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Guardados na Memória - Academia Brasileira de Letras

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François Mauriac (1885-1970),<br />

leitor do Le Figaro. (Foto H. Cartier-Bresson-Magnum)


<strong>Guardados</strong> da Memória<br />

François Mauriac<br />

Alceu Amoroso Lima<br />

Dificilmente sabemos falar ou escrever sobre aquilo que nos<br />

toca mais <strong>de</strong> perto. As gran<strong>de</strong>s dores ou as gran<strong>de</strong>s alegrias<br />

são silenciosas, exatamente por essa quase impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exprimirmos<br />

o que nos comove ou o que nos pren<strong>de</strong> totalmente. A emoção<br />

é como que um <strong>na</strong>ufrágio, uma forma <strong>de</strong> submersão no inefável<br />

e portanto no inexprimível. Para escrever sobre alguém ou alguma<br />

coisa é preciso não participar <strong>de</strong> sua substância. Porque o amor é<br />

uma perda no objeto amado e portanto uma renúncia à luci<strong>de</strong>z indispensável<br />

para ver e a<strong>na</strong>lisar. A crítica é alimentada, em suas raízes,<br />

pela simpatia, pela afinida<strong>de</strong> inexplicável, pela incli<strong>na</strong>ção invencível,<br />

em suma, pelo amor, ou pelos caminhos que a ele vão ter. Não basta<br />

amar, porém, para compreen<strong>de</strong>r. E, ao contrário, o amor po<strong>de</strong> ser e é<br />

muitas vezes um elemento <strong>de</strong> incompreensão. É uma luz excessiva,<br />

que cega, como todo foco ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>mais. O amor, dizia Faguet, é o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser amado. Sim, mas ape<strong>na</strong>s no primeiro <strong>de</strong>grau do mais<br />

forte sentimento que po<strong>de</strong> animar o frágil coração humano. O verda<strong>de</strong>iro<br />

amor, ao contrário, é a indiferença a ser amado. O verda<strong>de</strong>i-<br />

Professor, crítico<br />

literário, ensaísta,<br />

polígrafo, tradutor (Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, 1893-1983),<br />

ligado ao movimento<br />

mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong> 1922.<br />

Convertido ao<br />

catolicismo por<br />

influência direta <strong>de</strong><br />

Jackson <strong>de</strong> Figueiredo,<br />

tornou-se um dos mais<br />

respeitados paladinos da<br />

Igreja Católica no Brasil.<br />

Sua bibliografia é vasta,<br />

a começar por Afonso<br />

Arinos (1922), Estudos,<br />

cinco séries<br />

(1927-1933), Tentativa<br />

<strong>de</strong> Itinerário (1929), Esboço<br />

<strong>de</strong> uma Introdução à<br />

Economia Mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> (1930),<br />

mais <strong>de</strong>ze<strong>na</strong>s <strong>de</strong> títulos.<br />

355


Alceu Amoroso Lima<br />

ro amor é imolação e sacrifício. No início <strong>de</strong> todo amor, voltamo-nos para<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós mesmos. Vemos o mundo e as criaturas em função do nosso eu.<br />

Amamos porque queremos ser amados. À medida, porém, que o sentimento se<br />

apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> nosso coração, <strong>de</strong> nosso espírito, <strong>de</strong> nossos ócios e <strong>de</strong> nossos trabalhos,<br />

<strong>de</strong> nosso ser mais profundo, <strong>de</strong> toda a nossa vida, – esquecemo-nos <strong>de</strong><br />

nós mesmos para nos entregarmos, verda<strong>de</strong>ira e totalmente, àquele ou àquilo<br />

que mereceu <strong>de</strong> nós essa renúncia à nossa própria posse. O amor passa do<br />

amante ao ser amado. Leva-o ao esquecimento <strong>de</strong> si, à evasão, à fusão, ao aniquilamento.<br />

Amamos, então, tanto mais fortemente quanto menos pensamos<br />

em nós mesmos. E por isso é que os caminhos do amor são os mesmos caminhos<br />

da morte. E as alegrias <strong>de</strong> amar tão facilmente se convertem no sofrimento<br />

que acompanha, tantas vezes, a renúncia a nós mesmos, a perda temporânea<br />

<strong>de</strong> uma perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> a que, no fundo, não po<strong>de</strong>mos renunciar totalmente.<br />

Todo amor que representa um esquecimento completo <strong>de</strong> si, um suicídio moral,<br />

é pois contrário à <strong>na</strong>tureza das coisas. E por isso a palavra <strong>de</strong> Deus nos diz que<br />

<strong>de</strong>vemos renunciar, pelo amor, a nós mesmos, não para nos abando<strong>na</strong>rmos <strong>de</strong><br />

todo, mas para melhor nos encontrarmos, no dia em que as coli<strong>na</strong>s eter<strong>na</strong>s se<br />

<strong>de</strong>scorti<strong>na</strong>rem no horizonte do nosso <strong>de</strong>stino pessoal.<br />

É difícil, pois, falar daquilo que amamos <strong>de</strong>mais e que portanto substitui<br />

o seu ser ao nosso ser, habita em nós e transborda das beiras frágeis da nossa<br />

taça interior, inundando-nos da sua essência. Exprimir é ter consciência <strong>de</strong><br />

nossa perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>. E para isso é mister não transpor os limites em que ela<br />

se per<strong>de</strong>, embora para se encontrar mais tar<strong>de</strong>, melhor e mais forte do que<br />

antes. Talvez por isso é que Wodsworth dizia que – “poetry is emotion recollected<br />

in tranquillity”. E Bau<strong>de</strong>laire, o ar<strong>de</strong>nte e insofrido Bau<strong>de</strong>laire, fazia<br />

a apologia da impassibilida<strong>de</strong> <strong>na</strong> composição poética. Se o poeta precisa<br />

sofrear a inspiração para melhor traduzi-la, que será do crítico, dos malsi<strong>na</strong>dos<br />

críticos cuja luci<strong>de</strong>z, se só <strong>na</strong>sce <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vencido o frio da indiferença,<br />

não resiste ao calor exagerado das paixões. E esse equilíbrio é que dificilmente<br />

atingimos quando alguém ou alguma coisa nos enche exageradamente o<br />

coração ou o espírito.<br />

356


François Mauriac<br />

Casamento <strong>de</strong> François Mauriac e Jeanne Lafon, em Talence (3.6.1913).<br />

357


Alceu Amoroso Lima<br />

Bem senti, no mais fundo <strong>de</strong> mim mesmo, essa impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever<br />

sobre os espíritos que mais a fundo nos possuíram, – quando Chesterton morreu.<br />

Poucos homens terão exercido sobre mim influência comparável à <strong>de</strong>le.<br />

Poucos terei lido, mais extensa e intensamente. E, no entanto, não consegui até<br />

hoje dizer <strong>de</strong>le, já não digo tudo aquilo, mas um pouco ao menos <strong>de</strong> tudo aquilo<br />

que esse homem representou em minha vida. Não há quem não tenha sentido<br />

em si esse bloqueio da expressão pela emoção; essa impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer<br />

alto o que se diz em silêncio, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, sem palavras em forma vaga e indistinta.<br />

Croce nega a existência <strong>de</strong>ssa sensação sem expressão. No seu i<strong>de</strong>alismo<br />

exasperado confun<strong>de</strong> totalmente intuição e expressão, negando a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sentirmos verda<strong>de</strong>iramente sem po<strong>de</strong>r traduzir o que sentimos.<br />

Ora, o que a introspecção nos revela e mesmo a experiência e a observação<br />

alheia, é que só exprimimos uma parte mínima do imenso oceano do inexprimido<br />

que fica <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós e volta, após as tentativas infrutíferas <strong>de</strong> vir à to<strong>na</strong>,<br />

para as caver<strong>na</strong>s sombrias <strong>de</strong> nosso subconsciente. Nesse ponto, Freud é muito<br />

mais verídico que Croce. É possível que o <strong>de</strong>feito seja, um tanto, da nossa própria<br />

vonta<strong>de</strong>. Pois é certo que uma vez <strong>de</strong>dicados totalmente à expressão <strong>de</strong>sse<br />

inefável, se não conseguimos trazer tudo à margem <strong>de</strong>sse oceano sem fim que é<br />

nosso espírito, muita coisa vem à to<strong>na</strong> que, sem esforço, ficaria sepultada <strong>na</strong><br />

sombra do po<strong>de</strong>-vir-a-ser. Mas a vonta<strong>de</strong> é frágil ou mesmo impotente contra<br />

as circunstâncias e a tentação do esquecimento ou do silêncio. Para falar daquilo<br />

que nos enche <strong>de</strong>mais o coração ou a inteligência precisamos não só <strong>de</strong><br />

muito tempo mas <strong>de</strong> muita resig<strong>na</strong>ção a nunca dizer aquilo que quiséramos ter<br />

dito. Uma dolorosa insatisfação é sempre o prêmio da audácia em exprimir o<br />

inexprimível. E a emoção que nos anima, em face <strong>de</strong> um autor ou <strong>de</strong> um livro,<br />

que nos entraram <strong>de</strong>mais pelos poros da alma, é sempre inexprimível. Ou cria<br />

uma barreira entre a intuição e a expressão, que nunca transpomos sem arrependimento<br />

e <strong>de</strong>silusão. Descontentes por não dizer, mais <strong>de</strong>scontentes ainda<br />

por dizer, o que sentimos palpitar <strong>de</strong> amor no fundo <strong>de</strong> nossos afetos íntimos<br />

ou <strong>de</strong> nossas admirações intelectuais profundas. É por isso que o soneto <strong>de</strong><br />

Arvers só é ba<strong>na</strong>l porque todo mundo o repete. Mas se todo mundo o repete é<br />

358


François Mauriac<br />

que tem a verda<strong>de</strong> profunda das coisas comuns. Nunca chegamos a confessar o<br />

nosso amor, a traduzir as nossas admirações mais profundas, pelo pudor <strong>de</strong><br />

abrir <strong>de</strong>mais o jardim fechado <strong>de</strong> nosso coração e pela melancolia <strong>de</strong> ver as palavras<br />

maltratarem, sem dó nem sutileza, os tesouros infinitos e as infinitas <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas<br />

ar<strong>de</strong>ntes que fagulham <strong>na</strong> essência dos nossos sentimentos mais humanos.<br />

Passamos, tantas vezes, ao lado daquilo ou daqueles que mais amamos,<br />

sem encontrar a palavra misteriosa que resolveria os enigmas in<strong>de</strong>cifráveis. E<br />

os “caminhos do mar” se fecham sempre <strong>na</strong> esteira líquida das quilhas, como<br />

os caminhos do espírito, ai <strong>de</strong> nós! <strong>de</strong>pois da passagem <strong>de</strong> nossos corações <strong>de</strong>sajeitados.<br />

Caminhos do mar, Mauriac, Chesterton, paralisia da expressão, timi<strong>de</strong>z invencível,<br />

certeza prévia da inutilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo o que tentar exprimir o inefável,<br />

ro<strong>de</strong>ios e torneios para evitar o encontro <strong>de</strong>finitivo, como quando temos urgente<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar a uma pessoa e entretanto sentimos, atrás da insatisfação<br />

aparente, um alívio ao sabermos que ela não está! É um sentimento estranho<br />

mas inegável. Talvez porque seja <strong>de</strong> nossa <strong>na</strong>tureza amar o adiamento<br />

das coisas. Como há uma <strong>de</strong>silusão não menos misteriosa por trás <strong>de</strong> nossas<br />

alegrias. Insondável coração humano!<br />

Como o penetrou a fundo esse Mauriac <strong>de</strong> quem nunca ousei falar, esse<br />

Mauriac que leio há tantos anos, com quem há tantos anos converso, tão <strong>de</strong><br />

perto, no silêncio <strong>de</strong> nossas leituras, frente a frente, ele <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s dolorosas<br />

dos seus livros e o seu leitor longínquo e esquecido <strong>de</strong> si, no torpor evocado<br />

das cigarras que cantam nos pinheiros, ao sol ar<strong>de</strong>nte do verão, ou <strong>na</strong>s noites<br />

gélidas <strong>de</strong> inverno, nos parques gotejantes e sombrios, como as almas que neles<br />

vagueiam ao crepúsculo.<br />

Mauriac, sedução quotidia<strong>na</strong> <strong>de</strong> tantos anos. Emoção in<strong>de</strong>cifrável e inexprimível.<br />

Mauriac, alma trágica e solitária, que <strong>na</strong> prosa ar<strong>de</strong>nte e sombria <strong>de</strong><br />

seus romances soube arrastar mais corações, por todo o mundo, do que tantos<br />

poetas eloqüentes. Mauriac, perso<strong>na</strong>gem <strong>de</strong> Mauriac. Mauriac insultado e incompreendido,<br />

por aqueles que mais <strong>de</strong>viam bem querer-lhe, pois se encontram<br />

com ele ou <strong>de</strong>veriam pelo menos encontrar-se, frater<strong>na</strong>lmente unidos, <strong>na</strong><br />

359


Alceu Amoroso Lima<br />

hora em que o viajante misterioso parte conosco o pão da vida e faz ar<strong>de</strong>r, em<br />

nosso peito, os corações. Emaús!<br />

Assim <strong>de</strong>ve ser, porém. É bom que assim seja. As almas que verda<strong>de</strong>iramente<br />

trazem ao século uma mensagem, não po<strong>de</strong>m viver <strong>na</strong> doçura ou, pior do<br />

que isto, <strong>na</strong>s combi<strong>na</strong>ções furtivas dos elogios convencio<strong>na</strong>is. O que há <strong>de</strong> menos<br />

forte nesses homens é justamente aquilo que os homens em regra mais<br />

procuram – o êxito, as honras, a fortu<strong>na</strong>, a glória. Os bordados acadêmicos <strong>de</strong><br />

Mauriac é o que há <strong>de</strong> menos mauriaciano em sua pessoa. É que não lhe fazem<br />

bom nem mal, como tudo o que vem da vaida<strong>de</strong> huma<strong>na</strong>, sem participação<br />

profunda <strong>de</strong> seu beneficiário. Mauriac é hoje um homem famoso, em todos os<br />

países, traduzido em não sei quantas línguas. Se bem que começando já a “passar<br />

<strong>de</strong> moda” e a ser atacado pelos novos. Si<strong>na</strong>l <strong>de</strong> imortalida<strong>de</strong>. Nada disso,<br />

porém, lhe altera a essência trágica da vida. Nada lhe arranca da pe<strong>na</strong> essa<br />

tinta in<strong>de</strong>lével com que, <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s dos seus romances ou <strong>na</strong>s linhas ar<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong> seus artigos, vai gravando do homem eterno uma imagem, que <strong>de</strong>safia<br />

a moda ou as paixões políticas que hoje ameaçam torná-lo, como Ber<strong>na</strong>nos<br />

ou Maritain, um pária entre os seus próprios irmãos, no Coração do<br />

Eterno.<br />

Esse sentido do homem eterno, – <strong>na</strong> hora em que o homem mo<strong>de</strong>rno tomava conta<br />

do século, não só <strong>na</strong>s chancelarias e <strong>na</strong>s trincheiras, nos “dancings” ou <strong>na</strong>s usi<strong>na</strong>s,<br />

<strong>na</strong>s asas dos aviões ou <strong>na</strong>s colu<strong>na</strong>s dos jor<strong>na</strong>is, <strong>na</strong>s telas dos cinemas ou<br />

nos arranha-céus, mas ainda <strong>na</strong>s livrarias, <strong>na</strong>s cátedras, <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s dos romances<br />

e dos poemas, nos sistemas filosóficos e <strong>na</strong>s revoluções artísticas – esse sentido<br />

do homem eterno é que Mauriac veio trazer ao nosso paladar cansado <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

ou farto <strong>de</strong> convencio<strong>na</strong>lismo literário. Acima do tempo e das modas,<br />

acima do moralismo ou do impuritanismo, acima das teses preconcebidas<br />

ou do divertimento fácil, acima das preocupações <strong>de</strong> estilo e das origi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s<br />

forçadas, acima do realismo, do supra-realismo ou do infra-realismo, acima<br />

das fronteiras e das escolas, Mauriac nos trouxe <strong>de</strong> novo e simplesmente – o<br />

pobre homem. O homem <strong>de</strong> sempre no homem <strong>de</strong> hoje. O homem fiel ou infiel à<br />

imagem <strong>de</strong> Deus; o homem que luta ou que se entrega, que sofre e faz sofrer,<br />

360


François Mauriac<br />

que cai e se levanta, que peca e se arrepen<strong>de</strong>, que não é nem <strong>de</strong> todo bom nem<br />

<strong>de</strong> todo mau, que quer o que não quer, que ama o que o<strong>de</strong>ia, o homem tal<br />

como Deus o fez, como o pecado o <strong>de</strong>sfez, como a infinita misericórdia do<br />

Eterno o refaz ou como o Príncipe do Mundo o aniquila.<br />

Sombrio e trágico Mauriac. Na hora em que uma falsa alegria <strong>de</strong> viver enchia<br />

o mundo; <strong>na</strong> hora em que uma literatura <strong>de</strong> lantejoulas e efeitos acrobáticos<br />

reagia contra a mediocrida<strong>de</strong> e procurava espantar o burguês pelo escândalo<br />

das suas violências, <strong>de</strong>molições e contorções – nessa hora inuma<strong>na</strong> chegaste<br />

<strong>de</strong> mansinho, como alguns outros <strong>de</strong> tua geração. E, sem alar<strong>de</strong> nem manifestos,<br />

trouxeste <strong>de</strong> novo a imagem do homem, a figura do homem, o <strong>de</strong>stino terrível<br />

do homem, não ape<strong>na</strong>s em sua vida exterior, mas sobretudo em sua vida<br />

íntima, em suas paixões secretas e profundas, para o meio dos histriões que haviam<br />

tomado conta do proscênio. E tudo mudou. Um novo sentido trágico da<br />

vida voltou, como a imagem verda<strong>de</strong>ira da hora amarga que o mundo vive em<br />

nossos dias. Teu último romance, Mauriac, esse Les Chemins <strong>de</strong> la Mer (Grasset)<br />

que acabas <strong>de</strong> lançar <strong>na</strong> esteira luminosa e sombria <strong>de</strong> tantos outros com que já<br />

enriqueceste e transfiguraste uma literatura, que parecia esgotada ou traíra o<br />

espírito, – teu último romance não é melhor nem pior que os outros. Talvez<br />

não esteja entre os teus maiores. Mas é gran<strong>de</strong> como todos eles, porque nele<br />

palpita mais uma vez o insondável coração humano. Mais uma vez nos mostras<br />

esses pobres homens, esses pobres nós-outros, domi<strong>na</strong>dos e maltratados<br />

pelas potências inferiores que arrancam <strong>de</strong> nós a dulcíssima semelhança divi<strong>na</strong><br />

para cobrir-nos a face, com aquela máscara do <strong>de</strong>mônio que o monge Paphnuce<br />

sentiu ao passar os <strong>de</strong>dos por sua face pecadora. Mas tu entraste, Mauriac,<br />

infinitamente mais fundo no segredo da miséria huma<strong>na</strong>, do que esse teu famoso<br />

pre<strong>de</strong>cessor que escrevera a história do monge infiel. Tu penetraste muito<br />

mais fundo nesse nó <strong>de</strong> víboras que se entre<strong>de</strong>voram no fundo dos amargos<br />

corações humanos, porque tiveste a ilumi<strong>na</strong>r o teu coração a luz da lâmpada<br />

que nunca se apaga. Se tanto irritas os fariseus é que tocaste o fundo do nosso<br />

orgulho impossível. E se <strong>de</strong>nunciaste o “falso publicanismo”, é que sabes que a<br />

humilda<strong>de</strong> é o pior dos orgulhos quando insincera. Esvurmaste sem pieda<strong>de</strong> o<br />

361


Alceu Amoroso Lima<br />

âmago dos corações. A impressão trouble que <strong>de</strong>ixas em tuas pági<strong>na</strong>s, não é a<br />

preocupação mórbida <strong>de</strong> traduzir estados <strong>de</strong> alma anormais, mas ape<strong>na</strong>s o dom<br />

que recebeste, o doloroso dom que Deus te <strong>de</strong>u, <strong>de</strong> atravessar as camadas superpostas<br />

que escon<strong>de</strong>m o fundo das almas e lá no âmago <strong>de</strong>scobrir os fios secretos<br />

que agitam a nossa triste miséria huma<strong>na</strong>. Foste ao fundo das almas que<br />

agitas e mostraste, sem dó nem artifício, o que há <strong>de</strong> horrível <strong>na</strong> sombra <strong>de</strong><br />

nossas consciências que traíram, pelo Pecado, a inocência origi<strong>na</strong>l. Não és, porém,<br />

pessimista soturno. Não ficas <strong>de</strong> fora, escalpelando impiedosamente as<br />

almas, pelo amor dos quadros mórbidos, nem a serviço <strong>de</strong> qualquer espécie <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ologia preconcebida. Nunca pecaste contra o Espírito Santo. Talvez <strong>de</strong>sesperaste<br />

dos homens, mas nunca do Filho do Homem. Se não escon<strong>de</strong>s as nossas<br />

paixões mais sórdidas e, acima <strong>de</strong> tudo, a paixão das coisas, o amor imo<strong>de</strong>rado<br />

dos bens materiais, o apego tremendo à proprieda<strong>de</strong>, – se não tens medo <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar<br />

os preconceitos e <strong>de</strong> agitar os problemas mais <strong>de</strong>licados, especialmente os<br />

das relações <strong>de</strong> família, tão convencio<strong>na</strong>l e falsamente tratados, em geral, pelos<br />

romancistas, – nunca pecaste – contra a Luz. Nunca <strong>de</strong>sesperaste da salvação<br />

das almas. Teus monstros mais horrendos sempre revelam a fresta imperceptível<br />

por on<strong>de</strong>, um dia, po<strong>de</strong>rá jorrar a Luz mais transcen<strong>de</strong>nte. És, por isso mesmo,<br />

um autêntico romancista católico, no duplo sentido <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal e<strong>de</strong><br />

universal, se acaso existe a categoria.<br />

A realida<strong>de</strong>, que faz <strong>de</strong> teus livros obras tão ricas <strong>de</strong> vida e tão longe do realismo<br />

meramente linear e horizontal <strong>de</strong> tantos outros, a tua realida<strong>de</strong> é enriquecida<br />

por tudo o que a transcendência traz <strong>de</strong> real às pálidas aparências que<br />

tantos julgam ser toda a realida<strong>de</strong>. Em teus livros, Mauriac, sentimos que o<br />

mundo não acaba no Nada, nem veio <strong>de</strong> um Todo, inexplicável e imanente. O<br />

Eterno está sempre no âmago do Efêmero <strong>de</strong> tuas perso<strong>na</strong>gens. Em regra, elas<br />

não crêem nesse Eterno, ou, quando chegam a ele, és tu que as <strong>de</strong>ixas, como se<br />

já não te pertencessem. É o que vemos, mais uma vez, no <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>sse jovem<br />

poeta do teu último romance. É tanto mais luminoso esse Raio que <strong>de</strong>ixas entrever,<br />

<strong>na</strong> sombra <strong>de</strong> teus dramas terríveis, quanto mais discreto ele se mostra.<br />

A passagem do Anjo ape<strong>na</strong>s se pressente. Mas basta sentirmos o frêmito <strong>de</strong><br />

362


François Mauriac<br />

uma asa, no silêncio morno dos pântanos, sob a chuva, para nos relembrar a<br />

existência do Sol.<br />

Essa permanência do Eterno, no âmago <strong>de</strong> teus livros, bem como no fundo<br />

<strong>de</strong> tuas perso<strong>na</strong>gens mais efêmeras, é que lhes comunica uma riqueza infinita e<br />

um valor <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> imanente e transcen<strong>de</strong>nte, que tantos procuram em vão,<br />

<strong>na</strong> multiplicação dos pormenores ou das aventuras.<br />

E com isso transcen<strong>de</strong>s o curto limite em que geralmente fazes oscilar tuas<br />

criaturas. Teus romances <strong>de</strong>correm, em geral, <strong>na</strong> mesma paisagem provincial<br />

em que <strong>de</strong>correu a tua infância. As figuras que por eles passam, são aquelas que<br />

em tua vida encontraste nos arredores do teu Bor<strong>de</strong>aux ou <strong>de</strong> tuas terras carregadas<br />

<strong>de</strong> pinheiros. E, no entanto, todos os homens se revêem em tuas pági<strong>na</strong>s.<br />

Tanto são idênticas e uniformes as paixões huma<strong>na</strong>s em todos os tempos e em<br />

todos os lugares. E tanto o homem é um só no fundo da infinita varieda<strong>de</strong> dos<br />

homens. Essa varieda<strong>de</strong>, tu a <strong>de</strong>senhas <strong>de</strong> um modo inexcedível. Cada uma <strong>de</strong><br />

tuas figuras é ela mesma e mais ninguém. Desconheces as perso<strong>na</strong>gens em série.<br />

Tens o dom que é o próprio dom divino, o <strong>de</strong> criar criaturas inefáveis, irredutíveis<br />

umas às outras. E no entanto unidas todas pelo mesmo mistério da<br />

fonte origi<strong>na</strong>l e da habitação divi<strong>na</strong>. Há, já agora, <strong>na</strong> literatura que não é ape<strong>na</strong>s<br />

“literatura” e por isso mesmo é qualquer coisa <strong>de</strong> muito gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong> muito<br />

nobre, uma coisa que se chama – a perso<strong>na</strong>gem do Mauriac. E se essa perso<strong>na</strong>gem<br />

ficará, muito <strong>de</strong>pois que o seu autor tenha <strong>de</strong>saparecido, é que foi uma centelha<br />

do dom divino da criação que entrou nessa alma solitária e trágica. Mostraste<br />

o que há <strong>de</strong> puro <strong>na</strong>s almas sórdidas, e o que há <strong>de</strong> sórdido <strong>na</strong>s almas puras.<br />

Mostraste como o homem é fraco e a mulher forte, ao contrário do que nos<br />

mostram as aparências. Mostraste tantos recantos insondáveis do nosso Eu. E<br />

restituíste a nossa figura, não em seus traços ape<strong>na</strong>s aparentes, mas tendo estampado<br />

<strong>na</strong> face o mistério da Sombra e da Luz.<br />

Mauriac, trágico e solitário Mauriac, <strong>de</strong>ixo-te mais uma vez sem dizer <strong>na</strong>da<br />

do que queria ter dito. Deixo-te aqui algumas palavras não <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> julgamento<br />

mas <strong>de</strong> emoção e <strong>de</strong> protesto, contra a imagem <strong>de</strong>sfigurada com que<br />

alguns espelhos <strong>de</strong>formam a tua face consumida pela dolorosa tarefa <strong>de</strong> estam-<br />

363


Alceu Amoroso Lima<br />

François Mauriac e Jeanne, <strong>na</strong> biblioteca do escritor. (Foto <strong>de</strong> Jean Lattès)<br />

(As fotos inseridas neste ensaio são do arquivo <strong>de</strong> Mme. François Mauriac, reproduzidas<br />

no livro François Mauriac, <strong>de</strong> Jean Lacouture. Paris: Seuil, 1980.)<br />

364


François Mauriac<br />

par o mistério terrível da vida. Gran<strong>de</strong> e doloroso Mauriac que não quero conhecer<br />

<strong>de</strong> perto, pois me bastam as pági<strong>na</strong>s trágicas <strong>de</strong> teus livros, em que não<br />

se sabe se és o autor <strong>de</strong> tuas criaturas ou se elas é que te fizeram assim como és<br />

– uma criança <strong>de</strong> face sulcada pela inquietação e <strong>de</strong> “mãos postas” à espera da<br />

Face que não falha.<br />

(16 – IV – 1939)<br />

365


Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.<br />

Se<strong>de</strong> da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,<br />

Av. Presi<strong>de</strong>nte Wilson, 203<br />

Castelo – Rio <strong>de</strong> Janeiro – RJ


PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS<br />

DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS<br />

(Fundada em 20 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1897)<br />

As sessões preparatórias para a criação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> realizaram-se <strong>na</strong> sala <strong>de</strong> redação da Revista <strong>Brasileira</strong>, fase III<br />

(1895-1899), sob a direção <strong>de</strong> José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1896, foi aclamado presi<strong>de</strong>nte Machado <strong>de</strong> Assis.<br />

Outras sessões realizaram-se <strong>na</strong> redação da Revista, <strong>na</strong> Travessa do Ouvidor, n. o 31, Rio <strong>de</strong> Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição<br />

realizou-se numa sala do Pedagogium, <strong>na</strong> Rua do Passeio, em 20 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1897.<br />

Ca<strong>de</strong>ira Patronos Fundadores Membros Efetivos<br />

01 A<strong>de</strong>lino Fontoura Luís Murat A<strong>na</strong> Maria Machado<br />

02 Álvares <strong>de</strong> Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha<br />

03 Artur <strong>de</strong> Oliveira Filinto <strong>de</strong> Almeida Carlos Heitor Cony<br />

04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar<br />

05 Ber<strong>na</strong>rdo Guimarães Raimundo Correia José Murilo <strong>de</strong> Carvalho<br />

06 Casimiro <strong>de</strong> Abreu Teixeira <strong>de</strong> Melo Cícero Sandroni<br />

07 Castro Alves Valentim Magalhães Sergio Corrêa da Costa<br />

08 Cláudio Manuel da Costa Alberto <strong>de</strong> Oliveira Antonio Olinto<br />

09 Domingos Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães Magalhães <strong>de</strong> Azeredo Alberto da Costa e Silva<br />

10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Lêdo Ivo<br />

11 Fagun<strong>de</strong>s Varela Lúcio <strong>de</strong> Mendonça Helio Jaguaribe<br />

12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi<br />

13 Francisco Otaviano Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tau<strong>na</strong>y Sergio Paulo Rouanet<br />

14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Miguel Reale<br />

15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Pe. Fer<strong>na</strong>ndo Bastos <strong>de</strong> Ávila<br />

16 Gregório <strong>de</strong> Matos Araripe Júnior Lygia Fagun<strong>de</strong>s Telles<br />

17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos <strong>de</strong> Mello Franco<br />

18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Ar<strong>na</strong>ldo Niskier<br />

19 Joaquim Caetano Alcindo Gua<strong>na</strong>bara Antonio Carlos Secchin<br />

20 Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo Salvador <strong>de</strong> Mendonça Murilo Melo Filho<br />

21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho<br />

22 José Bonifácio, o Moço Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque Ivo Pitanguy<br />

23 José <strong>de</strong> Alencar Machado <strong>de</strong> Assis Zélia Gattai<br />

24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Sábato Magaldi<br />

25 Junqueira Freire Barão <strong>de</strong> Loreto Alberto Ve<strong>na</strong>ncio Filho<br />

26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça<br />

27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Eduardo Portella<br />

28 Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida Inglês <strong>de</strong> Sousa Oscar Dias Corrêa<br />

29 Martins Pe<strong>na</strong> Artur Azevedo Josué Montello<br />

30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon<br />

31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Moacyr Scliar<br />

32 Porto-Alegre Carlos <strong>de</strong> Laet Ariano Suassu<strong>na</strong><br />

33 Raul Pompéia Domício da Gama Evanildo Bechara<br />

34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva João Ubaldo Ribeiro<br />

35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Almeida<br />

36 Teófilo Dias Afonso Celso João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Ivan Junqueira<br />

38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney<br />

39 F.A. <strong>de</strong> Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel<br />

40 Viscon<strong>de</strong> do Rio Branco Eduardo Prado Evaristo <strong>de</strong> Moraes Filho


Casa França-Brasil<br />

Rua Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Itaboraí, 78 – Centro<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro – RJ<br />

Interior da Casa França-Brasil


Composto em Monotype Centaur 12/16 pt; citações, 10.5/16 pt.

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