando<br />
assim o que chamou de "contato direto com a Criação" (Nudel, 1994, p. 44); pois não havia<br />
mais separação entre o profano e o sagrado (Buber, 1966), "toda vida natural pode ser<br />
santificada" (Holanda, 1996, p. 156). Além disso, "o Bescht introduziu uma forma de servir a<br />
Deus através da alegria" (Nudel, 1994, p. 46), pois feliz é aquele que compartilha da essência<br />
divina (Buber, 1966; Holanda, 1996).<br />
As Palavras do Pai<br />
Na apresentação de As Palavras do Pai, em 1941, Moreno explica suas inquietações e<br />
pensamentos presentes à época em que escreveu a versão original de 1920. Uma de suas<br />
primeiras indagações foi de cunho existencial: "Será que eu sou realmente, apenas e tão<br />
somente, uma massa perecível, uma tão desesperançada existência, ou seria eu o centro de<br />
toda a criação e da imensidão do cosmos?" (Moreno, 1920/1992, p. 10).<br />
Moreno começou a se questionar sobre sua responsabilidade para consigo mesmo; se<br />
essa responsabilidade também não seria para com todos os seus próximos e para com todos<br />
os povos. "Será que todo o Universo está sob minha responsabilidade? Comecei a perceber<br />
que não existem limites para a responsabilidade exceto para com o que nela há de inclusivo<br />
de tudo que se move e que se transborda de vida" (Moreno, 1920/1992, p. 10, grifo no<br />
original). Ele destaca que não há outra forma da responsabilidade existir, senão, existindo<br />
esta para com o Todo. Moreno acrescenta ainda que a única forma de assumir esta<br />
responsabilidade para com o Todo é, também, ter uma função criadora. "Eu devo ter estado<br />
lá, no princípio, há bilhões de anos atrás e estarei lá, a bilhões de anos no futuro. 'Eu me criei,<br />
logo, eu existo'" (Moreno, 1920/1992, p. 10).<br />
Moreno (1920/1992) destaca que fez uma busca pelo entendimento e a compreensão de<br />
Deus conforme sua função e momento histórico. Menciona que pensou então:<br />
1. no Deus dos hebreus - "intangível" e nunca visto - um Deus que estava fora do<br />
mundo deles, mas que sentiam importante e necessário para as suas vidas: um "Deus-Ele";<br />
2 Bescht é apelido dado a Baal Shem Tov. É, segundo, Nudel (1994) a abreviatura de seu nome. O nome<br />
verdadeiro do Bescht era Israel Ben Eliezer (Holanda, 1996).<br />
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2. em outras formas de divindade inventadas pelo homem no decorrer dos séculos e dos<br />
milênios, frente a grandes crises do desenvolvimento mundial: Cristo é quem traz um Deus<br />
visível "na forma de uma aparência pessoal de um Deus-Tu, um Deus mais próximo, não<br />
apenas de poder, mas com uma enorme sabedoria e inteligência, um Deus-de-amor, de<br />
doçura e de recolhimento" (Moreno, 1920/1992, p.12).<br />
Moreno (1920/1992) menciona que Deus não se transforma, mas que a concepção de<br />
Deus criada pelo homem deve acompanhar a atualidade da vida humana, chegando a hora<br />
de uma readequação do conceito de Deus. Assim, justifica Moreno (1920/1992):<br />
Depois de tantas vezes traído, ele não é mais um Deus que vem de um Tu,<br />
mas que vem de dentro de nós mesmos, através do Eu, através de Mim (...).<br />
No Velho Testamento, Deus é Ele, no Novo Testamento, Deus é Tu, mas,<br />
agora, há um novo Deus, uma nova voz da experiência, uma nova via de<br />
comunicação com o Deus que vem do próprio Eu, através de Mim, através<br />
de você, através de milhões de "Eus" (p. 10).<br />
Deste modo, Moreno relata uma noção de Deus que se desenvolve historicamente e<br />
que se adequa aos dias atuais. Passa de um Deus-cósmico, referente ao velho testamento, de<br />
um Deus-de-amor, que inclui o Deus-cósmico, referente ao novo testamento, e vai para um<br />
Deus "Eu", que traz o Deus-cósmico e o Deus-de-amor (Moreno, 1992).<br />
Moreno entende o Universo como estando em constante transformação, tal qual é<br />
Deus: "(...) como resultado de milhões e milhões de forças cósmicas ele está se<br />
transformando a cada instante" (Moreno, 1992, p. 13). Ele destaca que somos todos<br />
componentes destas forças cósmicas e que por isso fazemos parte do processo infinito de<br />
criação, sendo este processo o elo de ligação entre todos, o elo da responsabilidade pela<br />
criação infinita do Universo. A partir deste entendimento do Universo, Moreno passa a se<br />
denominar "Pai", "Criador", responsável por toda criação, parte desta criação - o que o<br />
coloca como "co-responsável" pelo universo e compreende assim que também é criador do<br />
universo. Cria, assim, uma:<br />
aliança operacional com o mundo (...). Então eu vi o mundo como um<br />
gigantesco empreendimento com milhões e milhões de associados, vi mãos<br />
invisíveis, mãos estendidas, uma querendo tocar a outra, todos sendo<br />
capazes de, através da responsabilidade, tornarem-se deuses (Moreno, 1992,<br />
p.14).<br />
Moreno apresenta, em seu livro As Palavras do Pai uma inversão dos princípios<br />
teológicos tradicionais. Destaca que Deus sempre é o mesmo, mas que o conceito de Deus se<br />
modifica, assim como qualquer outro conceito. Destaca, como exemplo, que Brahma, Jeová<br />
ou Cristo foram estágios de uma concepção de Deus. A menção a um Deus-Eu é, segundo<br />
Moreno (1992), a expressão total e definitiva de Deus.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
h ttp:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ paeseholanda01
Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.<br />
Memorandum, 23, 185-197. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http:/ / www.fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ paeseholanda01<br />
Moreno relata um atributo importante desta noção de Deus, que é a sua "presença<br />
instantânea". Aqui a criatividade é a forma mais intensa e presente de Deus. Não<br />
desconsidera Seus (referindo-se a Deus) outros atributos: a onipotência, a infinita sabedoria,<br />
a retidão, a caridade, mas enf atiza a criatividade, entendendo que esta, não recebeu a de vida<br />
atenção por parte dos teólogos. A função de Criador é para Moreno o foco de estudo sobre<br />
Deus. "O Universo é uma criação em contínuo desenvolvimento e cada novo indivíduo que<br />
nasce cria, junto com Deus, o mundo que há de vir" (Moreno, 1920/1992, p. 22). Assim, há<br />
nesta obra, segundo Moreno (1920/1992), um "esquema existencial" criado a partir da voz<br />
do próprio Deus, onde a essência da nossa existência refere-se à fome por criar. Trata-se aqui<br />
de uma corrente dinâmica de criatividade.<br />
O seguinte argumento é dado por Moreno: "Como Deus é inseparável do Universo e o<br />
Universo é inseparável de cada homem que vive nele, necessariamente cada homem é<br />
inseparável de Deus (...). O princípio do Universo é a criatividade (...). Deus é pura<br />
espontaneidade" (Moreno, 1920/1992, p. 24-29).<br />
Moreno fala de um "atraso" sobre a concepção de Deus, um atraso teológico que<br />
mantém todo um sistema de valores desatualizado de seu real momento. Destaca que uma<br />
transformação revolucionária - se quiser atingir todo um sistema de valores - deve lidar<br />
diretamente com um conceito principal, que é o conceito de Deus (Moreno, 1920/1992).<br />
Nesta obra, Moreno explica os elementos básicos de sua teologia. Desta que é tão<br />
somente a ciência da Divindade e que aborda Deus em si mesmo, sem religião alguma.<br />
Moreno propõe uma filosofia da Divindade, onde Deus é igual para todas as religiões, para<br />
todos os homens. Destaca que "cada organização quase individual, dos cristais às plantas, do<br />
animal ao homem, do homem ao super-homem, tem uma experiência subjetiva especial do<br />
mundo" (Moreno, 1920/1992, p. 135) e que uma filosofia dessa natureza não poderia ser<br />
proposta, senão, pelo próprio Deus, que possui as características necessárias para contemplar<br />
o Universo de uma só vez.<br />
Ao se referir a uma frase escrita por Spinoza em seus Princípios de Filosofia Cartesiana,<br />
Moreno (1920/1992) argumenta que tanto o homem quanto Deus existem de fato e são<br />
necessários, visto que "quanto mais perfeito é um ser, mais necessário ele se torna". A<br />
diferença entre Deus e o homem "está no grau de espontaneidade e criatividade que cada<br />
um pode manifestar (...). Deus é o Ser portador de máxima espontaneidade e Ele é o Ser cuja<br />
espontaneidade transformou-se totalmente em criatividade" (Moreno, 1920/1992, p. 136-<br />
137). Assim, o lugar no qual Deus se encontra é o de expressão máxima de espontaneidade e<br />
criatividade. A Espontaneidade é um produto do momento, que está em sincronicidade<br />
temporal com o Universo.<br />
Houve um tempo, na era mitológica, em que a Divindade podia "evocar a criatividade<br />
e a espontaneidade necessárias para a criação de todo o Universo" (Moreno, 1920/1992, p.<br />
137). O que se tem, na verdade, é um contínuo status nascendi na relação de Deus com o<br />
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Universo. Para explicar isso, Moreno faz uso do conceito de momento, dentro de sua filosofia<br />
da Divindade.<br />
A noção de "momento" - algumas vezes entendido por "teoria", ou mesmo, "filosofia<br />
do momento" - é uma necessidade conceitual para se entender a dinâmica Deus-Universo-<br />
Espontaneidade-Criatividade-Homem (elementos teóricos discutidos por J. L Moreno em As<br />
Palavras do Pai). Moreno (1923/1984) em seu livro O Teatro da Espontaneidade escreve sobre<br />
três fatores, fases diferentes de um mesmo processo, que contribuem para a compreensão do<br />
momento, a saber: o status nascendi, o locus, e a matriz. "Não existe a 'coisa' sem locus, não<br />
existe locus sem seu status nascendi, e não existe um status nascendi sem sua matriz" (Moreno,<br />
1923/1984, p. 29). Destaca que o princípio de algo está justamente onde este algo veio à luz,<br />
onde ele surgiu, ou seja, a própria criação.<br />
Definir "momento" é uma tarefa difícil, segundo Moreno (1920/1992). Para ele, este<br />
conceito tem sido posto em segundo plano pelos sistemas filosóficos conhecidos. Para os<br />
filósofos, o "momento" nada mais seria do que uma transição entre passado e futuro, não<br />
tendo, assim, substância real suficiente para compor um sistema teórico e prático da filosofia.<br />
Moreno (1920/1992, p. 141) menciona que o conceito de "conserva cultural" serve como um<br />
parâmetro para a espontaneidade, já que retira o sentido estéril teoricamente, e<br />
pragmaticamente inútil do momento. Moreno fala de uma escala de ordem axiológica onde o<br />
valor máximo da espontaneidade e da criatividade é a Divindade e onde o oposto ao<br />
máximo, o mínimo, o zero da espontaneidade e da criatividade é a conserva cultural.<br />
Tanto Nietzsche quanto Bergson, segundo Moreno (1920/1992), se depararam com a<br />
falta de um conceito adequado sobre o "momento". A teoria dos valores apontados por<br />
Nietzsche baseia-se em heróis e deuses que viveram a serviço da conserva cultural. Moreno<br />
menciona que as criações destes, livros e escritos, se dão enquanto obras prontas e<br />
finalizadas, com um alto grau de refinamento, mas pertencentes às conservas culturais.<br />
Todos esses "tesouros culturais", apesar de denotarem criatividade, são conservas culturais e<br />
estão em descompasso com o momento. Moreno (1920/1992) destaca que Bergson chega<br />
perto de um entendimento da noção de criatividade em relação ao tempo, onde o homem é<br />
eternamente criativo a qualquer instante, mas que<br />
Bergson não construiu nenhuma ponte entre o criativo absoluto, o tempo e o<br />
espaço no qual vivemos, que foi construído pelo homem. O resultado foi<br />
que, mesmo se estas experiências imediatas tivessem que ter a qualidade de<br />
uma realidade final que Bergson reclamava para elas, elas têm um "status"<br />
irracional e por isso são praticamente inúteis para a metodologia e para o<br />
progresso científico (p. 144).<br />
Para Moreno (1920/1992), uma teologia da Divindade só pode existir se, em seu<br />
princípio, estiver contido o conceito de "espontaneidade". Conceito este que assume tanto<br />
um valor biológico, social, quanto Divino. Devemos, diz Moreno, ser críticos a todas as<br />
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formas de profecias, atos e mensagens que foram no passado atribuídos "a Deus, às Bíblias,<br />
às Igrejas, às prévias imagens Dele, do Seu ser e de Suas funções" (p. 145), já que estas<br />
também são, em si, conservas culturais e que, assim, são desprovidas da própria<br />
espontaneidade e criatividade.<br />
Deus possui uma função revolucionária espontânea criadora que tem sido deixada de<br />
lado frente a "Suas obras, Seu universo, Sua onipotência, Sua retidão e Sua sabedoria"<br />
(Moreno, 1920/1992, p. 146). Isso se dá frente à noção de ideal e de perfeição que deriva das<br />
coisas já acabadas e já concluídas que são conservas culturais e que são socialmente<br />
valorizadas e aceitas muito mais do que as coisas que permanecem inacabadas e num estado<br />
de imperfeição. Ao falar de obras respeitadas pelos seus bons acabamentos e por suas<br />
consideráveis perfeições, tais como a Bíblia, as obras de Shakespeare e as sinfonias de<br />
Beethoven, Moreno (1920/1992) explica que<br />
A conserva cultural é, pois, uma categoria consoladora e que dá segurança.<br />
Não é, portanto, surpreendente que a categoria do momento tenha tido uma<br />
oportunidade muito pobre para desenvolver-se em uma cultura como a<br />
nossa, saturada de conservas culturais e, relativamente, satisfeita com elas<br />
(p. 146).<br />
Ela mesma, a "conserva cultural", num estágio inicial, deriva de uma matriz de<br />
criatividade espontânea. A espontaneidade, segundo Moreno (1920/1992) é um estado de<br />
prontidão que permite ao sujeito uma resposta mais rápida quando solicitado. "É uma<br />
condição - um ajustamento - do sujeito, uma preparação do mesmo para uma ação livre" (p.<br />
152).<br />
Ao explanar sobre a vulnerabilidade do homem frente à sua incapacidade de, por meio<br />
das máquinas e das conservas culturais, tornar a si mesmo semelhança de Deus, Moreno<br />
(1920/1992) destaca que a teoria da espontaneidade pode esclarecer três pontos<br />
fundamentais da Divindade: "1 - como um criador e na relação Dele com a criatividade; 2 -<br />
em Sua relação com o momento e o Seu conceito de onipresença; 3 - na relação Dele com o<br />
Universo, com ênfase especial na história do nosso mundo pessoal" (p. 157).<br />
Para Moreno (1920/1992), a Divindade está presente em todos os atos criativos do<br />
Universo. Ela penetra em um sem-número de momentos pessoais, preenchendo-os sem<br />
privá-los de sua existência num dado momento frente a qualquer partícula do Universo. Ela<br />
(a Divindade) produz uma nova dimensão existencial, produz um "supramomento". A<br />
Divindade:<br />
Não cria, no segundo dia, o que criou no primeiro (...). A segunda vez é<br />
exatamente tão espontânea e nova como foi a primeira (...). Quanto mais<br />
livre é Deus em seus atos criativos, tanto mais livres serão os seres que dão à<br />
luz. Naturalmente, ocorre-nos uma pergunta: como se pode explicar o<br />
processo de criatividade de Deus, em termos de um universo humano?<br />
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1<br />
Devemos ver a Divindade como coexistente com todos os atos criativos dos<br />
homens e, na verdade, Ela é a verdadeira essência deles (pp. 157-158).<br />
Moreno escreve sobre a Divindade no tempo presente, como um fenômeno que<br />
<strong>continuamente</strong> está presente no Universo. "Deus está presente em cada detalhe da<br />
experiência" (Moreno, 1920/1992, p. 160). Isso faz com que Sua visibilidade total,<br />
esmagadora, torne-O invisível. Ao mesmo tempo, a Divindade possui uma existência<br />
subjetiva, "significando que Ela está viva e criativa no presente" (p. 162) e entendendo que<br />
Ela é constituída de uma subjetividade em nível diferente da subjetividade do homem. O<br />
momento para a Divindade "é um momento do qual grande número de momentos 'humanos' faz<br />
parte" (Moreno, 1920/1992, p. 162, grifos nossos). Assim, o entendimento da "onipresença"<br />
de Deus deve ser considerado como uma "multipresença", onde sua presença está em um<br />
número limitado de momentos e situações independentes e onde o agrupamento, cada vez<br />
maior, de presentes permite a experimentação da onipresença pela Divindade.<br />
Moreno (1920/1992, p. 166-167) menciona que a ideia de Deus é o reflexo preciso de<br />
um determinado estágio da cultura da humanidade, havendo um número grande e<br />
indefinido de construções sobre a ideia da Divindade satisfazendo um mesmo número de<br />
momentos requeridos em cada estágio. Fica, então, a dúvida sobre qual seria a verdadeira<br />
ideia da Divindade. Moreno (1920/1992) destaca que tal dúvida é sem sentido, visto que<br />
estas concepções sobre a Divindade nunca são definitivas, além do que, tal necessidade de<br />
uma concepção fixa sobre a Divindade é uma necessidade do homem por "conceitos<br />
antropomórficos" na intenção de criar uma ideia conservada sobre a Divindade. Moreno<br />
(1920/1992) escreve que busca uma congruência entre as Divindades já concebidas e a<br />
Divindade real que está na essência dessas concepções. Ele destaca que não há uma noção de<br />
Divindade definitiva, pois cada novo momento requer uma nova construção sobre o que<br />
vem a ser a Divindade - a despeito de considerar o Deus-Eu como a noção mais completa e<br />
definitiva de Deus, Moreno destaca, mesmo que não seja claramente explicitada esta<br />
contradição, que a noção de Deus nunca é definitiva, pois esta deve estar em consonância<br />
com o momento. Logo, podemos inferir que a noção de um Deus-Eu é completa e definitiva<br />
para o momento em que Moreno se encontra (a década de 1920).<br />
Para Moreno (1920/1992) a velha ideia de Divindade apresentada por diferentes<br />
religiões, onde uma Entidade Suprema era Senhora indiscutível do destino do Universo,<br />
deve ser substituída pelo "homem-Deus", entendendo esta como sendo uma concepção mais<br />
em acordo com o momento atual do homem em sua própria história.<br />
Frente à sua nova ideia de Divindade, Moreno propõe uma teologia experimental. A<br />
concepção de Deus é a concepção do Criador, repleto de espontaneidade e criatividade. "A<br />
unidade da Divindade é compatível com a unidade da natureza" (Moreno, 1920/1992, p.<br />
172). Assim, as subdivisões da ciência entre Sociometria, Antropometria, Biometria,<br />
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Astronomia, Geometria entre outros, são transitórias e se consolidam numa ciência mais<br />
ampla e universal, a qual chama de Teometria.<br />
No instante em que apresenta sua Teometria, Moreno (1920/1992) menciona que a<br />
operacionalização de tal ciência deve pautar-se no agente criador,<br />
Não em sentido metafísico, mas num sentido "metaprático". Isso compele a<br />
extensão lógica do operacionalismo rumo ao "criacionismo", termos esses,<br />
usados num sentido moderno, expressando um ponto de vista metodológico<br />
(...), quanto mais complexo é o nível de criatividade, tanto mais o<br />
criacionismo desvia-se do operacionalismo simples. No plano mais elevado<br />
da criatividade (o plano da Divindade) essa dissonância também chegará ao<br />
seu grau máximo. Nesse nível, as operações fluem da agência criativa. Todas<br />
as operações são levadas a cabo a partir do ponto de vista do Criador. Tudo<br />
integra-se na operação, já que pode existir nenhuma meta fora Dele. A<br />
metafisica transformou-se, por completo, numa "metapraxis" (p. 173).<br />
Para Moreno "metafísica é o ponto de vista da coisa que é criada, da criatura... É a prescrição<br />
para a experiência (...), consiste em generalizações que se referem a todas as manifestações<br />
especiais da existência (...). Metapraxis é o ponto de vista do criador" (Moreno, 1923/1984, p.<br />
48-49). Moreno (1923/1984) complementa o entendimento sobre a metapraxis escrevendo que<br />
esta não é o caminho para a experiência, mas sim, a criadora da própria experiência. É, em<br />
potencial, o locus do mundo. Existe antes do início e depois do fim do mundo. Trata-se de<br />
uma filosofia de criação pura, onde o imaginário é tão possível e real quanto o mundo em<br />
que vivemos. Menciona que após a retirada de todos os fenômenos e de tudo que está em<br />
volta disso, a única coisa que sobra é a metapraxis. Esta "é a vida da imaginação e da criação,<br />
a produção de entidades pessoais infinitas (...), é o lugar onde nossa eterna pergunta a<br />
respeito da liberdade da vontade (do lívre-arbítrio) recebe uma resposta adequada" (p. 50).<br />
Moreno (1920/1992, p. 174-177) cita os cânones do criacionismo como sendo a base<br />
para os métodos experimentais pelos quais a Teologia deve se operacionalizar. Destaca que<br />
estes cânones foram grandes teólogos que não se deram conta dos próprios métodos<br />
experimentais pelos quais puderam explorar a existência e a essência da Divindade, que<br />
foram as suas próprias existências. Aquilo que viveram na própria carne é o que fundamenta<br />
uma teologia experimental.<br />
Os cânones citados por Moreno (1920/1992) são: Buda, Cristo e Espinoza. Sobre Buda,<br />
Moreno relata que sua busca por negar a ideia de Brahma, refugiando-se no vazio de<br />
Nirvana não foi suficiente para dissipar sua própria vontade, vontade esta que, para Moreno<br />
"poderia ter se tornado um impulso para um mundo novo sobre o qual buda poderia ter<br />
dito, as mesmas palavras que ouvimos do Pai: 'Isto me pertence, isto sou Eu, tudo isto sou<br />
Eu, mesmo'” (p. 175). Sobre Cristo, Moreno escreve que sua vida foi a expressão de um Deus<br />
no presente, um Deus pessoal, espontâneo e íntimo. A filosofia do criador está implícita da<br />
vida de Jesus. No que se refere a Espinoza, Moreno vai compará-lo com Cristo e Buda,<br />
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1<br />
destacando que ele foi um crítico, diferentemente deles, que foram experimentadores.<br />
Espinoza, para Moreno, buscou definir Deus por meio do pensamento, Deus já estava<br />
encarnado na totalidade da natureza. Seu grande entendimento lógico de Deus o afastou do<br />
sentido da evolução da existência de Deus.<br />
Por fim, Moreno (1920/1992) destaca que o treinamento da espontaneidade à<br />
experiência religiosa pode se dar de modo promissor. Tal aplicação de uma teologia<br />
experimental pode ser feita por oração. Ele relata que a oração é formada por palavra,<br />
pensamento, sentimento e plano de ação.<br />
Ideias e emoções tais como amor, caridade, piedade, simpatia, felicidade,<br />
dominação, subordinação, humildade, lealdade, piedade, tranquilidade e<br />
silêncio todas essas categorias espirituais e psicológicas e muitas outras<br />
podem ser iniciadas, desenvolvidas ou treinadas com exercícios de<br />
espontaneidade (...) A espontaneidade e a criatividade, ambas são, desde já,<br />
consideradas como valores biológicos e sociais, são, aqui também,<br />
transformadas em supremos valores teológicos (Moreno, 1920/1992, p. 181-<br />
182).<br />
Considerações Finais<br />
Se retomarmos nossa hipótese inicial de que uma epistemologia psicodramática<br />
começa por uma teologia própria, por uma noção de Divindade psicodramática, então<br />
podemos aqui nos questionar sobre o ponto essencial que Moreno aborda em As Palavras do<br />
Pai. Moreno fala de uma Filosofia da Divindade em cujo princípio os conceitos de momento,<br />
conserva cultural e espontaneidade e criatividade, filosofia esta que se sustenta em uma<br />
"Teologia da Divindade", a qual compreende Deus como "Ser portador de máxima<br />
espontaneidade" (Moreno, 1920/1992, p. 137).<br />
Moreno dá ênfase, em As Palavras do Pai, para uma nova compreensão de Deus: um<br />
homem-Deus capaz de manter a continuidade criativa do Universo, já que "o princípio do<br />
Universo é a criatividade" (Moreno, 1920/1992, p. 29). Deus é a expressão máxima de<br />
espontaneidade. Assim, "com finalidade de dar sentido à existência, devemos achar o<br />
caminho da criatividade e permitir-nos uma comunicação direta e uma maior identidade<br />
com o criador (...). A essência de nossa existência é a fome de criar" (p. 23-25).<br />
Para que pudesse explanar mais sobre a Divindade, Moreno (1920/1992, p. 157-168)<br />
lança mão sobre três pontos capitais: o conceito do criador e o processo da criatividade; o<br />
conceito de momento e a onipotência da Divindade; e a Divindade nos vários estágios da<br />
história mundial. No que se refere ao primeiro ponto, ele destaca que a criação é sempre<br />
única e que nunca se repete. A Divindade coexiste com todos os atos criativos do homem em<br />
seu momento de nascimento, seu status nascendi. No que tange ao segundo ponto, Moreno<br />
fala da Divindade como um fenômeno presente em todo o Universo, presente em cada<br />
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detalhe da experiência. Ele relata que a Divindade é única em cada momento; momento este<br />
ligado ao todo, onde "devemos estabelecer de uma vez por todas que o momento para a<br />
Divindade difere essencialmente do momento tal como é experimentado pelo homem. É um<br />
momento do qual um grande número de momentos 'humanos' faz parte" (Moreno,<br />
1920/1992, p. 165). Já, no que se refere ao terceiro ponto, Moreno destaca que as diversas<br />
concepções de Deus construídas pelo homem frente aos estágios particulares de cada cultura<br />
não abrangem a real concepção de Divindade. Ele entende que nenhuma concepção de<br />
Divindade pode ser definitiva, pois a cada momento ela pode ser exigida e se atualizar frente<br />
a necessidade da época.<br />
Compreender a noção de Divindade proposta por Moreno, não apenas é importante,<br />
mas é ainda fundamental para a compreensão e utilização dos conceitos de momento,<br />
espontaneidade e criatividade. Neste sentido, podemos supor que há um forte<br />
entrelaçamento entre o pensamento psicodramático - em seu caráter objetivo e prático - e<br />
um pensamento "teológico" implícito nas palavras de Moreno.<br />
Enquanto uma proposta de epistemologia, neste trabalho pudemos entrar em contato<br />
com as visões de mundo e de homem presentes no pensamento moreniano, nas quais a ideia<br />
de Deus é um elemento fundamental. Sobre a visão de mundo, Moreno entende o Universo<br />
como fonte e, ao mesmo tempo, produto da criação Divina. Tudo é regido pela compreensão<br />
da Divindade. E, sobre a visão de homem, este é considerado parte da criação e tão criador<br />
quanto Deus; é um homem-Deus, um homem criador, capaz de manter-se em contato com o<br />
momento da criação do Universo, o qual se mantém em um constante estado criativo,<br />
Divino. O homem e Deus são sócios e parceiros na criação do Universo. Podemos, assim,<br />
sintetizar que o homem espontâneo criativo também é o homem Divino.<br />
Pretende-se que este primeiro momento de análise da obra moreniana seja igualmente<br />
o passo inicial na discussão sobre as possíveis relações teológicas entre seu pensamento e o<br />
Psicodrama, pois nos parece bastante claro que J. L. Moreno desenvolveu toda uma linha de<br />
pensamento teórico e de procedimentos técnicos a partir de uma compreensão de Deus. Ora<br />
pois, não estaria o psicodrama constituído, em sua matriz, da compreensão e de um<br />
entendimento próprio de Deus? Seria, então, o psicodrama teísta? Cabem, ainda nessa<br />
perspectiva investigativa, sugerir que sejam feitos estudos mais aprofundados sobre o tema,<br />
haja vista as limitações apresentadas neste artigo, por se tratar de um estudo pontual sobre<br />
um livro específico da obra de J. L. Moreno.<br />
Referências<br />
Aguiar, M. (Org.). (1990). O psicodramaturgo J. L. Moreno, 1889-1989. São Paulo: Casa do<br />
Psicólogo.<br />
Almeida, W. C. (1988). Formas do encontro: psicoterapia aberta. São Paulo: Ágora.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Memorandum, 23, 185-197. Recuperado em ____ de ______________, ______, de ""<br />
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Memorandum 23, out/2012<br />
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1<br />
Nota sobre os autores<br />
Vitor Paese - Mestre em Psicologia, Professor da Associação Paranaense de Psicodrama<br />
e Psicoterapeuta. Endereço para correspondência: R. Lauro Linhares, 2123, torre A, sala304.<br />
CEP 88036-003 - Florianópolis/SC, Brasil. E-mail: vitopaese@gmail.com<br />
Adriano Holanda - Doutor em Psicologia e Professor Adjunto da Universidade Federal<br />
do Paraná. Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia - Universidade<br />
Federal do Paraná Praça Santos Andrade, 50 - Sala 215 (Ala Alfredo Buffren)<br />
CEP 80060-240 - Curitiba/PR, Brasil. Email: aholanda@yahoo.com<br />
Data de recebimento: 18/01/2012<br />
Data de aceite: 09/09/2012<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Gallian, D. M. C. & Ruiz, R. (2012). O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de<br />
Shakespeare. Memorandum, 23, 198-209. Recuperado em ____ de ______________, ______, de ""<br />
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O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em<br />
Macbeth de Shakespeare<br />
Good, evil - are they all the same? The drama of the words and passions in Shakespeare's<br />
Macbeth<br />
Dante Marcello Claramonte Gallian<br />
Rafael Ruiz<br />
Universidade Federal de São Paulo<br />
São Paulo<br />
Resumo<br />
Partindo de uma experiência de leitura e reflexão do drama de Shakespeare, Macbeth, no<br />
Laboratório de Humanidades do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da<br />
Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, este artigo procura<br />
problematizar a questão do poder das palavras. Dialogando com filósofos antigos,<br />
modernos e contemporâneos, procuramos, no itinerário delineado por Shakespeare em<br />
sua peça, analisar as qualidades, força e efeitos da palavra no âmbito das paixões, dos<br />
atos e da ética humana.<br />
Palavras-Chave: literatura; Shakespeare; palavra; ética; paixão<br />
Abstract<br />
Starting from an experience of reading and reflection of the drama of Shakespeare,<br />
Macbeth, in the Laboratory of Humanities of the Center of History and Philosophy of<br />
Paulista Medical School of Federal University of São Paulo, this article aims at<br />
problematizing the question of the power of words. Dialoguing with ancient, modern<br />
and contemporary philosophers, this article seeks, by the itinerary outlined in<br />
Shakespeare's play, to analyse the qualities, power and effects of the word in the scope of<br />
human passions, acts, and Ethics.<br />
Keywords: literature; Shakespeare; word; ethics; passion<br />
Introdução: Meras Palavras?<br />
É curioso observar como, numa época tão pródiga de palavras como a nossa, estas<br />
acabem sendo tão desvalorizadas. Talvez porque se aplique aqui também a lei fundamental<br />
do mercado: quando algo sobra, acaba, inevitavelmente, perdendo o valor. E palavras, assim<br />
como aparelhinhos eletrônicos e microchips, encontram-se ad nauseam em nosso mundo. São<br />
miríades de miríades pronunciadas, escritas e difundidas nas mais diversas e tecnológicas<br />
maneiras todos os dias, minutos, segundos. Elas superpovoam nosso campo de visão nas<br />
ruas, nas telas de nossos computadores, celulares, "i-trecos", ressoam incontroláveis pelas<br />
ondas do rádio, MPs 3, 4, 5, 6... nas reuniões de escritório, salas de aula, bares, elevadores...<br />
Há uma superpovoação e uma superprodução de palavras, de maneira que ninguém já lhes<br />
dá mais atenção. São proferidas de maneira automática, em escala industrial, e recebidas<br />
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como algo praticamente desprovido de impacto ou significado, tal como consumimos a<br />
maior parte das coisas que adquirimos no mercado. Afinal, palavras são apenas palavras e<br />
nada mais do que meras palavras.<br />
Mas, será isso mesmo? Seriam as palavras nada mais do que palavras? Uma experiência<br />
recente realizada no Laboratório de Humanidades (LabHum) do Centro de História e<br />
Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Escola Paulista de Medicina (EPM) da<br />
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), que propõe fomentar a reflexão humanística<br />
na área da saúde através da leitura e discussão de clássicos da literatura em encontros<br />
semanais 1 . A obra provocadora foi o drama Shakespeareano Macbeth que, ao ser lido e<br />
discutido no LabHum, levantou este questionamento e nos levou (os coordenadores da<br />
atividade e demais participantes) a concluir o contrário: as palavras são coisa séria; elas são<br />
muito poderosas, podendo determinar a nossa forma de ser e agir.<br />
Não se chegou de imediato a essa conclusão. O método do LabHum exige paciência:<br />
voltar uma vez e outra, numa reunião e noutra, sobre o texto de Shakespeare (as discussões<br />
sobre Macbeth duraram oito semanas), e principalmente sobre aquilo que cada um dos<br />
participantes pensava sobre o mesmo e também aquilo que na discussão e no debate, e a<br />
cada reunião, voltava-se a repensar sobre o mesmo texto. É o que poderíamos denominar de<br />
construção do conhecimento em espiral: para entender a fundo o sentido das palavras é<br />
preciso voltar uma e outra vez sobre as mesmas. E é isso o que se faz no LabHum.<br />
A partir daí, os autores deste artigo resumiram e sistematizaram as diferentes ideias,<br />
sentimentos e reflexões que o debate sobre Macbeth provocou nos participantes que aqui<br />
procuram compartilhar.<br />
O Poder da Palavra-Ato<br />
Segundo Larrosa Bondía (2002), professor de linguística da Universidade de Barcelona,<br />
"as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes<br />
mecanismos de subjetivação" (p. 20-21). E continua o professor, numa espécie de profissão<br />
de fé da palavra:<br />
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos<br />
coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As<br />
palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com<br />
pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta<br />
genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é<br />
somente "raciocinar" ou "calcular" ou "argumentar", como nos tem sido<br />
ensinado algumas vezes, mas é, sobretudo, dar sentido ao que somos e ao<br />
1<br />
Para maiores informações sobre o Laboratório de Humanidades do CeHFi/EPM/UNIFESP acessar:<br />
http://labhum.blogspot.com.br/2009/10/o-que-e-o-laboratorio-de-humanidades.html<br />
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que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver<br />
com as palavras (p. 21).<br />
Ao concordar com Larrosa Bondía (2002), na crença no poder e na força das palavras,<br />
com a convicção de que fazemos coisas com as palavras e que as palavras fazem coisas<br />
conosco, não podemos acreditar ingenuamente nas Três Bruxas que abrem o drama de<br />
Shakespeare dizendo: "O bem, o mal - é tudo igual" 2 (Shakespeare, 1623/2004, p. 9). Apesar<br />
de ser esta exatamente a perspectiva que não apenas vigora em nosso contexto mental, mas<br />
que inclusive lhe dá sustentação.<br />
Não é o mesmo uma palavra, analisada do ponto de vista filosófico, e uma palavra<br />
inserida numa peça teatral. A palavra, quando filosófica, é um conceito abstrato,<br />
previamente definido e sobre o qual recai um sentido e significado preciso, delimitado<br />
precisamente pela sua definição. E, nesse sentido, quando nos deparamos com os termos<br />
"bem" e "mal" poderemos estabelecer uma série de considerações teóricas, a partir das<br />
diferentes perspectivas que a Filosofia nos oferece. Não acontece o mesmo quando<br />
encontramos termos idênticos numa peça de teatro, como a de Macbeth. Nesse caso, as<br />
palavras ganham corporeidade, concretude e, principalmente, intencionalidade, tornando-se,<br />
por isso mesmo, muito mais complexas.<br />
Por que isso é assim? Porque não estamos mais no âmbito da Ciência nem no da<br />
Filosofia, à procura da verdade, mas estamos no âmbito do poético e, portanto, do<br />
verossímil. Quando Aristóteles (séc IV a. C/1959) explicava o que se passava com a tragédia,<br />
dizia-nos que estávamos diante não de palavras que fossem conceitos, mas de palavras que<br />
eram atos, e segundo o filósofo<br />
a ação supõe personagens que agem, é de todo modo necessário que estas<br />
personagens existam pelo caráter e pelo pensamento (pois é segundo estas<br />
diferenças de caráter e de pensamento que falamos da natureza dos seus<br />
atos); daí resulta, naturalmente, serem duas as causas que decidem dos atos:<br />
o pensamento e o caráter; e, de acordo com estas condições, o fim é<br />
alcançado ou malogra-se (p. 11 - Poét., VI, 7).<br />
A palavra poética permite-nos ver algo que a mera palavra, enquanto conceito, nos<br />
oculta: a intencionalidade do agente e, portanto, o seu caráter, bem como todo o desenlace da<br />
trama das ações, permitindo-nos perceber não só se o fim foi atingido ou não, mas a<br />
qualidade ética das ações realizadas.<br />
2 No original em inglês as palavras utilizadas são: "Fair isfoul, foul isfair". Das diferentes traduções em português,<br />
optamos pela de Manuel Bandeira, não apenas porque foi a utilizada na leitura e discussão do Laboratório de<br />
Humanidades, como também, apesar de não remeter explicitamente ao sentido mais direto das palavras "foul"<br />
(loucura) e "fair" (sensatez), transcria de maneira poética e correta a ideia central que quisemos ressaltar na<br />
elaboração deste ensaio, e que utilizamos inclusive no seu próprio título.<br />
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A intuição aristotélica é extremamente rica com relação à abrangência do olhar do<br />
leitor. Quem adentra na leitura de uma tragédia vê atos, não palavras (embora, é claro, esses<br />
atos sejam significados por meio das palavras) e, portanto, está capacitado para ver<br />
ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta<br />
também da atividade), sendo o fim que se pretende alcançar o resultado de<br />
uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os caracteres<br />
permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade<br />
ou felicidade (Aristóteles, séc IV a. C/1959, p. 12 - Poét., VI, 12).<br />
A tragédia remete-nos, por meio de palavras que são mais do que palavras, ao âmago<br />
do homem: à sua maneira de ser e à sua maneira de agir e, por isso mesmo, dão-nos uma<br />
dimensão moral, não no sentido de "moralizante", mas no sentido de qualidade ética da<br />
conduta e da pessoa, e, portanto, dizem-nos mais, muito mais do que a Filosofia e a Ciência,<br />
com relação à questão decisiva sobre quem é o homem e quem somos nós, porque "a ação,<br />
pois, não se destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres já são representados"<br />
(Aristóteles, séc IV a. C/1959, p. 12 - Poét., VI, 12).<br />
Há uma tendência moderna a entender "o verossímil" como aquilo que é aceito ou<br />
pensado pela maioria, ou seja, pensa-se que algo é verossímil porque assim nos parece<br />
(Bettetini e Fumagalli, 2001), mas essa maneira de pensar tem as suas raízes na longa<br />
tradição cartesiana que foi se afirmando durante a Modernidade. Contudo, quando<br />
Aristóteles explicava o sentido de eikós (verossímil) referia-se àquilo que comumente<br />
costumava acontecer e, porque acontecia, aceitava-se como um fato costumeiro. Não se<br />
tratava - valha a insistência, mas parece-nos que é muito importante entender esse ponto -<br />
daquilo que seria visto ou entendido pela sociedade como razoável ou possível de acontecer,<br />
mas daquilo que habitual e normalmente costumava acontecer. O "verossímil" dizia respeito<br />
a fatos acontecidos, costumeiros, e não a formas de pensar. Apenas para dar um exemplo<br />
que ajude a entender o que estamos querendo dizer: de maneira geral, costuma acontecer<br />
que os pais gostem dos seus filhos, é algo verossímil, mas poderia acontecer que, num caso<br />
concreto, um pai concreto não gostasse de um filho em concreto. Ou seja, o "verossímil" está<br />
ligado à ideia de "um universal provável: aquilo que acontece geralmente e sobre o qual,<br />
portanto, os homens estão geralmente de acordo, porque passou a ser costumeiro" (Bettetini<br />
e Fumagalli , 2001, p. 48). E é precisamente essa qualidade - o fato de que, em certas<br />
circunstâncias, o verossímil admita exceções e inclusive admita exatamente o contrário - que<br />
o verossímil, para Aristóteles, não se encontrava nas ciências, mas na retórica e na poética.<br />
Assim, por isso mesmo, afirmar algo como verossímil<br />
pode ter mais valor do que afirmar um simples fato verdadeiro: porque o<br />
simples fato pode ser algo puramente contingente e particular, enquanto que<br />
conhecer um fato verossímil é conhecer algo que é, em certo sentido,<br />
universal, algo que coloca de manifesto o raciocínio de quem participa e que,<br />
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portanto, diz-nos mais sobre o mundo do que possa fazê-lo um fato<br />
simplesmente contingente (Bettetini & Fumagalli, 2001, p. 49).<br />
Estamos falando, portanto, de palavras que são atos e não de meras palavras. Quando<br />
lemos "Macbeth" não teorizamos sobre o que possam significar o "bem" e o "mal", nem sobre<br />
a existência ou não desses conceitos, nem sobre a evolução dos mesmos na Filosofia<br />
ocidental, mas estamos vendo, porque são ali representados, os atos praticados por Macbeth,<br />
sua esposa, Banquo, Duncan e as bruxas, nas suas circunstâncias concretas até o desenlace<br />
final; atos que nos apontam para o caráter de cada personagem, porque é nos seus atos e<br />
através deles que os caracteres se manifestam, e não temos como não nos posicionar perante<br />
eles. Nesse sentido, a obra poética, o drama trágico ou a narração literária permitem uma<br />
abrangência maior na visão do mundo em que se desenvolvem as ações humanas. Maior<br />
porque permitem ver não apenas os indivíduos como agentes econômicos, sociais ou<br />
políticos, mas as pessoas naquilo que têm de mais humano, o seu mundo interior, com as<br />
suas esperanças, paixões e temores, com aquilo que há de misterioso e extremamente<br />
complexo, ao qual, como explica Nussbaum (1995),<br />
é necessário aproximar-se com as faculdades da mente e os recursos da<br />
linguagem aptos para a expressão de uma certa complexidade. Em nome da<br />
ciência, renunciou-se ao estupor que esclarece e estimula a ciência mais<br />
profunda. Em nome de um interesse genuíno para com o sofrimento de cada<br />
um, acabamos adquirindo um modo de vida que não pode entender<br />
adequadamente o sofrimento da pessoa no seu contexto social ou considerálo<br />
como o sofrimento de uma pessoa única (p. 74).<br />
Não foram poucos os críticos que apontaram o olhar profético de Shakespeare frente à<br />
modernidade que então recém se inaugurava. A sua história sobre Macbeth parece querer<br />
dizer que aquilo que parece ser pode muito bem não ser na realidade, ou seja, que Bem e Mal<br />
não é tudo igual, e que com as palavras que não são meras palavras, não vale o tanto faz.<br />
A Qualidade das Palavras<br />
Macbeth, Tane de Gladis, é um grande nobre de velha cepa escocesa. Diante da ameaça<br />
traidora que paira sobre seu reino e sobre seu rei, não hesita em enfrentar, juntamente com<br />
Banquo (outro grande nobre) o perigo e a própria morte "qual favorito do valor"<br />
(Shakespeare, 1623/2004, p. 10). Tendo seus feitos noticiados ao rei Duncan, este lhe confere<br />
título maior, Tane de Cawdor, recém-retirado do indigno traidor vencido.<br />
Antes porém que a boa nova lhe seja comunicada por boca humana, Macbeth é avisado<br />
por três criaturas estranhas, que lhes aparecem, a ele e a Banquo, numa charneca próxima de<br />
onde se travara a derradeira batalha. Como sabemos, as três parcas não apenas predizem a<br />
sua promoção imediata a Tane de Cawdor, como também a própria glória real, ainda que<br />
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(terceira profecia) não transmitida a seus descendentes, já que aos de Banquo ela estaria<br />
reservada.<br />
As palavras proferidas pelos "agentes das trevas" (Shakespeare, 1623/2004, p.19) nas<br />
palavras de Banquo, Ato I, cena 3, afetam sobremaneira o pobre e desavisado Macbeth, que<br />
imediatamente começa sentir o seu efeito insidioso e inquietante. Instantes depois de<br />
haverem desaparecido as bruxas, chegam os arautos do rei informando-lhe do seu novo<br />
título: Tane de Cawdor. Mal tinha tido tempo de refletir nas palavras proferidas e a profecia<br />
já começava a se cumprir.<br />
Sabemos que as palavras, quando são mais do que meras palavras, não se limitam a um<br />
simples som, vocábulo ou conjunto de letras e sílabas. As verdadeiras palavras - logos em<br />
grego, verbum em latim - são como cápsulas que encerram um conteúdo denso, potente,<br />
capaz de afetar, mobilizar, vivificar, envenenar, matar. Segundo Larrosa Bondía (2002), a<br />
tradução que normalmente se faz da palavra grega logos pela palavra latina ratio, origem da<br />
vernácula razão, é na verdade mais que uma tradução, uma "traição, no pior sentido da<br />
palavra" (p. 21). Assim, ao se tomar a definição de homem de Aristóteles, zôon lógon échon, a<br />
tradução mais fiel seria "vivente dotado de palavra" e não "animal racional", como se<br />
costuma encontrar normalmente. Ora, tal noção manifesta de forma inconteste a importância<br />
da palavra enquanto elemento definidor do ser humano.<br />
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha<br />
a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma<br />
ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra,<br />
que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de<br />
palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá<br />
na palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar as palavras,<br />
criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar<br />
palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras,<br />
transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero<br />
palavrório (Larrosa Bondía, 2002, p. 21).<br />
Dizíamos que as palavras têm conteúdo denso e potente. Isto porque elas têm<br />
qualidades. Ou seja, as palavras também são gestos, são cenas, e expressão. Todo este universo<br />
de conteúdo e forma que cerca, informa e qualifica a palavra, e que é a mesma palavra,<br />
determina o seu efeito e sua potência. Aqui, no drama shakespeareano a sua "qualidade" é,<br />
fundamentalmente, "profética"; quer dizer, uma palavra proferida por alguém que<br />
simplesmente a professa, ou seja, a transmite, a repete, tal como lhe foi dita por um Outro,<br />
invariavelmente maior, mais poderoso, sobrenatural - literalmente, alguém acima da natureza<br />
mutável, mortal.<br />
Não é pouco conhecida a importância que tiveram os profetas na história da<br />
Civilização Ocidental. Na tradição judaico-cristã, a palavra profética comunica os<br />
sentimentos de Deus em relação aos homens, em especial ao seu povo escolhido, e prediz o<br />
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futuro, conclamando assim à conversão dos corações, ao arrependimento, à contrição. Neste<br />
contexto, a profecia pode tanto anunciar, prever, como também simplesmente advertir o<br />
futuro, futuro este que pode ser "mudado", caso a palavra dê bons frutos nos corações e nas<br />
ações dos homens (Cf. Lucas 3, 9).<br />
Encontramos também Profetas em outras tradições como entre os gregos, onde as<br />
pitonisas e as sibilas aparecem servindo aos diversos oráculos, sendo o de Delfos (o qual até<br />
Sócrates vai consultar diante da inquietante questão sobre a sua incomparável sabedoria) o<br />
mais famoso. E assim como os deuses, os demônios também têm seus profetas. Neste caso,<br />
como bem fica demonstrado no drama escocês de Shakespeare, a palavra profética é<br />
proferida não para advertir-nos e salvar-nos, mas "para perder-nos", como bem informa<br />
Banquo na cena 3 do ato I (Shakespeare, 1623/2004, p.19).<br />
Antes porém de consumar a sua obra, toda palavra precisa primeiro ser ouvida, ou<br />
melhor, ser aceita. As palavras proféticas das três bruxas só surtem efeito em seus<br />
destinatários porque se apresentam "sob a cor da verdade" (quem o diz é o próprio Macbeth,<br />
como sabiamente considerava Banquo, a quem já citamos anteriormente). Eis a frase<br />
completa: "E muita vez, para perder-nos, os agentes das trevas são verídicos: captam-nos<br />
com inocentes bagatelas por afundar-nos nos piores crimes" (Shakespeare, 1623/2004, p. 19).<br />
A própria artífice dos malefícios em forma de profecia (de palavras), Hécate, senhora<br />
das bruxas, revela que tal sortilégio, "tão rico de artificiosa ilusão" é o que afundará o nobre<br />
Macbeth "em confusão", ao lhe infundir "a temerária confiança" - pois esta, "quando por<br />
demais, é a perdição dos mortais" (Shakespeare, 1623/2004, p. 74).<br />
Eis, pois, o conteúdo, a qualidade e o poder deste tipo de palavra: revestida da "cor da<br />
verdade", adentra o entendimento e chega ao coração, atiçando as paixões. O belo, bravo e<br />
fiel Macbeth, virtuoso e favorito vassalo do rei, que há pouco tinha demonstrado toda sua<br />
força e valor lutando corajosamente contra temíveis inimigos, vê seu coração sucumbir não<br />
diante de lanças e espadas, mas diante da palavra de três tristes e repugnantes bruxas.<br />
As palavras adentram-no com sua capa de brilho e verdade, espicaçando-lhe a cobiça e<br />
confundindo-lhe a razão:<br />
Esta insinuação sobrenatural não pode nem ser má, não pode ser boa. Se má,<br />
por que certeza de sucesso, me dá neste começo de verdade? Pois sou Tane<br />
Cawdor; E se boa, por que assim cedo à imagem pavorosa que os cabelos me<br />
eriçam e faz meu firme coração palpitar contra as costelas, fora do que é<br />
normal na natureza? Os temores presentes são mais fracos do que as<br />
horríveis imaginações. Meu pensamento, onde o assassínio é ainda projeto<br />
apenas, move de tal sorte a minha simples condição humana, que as<br />
faculdades se me paralisam e nada existe mais senão aquilo que não existe.<br />
(Shakespeare, 1623/2004, p. 19-20).<br />
A palavra das bruxas, que para Banquo, homem prudente - de acordo com o próprio<br />
Macbeth, "Nele aponta algo que é de temer: tem grande audácia; e à têmpera indomável de<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Gallian, D. M. C. & Ruiz, R. (2012). O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de<br />
Shakespeare. Memorandum, 23, 198-209. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 2<br />
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su'alma alia uma prudência que encaminha o seu valor a agir com segurança." (Shakespeare,<br />
1623/2004, p. 55) -, é algo a ser posto sob suspeita, a ser examinado ou mesmo descartado<br />
dada a qualidade de seus emissores, para Macbeth é algo "relativo": "não pode ser má, não<br />
pode ser boa" (p. 19-20). Este flerte com a palavra temerária é já o princípio de sua aceitação,<br />
e a sua aceitação é já o ceder ao seu conteúdo, ao seu poder. Os primeiros sintomas logo são<br />
sentidos: os calafrios e palpitações que indicam que algo "fora do que é normal na natureza"<br />
(p. 19-20) tomou conta do coração e da imaginação, submetendo a inteligência e a vontade.<br />
É verdade que, num primeiro momento, Macbeth procura resistir e lutar contra o<br />
poder envenenador: "Se a sorte me quer rei, há de corar-me sem que eu me mexa"<br />
(Shakespeare, 1623/2004, p. 20). Entretanto, o compartilhamento das palavras com a sua<br />
esposa, Lady Macbeth, acabarão por dinamizá-las e potencializá-las, de forma que estas,<br />
encontrando um terreno ainda mais fértil no coração da mulher, retornarão ao destinatário<br />
da profecia com maior potência ainda, fazendo cederem às últimas resistências. Frente às<br />
hesitações do atormentado marido, Lady Macbeth despeja-lhe no coração, pelos ouvidos,<br />
argumentos suficientemente fortes para fazê-lo tomar a "firme decisão": "já sinto tensa em<br />
todo o meu corpo cada fibra para cumprir o ato terrível. Vamos! Respirem inocência,<br />
enganadoras, tuas feições: falsa aparência esconda no falso coração a trama hedionda" (p.32).<br />
Instigado pelo poder sedutor das palavras proféticas, Macbeth vê alterar-se em seu<br />
coração a medida das paixões. A ambição, paixão tão própria de corações nobres, instiga-se,<br />
cresce e transborda, arrastando na sua correnteza os diques da razão. Como observaria<br />
Pascal, pouco menos de um século depois de Shakespeare: "(...) pois, quando as paixões são<br />
as senhoras, elas são vícios, e então dão à alma seu alimento, e a alma com elas se nutre e se<br />
envenena" (Pascal, 1670/1973, p. 88 - Pensamentos, XVI, XCVIII,).<br />
Despertadas e mobilizadas pelos sentidos e principalmente pelas palavras que chegam<br />
ao interior através dos sentidos, as paixões alimentam nossa alma, nosso ser. Entretanto,<br />
segundo Pascal, "é preciso servirmo-nos delas como de escravos (...) dizendo a uma: Vai, e<br />
Volta. Sub te erit appetitus tuus ["debaixo de ti estará o teu apetite"(Gen., 4,7).]" (idem); para<br />
que elas não se tornem senhoras e não nos envenenem, desencadeando nossa "perdição",<br />
como bem advertia Banquo. "As paixões assim dominadas são virtudes", explica o filósofo,<br />
para quem "a avareza, a inveja, a cólera, o próprio Deus as atribui a si; e são tanto virtudes<br />
como a clemência, que são também paixões" (idem).<br />
Essa mesma ideia aparece de forma condensada e lapidar no drama shakespeareano<br />
através da boca de Macduff, que em diálogo com Malcolm, filho do rei assassinado, afirma:<br />
"A intemperança, quando ilimitada, é tirania em nós da natureza" (Shakespeare, 1623/2004,<br />
p. 95). E - desenvolvendo o tema, desta vez através da voz do médico chamado a socorrer a<br />
"loucura" de Lady Macbeth - "Quando os atos violam a natureza, eles produzem desordens<br />
também contra a natureza" (p. 109).<br />
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Macbeth, como vimos, desde o momento em que ouviu as maléficas palavras e as<br />
acolheu em seu coração, começa a sentir algo "fora do que é normal na natureza"<br />
(Shakespeare, 1623/2004, p. 19). E, na medida em que a trama se desenvolve e o ato<br />
assassino se consuma, este estado de desordem e tirania do contranatural vai crescendo e<br />
dele se apoderando, lançando-lhe numa espiral de medo, ansiedade, melancolia. Desde<br />
então já não consegue dormir "O sono inocente, o sono dissipador das preocupações, morte<br />
da vida de cada dia, banho após a dura labuta, bálsamo de almas doridas, principal alimento<br />
no banquete da grande natureza" (p. 38). E a tristeza, ao invés da alegria, é o prêmio<br />
encontrado na consumação de seus desejos: "Tudo é futilidade: honra e renome estão<br />
mortos; o vinho da existência esgotou-se até à borra e só lhe resta borra a esta triste adega"<br />
(p.46).<br />
O mesmo acontece, surpreendentemente, com aquela que depois de haver invocado os<br />
"espíritos sinistros" e os "ministros do mal", pedindo-lhes que a dessexuassem, que a<br />
espessassem o sangue, "prevenindo todo acesso e passagem ao remorso; de sorte que<br />
nenhum compungitivo retorno da sensível natureza" (Shakespeare, 1623/2004, p. 26),<br />
abalasse a sua "determinação celerada" (p. 2 6), instigando assim "o que é contrário aos<br />
sentimentos naturais humanos " (p. 26); mesmo a esta que parece ser mais uma encarnação<br />
do mal do que uma mulher, Lady Macbeth, os efeitos do "contranatural" se fazem presente<br />
em sua humana natureza. No ato II, cena 2 desabafa: "Nada ganhamos, não, mas ao<br />
contrário, tudo perdemos quando o que queríamos obtemos sem nenhum contentamento:<br />
mais vale ser a vítima destruída do que, por a destruir, destruir com ela o gosto de viver" (p.<br />
60).<br />
Nem a um nem a outro, porém, o gosto amargo do crime é o suficiente para convertêlos.<br />
"O que está feito, está feito" (Shakespeare, 1623/2004, p. 60), desfere Lady Macbeth<br />
depois de seu lamento. E Macbeth, mesmo corroído pela tristeza, faze-lhe coro, dizendo: "As<br />
coisas começadas no mal, no mal se querem acabadas" (p. 63). A tirania do mal, uma vez<br />
consentida, se instaura, e ainda que a consciência grite e revolte-se, a vontade se vê fraca,<br />
incapaz e vencida, restando-lhe apenas o reconhecimento da derrota: "mas fartei-me de<br />
horrores" (p.117), - diz Macbeth na última cena, do último ato - "o terror, já acostumado<br />
com os meus pensamentos homicidas, não me surpreende mais" (p. 117). A paixão tornou-se<br />
vício e a razão e a vontade estão à sua mercê.<br />
Neste contexto, o nobre e ambicioso homem que se tornou senhor de um reino vê-se,<br />
paradoxalmente, escravo de sua própria ambição, de suas próprias paixões. Percebendo-se<br />
como um simples títere nas mãos do destino, aquele que almejava o mais pleno e livre<br />
senhorio, depois de cumprir a sua sina, conforme a previsão e a intenção das parcas, deseja<br />
apenas a morte; única e desesperada maneira de talvez reencontrar a liberdade:<br />
Breve candeia, apaga-te! (grita Macbeth numa das passagens mais célebres<br />
da literatura universal) que a vida é uma sombra ambulante: um pobre ator<br />
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Palavra e Ética<br />
que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto<br />
cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada (Shakespeare,<br />
1623/2004, p. 117).<br />
Por que, quando lemos Macbeth, embora não tenhamos tido, nem lidado, com certezas<br />
científicas nem filosóficas, percebemos as consequências trágicas e funestas aonde pode levar<br />
a ambição humana? Porque é assim que geralmente acontece, e o sabemos. É verossímil. A<br />
ambição pode ser grande e levar o homem a realizar a sua própria grandeza, mas também<br />
pode levá-lo aos abismos da vilania, da traição e do crime. Essa é a característica do mundo<br />
moral vislumbrado por Aristóteles. Diante do apelo por certezas absolutas, ao estilo<br />
cartesiano, Aristóteles defendia a ideia da incerteza do provável nas ações humanas<br />
(Montoya, 2007, p. 179). Nem todos os argumentos e raciocínios permitem-nos agir com um<br />
rigor exato e preciso, e nem por isso deixariam de ser verdadeiros. São verdadeiros não<br />
porque assim foi demonstrado analítica e cientificamente, mas porque é assim que, de<br />
maneira geral, acontecem com os homens e com as ações humanas, porque são verossímeis.<br />
Como o próprio filósofo grego afirmava:<br />
Ao tratar, pois, de tais assuntos e partindo de tais premissas, devemos<br />
contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e<br />
ao falar de coisas que são verdadeiras apenas em sua maior parte e com base<br />
em premissas da mesma espécie, só poderemos tirar conclusões da mesma<br />
natureza (Aristóteles, séc. IV a. C/1973, p. 2 - EN, 1094b).<br />
Talvez, para nossos gostos modernos, precisados de certezas absolutas, saber que não<br />
se possa ir mais longe nesta matéria pode ser decepcionante, porém, por outro lado, não<br />
podemos deixar de concordar com Aristóteles, pois, nas questões práticas, diante dos atos<br />
humanos, conhecemos que sempre há um elemento de imprecisão e de incerteza (Aristóteles,<br />
séc. IV a. C/1973, p. 14 - EN, 1112 a-1118b). Reconhecemos que é bastante verossímil que as<br />
coisas sejam dessa forma. Na verdade, o que se passa é que Aristóteles parte de uma visão<br />
em que o que está em jogo é o caráter da pessoa, ou seja, sua dimensão ética. E é justamente<br />
nesta "maneira de ser" que se revela o caráter ético - como o próprio Aristóteles insiste ao<br />
falar referindo-se à tragédia. Caráter ético que, por sua vez, não pode ser reduzido a um<br />
conjunto de regras ou um código de condutas, como modernamente se costumou considerar.<br />
Estamos aqui no âmbito da virtude e não do cumprimento da norma.<br />
Para Aristóteles, a virtude diz respeito a uma disposição interior, uma qualidade que<br />
vai sendo formada na pessoa e que a vai constituindo em uma pessoa virtuosa, ou não. Isso<br />
significa que mais do que tentar definir o que seria "a generosidade", por exemplo,<br />
deveríamos olhar para o enorme número de "ações generosas", que essas, sim, podem ser<br />
vistas e representadas de forma verossímil, porque habitualmente uma pessoa generosa tem<br />
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capacidade para perdoar, para esquecer, para ajudar, para sacrificar-se etc. A<br />
"generosidade", como mera palavra poderia ser até definida, contudo dir-nos-ia muito<br />
pouco sobre as múltiplas possibilidades das diferentes ações que poderiam ser praticadas<br />
por alguém que, de fato e verdadeiramente, fosse generoso. Dito de outra maneira, se<br />
limitarmos a ética a um conjunto de regras de conduta, a ação será imposta de fora, por<br />
algum tipo de coação, mas se a ética for uma forma de ser e de agir, então se trataria de uma<br />
tendência interna, caracterizada por responder, habitualmente, de uma certa maneira,<br />
geralmente virtuosa (Montoya, 2007, p. 180).<br />
Parece-nos que essa intuição aristotélica com relação à virtude abre uma perspectiva<br />
interessante no debate sobre a questão ética, porque, nesse sentido, não se trataria de<br />
"cumprir" uma norma determinada, mas viver de uma determinada maneira. A virtude,<br />
precisamente pela sua heterogeneidade múltipla de ação, não é algo que possa ser cumprido,<br />
mas algo que pode ser desenvolvido, afirmado, estendido para outros campos ou, pelo<br />
contrário, pode diminuir, debilitar-se ou, inclusive, perder-se... Trata-se de uma mudança de<br />
perspectiva: não se trata de compreender as ações como cumprimento (ou não) das normas<br />
jurídicas, mas de expressões de um caráter, de revelações de um modo de ser, que é preciso<br />
antes "ler" do que julgar (Montoya, 2007, p. 180).<br />
Macbeth, peça de Willian Shakespeare em cinco atos, pode certamente ser lida como o<br />
drama das palavras e das paixões; de como podemos fazer coisas com as palavras e,<br />
principalmente, de como as palavras podem fazer coisas conosco. Shakespeare mostra aqui a<br />
intrincada economia que existe entre as palavras e as paixões, revelando a "matéria" de que<br />
somos feitos e o "modo" como operamos. Entre logos e pathos, entre palavra e paixão, somos<br />
e nos movemos, para o Bem ou para o Mal. Cabe, pois à inteligência, à "inteligência das<br />
palavras" como escrevia Pascal (Pascal, 1670/1973, p. 84.), discernir e decidir se,<br />
efetivamente, é tudo igual.<br />
Referências<br />
Aristóteles. (1959). Arte retórica e arte poética (A. P. Carvalho, Trad.). São Paulo: Difel.<br />
(Original do séc. IV a.C.).<br />
Aristóteles. (1973). Ética a Nicômaco (L. V. Valandro, Trad.). São Paulo: Abril Cultural (Os<br />
Pensadores, Vol. II). (Original do séc. IV a.C.).<br />
Bettetini, G. & Fumagalli, A. (2001). Lo que queda de los medios: ideas para una ética de la<br />
comunicación. Pamplona, Espanha: Eunsa.<br />
Bíblia. (1981). Bíblia de Jerusalém (S. M. Barbosa et al., Trads.). São Paulo: Paulus.<br />
Larrosa-Bondía, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira<br />
de Educação, 19, 20-28.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
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Gallian, D. M. C. & Ruiz, R. (2012). O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de<br />
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Nussbaum, M. C. (1995.). Poetic justice: the literary imagination and public life. Boston: Beacon<br />
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Pascal, B. (2002). Pensamentos. S.l: Ngarcia. (Original publicado em 1670). Recuperado em 20<br />
de abril, 2012, de http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/pascal.html<br />
Shakespeare, W. (2004). Macbeth (M. Bandeira, Trad.). São Paulo: Paz e Terra (Coleção<br />
Leituras). (Original publicado em 1623).<br />
Notas sobre os autores<br />
Dante Marcello Claramonte Gallian é professor de História da Medicina para o curso<br />
médico da UNIFESP, de História e Filosofia das Ciências e Bioética para os cursos biomédico<br />
e de enfermagem da mesma universidade. Participa como professor-orientador dos<br />
Programas de Pós-Graduação Ensino em Ciências da Saúde do CEDESS da UNIFESP e<br />
Saúde Coletiva do Departamento de Medicina da UNIFESP. Suas linhas de pesquisa são<br />
História das Ciências da Saúde e da Medicina, Humanidades e educação em Ciências da<br />
Saúde e História Oral. Contato: dante.cehfi@epm.br<br />
Rafael Ruiz Gonzalez é professor adjunto de História da América da Universidade<br />
Federal de São Paulo e desenvolve o Projeto Direitos e Justiça nas Américas, aprovado pela<br />
FAPESP. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando<br />
principalmente nos seguintes temas: legislação indigenista, união das Coroas, jesuítas em São<br />
Paulo e Guairá, política da coroa espanhola, catequese e Francisco de Vitoria. Contato:<br />
rafael.ruiz@unifesp.br<br />
Data de recebimento: 02/05/2012<br />
Data de aceite: 20/08/2012<br />
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
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Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.<br />
Memorandum, 23, 210-227. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
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A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar<br />
Bergman<br />
The finitude as awareness of death in The Seventh Seal by Ingmar Bergman<br />
Luciana Helena Mussi<br />
Beltrina Côrte<br />
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a finitude e sua contextualização histórica<br />
através do filme O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. Discute a visão do cineasta,<br />
especialmente a existência humana tendo como eixo condutor uma reflexão sobre<br />
envelhecimento e morte, questões ligadas ao sentido da vida. Utilizamos a pesquisa<br />
documental e bibliográfica, convidando autores a dialogarem com uma arte expressa por<br />
imagens e palavras, útil e pertinente quando se estuda temas angustiantes como finitude<br />
e envelhecimento. Bergman, a partir da sua própria perspectiva existencialista, trabalha<br />
questões como a manipulação da fé pela Igreja, a exploração da ideia da peste como<br />
castigo divino e a expiação dos pecados pela dor. A investigação realizada cumpre seu<br />
objetivo, mostra que a arte que se faz através do cinema se resume na busca do<br />
conhecimento como chave para a compreensão das inquietudes do que representa o<br />
morrer para um Ser Finito, independente da velhice.<br />
Palavras-Chave: envelhecimento; morte; cinema<br />
Abstract<br />
This paper aims at reflecting on the finitude and its historical contextualization through<br />
the movie The Seventh Seal by Ingmar Bergman. It discusses the view of the filmmaker,<br />
especially human existence, having as a guide axis a reflection on aging and death, issues<br />
related to the meaning of life. We use documentary and bibliographical research, inviting<br />
authors to dialogue with an art expressed through images and words, useful and relevant<br />
when studying distressful topics such as finitude and aging. Bergman, from his own<br />
existentialist perspective, works issues such as the manipulation of faith by the Church,<br />
the exploration of the idea of plague as divine punishment and atonement for sins<br />
through pain. The investigation fulfills its purpose, shows that the art made through the<br />
cinema summarizes itself in the searching of knowledge as the key to understanding the<br />
disquietude of what means the dying for a Finite Being, regardless of age.<br />
Keywords: aging; death; cinema<br />
Introdução<br />
Nas últimas décadas as "velhices e envelhecimentos" vêm ocupando cada vez mais as<br />
telas do cinema. Um envelhecimento que até então ocupava um lugar muito reservado nos<br />
lares brasileiros passou a ser público, aproximando-nos do estranhamento do envelhecer, da<br />
nossa própria finitude e do inexorável fim de todos nós. Estudando essas questões, este<br />
trabalho tem como objetivo refletir sobre a finitude e sua contextualização histórica através<br />
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Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.<br />
Memorandum, 23, 210-227. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/mussicorte01<br />
do filme O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. Discute a visão do cineasta, especialmente a<br />
existência humana tendo como eixo condutor uma reflexão sobre envelhecimento e morte,<br />
questões ligadas ao sentido da vida. Acredita-se que esta pesquisa atinge seu objetivo: tem<br />
relevância teórica, prática e social, contribuindo com subsídios para a compreensão das<br />
inquietudes do que representa o morrer para um Ser Finito, independente da velhice.<br />
O Sétimo Selo, filme do cineasta sueco Ingmar Bergman, descreve a parábola do<br />
cavaleiro medieval, Antonius Block (Max Von Sydow) que, no momento em que está<br />
voltando para casa com seu fiel escudeiro Jons (Gunnar Björnstrand), após um grande<br />
período de ausência, no qual estivera lutando nas cruzadas, encontra o país devastado pela<br />
morte e pela peste. Subitamente, nesta jornada, Block é surpreendido com a visita da Morte<br />
(Benget Ekerot), que quer levá-lo, considerando que seu tempo na Terra acabou. Uma figura<br />
lúgubre, com seu manto negro, fala ríspida e tranquila, acaba desafiada por este cavaleiro a<br />
um jogo de xadrez, concedendo assim, o adiamento da sua sentença, em um cenário muito<br />
íntimo e já visto através dos murais do famoso pintor medieval sueco, Alberto Pictor<br />
(Hessen, 1440 -1507).<br />
Na viagem pela terra natal, retornando para casa, cavaleiro e escudeiro encontram o<br />
ingênuo, mágico e "santo casal" de saltimbancos, Jof, Mia e o bebê; o dono da companhia de<br />
teatro, o embusteiro Skat; Plog o ferreiro traído e sua infiel esposa Lisa; um padre entre<br />
tantos fanáticos, ladrões e patifes como Ravel e a entristecida Karin, aquela que espera a<br />
volta do marido, o cavaleiro Block. No fim, todos serão arrebanhados pela Morte, mas<br />
"alguns" terão, ainda, uma chance de vida.<br />
A cena de abertura do filme dá o tom: antes de qualquer imagem, a música sentida e<br />
cantada em Carmina Burana de Carl Orff com "Dies Irae" 1 , começando solene. Segundo<br />
Bergman (1996), Carmina Burana tem como base canções de viajantes medievais, dos anos da<br />
peste e da guerra, quando uma multidão sem teto percorria o país, estudantes, monges,<br />
padres e saltimbancos compondo canções que se ouviam nas festas religiosas e nas feiras.<br />
A morte retratada na tela negra de O Sétimo Selo ocupa nossa visão e, logo, um clarão<br />
acompanhado por um coro. Em seguida, outro clarão que vai definindo o tenebroso céu<br />
claro-escuro. Uma águia paira no céu, como se flutuasse numa maré calma de fim de tarde. A<br />
introdução de O Sétimo Selo aterroriza e deslumbra ao mesmo tempo, anunciando a história<br />
que será contada.<br />
Uma certa voz previne a todos, pobres seres mortais e finitos: "Quando o Cordeiro<br />
abriu o sétimo selo houve um silêncio no céu por cerca de meia hora. Eu vi sete anjos diante<br />
de Deus e a eles foram dadas sete trombetas".<br />
No livro do Apocalipse de João, capítulo 8 2 , o sétimo selo revela que sete anjos<br />
prenunciarão a derrocada da humanidade.<br />
1 Dies Irae (A Ira de Deus) foi composta na 2 a metade do século XIII, é associada às missas dos mortos.<br />
2 Web Site: http://www.estudosdabiblia.net/b09_16.htm.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ mussicorte01
Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.<br />
Memorandum, 23, 210-227. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/mussicorte01<br />
Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia<br />
hora.<br />
Então vi sete anjos diante de Deus e a eles foram dadas sete trombetas.<br />
Veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar, com um incensário de ouro, e<br />
foi-lhe dado muito incenso para oferecê-lo com as orações de todos os santos<br />
sobre o altar de ouro que se acha diante do trono;<br />
e da mão do anjo subiu à presença de Deus o fumo do incenso, com as<br />
orações dos santos.<br />
E o anjo tomou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E<br />
houve trovões, vozes, relâmpagos e terremoto.<br />
Então os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para tocar.<br />
Bergman (1996), em "Imagens", confessa, justificando a existência de O Sétimo Selo:<br />
Naquele tempo eu vivia com uns restos estiolados de uma fé de criança, a<br />
ideia absolutamente ingênua do que se poderia chamar uma possibilidade<br />
de salvação para além deste mundo. Minha convicção atual começava<br />
também a se manifestar. Segundo ela, o ser humano tem dentro de si sua<br />
própria Santidade, que é deste mundo e não tem explicação fora dele. Daí<br />
haver no filme esse resto de uma fé sincera, infantil, isenta de neurose,<br />
conjugando-se com uma concepção mordaz e racional da realidade.<br />
O "Sétimo Selo" é, definitivamente, a expressão de uma das últimas ideias e<br />
manifestações de fé que eu herdara de meu pai e que alimentara desde a<br />
infância.<br />
Quando fiz o filme, as orações eram realidades em minha vida. Rezar, para<br />
mim, era um ato absolutamente natural.<br />
Com o filme "Através de um espelho" pus termo a essa herança. Nesse filme<br />
mantém-se a tese de que todo conceito divino, que é obra do homem, tem<br />
necessariamente de ser o conceito de um monstro. Um monstro com dois<br />
rostos ou, como a personagem Karin diz: "o deus-aranha" (pp. 234-235).<br />
Ele conta que, frequentemente, ia a igrejas com seu pai. Numa igreja em Uppland<br />
(Suécia), em algum lugar na nave central há uma obra de Albertus Pictor. A pintura retrata a<br />
morte: a morte jogando xadrez com um cavaleiro.<br />
Para o cineasta, o cerne de O Sétimo Selo é o medo insano da morte, um tormento, um<br />
sofrimento sem dimensão. Tudo relacionado à morte era horrível. Do horror e do temor da<br />
bomba atômica, surgiu a história sobre a peste e a viagem de volta dos dois cavaleiros. E é<br />
claro que havia toda a questão representada pela religião, como "Existe Deus? Não existe<br />
Deus?" O Sétimo Selo não traz uma resposta para esta questão. O Deus de Bergman estava<br />
silencioso. Apesar disto, o cavaleiro Antonius Block, clamava por conhecimento, respostas<br />
para o enigma de uma existência não compreendida.<br />
Desenvolvimento<br />
Deitado nas pedras com sua espada, o mar à frente e um tabuleiro de xadrez ao seu<br />
lado, o cavaleiro tem um olhar perdido, talvez em alguma batalha sem propósito. Seu fiel<br />
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escudeiro, Jons, com uma faca em punho, largado nas pedras, quase morto, finalmente se<br />
movimenta. Dois cavalos pretos no mar aguardam seus donos. Block caminha até o mar, se<br />
banha rapidamente, Jons, tenta rezar, mas não consegue. Subitamente Block é surpreendido<br />
com a aparição de uma figura um tanto estranha:<br />
- Block: Quem é você?<br />
- O Estranho: Eu sou a Morte.<br />
- Block: Você veio me buscar?<br />
- A Morte: Ando com você há muito tempo.<br />
- Block: Eu sei.<br />
- A Morte: Está preparado?<br />
- Block: Meu corpo está, mas eu, não. (O abraço da Morte se aproxima.)<br />
- Block: Espere.<br />
- A Morte: Está bem, mas não posso adiar.<br />
- Block: Você joga xadrez?<br />
- A Morte: Como sabe?<br />
- Block: O Cavaleiro: Eu já vi nas pinturas.<br />
- A Morte: Posso dizer que jogo muito bem.<br />
- Block: Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me deixará em paz. Jogue<br />
com as pretas.<br />
- A Morte: Muito apropriado, não acha?<br />
Essa "Morte" retratada por Bergman é misto de palhaço e caveira. Pode-se zombar<br />
desta figura tão ameaçadora e ao mesmo tempo tão engraçada? Quem permitiu tão estranha<br />
aparição? Só mesmo um palhaço ou a morte chegam assim, inesperadamente, sem convite.<br />
Fazendo-a, quase, um palhaço, Bergman sentia que exercia algum tipo de controle sobre ela e<br />
nada melhor do que o desafio do xadrez, um jogo que exige concentração e o conhecimento<br />
da alma de seu oponente. Neste início a Morte é desafiada, num contrato, numa negociação<br />
firmada entre Vida e Morte e entre eles a negociação do tempo, a consciência da finitude, da<br />
passagem dos segundos, minutos, horas (talvez)...<br />
Assim, o cavaleiro aceita as regras do jogo, ele quer viver, prolongar o máximo que<br />
puder sua estada. Otto Lara Resende 3 citado por Figurelli (2005), ainda argumenta: "terá ele<br />
a oportunidade de ver que, "sem a morte, a vida não teria o menor sentido" (p. 130).<br />
Acionado o cronômetro, com o tempo correndo, Block e Jons seguem viagem. No<br />
retorno para casa, seu fiel escudeiro Jons, canta, provocando seu senhor: "- Entre as pernas<br />
de uma prostituta está o conforto para um homem como eu. Deus está lá em cima, ele está<br />
tão longe, mas o seu irmão diabo encontramos por todos os lados."<br />
Na realidade, ele se refere à peste, à morte, ao fim, que acabarão encontrando pelo<br />
percurso; a morte eloquente, mas melancólica, que muito diz na sua mudez. Lá longe está<br />
um Deus, calado, inacessível.<br />
Block permanece em silêncio. Qualquer palavra falada representa perigo. Os dois<br />
param durante o percurso, precisam de informação para chegar ao destino.<br />
' Otto de Oliveira Lara Resende (São João Del-Rei, 1922 — Rio de Janeiro, 1992) foi jornalista e escritor brasileiro.<br />
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"- Jons fala a um homem que encontra: Como chego à Taverna?"<br />
Como o homem não responde, Jons tenta ver seu rosto. Surpreso, este vê que o homem<br />
já se transformou em um corpo em decomposição. Jons monta seu cavalo, sem nada falar.<br />
"Ela está por todos os lados, caminhamos entre corpos que agonizam, abandonados", pensa<br />
ele.<br />
Num país arruinado pela peste e pelo sofrimento, a Morte está necessariamente<br />
onipresente, ela espreita soberana, cada passo, cada movimento. Uma Morte que, quase,<br />
pode ser tocada, aquela que tem e conhece o vazio das almas que esperam. Bergman usa a<br />
imagem significante da luta travada numa partida de xadrez para descrever sua própria<br />
suposição pessoal sobre Deus e religião. Utilizando a peste e o flagelo, ele oferece reflexões<br />
sobre as crenças religiosas de cada um, com a aceitação da infecção - a morte contagiosa - e<br />
da predestinação de suas vidas, de formas variadas: dependendo de suas inclinações<br />
espirituais e de seu relacionamento com o Deus - que eles entendem como criador,<br />
instigador de todos os acontecimentos e salvador - e com o demônio, que deve ser derrotado<br />
e banido (Frost-Sharratt, 2009).<br />
Bergman (1996) conta que na realização de O Sétimo Selo ainda se sentia preso na<br />
problemática religiosa. O filme apresenta dois conceitos que se exprimem cada um na sua<br />
própria linguagem: de um lado um armistício relativo entre a crença religiosa, de menino, e<br />
um rude racionalismo, de adulto. Depois a ideia de que o Homem é um ser sagrado,<br />
retratado através do casal de saltimbancos, Jof e Mia:<br />
Jof e Mia são, para mim, uma imagem importante, pois, mesmo excluindo a<br />
teologia, sua natureza divina persiste. O filme também mostra uma atitude<br />
amistosa quanto à imagem da família: é a criança que vai conseguir o<br />
milagre. Graças a ela, a oitava bola que o malabarista atira para cima vai<br />
ficar parada, no ar, uma fração de segundo. Em O Sétimo Selo nada é<br />
mesquinho. (pp. 233-234)<br />
Na visão do cineasta, cabe à criança conseguir o milagre da vida. "Nada é mesquinho<br />
neste filme" porque todos os medos e desejos estão presentes numa constrangedora<br />
exposição, é como se os sentimentos de Bergman estivessem à flor da pele, em carne viva, ele<br />
se desnuda cruelmente diante das câmeras.<br />
Neste retorno ao lar, Block e Jons passam pelos saltimbancos (Jof, Mia, o bebê e Skat).<br />
Mais tarde todos os personagens, pecadores e não pecadores, inocentes e culpados se<br />
encontrarão. Quem será poupado?<br />
Mas a visão, apenas o ingênuo Jof tem. Assim acontece a aparição divina da Virgem<br />
Maria com seu bebê. Ela usa uma coroa dourada e um manto azul com flores. Está descalça,<br />
tem mãos pequenas e ensina um bebê a caminhar. Com lágrimas nos olhos de um pobre<br />
saltimbanco com a imagem da santa, vemos a expressão da vida. Então, houve um silêncio<br />
que se espalhou por toda parte, pelo céu e pela terra.<br />
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Bergman (1996), sobre as visões divinas de seu personagem Jof, analisa os filmes O<br />
Sétimo Selo e Fanny e Alexander, comparando os personagens centrais:<br />
Jof é um personagem que antecede a do rapazinho de "Fanny e Alexander".<br />
Alexander se zanga porque, apesar de ter medo deles, é obrigado a conviver<br />
constantemente com fantasmas e demônios. Por outro lado, não pode deixar<br />
de contar suas histórias inventadas, fazendo isso para se dar ares de<br />
importante. Jof é ambas as coisas: um fanfarrão e um visionário. Jof e<br />
Alexander são, por sua vez, parentes do menino Bergman. É que eu, quando<br />
criança, vi, é certo, muitas coisas, mas em geral eu mentia. E quando as<br />
visões não bastavam, inventava-as (p. 236).<br />
Na longa jornada, Block e Jons seguem viagem. O sino da igreja toca. Eles param. Jons<br />
encontra um pintor na igreja e inicia uma conversa, será o "falar alegórico" sobre a "temida".<br />
- Jons: O que isto representa?<br />
- Pintor: A Dança da Morte.<br />
- Jons: E esta é a Morte?<br />
- Pintor: Sim, ela dança com todos.<br />
- Jons: Por que você pinta isso?<br />
- Pintor: Para todos lembrarem que morrerão.<br />
- Jons: Não vão olhar a pintura.<br />
- Pintor: Claro que vão. Um crânio é mais interessante do que uma mulher<br />
nua.<br />
- Pintor: É incrível, mas as pessoas acham que a peste é um castigo de Deus.<br />
E aquelas que se consideram escravas do pecado se flagelam pela glória de<br />
Deus.<br />
Para o assustado Jons, a pintura sugere o próprio medo das pessoas em relação à<br />
danação. Morin (1951/1997) afirma ironicamente, referindo-se ao cristianismo, que Deus<br />
nasce e vive da noção de morte: "A religião é determinada unicamente pela morte. Cristo<br />
irradia em torno da morte, só existe para e pela morte, traz consigo a morte e vive da morte"<br />
(p. 194).<br />
O historiador Philippe Ariès (1975/1989) expõe a morte e o modo como foi vivenciada<br />
pelo homem em cada época, a partir da sua obra História da Morte no Ocidente. Para o autor,<br />
houve um longo período na história, no qual as mudanças no modo como a morte era<br />
percebida ocorriam muito lentamente e eram quase imperceptíveis. A vivência da morte se<br />
dava em família, era a chamada "morte domada". Acreditava-se no destino coletivo e<br />
aceitava-se a ordem natural das coisas, pois a socialização não separava o homem da<br />
natureza. Era o mundo dos vivos e dos mortos ligados por uma relação quase simbiótica e<br />
aos mosteiros cabia o papel de interceder junto ao "além" em favor da sociedade.<br />
É no século XV, segundo Ariès, que a morte passa a estar profundamente ligada a<br />
"morte física, carniça e podridão, a morte macabra".<br />
No século XIV é visível a preocupação em esculpir com realismo as feições do morto<br />
enquanto vivo, para ser identificado como tal e perpetuada a sua memória, originando a<br />
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procura da verossimilhança no retrato. Em meados deste século, esta tendência e a reflexão<br />
sobre a morte, aliada ao progresso nos estudos anatômicos, conduz à representação do corpo<br />
mirrado do morto, envolto num lençol ou nu, como cadáver em decomposição, revelando a<br />
consciência da precariedade do corpo e da perenidade do espírito, além do gosto pelo<br />
mórbido.<br />
Nenhuma outra época, como a do declínio da Idade Média, se atribuiu tanto valor ao<br />
pensamento da morte. Segundo Huizinga (1924/1985), a queixa sem fim da fragilidade da<br />
glória terrena era cantada em várias melodias: Onde estão agora aqueles que, em dado<br />
momento, encheram o mundo com suas vidas? Quão angustiante é a constatação da beleza<br />
humana reduzida a decrepitude. A inevitável dança da morte com Hades (o soberano do<br />
mundo inferior), democraticamente, arrastando homens de todas as condições e idades.<br />
No transcorrer do século XV, dois tempos convivem paralelamente: o tempo da igreja,<br />
regido pelo sino, pela oração, dom inseparável do homem, e o tempo laico, organizado<br />
matematicamente pelo relógio, pelos marcadores humanos.<br />
O século XIV, cenário de O Sétimo Selo, assinala o apogeu da crise do sistema feudal,<br />
representada pelo trinômio "guerra, peste e fome", que juntamente com a morte, compõem<br />
simbolicamente os "quatro cavaleiros do apocalipse" no final da Idade Média.<br />
O homem que lutava pelas Cruzadas, na chamada guerra santa, via seu país devastado<br />
pela peste e começava a questionar sua fé. Bergman desenvolve essa ideia apresentando<br />
diversos elementos do sistema simbólico medieval a partir da sua própria perspectiva<br />
existencialista: questões delicadas, como a manipulação da fé pela Igreja, a exploração da<br />
ideia da peste como castigo divino e a expiação dos pecados pela dor que, inclusive, motivou<br />
um movimento popular em 1348, conhecido como flagelantes - representado em uma das<br />
cenas célebres do filme.<br />
Numa visão crítica, Elias (1982/2001) ressalta a visão romântica da morte entendida<br />
por Ariés na interpretação dos dados históricos, especialmente quando fala ter havido um<br />
tempo em que a relação do ser humano com a morte era calma e revestida de serenidade.<br />
Pontua a presença do tormento e da angústia como algo que sempre permeou a relação do<br />
ser humano com a morte, pois está implicada na consciência da morte:<br />
O certo é que a morte era tema mais aberto e frequente nas conversas na<br />
Idade Média do que hoje. A literatura popular dá testemunho disso. Mortos,<br />
ou a Morte em pessoa, aparecem em muitos poemas. Em um deles, três<br />
vivos passam por um túmulo aberto e os mortos lhes dizem: "O que vocês<br />
são, nós fomos. O que somos, vocês serão." Em outro, a Vida e a Morte<br />
discutem. A Vida se queixa de que a morte está maltratando seus filhos; a<br />
Morte ostenta seu sucesso. Em comparação com o presente, a morte naquela<br />
época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar.<br />
Isso não quer dizer que fosse mais pacífica. Além disso, o nível social do<br />
medo da morte não foi constante nos muitos séculos da Idade Média, tendo<br />
se intensificado notavelmente durante o século XIV. As cidades cresceram. A<br />
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peste se tornou mais renitente e varria a Europa em grandes ondas.<br />
Pregadores e frades mendicantes reforçavam tal medo. Em quadros e<br />
escritos surgiu o motivo das danças da morte, as danças macabras. Morte<br />
pacífica no passado? Que perspectiva histórica mais unilateral! (p. 21).<br />
Com a angústia da morte na alma, Block se refugia na igreja diante de Cristo na cruz, o<br />
sino toca. Block avista um "suposto" padre no confessionário e caminha em sua direção.<br />
- Block: Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O<br />
vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e<br />
sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele.<br />
Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias.<br />
- Padre: Agora quer morrer?<br />
- Block: Sim, eu quero.<br />
- Padre: E pelo que espera?<br />
- Block: Pelo conhecimento.<br />
- Padre: Quer garantias?<br />
- Block: Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus?<br />
Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como<br />
podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com<br />
aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de<br />
dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante apesar<br />
de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser<br />
uma falsa realidade eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?<br />
- Padre: Sim, ouvi.<br />
- Block: Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda<br />
as mãos para mim, que mostre Seu rosto, que fale comigo.<br />
- Padre: Mas Ele fica em silêncio.<br />
- Block: Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.<br />
- Padre: Talvez não haja ninguém.<br />
- Block: A vida é um horror. Ninguém consegue conviver com a morte e na<br />
ignorância de tudo.<br />
- Padre: As pessoas quase nunca pensam na morte. Mas um dia na vida<br />
terão de olhar para a escuridão. Sim, um dia.<br />
- Block: Eu entendo. Temos de imaginar como é o medo e chamar esta<br />
imagem de Deus.<br />
- Padre: Está nervoso.<br />
- Block: A morte me visitou esta manhã. Jogamos xadrez. Ganhei um tempo<br />
para resolver uma questão urgente.<br />
- Padre: Que questão?<br />
- Block: Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem<br />
sentido ou ligações. Uma vida sem sentido. Não falo isto com amargura ou<br />
reprovação como fazem as pessoas que vivem assim. Quero usar o pouco<br />
tempo que tenho para fazer algo bom.<br />
- Padre: Por isso jogou xadrez com a Morte?<br />
- Block: Ela tem táticas inteligentes, mas até hoje não perdi para ninguém.<br />
- Padre: Como vencerá a Morte no seu jogo?<br />
- Block: Tenho uma jogada com o bispo e o cavalo que ele não conhece.<br />
Quebrarei sua defesa. (Finalmente, "O Padre" revela sua verdadeira<br />
identidade: "A Morte")<br />
- A Morte: Lembrarei disto. (Block se assusta ao perceber que foi enganado)<br />
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- Block: Você é um traidor [referindo-se à Morte] e me enganou. Mas nos<br />
encontraremos de novo, e eu acharei uma saída.<br />
- A Morte: Nos encontraremos e continuaremos nosso jogo.<br />
(A Morte se retira, Block fica sozinho e pensa)<br />
Somos velhos porque o tempo é implacável, nos transforma e não no sentido de sermos<br />
vítimas de um passar dos anos maldito! Envelhecer é da vida, é parte e não fim. Como diz<br />
Concone (2007) em 'Medo de envelhecer ou de parecer?', "A morte aterroriza-nos e a<br />
passagem dos anos aproxima-nos dela. Parafraseando Marx, estamos habituados a pensar<br />
(ou teorizar) sobre a 'morte em si', dificilmente sobre a morte 'para si'. Negar o idoso de<br />
carne e osso seria negar a finitude" (p. 21).<br />
O diálogo entre Block e o "suposto" Padre - Morte mostra que não há como escapar do<br />
fim, não há saída, entretanto o conhecimento que o cavaleiro tanto implora pode, justamente,<br />
estar neste silêncio provocativo de Deus. Provocativo porque obriga o homem a olhar para<br />
dentro de si e buscar respostas que não estão fora, mas podem estar num processo de vida<br />
que inclua constantes nascimentos e mortes.<br />
Caminhamos na direção da morte, os centímetros da régua dos anos diminuem a cada<br />
dia e nisto também reside um sopro, um desejo alucinante de vida. Mas Block não<br />
compreende, talvez porque se sinta um eterno pecador e queira justificativas, respostas<br />
prontas ou conhecimento do que não lhe é permitido saber, como ele mesmo diz, para um<br />
enigma que está na alma. E se nesta alma reside Deus, quem pode saber? O Deus de Block<br />
não está acessível.<br />
Grün e Müller (2010), citando Jung, afirmam que a alma é uma instância curadora que<br />
opera em nós silenciosamente, é "força movente, força vital" (p. 18). Ela assume a direção de<br />
nossa vida quando falha o nosso eu consciente. Ela constitui uma referência para nosso<br />
mundo religioso.<br />
Jung (1944/1991) em sua compreensão da alma, recorre sempre a representações<br />
mitológicas e religiosas. No capítulo Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia<br />
em Psicologia e alquimia, volume XII das Obras Completas, o autor diz:<br />
Assim como o olho corresponde ao sol, a alma corresponde a Deus. E, pelo<br />
fato de nossa consciência não ser capaz de aprender a alma, é ridículo falar<br />
acerca da mesma em tom condescendente ou depreciativo. O próprio cristão<br />
que tem fé não conhece os caminhos secretos de Deus e deve permitir que<br />
este decida se quer agir sobre ele a partir de fora, ou, interiormente, através<br />
da alma (p. 23).<br />
Antonius Block exclama: "A vida é só horror e humilhação. Ninguém pode viver em<br />
face da morte sabendo que tudo é sem sentido".<br />
Há muitas maneiras de lidar com o fato de que todas as vidas, incluindo a nossa e<br />
daqueles que amamos, têm um fim. O fim da vida humana que chamamos de morte pode ser<br />
interpretado pela ideia de uma outra vida no reino de Hades, Deus do mundo inferior e dos<br />
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mortos, pela mitologia grega ou segundo a mitologia nórdica, no Valhalla, local onde os<br />
guerreiros vikings eram recebidos após terem morrido, com honra, em batalha. Nós, seres<br />
humanos, enfrentamos nossa própria finitude, tocados pelos conceitos de Inferno ou Paraíso<br />
que vieram dos antigos, conceitos estes que viajaram através dos tempos e formam<br />
atualmente nossa ideia de fim.<br />
Outra possibilidade seria assumir a crença inabalável em nossa própria imortalidade,<br />
"os outros podem morrer, eu não". A questão é: somos impotentes diante da mortalidade e<br />
morremos em qualquer fase da nossa breve ou longa vida.<br />
Pessini (2009) lembra que a morte sempre nos visita, mansamente, espreita pela vida,<br />
desde cedo, talvez desde sempre. Ela se apresenta através das perdas de nossos entes<br />
queridos, e porque não dizer de todas as transformações sofridas, mortes subjetivas de partes<br />
de todos nós, que obriga a refletir sobre nossa finitude.<br />
O olhar do cavaleiro, como um alter-ego de Bergman, expressa seu terrível horror a<br />
morte, mas principalmente a inquietante certeza de que se morresse, não existiria mais, sua<br />
total impotência diante da falta de controle sobre esse morrer, tão pouco palpável,<br />
desconhecido, silencioso. Essa consciência da morte, do nada, o aterroriza.<br />
Assim Bergman (1996) afirma:<br />
Que eu, de repente, tenha tido a coragem de dar à Morte a figura de um<br />
palhaço branco, personagem essa que conversava, jogava xadrez e não<br />
arrastava consigo quaisquer segredos, foi o primeiro passo em minha luta<br />
contra o horror que sentia da morte (p. 238).<br />
Block pensa: "Esta é minha mão. Posso mexê-la. O sangue pulsa nela. O sol está alto no<br />
céu e eu, Antonius Block jogo xadrez com a Morte". Na cena seguinte seu fiel escudeiro Jons<br />
aparece, novamente, conversando com o Pintor.<br />
- Jons: Eu e meu senhor acabamos de voltar. Você me entende, pintor?<br />
- Pintor: A Cruzada?<br />
- Jons: Exatamente. Passamos 10 anos na Terra Sagrada sendo mordidos por<br />
cobras, mosquitos e animais selvagens, assassinados por pagãos,<br />
envenenados pelo vinho, infestados por piolhos que nos devoravam, e a<br />
febre que matava. Tudo pela glória de Deus. A Cruzada foi uma tolice que<br />
só um idealista inventaria. (Eles riem às gargalhadas). E a peste foi horrível.<br />
Sou o escudeiro Jons. Desprezo a morte, zombo de Deus, rio de mim mesmo<br />
e sorrio para as mulheres. Meu mundo é meu, e só acredito em mim mesmo.<br />
Ridículo para todos, até para mim mesmo, sem sentido para o Céu e<br />
indiferente para o inferno.<br />
Jons se rebela pelo tempo perdido nas Cruzadas, para ele uma luta inglória por um<br />
Deus que não se revela, só oferece a morte, a desgraça e o sofrimento. Por isso ele diz que<br />
zomba de Deus e se delicia nos prazeres da carne, é a compensação por tanta humilhação e, o<br />
principal, por um tempo e uma vida que não retornam.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ mussicorte01
Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.<br />
Memorandum, 23, 210-227. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/mussicorte01<br />
Toda a indignação de Jons pode ser resumida trazendo as palavras de Monteiro (2006)<br />
quando diz que "somos fadados a escolher sempre" e diante disto reside o derradeiro<br />
confronto com nossa finitude e a morte. E acrescenta:<br />
Somos seres de passagem. A consciência da finitude e da morte são<br />
realidades estruturais presentes no processo de individuação ou da<br />
constituição de si mesmo. A alma, paradoxalmente, parece ter entre suas<br />
metas a morte e a continuidade da vida. Portanto, para a alma, a morte está<br />
presente como fiel escudeira. (pp. 43-44)<br />
Na sacralidade de uma procissão surge Cristo na Cruz, acompanhado por leprosos,<br />
sacrifícios múltiplos, violência, fanatismo, e tudo em nome de Deus - o martírio dos<br />
flagelantes. O início é marcado pela apresentação dos artistas (Jof, Mia e Skat), numa<br />
inocente maneira de divertir o público do vilarejo. Eles dançam, cantam, brincam e tocam<br />
instrumentos. Mas o contraste é revelado: a alegria dos artistas seguidas de dor, culpa,<br />
desespero e fé dos torturadores: "Eles acreditam que a peste é um castigo de Deus por eles<br />
serem pecadores". Os olhos de Jof e Mia se enchem de espanto, assim como a de todas as<br />
pessoas que veem a procissão. A música comove, fere e ressalta a dor.<br />
Os flagelantes passam por uma porteira carregando imagens e cruzes, sinalizando a<br />
culpa e a penitência. Pobres seres, vestidos como monges, com roupas esfarrapadas, rezam,<br />
gemem, gritam e sofrem ao som dos chicotes. Um padre fala ao povo:<br />
Deus mandou Seu enviado. Silêncio! Todos padecemos com a Morte Negra.<br />
Você aí, parado como um animal bovino e você, sentado com este ar de<br />
auto- complacência. Sabem que pode ser o fim de todos. A morte está atrás<br />
de vocês. Posso ver sua sombra refletindo no sol. Sua ceifeira brilha quando<br />
a levanta sobre suas cabeças. Quem será o primeiro a morrer? Você aí,<br />
olhando feito um tolo, sua boca emitirá seu último gemido antes do<br />
anoitecer. E você, mulher! Que leva uma vida de abundância e luxúria. Irá<br />
murchar e desaparecer antes do amanhecer. E você aí! Com seu nariz<br />
inchado e sorriso de idiota. Tem mais um ano para desgraçar a terra com seu<br />
desprezo. Todos vocês, idiotas e tolos sabem que morrerão! Hoje, amanhã,<br />
depois de amanhã! Estão condenados! Vocês ouviram? Condenados! Senhor,<br />
tenha piedade de nós em nossa humilhação! Não nos castigue, tenha<br />
piedade de nós em nome de Jesus!.<br />
A procissão segue, promovendo atrocidades e promessas de danação eterna, a<br />
verdadeira exploração da fé e como diria Bilharinho (1999), "dos mais tristes atestados da<br />
debilidade, desorientação e desvios humanos" (p. 23).<br />
Entretanto, como diria o mesmo autor, convivendo com estes terríveis aspectos da vida<br />
social, coexistem a alegria e a felicidade, encarnadas no casal de saltimbancos, atores<br />
ambulantes que percorrem estradas e localidades distribuindo esses dons e predicados do<br />
seu humano.<br />
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Com isso Bergman quis mostrar que ainda existe espaço para a celebração da vida<br />
representada por Mia, Jof e o bebê e os sofridos e inconformados viajantes, Block com seu<br />
tabuleiro e Jons com sua justiça.<br />
Bilharinho (1999, p. 24) complementa este quadro de opostos:<br />
De um lado, a maldade, a tristeza, a peste, a ignorância, o fanatismo, as cores<br />
negras, o instável modo de vida. De outro, a luminosidade, a alegria, a<br />
felicidade, o encantamento, o mundo mágico dos puros, dos poetas e dos<br />
artistas. A força da vida e sua continuidade (p. 24).<br />
E na celebração da vida, a refeição é iniciada: uma cena que lembra Cristo e seus<br />
apóstolos. No lugar do pão, os morangos; no lugar do vinho, o leite. Na celebração de Cristo,<br />
um traidor; entre os nossos personagens a Morte. Como bem disse Bergman, nada é<br />
mesquinho em O Sétimo Selo. Emocionado, Block chora a dor da despedida e guarda a mais<br />
calorosa lembrança deste encontro com Jof e Mia<br />
- Block: A fé é uma aflição dolorosa. É como amar alguém que está no escuro<br />
e não sai quando chama. Não me esquecerei deste momento: o silêncio, a<br />
tijela de morangos e o leite. Seus rostos na luz do entardecer. O bebê<br />
dormindo na carroça e Jof com sua canção. Tentarei lembrar do que<br />
dissemos e levar esta lembrança entre minhas mãos com cuidado, como se<br />
fosse uma tijela cheia de leite. Isto será um símbolo para mim e uma grande<br />
ajuda.<br />
Como menciona Figurelli (2005), "este hino às pequenas alegrias do cotidiano precede<br />
a realização de mais um lance de xadrez entre o cavaleiro e o Anjo da Morte, após a<br />
horrorífica travessia da floresta" (p. 132).<br />
Juntos, o grupo segue viagem, pensativos e amedrontados, cada qual rumo ao seu<br />
próprio confronto. Param para um breve descanso, olham o horizonte. Block levanta, se<br />
afasta e vê...a seu lado, a Morte que espreita. Ela diz a Block: "Estive esperando".<br />
Em silêncio, ela os acompanha, mas desta vez decide assombrar o covarde fujão e<br />
pecador, Skat, que se esconde descansando no tronco de uma árvore. De repente...<br />
Skat: - Está cortando minha árvore? Por que está cortando minha árvore.<br />
Poderia pelo menos ter a educação de dizer quem é?<br />
- A Morte: Estou cortando a árvore, pois seu tempo acabou.<br />
- Skat: Não tenho tempo para isto.<br />
- A Morte: Não tem tempo?<br />
- Skat: Tenho uma apresentação.<br />
- A Morte: Foi cancelada, o ator morreu.<br />
- Skat: Não tem um perdão especial para atores?<br />
- A Morte: Não neste caso.<br />
- Skat: Nenhuma alternativa? Nenhuma exceção?<br />
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E a Morte, implacável, continua cerrando a árvore até que... um rato aparece sobre o<br />
toco do tronco recém-cortado. Sabemos com isso que o pecador Skat está morto. Ele teve sua<br />
punição, não houve adiamento da pena, nem concessão especial para atores. Os infiéis<br />
merecem a morte. Ele foi o primeiro a "saber-se finito".<br />
O grupo continua sua viagem pela floresta. Todos têm medo. Jof avisa "As árvores<br />
estão silenciosas, porque não há vento, não há um som sequer, se pudéssemos ouvir uma<br />
raposa, ou uma coruja, ou uma voz humana...além das nossas". A natureza tem medo. Todos<br />
estão assustados e se entreolham. Passa uma jaula com uma jovem e suposta bruxa indo para<br />
a execução.<br />
Ao chegar no local, Block vai ao encontro da jovem:<br />
- Block: Dizem que esteve com o diabo.<br />
- Bruxa: Por que pergunta?<br />
- Block: Tenho um motivo especial. Quero encontrá-lo. Quero perguntar a<br />
ele sobre Deus. Ele deve conhecê-lo mais do que qualquer um.<br />
- Bruxa: Pode vê-lo quando quiser. Faça o que eu mandar. Olhe nos meus<br />
olhos. O que está vendo? O que vê?<br />
- Block: Vejo muito medo nos seus olhos, nada mais. Nada mais.<br />
Bergman na "pele" de Antonius Block discute a existência humana, questões ligadas ao<br />
tão procurado sentido da vida, da imortalidade da alma e a existência de Deus. O angustiado<br />
cavaleiro se aproxima da jovem, supostamente, possuída pelo demônio e insiste: "Quero<br />
perguntar ao Diabo sobre Deus. Pelo menos ele, já que ninguém mais sabe, poderá dizer-me<br />
alguma coisa".<br />
Frankl (1981/2008), em seu livro Em busca de sentido, fala de uma conquista interior,<br />
talvez a chave do enigma existencial que nosso personagem Block tanto procura:<br />
A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permitelhe,<br />
até o último suspiro, configurar a sua vida de modo que tenha sentido<br />
(...) Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá<br />
(p. 90).<br />
Para o inconformado Block o sentido da vida está muito além dele. Como a própria<br />
Morte já disse, respostas fáceis não virão, o sentido da existência se faz e se constrói numa<br />
vida que também é sofrimento. Jons lamenta o destino da jovem:<br />
- Jons: Quem cuida dela? Um anjo, o diabo, Deus, ou é apenas o vazio? O<br />
vazio.<br />
- Block: Não pode ser.<br />
- Jons: Veja os olhos dela. Ela está descobrindo algo. O vazio sob a lua.<br />
Estamos impotentes pois vemos o que ela vê e tememos o mesmo. Pobre<br />
criança. Não posso suportar! Talvez seja o Juízo Final.<br />
Gemidos são ouvidos: - Tem um pouco de água? Preciso de água.<br />
Na verdade, é Raval, o padre traidor que diz que está com a peste.<br />
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- Raval: Estou com medo de morrer! Não quero morrer! Não tem piedade de<br />
mim? Ajudem-me. Pelo menos, falem comigo! Eu vou morrer. Eu...o que<br />
acontecerá comigo? Pelo menos, confortem-me. Não veem que estou<br />
morrendo? Não vão me ajudar? Quero água. Ajudem-me!<br />
Raval grita desesperadamente e morre.<br />
Bergman (1996) conta que esta cena lhe inspirava um misto de fascínio e medo. Atrás<br />
de uma árvore, ao morrer, Raval enterra sua cabeça, ao mesmo tempo em que uiva de pavor.<br />
O mestre lembra, enigmático:<br />
Logo que Raval morre, por qualquer motivo deixei que a câmera<br />
continuasse a filmar e, subitamente, sobre a clareira misteriosa da floresta,<br />
comparável a um palco, cai um pálido raio de luz. O dia inteiro estava<br />
nublado, mas justamente quando Raval morre surge uma luz como se nós a<br />
tivéssemos preparado! (p. 238).<br />
Raval é o segundo que pro va da experiência de "morrer".<br />
Após o fim de Raval, Block levanta a cabeça e vê A Morte, que lhe diz: "Não vamos<br />
terminar nosso jogo?" Ela ameaça-o constantemente.<br />
Subitamente, Jof vê a imagem da Morte e acorda Mia. Vemos que o saltimbanco Jof é<br />
abençoado, novamente, com o dom da visão que o alerta a seguir viagem sozinho com sua<br />
família e não acompanhar o "grupo pecador". A Morte os persegue pela floresta.<br />
Block e a Morte:<br />
- A Morte: Vejo algo interessante.<br />
- Block: O quê?<br />
- A Morte: O xeque-mate será na próxima jogada.<br />
- Block: É verdade.<br />
- A Morte: A demora o deixou feliz?<br />
- Block: Sim.<br />
- A Morte: Fico feliz. Agora o deixarei. Mas no nosso próximo encontro você<br />
e seus amigos terão o seu fim.<br />
- Block: E me contará os segredos.<br />
- A Morte: Não escondo segredo algum.<br />
- Block: Não sabe de nada?<br />
- A Morte com seu olhar penetrante: Não sei de nada.<br />
O que Block talvez, ainda não saiba, é que conhecer os segredos é um dos enigmas da<br />
Vida, as respostas não estão na Morte. O cavaleiro aceita seu fim, resignado, mas não desiste<br />
do conhecimento, das revelações da existência.<br />
Conclusão<br />
Conhecimento implica risco de viver e descobrir os segredos que, muitas vezes, estão<br />
mais próximos dos nossos olhos do que podemos supor. Mas a cegueira do homem seja do<br />
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século XIV ou do mundo contemporâneo é total. Por que não podemos ver a morte como a<br />
natureza vê a si mesma?<br />
Buscando refúgio da "maldita", o grupo chega, finalmente, à casa de Block, ao destino<br />
inevitável. Karim, a mulher dele, os recebe: - Soube pelos cavaleiros que estava voltando.<br />
Esperei aqui, todos os outros fugiram da peste. (Ela sorri). - Não me reconhece mais? (Ele<br />
sorri). - Você também mudou. (Karim se aproxima). - Agora vejo que é você. Em algum lugar<br />
nos seus olhos, em algum lugar no seu rosto, escondido e assustado está o rapaz que deixei<br />
há tantos anos. Mande os seus amigos sentarem. Preparei o café.<br />
(Todos estão à mesa. Esta será a última refeição, a última Celebração da<br />
Vida)<br />
- Karim: Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca<br />
de meia hora.<br />
Então vi sete anjos diante de Deus e a eles foram dadas sete trombetas.<br />
(Alguém bate à porta, Jons levanta para ver)<br />
- Karim continua: O primeiro anjo a tocou e uma chuva de pedras, fogo e<br />
sangue foi lançada sobre a terra e um terço da terra queimou e uma terça<br />
parte das árvores foi queimada e toda pastagem foi queimada. O segundo<br />
anjo tocou e parecia que uma grande montanha em chamas tivesse sido<br />
lançada ao mar. E uma terça parte do mar virou sangue.<br />
O terceiro anjo tocou e do céu, caiu uma grande estrela queimando como se<br />
fosse uma labareda e esta estrela foi chamada de "Absinto".<br />
(Todos olham a porta, a Morte chegou)<br />
- Block: Bom dia.<br />
- Karim: Sou Karim, esposa do cavalheiro. Seja bem-vindo à minha casa.<br />
- Plog: Minha profissão é de ferreiro. E posso dizer que sou muito bom.<br />
Minha esposa Lisa. Cumprimente o senhor. (Ela faz uma reverência)<br />
- Block com as mãos sobre a cabeça: Suplico Sua prece, Senhor. Tenha<br />
misericórdia de nós, Deus. Pois somos pequenos e assustados em nossa<br />
ignorância.<br />
- Jons para Block: Em sua alegada escuridão, onde devemos todos estar, não<br />
há ninguém para ouvir suas lamentações e sofrimentos. Limpe suas lágrimas<br />
e enxergue sua indiferença.<br />
- Block: Deus, que está em algum lugar, deve estar, tenha piedade de nós.<br />
- Jons: É tarde demais para ser absolvido de seus pecados eternos. Mas, neste<br />
último momento, pelo menos sinta o triunfo de enxergar e se mover.<br />
- A jovem governanta se ajoelha diante da morte, sorri e diz: "Chegou a<br />
hora".<br />
Bem longe, estão Mia, Jof e o bebê ouvindo os passarinhos cantarem. Estão<br />
diante do mar.<br />
- Jof: Eu os vejo, Mia, eu os vejo. Lá no céu tempestuoso. Todos eles! O<br />
cavaleiro Block, Jons, Raval, Skat, o ferreiro Plog e Lisa, sua esposa. E a<br />
severa Morte os convoca para dançar. Quer que todos deem as mãos para<br />
formarem uma longa fila. A Morte vai na frente com a foice e a ampulheta<br />
mas Skat vai atrás com sua lira. Eles vão dançando, se distanciando do sol<br />
em uma dança solene. Dançam rumo à escuridão, por sobre a borda de um<br />
precipício distante e a chuva cai nos seus rostos lavando as lágrimas<br />
salgadas da face.<br />
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Considerações Finais<br />
Nas palavras de Bergman, O Sétimo Selo representa "o medo insano da morte". Com<br />
base nesta incômoda afirmação, há que refletir; por que lutar contra a morte? Côrte (2005),<br />
citando o filósofo contemporâneo francês Jean Baudrillard, alerta para uma possibilidade do<br />
pensar inverso: "Cegamente, sonhamos em sobrepujar a morte por meio da imortalidade,<br />
quando o tempo todo a imortalidade é o mais terrível dos destinos possíveis" (p. 255).<br />
Nascer, viver, envelhecer e morrer. Cumpre-se o ciclo, não há como evitar, se assim<br />
não fosse, a dor seria imensa, ver as pessoas passarem, romper através dos séculos, esta é<br />
uma imortalidade que não nos cabe, é uma vestimenta eterna e sofrida, e que assim seja,<br />
brindemos a nossa mortalidade!<br />
Em Todos os Homens são Mortais, Beauvoir (1946/1983) descreve um personagem do<br />
século XIII, o conde Fosca, que atravessa o tempo e chega até nossos dias, questionando a<br />
ambição, o poder, a imortalidade, o prazer, o destino e a transcendência. A imortalidade do<br />
personagem principal "equivale a uma danação pura e simples". Ele está condenado ajamais<br />
compreender a verdade desse mundo finito: o absoluto de toda consciência efêmera. Ele se<br />
sente punido pela imortalidade que recebe, apesar de muito tê-la desejado pela vaidade e<br />
ambição ao poder.<br />
Para o profundo e denso Bergman (1996), com toda sua arte, sempre há um aceno de<br />
esperança, um vislumbre de salvação e isso é "Vida", é o estar aqui, vivendo. Disto sabemos,<br />
já do "Além" nada sabemos.<br />
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Nota sobre as autoras<br />
Luciana Helena Mussi é Engenheira, Psicóloga, Mestre em Gerontologia e<br />
Doutoranda em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />
(PUC-SP). Assistente-Editorial/Revisora da Revista Kairós Gerontologia e<br />
Redatora/Colaboradora do Banco de Vídeos/Filmografia do Portal do<br />
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Envelhecimento, do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (OLHE).<br />
Contato: lh0404@terra.com.br<br />
Beltrina Côrte é Jornalista, Doutora em Ciências da Comunicação pela<br />
Universidade de São Paulo (USP), Pesquisadora/Docente/Orientadora do Programa<br />
de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP e Editora de conteúdo do<br />
Portal do Envelhecimento, do Observatório da Longevidade Humana e<br />
Envelhecimento (OLHE). Contato: beltrina@pucsp.br<br />
Data de recebimento: 22/05/2012<br />
Data de aceite: 03/09/2012<br />
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ISSN 1676-1669<br />
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Berg, S. C. (2012). Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos epistemológicos propostos por<br />
Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de<br />
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/berg01<br />
2<br />
Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos<br />
epistemológicos propostos por Jansen e Qvortrup<br />
Teaching strategies and pedagogical tools according to epistemological models proposed<br />
by Jansen and Qvortrup<br />
Silvia Cabrera Berg<br />
Universidade de São Paulo<br />
Brasil<br />
Resumo<br />
Este artigo tem como objetivo apresentar os modelos epistemológicos propostos por Bo<br />
Jansen e Lars Qvortrup, assim como apresentar estratégias de ensino e ferramentas<br />
pedagógicas adequadas à(s) realidade(s) de ensino de uma sociedade plural e de valores<br />
culturais híbridos dentro de perspectivas de sociedades complexas e hiper complexas.<br />
Palavras-chave: epistemologia, conhecimento; criação; cultura; ensino;<br />
ferramentas pedagógicas<br />
Abstract<br />
This article aims at presenting the epistemological models proposed by Jansens and<br />
Qvortrups as well as presenting teaching strategies and pedagogical tools appropriate to<br />
the teaching reality of a plural society with hybrid cultural values within perspectives of<br />
complex and hiper complex societies.<br />
Keywords: epistemology; knowledge; creation; culture; teaching;<br />
pedagogical tools<br />
Introdução<br />
Á crescente necessidade de se discutir as condições atuais do ensino no Brasil somamse<br />
também a crescente necessidade de questionamento e comparação de modelos para as<br />
estratégias de ensino, assim como ferramentas pedagógicas adequadas à(s) realidade(s) de<br />
ensino de uma sociedade plural e de valores culturais híbridos.<br />
Este artigo tem como objetivos:<br />
1. Apresentar e discorrer sobre as perspectivas teóricas e metodológicas propostas por<br />
Jansen 1 e Qvortrup 2 . A escolha pelos modelos propostos, inicialmente por Jansen que inicia<br />
sua produção já no final da década de 70 e, mais recentemente, por Qvortrup deve-se ao fato<br />
da autora ter participado em Copenhagen de pesquisas e elaboração de análises sobre<br />
modelos para estratégias de ensino, subseqüentes ao lançamento do livro Skolens fremtider<br />
(1997), sob a orientação de Torben Bo Jansen. Os modelos apresentados por Jansen e<br />
Torben Bo Jansen, sociólogo e teórico dinamarquês, precursor dos estudos sobre as sociedades complexas no<br />
norte da Europa.<br />
Lars Qvortrup, Professor do Center for Interaktive Medier, Syddansk Universitet, dekan på Danmarks Pædagogiske<br />
Universitetsskole, rektorfor Danmarks Biblioteksskole.<br />
Memorandum 23, out/2012<br />
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP<br />
ISSN 1676-1669<br />
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/berg01
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Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de 2<br />
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Qvortrup não são modelos específicos de estratégia de ensino para áreas específicas de<br />
conhecimento, nem são delimitados às sociedades escandinavas para as quais foram<br />
originalmente pensados, mas sim modelos estruturais de ensino, portanto, passíveis de<br />
utilização e aplicação em diferentes áreas de ensino, considerando-se as especificidades<br />
inerentes a cada área e passíveis de aplicação em quaisquer sociedades plurais com valores<br />
culturais híbridos.<br />
2. Apresentar modelos para estratégias de ensino escandinavas, que por serem escritos<br />
nas línguas nativas, ainda contam com pouca difusão fora dos países nórdicos, mas que por<br />
sua adaptabilidade estrutural, poderiam ser inseridos dentro da discussão sobre o contexto<br />
de ensino e formação de professores em outras sociedades que não tão somente as<br />
escandinavas para as quais os modelos foram originalmente pensados.<br />
O desafio atual representado pela complexidade<br />
Lars Qvortrup (s.d.) em seu artigo Habilidades e competências na sociedade digital-cognitiva<br />
defende que a complexidade é o principal desafio das teorias de conhecimento<br />
contemporâneas, pensamento este já preconizado pelo teórico e sociólogo Torben Bo Jansen<br />
(1982). A produção de ambos os autores por ser em sua quase totalidade em dinamarquês,<br />
contam com pouca difusão fora dos países escandinavos.<br />
Os modelos de sociedade cognitivos complexos propostos por Jansen trabalham<br />
principalmente com o conceito de sociedade cognitiva, uma sociedade em que grande parte<br />
de sua população procura a realização de valores cognitivos como o interesse por melhor<br />
qualidade de vida, de saúde, melhores condições de ensino, preservação do meio ambiente,<br />
realização pessoal, etc; valores individuais que contribuem para uma maior realização de<br />
valores coletivos, contribuindo assim para o crescimento da sociedade como um todo<br />
(Jansen, 1997a, p. 12). Para que esses valores possam ser realizados, Jansen (1997a) pressupõe<br />
a sistematização de critérios de escolha, e a sistematização de critérios de filtragem de<br />
informação (ante o acesso às informações a que a sociedade digital está sujeita), e a<br />
transferência de conhecimentos antes delimitados a áreas específicas, a soluções<br />
interdisciplinares, de modo que o crescimento individual seja um fator de crescimento<br />
coletivo.<br />
Qvortrup (2000) parte do conceito de sociedade cognitiva, acrescentando o conceito de<br />
sociedade hipercognitiva, que concentra no hiper, mais do que o superlativo, a definição das<br />
relações que se originam nas sociedades digital-cognitivas. Tais relações supõem as<br />
múltiplas opções, e as possibilidades potenciadas do sistema a que um indivíduo é capaz de<br />
se conectar, assim como leva em conta a arbitrariedade com que estas se dão e como se<br />
relacionam com o mundo. A complexidade destas relações, longe de ser um fenômeno<br />
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restrito a sociedades pós-industriais, é um fenômeno global, dada o acesso às informações e a<br />
rapidez com que estas se propagam.<br />
Como decorrência destas relações, o conceito descritivo de cultura, que toma como<br />
ponto de partida idéias, valores, regras e normas, que concebe o conceito de cultura como<br />
sendo delimitado às fronteiras (sejam estas nacionais ou regionais), com a manutenção de<br />
traços comuns, vêm sendo revisto criticamente. Este conceito não se aplica mais às<br />
sociedades complexas, pois para estas, é necessário um conceito necessariamente dinâmico,<br />
capaz de absorver as contradições inerentes à cultura e das relacões que se originam nas<br />
sociedades cognitivas complexas.<br />
Outro aspecto trabalhado por Qvortrup, é a de que a teoria da informação tem no<br />
computador a sua forma básica de lidar com a complexidade. A alimentação básica das redes<br />
digitais permite uma rede de organização e comunicação complexa e flexível a ponto de<br />
corresponder à crescente complexidade social. A nível de organização de empresas, a<br />
complexidade faz com que gestões transformem-se rapidamente a fim de ajustar-se às<br />
estruturas horizontais (e não mais verticais) de decisões; a nível pessoal, o relacionamento<br />
com a complexidade direciona-se à capacidade de buscar, filtrar, usar e transformar as<br />
informações, convertendo-as, dessa maneira, em cadeias de novos conhecimentos.<br />
Com isso, o reverso da medalha dos antigos modelos de trabalho monótonos e<br />
repetitivos, (notadamente da sociedade industrial), cedem lugar à liberdade, mas por um<br />
preço que pode muitas vezes parecer excessivo, uma vez que a liberdade requer constante<br />
reconsideração do rumo a ser tomado, uma crescente pressão psicológica em busca de<br />
mudanças e adaptações, e uma alta produção a velocidades cada vez maiores.<br />
A constatação de que a rede de novos conhecimentos exige socialmente novas formas<br />
organizacionais e, a nível individual, novas competências, aqui definidas como a capacidade<br />
de criar conhecimentos, faz com que consideremos a premência de revisarmos modelos<br />
educacionais e novas maneiras de nos utilizarmos de ferramentas pedagógicas. Requer<br />
também que consideremos que a produção de materiais didático-pedagógicos adequados às<br />
realidades de ensino de sociedades plurais e de valores culturais híbridos seja uma<br />
necessidade crescente.<br />
Cabe ressaltar que o conceito de habilidade está aqui interligado ao conhecimento<br />
factual.<br />
O conceito de competência, à capacidade de produzir conhecimentos e reinterpretá-los<br />
de acordo com a crescente pressão advindas de novas informações e mudanças.<br />
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A sistematização e classificação de competências segundo Qvortrup<br />
Qvortrup (s.d.) aponta a necessidade de uma sistematização e classificação de<br />
competências dentro das necessidades já apresentadas, e sugere o modelo teórico abaixo<br />
descrito:<br />
1. A competência do aprendizado, que na sociedade globalizada está em acelerado<br />
processo de mudança, tem na capacidade de introspecção e no buscar interior, sua<br />
característica básica, uma vez que referências à imutabilidade de normas já não são<br />
mais suficientes para manter o ritmo e a complexidade com que as pressões externas<br />
de acontecimentos e mudanças surgem a nível mundial. Portanto, faz-se<br />
necessário interpretar e transformar constantemente os próprios critérios voltados à<br />
comunicação, observação e ação e, por consequencia, ao aprendizado. Esta é a competência<br />
apontada por Qvortrup capaz de filtrar e direcionar as informacões, de modo que estas<br />
possam ser transformadas em conhecimento.<br />
2. A competência da comunicação, baseada na observação do estranhamento, que para<br />
Qvortrup é uma condição básica para qualquer sistema psicológico ou social, que existe em<br />
virtude da diferenciação entre o eu e o mundo externo, e que em uma sociedade hiper<br />
complexa, caracteriza-se tanto pelo número crescente de diferentes situações<br />
e relações externas, quanto pela capacidade de se colocar no lugar do outro, estabelecendo<br />
relações de comunicação, agora de outra natureza, uma vez que as bordas destas relações são<br />
flexíveis e mutáveis. A capacidade de se relacionar a isso a partir de um conhecimento, por<br />
um lado, daquilo que é pertinente, e por outro, pelo estranhamento, constitui-se na segunda<br />
competência básica de uma sociedade hiper complexa proposta pelo autor.<br />
3. A competência de formulação é aqui apresentada como a capacidade<br />
baseada na observação da observação, isto é, a capacidade de observar e apontar os<br />
valores comuns de uma determinada sociedade ou coletividade, mas que ainda não foram<br />
identificados como tal coletivamente. Independentemente da velocidade com que<br />
as mudanças ocorram, socialmente, haverá sempre a estabilização de pelo menos um<br />
horizonte de formulação ainda que temporário, e isso significa que este horizonte não<br />
necessita pertencer a um ou outro determinado grupo, mas que pode ser pertencente à<br />
comunidade ou sistema social de valores coletivos. Portanto, a capacidade de formulação é<br />
essencial para identificar e respeitar essa base comum, possivelmente em processo de<br />
mudança, ou quando um grupo ou uma organização encontra outro grupo ou organização,<br />
cientes de que os horizontes de formulação podem ser diferentes. Esta é, por exemplo, uma<br />
capacidade básica para a solução de conflitos, sejam estes quais forem, de freqüentes fusões a<br />
nível inter-regional ou internacional, ou qualquer intervenção que necessite de mediações.<br />
Esta forma de competência é uma combinação de habilidades de reflexão, habilidades de<br />
relacionamentos e habilidades na formação de opiniões, e que constituem o perfil de hiper<br />
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habilidades necessárias às hiper sociedades formadas ou em formação. Ao desenvolver esse<br />
conjunto de competências o indivíduo deve possuir a competência de:<br />
1. Aprender a aprender e de reformular constantemente o aprendido. É a competência<br />
de constantemente saber interpretar e redefinir as próprias possibilidades de observação,<br />
comunicação e ação, pré-requisitos para a aprendizagem.<br />
2. Aprender e reformular o comunicativo, a habilidade de comunicação capaz de<br />
observar o outro, pré-requisito da capacidade de colaboração social.<br />
3. Aprender e reformular o social dentro e sobre um grupo social ou sociedade. A<br />
competência de saber ver as relações.<br />
Kjeld Fredens 3 (citado em Tambo, 2005) acrescenta ainda uma quarta habilidade, que é<br />
a capacidade de saber e poder se adaptar.<br />
A sociedade em constante processo de aprendizado, mais do que uma visão do futuro,<br />
é uma necessidade do presente. A posição defendida neste artigo vai claramente de encontro<br />
a afirmação de que as competências só podem surgir com base em qualificações e<br />
habilidades forjadas com sólida formação, e que o desenvolvimento em uma sociedade hiper<br />
complexa ou a caminho de se tornar uma, exige uma transformação radical das formas de<br />
aprendizado e ensino, dos sistemas de educação e dos modelos de pesquisa e educação para<br />
que estes possam ser compatíveis com a sociedade e suas necessidades e exigências.<br />
Modelos propostos por Jansen e Qvortrup para a redefinição do sistema educacional em<br />
sociedades complexas<br />
As novas funções exigidas das instituições de ensino, e principalmente das<br />
universidades, que por tradições seculares, caracterizaram-se pelo armazenamento e<br />
manutenção de informações, transformaram-se rapidamente e decisivamente nas últimas<br />
décadas, em produtoras de conhecimento em cadeia, que necessitam de competências<br />
desenvolvidas e direcionadas à pesquisa do mais alto nível, assim como de uma liderança<br />
capaz de entender e incentivar essas necessidades. Não menos importante é a criação,<br />
interligada à pesquisa e ao conhecimento, que na sistematização proposta por Qvortrup,<br />
assume seu lugar de direito.<br />
Frente a isso, qual o caminho, ou quais os caminhos da educação (considerada em sua<br />
totalidade) compatíveis com as constantes mudanças a que as sociedades complexas e hiper<br />
complexas estão sujeitas? Seria a escolha entre habilidades e competências coerentes e/ou<br />
produtivas? Como a relação entre conhecimento e criatividade poderia ser repensada?<br />
Abaixo a sistematização proposta por Qvortrup (s.d.):<br />
3 Neurologista, foi pesquisador da Universidade de Aarhus, editor da revista científica Kognition & Pædagogik (<br />
Cognição & Pedagogia).<br />
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233<br />
Forma de<br />
Conhecimento<br />
Estímulo<br />
Qualificacões<br />
Resultados<br />
Habilidades<br />
Estímulo de<br />
aprendizado<br />
direto<br />
Conhecimento<br />
Factual<br />
Efeito<br />
Proporcional<br />
Competência<br />
(Relevante)<br />
Producão de<br />
conhecimento<br />
Capacidade de<br />
reflexão<br />
Efeito Exponencial<br />
Criação<br />
Producão<br />
Metareflexão<br />
Salto quântico<br />
Cultura<br />
Evolucão social<br />
Sistema de Educação<br />
Geral<br />
Troca de<br />
paradigmas<br />
A primeira categoria é denominada por Qvortrup (s.d.) de estímulo de aprendizado direto,<br />
ocorrentes, por exemplo, em classes de aula ou outras formas de transferências, como através<br />
de divulgação por meios mediáticos, cujos resultados são os conhecimentos factuais e cujos<br />
resultados são proporcionais e mensuráveis.<br />
A segunda forma, denominada por Qvortrup (s.d.) de relevante, ligada à(s)<br />
competência(s) é fruto de uma forma de educação que prevê o estímulo dos sistemas de<br />
autoaprendizagem individuais ou em grupo com o propósito de produzir e repensar o<br />
conhecimento, assim como o de reinterpretá-lo de acordo com a crescente pressão advinda<br />
de novas informações e mudanças. Os resultados da forma relevante, embora ainda<br />
mensuráveis, necessitam de instrumentos de avaliação diversos dos utilizados na primeira<br />
categoria; ainda trabalham com resultados da mesma natureza ainda que potenciados.<br />
Por produção, na terceira categoria, Qvortrup (s.d.) propõe uma forma de educação e de<br />
trabalho inteira e completamente autônoma, a criação, (que aqui não se refere exclusivamente<br />
a criação artística), principalmente baseada em conhecimentos profundos da primeira e<br />
segunda categorias e na pesquisa, seja esta individual ou em grupo. Seus resultados não<br />
podem ser medidos por instrumentos da primeira e segunda categoria, necessitando assim<br />
de novos instrumentos de avaliação, uma vez que seus resultados são de outra natureza.<br />
Finalmente, no quarto nível, a que Qvortrup (s.d.) se refere como evolução social, é a<br />
alegação dos pré-requisitos para o conhecimento prévio, que se constituem em um ambiente<br />
de conhecimento ou de uma cultura de aprendizagem que não podem ser<br />
transferidos através da comunicação indivíduo-alvo, mas que agem como o resultado da<br />
interação de camadas de comunicação contínua, e que estão intimamanente ligados à<br />
sociedade, ao meio e às formas de organização de instituicões.<br />
Jansen propõe a redefinição do sistema educacional, no sentido de formar especialistas<br />
que tenham talento, capacidade e técnica suficientes para colher informações necessárias,<br />
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filtrá-las, direcioná-las e aplicá-las de maneira satisfatória na solução de problemas, pois,<br />
embora a explosão de informação seja um fenômeno global, a maneira como a informação é<br />
retrabalhada e reformulada em conhecimento é um fenômeno local. As possibilidades de<br />
desenvolvimento de mecanismos de filtragem e prioridade de distribuição de recursos<br />
econômicos também são um fenômeno local, (pois dependem da capacidade e visão de quem<br />
os lidera). A pluralidade cultural é assim um fenômeno estrutural, sujeita a diferentes<br />
mecanismos reguladores, passíveis, portanto, de análise através de modelos estruturais.<br />
Conclusão<br />
Apesar da tendência de interpretar o conceito de habilidade a uma ordem social ligada<br />
a estruturas passadas (Tambo), quando, há algumas gerações atrás, ainda não se cogitava<br />
sobre a necessidade de formação constante e aprendizado ao longo da vida, e o de<br />
competência como ligado à complexidade, diversidade e variabilidade atuais, tanto o<br />
conceito de habilidade quanto o de competência, estão presentes e intimamente interligados<br />
nos modelos de Jansen e Qvortrup, uma vez que o conceito de habilidade abrange mais do<br />
que qualificações adquiridas individualmente, e o conceito de competência, mais do que os<br />
padrões específicos que um indivíduo possa apresentar dentro de determinados contextos<br />
organizacionais.<br />
O modelo proposto por Qvortrup é inovador no sentido de integrar o conceito de<br />
criação (e aqui visto não somente como criação artística), à produção, e aqui se ressalta, à<br />
produção meta-reflexiva, baseada em profunda pesquisa e produção de conhecimentos, que<br />
necessitam por sua vez, da criação de novos instrumentos de avaliação compatíveis com a<br />
educação e trabalho a esse nível, assim como das condições necessárias que não priorizem<br />
tão somente o imediato e o quantitativo. O objetivo deste artigo é tão somente o de<br />
introduzir os modelos de Jansen e Qvortrup como ferramentas de análise e reflexão,<br />
ressaltando se que a sua aplicabilidade requer um conhecimento mais profundo de ambos os<br />
modelos. O modelo de Jansen tem sido utilizado com sucesso entre outros, em escolas<br />
públicas e empresas de pequeno, médio e grande porte na Dinamarca. O modelo de<br />
Qvartrup em instituições governamentais e universidades. Em todos os casos, a postura de<br />
pensar mudanças frente aos desafios impostos pela complexidade foi determinante para que<br />
a aplicação dos modelos obtivesse bons resultados.<br />
Acreditamos que a aplicabilidade desses modelos no Brasil também possam surtir bons<br />
efeitos, uma vez que os modelos não dependem de requisitos específicos de ordem física<br />
como espaços ou materiais determinados, mas sim, que contribuam como ferramentas para<br />
pensar e refletir, para analisar e encontrar soluções.<br />
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Referências<br />
Jansen, T.B. (1997a). Kan mennesker vælge fremtid? Futuriblerne, 24(3), 12.<br />
Jansen, T.B. (1997b). Skolens Fremtider. København, Danmark: Forlaget Fremad.<br />
Jansen, T.B. (1982). Et samfund underforvandling. København, Danmark: Teknisk Forlag.<br />
Qvortrup, L. (2000). Det hypekomplekse samfund, 14 fortællinger om informationssamfundet (2a<br />
ed). København, Danmark: Gydendal.<br />
Qvortrup, L. (2001). Det lærende samfund, hyperkompleksitet og viden. København, Danmark:<br />
Gydendal.<br />
Qvortrup, L. (2011). Det vi ved om skoleledelse (paperback). København, Danmark: Dafolo.<br />
Qvortrup, L. (s.d.). Kvalifikationer og kompetencer i netværks- og vidensamfundet (S. Berg, Trad.).<br />
Recuperado em 04 de abril, 2012, de http://pub.uvm.dk/2002/uddannelse/1.html<br />
Tambo, K. (2005). In Er kompetencer bedre end valifikationer? In Danmarks Journalisthøjskole.<br />
Recuperado em 16 de janeiro, 2012, de http://www.update.dk/cfje/VidBase.nsf/<br />
ID/UB06271351<br />
Nota sobre a autora<br />
Silvia Maria Pires Cabrera Berg, é atualmente chefe do Departamento de Música da<br />
FFCLRP/USP. Compositora, regente e educadora, trabalhou na área de cognição, estratégias<br />
de ensino e teoria do conhecimento com Torben Bo Jansen em Copenhagen. Pesquisa na área<br />
de metodologias de ensino e no desenvolvimento de conceitos, metodologias e materiais<br />
para o aprimoramento do conhecimento da voz referente às práticas corais, com ênfase no<br />
conhecimento da voz infantil e infanto-juvenil, no estudo de dos processos de preparação<br />
vocal, ensaio e performance, e na escrita vocal contemporânea e suas relações com a técnica<br />
vocal da Early Music. Desenvolve projeto com intercâmbio científico com Pia Boysen -<br />
Gentofte-Jægersborg Kirkernes Korskolen (Copenhagen - Dinamarca) e Margrete Enevold<br />
DKDM - Det Kgl. Danske Musikkonservatorium (Copenhagen - Dinamarca). E-<br />
mail: silviaberg@usp.br<br />
Data de recebimento: 25/01/2012<br />
Data de aceite: 20/08/2012<br />
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