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Do passado arcaico ao presente global na microssérie - ECA-USP

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Tese apresentada à Área de Concentração: Teoria e<br />

Pesquisa em Comunicação, Linha de Pesquisa: Linguagem<br />

e Produção de Sentido em Comunicação, da Escola de<br />

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como<br />

exigência parcial para obtenção do título de <strong>Do</strong>utor em<br />

Ciências da Comunicação, sob a orientação da Profa. Dra.<br />

Maria Lourdes Motter.


__________________________________________________________<br />

__________________________________________________________<br />

__________________________________________________________<br />

__________________________________________________________<br />

__________________________________________________________


O trabalho, ora apresentado, busca desvendar o modo como se<br />

articula, no discurso microssérie, especificamente em O Auto da<br />

Compadecida, a pluralidade de linguagens que julgamos ser<br />

característica do formato. Nosso aporte teórico recaiu sobre a teoria da<br />

linguagem a partir das idéias de Mikhail Bakhtin que entende o<br />

discurso como espaço de relações intersubjetivas, tendo a enunciação<br />

como ato verbal e extraverbal, produto que, enquanto processo, reteria<br />

em si as marcas de seu fazimento, objeto de nosso estudo. Ainda em<br />

Bakhtin, encontramos elementos que nos orientam no campo da<br />

cultura popular com a qual o autor Guel Arraes estabelece um diálogo,<br />

que permite a intertextualização e estilização <strong>presente</strong>s em sua obra.<br />

O trabalho desenvolveu-se no sentido de surpreender o<br />

funcio<strong>na</strong>mento, as especificidades do discurso através da análise, de<br />

modo a percebermos a complexidade e a criatividade da obra, que<br />

consideramos como sendo estilizada, tendo o dialogismo como princípio<br />

constitutivo, <strong>na</strong> qual a heterogeneidade é assumida e mostrada, no<br />

processo de construção de novos significados.<br />

Palavras-chave: dramaturgia televisiva, microssérie, linguagem,<br />

dialogismo discursivo, produção de sentido.


This paper seeks to shed light on the way how, in the discourse of<br />

TV series O Auto da Compadecida, a plurality of languages that we<br />

consider typical of this format interacts. Our theoretical focus is based<br />

on the language theory derived from the ideas of Mikhail Bakhtin, who<br />

sees the discourse as a sphere of intersubjective relations, in which the<br />

enunciation is both a verbal and extraverbal act – a product which, as a<br />

process, should retain in itself the signs of its making-off, object of our<br />

study.<br />

This paper is designed to take a s<strong>na</strong>pshot of the workings, the<br />

specificities of the discourse through its a<strong>na</strong>lysis. This will e<strong>na</strong>ble us to<br />

understand the complexity and creativity of the work that we consider<br />

stylized and built on dialogism, in which heterogeneity is acknowledged<br />

and shown, offering new meanings.<br />

Key words: TV dramaturgy, TV series, discourse, dialogism, new<br />

meanings.


APRESENTAÇÃO 11<br />

INTRODUÇÃO 16<br />

PARTE 1 – APROXIMAÇÃO AO OBJETO 23<br />

1 O referencial teórico 24<br />

2 Objetivos e hipóteses norteadoras 28<br />

3 Procedimentos metodológicos 30<br />

4 Descrevendo o objeto 31<br />

4.1 O autor e sua obre televisiva 31<br />

4.1.1 Telenovelas 33<br />

4.1.2 Minisséries e microsséries 35<br />

4.1.3 Seriados 36<br />

4.1.4 Diversos (humor e variedades) 36<br />

4.1.5 Humor 40<br />

4.1.6 Variedades 42<br />

4.2 Temática 43<br />

4.3 Seleção da amostra 47<br />

4.3.1 Recorte da amostra 48<br />

4.3.2 O Auto da Compadecida 48<br />

PARTE 2 – FICÇÃO TELEVISIVA 55<br />

5 Conceituação 56<br />

5.1 A questão do gênero televisivo 59<br />

5.2 A minissérie 60<br />

5.3 A microssérie 76<br />

PARTE 3 – O TEXTO-FONTE, AUTORIA, GÊNERO, TEMÁTICA 82<br />

6. O texto-fonte 83<br />

6.1 O Movimento Armorial 88<br />

6.2 Um ancestral português 91<br />

6.3 As perso<strong>na</strong>gens do Auto da Compadecida 102


PARTE 4 – A MICROSSÉRIE O AUTO DA COMPADECIDA 144<br />

7. A recriação 145<br />

7.1 Inclusões-exclusões 146<br />

7.2 Interferências nos diálogos 154<br />

7.3 Desordem <strong>na</strong> fronteira 156<br />

7.4 Sons e ruídos – leais acompanhantes 165<br />

7.5 Onde o Brasil é medieval 166<br />

7.6 O gótico nos estertores do século XX 169<br />

7.7 A vinheta de abertura 173<br />

7.8 Perso<strong>na</strong>gens de O Auto da Compadecida 174<br />

PARTE 5 – TEORIA E OBJETO EM DIÁLOGO 180<br />

8. Linguagem 181<br />

9. O discurso 185<br />

9.1 Enunciação 186<br />

9.2 O dialogismo 192<br />

9.3 Interdiscursividade 196<br />

9.4 Estilização 198<br />

10. Os gêneros discursivos 204<br />

10.1 A dimensão espácio-temporal do discurso 208<br />

10.2 Gênero primário e gênero secundário 214<br />

10.3 Expressividade Discursiva 219<br />

11. O campo do sério-cômico 223<br />

11.1 Car<strong>na</strong>valização 228<br />

11.2 O riso 233<br />

11.3 Realismo grotesco 252<br />

12. A intenção discursiva 265<br />

12.1 Os outros para quem o discurso se faz 268<br />

PARTE 6 – A OBRA O AUTO DA COMPADECIDA NO CINEMA 270<br />

13 Adaptação para o cinema 271<br />

13.1 A supressão como procedimento de estilização 273<br />

13.2 Uma palavra sobre o roteiro 279<br />

13.3 Vocação cinematográfica 281<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS – REFAZENDO O PERCURSO 283<br />

BIBLIOGRAFIA 288


Figura 1 – O encontro de Chicó e Rosinha 147<br />

Figura 2 – Major Antônio Moraes e Severino de Aracaju <strong>na</strong> porta da igreja 150<br />

Figura 3 – O fi<strong>na</strong>l da história: Rosinha, Chicó e João Grilo 152<br />

Figura 4 – Chicó e João Grilo fazem a divulgação do filme A Paixão de Cristo 159<br />

Figura 5 – O cortejo fúnebre de Bolinha 159<br />

Figura 6 – Cinema <strong>na</strong> igreja 161<br />

Figura 7 – Cristo em seu trono rodeado de anjos 162<br />

Figura 8 – Ascensão dos anjos 162<br />

Figura 9 – Chicó e seu cavalo bento 163<br />

Figura 10 – O striptease de <strong>Do</strong>ra 167<br />

Figura 11 – O sagrado representado no ícone da parede da igreja 169<br />

Figura 12 – A negociação entre o bispo e o padre <strong>na</strong> igreja 169<br />

Figura 13 – A chegada triunfal da Virgem 170<br />

Figura 14 – Diálogo entre Mãe e Filho 170<br />

Figura 15 – A chegada do Encourado 171<br />

Figura 16 – Fala de Chicó: ... mas eu gostava mesmo era de enga<strong>na</strong>r aquela gente 172<br />

Figura 17 – Fala de João Grilo: Valha-me Nossa Senhora,/ Mãe de Deus de Nazaré! 182<br />

Figura 18 – Chicó e suas boti<strong>na</strong>s 187<br />

Figura 19 – Fala de João Grilo: Três dias passei... 188<br />

Figura 20 – A chegada do Major Antônio Moraes a Taperoá 199<br />

Figura 21 – João Grilo à porta do inferno 212<br />

Figura 22 – O pauperismo do quintal da casa de <strong>Do</strong>ra e Eurico 220<br />

Figura 23 – As cores da casa de <strong>Do</strong>ra e Eurico 220<br />

Figura 24 – A linguagem publicitária em Taperoá 225<br />

Figura 25– João Grilo fazendo si<strong>na</strong>l de corno para o Diabo 243<br />

Figura 26– Fala de João Grilo: Esse sujeito é um mistura de tudo o que<br />

nunca gostei, promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia 243<br />

Figura 27– O velório de João Grilo 245<br />

Figura 28– Fala de João Grilo: Por isso é que estou lascado, comigo era <strong>na</strong> mentira 246<br />

Figura 29<br />

A discussão entre o Bispo e Major sobre o fato de o Padre ter ou não<br />

chamado a mulher do Major de cachorra 251<br />

Figura 30 Chicó em uma noite com <strong>Do</strong>ra 252<br />

Figura 31 – Um bife <strong>passado</strong> <strong>na</strong> manteiga 252<br />

Figura 32 – Fala do João Grilo: E aqui está a prova de que você agiu muito bem 255<br />

Figura 33 – O olhar da imagem da Virgem <strong>na</strong> parede 263<br />

Figura 34 – A morte de <strong>Do</strong>ra e Eurico acompanhada pelo olhar da Virgem 263<br />

Figura 35 – Comedor de macambira 264<br />

Figura 36 – A volta de João Grilo 271<br />

Figura 37 – O despertar de João Grilo para o Julgamento 272


luzes gêmeas sobre meu outono.<br />

<br />

meu filho, que muito cedo cumpriu sua sentença e encontrou-se com o<br />

único mal irremediável; também Heloísa Hele<strong>na</strong> e Luiz Felipe.


Professora. Maria Lourdes,<br />

para quem, rosia<strong>na</strong>mente, Vivendo se aprende; mas o que se aprende,<br />

mais, é só fazer outras maiores perguntas, por isso orientadora.<br />

Professores Narciso Lobo e Marco Antônio Guerra,<br />

participantes da qualificação, rosia<strong>na</strong>mente, entenderam que Não se<br />

toca boi à força, nem para o pasto melhor, por isso apontaram,<br />

mostraram e abriram, com amor e rigor, as melhores pastagens.<br />

Pedro Paulo (12), João Pedro (11), Marília (11), Gianlucca (10),<br />

os desenhadores, espectadores assíduos de O Auto da Compadecida.<br />

Jane,<br />

amiga das horas difíceis, companheira de andanças, parceira de<br />

pesquisas,...informata huma<strong>na</strong> e competente.<br />

Elia<strong>na</strong>, Cris, Maria Cristi<strong>na</strong>, amigas-leitoras; Maria Ataíde que me<br />

cooptou para o mundo televisivo; amigos todos, torcedores fiéis.<br />

Miklos, que possibilitou a captura das imagens.<br />

Amigos do CCA e do Pós, sempre disponíveis.


Há um risco sobre o pano, uma caixa com uma deze<strong>na</strong> de meadas<br />

de linhas coloridas, uma cartela de agulhas de vários calibres, uma<br />

tesourinha. Olhando tudo aquilo, uma meni<strong>na</strong>. A irmã caçula da mãe<br />

da meni<strong>na</strong>, a quem ela nunca chamou de tia, deu-lhe a primeira aula<br />

de bordado. E a mágica se concretizou. O pano antes descolorido,<br />

marcado pelas linhas escuras do risco fez-se outro: uma meni<strong>na</strong> de<br />

tranças, usando um longo vestido e chapéu de palha, caminha por um<br />

campo salpicado de florinhas amarelas, azuis, roxas.<br />

Há uma longa mesa de jantar. Sobre ela um caderno simples,<br />

brochura, capa mole. Um estojo de lata, lápis, borracha, apontador. A<br />

meni<strong>na</strong> estende à frente seu bordado. Observa atentamente. Bota o<br />

lápis <strong>na</strong> boca, rói um pouco a extremidade, afi<strong>na</strong> a ponta e abre o<br />

caderno. Olhos fixos no bordado. ‘A<strong>na</strong> é seu nome, você é uma princesa<br />

e mora num palácio lá adiante, depois daquela curva <strong>na</strong> estrada...’<br />

Um dia, a meni<strong>na</strong> achou um livro grande com um título esquisito.<br />

Folheou, leu uns poucos parágrafos e encontrou um nome que a<br />

encantou: Aliocha. Alguém da família sentenciou: não é livro para você.<br />

O livro sumiu da vida da meni<strong>na</strong>, mas Aliocha virou uma cadela grande<br />

e valente que a acompanhava pela floresta imaginária, <strong>na</strong>s<br />

proximidades de um lago gelado. Pouco importava Aliocha ser nome<br />

masculino. Sua Aliocha era feita de palavras mesmo, era só dela e<br />

morava no caderno de brochura.<br />

A vida conduziu a meni<strong>na</strong> por ásperos caminhos, mas não<br />

conseguiu fazê-la desistir das histórias malucas que inventava a partir<br />

das coisas acontecidas. Adulta, inventou para os filhos e inventa para<br />

os netos. Há sempre um risco, há sempre um livro, há sempre um fato<br />

<strong>na</strong> vida que a carrega para o mundo da ficção. O último foi O Auto da<br />

Compadecida.<br />

12


O risco feito por Ariano, Guel decalcou no papel. Provocou o<br />

desbordamento. Transbordamento. <strong>Do</strong> papel levou <strong>ao</strong> celulóide. Deu<br />

outra vida, a João Grilo, a Chicó, <strong>ao</strong> Padre João e a tantos outros, pela<br />

imagem, pelas cores e movimento. Inventou Rosinha, tão linda. E a<br />

Compadecida, como a fez maravilhosa! Cristo com uma cor tão bonita e<br />

saudável, que até sua mãe se surpreendeu. Deu nome <strong>ao</strong> padeiro e sua<br />

mulher. Duplicou e carregou para a televisão e para o cinema.<br />

De quem será que Ariano emprestou o risco? Onde ele foi buscar?<br />

Como transportou?<br />

E Guel? Como fez para decalcar? De que modo trabalhou para<br />

conseguir transbordar e não desmanchar, alagar tudo. Como<br />

(re)coloriu? Porque o risco já tinha cores, tinha seu jeito. Que linhas<br />

escolheu, que tramas teceu <strong>ao</strong> (re)bordar? Perguntas são sempre<br />

infindas.<br />

A mulher em que a meni<strong>na</strong> se transformou buscou refazer esse<br />

bordado, desvelar o risco e revelar um texto.<br />

Tendo como corpus constitutivo a microssérie O Auto da<br />

Compadecida, o trabalho que ora apresentamos é produto de nosso<br />

interesse pelo processo, pelo modo como o autor operacio<strong>na</strong>lizou<br />

elementos linguageiros de modo a chegar a uma unidade, a um todo<br />

significativo. Buscamos perceber a estrutura que organiza as<br />

linguagens que são constituintes de um discurso heterogêneo e múltiplo<br />

como se apresenta uma microssérie. Interessa-nos entender a<br />

organização das diferentes relações comunicativas manifestadas pelo<br />

enunciado que configura um processo interativo, ou seja, o verbal e o<br />

não-verbal que integram a situação e fazem parte de um contexto<br />

amplificado, abarcando o histórico, o social.<br />

Estruturando-se pelo estilo – seleção operada nos recursos de<br />

linguagem e sua combi<strong>na</strong>ção, ou construção, modo como organiza os<br />

diferentes e variados recursos de que dispõe –, o discurso obriga-nos a<br />

perseguir o processo, que pensamos ser dialogicizante,<br />

intertextualizado, estilizado. Ancorado em um discurso precedente –<br />

13


isco sobre o qual trabalhou –, que está fincado no popular, a<br />

microssérie em questão configura-se como ‘outro’ <strong>na</strong> praça onde se<br />

ramifica, faz-se, ele próprio, um discurso.<br />

O caminhar fez-se pelo risco traçado por Bakhtin, cujo caminho<br />

se delineou como democrático a ponto de acolher um discurso de<br />

massa, inserido num complexo e múltiplo universo cultural, que não<br />

escapa à caracterização de <strong>global</strong> e capitalista. Mais ainda, aceita,<br />

porque dialógico <strong>na</strong> sua essência, o diálogo com outras teorias num jogo<br />

de aproximações e também de distanciamentos, de similaridades e de<br />

oposição, ou seja, a inter-relação.<br />

A exposição das idéias foi estruturada em cinco segmentos que se<br />

apresentam inter-relacio<strong>na</strong>dos, mas não fechados e/ou arrematados<br />

como compartimentos estanques. São capítulos que, circunscritos em<br />

termos temáticos, estão dialogando uns com os outros, isto é,<br />

pretendemos serem eles enunciados acabados, mas discursos que se<br />

fazem i<strong>na</strong>cabados pois que abertos a outras e novas possibilidades<br />

dialogicizantes.<br />

No primeiro capítulo, são apresentados o tema da pesquisa e<br />

como se fez objeto científico. Os objetivos, as hipóteses que serviram de<br />

balizamento para as interrogações são apontados e registrados os<br />

pressupostos teóricos, a seleção da amostra, o recorte feito. Por fim o<br />

objeto é descrito e contextualizado no universo da produção do autor.<br />

O segundo capítulo discute a ficção televisiva, seus gêneros e<br />

possíveis sub-gêneros ou formatos, chegando a uma possível<br />

caracterização da microssérie – nosso objeto de estudo.<br />

O terceiro capítulo promove um diálogo do texto-fonte, Auto da<br />

Compadecida, da autoria de Ariano Suassu<strong>na</strong> com a microssérie, O<br />

Auto da Compadecida, de Guel Arraes, pensado o primeiro como<br />

ancoragem para o segundo, este percebido como um jogo de<br />

apropriações, de estilização, constituindo-se num todo reelaborado,<br />

recriado.<br />

No quarto capítulo discute-se o objeto – O Auto da Compadecida –<br />

à luz da teoria proposta e aposta-se <strong>na</strong> leitura da microssérie, utilizando<br />

14


categorias bakhtinia<strong>na</strong>s como instrumento de análise do produto visto<br />

como discurso cultural.<br />

O sexto capítulo faz um rápido percurso sobre o filme considerado<br />

como produto de um segundo exercício de estilização feito pelo autor<br />

Guel Arraes.<br />

Fazendo jus <strong>ao</strong> teórico que serviu de referência e amparo para o<br />

trabalho, o último capítulo faz-se i<strong>na</strong>cabado, pois a montante<br />

vislumbram-se muitas inovações teledramatúrgicas.<br />

15


INTRODUÇÃO<br />

O que neste trabalho se pretende é desvendar, revelar o modo<br />

como se articulam, no discurso televisivo ficcio<strong>na</strong>l microssérie, a<br />

pluralidade de linguagens que julgamos existente nesse produto<br />

cultural.<br />

A escolha deveu-se, em grande parte, <strong>ao</strong> instante vivido. Momento<br />

histórico que prioriza a imagem como modo de produção e percepção da<br />

cultura, portanto, do mundo; instante em que a televisão é, no dizer de<br />

Octávio Ianni, uma poderosa técnica social 1 e, como tal, exerce sobre o<br />

homem contemporâneo ação de liderança e influência <strong>na</strong> organização<br />

de seu cotidiano. Não nos negamos a partícipes dessa situação sóciohistórica<br />

que empresta à serialização ficcio<strong>na</strong>l televisiva importância<br />

como produção cultural de massa.<br />

A ficção tem ocupado largo espaço em todo mundo, <strong>na</strong> categoria<br />

entretenimento. No Brasil, a ficção televisiva tende a uma hegemonia<br />

dentro do horário nobre, o que lhe empresta maior importância.<br />

Produto considerado de ótima qualidade, tanto técnica como em termos<br />

de conteúdo, as telenovelas têm recebido especial atenção de estudiosos<br />

e pesquisadores. Segundo Lobo, São muitos os estudos sobre telenovela,<br />

mas poucos sobre a minissérie 2 , motivo que, acrescido da constatação da<br />

maior elaboração e caracterização diferenciada em relação à telenovela,<br />

o teria levado a estudar esse formato, procurando nele as relações com<br />

a realidade política do país. Seis anos após essa afirmação, é lícito<br />

pensar que já houve um aumento do interesse dos pesquisadores sobre<br />

a minissérie, mas muito ainda está por fazer, face à riqueza do formato.<br />

1 Para Ianni, as tecnologias da mídia quando inseridas <strong>na</strong>s atividades sociais, nos jogos das<br />

forças sociais passam a di<strong>na</strong>mizar, intensificar, generalizar, modificar, bloquear relações,<br />

processos e estruturas sociais, inclusive, as culturais. IANNI, Octavio. O príncipe<br />

eletrônico. In: DOWBOR, Ladislau et al. (Orgs.). Desafios da Comunicação. Petrópolis: Vozes,<br />

2000, p. 9.<br />

2 LOBO, Narciso. Ficção e política: o Brasil <strong>na</strong>s minisséries. Ma<strong>na</strong>us: Valer, 2000, p. 18.<br />

17


Autores como Balogh 3 , e outros pesquisadores 4 da <strong>ECA</strong> muito já<br />

acrescentaram, em termos de estudos sobre o produto. Nessa<br />

perspectiva, inserimos nosso interesse pela minissérie.<br />

No formato, optamos por trabalhar com a obra de Guel Arraes,<br />

centrando nossos questio<strong>na</strong>mentos <strong>na</strong> minissérie O Auto da<br />

Compadecida. Interessam-nos, especialmente, as articulações desse<br />

discurso, produto dos meios de comunicação de massa, com o que<br />

julgamos ser uma característica autoral: a busca de um texto para<br />

ancorar, para elaborar a criação televisiva. Nossa hipótese é a de que a<br />

busca ocorre <strong>na</strong> direção das manifestações culturais populares, textos<br />

verbais literários e, no caso em pauta, um texto dramatúrgico que, visto<br />

como crônica das origens e enraizado no padrão popular, permite a fuga<br />

<strong>ao</strong>s cânones vigentes – o oficial – e, em conseqüência, às regras<br />

determi<strong>na</strong>ntes das produções culturais massivas, estirpe a que pertence<br />

a minissérie. Paralelamente, essas fontes populares determi<strong>na</strong>riam o<br />

sistema de imagens e a concepção artística, marcando indelevelmente a<br />

produção. Esse inter-relacio<strong>na</strong>mento seria, ele mesmo, a<br />

heterogeneidade, o entrecruzamento de linguagens postulado por<br />

Bakhtin 5 para a enunciação.<br />

Justificando a escolha da obra de Rabelais como objeto de seu<br />

trabalho intelectual (e acadêmico), Mikhail Bakhtin afirma que, a par de<br />

ser o mais democrático dos modernos mestres da literatura 6 , Rabelais<br />

tinha como maior qualidade estar estreitamente ligado às fontes<br />

populares e que estas determi<strong>na</strong>riam o conjunto de seu sistema de<br />

3 BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. O discurso ficcio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> TV: sedução e sonhos em doses<br />

homeopáticas. São Paulo: Edusp, 2002. BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. Conjunções – Disjunções –<br />

Transmutações: da literatura <strong>ao</strong> cinema e à TV. São Paulo: An<strong>na</strong>blume, 2004.<br />

4 OROFINO, Maria Isabel. Mediações <strong>na</strong> Produção de Teleficção: videotecnologia e reflexividade<br />

<strong>na</strong> microssérie O Auto da Compadecida. Tese (<strong>Do</strong>utorado em Ciências da Comunicação) –<br />

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.<br />

5 Bakhtin, pensador russo cujas idéias serão discutidas adiante, fala em reflexo e refração do<br />

signo, defendendo uma postura dialética (mas não polarizada); o ser refletido no signo não<br />

só reflete como refrata. Postura que nos parece adequada para se tentar uma resposta às<br />

questões suscitadas pela prática da linguagem. BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia<br />

da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.<br />

6 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais. São Paulo, Brasília: Hucitec, EdUnb, 1993, p. 2.<br />

18


imagens, assim como sua concepção artística 7 . Esse autor,<br />

peculiarmente ligado às raízes populares, constrói uma obra que, e por<br />

isso mesmo, nega-se <strong>ao</strong> caráter oficial, recusa-se à estabilidade, à<br />

formalidade limitada. Mas ele não simplesmente se recusa. Vai além,<br />

criando suas imagens, sua concepção de mundo. Por isso, Bakhtin diz<br />

dele ser profético, no sentido que Michelet empresta <strong>ao</strong> termo quando<br />

afirma a respeito de Rabelais: E através desses delírios aparecem com<br />

toda a grandeza o gênio do século e sua força profética. Onde ele não<br />

chega a descobrir, ele entrevê, promete, dirige. E que delírios são esses<br />

vividos por Rabelais? Ainda Michelet: Rabelais recolheu sabedoria <strong>na</strong><br />

corrente popular dos antigos dialetos, dos refrões, dos provérbios, das<br />

farsas dos estudantes, <strong>na</strong> boca dos simples e dos loucos 8 .<br />

Essa mesma estreita ligação com o popular é que hipotetizamos<br />

ser encontrada <strong>na</strong> obra de Guel Arraes. Mas essa ligação ocorre como<br />

que mediatizada, emprestado o termo de Martín-Barbero, por um autor<br />

impropriamente chamado, de acordo com Bakhtin, o primeiro, ou o<br />

origi<strong>na</strong>l: Ariano Suassu<strong>na</strong>. Ou seja, o “texto-fonte”, Auto da<br />

Compadecida, de Ariano Suassu<strong>na</strong>, que <strong>na</strong> própria categorização – auto<br />

– já remete <strong>ao</strong> popular, <strong>ao</strong> que está entre e no povo, <strong>na</strong>s praças e pátios<br />

das vilas interiora<strong>na</strong>s; <strong>na</strong>s avenidas, trens, metrôs, campos de futebol<br />

das grandes cidades; nos folguedos de rua do não mais distante sertão,<br />

<strong>na</strong>s encostas de vingativas montanhas em cujos barracos se aloja um<br />

aparelho de TV. Ao trabalhar a temática popular, Arraes estaria,<br />

especularmente, operando em reflexo e refração de caráter bakhtiniano,<br />

ou seja, devolvendo <strong>ao</strong> espectador sua imagem.<br />

A escolha pelo produto, a minissérie como formato ficcio<strong>na</strong>l<br />

televisivo e O Auto da Compadecida, como material específico, aponta<br />

para nossas preocupações: o discurso ficcio<strong>na</strong>l nos/dos meios de<br />

comunicação de massa.<br />

7 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 2.<br />

8 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 1.<br />

19


Ao nos decidirmos pelo aporte teórico bakhtiniano, devemos<br />

esclarecer alguns pressupostos que permitirão justificar essa escolha,<br />

<strong>ao</strong> mesmo tempo em que colocamos os porquês da eleição do objeto. A<br />

grande preocupação de Bakhtin, fica bem claro em toda sua obra, é<br />

com a linguagem verbal. Ao interrogar a obra de <strong>Do</strong>stoiévski, Bakhtin<br />

busca surpreender o funcio<strong>na</strong>mento e as especificidades do discurso do<br />

grande romancista, pois estes refletiriam a complexidade da obra. Essa<br />

relação umbilical de Bakhtin com o texto reflete claramente sua postura<br />

em relação às ciências huma<strong>na</strong>s, que teriam no homem social que fala e<br />

que só pode ser conhecido através dos textos 9 seu objeto de estudo. Há<br />

que se estudar, portanto, o discurso do qual o homem é produtor. Daí a<br />

percepção bakhtinia<strong>na</strong> de que a forma concreta dos textos e suas<br />

condições, também concretas, de vida é que interessam a um trabalho<br />

de análise. Mesmo tendo por interesse a linguagem verbal, em nenhum<br />

momento ele subestima outras linguagens. Poderíamos afirmar que<br />

Bakhtin prioriza a palavra, mas não exclui os demais signos:<br />

A comunicação verbal entrelaça-se<br />

inextricavelmente <strong>ao</strong>s outros tipos de comunicação e cresce<br />

com eles sobre o terreno comum da situação de produção.<br />

Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal<br />

dessa comunicação <strong>global</strong> em perpétua evolução. Graças a<br />

esse vínculo concreto com a situação, a comunicação<br />

verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter<br />

não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um<br />

ritual, cerimônias, etc.), dos quais ela é muitas vezes<br />

ape<strong>na</strong>s o complemento, desempenhando um papel<br />

meramente auxiliar. 10<br />

É bom que nos lembremos de que as condições de vida de<br />

Bakhtin, e seu tempo (1895/1975), não lhe permitiram a vivência da<br />

grande mídia e menos ainda da informatização. Uma outra questão<br />

importante e que nos permite reconhecer no texto a unidade discursiva<br />

encontra-se no conceito de enunciação proposto por Bakhtin – conjunto<br />

de manifestações verbais e não-verbais que cercam o ato comunicativo.<br />

Para explicitá-lo, o teórico russo coloca-se <strong>na</strong> perspectiva da<br />

Metalingüística, pois nela estariam evidenciadas as relações que o<br />

9 BRAIT, Beth. As vozes bakhtinia<strong>na</strong>s e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Dia<strong>na</strong> L. P.;<br />

FIORIN, José Luiz. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São<br />

Paulo: Edusp, 1992.<br />

10 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 124.<br />

20


homem mantém com o mundo através da linguagem 11 . Metalingüística,<br />

sob a ótica bakhtinia<strong>na</strong>, é a discipli<strong>na</strong> que estuda o dialogismo e suas<br />

implicações no ato comunicativo. Considera enunciação tudo o que está<br />

no entorno do ato comunicativo: o social, o histórico, as motivações de<br />

ordem material, espiritual, moral etc. Ou seja, há uma extrapolação do<br />

puramente verbal. Assim concebida, a Metalingüística seria a<br />

possibilidade de se alcançar a enunciação: ato verbal e extraverbal, esta<br />

sim revelação, desvelamento do texto, produto como processo no qual<br />

estão as marcas desse fazimento que serão objeto do nosso trabalho. O<br />

enunciado verbal se arquiteta pelo estilo, isto é, pela seleção operada<br />

nos recursos da língua – léxicos, fraseológicos e gramaticais, bem como,<br />

e para Bakhtin, sobretudo, por sua construção composicio<strong>na</strong>l 12 . Daí a<br />

importância de se perceber o processo, ou seja, a arquitetônica – modo<br />

pelo qual são dispostos elementos, partes de uma obra, observando-se<br />

estrutura, <strong>na</strong>tureza e organização, pressupondo nessa arquitetura<br />

normas, materiais e técnicas para se criar o todo que é a obra.<br />

Consideraremos, portanto, a minissérie como um enunciado no qual o<br />

verbal <strong>presente</strong> ancora e sustenta outros materiais altamente<br />

significantes e que apresentam, como a linguagem verbal, um estilo<br />

determi<strong>na</strong>do pelas operações neles impressas pelo autor.<br />

Guel Arraes busca em Suassu<strong>na</strong> o material a ser relido em termos<br />

televisivos, empregando para tal as técnicas ficcio<strong>na</strong>is próprias a uma<br />

minissérie. Ele seria a segunda voz dentro do discurso. Situando-se fora<br />

do discurso dramatúrgico, portanto, verbal, de Suassu<strong>na</strong>, Guel trabalha<br />

a língua, a partir de um lugar fora dela, é alguém que possui o dom da<br />

fala indireta bakhtinia<strong>na</strong>, que sabe ler no primeiro que já não é tão<br />

primeiro assim, pois para Bakhtin toda elocução – expressão de idéias,<br />

sentimentos – posse do homem, por excelência, é um elo <strong>na</strong> cadeia<br />

complexa da comunicação: interlocução, vista como processo de<br />

interação entre indivíduos através da linguagem verbal ou não verbal 13 .<br />

11 MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de<br />

Janeiro, São Paulo: Imago, Fapesp, 1995, p. 48.<br />

12 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261.<br />

13 BRANDÃO, Hele<strong>na</strong> N. Introdução à Análise do Discurso. Campi<strong>na</strong>s: Unicamp, 1995, p. 90.<br />

21


No caso, esse elo é antecedido do texto de Suassu<strong>na</strong> que bebe <strong>na</strong>s<br />

fontes populares, que seria seu primeiro.<br />

E chegamos <strong>na</strong> boca do povo rabelaisia<strong>na</strong>: o popular dos antigos<br />

dialetos, dos refrões, dos provérbios, das farsas dos estudantes, <strong>na</strong> boca<br />

dos simples e dos loucos. 14 Desembarcamos no cotidiano, no lugar social<br />

de onde se diz. A enunciação não ocorrerá se não for levado em conta o<br />

auditório, visto ser o discurso um diálogo (se não muitos diálogos<br />

interacio<strong>na</strong>dos). A situação social mais imediata e o meio social mais<br />

amplo determi<strong>na</strong>m completamente e, por assim dizer, a partir de seu<br />

próprio interior, a estrutura da enunciação. 15 Para Motter, o cotidiano é a<br />

organização do dia-a-dia da vida individual dos homens, repetição de<br />

suas ações vitais fixadas <strong>na</strong> repetição diária, <strong>na</strong> distribuição do tempo de<br />

cada dia, ela é a divisão do tempo e é ritmo em que se escoa a história<br />

individual de cada um. 16<br />

O horizonte social de Suassu<strong>na</strong> e, por conseguinte, de Arraes, é o<br />

cotidiano do povo. E é nesse cotidiano que buscam o material a ser<br />

estruturado de modo a, pelo imaginário, fazer-se um bem cultural em<br />

diálogo com o dia-a-dia <strong>ao</strong> qual retor<strong>na</strong>, via ficção. Rompe-se a<br />

mecanização, o marasmo da cotidianidade pelo acio<strong>na</strong>mento de formas<br />

de elevação – no caso o produto minissérie – que permite <strong>ao</strong> homem<br />

viver a plenitude, ou seja, participar com seu “eu” de forma intensa,<br />

visto que para ser inteiramente homem, ele precisa suspender a<br />

cotidianidade, o singular, o imediato 17 , e uma das formas de isso ocorrer<br />

é por meio da arte. Reconhecida como ficção, a <strong>na</strong>rrativa (qualquer que<br />

seja, não só a tradicio<strong>na</strong>l escrita) tem um papel socializador.<br />

Interpenetrada pela realidade, ela pode se tor<strong>na</strong>r veículo de denúncias e<br />

apontar saídas, ou pelo menos, alertas.<br />

14 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 1.<br />

15 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e Filosofia da Linguagem, p. 113.<br />

16 MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano <strong>na</strong> telenovela. São<br />

Paulo: Alexa Cultural, 2003, p. 26.<br />

17 MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano <strong>na</strong> telenovela, p. 27.<br />

22


PARTE 1 – APROXIMAÇÃO AO OBJETO<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

! " 18<br />

1 O REFERENCIAL TEÓRICO<br />

A atualidade se marca pela intensa presença da televisão <strong>na</strong> vida<br />

cotidia<strong>na</strong>. Ela ocupa lugar de destaque como fonte de informação,<br />

cultura e lazer, o que justifica a importância adquirida pelos produtos<br />

culturais para e por ela criados. Novas linguagens, ou novas formas de<br />

articular linguagens se fazem <strong>presente</strong>s e estão a solicitar análises<br />

críticas que permitam uma sistematização, em termos teóricos, de seus<br />

aspectos e modos criativos, organizadores, arquitetônicos enfim. Nossa<br />

proposta é estudar a microssérie sob o ângulo de sua estruturação, de<br />

sua arquitetônica, para nos atermos <strong>ao</strong> termo bakhtiniano. Pensando a<br />

minissérie como um produto da e para a televisão brasileira, partiremos<br />

de conceitos sobre a mesma elaborados por estudiosos e teóricos<br />

brasileiros. Em Pallottini, buscamos conceitos sobre dramaturgia<br />

televisiva, bem como suas características e seu desenvolvimento,<br />

concomitante às transformações por que tem <strong>passado</strong> o Brasil.<br />

Transformações que têm servido para tor<strong>na</strong>r o produto cada vez mais<br />

sofisticado e complexo, muitas vezes surpreendendo como obra das<br />

mais bem elaboradas, embora, tal como as produções rabelaisia<strong>na</strong>s,<br />

fora dos padrões canônicos e regrados que têm marcado a arte e que<br />

têm imposto categorias de análises também padronizadas. Embora<br />

18 MOTTER, Maria Lourdes. Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e<br />

doações. In: LOPES, Maria Immacolata V. de. (Org.) Telenovela, inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização e<br />

interculturalidade. São Paulo: Loyola, 2004, p. 253.<br />

24


Pallottini, usando de uma inteligente metáfora, afirme ser a minissérie<br />

“européia” – moderada, civilizada, propositada, enquanto a telenovela<br />

seria “latino-america<strong>na</strong>” – desmesurada, mágico-realista, absurda,<br />

apaixo<strong>na</strong>da, temperamental 19 , o que nos parece ocorrer <strong>na</strong> obra de Guel<br />

Arraes é a apropriação de algumas características novelescas, já<br />

anteriormente utilizadas por Suassu<strong>na</strong>, num formidável diálogo que,<br />

transgredindo e impondo novas estruturações, mantém esses mesmos<br />

elementos em suas minisséries, especialmente O Auto da Compadecida,<br />

mas <strong>presente</strong>s também em A Invenção do Brasil, outro excelente<br />

trabalho do mesmo autor e que não ficam de fora no unitário O Coronel<br />

e o Lobisomem. Acresça-se a isso a possibilidade da presença do<br />

fantástico e do maravilhoso. Aquele fantástico que nos foi permitido<br />

pensar a partir do progresso da ciência no século XIX particularmente,<br />

que nos aponta a existência de criaturas possuidoras de órgãos e<br />

sentidos diferentes dos nossos, que nos permite sonhar mundos<br />

imaginários, perceber o quão nos é ainda desconhecido não só o<br />

universo, mas o mundo que habitamos, esse nosso pequeno planeta<br />

Terra e seus ocupantes. Mas também o maravilhoso, que <strong>na</strong> sua<br />

essência supõe a interferência do sobre<strong>na</strong>tural, dos deuses, do divino<br />

mesmo no destino humano. Nesse aspecto, nos serviremos mais uma<br />

vez de categorias bakhtinia<strong>na</strong>s ancoradas <strong>na</strong> teoria do dialogismo.<br />

Dialogismo é concebido por Bakhtin como princípio constitutivo<br />

da linguagem, e para alguns estudiosos de sua obra, também do<br />

mundo, da vida. Termo rico em ressonâncias filosóficas e literárias 20 é<br />

ele próprio plurilingüístico. Entende-se aqui dialogismo como sendo<br />

princípio constitutivo e condição de sentido do discurso. É o<br />

atravessamento do discurso por múltiplas linguagens que se atropelam<br />

e se relativizam. Não ape<strong>na</strong>s índices de outras linguagens e sim o<br />

embate polêmico de vozes, que inter<strong>na</strong>mente <strong>ao</strong> discurso, reproduzem o<br />

diálogo com outros textos. A outra faceta do dialogismo envolve a<br />

interação entre enunciador e enunciatário e se constrói, pelo diálogo<br />

cumulativo entre EU e OUTRO, entre muitos EUS e muitos OUTROS.<br />

19 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Moder<strong>na</strong>, 1998, p. 38.<br />

20 STAM, Robert. Bakhtin da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.<br />

25


Dialogismo visto como espaço interacio<strong>na</strong>l entre o EU e o OUTRO, onde<br />

o discurso se faz diálogo com outros “textos” prévios e com o seu<br />

receptor. O sujeito discursivo sempre situa seu discurso em relação <strong>ao</strong><br />

outro e a outros prévios discursos – outras linguagens. Discurso que é,<br />

a minissérie se marcaria pela heterogeneidade que Bakhtin tão bem<br />

equacio<strong>na</strong> com a teoria do dialogismo.<br />

Utilizamos como fundamentação teórica a teoria marxista da<br />

linguagem, especialmente Mikhail Bakhtin. Em Adam Schaff<br />

encontramos subsídios sobre linguagem e conhecimento. Embora os<br />

pressupostos para a Análise do Discurso sejam prioritariamente<br />

bakhtinianos, não nos furtamos às idéias de Pêcheux, Maingueneau,<br />

Orlandi e Brandão. Fiorin, Barros e Brait nos fornecerão informações<br />

lingüísticas relacio<strong>na</strong>das à Análise do Discurso sob a ótica bakhtinia<strong>na</strong>.<br />

Outros teóricos bakhtinianos no Brasil estarão <strong>presente</strong>s nesta<br />

caminhada: Boris Sch<strong>na</strong>idermann e Irene Machado. Dentre os<br />

estrangeiros, sobressaem Robert Stam, Kateri<strong>na</strong> Clark e Michel<br />

Holquist. O aporte para as questões de linguagem, formato e gêneros<br />

televisivos buscamos em Motter, Pallottini, Balogh, Borelli, Fadul, Lobo,<br />

Nogueira, Machado. Heller, Lefebvre e Motter nos auxiliam no campo do<br />

cotidiano. Umberto Eco e Roland Barthes, estudiosos das questões da<br />

linguagem <strong>na</strong> linha semiótica/semiológica, assim como Jesús Martín-<br />

Barbero e Néstor García Canclini, expoentes da comunicação de massa,<br />

especialmente <strong>na</strong> América Lati<strong>na</strong>, não explicitamente citados, não<br />

podem ser deixados de lado pelo papel formativo que seus textos<br />

tiveram.<br />

A escolha do eixo teórico em Bakhtin decorre das preocupações<br />

do mesmo com a enunciação e sua visão plural desta como produto,<br />

processo, isto é, fazimento, portanto, inconcluso, aberto, irrepetível e<br />

singular. Bakhtin tem como preocupação compreender como ocorre a<br />

produção do sentido e como o texto é produzido e apreendido, seus<br />

modos de inserção entre vários sistemas, cada um com seus próprios<br />

discursos. Desse enredamento do qual emerge o significado e, por que<br />

não, os saberes humanos, o homem se dá a conhecer. Os demais<br />

autores foram escolhidos porque os percebemos inseridos <strong>na</strong> mesma<br />

26


visão, pois que preocupados também com o homem, sua linguagem,<br />

cultura e concepção de mundo. Incluídos numa linha de pensamento<br />

sócio-histórica, acreditamos que tais teóricos fornecem subsídios<br />

valiosos para nosso trabalho.<br />

Nossa escolha teórica aponta para um estudioso da comunicação,<br />

porque da linguagem, que vê a enunciação como sendo de <strong>na</strong>tureza<br />

social, isto é, a situação social, a condição real da enunciação vai<br />

determi<strong>na</strong>r todo e qualquer aspecto da expressão objetivada. A<br />

enunciação é, portanto, processo interlocutivo, incluindo aí o contexto<br />

histórico, social, cultural, as ideologias que perpassam as diferentes<br />

instâncias sociais. Assim pensada, a enunciação tem como produto o<br />

discurso, este sim manifestação que, supondo o diálogo (Bakhtin),<br />

caracteriza-se por produzir um efeito de sentido 21 . Para Brandão, ponto<br />

de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos,<br />

cujo sentido se instaura no processo de interlocução 22 . Não há pois<br />

discurso fora da sociedade, já que ele só existe no e para o social. A<br />

microssérie é vista como discurso plural, dialógico, heterogêneo, posto<br />

que nela se cruzam, se inter-relacio<strong>na</strong>m em processo interlocutivo as<br />

mais diferentes linguagens; por isso a sua importância e como tal,<br />

justificada a sua feitura em objeto de pesquisa e de estudo.<br />

Dentro dessa perspectiva, a escolha da obra de Guel Arraes<br />

ocorreu determi<strong>na</strong>da por aspectos subjetivos, não negamos, e objetivos.<br />

Não nos considerando espectadora-modelo, fomos seduzidas pelo<br />

trabalho de Arraes em O Auto da Compadecida. A objetividade da<br />

escolha vem da percepção da complexidade do trabalho, da criatividade<br />

da autoria, das operações, que sentimos, são praticadas em termos de<br />

escolha, seleção dos elementos artísticos e da linguagem televisiva <strong>na</strong><br />

execução da minissérie. Consideramos que é <strong>na</strong> estruturação, <strong>na</strong><br />

composição, <strong>na</strong>quilo que Bakhtin chama de “arquitetônica” do discurso<br />

que se manifesta a sua complexidade realizadora, daí a nossa<br />

determi<strong>na</strong>ção em estudá-lo.<br />

21 BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura. São Paulo: Ática, 1995,<br />

p. 91.<br />

22 BRANDÃO, Hele<strong>na</strong> N. Introdução à Análise do Discurso, p. 12 e 89.<br />

27


2 OBJETIVOS E HIPÓTESES NORTEADORAS<br />

O material a ser trabalhado será a obra de Guel Arraes para a TV<br />

Globo, no formato microssérie 23 , considerada gênero <strong>na</strong>rrativo ficcio<strong>na</strong>l<br />

televisivo – ficção seriada. Face <strong>ao</strong> que consideramos complexidade da<br />

empreitada em função da riqueza que se surpreende no produto, dentro<br />

da obra fazemos um recorte que funcio<strong>na</strong> mais como um referencial,<br />

uma ancoragem. Centramos nossa análise <strong>na</strong> obra O Auto da<br />

Compadecida pela sua significação em termos de aceitação pública e<br />

também pela origi<strong>na</strong>lidade que suspeitamos dissemi<strong>na</strong>da por toda a sua<br />

feitura. Essa suspeição é uma de nossas hipóteses de trabalho: <strong>ao</strong><br />

(re)elaborar o antecessor dramatúrgico suassuniano, a autoria da<br />

minissérie adotaria procedimentos de linguagem, agora televisiva, de<br />

modo a tor<strong>na</strong>r o já existente em outro, novo e origi<strong>na</strong>l. Entretanto, não<br />

nos furtamos <strong>ao</strong> cotejamento com outras produções da mesma autoria,<br />

dentro é claro, do mesmo gênero, adotando aqui a categorização de uso<br />

corrente pelos teóricos de nossa referência: Motter, Pallottini, Fadul.<br />

Considerando a obra como plural, heterogênea e múltipla,<br />

trespassada por várias e múltiplas linguagens, emergirão necessidades<br />

de articulações dos elementos constitutivos entre si e com a realidade.<br />

Assim o discurso da arte, que para Bakhtin precisa, supõe o discurso<br />

da vida, e que não o reflete somente, mas refrata-o, portanto, deforma,<br />

articula-se com outros prévios discursos que circulam em nossa<br />

realidade cotidia<strong>na</strong> e com outras manifestações como a literatura, o<br />

cinema, o videoclipe, os recursos gráficos das histórias em quadrinhos,<br />

outros formatos ficcio<strong>na</strong>is televisivos.<br />

Supondo a produção artística de Arraes como obra de autoria,<br />

ligada a raízes populares e por isso negar-se a um caráter oficial,<br />

recusar-se à estabilidade e à formalidade limitadora, criando assim<br />

imagem e concepção de mundo próprias, esses aspectos evidenciam-se<br />

23 O conceito de microssérie será abordado <strong>na</strong> Parte II deste trabalho.<br />

28


<strong>na</strong> obra e articulam-se com o constitutivo do veículo para o qual é<br />

produzida. Pensamos aqui as questões bakhtinia<strong>na</strong>s relativas <strong>ao</strong><br />

vocabulário e comportamento populares, da praça pública, as formas e<br />

imagens do popular, o que implicaria a questão da car<strong>na</strong>valização.<br />

Entendemos, pois, como objetivo central de nosso trabalho,<br />

perceber, surpreender o funcio<strong>na</strong>mento e as especificidades do discurso<br />

“gueliano” de modo a entender a complexidade da obra em seus<br />

procedimentos linguageiros. Vista a obra como interação dialogal –<br />

autor/obra/espectador e obra/realidade/outras obras –, como esses<br />

processos dialogicizantes são acio<strong>na</strong>dos pelo autor e como se articulam<br />

com a linguagem da televisão e a estruturação própria do formato.<br />

Constituindo-se a obra em diálogo com outras, nos propomos a<br />

desvendar, buscar revelar como esse diálogo ocorre, em que termos ele<br />

se estabelece, não se podendo excluir o cotidiano dessas fontes<br />

primevas, à medida que o que está <strong>na</strong> praça de Taperoá é o cotidiano do<br />

povo ou o seu contrário, o mundo de ponta cabeça, que é a<br />

car<strong>na</strong>valização para Bakhtin. Ao se apropriar de um estilo, de um<br />

gênero, de uma forma, o autor já está no campo da dialogicidade, mas,<br />

no caso em pauta, ele reporta esse diálogo para outro gênero, a<br />

dramaturgia teatral, e constrói um outro discurso. Ressignificações<br />

podem emergir, hibridizações no campo da linguagem se constituirão a<br />

partir do suporte por onde circula e se articula esse novo discurso: a TV<br />

e suas especificidades gramaticais e sócio-históricas. Portanto, há que<br />

se verificar como essas andanças artísticas constituem-se, estruturamse<br />

e articulam-se com esse outro veículo, com novas mediações. E algo<br />

novo surge com suas pluralidades, vozes e imagens, já não temos o auto<br />

de Suassu<strong>na</strong> e sim o de Arraes, com sua maneira de ser e seus<br />

elementos próprios em diálogo com seu receptor, de modo a se fazer<br />

significado.<br />

29


3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS<br />

O trabalho se desenvolve em termos de Análise do Discurso, visto<br />

este como ato verbal e extraverbal, produto como processo, fazendo-se<br />

i<strong>na</strong>cabado, demandando novas e plurais possibilidades. Buscaremos<br />

surpreender o funcio<strong>na</strong>mento, as especificidades do discurso,<br />

permitindo assim apontar o grau de complexidade e de criatividade da<br />

obra. Destarte investigamos as marcas desse fazimento, que poderão<br />

confirmar ou não as hipóteses propostas, resumidas como sendo o<br />

dialogismo como princípio constitutivo. O discurso de Arraes apontaria<br />

a apropriação de um discurso outro, prévio e que se mostra de forma<br />

patente e clara, indiciando a estilização bakhtinia<strong>na</strong>. O discurso<br />

primeiro para Arraes seria o de Suassu<strong>na</strong>, mas para Suassu<strong>na</strong> o<br />

primeiro seria o diálogo que mantém com as fontes populares. Como<br />

para Bakhtin o discurso é um elo <strong>na</strong> complexa cadeia comunicativa, o<br />

Auto da Compadecida suassuniano já não é primeiro e sim um outro de<br />

um outro, de um outro, e assim sucessivamente.<br />

Partimos do discurso dramatúrgico em sua forma verbal, face à<br />

impossibilidade de recuperação da ence<strong>na</strong>ção. Denomi<strong>na</strong>mos esse<br />

discurso Texto Fonte, entendendo-o como âncora: aquilo que atrai para<br />

servir de esteio, de amparo mesmo; que permite a sustentação da obra<br />

em construção, mas não impede a criatividade, a invenção.<br />

Descrevemos e a<strong>na</strong>lisamos o discurso suassuniano discutindo as<br />

questões referentes à autoria, gênero e temática. Mostramos sua<br />

proximidade com o teatro vicentino e o Movimento Armorial, assim como<br />

suas relações interdiscursivas com outros autores e textos bem como<br />

com a realidade cotidia<strong>na</strong> e seu diálogo com as fontes populares.<br />

Em um segundo movimento, descrevemos e a<strong>na</strong>lisamos a<br />

microssérie O Auto da Compadecida, mostrando o interdiscurso com o<br />

Texto-Fonte e seu diálogo com o cinema. Ao discutirmos o referencial<br />

teórico – a linguagem sob a ótica do pensador russo Mikhail Bakhtin –<br />

levantamos as categorias de análise bakhtinia<strong>na</strong>s <strong>ao</strong> mesmo tempo em<br />

30


que mostramos os procedimentos levados a efeito pela autoria da<br />

microssérie – Guel Arraes – e que se estendem até a feitura do filme<br />

homônimo.<br />

O tratamento dos dados será o de uma investigação no campo<br />

da(s) linguagem(ns), nos modos operacio<strong>na</strong>is praticados pela autoria,<br />

pois nosso interesse é a arquitetônica do discurso, ou seja, como<br />

elementos díspares organizam-se, reorganizam-se e se fazem um<br />

discurso outro, inserido num outro momento e espaço social e histórico,<br />

fazendo-se significado <strong>na</strong> interação, <strong>na</strong> interlocução.<br />

4 DESCREVENDO O OBJETO<br />

4.1 O autor e sua obra televisiva 24<br />

Miguel Arraes de Alencar Filho, <strong>na</strong>scido no ano de 1956,<br />

brasileiro de Per<strong>na</strong>mbuco, filho do lendário gover<strong>na</strong>dor Miguel Arraes,<br />

passou a grande parte de sua primeira mocidade no exterior, Argélia e<br />

depois Paris, acompanhando o pai em seu exílio político. Em 1972<br />

matricula-se no Curso de Antropologia, <strong>na</strong> Universidade de Paris VII.<br />

Ingressa no Comitê do Filme Etnográfico, dirigido por Jean Rouch,<br />

considerado mestre do cinema verdade. Tendo convivido com Rouch,<br />

Guel afirma ter aprendido com ele a fazer cinema e, principalmente, a<br />

paixão pelo cinema teria sido nele imprimida por Rouch sendo essa<br />

paixão que o sustenta. 25 A essas alturas, Guel já demonstra sua<br />

versatilidade. Trabalha como projetista, arquivista, montador. Seus<br />

primeiros trabalhos são documentários em super-8 e alguns curtas<br />

como diretor. Dirige também um média-metragem – Barbes Palace – em<br />

24 A fonte de informação utilizada foi: PROJETO MEMÓRIA DAS ORGANIZAÇÕES<br />

GLOBO. Dicionário da TV Globo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. v. 1: Programas de<br />

Dramaturgia & Entretenimento.<br />

25 De acordo com entrevista concedida origi<strong>na</strong>lmente para o site CULTURA – Banco do Brasil<br />

. CONDE, A<strong>na</strong> Paula. Diretor cabra da peste. Disponível em:<br />

. Acesso em: 04 agosto 2004.<br />

31


parceria com Ricardo Lua, ainda em Paris, ano de 1979. É <strong>na</strong>scido um<br />

diretor de cinema.<br />

Guel Arraes retor<strong>na</strong> <strong>ao</strong> Brasil em 1980, com a firme disposição de<br />

implementar o que ele tinha aprendido como assistente <strong>na</strong> equipe de<br />

Jean-Luc Godard, quando estudou em Paris. Embora Arraes afirme ter<br />

sido esporádica a convivência com Godard, a influência do seu cinema<br />

foi importante para sua formação. Entretanto, logo percebe que fazer<br />

cinema no Brasil é mais complicado do que pensara. A sétima arte<br />

ainda se encontrava sob a égide da Empresa Brasileira de Filmes<br />

(Embrafilme), estatal criada pelo governo militar para promover o<br />

cinema <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e produzir filmes. Convidado por Paulo Ubiratan e<br />

Roberto Talma, vai para a TV Globo. É <strong>na</strong>scido um diretor de televisão.<br />

Observando-se a produção de Guel Arraes, norteando-se pela<br />

classificação feita pela TV Globo, emissora para a qual o autor tem<br />

trabalhado desde o início de sua carreira, nota-se a grande diversidade<br />

de seu trabalho. A guisa de informação, vale dizer que o cinema, o tão<br />

sonhado projeto quando de sua chegada <strong>ao</strong> país em 1980, tem se<br />

concretizado, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que é preocupação de acadêmicos<br />

voltados para o setor como objeto de estudo.<br />

<strong>Do</strong> início tímido como assistente de produção de telenovelas,<br />

Arraes é hoje diretor de núcleo de produção. Lá pelo ano de 1995, a TV<br />

Globo passa a trabalhar com o que convencionou chamar de Núcleo,<br />

seguido do nome de seu líder, ou seja, diretor de produção. O Núcleo<br />

Guel Arraes tem se notabilizado por produções de grande sucesso junto<br />

<strong>ao</strong> público, o que em TV não significa, obrigatoriamente, qualidade. Mas<br />

a qualidade tem sido uma constante no trabalho desse núcleo sob a<br />

batuta de Arraes.<br />

Discutir a qualidade em televisão tem sido um embate às vezes<br />

doloroso, entre críticos, estudiosos e produtores. Para se discutir um<br />

produto é preciso conhecê-lo em possíveis e variadas dimensões; o<br />

objeto há de ser olhado, re-olhado, visto e re-visto. Categorias<br />

adequadas e próprias <strong>ao</strong> produto devem ser acio<strong>na</strong>das e o problema<br />

tor<strong>na</strong>-se então ainda mais complexo, pois elas não estão ‘prontas’,<br />

32


ainda ancoram-se em tradições estabelecidas pelas literatura e outras<br />

produções já canonizadas. No dizer de Machado 26 , <strong>ao</strong> olharmos a<br />

televisão, a única coisa que vemos é lixo, isso porque nos recusamos a<br />

ver, ficamos cegos quando encaramos a televisão. Para alguns críticos, o<br />

fato de ser um produto de massa impede a televisão de elevar-se do<br />

nível ‘mediano’. A academia, só recentemente, e em algumas áreas, tem<br />

reconhecido e aberto portas para a televisão como objeto de estudo, de<br />

análise, ou seja, tem reconhecido seus produtos como passíveis de<br />

estudos científicos.<br />

Tendo como fonte de nossas informações o Dicionário da TV Globo,<br />

estamos obedecendo à categorização por ele adotada, o que não<br />

significa que não estejamos atentas para o que consideramos<br />

i<strong>na</strong>dequações, levando em conta todo o aparato teórico já consolidado<br />

pelos pesquisadores que nos servem de orientação e balizamento para a<br />

construção de nosso referencial teórico. A intenção, por hora, é ape<strong>na</strong>s<br />

listar a produção, para dela termos uma noção geral e não deixarmos<br />

que alguma coisa escape às notações.<br />

4.1.1 Telenovelas<br />

Em 1981, Arraes é assistente de Jorge Fer<strong>na</strong>ndo <strong>na</strong> telenovela<br />

“Jogo da Vida” 27 . Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Sílvio Abreu vêm consolidando,<br />

desde fi<strong>na</strong>l da década de 70, um formato de telenovela caracterizado<br />

pelo humor pastelão das chanchadas 28 e que vai marcar o horário das<br />

19 horas da Globo. O humor vai <strong>ao</strong>s poucos se inserindo <strong>na</strong> história e<br />

acaba se fazendo humor rasgado. Jogo da Vida tem, em sua ce<strong>na</strong> de<br />

encerramento, uma novidade: os atores se apresentam em cima de um<br />

26 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Se<strong>na</strong>c, 2000, p. 20.<br />

27 Jogo da Vida. Escrita por Silvio de Abreu, inspirada no conto homônimo de Janete Clair,<br />

direção de Roberto Talma, Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Guel Arraes, produção de Antônio Chaves e<br />

Manoel Alves. Veiculada entre 26 de outubro de 1981 a 8 de maio de 1982, às 19h; 167<br />

capítulos.<br />

28 SILVA, Gonçalo Jr. Pais da TV: a história da televisão contada por Gonçalo Silva Jr. São<br />

Paulo: Conrad, 2001, p. 168.<br />

33


palco de teatro, agradecendo os aplausos, exibindo assim a linha<br />

demarcadora da ficcio<strong>na</strong>lidade e já inserindo a metalinguagem. Durante<br />

1982, Guel dirige, ainda com Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Roberto Talma, Sétimo<br />

Sentido 29 , novela de Janete Clair; Sol de Verão 30 tem direção<br />

compartilhada - Roberto Talma, Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Arraes. Guerra dos<br />

Sexos 31 consolida o estilo de comédia conceituado por Gonçalo Jr. como<br />

sendo de humor pastelão das chanchadas. Uma telenovela divertida e<br />

lúdica, com lances inovadores em termos de linguagem como o fato de<br />

as perso<strong>na</strong>gens comentarem os acontecimentos com o espectador que<br />

põe no vídeo dois monstros sagrados do teatro brasileiro: Fer<strong>na</strong>nda<br />

Montenegro e Paulo Autran, sob a direção compartilhada de Jorge<br />

Fer<strong>na</strong>ndo e Guel Arraes. Vereda Tropical 32 é outra parceria Jorge<br />

Fer<strong>na</strong>ndo/Guel Arraes que produziu uma confusão em um jogo de<br />

futebol (Vasco da Gama e Corinthians) no Estádio do Morumbi. O<br />

perso<strong>na</strong>gem Luca, jogador de futebol, estréia no Corinthians e a ce<strong>na</strong> é<br />

gravada no estádio, onde o protagonista Mário Gomes chega de<br />

helicóptero; como se não bastasse, quando o jogador Serginho marca<br />

um gol, o ator invade o gramado e é expulso pelo juiz da partida. No<br />

fi<strong>na</strong>l do jogo, a torcida corinthia<strong>na</strong> protesta contra o mau desempenho<br />

dos seus jogadores, pedindo a entrada do ator Mário Gomes. Ficção e<br />

realidade embaralham-se no gramado.<br />

29 Sétimo Sentido. Escrita por Janete Clair, direção de Roberto Talma, Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Guel<br />

Arraes, produção de Antônio Chaves. Veiculada entre 29 de março a 8 de outubro de 1982,<br />

às 20h; 166 capítulos.<br />

30 Sol de Verão. Escrita por Manoel Carlos, direção de Roberto Talma, Jorge Furtado e Guel<br />

Arraes, coorde<strong>na</strong>ção de produção de Antônio Chaves. Veiculada entre 11 de outubro de<br />

1982 a 18 de março de 1983; às 20 h; 137 capítulos.<br />

31 Guerra dos Sexos. Escrita por Silvio de Abreu com a colaboração de Carlos Lombardi,<br />

direção de Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Guel Arraes, sob a supervisão de Paulo Ubiratan e produção<br />

de Manoel Alves. Veiculada entre 6 de junho de 1983 a 6 de janeiro de 1984, às 19h; 185<br />

capítulos.<br />

32 Vereda Tropical. Escrita por Carlos Lombardi, argumento e supervisão de texto de Silvio de<br />

Abreu, direção de Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Guel Arraes, produção executiva de Eduardo Figueira<br />

e direção de produção de Manoel Martins. Veiculada entre 23 de junho de 1984 a 1º de<br />

fevereiro de 1985, às 19h; 184 capítulos.<br />

34


4.1.2 Minisséries e microsséries<br />

<strong>Do</strong><strong>na</strong> Flor e seus <strong>Do</strong>is Maridos 33 , tem texto de Dias Gomes com a<br />

colaboração de Marcílio Moraes e Ferreira Gullar, sob a direção geral de<br />

Mauro Mendonça Filho, inserida no Núcleo Guel Arraes.<br />

O grande sucesso O Auto da Compadecida tem Arraes, em<br />

companhia de Adria<strong>na</strong> e João Falcão, como autor do texto a partir da<br />

obra homônima de Suassu<strong>na</strong>. Realizada inteiramente sob a direção de<br />

Arraes, é também produzida pelo Núcleo Guel Arraes e apresentada<br />

como uma microssérie, pois tem ape<strong>na</strong>s 4 capítulos.<br />

Invenção do Brasil 34 tem 3 capítulos, e é escrita e dirigida por Guel<br />

Arraes e Jorge Furtado, sob produção do Núcleo Guel Arraes, fazendo<br />

parte dos eventos comemorativos dos 500 anos do Descobrimento do<br />

Brasil.<br />

Cidade dos Homens 35 é um projeto coorde<strong>na</strong>do por Arraes,<br />

realizado pela produtora O2 Filmes que marca o retorno da parceria da<br />

Rede Globo com produtoras independentes. Cidade dos Homens foi<br />

apresentada em 4 episódios escritos e dirigidos por diferentes roteiristas<br />

e diretores. Embora catalogada como microssérie, apresenta<br />

caracterização mais próxima de série pelo tipo de estruturação. Uma<br />

nova temporada, dirigida por Fer<strong>na</strong>ndo Meirelles tem lugar em 2004,<br />

ocorrendo ainda uma terceira temporada em 2005, anunciada como<br />

sendo a derradeira, sempre <strong>na</strong> Globo e em parceria com a produtora O2<br />

do próprio Meirelles 36 . Negociada para o exterior, a série chamou a<br />

atenção do mercado inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>ao</strong> receber o prêmio categoria<br />

televisão no Festival de Arte Cinematográfica de Genebra, em 2004.<br />

33 <strong>Do</strong><strong>na</strong> Flor e seus <strong>Do</strong>is Maridos, adaptação de Dias Gomes com a colaboração de Marcílio<br />

Moraes e Ferreira Gullar da obra homônima de Jorge Amado. Tem direção Mauro<br />

Mendonça Filho e direção do Núcleo Guel Arraes. Exibida de 31 de março a 1º de maio de<br />

1998; 20 capítulos.<br />

34 Invenção do Brasil vai <strong>ao</strong> ar de 19 a 21 de abril de 2000.<br />

35 Cidade dos Homens vai <strong>ao</strong> ar de 15 a 18 de abril de 2002.<br />

36 BRASIL, Ubiratan. Miami exibe o melhor do cinema <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. O Estado de S. Paulo, São<br />

Paulo, 27 julho 2004, p. D6.<br />

35


4.1.3 Seriados<br />

Armação Ilimitada 37 é a primeira direção exclusiva de Guel Arraes<br />

e marca o estilo inovador, experimental do diretor, valorizando<br />

sobremaneira a linguagem cinematográfica e de videoclipe, explorando<br />

também recursos gráficos próprios das histórias em quadrinhos. No<br />

segundo semestre de 1986, a equipe de direção passa a contar com<br />

Mário Márcio Bandarra e José Lavigne. No segundo semestre de 1988, a<br />

direção geral passa às mãos de Mário Márcio Bandarra. Em dezembro<br />

desse mesmo ano, o programa sai do ar.<br />

4.1.4 Diversos / Variedades<br />

Sob a rubrica Diversos / Variedades, estão categorizados<br />

produtos cujos formatos devem ser estudados com outro olhar,<br />

procurando a aplicação das teorias já sistematizadas o que, certamente,<br />

provocará uma outra categorização ou remanejamento para as já<br />

existentes.<br />

Programa Caso Especial 38 . Dura 24 anos, sob nomes diferentes e<br />

inserido em grades variadas, mantém a proposta e a estrutura iniciais.<br />

Trata-se de episódios com uma hora de duração, apresentando histórias<br />

origi<strong>na</strong>is ou adaptações, escritos e dirigidos por diferentes profissio<strong>na</strong>is<br />

da Globo. Para esse programa, Guel escreve ou dirige:<br />

37 Armação Ilimitada. Escrito por Antonio Calmon, Euclydes Marinho, Patrícia Travassos e<br />

Nelson Motta, com direção de Guel Arraes e produção executiva de Nilton Campello.<br />

Exibida entre 17 de maio de 1985 a 8 de dezembro de 1988, sextas-feiras, às 21h20; 174<br />

episódios.<br />

38 Programa Caso Especial estréia em 10 de setembro de 1971 com Caso especial “Nº 1” e termi<strong>na</strong><br />

em 05 de setembro de 1995 com A Farsa da Boa Preguiça, cujo texto-base é de Suassu<strong>na</strong>.<br />

36


O mambembe 39 , adaptação de Guel junto com Pedro Cardoso,<br />

Jorge Furtado e Naum Alves de Souza, da peça homônima de Artur de<br />

Azevedo. Dirigido por Arraes.<br />

O alienista 40 , adaptação da obra homônima de Machado de Assis<br />

com a mesma equipe anterior.<br />

Ed Mort – nunca houve mulher como Gilda 41 , sob texto de Luís<br />

Fer<strong>na</strong>ndo Veríssimo, Guel Arraes dirige e faz equipe de escrita com<br />

Jorge Furtado e Pedro Cardoso.<br />

Lisbela e o Prisioneiro 42 , dirigido por Arraes, que é também um dos<br />

autores do roteiro com Pedro Cardoso e Jorge Furtado. O texto-base é o<br />

homônimo de Osman Lins.<br />

Em companhia de Roberto Talma e Ignácio Coqueiro, Arraes<br />

dirige, em 25 de outubro de 1993, O Besouro e a Rosa 43 , adaptação livre<br />

de Manoel Carlos para os contos “O besouro e a rosa” e “Jaburu” de<br />

Mário de Andrade.<br />

Autor do texto com Jorge Furtado e João Falcão, Guel dirige, em<br />

21 de junho de 1994, O Coronel e o Lobisomem 44 . Com os mesmos<br />

parceiros escreve e dirige, em 23 de agosto de 1994, Comédia da Vida<br />

Privada 45 .<br />

Suburbano coração 46 , com direção de Guel sob texto de Jorge<br />

Furtado, João Falcão e o próprio Arraes, trio que comanda <strong>na</strong> mesma<br />

formação O homem que sabia javanês 47 .<br />

Em O Engraçado Arrependido 48 , Guel trabalha com Pedro<br />

Cardoso, Jorge Furtado, João Falcão e A<strong>na</strong> Braga.<br />

39 Exibido em 8 de junho de 1993.<br />

40 Exibido em 6 de julho de 1983.<br />

41 Exibido em 21 de dezembro de 1993.<br />

42 Exibido em 31 de agosto de 1993.<br />

43 Exibido em 25 de outubro de 1993.<br />

44 Exibido em 21 de junho de 1994.<br />

45 Exibido em 23 de agosto de 1994.<br />

46 Exibido em 27 de setembro de 1994.<br />

47 Exibido em 8 de novembro de 1994.<br />

48 Exibido em 9 de maio de 1995.<br />

37


A Comédia da Vida Privada, exibida em 1994 como especial,<br />

acaba por fixar-se <strong>na</strong> programação da Rede Globo e vai <strong>ao</strong> ar uma vez<br />

por mês, <strong>na</strong> Terça Nobre 49 , num total de 21 episódios. De início<br />

baseados <strong>na</strong>s crônicas de Luiz Fer<strong>na</strong>ndo Veríssimo, a partir de 1996 os<br />

episódios passam a ser escritos por João Falcão, Pedro Cardoso,<br />

Alexandre Machado, Fer<strong>na</strong>nda Young, Adria<strong>na</strong> Falcão, Jorge Furtado e<br />

o próprio Guel Arraes. São episódios que contam com a participação de<br />

Arraes como diretor e/ou escritor:<br />

Pais e filhos 50 , Solteiros x Casados 51 , Ape<strong>na</strong>s Bons Amigos 52 , A<br />

Casa dos Quarenta 53 , Sexo <strong>na</strong> Cabeça 54 , Mãe é Mãe 55 , Menino ou<br />

Meni<strong>na</strong> 56 , O Pesadelo da Casa Própria 57 , A Próxima Atração 58 , O Grande<br />

Amor da Minha Vida 59 , O Mistério da Vida Alheia 60 , As Idades do Amor 61 ,<br />

Drama 62 , Papai foi pra Lua 63 .<br />

Brava Gente 64 , produção do Núcleo Guel Arraes em 8 programas<br />

exibidos em quatro dias e apresentado como especial de fim de ano em<br />

dezembro de 2000. Numa segunda exibição, fica no ar a partir de 27 de<br />

março de 2001 até 2003, sempre às terças-feiras, num total de 53<br />

programas. O que caracteriza o trabalho é a variedade genérica em<br />

função da diversidade estilística de cada diretor. Na segunda<br />

temporada, (2001/2002) a produção passa a ser dividida entre os<br />

núcleos de Arraes e Jayme Monjardim. Durante a exibição da<br />

minissérie Presença de Anita, em agosto de 2001, Brava Gente deixa de<br />

ir <strong>ao</strong> ar, retor<strong>na</strong>ndo em setembro do mesmo ano.<br />

49 Exibida entre 25 de abril de 1995 e 26 de agosto de 1997.<br />

50 Exibido em 25 de abril de 1995.<br />

51 Exibido em 23 de maio de 1995.<br />

52 Exibido em 20 de junho de 1995.<br />

53 Exibido em 4 de julho de 1995.<br />

54 Exibido em 8 de agosto de 1995.<br />

55 Exibido em 3 de outubro de 1995.<br />

56 Exibido em 7 de novembro de 1995.<br />

57 Exibido em 12 de dezembro de 1995.<br />

58 Exibido em 2 de abril de 1996<br />

59 Exibido em 30 de abril de 1996.<br />

60 Exibido em 4 de junho de 1996.<br />

61 Exibido em 20 de agosto de 1996.<br />

62 Drama exibido em 29 de outubro de 1996.<br />

63 Exibido em 1º de abril de 1997.<br />

64 Exibido de 26 a 29 de dezembro de 2000.<br />

38


Tiveram participação direta de Arraes os episódios:<br />

Condomínio 65 , sob origi<strong>na</strong>l de Luis Fer<strong>na</strong>ndo Verissimo em<br />

companhia de Jorge Furtado.<br />

Morto do Encantado Morre e Pede Passagem 66 , adaptação junto<br />

com Furtado da peça homôni<strong>na</strong> de Oduvaldo Vian<strong>na</strong> Filho.<br />

Pastores da Noite 67 , série composta de quatro episódios<br />

autônomos com os mesmos perso<strong>na</strong>gens centrais (boêmios,<br />

mulherengos e malandros “pastores”, oriundos da obra homônima de<br />

Jorge Amado) e escritos por Arraes, Cláudio Paiva e Sergio Machado.<br />

Essa série dá continuidade <strong>ao</strong> projeto de parceria com as principais<br />

produtoras independentes do país. 68<br />

Sitcom.br 69 é um novo quadro dentro do Fantástico, da grife<br />

Arraes. São autores dos textos Adria<strong>na</strong> Falcão e Luiz Fer<strong>na</strong>ndo<br />

Veríssimo<br />

Esses produtos têm, mesmo aqueles inseridos em outros<br />

programas, características que permitem sua categorização no formato<br />

unitário: ficção para TV, levada <strong>ao</strong> ar de uma só vez, com duração de<br />

aproximadamente uma hora, programa que se basta a si mesmo, que<br />

conta uma história com começo, meio e fim, que esgota sua proposição <strong>na</strong><br />

unidade e nela se encerra. 70<br />

65 Exibido em 29 de dezembro de 2000.<br />

66 Exibido em 1º de maio de 2001.<br />

67 Exibido de 26 de novembro a 17 de dezembro de 2002.<br />

68 O Dicionário da TV Globo coloca o título desta série como Brava Gente. Pastores da Noite é<br />

exibida entre 26 de novembro e 17 de dezembro de 2002.<br />

69 Estréia em 18 de julho de 2004.<br />

70 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão, p. 25.<br />

39


4.1.5 Humor<br />

TV Pirata 71 é um humorístico que se propõe a satirizar a televisão<br />

brasileira, com um elenco variado de redatores que empresta uma<br />

característica bastante diversificada de humor. Com textos de Luis<br />

Fer<strong>na</strong>ndo Verissimo e seu humor mais refi<strong>na</strong>do, passando pelo humor<br />

de costumes dos textos de Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro. Traz<br />

também Mauro Rasi e sua crítica à burguesia, os perso<strong>na</strong>gens místicos,<br />

os populares, chegando <strong>ao</strong> humor escrachado do grupo Casseta &<br />

Planeta, o programa tinha de tudo em termos de riso. TV Pirata é uma<br />

marca nos programas humorísticos e, segundo Arraes, é uma proposta<br />

de que resgata o antigo humor do rádio e traz à ce<strong>na</strong> o comediante, não<br />

mais o humorista. Busca atores de teatro (Regi<strong>na</strong> Casé) e descobre a<br />

veia humorística de Débora Bloch, por exemplo, até então mocinha de<br />

telenovelas, mas boa comediante no teatro.<br />

Programa Legal 72 tem à frente Regi<strong>na</strong> Casé e Luiz Fer<strong>na</strong>ndo<br />

Guimarães. O programa é bem uma produção de Arraes, um misto de<br />

documentário, ficção e humor. Em cada ‘episódio’, é abordado um único<br />

tema a partir do qual se organiza uma pauta jor<strong>na</strong>lística. A cenografia<br />

tem estrutura cinematográfica, edição ágil, ritmo rápido e grande<br />

variedade informativa. Guel Arraes trabalha em dupla com Belisário<br />

França <strong>na</strong> direção geral.<br />

Dóris para Maiores 73 , dirigido por Arraes e José Lavigne, é um<br />

programa mensal, que mistura jor<strong>na</strong>lismo, ficção e humor. Apresenta<br />

71 TV Pirata. Texto de Mauro Rasi, Luis Fer<strong>na</strong>ndo Verissimo, Vicente Pereira, Patrícia<br />

Travassos, Felipe Pinheiro, Pedro Cardoso, Hubert, Rei<strong>na</strong>ldo, Bussunda, Cláudio Manuel,<br />

Hélio de La Pe<strong>na</strong>, Beto Silva e Marcelo Madureira, sob a coorde<strong>na</strong>ção de Cláudio Paiva,<br />

com direção geral de Guel Arraes, direção de José Lavigne, Carlos Magalhães e do próprio<br />

Guel Arraes, produção de J. de Camillis. Exibido de 5 de junho de 1988 a 31 de julho de<br />

1990, e <strong>na</strong> segunda fase de 21 de abril a 8 de dezembro de 1992, às terças-feiras, às 21h30.<br />

72 Programa Legal. Texto de Hubert, Pedro Cardoso, André Waissman e Marcelo Tas com a<br />

colaboração de Jorge Furtado e Luis Fer<strong>na</strong>ndo Verissimo, direção de Guel Arraes e<br />

Belisário França. Exibido de 9 de abril de 1991 a 29 de dezembro de 1992.<br />

73 Dóris para maiores. Direção de Guel Arraes e José Lavigne, coorde<strong>na</strong>ção de jor<strong>na</strong>lismo de<br />

Claufe Rodrigues, edição de jor<strong>na</strong>lismo de Cláudio Manuel, Marcelo Madureira, Beto Silva,<br />

40


em tom ensaístico fatos interessantes, com pauta variada:<br />

vagabundagem, striptease masculino, impotência, rivalidades culturais<br />

etc. Apresentado pela jor<strong>na</strong>lista Dóris Giesse.<br />

Casseta & Planeta, Urgente! 74 , de responsabilidade do Núcleo<br />

Walter Lacet até 1995. Durante o ano de 1996, o humorístico não tem<br />

quadros fixos e é dirigido pelo Núcleo J. B. de Oliveira (Boninho). Em<br />

1998 passa a ser dirigido pelo Núcleo Guel Arraes e a partir de 07 de<br />

abril desse ano tor<strong>na</strong>-se uma atração sema<strong>na</strong>l, com duração de 25<br />

minutos. Na linha “jor<strong>na</strong>lismo-mentira e humorismo-verdade”, através<br />

da paródia <strong>ao</strong> jor<strong>na</strong>lismo convencio<strong>na</strong>l, cria uma maneira engraçada e<br />

particular de abordar os fatos da atualidade. Como Programa Legal e<br />

Dóris para Maiores, o produto apresenta um enorme cuidado com o<br />

visual, atraindo para o grupo inúmeros artistas plásticos.<br />

A Grande Família (segunda versão) 75 é um remake do histórico<br />

programa criado por Max Nunes em 1972, a primeira comédia de<br />

costumes da Rede Globo, baseada inicialmente <strong>na</strong> série norteamerica<strong>na</strong><br />

All in the Family. A partir do segundo ano de exibição,<br />

adapta-se à realidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e a redação passa a ser de Oduvaldo<br />

Vian<strong>na</strong> Filho (Vianninha) e Armando Costa. O texto passa a apresentar<br />

uma forte crítica social e política através de metáforas que – nem<br />

sempre – driblam a censura. Na nova versão, os problemas familiares<br />

são atualizados: por exemplo, o filho contestador político de 1972 deixa<br />

de existir. A filha é mais atuante, o genro vira motorista de táxi depois<br />

de comprar o carro do sogro. Em abril de 2003 <strong>na</strong> reestréia da nova<br />

temporada, apresenta outras modificações: Bebel, a filha, arranja um<br />

emprego. No primeiro semestre de 2004, novas modificações são<br />

introduzidas com a morte de Seu Flor (Rogério Cardoso). Os episódios<br />

contam com a participação especial de vários atores.<br />

Bussunda, Hélio de La Peña, Hubert e Rei<strong>na</strong>ldo. Exibido de 16 de abril a 17 de dezembro<br />

de 1991.<br />

74 Casseta & Planeta, Urgente! Texto de Hubert, Cláudio Manuel, Bussunda, Hélio de Lá Peña,<br />

Rei<strong>na</strong>ldo, Marcelo Madureira e Beto Silva – integrantes do grupo Casseta & Planeta – com<br />

direção geral de José Lavigne, direção de Rogério Gomes, produção executiva de Andréa<br />

Vaz, direção de produção de Marcelo Paranhos, produzido pelo Núcleo Walter Lacet até<br />

1995. Durante 1996 e a partir de abril de 1998, pelo Núcleo Guel Arraes.<br />

75 Exibida desde 29 de março de 2001 até o <strong>presente</strong> momento.<br />

41


Os Normais 76 tem Fer<strong>na</strong>nda Young e Alexandre Machado como<br />

responsáveis pelo texto, sob direção de José Alvarenga Júnior e<br />

produção do Núcleo Guel Arraes. Comédia de situação (sitcom), prevista<br />

para ir <strong>ao</strong> ar em ape<strong>na</strong>s doze episódios, faz imenso sucesso e acaba por<br />

fixar-se <strong>na</strong> grade de programação. O seriado mostra grande<br />

preocupação com o visual e apresenta um tratamento estético<br />

cinematográfico, o que permite mais profundidade de campo às ce<strong>na</strong>s.<br />

Os perso<strong>na</strong>gens falam com a câmera e se dirigem <strong>ao</strong>s telespectadores.<br />

Tem como marca de ence<strong>na</strong>ção o improviso – a última ce<strong>na</strong> dos<br />

episódios é sempre improvisada por Fer<strong>na</strong>nda Torres e Luiz Fer<strong>na</strong>ndo<br />

Guimarães – e o corte da edição é empregado como piada.<br />

4.1.6 Variedades<br />

Brasil Legal 77 , criação do Núcleo Guel Arraes, é dirigido por<br />

Sandra Kogut e apresentado por Regi<strong>na</strong> Casé. A partir de 1995, Guel<br />

Arraes é um dos diretores de programa. No dia 16/12/1997 vai <strong>ao</strong> ar o<br />

último programa com o formato origi<strong>na</strong>l: em andanças pelo país a<br />

apresentadora mostrava os costumes, hábitos do povo, daí sua relação<br />

com o cotidiano. O projeto Brasil Legal para 1998 consta de 6 episódios<br />

distribuídos <strong>ao</strong> longo do ano. Ape<strong>na</strong>s um vai <strong>ao</strong> ar, em 26/4/1998,<br />

tendo como tema o Descobrimento o que sugere afastamento da<br />

proposição inicial, que eram os temas cotidianos, e um deslocamento<br />

para os grandes temas de interesse histórico. O programa gerou uma<br />

série educativa no Ca<strong>na</strong>l Futura – Histórias do Brasil Legal – que<br />

tirando proveito da verve humorística de Casé, explora as imagens<br />

inusitadas e anônimas do país. Acaba tor<strong>na</strong>ndo-se um documentário de<br />

costumes. Brasil Legal é concebido a partir de um programa piloto<br />

76 Os Normais. Texto de Fer<strong>na</strong>nda Young e Alexandre Machado, direção de José Alvarenga<br />

Júnior, produção do Núcleo Guel Arraes. Exibida de 1º de junho de 2001 até 2003.<br />

77 Brasil Legal. Criação do Núcleo Guel Arraes, com direção de Sandra Kogut, apresentado<br />

por Regi<strong>na</strong> Casé. O programa-piloto é exibido em 28 de dezembro de 1994, os demais <strong>na</strong><br />

Terça Nobre entre 16 de maio de 1995 a 16 de dezembro de 1997, o último em 26 de abril de<br />

1998, domingo, 21h30, inserido no Fantástico.<br />

42


ealizado dentro da programação de fim de ano da Rede Globo e exibido<br />

em 28 de dezembro de 1994.<br />

Muvuca 78 , produzido pelo Núcleo Guel Arraes e dirigido por Mauro<br />

Mendonça Filho, tem apresentação de Regi<strong>na</strong> Casé. Mistura talk-show,<br />

reportagens especiais, entrevistas com gente famosa e também com<br />

anônimos.<br />

Ce<strong>na</strong> Aberta 79 , apresentado por Regi<strong>na</strong> Casé e com direção<br />

compartilhada Arraes/Furtado, é um projeto do trio que mostra, como o<br />

nome diz, a feitura de um especial de televisão, exibindo as técnicas, os<br />

recursos, a preparação dos atores e assim como revela um pouco da<br />

expectativa do público.<br />

4.2 Temática<br />

No Brasil, face <strong>ao</strong> interesse pela telenovela, muitos trabalhos têm<br />

vindo à luz e apontado para aspectos interessantes, valiosos e<br />

oportunos, especialmente em termos comunicacio<strong>na</strong>is. Pesquisas, teses<br />

e livros sobre o assunto têm surgido com certa freqüência, como pode<br />

ser constatado <strong>na</strong> bibliografia deste trabalho. Europa e Estados Unidos<br />

têm se notabilizado por preocupações, inclusive em termos formais,<br />

pela produção televisiva e não só a ficcio<strong>na</strong>l. Portanto, há de se<br />

reconhecer o status da televisão, não como campo da sociologia, da<br />

tecnologia e do marketing, mas como indiscutível fato cultural de nosso<br />

tempo 80 . Não nos cabe aqui discutir a questão da televisão de qualidade<br />

(quality television), mas cremos que vale a pe<strong>na</strong>, utilizando-nos do<br />

levantamento feito por Machado, sob esse (e outros) conceito,<br />

78 Texto de Genetton Moraes Neto, Hamilton Vaz Pereira, Rosane Svartman, João Carrascosa,<br />

Sérgio Goldemberg, Tiago Worcman e Patrícia Guimarães, redação fi<strong>na</strong>l de Rafael<br />

Dragaud, coorde<strong>na</strong>ção de Regi<strong>na</strong> Casé e Alberto Reanult, direção de Estevão Ciavatta,<br />

direção geral de Mauro Mendonça Filho, direção de produção de Eduardo Figueira,<br />

produzido pelo Núcleo Guel Arraes.<br />

79 Apresentado em 4 episódios durante 2003. Exibido de 14 de novembro de 1998 a 22 de<br />

agosto de 2000, <strong>ao</strong>s sábados, às 21h40.<br />

80 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 21.<br />

43


anotarmos o lugar reservado para a produção <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e especialmente<br />

para os trabalhos de Guel Arraes. Sob a rubrica Trinta programas mais<br />

importantes da história da televisão temos os brasileiros: Auto da<br />

Compadecida (de Arraes, 1998), Retrospectiva do Ano (de Tas, 1988).<br />

Hitler (de Olivetto e Zellmeister, 1987). Sob a rubrica Trabalhos<br />

brasileiros mais destacados, inserida numa categorização mais ampla,<br />

Outros trabalhos importantes a considerar, entre 41 anotados por<br />

Machado, o nome de Arraes aparece 5 vezes, isso até o ano 2000:<br />

Armação Ilimitada, Comédia da Vida Privada, Invenção do Brasil,<br />

Programa Legal, TV Pirata.<br />

Dentro do quadro ‘qualidade’, já fica notória a diversidade<br />

temática, acrescentando-se a lista completa de trabalhos, visualiza-se<br />

uma amplitude de temas, de gêneros e formatos. Essa diversidade<br />

aponta o desafio como mola propulsora de Arraes, sempre subvertendo,<br />

regenerando e constituindo novos modos de ser da produção televisiva.<br />

Face <strong>ao</strong> nosso interesse pela minissérie, restringimos, em<br />

princípio, o levantamento temático a esse formato. Suspeitamos a<br />

impossibilidade de nos atermos somente às minisséries, face à<br />

proximidade temática, e até estrutural, existente entre elas, e os<br />

programas que consideramos unitários, seguindo a nomenclatura<br />

proposta por nossos suportes teóricos.<br />

Logo de início, nota-se, <strong>na</strong>s quatro minisséries ou microssséries<br />

(subdivisão da minissérie, por ora, categorizada pela extensão), ser o<br />

homem e seu estar no mundo a grande preocupação. O homem e sua<br />

luta pela sobrevivência, em situações difíceis, mais ou menos, mas<br />

sempre complicadas, em termos materiais, emocio<strong>na</strong>is, sociais. Quando<br />

falamos do homem, vale explicitar, do homem brasileiro. O único que<br />

não é <strong>na</strong>scido e culturalmente não é brasileiro, Diogo, de A Invenção do<br />

Brasil, ‘acultura-se’. Quando as coisas se ajeitam no âmbito material, o<br />

coração dispara e o afetivo vem à to<strong>na</strong>, mostrando outra faceta do<br />

homem. A tão cantada sexualidade do povo permeia os momentos<br />

importantes. De início, explicitamente ausente de Cidade dos Homens,<br />

com a entrada <strong>na</strong> adolescência de suas perso<strong>na</strong>gens, ela surge. O<br />

44


cotidiano, mesmo em A Invenção do Brasil, que poderia sugerir algo<br />

espetacular, distante do dia-a-dia e próximo <strong>ao</strong> palácio do descobridor,<br />

emerge quando as ações deslocam-se para a oca, a rede, o amor, a<br />

sexualidade. Diogo aprende a comer com as mãos, mistura amora com<br />

<strong>na</strong>mora. Entretanto, nem tudo fica no nível do divertido, embora o<br />

humor seja uma constante. A crítica social dispara seus petardos em<br />

Cidade dos Homens pelo riso, pelo olhar matreiro, jovem, de uma beleza<br />

triste-alegre de Laranjinha e Acerola.<br />

<strong>Do</strong><strong>na</strong> Flor e seus <strong>Do</strong>is Maridos tem como foco <strong>na</strong>rrativo as agruras<br />

afetivo-sexuais de uma mulher jovem e sensual que perde seu marido,<br />

farrista e um tanto vadio, mas a quem ela amava de todo o coração e de<br />

todo o corpo. A luta cotidia<strong>na</strong> que sempre fora por ela travada para<br />

ganhar o pão de cada dia deixa de ser prioritária quando se casa com o<br />

farmacêutico, esse sim, um marido nos moldes burgueses ditados pela<br />

sociedade. A luta agora passa a ser outra: livrar-se do espírito do<br />

desejável primeiro marido. A cidade de Salvador é a moldura mais do<br />

que adequada para um retrato do Brasil moreno, alegre e sensual que<br />

revela <strong>na</strong>s suas ruelas e becos uma outra realidade.<br />

Auto da Compadecida faz emergir um Brasil <strong>arcaico</strong>, com sua<br />

religiosidade mística e um tanto mágica. A pobreza extrema, a<br />

exploração do miserável pelo pobre e dos dois pelo rico. A crítica dura à<br />

Igreja 81 é feita de um modo risível. A ausência do Estado que, quando se<br />

faz representar, o é através de uma tropa policial mal trei<strong>na</strong>da, mal<br />

armada, formada por indivíduos preocupados consigo mesmos. <strong>Do</strong><br />

mesmo modo, os religiosos <strong>presente</strong>s são ve<strong>na</strong>is e os gover<strong>na</strong>ntes estão<br />

afastados e/ou distantes. A simplicidade esperta e matreira do<br />

sertanejo, sua resistência a todos os tipos de inclemência, da <strong>na</strong>tureza e<br />

da sociedade.renovam a vontade de viver, a esperança de vencer. A<br />

solidariedade, a amizade. A fé e a crença que fazem do homem o doador<br />

de seu único bem. Acima de tudo, a misericórdia emerge como dom<br />

maior.<br />

81 Para Carlos Newton Júnior a crítica é menos à Igreja e muito mais dirigida <strong>ao</strong>s homens que<br />

dentro dela agem de modo contrário <strong>ao</strong>s preceitos do Cristo. NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto<br />

da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro:<br />

Agir, 2004.<br />

45


A Invenção do Brasil mais do que tematizar o humano, aponta<br />

para o homem brasileiro, para o país. Diogo Alvarez (Caramuru) é um<br />

degredado cuja culpa foi ter se apaixo<strong>na</strong>do por uma cortesã que<br />

trabalhava para Vasco Ataíde e ter se apossado do mapa que serviria de<br />

guia para Pedro Álvares Cabral para nele pintar o retrato da formosa<br />

dama. Ou seja, ingênuo e apaixo<strong>na</strong>do, chega a Pindorama onde conhece<br />

o amor ‘bárbaro’ nos braços de Paraguaçu e de sua irmã Moema. Num<br />

interessante processo de estilização, a minissérie mostra o encontro<br />

entre culturas diferentes e resgata o drama que pertence <strong>ao</strong> imaginário<br />

popular em ritmo de comédia e sensualidade, numa deliciosa mistura<br />

de realidade e ficção, no mais puro estilo televisivo.<br />

Sobre Cidade dos Homens e seus meninos-homens:<br />

É através do olhar dos protagonistas Acerola<br />

(<strong>Do</strong>uglas Silva) e Laranjinha (Darlan Cunha), que a trama<br />

toma forma, crianças como tantas outras que povoam essa<br />

<strong>na</strong>rrativa, apesar da infância, o cotidiano do mundo vivido<br />

por esses perso<strong>na</strong>gens é apresentado sem inocência e o<br />

lúdico próprio de suas idades dá vez à necessidade de<br />

sobrevivência. Acerola e Laranjinha, para se equilibrarem<br />

<strong>na</strong> fi<strong>na</strong> linha entre o ‘certo’ e o ‘errado’, entre o ‘bem’ e o<br />

‘mal’, vivem a todo instante transpondo essa linha<br />

imaginária com criatividade e sabedoria adquirida pela<br />

vivência em ‘cidade de homens’. 82<br />

São crianças agindo como homens para sobreviverem no<br />

cotidiano hostil e violento dos morros cariocas.<br />

Uma visada, ainda que panorâmica, nos demais trabalhos<br />

ficcio<strong>na</strong>is de Guel Arraes, mostra preferência por expressar a realidade,<br />

o cotidiano, a história, enfim, do país e de sua gente: Auto da<br />

Compadecida, Auto da Boa Preguiça, O Alienista, O Coronel e o<br />

Lobisomem, Lisbela e o Prisioneiro, Pastores da Noite. Os autores do<br />

Núcleo Guel Arraes estão a todo instante dando provas de conhecerem o<br />

ofício da escrita, o país e sua gente, elementos que consideramos<br />

índices apropriados da preocupação temática com o país e sua<br />

produção cultural.<br />

82 MALCHER, Maria Ataíde; VIDAL, Marly CB. Cidade dos Homens e Turma do Gueto:<br />

oportunidades de inovações a partir das brechas. In: A<strong>na</strong>is do VI Lusocom, promovido pela<br />

Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação – Sopcom – e pela Universidade da<br />

Beira Interior – UBI, Covilhã, Portugal, 21 a 24 de abril de 2004.<br />

46


Os seriados e os programas de humor mostram também uma<br />

vivência com a gente do povo, com suas lutas, sonhos, tristezas e suas<br />

festas. Disso são exemplos os programas Brasil Legal e Muvuca,<br />

híbridos evidentes nos quais humor, informação, ficção misturam-se,<br />

embaralham-se e se apresentam como algo inovador e criativo, abrindo<br />

novas possibilidades de categorização, de classificação, numa<br />

comprovação do espírito desafiador do diretor e sua trupe.<br />

4.3 Seleção da amostra<br />

#" 83<br />

Estamos deparando-nos com um autor cujo talento se distribui<br />

generosamente em várias direções no espectro produtivo da ‘invenção’<br />

televisiva. O uso da palavra ficção foi aqui evitado pelo fato de estarmos<br />

frente a programas, no nosso entender, híbridos, nos quais se misturam<br />

documentário, ficção, humor, talk-show, entrevistas e o que mais for<br />

possível percebermos numa visão atenta. Não descartamos, entretanto,<br />

o termo invenção, pensando aqui a inventividade que consideramos<br />

própria do autor, inventividade no sentido de, <strong>ao</strong> misturar, embaralhar,<br />

criar novas possibilidades, fazendo disso sua arte.<br />

Nesse universo amplo e diverso, optamos, em princípio, pela<br />

ficção e, num segundo momento, pela minissérie, englobando no<br />

substantivo a microssérie, pois até agora o que notamos como<br />

diferencial (e isso provavelmente vai, se não modificar, influenciar o<br />

produto) é a questão da extensão, ou seja, a microssérie tem 3, 4<br />

capítulos (Invenção do Brasil, Auto da Compadecida) contra 20 de <strong>Do</strong><strong>na</strong><br />

Flor e seus <strong>Do</strong>is Maridos, A Casa das Sete Mulheres (53 capítulos) e JK<br />

83 Ditado nordestino que, segundo Suassu<strong>na</strong>, retrata João Grilo. FELINTO, Marilene; LEITE<br />

NETO, Alcindo. Entrevista com Suassu<strong>na</strong>. Alma<strong>na</strong>que Folha On Line, 16 junho 2000.<br />

Disponível em: . Acesso em:<br />

25 de janeiro de 2006.<br />

47


(segundo informações prelimi<strong>na</strong>res, 50). Ao fazermos esse primeiro<br />

recorte, deixamos de lado alguns ‘unitários’ <strong>na</strong> nomenclatura de<br />

Pallottini, também ficcio<strong>na</strong>is como O Coronel e o Lobisomem, Lisbela e o<br />

Prisioneiro, O Alienista, O Mambembe e outros mais.<br />

4.3.1 Recorte da amostra<br />

<strong>Do</strong><strong>na</strong> Flor e seus <strong>Do</strong>is Maridos, O Auto da Compadecida, Invenção<br />

do Brasil, Cidade dos Homens são considerados sob a rubrica<br />

minissérie/microsséries pela Rede Globo. 84 Optamos por trabalhar com<br />

O Auto da Compadecida, considerando que a minissérie em questão<br />

pode ser relacio<strong>na</strong>da, melhor, pode inter-relacio<strong>na</strong>r-se, travar um<br />

diálogo bastante proveitoso com Bakhtin, nosso teórico de referência.<br />

Fazemos notar, outrossim, que não descartaremos, no correr do<br />

trabalho, referências inter<strong>na</strong>s, isto é, a outras minisséries e até mesmo<br />

unitários de Guel Arraes, bem como exter<strong>na</strong>mente, a minisséries de<br />

outras autorias, como apoio e/ou comprovação de nossas idéias.<br />

4.3.2 O Auto da Compadecida<br />

O Auto da Compadecida 85 é uma minissérie do Núcleo Guel<br />

Arraes, que se origi<strong>na</strong> do texto homônimo de Ariano Suassu<strong>na</strong> para o<br />

teatro. São autores do texto televisivo, junto com Arraes, Adria<strong>na</strong> Falcão<br />

e João Falcão. A direção geral é de Arraes, com direção de produção de<br />

Eduardo Figueira.<br />

84 PROJETO MEMÓRIA DAS ORGANIZAÇÕES GLOBO. Dicionário da TV Globo, 2003.<br />

85 O Auto da Compadecida. Adaptação de Guel Arraes, Adria<strong>na</strong> Falcão, João Falcão da peça<br />

homônima de Ariano Suassu<strong>na</strong>, direção de Guel Arraes, direção de produção de Eduardo<br />

Figueira, produzida pelo Núcleo Guel Arraes. Exibida nos dias 5 a 8 de janeiro de 1999,<br />

22h30, 4 capítulos.<br />

48


Filmada em película, O Auto da Compadecida, além do elenco,<br />

contou com uma equipe de 65 pessoas que trabalhou durante 37 dias<br />

de filmagem em Cabaceiras, no sertão paraibano (40% de exter<strong>na</strong>s); nos<br />

estúdios do Projac e da Cinédia (60% de inter<strong>na</strong>s), no Rio de Janeiro. O<br />

Auto da Compadecida ganhou o Grande Prêmio da Crítica, em 1999,<br />

concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).<br />

Reeditada em 2000, com uma hora a menos de duração, foi levada <strong>ao</strong><br />

cinema e, posteriormente, lançada em DVD.<br />

Um elenco escolhido a dedo marcou de forma indelével a<br />

minissérie. Mateus Nachtergale foi o grande destaque <strong>na</strong> pele de João<br />

Grilo, este uma pessoa despida de qualidades físicas e intelectuais (sob<br />

o ponto de vista da oficialidade, da formalidade), mas inteligente e dono<br />

de uma esperteza que lhe permite sobreviver às maiores agruras da vida<br />

no sertão, e que defende, com Selton Melo, soberbo no papel do ingênuo<br />

e loroteiro Chicó, o plot central da minissérie, sustentando o humor, o<br />

riso e a ironia que se constituem em colu<strong>na</strong>s mestras do trabalho. Esse<br />

mesmo escárnio se espraia por outros perso<strong>na</strong>gens, como o pároco<br />

(Rogério Cardoso) e o bispo (Lima Duarte), Eurico e <strong>Do</strong>ra (Diogo Vilela e<br />

Denise Fraga), que <strong>na</strong>da ficam a dever, nos limites da<br />

representatividade <strong>na</strong>rrativa, <strong>ao</strong>s dois perso<strong>na</strong>gens centrais da trama.<br />

Marco Nanini defende com bravura seu triste e valente cangaceiro que<br />

tem Enrique Diaz como seu comparsa. Paulo Goulart no papel de<br />

Antônio Moraes faz o pai perfeito de Virginia Cavendish, a linda e ter<strong>na</strong><br />

Rosinha. Aramis Trindade, <strong>na</strong> pele do Cabo Setenta, parece que sempre<br />

usou farda e quépi. Bruno Garcia com seu corpão sarado é Vicentão, o<br />

valentão interiorano. Maurício Gonçalves faz um Jesus doce e alegre,<br />

Luiz Melo como o Diabo é mais, é diabólico, e Fer<strong>na</strong>nda Montenegro, a<br />

Compadecida, é doce e mater<strong>na</strong>l e faz jus <strong>ao</strong> epíteto de melhor atriz<br />

brasileira da atualidade. Enfim um ‘cast’ perfeito, tanto <strong>na</strong> telinha<br />

quando <strong>na</strong> tela grande.<br />

A caracterização do elenco foi de responsabilidade de Marlene<br />

Moura. Nachtergale recebeu uma prótese que tornou seus dentes<br />

irregulares, amarelos e ainda forçou um olhar vesgo que deformava sua<br />

fisionomia, além de ter a pele escurecida. Nanini recebeu um olho de<br />

49


vidro, látex no rosto, peruca e roupas que chegavam a pesar 8 quilos.<br />

Os figurinos foram criados por C<strong>ao</strong> Albuquerque, numa mistura do<br />

universal <strong>arcaico</strong> com regio<strong>na</strong>l nordestino. As roupas foram<br />

processadas – tingidas, lavadas, cozidas – de modo a adquirirem um<br />

aspecto envelhecido, desgastado e empoeirado. João Falcão e Carlinhos<br />

Borges foram responsáveis pela produção musical, a cenografia ficou a<br />

cargo de Fer<strong>na</strong>ndo Schmidt, Cláudio <strong>Do</strong>mingos e Érika Lovisi, com<br />

direção de fotografia de Felix Monti. O tratamento visual aplicado<br />

favoreceu a identificação com o Nordeste da década de 30 e esteve sob<br />

responsabilidade de Capy Ramazzi<strong>na</strong>. Os efeitos especiais estiveram sob<br />

a batuta de James Rothman. Lia Renha foi responsável pela direção de<br />

arte e as mentiras – os causos estapafúrdios – contadas por Chicó<br />

receberam tratamento de recursos de animação. Mia Batsow foi a<br />

produtora de arte, Ricardo Fuentes, o câmera. A direção de produção foi<br />

de Eduardo Figueira, a coorde<strong>na</strong>ção de Gustavo Nielebock e a gerência<br />

de Andréa Cômodo.<br />

Levantamos a hipótese de um trabalho de apropriação, de<br />

estilização sob a ótica bakhtinia<strong>na</strong>: procedimentos que permitem a um<br />

discurso a adoção de variantes estilísticas, ou seja, a exploração, no<br />

discurso, de outros estilos, como se representasse artisticamente o<br />

estilo de outrem, modificando o tom: um estilo suassuaniano num tom<br />

‘gueliano’. As imagens de O Auto da Compadecida não podem ser<br />

entendidas como sendo do autor formal Guel Arraes e sim do Suassu<strong>na</strong><br />

da peça Auto da Compadecida, mas penetradas pelos acentos de Arraes<br />

e muitos desses acentos ele extrai de outros textos de Suassu<strong>na</strong>,<br />

enveredando assim pela interdiscursividade: incorporação de um texto<br />

(ou de textos) por outro. Isto é, a segunda concepção bakhtinia<strong>na</strong> de<br />

dialogia, ou seja, Discurso que se apropria de outro, tecido de múltiplas<br />

vozes polemizando, que se completam ou respondem umas às outras.<br />

Essas vozes encontram-se, inter<strong>na</strong>mente no texto, reproduzindo<br />

diálogos 86 . Essa intertextualização não se limita <strong>ao</strong> texto suassuniano,<br />

pois Arraes visita outros autores, outras culturas, outros tempos dos<br />

86 VIDAL, Marly CB. Mil e um fios: a escrita de Mari<strong>na</strong> Colasanti. São Paulo: Alexa Cultura,<br />

2003, p. 26.<br />

50


quais extrai o que lhe interessa e reorganiza os elementos de modo a<br />

dar-lhes outras configurações.<br />

Estruturada em quatro capítulos, duas horas e meia de duração,<br />

O Auto da Compadecida acaba por ser categorizado como microssérie<br />

em face de sua extensão em relação às tradicio<strong>na</strong>is da televisão<br />

brasileira: O Testamento da Cachorra, O Gato que Descome Dinheiro, A<br />

Peleja de Chicó Contra os <strong>Do</strong>is Ferrabrás, O Dia em que João Grilo se<br />

Encontrou com o Diabo.<br />

Ambientado <strong>na</strong> cidade paraiba<strong>na</strong> de Taperoá, durante a década<br />

de trinta, O Auto da Compadecida <strong>na</strong>rra as peripécias de João Grilo um<br />

pobre diabo que luta insa<strong>na</strong>mente pela sobrevivência, e de Chicó, um<br />

especialíssimo contador de lorotas, ambos amigos inseparáveis. Em<br />

busca do pão de cada dia, acabam <strong>na</strong> padaria da peque<strong>na</strong> cidade,<br />

pertencente a seu Eurico, onde a par da exploração a que são<br />

submetidos, descobrem as traições (das quais Chicó participa)<br />

cometidas pela esposa do padeiro (Eurico), <strong>Do</strong>ra. Morta a cachorrinha<br />

dos patrões, em troca de uns tostões, João Grilo e Chicó se<br />

comprometem a conseguir o enterro da bichinha em terreno sagrado e<br />

com a bênção do pároco local, padre João. Na azáfama de conseguir<br />

enterrar a cachorrinha, enga<strong>na</strong>m o padre e o bispo que está em visita à<br />

cidade. São metidos todos numa confusão da<strong>na</strong>da, provocada pelas<br />

maqui<strong>na</strong>ções de João Grilo, um esperto de primeira linha, que para o<br />

padre conta uma história, para o bispo outra e ainda mete <strong>na</strong> encrenca<br />

um fazendeiro ricaço, Antônio Moraes. Por fim, acabam se deparando,<br />

num entrevero com o cangaceiro Severino que durante muito tempo,<br />

travestido de mendigo cego, esteve sentado esmolando à porta de Igreja<br />

e era por todos, inclusive os religiosos, desprezado.<br />

Engendrando mais um plano para ganhar dinheiro, Grilo se<br />

aproveita da tristeza que se apoderou de <strong>Do</strong>ra após a morte da cachorra<br />

e vende para ela um gato que descome dinheiro, proeza conseguida<br />

graças a Chicó que é obrigado por Grilo a enfiar moedas no rabo do<br />

pobre gato. Descoberta a safadeza pelos patrões, eles correm atrás dos<br />

empregados e <strong>ao</strong> chegarem <strong>ao</strong> quarto ocupado pelos dois <strong>na</strong> padaria,<br />

51


João Grilo já inventou outro plano e está delirando com peste bubônica.<br />

O casal sai apavorado e os dois malasartes fogem com o dinheiro.<br />

Severino invade a cidade pela primeira vez, Grilo finge-se de morto e <strong>ao</strong><br />

ressuscitar enga<strong>na</strong> Severino, que se retira da vila. João é então<br />

aclamado herói, encerrando o segundo capítulo.<br />

Desempregado, João procura o Major Antônio Moraes e passa a<br />

trabalhar para ele. Sua primeira tarefa é buscar a filha do Major<br />

Moraes, Rosinha, que chega à vila, vinda de Recife. No cumprimento de<br />

sua tarefa, Grilo, já com Rosinha sob seus cuidados, encontra-se com<br />

Chicó e desse encontro, <strong>na</strong>sce, à primeira vista, o amor entre este e<br />

Rosinha. No terceiro capítulo desenrolam-se todas as maqui<strong>na</strong>ções de<br />

Grilo para casar Rosinha e Chicó. João Grilo enga<strong>na</strong> o Major dizendo<br />

que Chicó é fazendeiro e advogado para que Antônio Moraes permita o<br />

casamento, assim como convence o Major a emprestar dinheiro para<br />

Chicó pagar a reforma da igreja, preparando-a para a cerimônia.<br />

Vicentão e o Cabo Setenta, entram <strong>na</strong> disputa pelo amor de Rosinha, o<br />

que permite a Grilo armar mais uma das suas confusões que acaba<br />

num hilário duelo do qual Chicó sai vencedor, desbaratando os outros<br />

pretendentes e levando a fama de valentão, apesar de toda a sua<br />

covardia.<br />

O quarto e último capítulo mostra João Grilo armando um jeito de<br />

roubar o dinheiro da cidade. Seu plano era fingir que matava Chicó com<br />

uma facada que <strong>na</strong> verdade, atingiria a bexiga de galinha. Explica para<br />

Chicó como a coisa deve funcio<strong>na</strong>r, retira-se da cidade enquanto Chicó<br />

passeia pela vila arrostando valentia. Nesse meio-tempo, o verdadeiro<br />

cangaceiro invade a cidade, rouba o bispo, o padre, o padeiro e a<br />

mulher. João Grilo chega fantasiado de cangaceiro e acaba junto com<br />

Chicó empurrado para dentro da igreja, onde estão presos os outros.<br />

Bispo, padre e o casal de padeiros são mortos pelo capanga de Severino.<br />

Na hora de matar Chicó e Grilo, este inventa que tem uma gaita mágica<br />

que tocada ressuscitaria um morto. Fazem uma demonstração em que<br />

Grilo mata Chicó – atingido <strong>na</strong> tal bexiga – que ressuscita <strong>ao</strong> toque da<br />

gaita e ainda diz ter visto o Padre Cícero enquanto estava morto.<br />

Severino pede <strong>ao</strong> capanga que atire nele para que possa ver seu<br />

52


padrinho Padre Cícero. É morto o cangaceiro. A polícia invade a cidade<br />

e o capanga atira em Grilo. Só Chicó sobrevive à chaci<strong>na</strong>. Levados a<br />

julgamento no Tribu<strong>na</strong>l das Almas, presidido por um Jesus negro<br />

(Maurício Gonçalves) e tendo o Diabo (Luiz Melo) por acusador, acabam<br />

sendo auxiliados por Nossa Senhora (Fer<strong>na</strong>nda Montenegro) que os<br />

livra da conde<strong>na</strong>ção <strong>ao</strong> inferno e faz reviver a João Grilo. De volta à vila<br />

de Taperoá, este quase mata de susto seu amigo Chicó, que guardara<br />

consigo o dinheiro que fora obtido com as falcatruas cometidas pela<br />

dupla. A surpresa está em que João Grilo, feliz da vida por julgar-se<br />

rico, descobre que o dinheiro deve ser doado à Igreja em cumprimento a<br />

uma promessa que Chicó fizera para ter o amigo de volta. Chicó,<br />

apaixo<strong>na</strong>do por Rosinha, conta com o dinheiro da porquinha – um cofre<br />

que fora deixado pela avó da moça – que seria dado a ela, quando se<br />

casasse. Casados, descobrem que o dinheiro era moeda antiga e não<br />

tinha mais valor de troca. Os três ganham a estrada, eles miseráveis<br />

como sempre, Rosinha estreando sua pobreza.<br />

O humor, a ironia, as redundâncias existentes no texto-fonte são<br />

mantidas, a agilidade dos diálogos permanece. O espaço e o tempo<br />

recebem tratamento diferenciado do texto-base. O espaço se expande,<br />

assim como o tempo. A <strong>na</strong>rrativa se expande em conseqüência da<br />

entrada de novos perso<strong>na</strong>gens, mas os que morrem em Suassu<strong>na</strong>,<br />

morrem em Arraes. A essência temática permanece e o fazer artístico<br />

concretiza essas permanências. O perdão é concedido <strong>ao</strong>s mortos pela<br />

interferência da Compadecida, eles terão o purgatório, mas só João<br />

Grilo é abençoado com a ‘ressurreição’. Chicó, <strong>na</strong> terra e bem vivo,<br />

saudoso do único amigo que tivera, promete o dinheiro que obtivera à<br />

Virgem caso o companheiro voltasse e ambos cumprem a promessa. A<br />

ce<strong>na</strong> fi<strong>na</strong>l recupera o Cristo negro do julgamento, agora como pedinte<br />

do único bem que o trio possui: um pedaço de bolo, sobra da festa do<br />

casamento de Chicó e Rosinha. No campo afetivo, temos um happy end:<br />

teledramatúrgico, sem dúvida.<br />

A filmagem exter<strong>na</strong> no sertão paraibano, as tomadas, os ângulos.<br />

As cores, o tratamento visual que se materializa em sertão esturricado e<br />

queimado pelo sol, castanho, como diria Suassu<strong>na</strong>, <strong>ao</strong>s olhos do<br />

53


espectador. Música, figurino, cenários, especialmente os do julgamento,<br />

de características que chamamos arcaicas, em tons medievais,<br />

recapturando até mesmo aspectos da arte pictórica gótica, mas só<br />

possíveis pela tecnologia do <strong>presente</strong>. Todos esses elementos técnicos<br />

que são linguagem fazem parte de nossa preocupação em termos de<br />

análise, <strong>na</strong> tentativa de percebermos o quanto houve de criatividade, de<br />

inovação, de um fazer outro que não mais o texto-fonte.<br />

54


PARTE 2 – FICÇÃO TELEVISIVA<br />

5 CONCEITUAÇÃO<br />

<br />

<br />

<br />

87<br />

Ficção é palavra oriunda do latim fictionen, cuja raiz é o verbo<br />

fingo/fingere (fingir) que inicialmente tinha a idéia, o significado de<br />

tocar com a mão, modelar <strong>na</strong> argila 88 . Para alguns estudiosos a palavra<br />

ficção se relacio<strong>na</strong> com o verbo fazer que por sua vez se liga à palavra<br />

poeta, já que, no grego poiesis significa fazer. Poeta, portanto, é aquele<br />

que faz, cria, modela.<br />

No texto sagrado dos cristãos, a Bíblia, a palavra usada para dizer<br />

que Deus criou o homem a partir do barro – foi Deus, portanto, o<br />

primeiro oleiro – é o verbo fingo/fingere. Ora, o homem não é<br />

imagi<strong>na</strong>ção, nem o pote criado pelo oleiro que se presta a armaze<strong>na</strong>r<br />

água, óleo ou outro qualquer material é imagi<strong>na</strong>ção. Dizer da ficção ser<br />

criação da imagi<strong>na</strong>ção, da fantasia, coisa sem existência real, ape<strong>na</strong>s<br />

imaginária é um ato simplório, facilitário mesmo do problema que é a<br />

questão ficcio<strong>na</strong>l. Modelar o barro é dar forma a alguma coisa, é criar<br />

uma realidade. Assim, modelar a linguagem é criar uma realidade. Uma<br />

realidade outra, construção voluntária da imagi<strong>na</strong>ção, criação<br />

imaginária, resultante de uma interpretação subjetiva de um fato, de<br />

um acontecimento, de um fenômeno. Criação de linguagem(s) em que o<br />

autor faz uma leitura particular, origi<strong>na</strong>l da realidade e de caráter<br />

87 Conversando com Ariano. Diário Oficial de Per<strong>na</strong>mbuco, Recife, agosto 1990, ano IV, n. 11, p.<br />

5. Suplemento Cultural. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro<br />

tresmalhado. São Paulo: Palas Athe<strong>na</strong>s, 2000.<br />

88 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio<br />

de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1347.<br />

56


imagi<strong>na</strong>tivo, diferente, único. Construção a partir de elementos<br />

imaginários calcados no real e/ou de elementos da realidade inseridos<br />

em contextos imaginários.<br />

Na sociedade letrada, a ficção se acomoda em romances, contos,<br />

novelas, contos de fadas, mitos, lendas. Esquece-se que a ficção, como<br />

criação do espírito humano, se apresenta <strong>na</strong>s diversas e múltiplas<br />

linguagens que circulam pelo universo cultural, pois também elas são<br />

criações, são fazeres do homem. Não à toa, <strong>na</strong> França do século XVIII,<br />

retoma-se a discussão aristotélica sobre a <strong>na</strong>rrativa, agora teatral.<br />

Diderot e D’Alembert defendem o teatro como formador de almas e<br />

Rousseau o vê como deformador, nocivo, evidenciando sua ótica<br />

platônica da arte. Diderot retoma Aristóteles, <strong>na</strong> medida em que a ficção<br />

teria a capacidade de revelar o ilusório do mundo, alcançaria o<br />

universal pela mediação do particular, permitindo assim o<br />

desvendamento da aparência e levando <strong>ao</strong> conhecimento das essências.<br />

O teatro, embora fundado <strong>na</strong> palavra – linguagem verbal – não é<br />

unicamente verbal, <strong>ao</strong> contrário; no teatro tem-se a imbricação de<br />

música, ilumi<strong>na</strong>ção, movimento, mais a presença da platéia, o espaço, o<br />

desmembramento em apresentações que fazem dele uma linguagem<br />

outra. O século XIX traz a fotografia, o cinema, novas linguagens, novas<br />

formas de <strong>na</strong>rrativas ficcio<strong>na</strong>is. O século XX, num contexto de extremo<br />

progresso tecnológico, subverte as linguagens com novas formas,<br />

hibridações e, principalmente, com a vertiginosa velocidade em relação<br />

às mudanças. Em 1923, um tubo de raios catódicos veio à luz quando<br />

células fotoelétricas foram ativadas com elétrons em movimento: fez-se<br />

a televisão. (...) um <strong>presente</strong> colorido e generoso, e nós nos alegramos<br />

com ela 89 e com suas criações: Perdidos no espaço, Guerra <strong>na</strong>s estrelas,<br />

Rin Tin Tin, O Zorro, I Love Lucy e, é claro, com a descida do homem <strong>na</strong><br />

lua, bem como com o terrível e ine<strong>na</strong>rrável em palavras que foi a Guerra<br />

do Vietnã. Vieram as imagens da renúncia de Jânio Quadros, o exército<br />

<strong>na</strong>s ruas em 1964, em 1968, entretecidas às do Clube do Papai Noel,<br />

Cirquinho do Arrelia, Família Trapo, misturando o medo com o riso<br />

89 HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio de<br />

Janeiro: Relume/Dubará, 2001, p. 9.<br />

57


gostoso da infância. E foi muito bom ver tudo isso. Da televisão genérica<br />

praticada desde os anos 40 pelas grandes redes por broadcast (...) que<br />

tenta falar de tudo para todos e acaba não falando <strong>na</strong>da importante para<br />

ninguém, a partir de 1962, pela ação dos satélites de transmissão,<br />

universalização do cabo, chegando à revolução digital, está em<br />

construção uma televisão que em <strong>na</strong>da se parecerá com a que<br />

conhecemos até agora 90 . O século XXI reserva novas mudanças e,<br />

conseqüentemente novas formas de <strong>na</strong>rrar a ficção, novas linguagens.<br />

A linguagem da televisão, e por isso também a da ficção televisiva,<br />

se caracteriza por um intenso hibridismo. Para Balogh, o que<br />

costumamos chamar de “linguagem de TV” é uma mescla originária da<br />

literatura, das artes plásticas, do rádio, do folhetim, do cinema...<br />

assimilados de forma assimétrica pela ‘linguagem de TV’’ 91 . As inovações<br />

tecnológicas se multiplicam, ampliando possibilidades e alcance,<br />

modificando e, muitas vezes, determi<strong>na</strong>ndo novos modos de recepção e<br />

de interação espectador/produto. Não se pode deixar de pensar acerca<br />

das interferências de linguagem que perpassam os produtos televisivos<br />

ficcio<strong>na</strong>is: o cinema com seus modos sonoros e imagéticos, os<br />

enquadramentos herdados das artes plásticas, os ganchos que remetem<br />

<strong>ao</strong> folhetim radiofônico e também <strong>ao</strong> literário. Motter 92 , <strong>ao</strong> discutir a<br />

telenovela e suas imbricações com o cotidiano, com a realidade sugere<br />

que o berço das telenovelas brasileiras desenhou-se nos folhetins<br />

dominicais dos quais, Machado de Assis foi um autor. A pesquisadora<br />

aproxima as idéias de folhetim com a de folhetim/crônica e desta com a<br />

telenovela em sua acepção de crônica do cotidiano. Nesse contexto, o<br />

fazer do roteirista moderno seria equivalente <strong>ao</strong> fazer do folhetinista de<br />

fi<strong>na</strong>l do século XIX. No Brasil, país que se caracteriza por uma cultura<br />

televisiva exacerbada 93 , a televisão se fez com autores, técnicos e<br />

administradores oriundos do rádio. A própria telenovela, que se tem<br />

90 HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes, p. 16-<br />

18.<br />

91 BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. O discurso ficcio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> TV: sedução e sonhos em doses<br />

homeopáticas, p. 24.<br />

92 MOTTER, Maria Lourdes. Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e<br />

doações. In: LOPES, Maria Immacolata V. de. (Org.) Telenovela, inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização e<br />

interculturalidade, p. 254.<br />

93 HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes, p. 18.<br />

58


firmado como um produto de qualidade inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l dentro do gênero,<br />

tem sua ancestralidade fincada no rádio. A primeira telenovela<br />

brasileira de sucesso <strong>na</strong>sce de sua congênere radiofônica: O Direito de<br />

Nascer 94 – êxito nos anos quarenta. A fragmentação própria do veículo<br />

(pausas e interrupções para chamadas noticiosas, comerciais), o<br />

ambiente de recepção – a casa –, que permite uma série de ações<br />

simultâneas <strong>ao</strong> ato de assistir, o zapping são interferências que<br />

provocam mudanças <strong>na</strong> linguagem, reafirmando seu hibridismo.<br />

Segundo Hoineff 95 , mudanças ainda mais radicais estão por vir, as<br />

quais afetarão a linguagem da TV: a televisão não organizará mais o<br />

tempo do público e sim será organizada por ele: o espectador dirá a ela<br />

o que quer ver, no momento em que quiser. Ou seja, a interatividade<br />

espectador/televisão se radicalizará.<br />

5.1 A questão do gênero televisivo<br />

Nesse ambiente em ebulição, múltiplo e complexo, como se<br />

organiza, em termos de gênero, aquilo que é o cerne da televisão: seus<br />

programas? No caso em pauta, a ficção televisiva? Como se apresentam,<br />

no momento, os diferentes formatos ficcio<strong>na</strong>is televisivos?<br />

Objeto de polêmica, desde os antigos gregos, a classificação das<br />

obras por gêneros ainda é um parâmetro lógico e organizador para o<br />

trabalho. O estabelecimento, pela tradição literária, das tipologias<br />

genéricas constitui-se numa primeira referência para as demais<br />

produções culturais e artísticas. O vocábulo gênero 96 refere-se às<br />

categorias da lírica, da <strong>na</strong>rrativa, do drama e às espécies: tragédias,<br />

comédias, novelas, romances, contos. Entretanto, é preciso notar a<br />

94 A telenovela O Direito de Nascer foi transmitida entre 1964/1965 e uma das primeiras a<br />

serem apresentadas diariamente. O Direito de Nascer foi baseada <strong>na</strong> homônima radiofônica<br />

da autoria de Felix Caignet. Apud ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro <strong>na</strong><br />

telenovela brasileira. São Paulo: Se<strong>na</strong>c, 2000, p. 84.<br />

95 HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes, p. 18.<br />

96 AGUIAR e SILVA, Victor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedi<strong>na</strong>, 1976, p. 227.<br />

59


impossibilidade de uma simples transferência ou transposição para<br />

outros meios de produção, especialmente a TV. A crítica de produções<br />

imagéticas eletrônicas, quando comparada à literária, mostra-se em<br />

seus passos iniciais. Segundo Balogh, 97 os críticos de cinema e de TV<br />

tendem a usar classificações já consagradas pelo uso: drama, faroeste,<br />

aventura, ficção científica etc. No caso da TV, acrescentam-se rubricas<br />

próprias do veículo: soap opera, sitcoms. No Brasil, telenovela,<br />

minisséries e até microsséries. Para Arlindo Machado, podemos pensar<br />

no esgotamento ou i<strong>na</strong>dequação de nossos conceitos de gênero para<br />

pensarmos as produções contemporâneas. Por isso é dele a sugestão da<br />

adoção de parâmetros mais abertos e, para tal, busca as idéias de<br />

Mikhail Bakhtin concernentes às questões de gênero. Embora Bakhtin<br />

tenha se restringido a pensar o gênero em relação à linguagem verbal<br />

em suas várias manifestações orais e escritas, entendemos, a<br />

necessidade de recorrer a um conceito mais flexível ou melhor adaptável<br />

a um mundo em expansão e em rápida mutação. De todas as teorias do<br />

gênero em circulação, a de Mikhail Bakhtin nos parece a mais aberta e a<br />

mais adequada às obras de nosso tempo. 98<br />

5.2 A minissérie<br />

Ao considerarmos o homem como sendo detentor do poder de<br />

elocução, e esta como um elo <strong>na</strong> cadeia da comunicação, consideramos<br />

também como premissa a interlocução manifesta através da<br />

enunciação: conjunto de signos circulando entre indivíduos socialmente<br />

organizados. Estamos falando de linguagem que pode ser verbal e nãoverbal,<br />

portanto podemos pensar em enunciados híbridos, nos quais<br />

linguagens várias encontram-se em relação.<br />

97 BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. O discurso ficcio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> TV: sedução e sonhos em doses<br />

homeopáticas, p. 90.<br />

98 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 68.<br />

60


Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual,<br />

mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente<br />

estáveis de enunciados, sendo isso que chamamos de gêneros do<br />

discurso. 99 Múltiplas e variadas são as esferas de atividades huma<strong>na</strong>s,<br />

assim como múltiplos e variados são os gêneros discursivos, ou seja, os<br />

modos de utilização da linguagem sem que implique comprometimento<br />

de sua unidade. A variedade virtual da atividade huma<strong>na</strong> comporta<br />

uma larga variedade de discursos, pois cada uma das esferas comporta<br />

um número inesgotável e cada vez mais desenvolvido de gêneros,<br />

diferenciando-se e ampliando-se à medida que a sociedade se tor<strong>na</strong><br />

mais complexa.<br />

Enunciados se estabelecem e se estabilizam mediante a<br />

organização de idéias, meios expressivos, recursos próprios da<br />

linguagem, enquanto instituição discursiva, social e historicamente<br />

codificada e objeto material, no caso em pauta, a materialidade da<br />

imbricação das diferentes linguagens de um produto televisivo <strong>ao</strong> qual<br />

se atribui o nome de minissérie. Estamos diante de um uso da<br />

linguagem – da linguagem televisiva – numa esfera diferenciada: gênero<br />

dramaturgia de televisão. Entre nós, os estudos sistematizados sobre o<br />

tema surgem com a constituição, em 1992, de um núcleo de estudos <strong>na</strong><br />

<strong>ECA</strong>/<strong>USP</strong> 100 que tem desde então se dedicado a estudar, em seus vários<br />

aspectos, a dramaturgia da teleficção 101 . Os pioneiros estudiosos da<br />

dramaturgia televisiva nos fornecem os pressupostos iniciais: um<br />

gênero dramatúrgico ficcio<strong>na</strong>l, uma história, uma fábula a ser contada,<br />

com recursos próprios do veículo televisão que se desdobra em formatos<br />

variados. O que está em jogo são as características formais, a<br />

linguagem inerente: ficção televisiva, com características de ficção e de<br />

TV, com a linguagem própria desse veículo... 102<br />

Embora estejamos sugerindo as possibilidades de novas<br />

abordagens sobre o objeto minissérie, não pretendemos, em nenhum<br />

momento ou circunstância, negar o que já está posto por estudiosos do<br />

99 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 279.<br />

100 NPTN – Núcleo de Pesquisa de Telenovela, CCA/<strong>ECA</strong>/<strong>USP</strong>.<br />

101 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão, p. 20.<br />

102 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão, p. 25.<br />

61


tema. Ao contrário, nossa proposta é partir do já dado e tentar abrir<br />

novos ca<strong>na</strong>is de questio<strong>na</strong>mentos. Tentar perceber as características<br />

que, dentro de um conjunto discursivo, transformam-se, inovam-se,<br />

tor<strong>na</strong>m-se mutantes. Buscar entender como essa (des)orde<strong>na</strong>ção ocorre,<br />

provocando mudanças a cada novo objeto produzido, constituindo-se<br />

em um outro.<br />

minissérie é<br />

Como qualquer programa televisivo ficcio<strong>na</strong>l, o que temos <strong>na</strong><br />

(…) uma história mais ou menos longa, mais ou menos<br />

fracio<strong>na</strong>da, inventada por um ou mais autores,<br />

representada por atores, que se transmite com linguagem<br />

e recursos de TV, para contar uma fábula, um enredo,<br />

como em outros tempos se fazia só com o teatro e depois<br />

se passou a fazer também em cinema. 103<br />

Embora a TV seja o exemplo mais citado e corriqueiro para<br />

explicar nosso tempo como sendo o da primazia da imagem, a televisão<br />

ainda se apóia no discurso oral e faz da palavra sua matéria-prima. Os<br />

últimos trabalhos ficcio<strong>na</strong>is apresentados já fizeram uso mais<br />

sofisticado de recursos imagéticos, inclusive de recursos gráficos<br />

computadorizados. A Casa das Sete Mulheres 104 é exemplo claro de uso<br />

de planos longos, típicos do cinema. Os Maias 105 , coincidentemente da<br />

mesma autora, Maria Adelaide Amaral, explora, <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s iniciais, uma<br />

ausência de quase 4 minutos de diálogo e imprime o tom melodramático<br />

e realista que pretende para a minissérie, através de sofisticado<br />

trabalho de câmera e música. Hélio Guimarães 106 , escrevendo sobre a<br />

adaptação de Os Maias, chama a atenção para o uso da vinheta de<br />

abertura,<br />

(...) em que imagens de flores desabrochando em<br />

movimento acelerado ganham a textura da tinta sobre a<br />

103 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão, p. 23.<br />

104 MOTTER, Maria Lourdes. Argumentos para o estudo da ficção: ‘A Casa das Sete<br />

Mulheres’: ficção, realidade e história. Revista Eco – Pós, v. VII, n. 1, janeiro-julho 2004, p.<br />

85-99. A minissérie A Casa das Sete Mulheres foi levada <strong>ao</strong> ar no segundo semestre de 2003.<br />

105 Os Maias, minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral com colaboração de João Emanuel<br />

Carneiro e Vincente Villari, a partir do romance homônimo de Eça de Queiroz, produção<br />

do Núcleo Luiz Fer<strong>na</strong>ndo Carvalho. Exibida entre 09 de janeiro e 24 de março de 2001; 44<br />

capítulos.<br />

106 GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX <strong>na</strong> televisão: observações sobre a adaptação<br />

de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et al. (Orgs.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo:<br />

Se<strong>na</strong>c, Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 101.<br />

62


tela, <strong>na</strong> qual se escrevem, com caneta tinteiro dourada e<br />

caligrafia antiga, as letras que vão compor Os Maias. Ao<br />

completar o nome, as letras têm o mesmo destino das<br />

imagens: a imobilidade.<br />

A vinheta culmi<strong>na</strong> <strong>na</strong> imagem do brasão da família, onde também<br />

aparecem flores e letras reunidas no nome da família. Nota-se que,<br />

mesmo explorando recursos visuais, a palavra tem um papel<br />

importante, fundamental, que para o autor citado é uma postura<br />

recorrente <strong>na</strong>s adaptações: a fetichização da escrita. Nessa linha de<br />

pensamento, podemos supor que a televisão, mesmo quando se utiliza<br />

de recursos gráficos que permitem a sofisticação da imagem, dá à<br />

palavra certa primazia, tendo nela o elemento que detém o maior poder<br />

de organização discursiva. Para Guimarães há, entretanto, uma maior<br />

complexidade no trabalho em questão, pois a adaptação do romance<br />

integra no processo de <strong>na</strong>rração televisiva imagem, música e palavra.<br />

Em Os Maias, o recurso à reprodução de trechos do texto de base é feito<br />

de forma econômica, de modo a permitir que a <strong>na</strong>rração se faça pelas<br />

perso<strong>na</strong>gens em ce<strong>na</strong>, pela movimentação da câmera, efeitos sonoros,<br />

cenários, figurinos etc.<br />

Dessa constatação não está longe a fala de Pallottini 107 de que a<br />

TV se utilizou da experiência do cinema, do teatro, acrescentou os<br />

recursos do rádio, da <strong>na</strong>rrativa pura (gênero épico oral ou escrito). Tudo<br />

isso, mais a tecnologia da imagem e transmissão posta à disposição dos<br />

realizadores, possibilitaram a emergência de um sofisticado produto que<br />

tem marcado a televisão brasileira: a ficção televisiva seriada, ancorada<br />

<strong>na</strong>s formas dialogais e que apresenta desdobramentos com aspectos ora<br />

coincidentes, ora antagônicos. Desdobramentos do gênero ficcio<strong>na</strong>l<br />

televisivo se apresentam no Brasil como sendo telenovela, minissérie (e<br />

microssérie), unitário e seriado.<br />

Como se observa, num único recorte já é possível perceber a<br />

variedade em que se desdobra o gênero visto como modo de trabalhar a<br />

matéria televisual 108 . Por isso a adoção de uma teoria, a bakhtinia<strong>na</strong>,<br />

que permite pensar os gêneros como sendo infindáveis, mutáveis,<br />

107 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão.<br />

108 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 70.<br />

63


predomi<strong>na</strong>ntes em épocas, territórios e situações diferenciadas,<br />

passíveis de desmembramentos em subgêneros. Categorias<br />

heterogêneas, os gêneros estão em incessantes imbricações, trocas,<br />

apropriações, paralelismos e oposições, em constante intercâmbio. Daí<br />

a necessidade de se observar o objeto a ser a<strong>na</strong>lisado, contextualizandoo<br />

e pensando-o em termos de produto e produção.<br />

A minissérie é, <strong>na</strong> visão de Pallottini, uma espécie de telenovela<br />

curta, totalmente escrita, via de regra, quando começam as gravações 109 ,<br />

uma <strong>na</strong>rrativa geralmente constituída de 5 a 20 capítulos, número<br />

arbitrário, mas que não ultrapassa em muito, pois não deve aproximarse<br />

de uma telenovela que tem, em média, 160 capítulos 110 . Estamos,<br />

portanto, no reino da serialidade – apresentação descontínua e<br />

fragmentada do sintagma televisual 111 . A serialidade caracteriza-se pela<br />

estruturação do enredo em forma de capítulos ou episódios,<br />

subdivididos em blocos menores e separados por breaks para entrada<br />

de comerciais ou chamadas para programas. Diferente do que se<br />

convencionou chamar série ou seriado televisivo, porque, exibida<br />

durante um certo período, diariamente, a minissérie desenvolve uma<br />

trama básica, desenrolada <strong>ao</strong> longo dos capítulos, à qual se<br />

acrescentam incidentes menores. Procura conter-se num plot, num<br />

conflito básico, portanto, diferentemente da telenovela, que apresenta<br />

diversidade de linhas de ação que vão se definindo <strong>ao</strong> longo da exibição.<br />

A minissérie não dispensa o recurso do gancho de tensão que visa<br />

manter o espectador interessado. Pode acontecer de os blocos iniciais<br />

contextualizarem os acontecimentos anteriores para localizar a<br />

audiência, fazendo os esquecidos lembrarem e os que perderam<br />

capítulos encontrarem os fios <strong>na</strong>rrativos. Segundo Pallottini 112 , a<br />

minissérie tem caráter mais aristotélico: as perso<strong>na</strong>gens se mantêm<br />

íntegras em termos de caráter, perseguem seus propósitos iniciais, as<br />

109 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão, p. 28.<br />

110 Ao falarmos em número arbitrário, é importante notar a existência de minissérie com 60<br />

capítulos – Aquarela do Brasil – e telenovela, como o Beijo do Vampiro, alcançando a marca de<br />

215 capítulos. É relativamente comum, minisséries apresentando 40/50 capítulos. A casa<br />

das sete mulheres tem 53, JK tem 54.<br />

111 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 83.<br />

112 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão, p. 38.<br />

64


conseqüências fi<strong>na</strong>is são produtos das ações praticadas <strong>ao</strong> longo da<br />

trama. Exige menos fidelidade, no sentido da presença do espectador<br />

por períodos longos, face <strong>ao</strong> número menor de capítulos, menos tempo<br />

de exibição, em relação às telenovelas.<br />

Em termos de recepção, supõe-se para a minissérie um público<br />

mais sofisticado, em parte devido <strong>ao</strong> horário de exibição – normalmente<br />

após as 22 horas –, contando com uma audiência mais exigente pois<br />

detentora de um leque maior de opções de lazer. Como produto, por ser<br />

fechado, é menos sujeito à tirania da audiência. Possibilita <strong>ao</strong> autor, e<br />

também <strong>ao</strong> produtor, um melhor acabamento, em virtude do menor<br />

número de capítulos e tempo maior de realização. Já Dias Gomes 113<br />

declarava, nos idos de 1995, que reescrevera a minissérie de sua<br />

autoria, Decadência 114 , cerca de quatro vezes. Tivera tempo, portanto,<br />

para burilar o texto, gastando nele seis meses de trabalho, período que<br />

costumava despender para escrever uma telenovela com um número<br />

bem maior de capítulos, situações de escrita e exibição diferentes,<br />

caracterizadas pela tensão do tempo e da audiência.<br />

Maria Adelaide Amaral 115 , discorrendo sobre o processo de criação<br />

da minissérie A Casa das Sete Mulheres, afirma que leu cerca de 30<br />

obras para, fazendo-as dialogar com o romance do qual se apropria<br />

para a criação da obra televisiva, chegar <strong>ao</strong> roteiro fi<strong>na</strong>l, o que seria<br />

impossível se tivesse trabalhado só sobre a obra que dá origem à<br />

minissérie. Além, é claro, de fazer uma leitura atenta para realizar a<br />

contextualização sócio-histórica adequada.<br />

Da mesma forma que o autor tem tempo e possibilidades para<br />

uma escrita diferenciada, a produção conta com recursos, os mais<br />

sofisticados, (e isso não é de hoje <strong>na</strong> televisão brasileira) para a<br />

realização do produto. Já notamos anteriormente, a questão da<br />

113 Rádio & TV no Brasil, Diagnósticos e Perspectivas. Relatório da Comissão Especial de Análise<br />

de Programação de Rádio e TV, 1995, p. 63. Pedro Simon, relator.<br />

114 Decadência escrita por Dias Gomes, direção de Roberto Farias e Ignácio Coqueiro, direção<br />

artística de Carlos Manga, direção de produção de Guilherme Bokel. Exibida de 05 a 22 de<br />

setembro de 1995; 12 capítulos.<br />

115 Conferência proferida no Seminário: História faz bem para a memória. Ficção e História: o<br />

papel da ficção <strong>na</strong> recuperação da memória histórica brasileira – as relações entre criação<br />

ficcio<strong>na</strong>l e historiografia, realizado pelo NPTN <strong>na</strong> <strong>ECA</strong> – <strong>USP</strong>, 31 de março de 2003.<br />

65


exploração dos recursos televisivos (imagem, som, palavras) em Os<br />

Maias, da mesma autora. Há tempos, <strong>na</strong>s comemorações dos vinte anos<br />

da Globo, a emissora nos brindou com O Tempo e o Vento 116 , Grande<br />

Sertão Veredas 117 e Tenda dos Milagres 118 , primorosos trabalhos, cuja<br />

feitura surpreende pela qualidade televisiva, pelo uso criativo do<br />

aparato tecnológico. Balogh nota a minissérie como sendo festiva, usada<br />

estrategicamente como marcadora de datas importantes 119 .<br />

No início de 2004, a TV Globo coloca no ar Um só Coração 120 , uma<br />

home<strong>na</strong>gem a São Paulo em seus 450 anos, trabalho caracterizado por<br />

uma produção sofisticada, cuidada e que usa de forma primorosa os<br />

recursos tecnológicos da televisão contemporânea, <strong>ao</strong> mesmo tempo em<br />

que indicia uma cuidadosa pesquisa antecedendo a criação textual.<br />

Sem perder de vista a feição ficcio<strong>na</strong>l da minissérie, a autora trabalha<br />

de modo osmótico invenção/realidade. Empresta à realidade histórica<br />

da metrópole um brilho só possível através da intromissão inteligente e<br />

consciente da invenção folhetinesca, sem a vulgarização, a facilitação.<br />

Para espectadores atentos, ficam claros os momentos de diálogo entre<br />

as obras ficcio<strong>na</strong>is do período, as informações formalizadas da história e<br />

a imprensa contemporânea. Há que se convir que, mesmo trabalhando<br />

em parceria, contando com uma equipe de assessores-pesquisadores, o<br />

tempo despendido <strong>na</strong> escrita criativa de trabalho de tal porte é<br />

demasiado grande. A complexidade do assunto, a multiplicidade de<br />

fatos a exigir recortes precisos, acompanhamento contínuo que só se<br />

permitem num produto situado num gênero e espaço de produção como<br />

a minissérie. Note-se, além disso, a proximidade da época retratada.<br />

116 O Tempo e o Vento escrita por <strong>Do</strong>c Comparato, baseada <strong>na</strong> primeira parte da trilogia<br />

homônima de Érico Veríssimo, O Continente. Direção de Paulo José, Denise Saraceni e<br />

Walter Campos, produção executiva de Leo<strong>na</strong>rdo Petrelli. Exibida de 22 de abril a 31 de<br />

maio de 1985; 25 capítulos.<br />

117 Grande Sertão Veredas escrita por Walter George Durst baseada <strong>na</strong> obra homônima de João<br />

Guimarães Rosa. Roteiro fi<strong>na</strong>l e direção de Walter Avancini. Exibida de 18 de novembro a<br />

20 de dezembro de 1985; 25 capítulos.<br />

118 Tenda dos Milagres escrita por Ag<strong>na</strong>ldo Silva e Regi<strong>na</strong> Braga, baseada <strong>na</strong> obra homônima de<br />

Jorge Amado, direção de Paulo Afonso Grisoli. Exibida de 29 de julho a 06 de setembro de<br />

1985; 30 capítulos.<br />

119 BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. O discurso ficcio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> TV: sedução e sonhos em doses<br />

homeopáticas, p. 124.<br />

120 Um Só Coração, obra de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, com direção de Carlos<br />

Manga e Ulisses Cruz. Rede Globo de Televisão, exibida em janeiro de 2004.<br />

66


Muitos dos espectadores conheceram as perso<strong>na</strong>gens – ou caracteres –<br />

<strong>presente</strong>s <strong>na</strong> trama. Alguns, já <strong>na</strong> casa dos sessenta, encontraram-se,<br />

<strong>na</strong> famosa Rua 7 de Abril, com Assis Chateaubriand, milhares foram<br />

leitores dos Diários, cente<strong>na</strong>s bisbilhotaram <strong>na</strong>s livrarias do centro<br />

paulistano, onde se reuniam artistas, escritores, professores e estão<br />

hoje, à frente da TV, com olhos, talvez demasiados críticos e exigentes<br />

da realidade documental.<br />

A minissérie envereda para um movimento já domi<strong>na</strong>do pela<br />

telenovela - a incorporação da realidade, do cotidiano. De um modo<br />

diferente daquele assi<strong>na</strong>lado por Motter 121 em relação à telenovela que,<br />

por ser uma produção longa e aberta, acaba sofrendo ingerências dos<br />

fatos contemporâneos e também influenciando a pauta das<br />

comunicações, a minissérie, especialmente a histórica, incorpora um<br />

cotidiano vivido, já <strong>passado</strong>. O velho barão, arrogante, autoritário e<br />

preconceituoso, vê seus valores, quer morais, quer materiais<br />

desaparecerem pelo ralo da crise instaurada e pela má gerência de seus<br />

negócios e família, não enxergando outra saída que o suicídio<br />

“honroso”, tão em voga <strong>na</strong> época retratada, de conhecimento e<br />

experiência de muitas famílias paulistas empobrecidas. Yolanda<br />

Penteado, a perso<strong>na</strong>gem central, vivida <strong>na</strong> tela por A<strong>na</strong> Paula Arósio, a<br />

aristocrata rica e bem posta <strong>na</strong> sociedade paulista, <strong>na</strong> vida real tem de<br />

assumir a administração da fazenda Emphyreo, propriedade familiar,<br />

apontando as transformações radicais que a metrópole vai<br />

experimentar, a partir dos anos quarenta, especialmente, dos<br />

cinqüenta. Ao mesmo tempo, assume as rédeas de sua vida afetiva.<br />

Casa-se e separa-se mais de uma vez, indiciando as mudanças que<br />

ocorrerão no campo das relações familiares e sociais.<br />

Transformada em perso<strong>na</strong>gem de ficção, Yolanda Penteado<br />

resgata a mulher bandeirante que ficava <strong>na</strong> fazenda nos campos de<br />

Piratininga, defendendo família e propriedade, enquanto o marido ia em<br />

busca de pedras preciosas e índios a serem apresados, mas aponta para<br />

a mulher do século XXI que, segundo notícias da imprensa, detém hoje<br />

um maior tempo de freqüência escolar e está demandando e garantindo<br />

121 MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano <strong>na</strong> telenovela, p. 35.<br />

67


sua formação cultural e profissio<strong>na</strong>l, interferindo <strong>na</strong> sociedade e <strong>na</strong><br />

economia. Yolanda, <strong>na</strong> vida real, junto com o segundo marido Ciccillo<br />

Matarazo, foi fundadora da Bie<strong>na</strong>l de São Paulo, hoje, a terceira mostra<br />

desse tipo em importância, só perdendo para a de Veneza (Itália) e a de<br />

Kassel (Alemanha).<br />

A minissérie em questão tem característica “de época”, ou ainda,<br />

“histórica”, origi<strong>na</strong>-se em fatos documentados, exibe traços de intenso<br />

cuidado com a reconstituição histórica, de uma época e de seus ícones:<br />

intelectuais, artistas, capitalistas, jor<strong>na</strong>listas que fizeram a cidade da<br />

primeira metade do século XX. Ao lado de tomadas inter<strong>na</strong>s,<br />

construídas em estúdio, a equipe se desloca para cidades interiora<strong>na</strong>s,<br />

até em território mineiro, que ainda resguardam aspectos de época.<br />

As minisséries têm encontrado <strong>na</strong> cobertura da história um<br />

caminho salutar que tem proporcio<strong>na</strong>do trabalhos de fôlego. Ao lado da<br />

trama romântica que lhe é peculiar, as minisséries termi<strong>na</strong>m por ser<br />

painéis de uma época, pinturas murais em movimento, <strong>na</strong> voz de<br />

Balogh 122 . Exemplos caros <strong>ao</strong>s estudiosos são Anos Rebeldes 123 , Anos<br />

<strong>Do</strong>urados 124 , Agosto 125 . Anos Rebeldes, minissérie estudada por Lobo 126 ,<br />

recupera os anos traumáticos de nossa história recente a partir dos<br />

sessenta. Agosto focaliza o suicídio de Getúlio para mostrar o Brasil do<br />

início da década de 50. Um Só Coração é produto de um intenso<br />

trabalho de pesquisa histórica e jor<strong>na</strong>lística <strong>ao</strong> qual se junta o livro<br />

autobiográfico de Yolanda Penteado, Tudo em cor-de-rosa, <strong>ao</strong> passo que,<br />

Anos Rebeldes e Anos <strong>Do</strong>urados foram escritas como roteiro de<br />

minisséries origi<strong>na</strong>lmente. Agosto é considerada adaptação do livro<br />

homônimo de Rubem Fonseca.<br />

122 BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. O discurso ficcio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> TV: sedução e sonhos em doses<br />

homeopáticas, p. 134.<br />

123 Anos Rebeldes escrita por Gilberto Braga com a colaboração de Sergio Marques, direção de<br />

Dennis Carvalho, Silvio Tendler e Ivan Zettel. Servem de referência <strong>ao</strong> autor 1968, o Ano<br />

que não Terminou de Zuenir Ventura e Os Carbonários, de Alfredo Sirkis. Exibida de 14 de<br />

julho a 14 de agosto de 1992; 20 capítulos.<br />

124 Anos <strong>Do</strong>urados escrita por Gilberto Braga, direção de Roberto Talma. Exibida de 05 a 30 de<br />

maio de 1986, 20 capítulos.<br />

125 Agosto escrita por Jorge Furtado e Giba de Assis a partir do livro homônimo de Rubem<br />

Fonseca, direção de Paulo José, Denise Saraceni e José Henrique Fonseca, supervisão<br />

artística de Carlos Manga. Exibida de 24 de agosto a 17 de setembro de 1993, 16 capítulos.<br />

126 LOBO, Narciso. Ficção e política: o Brasil <strong>na</strong>s minisséries, 2000.<br />

68


Das 61 minisséries pesquisadas por Lobo entre 1982 127 e 1995,<br />

anos denomi<strong>na</strong>dos da redemocratização do Brasil, 29 são indicadas<br />

como oriundas de textos não-televisivos, ou seja, são categorizadas<br />

como sendo adaptações. A partir de 1996 até o primeiro semestre de<br />

2006, temos 19 minisséries, das quais 5 são textos origi<strong>na</strong>is para a TV.<br />

Qualquer listagem de produção de minisséries traz as rubricas autor da<br />

obra origi<strong>na</strong>l e autor da adaptação. Estudiosos falam em ‘obras de<br />

referência’: textos nos quais o autor se apóia, se informa e que, com<br />

mais ou menos intensidade, fornecem material ‘real’ ou ficcio<strong>na</strong>l a partir<br />

do qual o roteirista trabalha ou com os quais ele estabelece um intenso<br />

diálogo ou, <strong>ao</strong>s quais, ape<strong>na</strong>s e simplesmente faz alusões. Se essa<br />

metodologia de trabalho autoral é importante para o estudioso que<br />

busca detectar os mecanismos escriturais do autor, ela deve ser vista<br />

com cuidados no quesito julgamento da obra, que exige seu<br />

enquadramento <strong>na</strong> linguagem de sua especificidade; ou seja, uma<br />

minissérie há de ser julgada sob o ponto de vista de um produto<br />

televisivo o que remete para uma situação geral toda ela própria,<br />

incluindo a recepção.<br />

Construir uma obra para a televisão (e para o cinema, para o<br />

teatro) não é ape<strong>na</strong>s transpor do texto escrito para um novo suporte,<br />

para um outro veículo. O ato de transposição é demasiado complexo,<br />

desafia noções estabelecidas de autoria e hierarquização de bens e<br />

produtos culturais 128 . O autor do roteiro ancora-se em uma ou várias<br />

obras já estabelecidas, catalogadas, carregando o peso da tradição,<br />

muitas vezes, de estudos acadêmicos. <strong>Do</strong>c Comparato afirma a<br />

necessidade de se ter uma idéia para escrever um roteiro e que idéias<br />

não surgem do <strong>na</strong>da. Provêm da memória, da vivência, de algo que<br />

contam <strong>ao</strong> roteirista ou que ele capta no mundo que o rodeia; também<br />

de uma leitura, que varia de um jor<strong>na</strong>l a um folheto de propaganda, e<br />

127 O primeiro trabalho registrado como minissérie foi Lampião e Maria Bonita, 8 capítulos.<br />

Exibida de 26 de abril a 5 de maio de 1982, de autoria de Ag<strong>na</strong>ldo Silva e <strong>Do</strong>c Comparato.<br />

MALCHER, Maria Ataíde. O Protagonismo da dramaturgia <strong>na</strong> TV brasileira. Tese (<strong>Do</strong>utorado<br />

em Comunicações) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São<br />

Paulo, 2005.<br />

128 GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX <strong>na</strong> televisão: observações sobre a adaptação<br />

de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et al. (Orgs.). Literatura, cinema e televisão, p. 94.<br />

69


até de uma encomenda 129 . À idéia <strong>na</strong>scida de uma ficção, de um livro,<br />

de um filme, de uma obra de teatro, Comparato 130 dá o nome de idéia<br />

transformada (twist). Citando uma fala corrente entre os roteiristas – um<br />

autor amador copia, <strong>ao</strong> passo que um autor profissio<strong>na</strong>l rouba e<br />

transforma. A transformação à qual alude Comparato é que tor<strong>na</strong> as<br />

coisas complexas e que dificulta a compreensão do processo de criação<br />

para a televisão. A TV tem se caracterizado por ser antropofágica,<br />

segundo Balogh 131 . O problema, portanto, é verificar como se dá esse<br />

processo, que deve passar longe da cópia, do plágio, da transcrição pura<br />

e simples e, que também não consideramos ser uma mera adaptação, o<br />

que nos parece já indicia que essa é nossa preocupação, ou seja, o<br />

processo, digamos, de manipulação das idéias e as estratégias de<br />

linguagem levadas a cabo pelo criador de discursos televisivos.<br />

O diretor de TV tem um olhar pessoal, um olhar profissio<strong>na</strong>l e<br />

técnico: os olhos da câmera. Mas entram em ce<strong>na</strong> os responsáveis pelo<br />

cenário, pela vestimenta, pela maquiagem, pela ilumi<strong>na</strong>ção. Os atores e<br />

seus modos de leitura e representação. Por mais acuidade que um<br />

homem de TV mostre <strong>na</strong> direção do trabalho, por mais autoridade que<br />

mantenha, os olhares outros são filtros que influenciarão o produto 132 .<br />

Re<strong>na</strong>ta Pallottini 133 revela algo curioso nesse sentido. Conta ela que um<br />

texto de sua autoria, Sapicuá de Lazarento, um unitário, sofre logo de<br />

início uma mudança de título por motivos externos <strong>ao</strong> produto: saía o<br />

lazarento porque considerado um termo forte e que poderia afastar os<br />

possíveis espectadores (e por que não, patroci<strong>na</strong>dores). O trabalho vai<br />

<strong>ao</strong> ar ape<strong>na</strong>s como Sapicuá. Sapicuá é um cesto, que colocado <strong>na</strong> ponta<br />

de uma vara, servia para as almas caridosas depositarem as esmolas<br />

para os portadores de lepra, evitando assim o contato com os mesmos.<br />

129 NEGRÃO, Walter. O Processo de Criação da Telenovela. In: In: LOPES, Maria Immacolata<br />

V. de. (Org.) Telenovela, inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização e interculturalidade, p. 208.<br />

130 COMPARATO, <strong>Do</strong>c. Da criação <strong>ao</strong> roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 83.<br />

131 BALOGH, An<strong>na</strong> Maria. O discurso ficcio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> TV: sedução e sonhos em doses<br />

homeopáticas.<br />

132 Ver: MOTTER, Maria Lourdes. Produção de telenovela no Brasil: tecnologia e criação<br />

ficcio<strong>na</strong>l. In: AJZENBERG, Elza (Org.). Arte e ciência: mito e razão. São Paulo: <strong>ECA</strong>/<strong>USP</strong>,<br />

2001. MOTTER, Maria Lourdes. A telenovela: documento histórico e lugar de memória.<br />

Revista da <strong>USP</strong>, n. 48, 2001.<br />

133 PALLOTTINI, Re<strong>na</strong>ta. Dramaturgia de televisão.<br />

70


A expressão sapicuá de lazarento significa coisa desprezível, sem valor.<br />

A exclusão de um termo leva à perda de um bocado de sentido, segundo<br />

Re<strong>na</strong>ta. Mas as coisas não ficaram por aí. Feita a produção, depois a<br />

gravação, quando a autora vê o trabalho fi<strong>na</strong>l percebe que fora realizado<br />

todo em tons de verde. Ora, cor é signo importante <strong>na</strong> linguagem visual,<br />

no caso, fundamental para a compreensão de uma história que não se<br />

passava <strong>na</strong> Amazônia nem <strong>na</strong>s profundezas das águas: era a história de<br />

um menino que descobre sua sexualidade e a guerra, pois o tempo é<br />

1932. Tratava também de um pobre diabo a<strong>na</strong>rquista perdido no<br />

interior do estado, vítima do preconceito que o aparentava <strong>ao</strong>s leprosos.<br />

Para a autora do texto, a cor deveria ser o vermelho. A produção, por ela<br />

imagi<strong>na</strong>da como um drama de costumes, conotando crítica social<br />

realista, ganhou <strong>na</strong> mão (e no olhar) de Fábio Sabbag um estilo<br />

simbolista, impressionista, mais voltado <strong>ao</strong>s detalhes visuais e<br />

plásticos. Exemplo claro da importância do diretor no produto fi<strong>na</strong>l e<br />

das mudanças possíveis e acontecidas que, em cadeia, atingem toda a<br />

realização. Para Pallottini, a intervenção dos realizadores <strong>na</strong> TV é<br />

quantitativamente maior e resulta maior, também, qualitativamente.<br />

Cabe <strong>ao</strong> dramaturgo organizar seu material de modo a contar<br />

uma história em capítulos, para entrar no ar <strong>na</strong>s horas termi<strong>na</strong>is do dia<br />

de modo a preencher o tempo do programa. A ação parece ser<br />

fundamental. Ainda segundo Pallottini, o autor deve comportar-se como<br />

um escritor de um romance de ação e reservar um movimento da ação<br />

para cada capítulo, pois em vinte capítulos deve condensar duzentas a<br />

trezentas pági<strong>na</strong>s de um romance, utilizando-se de diálogos e de<br />

recursos da imagem televisiva. Os diálogos podem ser de <strong>na</strong>tureza<br />

conflituosa – em termos de <strong>na</strong>rrativa – e a interação verbal estabelecida<br />

entre falantes apontar a saída e a colocação de uma nova tese, a<br />

dinâmica do movimento se instala. Pensando a ação como sendo<br />

atividade com intenção, significado e objetivos, o que está em causa não<br />

é somente a ação exter<strong>na</strong>, por exemplo, um grupo de soldados em<br />

desabalada carreira pelas coxilhas. É preciso que haja uma razão, uma<br />

situação que anteceda a ação assim como uma que a suceda. Há de<br />

existir motivos e emoções das perso<strong>na</strong>gens, conflitos entre elas e, é<br />

71


claro, as conseqüências do fato. Mas, em se tratando de televisão é<br />

preciso mostrar. Muito se tem falado sobre o fato de a linguagem<br />

televisiva ser uma sucessão de closes; o jogo de distanciamento e<br />

aproximação, as imagens criadas pela câmera – cores da paisagem,<br />

luzes, ondulações das coxilhas –, closes que deixem patentes o medo, o<br />

esforço muscular despendido <strong>na</strong> corrida, os percalços como quedas,<br />

ferimentos, são elementos da linguagem televisiva que devem fazer<br />

parte das preocupações do dramaturgo de televisão.<br />

Ao nos reportarmos à ação, remetemo-nos às perso<strong>na</strong>gens. A<br />

perso<strong>na</strong>gem é aquilo que o dramaturgo criou no papel (ou <strong>na</strong> tela de<br />

seu computador) e sua circunstância: o cenário em que circula, as<br />

roupas que veste, o penteado, as cores, as luzes, a música que o<br />

acompanha. <strong>Do</strong> texto constam a descrição das perso<strong>na</strong>gens, suas falas<br />

e ações, assim como questões relativas <strong>ao</strong>s recursos do gênero televisivo<br />

como enquadramento, angulação de tomada da câmera, freqüência de<br />

aparição, etc. Como em qualquer outro gênero dramático, cabe <strong>ao</strong>s<br />

perso<strong>na</strong>gens a ação. Perso<strong>na</strong>gens devem agir dentro das funções que<br />

lhes foram desig<strong>na</strong>das pela autoria, <strong>na</strong> situação escolhida, <strong>na</strong>s<br />

circunstâncias que lhes foram dadas como próprias. Devem ter<br />

coerência, deve haver correspondência entre seus atos, palavras e<br />

caracterização. No seu caminho, relacio<strong>na</strong>r-se-ão com outros<br />

perso<strong>na</strong>gens, deparar-se-ão com obstáculos a serem enfrentados e<br />

superados. Nada mudou no reino da dramaturgia desde os gregos a não<br />

ser a parafernália técnica que permite <strong>ao</strong> fazedor de minissérie e afins a<br />

utilização das imensas possibilidades – não de todo ainda exploradas –<br />

da televisão.<br />

Ainda sobre Maria Adelaide Amaral e A Casa das Sete Mulheres 134 ,<br />

de que dizemos pelo fato de a considerarmos uma criação outra que não<br />

o romance homônimo 135 , que lhe serve de ponto de partida. No romance,<br />

a perso<strong>na</strong>gem Manuela é uma guria – <strong>na</strong> fala gaúcha – que, durante a<br />

Revolução dos Farrapos, enquanto seu tio Bento Gonçalves e os<br />

134 MOTTER, Maria Lourdes. Argumentos para o estudo da ficção: ‘A Casa das Sete<br />

Mulheres’. Revista Eco-Pós.<br />

135 WIERZCHOWSKI, Letícia. A casa das sete mulheres. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />

72


homens da família guerreiam, permanece com as mulheres da família<br />

<strong>na</strong> estância, sempre presa às normas e ditames da sociedade patriarcal,<br />

sem um projeto de vida próprio. Sem querer ser indelicada, Manuela é<br />

inexpressiva do ponto de vista do ser mulher, especialmente se<br />

considerada a partir dos olhares da atualidade. Apaixo<strong>na</strong>da por<br />

Garibaldi, abre mão dele por determi<strong>na</strong>ção de seu tio, o Gal.Bento<br />

Gonçalves, que decidira o casamento da sobrinha com seu filho<br />

Joaquim. Conforma-se, confi<strong>na</strong>-se <strong>na</strong> estância até o fim da guerra, não<br />

se casa, embora tenha o primo como pretendente e prometido.<br />

Contraditoriamente mantém um diário, reflexivo em vários momentos e<br />

que faz a ligação entre os capítulos do romance, texto-fonte da<br />

minissérie. Nas mãos de Maria Adelaide, ela se tor<strong>na</strong> a contadeira da<br />

saga da família de Bento Gonçalves, adquire status de perso<strong>na</strong>gem do<br />

primeiro time e aponta para a diferença em relação <strong>ao</strong> romance. A<br />

perso<strong>na</strong>gem contudo que ganha vida <strong>na</strong> interpretação de Camila<br />

Morgado, transmutada que é em mulher de perso<strong>na</strong>lidade, que se dá o<br />

direito do desejo, do amor e, principalmente, que luta, à sua maneira,<br />

pelo homem que ama a par de outras ações que marcam a re-criação<br />

pela dramaturga. Uma das mais bem elaboradas e produzidas ce<strong>na</strong>s<br />

dessa minissérie é justamente aquela em que Manuela e Anita<br />

defrontam-se <strong>ao</strong>s pés do leito em que o homem que ambas amam,<br />

Garibaldi, encontra-se gravemente ferido. Ce<strong>na</strong> de um breve e intenso<br />

diálogo em que o jogo de gestos, e principalmente, olhares faz a ce<strong>na</strong>.<br />

São procedimentos postos em ação pelos autores que estão a exigir<br />

outras aproximações dos estudiosos.<br />

O espaço: sete mulheres de uma mesma família, cercadas pelos<br />

escravos e peões que não foram à guerra e cuja tarefa mais importante<br />

é esperar pelos homens e, claro, pela vitória que também lhes interessa,<br />

clamam por um espaço: a estância. Inserida numa extensão maior, a<br />

coxilha. É preciso um rio. Um estaleiro. A guerra exige um local que<br />

permita o tratamento de feridos e que se encontra mais <strong>ao</strong> longe, <strong>na</strong><br />

cidade, que ainda não passa de um burgo. A história demanda o<br />

espaço. Não se pode contar – mostrar – a Revolução Farroupilha, as<br />

batalhas e entreveros, a soldadesca em ação <strong>na</strong> luta desenvolvida no<br />

73


Sul que não no espaço aberto e infindo dos campos gaúchos. O Auto da<br />

Compadecida carece de um outro espaço que é a cidade pobre,<br />

peque<strong>na</strong>, das ruelas embaraçadas em torno da Igreja e de algumas<br />

casas de comércio, lá no agreste nordestino. Um Só Coração localiza-se<br />

<strong>na</strong> provincia<strong>na</strong> São Paulo que, <strong>ao</strong>s quatrocentos anos de vida, busca a<br />

modernização possível pela fase de industrialização que está vivendo. A<br />

cidade que ainda exibe os casarões dos barões do café que, no início do<br />

século, estabeleceram-se <strong>na</strong> Avenida Paulista. Outras histórias como as<br />

policiais, as de mistério, reclamam um espaço fechado, escuro, distante<br />

– ou <strong>ao</strong> menos desconhecido – de alguma comunidade que por acaso<br />

exista por perto. Grande Sertão Veredas é o sertão-espaço. Riobaldo e<br />

Diadorim só poderiam existir no sertão mostrado por Avancini, depois<br />

de construído por Rosa em palavras que são a memória de Riobaldo. O<br />

espaço exterior cria uma dicotomia com o interior. Às vezes um, às<br />

vezes outro se sobressai <strong>na</strong> razão direta da exigência da história, do<br />

gênero, se assim se quiser. Uma ficção rural pede o exterior, uma<br />

urba<strong>na</strong> pede o interior. Há outras dicotomias espaciais:<br />

grande/pequeno; vazio/cheio; definido/indefinido; acessível/<br />

i<strong>na</strong>cessível, além dos aspectos que emergem dos modos de filmar:<br />

campo e contracampo, de cima/de baixo; distante/próximo; incidência<br />

e intensidade de luz. O espaço audiovisual pressupõe uma série de<br />

escolhas, de seleções. Na televisão há que se notar a expressa ligação<br />

espaço/temporal em conseqüência da fragmentação, do fatiamento<br />

próprio da linguagem televisiva.<br />

Outra questão a ser tratada é a do tempo. Na dramaturgia teatral<br />

o tempo ficcio<strong>na</strong>l pode ser igual <strong>ao</strong> tempo real. Em tantas horas de<br />

espetáculo, tantas horas de história. Geralmente as coisas não correm<br />

dessa maneira em relação <strong>ao</strong> tempo televisivo. Embora os fatos sejam<br />

apresentados como em seqüência, percebe-se o passar de vários dias,<br />

até meses ou anos. O tempo caracteriza-se por não se apresentar<br />

definido ou limitado de forma clara, exata. Quando o conteúdo diz<br />

respeito a um longo período <strong>na</strong> vida de perso<strong>na</strong>gens, por exemplo,<br />

vários são os hiatos, os saltos no tempo que são indicados pelos<br />

acontecimentos, pelas perso<strong>na</strong>gens em suas características, algumas<br />

74


ubricas, demarcações feitas por outros recursos técnicos como<br />

ilumi<strong>na</strong>ção, cenários que mudam, e até por um <strong>na</strong>rrador em off 136 .<br />

O tratamento do tempo <strong>na</strong> ficção televisiva há de ser observado<br />

respeitando-se os diferentes formatos. Um unitário pode ter o tempo<br />

tratado de modo semelhante <strong>ao</strong> teatro e <strong>ao</strong> cinema. Gravado em<br />

estúdios, ce<strong>na</strong>s interiores, é mais comum o tempo ficcio<strong>na</strong>l correr<br />

paralelo <strong>ao</strong> tempo real. Embora <strong>na</strong>da impeça que em função da<br />

espacialidade – ce<strong>na</strong>s exteriores – ele receba outro tratamento. Podem<br />

ocorrer as elipses (do tipo cinematográfico), os saltos temporais<br />

necessários, alternâncias e mudanças de cenários, e ainda os intervalos<br />

típicos do produto.<br />

O seriado apresenta saltos indicados no interior de cada capítulo,<br />

assemelhando-se <strong>ao</strong> unitário, mas também entre episódios. Visto o<br />

seriado ser exibido por vários meses, alguns por vários anos, é <strong>na</strong>tural a<br />

passagem do tempo para as perso<strong>na</strong>gens, modificando-as física e<br />

psicologicamente. Acontece que o seriado pode ter um episódio escrito<br />

em uma seqüência e exibido em outra, isso é estrutural a ele, assim<br />

como a realização pode ser feita em um breve tempo. Ou seja, a<br />

cronologia entre capítulos se perde, em conseqüência das próprias<br />

características da produção e do produto.<br />

Na minissérie (assim como <strong>na</strong> telenovela), os problemas de tempo<br />

são mais complexos em razão da própria freqüência de exibição, quase<br />

sempre diária. O mesmo ocorre no formato que se convencionou<br />

chamar microsséries – Auto da Compadecida (4 capítulos), A Invenção<br />

do Brasil 137 (3 capítulos) – em que o tratamento do tempo, como <strong>na</strong><br />

telenovela e <strong>na</strong> minissérie, é resolvido quase sempre inter<strong>na</strong>mente <strong>ao</strong><br />

capítulo. O andamento temporal emerge <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s, das ações das<br />

perso<strong>na</strong>gens e do fluxo dos acontecimentos. A representação do dia, da<br />

noite, das mudanças meteorológicas está ligada também à categoria<br />

136 Ver: MOTTER, Maria Lourdes. Produção de telenovela no Brasil: tecnologia e criação<br />

ficcio<strong>na</strong>l. In: AJZENBERG, Elza (Org.). Arte e ciência: mito e razão. MOTTER, Maria<br />

Lourdes. A telenovela: documento histórico e lugar de memória. Revista da <strong>USP</strong>.<br />

137 A Invenção do Brasil escrita e dirigida por Guel Arraes e Jorge Furtado, com direção de<br />

produção de Eduardo Figueira, produzida pelo Núcleo Guel Arraes. Exibida de 19 a 21 de<br />

abril de 2000.<br />

75


espacial. O crepúsculo luminoso e intenso do sul, em contraponto com<br />

sema<strong>na</strong>s a fio de nebli<strong>na</strong> e chuva, marca de forma definitiva o tempo<br />

das mulheres e dos revolucionários <strong>na</strong> coxilha. O trem lotado, no qual<br />

pessoas sonolentas se acomodam, denota o amanhecer <strong>na</strong> grande<br />

cidade, assim como a mesa do café da manhã é marca registrada em<br />

todas as produções ficcio<strong>na</strong>is de que um novo dia se inicia nos<br />

apartamentos de Ipanema ou nos casarões paulistanos. A noite azulada<br />

e fantasmagórica marca a chegada de Rosinha à fazenda do pai e<br />

também a espera inútil do pobre Eurico, tapeado por sua mulher. A<br />

passagem do tempo de um capítulo para outro se faz mais complexa<br />

pelos ganchos como técnica de criação de suspense. A relação<br />

estabelecida pelo gancho entre o conhecido e o desconhecido no<br />

momento crucial de uma ce<strong>na</strong>, deve ser resolvida no capítulo seguinte,<br />

ou seja, o desconhecido, o mistério e seu desvendamento fazem parte<br />

das expectativas do auditório. Se houver um salto no tempo, o problema<br />

criado ficará esquecido. Além do que, não devemos esquecer que a<br />

televisão tem de si mesma um discurso interrompido e descontínuo o<br />

que faz com que a temporalidade quase que se impregne <strong>na</strong> linguagem<br />

televisiva. Ao escritor e diretor cabe o encaixamento entre as seqüências<br />

da trama, do enredo e as interrupções próprias do veículo: os intervalos<br />

para os anúncios, as quebras programadas dentro da grade para a<br />

entrada de uma nova atração, as chamadas para reportagens exter<strong>na</strong>s<br />

ou fatos excepcio<strong>na</strong>is no cotidiano.<br />

5.3 A microssérie<br />

O rei<strong>na</strong>do da minissérie no país pode ser considerado longo. Lobo<br />

trabalha com 61 obras desse gênero, situadas entre 1982 e 1995.<br />

Nesses últimos dez anos, podemos acrescentar 16 produções 138 .<br />

138 MALCHER, Maria Ataide. O protagonismo da dramaturgia <strong>na</strong> TV brasileira.<br />

76


Acreditamos que muito se caminhou em termos de criatividade,<br />

inovações levadas a cabo por demandas econômicas, tecnológicas e de<br />

audiência.<br />

Algumas das minisséries citadas no item anterior como A casa<br />

das sete mulheres, Os Maias apresentam cerca de 40/50 capítulos;<br />

outras como Aquarela do Brasil 139 chegam a 60. Anos Rebeldes, Anos<br />

<strong>Do</strong>urados apresentam 20. Numa outra extremidade aparecem A<br />

Compadecida com 4, Invenção do Brasil com ape<strong>na</strong>s 3 capítulos. A<br />

misteriosa e sombria Lu<strong>na</strong> Caliente, exibida em 1999, de Jorge Furtado<br />

(inserida num projeto de integrar cinema e televisão que utiliza a<br />

técnica cinematográfica da ‘noite america<strong>na</strong>’), também tem 3 capítulos.<br />

Seriam essas produções tão novas no cenário televisivo? Seriam<br />

somente menos extensas ou sua maneira de ser apresenta inovações<br />

e/ou diferenciações mais significações?<br />

Lampião e Maria Bonita 140 tem ape<strong>na</strong>s 8 capítulos. Se pensarmos<br />

Aquarela do Brasil com 60 capítulos e levarmos em conta ape<strong>na</strong>s a<br />

extensão, podemos classificar Lampião e Maria Bonita como microssérie.<br />

Baseada <strong>na</strong> vida do mais famoso e conhecido cangaceiro do país, figura<br />

mítica, o recorte temático praticado (o objeto de sentido) levou em conta<br />

aspectos históricos e sociais do entorno da perso<strong>na</strong>gem, o cangaço<br />

como fato específico de um tempo, de uma região, de um momento<br />

histórico do país (o intuito, o projeto discursivo do autor). Ou seja,<br />

exaurir o objeto de sentido e levar a cabo o intuito autoral com toda sua<br />

carga de subjetividade e estilo solicitou uma forma composicio<strong>na</strong>l que é<br />

a microssérie.<br />

Lampião e Maria Bonita tem cerca de 5 horas e 10 minutos de<br />

duração contra 2 horas e trinta e sete de O Auto da Compadecida, 2<br />

horas e quarenta minutos de A Invenção do Brasil 141 , portanto, uma<br />

redução de quase 50% do tempo. E nesse mesmo tempo os autores<br />

deram conta de seu tema, de seu projeto discursivo <strong>na</strong> mesma<br />

139 Aquarela do Brasil. Origi<strong>na</strong>l para TV escrita por Lauro César Muniz, exibida de 22 de agosto<br />

a 01 de dezembro de 2000.<br />

140 Lampião e Maria Bonita, de autoria de Ag<strong>na</strong>ldo Silva e <strong>Do</strong>c Comparato, foi exibida de abril a<br />

maio de 1982; 8 capítulos.<br />

141 As duas últimas tiveram seu tempo reduzido em 100 minutos para o cinema.<br />

77


composição formal e foram mais longe, pois diminuíram a extensão. A<br />

extensão pode, portanto, ser considerada fator de caracterização da<br />

microssérie. Ou seja, há um processo de compressão levado a efeito<br />

pela autoria, mas que não compromete o tema, o intuito e que se<br />

formaliza, contendo-se em um exíguo tempo em relação a uma<br />

minissérie, por falta de outra palavra, tradicio<strong>na</strong>l. A questão nos parece<br />

conhecida: como contar o quê.<br />

Em A invenção do Brasil, os autores, num processo de<br />

intertextualização, dialogam com José de Alencar, Mário de Andrade e<br />

Santa Rita Durão (O Uraguai) e fisgam o título de Darcy Ribeiro.<br />

Trafegando entre o documentário, a ficção e a comédia, a microssérie<br />

conta a vida do degredado, Diogo Álvares, desde o crime que o<br />

transforma em réu, sua estada no Brasil e seus amores, passando por<br />

sua redenção em Portugal, promovida por um jogo de interesses<br />

econômico e político, até seu retorno <strong>ao</strong> país como líder dos<br />

Tupi<strong>na</strong>mbás. Há um <strong>na</strong>rrador (Marco Nanini) que faz a ligação entre<br />

ficção e realidade, comentando fatos históricos. A microssérie exibe a<br />

intertextualidade, a dialogia. O texto é origi<strong>na</strong>l, isto é, foi escrito para<br />

TV, para ser microssérie.<br />

O Auto da Compadecida é reapropriação e reelaboração de uma<br />

peça teatral. Sofre acréscimos de perso<strong>na</strong>gens, episódios, situações,<br />

transformações essas motivadas por exigências do novo suporte e de<br />

audiência. Principalmente, acresce um núcleo amoroso que remexe<br />

atrevidamente com a picardia de um perso<strong>na</strong>gem e não deixa de manter<br />

a característica picaresca. Desde o inicio de sua feitura, a inovação está<br />

<strong>presente</strong> no uso do filme 35 mm e <strong>na</strong> procura, por parte de seu<br />

realizador de, concomitantemente, traçar um caminho com vista <strong>ao</strong><br />

cinema. Essa visão autoral de trafegar para outro suporte interfere no<br />

modo de fazer a microssérie. A própria escolha do formato (ou<br />

subgênero) sugere já estar condicio<strong>na</strong>da a essa visão futura do produto.<br />

Hoje é dia de Maria 142 , de Luís Alberto de Abreu e Luiz Fer<strong>na</strong>ndo<br />

Carvalho, apresenta dois segmentos: Primeira Jor<strong>na</strong>da e Segunda<br />

142 Hoje é dia de Maria é exibida em seu primeiro segmento com 8 capítulos, em janeiro de 2005<br />

e o segundo segmento, com 4 capítulos, no fi<strong>na</strong>l do mesmo ano.<br />

78


Jor<strong>na</strong>da. Hoje é dia de Maria, é trabalho inovador, que põe <strong>na</strong> telinha o<br />

maravilhoso numa atitude arrojada da autoria, a qual permite o<br />

ingresso numa espécie de quarta dimensão, que é onde a obra de arte,<br />

pelo maravilhoso, fala <strong>ao</strong> inconsciente de todos, segundo Sant’An<strong>na</strong> 143 .<br />

Obra que, mais do que experimenta a linguagem em suas múltiplas<br />

dimensões e possibilidades, condensa-a de modo a fazer poesia;<br />

concretiza renovações no sistema simbólico, cria novos recursos<br />

expressivos, resgata e reutiliza o <strong>arcaico</strong> e, magicamente, se oferece, em<br />

algumas poucas horas, <strong>ao</strong> deleite do público.<br />

À sua maneira, todas as obras citadas exibem sua<br />

intertextualização, mostram o processo de apropriação e seu diálogo<br />

com outras obras de arte e/ou teóricas. A Fundação do Brasil de Darcy<br />

Ribeiro está mais do que <strong>presente</strong> em A Invenção do Brasil quando<br />

fornece o título inspirado no prefácio de seu livro. Pensar que não há<br />

embutimento de um conceito nessa escolha parece-nos ingenuidade.<br />

Hoje é dia de Maria, roteiro para televisão escrito por Abreu e Carvalho,<br />

calcado <strong>na</strong> obra de Sofredinni, <strong>na</strong>vega por e com tantas obras que<br />

muito trabalho será despendido para localizá-las, mesmo porque,<br />

Sofredinni já se caracteriza por ser um andarilho da escritura.<br />

Esse jogo dialógico e intertextual praticado assumidamente e<br />

escancaradamente mostrado, exibido parece-nos um traço <strong>presente</strong> com<br />

certa constância <strong>na</strong> microssérie. Levar a cabo essa dialogização, passear<br />

por muitos textos, pinçar, selecio<strong>na</strong>r e montar: pensamos estar aí a<br />

chave da compressão do tempo, do encurtamento do tempo. A<br />

familiaridade dos autores de microsséries com o cinema, com o vídeo<br />

independente é notória. A questão fulcral do cinema, segundo muitos<br />

estudiosos, é a montagem 144 . Diálogos rápidos, ações e imagens<br />

simultâneas, a tela que se enche de informações e as transborda para o<br />

espectador. Seqüências curtas, cortes rápidos. O uso da imagem de<br />

forma consciente e intencio<strong>na</strong>l, que se mostra adequado para expressar<br />

143 SANT’ANNA, Afonso Romano. Apresentação. In: ABREU, Luís Alberto de; CARVALHO,<br />

Luiz Fer<strong>na</strong>ndo. Hoje é dia de Maria. São Paulo: Globo, 2005, segunda contracapa.<br />

144 Remetemos <strong>ao</strong> capítulo A Compadecida no cinema, no fi<strong>na</strong>l deste trabalho.<br />

79


a multiplicidade cultural da contemporaneidade em sua<br />

heterogeneidade e movimentação.<br />

Alguns produtos mais atuais, e pensamos aqui Hoje é dia de<br />

Maria, apresentam inovações que reclamam uma observação acurada.<br />

Porque hoje é dia de Maria, todos os dias são dias de Maria 145 , texto de<br />

nossa autoria, procura resgatar a tecitura das histórias populares<br />

entremeadas de fantástico e recriadas a partir da oralidade –<br />

característica primeira da <strong>na</strong>rrativa, que se considera <strong>presente</strong> <strong>na</strong><br />

microssérie. A partir da teoria bakhtinia<strong>na</strong> buscamos compreender a<br />

trama em sua intertextualidade formal entre a cultura popular e a<br />

ficcio<strong>na</strong>l televisiva. Essa estrutura dialógica está <strong>presente</strong> <strong>na</strong> linguagem<br />

verbal (marcada pela oralidade) e não-verbal (cenários, figurinos,<br />

bonecos articulados, marcadamente mostrados como tais) que se<br />

distingue por intensa heterogeneidade, além dos perso<strong>na</strong>gens animados<br />

e i<strong>na</strong>nimados que completam o encadeamento dos fatos e episódios<br />

relatados. O tratamento espacial e temporal dado <strong>ao</strong> trabalho, a<br />

artesania do processo a par da tecnologia de ponta; a ousadia <strong>na</strong>rrativa<br />

apontam para a microssérie como espaço por excelência de<br />

experimentações mais ousadas às permitidas pelas minisséries. Diga-se<br />

muito corretas, bem feitas, escritas e produzidas por gente que sabe o<br />

que faz e como fazer bem feito. O que aqui está sendo sugerido é que a<br />

radicalização, a ousadia criativa talvez encontrem melhor ambiência<br />

num produto condensado, comprimido.<br />

Para Fadul a microssérie foi possível a partir da minissérie, que<br />

por seu turno viabiliza-se a partir da telenovela, ou seja, é um<br />

desdobramento do já existente. Não se pode negar que mudanças no<br />

modo de operacio<strong>na</strong>lizar o material televisual, comum a todas elas,<br />

ocorram. Sutis ou evidentes, profundas ou superficiais, as inovações<br />

surgem <strong>na</strong> feitura de uma microssérie, podendo, se não, diferenciá-la<br />

da minissérie, suscitar outras categorias para sua observação e estudo.<br />

Esse não é o projeto desse trabalho e estas rápidas observações aqui<br />

145 VIDAL, Marly C.B.; MARQUES, Jane A. Porque Hoje é Dia de Maria, Todos os Dias são<br />

Dias de Maria. In: A<strong>na</strong>is do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de<br />

Janeiro, 5-8 setembro 2005.<br />

80


estão para justificar o tratamento microssérie dado <strong>ao</strong> O Auto da<br />

Compadecida.<br />

81


PARTE 3 – O TEXTO-FONTE, AUTORIA, GÊNERO, TEMÁTICA<br />

6 O TEXTO-FONTE<br />

<br />

Disse um crítico: Como foi que o senhor teve aquela idéia do gato<br />

que defeca dinheiro? Ariano respondeu: ‘Eu achei num folheto de cordel.’<br />

O crítico: E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que<br />

ressuscita a pessoa? Ariano: ‘Tirei de outro folheto.’ O outro: E o cachorro<br />

que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro? Ariano: ‘Aquilo ali é do<br />

folheto também.’ O sujeito impacientou-se e disse: Agora danou-se<br />

mesmo! Então, o que foi que o senhor escreveu? E Ariano: ‘Oxente!<br />

Escrevi foi a peça!’. 146<br />

O Auto da Compadecida é um texto dos mais instigantes (e<br />

intrigantes) da dramaturgia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Tem suas ‘raízes’ em romances e<br />

histórias populares nordesti<strong>na</strong>s, aproxima-se dos antigos autos<br />

vicentinos, do teatro espanhol do século XVII e também da commedia<br />

dell’arte. Acima de tudo, sua criatividade autoral não se limita a uma<br />

mera cópia, transposição ou adaptação. O que nos é dado a perceber é,<br />

como já citado, “a recriação em termos brasileiros, tanto pela<br />

ambientação como pela estruturação, configurando-se como uma obra<br />

inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente<br />

origi<strong>na</strong>l. 147<br />

Escrita em 1955 por Ariano Suassu<strong>na</strong>, um jovem paraibano que<br />

ainda não contava 30 anos, Auto da Compadecida está completando 50<br />

anos, gozando de ple<strong>na</strong> vitalidade. Até o lançamento da Compadecida,<br />

Ariano era conhecido basicamente no Recife, onde residia, como autor<br />

de poemas e peças teatrais populares desde 1945. Ence<strong>na</strong>do pela<br />

146 TAVARES, Braulio. Tradição popular e recriação no ‘Auto da Compadecida’. In:<br />

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191.<br />

147 Conforme apresentação de Henrique Oscar. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida.<br />

Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 10. Coleção Teatro Moderno.<br />

83


primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo<br />

Teatro de Adolescentes do Recife, sob a direção de Clênio Wanderley,<br />

numa curtíssima temporada de 3 apresentações, o Auto da<br />

Compadecida teve a última delas cancelada por falta de público.<br />

Em janeiro de 1957, a peça é o grande acontecimento do Primeiro<br />

Festival de Amadores Nacio<strong>na</strong>is, no Rio de Janeiro, no palco do Teatro<br />

Dulci<strong>na</strong>, por iniciativa da Fundação Brasileira de Teatro. A ence<strong>na</strong>ção<br />

teve a mesma direção e os participantes do espetáculo de estréia em<br />

Recife. Grande sensação do Festival, a peça é premiada com a Medalha<br />

de Ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, leva Suassu<strong>na</strong> a<br />

ser considerado um dos maiores dramaturgos brasileiros e promove a<br />

publicação do texto pela Editora Agir. Ainda no Dulci<strong>na</strong>, em 1959, a<br />

peça é montada com elenco profissio<strong>na</strong>l no qual se destacam Jô Soares<br />

como o Bispo e Agildo Ribeiro fazendo João Grilo. Em 11 de março de<br />

1967, o texto foi ence<strong>na</strong>do em São Paulo, no Teatro Natal, pelo grupo<br />

Studio Teatral sob a direção de Hermilo Borba Filho, com elenco<br />

profissio<strong>na</strong>l em que Armando Bógus é o grande destaque no papel de<br />

João Grilo.<br />

O Auto da Compadecida foi traduzido para vários idiomas e<br />

ence<strong>na</strong>do em vários países, o que dificulta bastante uma cronologia de<br />

suas apresentações. Além dos países da América do Sul, a peça foi<br />

montada <strong>na</strong> Alemanha, Espanha, Grécia, França, Holanda, Polônia,<br />

Suíça, Portugal, República Tcheca (à época Tchecoslováquia), Finlândia,<br />

Israel, Estados Unidos e outros países. Na França, a montagem, no<br />

Teatro Odéon em 1971, recebeu elogios da crítica parisiense nos jor<strong>na</strong>is<br />

Le Figaro e Le Monde. Em alguns países, o texto teatral tem sido<br />

publicado em livros, conforme informação de Newton Jr. 148 : Holanda<br />

(Het Testament van de Hond, 1959), <strong>na</strong> Polônia (Historia o milosiernej<br />

czli testament psa, 1959), nos Estados Unidos (The rogue’s trial, 1963),<br />

<strong>na</strong> Espanha (Auto de la Compadecida, 1965), <strong>na</strong> França (Le jeu de la<br />

Misericordieuse ou Le testament du chien, 1970), <strong>na</strong> Alemanha (Das<br />

148 NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da<br />

Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 200.<br />

84


Testament des Hundes oder Das Spiel von Unserer Lieben Frau der<br />

Mitleidvollen, 1986) e <strong>na</strong> Itália (Auto da Compadecida, 1992).<br />

Algumas particularidades curiosas, e também elucidativas ou de<br />

alerta quanto <strong>ao</strong>s procedimentos de tradução, merecem registro. A<br />

tradução espanhola feita por um católico ortodoxo, Sr. José Maria<br />

Pemán, adepto do regime ditatorial espanhol assim como de seu líder,<br />

Generalíssimo Franco, substitui a perso<strong>na</strong>gem Bispo por um Secretário,<br />

o que, não se pode negar, compromete bastante a intenção discursiva<br />

do autor, configurando-se numa intromissão séria esteticamente<br />

falando, i<strong>na</strong>dmissível em termos estruturais e mais ainda levando-se em<br />

conta a posição intencio<strong>na</strong>lmente crítica de Suassu<strong>na</strong>. 149 O texto escrito,<br />

como documento em que se configura, compromete a idéia suassunia<strong>na</strong><br />

que é a crítica <strong>ao</strong>s homens da Igreja, <strong>ao</strong>s clérigos mal intencio<strong>na</strong>dos e<br />

hipócritas. A tradução america<strong>na</strong> coloca <strong>na</strong> boca de João Grilo: “Você<br />

pensa que eu tenho algum preconceito de raça?” (<strong>Do</strong> you think I have any<br />

prejudice?) no lugar de “Você pensa que eu sou americano para ter<br />

preconceito de raça?” A alfinetada brilhante de Suassu<strong>na</strong> é abolida sem<br />

piedade. A significação pretendida pelo autor desaparece em<br />

conseqüência da reelaboração composicio<strong>na</strong>l levada a efeito pela<br />

escolha do sujeito tradutor.<br />

Evento dos mais sérios teve lugar <strong>na</strong> Venezuela em 1974. Jose<br />

Ig<strong>na</strong>cio Cabrujas 150 encenou o Auto da Compadecida sob o título El<br />

testamento del perro , identificando-se como co-autor do texto. Após o<br />

sucesso alcançado, Cabrujas paulati<strong>na</strong>mente retirou o nome de<br />

Suassu<strong>na</strong> e se apossou da autoria. Passa a ser tratado como criador do<br />

teatro venezuelano e as raízes e vivências que são pensadas por<br />

149 El señor obispo es un excelente administrador. No quiere que se desprestigie la Iglesia de<br />

Dios com entierros de perros cachorros. No desea tampoco que sea molestado el mayor<br />

Antonio Morais, hombre importante y proprietario de las mejores mi<strong>na</strong>s de la comarca. Por<br />

todo lo cual el señor obispo decide no ir a la parroquia del padre Juan, sino mandar a su<br />

secretario. NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano.<br />

Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 201.<br />

150 Jose Ig<strong>na</strong>cio Cabrujas, dramaturgo venezuelano, no campo do humor e do melodrama,<br />

premiado autor de telenovelas, conhecido no Brasil pela peça teatral El Día Que me<br />

Quieras, em cartaz em São Paulo, em maio de 2005, dirigida por Marco Antônio Rodrigues<br />

e interpretada pelo Grupo Folias. O Estado de S. Paulo, 06 maio 2005. Caderno 2 Cultura.<br />

85


Suassu<strong>na</strong> em termos múltiplos e universais passam a locais pelo<br />

discurso de Cabrujas:<br />

Testamento do Cachorro é um encontro quente,<br />

terrivelmente comovedor, com o país, com aquilo que é<br />

nosso, com uma realidade que o teatro <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l esqueceu<br />

com demasiada freqüência. Respira-se a plenos pulmões o<br />

mágico da província de nossa infância... A maestria de<br />

Cabrujas lhe permitiu fugir por completo de um<br />

regio<strong>na</strong>lismo barato. E o resultado é uma obra que vai às<br />

próprias raízes de nossas vivências mais distantes, mais<br />

autênticas. É, enfim, teatro… 151<br />

Ariano 152 revela que em São Paulo aconteceu algo semelhante <strong>ao</strong><br />

sucedido <strong>na</strong> Venezuela. Sob o nome de “O testamento do Cangaceiro”, o<br />

senhor Francisco de Assis escreveu uma peça cujos perso<strong>na</strong>gens<br />

tinham os nomes de João Grilo, Chicó, Encourado etc. O primeiro e o<br />

segundo atos tinham sua ação <strong>na</strong> terra e o terceiro no céu. No<br />

programa da peça, Assis declara ter se baseado no folclore nordestino e<br />

em beletristas do nordeste e que o romanceiro e o folclore do nordeste<br />

não eram propriedades exclusivas de Ariano Suassu<strong>na</strong>. Suassu<strong>na</strong><br />

concorda ple<strong>na</strong>mente com isso, mas se defende, comprovando serem<br />

suas as criações. João Grilo, o da Compadecida, tem nome de<br />

perso<strong>na</strong>gem popular, mas é criação suassunia<strong>na</strong>; Chicó é o<br />

companheiro criado por Suassu<strong>na</strong> para João Grilo e não é perso<strong>na</strong>gem<br />

do folclore e sim um tipo da vida real paraiba<strong>na</strong> experimentada por<br />

Ariano. Assim como o Encourado. Primordialmente, Suassu<strong>na</strong> afirma: o<br />

conjunto é meu, o arcabouço geral foi de concepção minha e a peça foi<br />

urdida <strong>na</strong> minha cabeça, e não em nenhum ‘espetáculo folclórico’. Aliás o<br />

próprio Suassu<strong>na</strong> declara <strong>na</strong> primeira pági<strong>na</strong> de seu texto: O Auto da<br />

Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do<br />

Nordeste 153 , bem como deixa claro que seu teatro é mais aproximado dos<br />

espetáculos circenses, da tradição popular de ence<strong>na</strong>ções públicas e de<br />

151 Texto da crítica teatral venezuela<strong>na</strong> Alice Mayo citado por Suassu<strong>na</strong>. Diário de Per<strong>na</strong>mbuco.<br />

Recife, 23 agosto 1974. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro<br />

tresmalhado, p. 243.<br />

152 DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Venezuelano se apropria de peça de Suassu<strong>na</strong>, 23 agosto<br />

1974.<br />

153 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 12. SUASSUNA,<br />

Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 21.<br />

86


ua, do que do teatro moderno. Suassu<strong>na</strong> apropria-se e recria,<br />

reelabora, reescreve, faz um outro objeto discursivo.<br />

O herói do texto, João Grilo, é perso<strong>na</strong>gem lendário de dois<br />

romances populares nordestinos intitulados As proezas de João Grilo.<br />

Essa aproximação com o popular não exclui as possibilidades de uma<br />

apropriação mais remota, se observarmos a semelhança com os antigos<br />

autos medievais (Os Milagres de Nossa Senhora) em que, numa história<br />

profa<strong>na</strong>, o herói invocava a Virgem e esta o salvava física e<br />

espiritualmente. Ou ainda com os autos vicentinos que, apresentados<br />

nos palácios (e também nos átrios das igrejas medievais), eram o recado<br />

crítico do povo, pela boca do artista, <strong>ao</strong>s detentores do poder temporal –<br />

os endinheirados e nobres –, e do poder eterno, espiritual – os<br />

representantes de Deus <strong>na</strong> terra, o clero. Por outra linhagem, podemos<br />

entrever em João Grilo o Arlequim, com sua esperteza, sagacidade e<br />

astúcia que lhe permitem escapar das situações difíceis, mas sem<br />

deixar de ser histriônico, bufão em sua luta pela sobrevivência. A falta<br />

de sorte, as confusões em que se mete e acaba levando a pior, lembram<br />

as agruras de D. Quixote.<br />

As apropriações, o diálogo do autor levado a efeito com<br />

procedimentos outros, em <strong>na</strong>da diminuem a criatividade e o valor do<br />

texto e da ence<strong>na</strong>ção conseqüentemente, à medida que, sob a ótica<br />

bakhtinia<strong>na</strong>, a apropriação é a dialogia, a corrente comunicativa<br />

estabelecida entre os diversos produtos culturais, em que os elos jamais<br />

se partem com pe<strong>na</strong> de rompimento, o que deixaria de ser comunicação,<br />

e não nos caberia tratar aqui.<br />

De ingênua e singela concepção, o argumento segue o primarismo<br />

dos recursos técnicos e de linguagem. Por primarismo aqui entendemos<br />

a simplicidade, coisa difícil de se alcançar e que Suassu<strong>na</strong> consegue, de<br />

modo a nunca comprometer o idioma e, principalmente a idéia de<br />

discurso primário 154 , que nos fornece pistas para o desenvolvimento da<br />

154 Bakhtin chama de discurso primário, o simples em contraste <strong>ao</strong> secundário, complexo que<br />

aparece em circunstâncias de comunicação cultural mais elaborada, relativamente mais<br />

evoluída e, geralmente, escrita. O discurso secundário cobre o romance, o teatro, o discurso<br />

científico, etc., ou seja, aparece numa situação de comunicação mais complexa. O primário<br />

seria o discurso próximo <strong>ao</strong> cotidiano e que se constitui em circunstâncias de comunicação<br />

87


idéia de apropriação discursiva o que nos levará a uma ‘segunda’<br />

apropriação, pela TV – a microssérie O Auto da Compadecida – e que se<br />

constituirá terreno de apropriação para o cinema.<br />

6.1 Movimento Armorial<br />

Não se pode pensar Suassu<strong>na</strong> sem o Movimento Armorial.<br />

Lançado oficialmente no Recife em 18 de outubro de 1970, numa<br />

miscelânea bem urdida de música, gravura, pintura e escultura levada<br />

a efeito numa igreja barroca – Igreja de São Pedro dos Clérigos – o<br />

Movimento Armorial caracteriza-se como marca de Ariano ou, <strong>ao</strong><br />

contrário, tem a marca dele. Patroci<strong>na</strong>do pelo Departamento de<br />

Extensão Cultural (DEC) da Universidade Federal de Per<strong>na</strong>mbuco, à<br />

época sob a direção de Suassu<strong>na</strong>, o Movimento, em seu programa,<br />

pincela sua maneira de ser e suas intenções. Para Suassu<strong>na</strong>, Armorial é<br />

uma bela palavra e ligada a coisas também belas, <strong>ao</strong>s esmaltes da<br />

Heráldica. Daí relacio<strong>na</strong>r a palavra, como adjetivo, <strong>ao</strong>s estandartes e<br />

poemas de Cavalhada que Ariano via como brilhantes, puros, festivos;<br />

coloridos como uma bandeira, um brasão ou toque de clarim. As pedras<br />

armoriais dos portões e frontadas barrocas levaram-no a estender o<br />

termo à escultura que ele sonhava para o nordeste. No campo da<br />

música, descobre que armorial serviria para qualificar os “cantares” do<br />

Romanceiro, os toques da viola e da rabeca dos cantadores. Para<br />

Suassu<strong>na</strong>, a Heráldica popular está <strong>presente</strong> nos ferros-de-marcar-bois,<br />

<strong>na</strong>s bandeiras das Cavalhadas, nos Pastoris da Zo<strong>na</strong> da Mata com suas<br />

cores vermelho e azul, nos estandartes do Maracatu e dos Caboclinhos,<br />

também <strong>na</strong>s Escolas de Samba e camisas de clubes de futebol. 155<br />

verbal espontânea. Ver: BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 281. Na 4ª<br />

edição: tradução a partir do russo, em agosto de 2003, p. 263-264.<br />

155 O texto referência é de 1972, O movimento armorial. Revista Per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong> de<br />

Desenvolvimento. Recife, v. 4, n. 1, janeiro/julho de 1972. Apud NOGUEIRA, Maria<br />

Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro tresmalhado. Há que se indagar sobre as marcas,<br />

“grifes” esportivas apostas <strong>ao</strong>s uniformes futebolísticos, os logos empresariais.<br />

88


A arte armorial tem profundas ligações com o espírito dos<br />

“folhetos” da Literatura de Cordel, com a música de viola e de rabeca,<br />

com as bandas de pífanos que acompanham os espetáculos populares,<br />

bem como a xilogravura que ilustra os folhetos. O folheto, <strong>na</strong> concepção<br />

“armorial”, reúne três caminhos: um para a Literatura, Cinema e<br />

Teatro, através da <strong>na</strong>rrativa versificada; um segundo, para as artes<br />

plásticas (gravura, pintura, escultura, cerâmica, tapeçaria e a talha)<br />

através dos entalhes da xilogravura que se presta a ilustrar as capas; o<br />

terceiro caminho é para a música pela vertente das “solfas” e<br />

“ponteados” que estão <strong>presente</strong>s nos cantares. Observe-se que Ariano<br />

não cita a televisão, veículo, à época (década de 70), ainda rejeitada por<br />

ele, que hoje, não só aprova seu auto <strong>na</strong> TV como nela aparece. Por<br />

nossa conta e risco consideramos a produção cultural televisiva como<br />

beneficiária dos caminhos armoriais.<br />

Em um ensaio datado de 1974, Suassu<strong>na</strong> conceitua o movimento<br />

e define suas intenções: (…) O Movimento Armorial pretende realizar uma<br />

Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura.<br />

Por isso, algumas pessoas estranham, às vezes, que tenhamos adotado o<br />

nome “armorial” para denominá-lo. Acontece que sendo “armorial” o<br />

conjunto de insíg<strong>na</strong>s, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no<br />

Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra<br />

coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que<br />

desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes da Cultura popular<br />

brasileira 156 . Os artistas eruditos que se reúnem em torno do Armorial<br />

apropriam-se do material popular e o transformam, recriam em outros e<br />

novos modos expressivos, em outras e novas linguagens, resultando em<br />

outras práticas artísticas. Retor<strong>na</strong>ndo <strong>ao</strong> já pensado por Suassu<strong>na</strong><br />

quando do lançamento do movimento, a presença da heráldica <strong>na</strong>s<br />

práticas culturais populares – Cavalhadas, Pastoris, Maracatus,<br />

Caboclinhos –, podemos falar em traços comuns entre as manifestações<br />

populares e as tradicio<strong>na</strong>lmente praticadas <strong>na</strong> Península Ibérica. As<br />

touradas espanholas exibem o colorido brilhante dos estandartes e<br />

156 SUASSUNA, Ariano. O movimento armorial. Recife: Universidade Federal de Per<strong>na</strong>mbuco,<br />

Editora Universitária, 1974.<br />

89


andeiras. As cores tradicio<strong>na</strong>is do espetáculo são fortes e quentes, com<br />

predomínio do vermelho. Os desfiles e apresentações iniciais <strong>na</strong> are<strong>na</strong><br />

espanhola guardam aspectos que podem ser observados nos desfiles de<br />

cavalhada, <strong>na</strong>s manifestações populares do nordeste e também do norte<br />

do Brasil, como o Festival de Parintins. Não podemos esquecer que,<br />

para Suassu<strong>na</strong>, há uma relação cultural entre a Península Ibérica e o<br />

Brasil.<br />

Importante notar, nesse projeto de produção de uma arte erudita<br />

a partir do popular, a presença da preocupação teórica que acompanha<br />

o Movimento Armorial. A teoria armorial, se assim pode ser chamada,<br />

recusa a hierarquização de valores estéticos, tendo por base o social. A<br />

arte erudita não é melhor, mais importante, mais elaborada do que a<br />

popular. São meios, processos, públicos diferentes, mas isso não<br />

significa falta de elaboração, <strong>ao</strong> contrário, o popular tem um alto grau<br />

de elaboração e de complexidade tanto quanto a arte erudita, idéias que<br />

aparecem discutidas em trabalhos de intelectuais participantes do<br />

movimento além do próprio Suassu<strong>na</strong>. Vale notar a produtividade desse<br />

grupo que trabalhou com grande competência o desdobramento, o<br />

transbordamento e a transfiguração de sua criação, no dizer de<br />

Nogueira, prática esta que promove um diálogo entre as diferentes<br />

expressões artísticas. Textos que se constroem a partir do já existente,<br />

como faz Ariano em Romance do Bordado e da Pantera, que <strong>na</strong>sce de<br />

um conto de Raimundo Carrero O Bordado e a Pantera. Pintores que<br />

buscam no popular temas e imagens e que <strong>ao</strong> serem recriadas<br />

aparecem como brasões, selos, em quadros de Francisco Bren<strong>na</strong>nd; o<br />

Caju (insígnia vegetal brasileira) como emblema <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, assim como a<br />

Onça, animal heráldico característico do Brasil. A escultura, a<br />

xilogravura, o bordado, a tapeçaria, enfim toda e qualquer expressão<br />

artística, esta ou aquela linguagem estão <strong>presente</strong>s no movimento<br />

armorial e em constante e gratificante diálogo. A pintura armorial<br />

contemporânea tem em Dantas Suassu<strong>na</strong> um representante atuante em<br />

franca produção, sendo ele o ilustrador da edição comemorativa dos<br />

cinqüenta anos do Auto da Compadecida. Para Suassu<strong>na</strong>, a fonte<br />

inesgotável de toda essa produção é o romanceiro popular do nordeste.<br />

90


No campo do espetáculo e do teatro, dois nomes armoriais são<br />

significativos: Antônio Nóbrega e sua companheira, a atriz Rosane de<br />

Almeida, radicados em São Paulo, e Romero de Andrade Lima, criativo e<br />

inovador diretor teatral. Nóbrega, em seu Teatro Brincante, está levando<br />

a cabo as idéias armoriais em suas pesquisas e espetáculos, tendo por<br />

companheiros Wilson Freire, Bráulio Tavares e outros. No campo da<br />

música, o movimento se caracteriza por trilhar as orientações de Villa<br />

Lobos e Mario de Andrade, pesquisadores voltados para o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo<br />

que, segundo Nogueira, é tendência visível <strong>na</strong> música per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong><br />

com a adoção da rabeca por diversos músicos, a revalorização e a<br />

recriação <strong>presente</strong>s no Movimento Mangue, com o falecido Chico<br />

Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio e outros grupos radicados no<br />

nordeste, que buscam a fusão de ritmos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, com o rock, o hiphop<br />

e o popular como o maracatu, o reisado, coco-de-roda, pastoril. O<br />

cinema armorial encontra-se representado pelo Auto da Compadecida,<br />

de George Jo<strong>na</strong>s (1968), Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987)<br />

e a última criação para o cinema O Auto da Compadecida, em 2000, de<br />

Guel Arraes, a partir da microssérie homônima de 1999.<br />

6.2 Um ancestral português<br />

Portugal dos séculos compreendidos entre o XII e o XV aprende a<br />

ler e escrever latim, embora só os embaixadores usem essa língua, daí a<br />

necessidade de um vocabulário bilíngüe: latim/português. Em tempos<br />

de comunicação deficiente, dificuldade de transporte, poucos livros e<br />

a<strong>na</strong>lfabetismo geral, o ensino concentra-se <strong>na</strong>s catedrais e escolas<br />

episcopais localizadas nos conventos e mosteiros, evidenciando assim o<br />

senhorio da Igreja, que não descuidava do ensino de religião, das<br />

orações, do resguardo dos mistérios da fé e da manutenção regular da<br />

missa. Só no fi<strong>na</strong>l da Idade Média, as escolas passam a ensi<strong>na</strong>r o<br />

português, que já era língua oficial desde o rei<strong>na</strong>do de D. Dinis (1279 –<br />

1325), o que permite uma certa formalização do que estava em uso em<br />

91


termos lingüísticos e que aproximava a escrita da oralidade. O grosso<br />

do povo, em termos atuais, a massa, adquiria conhecimentos práticos e<br />

teóricos por via oral. As tradições populares, especialmente as<br />

oralizadas, sermões e provérbios eram fundamentais nesse processo de<br />

formação das pessoas.<br />

A estrutura social de caráter medieval modifica-se vagarosamente<br />

até que, no início da di<strong>na</strong>stia de Aviz (1385), com a vitória sobre os<br />

castelhanos em Aljubarrota e a ascensão de D. João I, a burguesia<br />

vitoriosa instala uma outra maneira de ver o mundo e um novo<br />

caminho se abre – os Descobrimentos. A tomada de Ceuta em 1415, a<br />

chegada de Vasco da Gama às Índias e o descobrimento do Brasil<br />

marcam a formação do império português. A produção cultural literária<br />

em prosa, representada pelas novelas de cavalaria de caráter místico em<br />

que a perso<strong>na</strong>gem – o cavaleiro – é concebido de acordo com as<br />

expectativas da Igreja, herói casto, fiel, dedicado, que tem como<br />

ocupação a peregri<strong>na</strong>ção espiritual e contemplativa, sofre uma<br />

mudança radical. Em Amadis de Gaula (1508), novela de cavalaria, de<br />

autor desconhecido, em 12 livros, de origem ibérica, o herói, embora um<br />

verdadeiro cavaleiro – cultor do amor cortês e vassalar – quebra a<br />

ordem medieval <strong>ao</strong> se casar com Oria<strong>na</strong>. Está instaurado o término da<br />

Idade Medieval e o início da Re<strong>na</strong>scença, época de transição que tem<br />

como grande representante em Portugal o dramaturgo Gil Vicente.<br />

Gil Vicente vive no período Humanista (1434-1527). Os<br />

Descobrimentos implicam maior desenvolvimento do comércio e do<br />

poderio dos mercadores, desafiando a aristocracia e a nobreza. As<br />

cidades crescem e passam a ser o espaço da competição,do comércio. O<br />

homem, antes afeito à obediência <strong>ao</strong> senhor e <strong>ao</strong>s princípios<br />

teocêntricos, conscientiza-se de sua força criadora, de sua capacidade<br />

de interferência no mundo e possibilidade de transformá-lo. A expansão<br />

dos negócios exige um saber que vai do ler, escrever e contar <strong>ao</strong>s<br />

conhecimentos geográficos, de mercado – lei da oferta e da procura –, do<br />

transporte, dos recursos de fabricação e tecnológicos (tecelagem,<br />

tinturaria, decoração etc.). A crença <strong>na</strong>s forças ocultas, que eram tidas<br />

como determi<strong>na</strong>ntes do destino, passa a ser vista como obsoleta, e é<br />

92


substituída pela do lucro que sopra <strong>ao</strong>s ouvidos dos homens – quanto<br />

maior o lucro, melhor a vida. A prensa móvel permite a aceleração da<br />

informação, pela possibilidade de reprodução rápida e as estradas<br />

abertas para o escoamento das mercadorias é trilhada pela informação.<br />

Esse conturbado momento de transição é anunciado pela literatura<br />

entendida como um dos modos de ver e pensar o mundo. Em Portugal o<br />

marco inicial do Humanismo dá-se com a nomeação de Fernão Lopes<br />

como cronista-mór do reino, mas o nome que nos interessa aqui é o<br />

dramaturgo Gil Vicente.<br />

Para entender Vicente, é preciso conhecer um pouco que seja sua<br />

ancestralidade medieval. Embora não existam documentos que provem<br />

a existência de um teatro português 157 , há papéis que dizem das<br />

proibições às representações populares levadas a cabo pelo povo, pelas<br />

pessoas simples nos átrios das igrejas, e que incomodavam demais <strong>ao</strong>s<br />

padres e bispos. Nas praças e <strong>na</strong> corte, havia os jograis remedadores,<br />

que imitavam de forma a ridicularizar as pessoas; o momo, uma<br />

representação mascarada, em que o fundamento é a mímica; o<br />

arremedilho que é uma farsa curta; o entremez, uma representação<br />

entre os atos de uma peça; mistérios ou milagres, breves quadros<br />

religiosos ence<strong>na</strong>dos preferencialmente em datas litúrgicas como a<br />

Páscoa e o Natal. Nascido por volta de 1465/1466, Gil Vicente entra <strong>na</strong><br />

vida palacia<strong>na</strong> como ourives da rainha D. Leonor, mãe de D. Manuel,<br />

que em 1513 o nomeia mestre da balança da Casa da Moeda de Lisboa.<br />

Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro é sua primeira peça,<br />

ence<strong>na</strong>da em 1502, em comemoração <strong>ao</strong> <strong>na</strong>scimento do príncipe, futuro<br />

rei D. João III. Assistido pela nobreza mais próxima <strong>ao</strong> rei e à rainha,<br />

numa corte bilíngüe, Vicente o recitou em castelhano, à maneira<br />

palacia<strong>na</strong> do poeta Juan del Enci<strong>na</strong>. Gil obtém sucesso absoluto, é<br />

convidado a repetir a ence<strong>na</strong>ção no Natal, quando espertamente (afi<strong>na</strong>l<br />

já estava bafejado pela modernidade próxima), apresenta um outro<br />

157 O mais antigo documento relativo <strong>ao</strong> assunto data de 1193. D. Sancho I pagava a Bo<strong>na</strong>nis e<br />

Acompaniado pelos seus arremedilhos. No Cancioneiro Geral aparecem peças dialogadas<br />

próximas <strong>ao</strong> teatro e referências a momo e entremezes. MOISÉS, Massaud. A Literatura<br />

Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1967, p.54.<br />

93


trabalho: o Auto Pastoril Castelhano, marco i<strong>na</strong>ugural do teatro<br />

português.<br />

Vivendo no contexto histórico dos grandes descobrimentos, ainda<br />

influenciado pelo ambiente da corte medieval, religiosa e conservadora,<br />

é <strong>na</strong>tural que isso tudo transpareça em sua obra, apontando para sua<br />

concepção de vida. Enquanto Portugal se debate <strong>na</strong> luta entre<br />

mercadores e senhores que não aceitam o fim do feudalismo, o restante<br />

da Europa vive a Revolução Comercial, a burguesia atua sobre a<br />

estrutura feudal, iniciando a Idade Moder<strong>na</strong>. Gil Vicente se forma e<br />

atua no ambiente gerador do Re<strong>na</strong>scimento, mas não está nele inserido.<br />

Humanista, reflete o estado oscilante de um mundo velho e de sua<br />

decomposição 158 . Segundo Abdala e Paschoalin, Vicente recebia tenças,<br />

isto é, pagamento pelo trabalho, o que anuncia um tempo de<br />

transformação da obra em objeto de consumo. O capitalismo também o<br />

bafeja.<br />

O trabalho vicentino caracteriza-se por valorizar o texto sobre a<br />

cenografia e o espetáculo, ou seja, diferencia-se daquilo a que os<br />

espectadores estavam acostumados a assistir (momo, arremedilho,<br />

entremez, mistérios e milagres), que fazia valer mais o visual da mímica<br />

e dos arremedos. Vicente mantém esses ‘gêneros’, incorpora elementos<br />

populares já de domínio público como as <strong>na</strong>rrativas de origem<br />

cavaleiresca, as farsas (gênero popular satírico), mistura o cômico com o<br />

religioso, a crítica social com o lirismo das cantigas.<br />

Não se pode negar <strong>ao</strong> teatro vicentino uma certa precariedade,<br />

fruto do momento i<strong>na</strong>ugural e, embora representado para pessoas de<br />

fino gosto à época – a corte –, o drama vicentino, e mais ainda a<br />

comédia, apresenta uma certa espontaneidade e, segundo os<br />

estudiosos, organiza-se sob a lei do improviso. Pode-se tentar justificar<br />

esse improviso pelo fato de, sendo um teatro crítico, popular e inserido<br />

<strong>na</strong> sociedade, estar sempre alerta <strong>ao</strong>s eventos do momento, ou seja, <strong>ao</strong><br />

cotidiano, e aí a oralidade ganha destaque, o primeiro bakhtiniano,<br />

aquele que se forja <strong>na</strong> praça, <strong>na</strong> casa e que o dramaturgo incorpora <strong>ao</strong><br />

158 ABDALA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura<br />

Portuguesa. São Paulo: Ática, 1982, p.27.<br />

94


seu discurso segundo. Note-se, entretanto, que o improviso não<br />

descarta o trabalho de criação, de elaboração em busca do<br />

conscientemente artístico. Pelo contrário, o improviso exige do autor<br />

vivacidade, senso de oportunidade e velocidade de execução.<br />

Em termos de perso<strong>na</strong>gens, Vicente cria o judeu, o cigano e<br />

coloca o camponês em ce<strong>na</strong>; o papa, o médico, o fidalgo decadente; a<br />

dupla alcoviteira e moça casadoira, mais o marido traído, como<br />

componentes que são da sociedade da época. Define as perso<strong>na</strong>gens<br />

pelo vestuário e pela linguagem um tanto peculiar, não esquecendo a<br />

faceta psicológica. Tendo o homem como preocupação, qualquer que<br />

seja a sua categoria social, é dele que o dramaturgo vai se ocupar.<br />

Critica o homem que abando<strong>na</strong> o campo e vai em busca de dinheiro,<br />

que julga fácil, aventurando-se <strong>ao</strong> mar. Censura os novos costumes<br />

que, como bom católico, julga degradantes. Acredita <strong>na</strong> função<br />

moralizadora do teatro, traz à ce<strong>na</strong> as mazelas sociais, revela a<br />

imoralidade dos religiosos, sua ambição desenfreada, a indiscipli<strong>na</strong> que<br />

mostra o paradoxo entre o ideal e a prática. A moralização se fará pela<br />

volta <strong>ao</strong>s valores religiosos mais ortodoxos, tradicio<strong>na</strong>is, com respeito à<br />

hierarquia, melhor dizendo, objetiva conscientizar o homem de seu<br />

afastamento de Deus e exortá-lo <strong>ao</strong> retorno à Igreja Católica, pois só ela<br />

leva à redenção. Em nenhum momento Gil Vicente renega a Igreja, o<br />

pensamento cristão, sua crítica se faz mais <strong>ao</strong> homem cristão do que à<br />

Igreja propriamente dita.<br />

Sendo nossa intenção buscar as relações entre o teatro<br />

suassuniano e o vicentino, optamos por circunscrever nossas reflexões<br />

àquilo que consideramos aproximações, daí não nos estendermos em<br />

demasia <strong>na</strong> análise da produção do dramaturgo português.<br />

Se Gil Vicente estabelece o marco inicial do teatro português,<br />

Suassu<strong>na</strong> marca indelevelmente o panorama teatral brasileiro em 1956<br />

com Auto da Compadecida. Quando de sua estréia <strong>na</strong> capital paulista,<br />

já com elenco profissio<strong>na</strong>l, em 1967, vivemos um conturbado período de<br />

nossa história – uma ditadura militar que a cada dia se desenha mais e<br />

mais repressora e prenuncia dias difíceis. No campo da cultura, a<br />

95


censura, instalada em 1965, mutila textos, filmes, proíbe ence<strong>na</strong>ções. O<br />

Vigário, de Rolf Hochhuth, é a primeira peça a ser proibida<br />

integralmente, seguida, às vésperas da estréia, de O berço do herói de<br />

Dias Gomes. !967/1968 marcam o período de maior antagonismo entre<br />

o Estado e a produção cultural. O mais trágico dos anos para o teatro –<br />

1968 – é contraditoriamente marcado por férteis produções o que<br />

desemboca numa ampla campanha de difamação do teatro<br />

desencadeada pelo Estado baseada <strong>na</strong> “imoralidade” e no uso de<br />

palavrões nos espetáculos. 159 Classificada pelo próprio autor como<br />

exercício da moralidade 160 , pensada por Décio A. Prado como não menos<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista e populista como as do Teatro Are<strong>na</strong>, o Auto da<br />

Compadecida passou incólume <strong>ao</strong>s olhares moralizantes da época.<br />

Note-se que, diferentemente de autores como Guarnieri e Vianinha, que<br />

entendiam suas perso<strong>na</strong>gens enquanto classe social ou força<br />

revolucionária, Suassu<strong>na</strong> aborda a perso<strong>na</strong>gem como o “amarelo”, o<br />

cangaceiro, o repentista popular com toda a carga de pitoresco que a<br />

região lhes atribui 161 .<br />

A estréia de Ariano <strong>na</strong>s letras ocorre em 1945, no Jor<strong>na</strong>l do<br />

Commercio, com o poema Noturno, bastante influenciado pelos<br />

românticos ingleses. Na Faculdade de Direito do Recife, a partir de 46, o<br />

caminho da literatura, e das artes em geral tor<strong>na</strong>-se claro para<br />

Suassu<strong>na</strong>, que se liga a um grupo liderado por Hermilo Borba Filho,<br />

fundador do Teatro do Estudante de Per<strong>na</strong>mbuco. O objetivo do grupo é<br />

levar o teatro <strong>ao</strong> povo, usando para isso as representações em praças<br />

públicas, pátios de igreja, centros operários, ou seja, desmistificar o<br />

teatro, no sentido de (re)torná-lo às mesmas raízes <strong>na</strong>s quais Gil<br />

Vicente se nutriu; criar uma consciência da problemática teatral,<br />

estudar o teatro universal e seus grandes nomes, isto é, buscar, no<br />

fundo, a teorização do teatro praticado <strong>na</strong> região e por fim estimular a<br />

criação de uma dramaturgia enraizada <strong>na</strong> realidade brasileira,<br />

159 GUERRA, Sonia Regi<strong>na</strong>. A geração de 69 no teatro brasileiro: mudança dos ventos.<br />

Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes da<br />

Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988, p. 113.<br />

160 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.<br />

161 PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 79.<br />

96


especialmente, nordesti<strong>na</strong>. A influência desse grupo parece ter sido<br />

importante para o autor <strong>na</strong> estruturação de sua produção, de sua<br />

perso<strong>na</strong>lidade artística, sem deixar de levar em conta sua formação<br />

familiar, sua vivência entre os cantadores de cordel, escritores de<br />

folhetins, cantadores de feira e espetáculos circenses no sertão.<br />

Sugerimos que essa múltipla experiência intelectual explique a busca<br />

de Ariano por uma arte que seja, <strong>ao</strong> mesmo tempo, tradicio<strong>na</strong>l e<br />

popular, clássica e barroca, trágica e cômica.<br />

Há que se notar a importância da religiosidade no teatro<br />

suassuniano. De família protestante, converte-se <strong>ao</strong> catolicismo ainda<br />

jovem, lá pelos vinte anos, e isso vai influenciar fortemente sua<br />

produção. Para Sábato Magaldi, Suassu<strong>na</strong> faz um teatro católico,<br />

oriundo das formas medievais, de uma religiosidade simples e sadia, no<br />

qual a Graça impera <strong>ao</strong> conde<strong>na</strong>r os maus e salvar os bons e simples.<br />

As lendas servem de base a um teatro popular-religioso desde que passe<br />

pelo crivo artístico. Os “autos sacramentais” 162 , gênero no qual se<br />

destaca o espanhol Calderon de La Barca, são modelos inspiradores<br />

para Suassu<strong>na</strong>. Ainda segundo Magaldi, a mesma lenda que serviu a<br />

Calderon de La Barca em La vida es sueno está em O arco desolado. 163 A<br />

Compadecida é exemplo claro da retomada da crítica à hipocrisia<br />

clerical, à fraqueza dos religiosos quase sempre mancomu<strong>na</strong>dos com o<br />

prestígio da aristocracia, o dinheiro da burguesia. A Graça se faz<br />

<strong>presente</strong> com a redenção de Severino, que é enviado <strong>ao</strong> céu, apesar de<br />

todos os seus crimes, e com a oportunidade de retorno a João Grilo pela<br />

interferência de Nossa Senhora que, mesmo reconhecendo sua<br />

malandragem, encontra explicações que, no fundo, o desculpam.<br />

Mesmo a conde<strong>na</strong>ção dos restantes, inclusive os religiosos, <strong>ao</strong><br />

purgatório e não <strong>ao</strong> inferno como requeria o Diabo, é uma mostra da<br />

Graça. Chicó é o ingênuo tão decantado, o simples e humilde que tudo<br />

o que faz o é por sobrevivência em um ambiente que lhe é hostil. A<br />

realidade suassunia<strong>na</strong> não é a de ordem verista e sim feita do<br />

sobre<strong>na</strong>tural, do milagre e com alta dose de poeticidade. Agindo assim,<br />

162 Em momento posterior apresentamos uma fala de Suassu<strong>na</strong> em que ele declara sua<br />

preferência pela linha vicenti<strong>na</strong> em que o cômico e o satírico estão <strong>presente</strong>s.<br />

163 MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 2001.<br />

97


Suassu<strong>na</strong> apropria-se da vertente vicenti<strong>na</strong>, (re)tomando em língua<br />

portuguesa o caminho aberto pelo pai do teatro português, mas com<br />

sotaque brasileiro.<br />

Não se pode esquecer da influência da produção ibérica assumida<br />

pelo próprio Ariano quando afirma que o fato que deu origem à<br />

Cultura 164 brasileira foi semelhante àquele que deu origem à Cultura<br />

medieval ibérica. Lá foram os “bárbaros”, reinterpretando a cultura<br />

greco-roma<strong>na</strong>, aqui foram os Povos vermelhos e negros que, recriando a<br />

Cultura barroco-ibérica, deram origem à nossa Cultura que,<br />

especialmente entre o povo, mantém ligações nucleares com o medieval.<br />

A percepção das semelhanças entre o sertão e a península, ocorre pela<br />

leitura da obra de Lorca: parecia com o meu mundo, era um mundo de<br />

cavalos, de touros, de ciganos e coisas parecidas com o sertão 165 .<br />

Uma mulher vestida de sol (1947) está impreg<strong>na</strong>da de grande<br />

tragicidade, a mesma que está em Cantam as harpas de Sião (1947)) 166 ,<br />

sua primeira peça levada à ce<strong>na</strong>. Os dilemas humanos, as dores tão<br />

próprias da vida são compreendidas, apreendidas e elaboradas em uma<br />

dramaturgia que se caracteriza por traços românticos e dramáticos nos<br />

quais o riso e a ironia não têm lugar. Anos mais tarde, em 1951, em<br />

Torturas de um coração ou em boca fechada não entra mosca, a primeira<br />

comédia suassunia<strong>na</strong> chega <strong>ao</strong> palco. A peça é dirigida pelo autor do<br />

texto com a participação de mamulengos. Carrero considera 1953 o ano<br />

da gestação do Auto da Compadecida. Neste ano, Suassu<strong>na</strong> recria O<br />

castigo da Soberba, de origem anônima, em forma de entremez<br />

(ence<strong>na</strong>ção curta, em tom burlesco, levada à ce<strong>na</strong> entre os atos de uma<br />

peça), que mais tarde utilizará para a última parte da consagrada<br />

Compadecida. Duas coisas são importantes: a recriação assumida e o<br />

164 Mantemos as iniciais maiúsculas em Povo e Cultura, respeitando a grafia autoral de<br />

Suassu<strong>na</strong> em Carrero e a Novela Armorial In: CARRERO, Raimundo. A história de Ber<strong>na</strong>rda<br />

Soledade: a tigre do sertão. Recife: Bagaço, 1995.<br />

165 SUASSUNA, Ariano. Uma dramaturgia da impureza, da misturada. Revista Vintém.<br />

Ensaios para um teatro dialético. Especial dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do<br />

Latão, n. 2, p. 3-8. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro<br />

tresmalhado.<br />

166 Cantam as harpas de Sião foi reescrita em 1958 sob o título O desertor de Princesa e<br />

dirigida por Hermilo Borba Filho, <strong>na</strong> i<strong>na</strong>uguração da Barraca, palco itinerante do Teatro do<br />

Estudante de Per<strong>na</strong>mbuco. CARRERO, Raimundo. Notas bibliográficas em forma de<br />

exaltação. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004.<br />

98


tom burlesco que entra no trabalho composicio<strong>na</strong>l de Suassu<strong>na</strong>, esse<br />

mesmo burlesco que é fundamental no trabalho de Arraes tanto <strong>na</strong><br />

televisão como no cinema.<br />

No Auto da Compadecida, Ariano consegue reunir o religioso e o<br />

popular. Mostrando sua atração pelo auto, harmoniza texto e<br />

ence<strong>na</strong>ção, mantém um ar de improvisação, que contudo não esconde a<br />

elaboração; regio<strong>na</strong>l e universal estão <strong>presente</strong>s e a linguagem comum,<br />

descontraída, se casa com o que Magaldi chama de “estilo terso”.<br />

Embora se trate de fala coloquial, entremeada de termos populares e<br />

regio<strong>na</strong>is, o cuidado com o idioma se faz <strong>presente</strong> de forma clara. Ao<br />

referir-se <strong>ao</strong> seu gosto pelo auto, Ariano explicita que ele gosta não do<br />

sacramental e sim do auto <strong>na</strong> linha vicenti<strong>na</strong>, onde se une o pensamento<br />

religioso e uma visão cômica e satírica. 167<br />

O teatro de Suassu<strong>na</strong> tem algo semelhante <strong>ao</strong> vicentino, segundo<br />

o próprio autor. Vicente, por ser artista da transição medievo/barroco,<br />

ainda tem muito de medieval; a presença de intensa religiosidade<br />

popular, por isso o culto à Compadecida, mãe de Jesus intermediando a<br />

relação homem/divino. E como em Gil Vicente, em Suassu<strong>na</strong> está<br />

<strong>presente</strong> a crítica à Igreja, especialmente <strong>ao</strong> clero, apontando de forma<br />

irônica, humorística, risonha a corrupção, o interesse material que se<br />

concretiza no dinheiro e <strong>na</strong> troca de favores e bênçãos entre religiosos e<br />

poderosos ou endinheirados. A religiosidade típica do homem do sertão<br />

aparece <strong>na</strong>s invocações de João Grilo: Lembra-te de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, Chicó. 168 Na apresentação, feita pelo Palhaço, fica patente a<br />

pretensão autoral: Uma história altamente moral e um apelo à<br />

misericórdia. Ao desenhar uma comunidade que se caracteriza pelas<br />

tropelias provocadas por dois pobres diabos em busca da sobrevivência,<br />

suas malandragens e mentiras; a corrida desenfreada pelos bens<br />

materiais, no caso dos religiosos, dos donos da padaria e do ricaço do<br />

lugar; a busca do prazer sexual sem censura; uma sociedade cheia de<br />

167 SUASSUNA, Ariano. Uma dramaturgia da impureza, da misturada. Revista Vintém.<br />

Ensaios para um teatro dialético. Especial dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do<br />

Latão, n. 2, p. 3-8. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro<br />

tresmalhado.<br />

168 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 30. Essa fala<br />

desaparece <strong>na</strong> edição revista de 2004.<br />

99


vícios, em que se vislumbra a falta de perspectiva, a impossibilidade de<br />

conferir sentido à vida, como fica claro em O Santo e a Porca (1964). A<br />

morte, o confronto com o Divino <strong>na</strong> forma de juiz, porém ‘uma<br />

autoridade misericordiosa que aceita a intermediação da Virgem como<br />

advogada dos pecadores perdidos, atenta para a moral, mas e<strong>na</strong>ltece e<br />

exaltação à misericórdia. Misericórdia esta, perfeitamente<br />

compreensível, pois partindo de Cristo e da Virgem, que experimentados<br />

<strong>na</strong> lida huma<strong>na</strong>, compreendem as fraquezas dos homens.<br />

Compadecida:<br />

(…) É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas<br />

é preciso levar em conta a pobre e triste condição do<br />

homem. A carne implica essas coisas turvas e<br />

mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo.<br />

Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam<br />

com medo, coitados, e termi<strong>na</strong>m por fazer o que não<br />

presta, quase sem querer. É medo. 169<br />

Frente à pergunta do Encourado: Medo? Medo de quê? A resposta<br />

crucial é dada pelo Bispo: Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da<br />

morte…. Esse talvez seja o medo primordial, aquele que seria o<br />

começam com medo <strong>na</strong> fala da Virgem.<br />

A presença do humor é outra característica forte, para não dizer<br />

predomi<strong>na</strong>nte, e pensamos o humor como elemento estrutural da obra.<br />

Começando pela rubrica autoral que afirma e orienta: Fala [o padre]<br />

afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy<br />

chamava “sacerdotais” 170 . Há também os trocadilhos da fala de João<br />

Grilo conversando com o padre sobre o cachorro, bem como a conversa<br />

estapafúrdia entre o bispo e o padre. Os trocadilhos têm papel<br />

importante <strong>ao</strong> lado da agilidade dos diálogos porque vão conduzindo a<br />

<strong>na</strong>rrativa. A ironia da fala do padre sobre dar e tomar, que aponta para<br />

a questão dos interesses fi<strong>na</strong>nceiros <strong>presente</strong>s <strong>na</strong>s ações e ritos<br />

religiosos. No ato do julgamento, a fala de Manuel (Cristo) é muito<br />

alegre em oposição à fala mal-humorada do Encourado (Diabo). São<br />

procedimentos intencio<strong>na</strong>is que, mais do que simples elementos, são<br />

basilares <strong>ao</strong> discurso.<br />

169 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 162.<br />

170 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 21.<br />

100


A fala de Chicó está sempre repleta de redundâncias: Não sei, só<br />

sei que foi assim 171 , responde ele quando João Grilo exige explicações<br />

sobre suas lorotas, que são, elas também, redundantes no texto inteiro,<br />

de modo a dar a característica <strong>ao</strong> perso<strong>na</strong>gem: contador de causos,<br />

mais que isso, contador de histórias, ingênuo, mas não tanto, pois <strong>na</strong><br />

prática se safa bem das enrascadas, usando a própria característica<br />

dita como ingênua. Assim também a fala “filosófica” de Chicó sobre a<br />

morte:<br />

Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único<br />

mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho<br />

destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que<br />

iguala tudo o que é vivo num só rebanho de conde<strong>na</strong>dos,<br />

porque tudo que é vivo morre. 172<br />

Fala, aliás, extremamente bem aproveitada e explorada<br />

<strong>na</strong>rrativamente, tanto em termos verbais como imagéticos, por Guel<br />

Arraes <strong>na</strong> obra televisiva. O padeiro, por várias vezes, repete as últimas<br />

palavras da mulher como a apontar a ascendência dela sobre ele. João<br />

Grilo, em todos os atos até no julgamento, repete a queixa contra o<br />

padeiro e sua mulher, pelo fato de deixarem-no passar fome e dar bife<br />

<strong>passado</strong> <strong>na</strong> manteiga para o cachorro, atitude que João Grilo não<br />

consegue desculpar e que move o sentimento de vingança que ele<br />

mostra o tempo todo, a qual parece ser o móvel de seu comportamento<br />

em relação <strong>ao</strong> casal dono da padaria.<br />

As idéias de Suassu<strong>na</strong> sobre a ence<strong>na</strong>ção são mais do que<br />

relacio<strong>na</strong>das com a linguagem utilizada, com a temática e a origem das<br />

histórias. A simplicidade da linguagem e da <strong>na</strong>rrativa está integrada à<br />

ence<strong>na</strong>ção. O próprio Suassu<strong>na</strong>, <strong>ao</strong> instruir a ence<strong>na</strong>ção, nos textos dos<br />

quais nos servimos 173 , conta como o primeiro ence<strong>na</strong>dor (Clênio<br />

Wanderley) concretizou a sua sugestão de dar <strong>ao</strong> espetáculo um toque<br />

circense. As sugestões do autor são bastante abertas e permitem <strong>ao</strong><br />

diretor recriar sobre o dado. A preocupação de Suassu<strong>na</strong> está em deixar<br />

claro que seu teatro é mais aproximado do espetáculo de circo e da<br />

171 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 48 e 55.<br />

172 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 46.<br />

173 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978. SUASSUNA, Ariano.<br />

Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004.<br />

101


tradição popular do que do teatro moderno. 174 Quando sugere a<br />

cenografia, a simplicidade ainda é maior:<br />

(...) uma entrada de igreja à direita, com uma peque<strong>na</strong><br />

balaustrada <strong>ao</strong> fundo, uma vez que o centro do palco<br />

representa um desses pátios comuns <strong>na</strong>s igrejas das vilas<br />

do interior. A saída da cidade é à esquerda e pode ser<br />

feita através de um arco. Nesse caso seria conveniente que<br />

a igreja, <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> do julgamento, passasse a ser a entrada<br />

do céu e do purgatório. 175<br />

Nota-se um único cenário, no qual alguns arranjos simples comporiam<br />

as diferenças necessárias para as ce<strong>na</strong>s. Essa simplicidade da<br />

ence<strong>na</strong>ção empresta <strong>ao</strong> texto, já de si bastante significativo, forte<br />

presença, e enfatiza o trabalho interpretativo, ou seja, o brilho fica por<br />

conta do diretor e dos atores. Por outro lado, essa abertura vai permitir<br />

maior espaço para Arraes (re)criar um outro discurso.<br />

As perso<strong>na</strong>gens da peça: Palhaço, João Grilo, Chicó, Padre João,<br />

Antônio Morais, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Frade,<br />

Severino de Aracaju, Cangaceiro, Demônio, Encourado (Diabo), Manuel<br />

(Nosso Senhor Jesus Cristo), Compadecida (Nossa Senhora) são<br />

detalhadas no item a seguir.<br />

6.3 As perso<strong>na</strong>gens do Auto da Compadecida<br />

Suassu<strong>na</strong> dá às perso<strong>na</strong>gens aspectos e características de uma<br />

tropa de saltimbancos, que invade o palco de forma escancaradamente<br />

alegre e exibida, atores caminhando com as mãos 176 , alguns tocando<br />

corneta e todos fazendo uma barulheira própria de um espetáculo<br />

circense. Só não aparece Manuel ou o Cristo, já que sua negritude é<br />

grande surpresa. A atriz que representa a Compadecida apresenta-se<br />

em trajes comuns, com a fi<strong>na</strong>lidade de mostrar <strong>ao</strong> público que, <strong>na</strong>quele<br />

174 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 13.<br />

175 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 12.<br />

176 Prática circense de caminhar em que as mãos funcio<strong>na</strong>m como se fossem pés e estes são<br />

mantidos <strong>na</strong> posição vertical e direcio<strong>na</strong>dos para o alto, conseqüentemente a cabeça fica<br />

para baixo.<br />

102


momento ela é somente uma pessoa que assumirá uma perso<strong>na</strong>gem, ou<br />

seja, uma atriz. Entendemos nessa postura suassunia<strong>na</strong> a necessidade<br />

de resguardar a Virgem. Sua grandeza como mãe de Cristo deve ficar<br />

definida como verdade teológica. Ao mostrar-se como aquela que<br />

representa, que ‘veste’ um papel <strong>na</strong> peça, a atriz desvincula-se material<br />

e espiritualmente da Virgem como figura sagrada para a religião.<br />

Como todo e qualquer circo, <strong>ao</strong> toque do clarim adianta-se o<br />

apresentador – um palhaço – e a ele cabe a condução do espetáculo. A<br />

microssérie cortou o palhaço e isso para Suassu<strong>na</strong> foi o único,<br />

conquanto grande, senão da obra de Guel Arraes. O Palhaço apresentase<br />

como representante do autor, que não se julga com direito de tocar<br />

no assunto sobre o qual versa a peça: o combate <strong>ao</strong> mundanismo que<br />

considera uma praga da igreja e só o faz porque acredita que seu povo<br />

sofre, é um povo salvo e tem o direito a certas intimidades 177 . Ao termi<strong>na</strong>r<br />

sua arenga, o Palhaço faz um apelo à misericórdia e dá a chance à<br />

réplica de João Grilo. A partir de então, utilizando-se de um diálogo ágil<br />

e ritmado, a fala das perso<strong>na</strong>gens toma conta da festa, enquanto o<br />

Palhaço continua fazendo a ligação entre os atos. Para Carlos Newton<br />

Jr. é ainda ele o responsável pelo que a peça possui de autoreflexividade,<br />

ou seja, através do Palhaço, de suas falas e comentários<br />

dirigidos <strong>ao</strong> público, o espectador é convidado a atravessar a fronteira<br />

estética que existe entre realidade e ence<strong>na</strong>ção. 178 As falas do Palhaço,<br />

no início do primeiro ato, são um apelo à reflexividade e também de teor<br />

elucidativo, pois expõem doutri<strong>na</strong> religiosa: a misericórdia, a Virgem<br />

como co-redentora, Cristo como juiz, a pequenez huma<strong>na</strong>.<br />

A presença do Palhaço é constante <strong>na</strong> obra de Suassu<strong>na</strong>.<br />

Equilibra a recorrência do Profeta e do Rei: a religião e a lei. O Palhaço<br />

mostra a preocupação de criar uma obra popular não só pelo conteúdo,<br />

comprovadamente popular, mas pela intenção de criar uma obra que se<br />

nutre do popular. No nosso entender temos aqui uma questão<br />

estrutural, de linguagem. O Palhaço é a perso<strong>na</strong>gem através da qual<br />

177 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 24. SUASSUNA,<br />

Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 16.<br />

178 NEWTON Jr., Carlos. ‘Auto da Compadecida’: 50 anos. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da<br />

Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 207.<br />

103


esse popular pleiteado é resgatado O Palhaço seria, segundo<br />

Nogueira 179 , o arquétipo do qual Suassu<strong>na</strong> emerge como contador de<br />

histórias. Daí se pode inferir a importância do contador, do <strong>na</strong>rrador <strong>na</strong><br />

transmissão e manutenção do capital cultural. O Palhaço é o<br />

apresentador:<br />

Palhaço, grande voz:<br />

Auto da Compadecida! O julgamento de alguns<br />

ca<strong>na</strong>lhas, entre os quais um sacristão, um padre e um<br />

bispo, para exercício da moralidade.<br />

Toque de clarim.<br />

Palhaço:<br />

A intervenção de Nossa Senhora no momento<br />

propício, para triunfo da misericórdia. Auto da<br />

Compadecida!<br />

Toque de clarim.<br />

A Compadecida:<br />

A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa<br />

Senhora, declara-se indig<strong>na</strong> de tão alto mister.<br />

Toque de clarim.<br />

Palhaço:<br />

Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo,<br />

praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um<br />

palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém que<br />

sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de<br />

solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas<br />

ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente,<br />

porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas<br />

intimidades.<br />

Toque de clarim.<br />

Palhaço:<br />

Auto da Compadecida! O ator que vai representar<br />

Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se<br />

também indigno de tão alto papel, mas não vem agora<br />

porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral e<br />

o público seria privado desse elemento de surpresa.<br />

Toque de clarim.<br />

Palhaço:<br />

Auto da Compadecida! Uma história altamente moral<br />

e um apelo à misericórdia. 180<br />

Como apresentador e fala representadora do próprio autor, para<br />

Décio A. Prado, fazendo as vezes de autor 181 , o Palhaço não nega a<br />

179 NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro tresmalhado, p. 21.<br />

180 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15-16.<br />

181 PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno, p. 83.<br />

104


orientação ficcio<strong>na</strong>l e, particularmente, teatral do que ali vai ter lugar,<br />

assim como emite juízo de valor quanto <strong>ao</strong> pensamento dos atores que<br />

representarão Cristo e Nossa Senhora, mostrando o alto grau de<br />

religiosidade e de respeito. Representar o Cristo e Nossa Senhora soaria<br />

quase como a transgressão do mandamento de não tomar o nome do<br />

Senhor em vão. Seria usurpar o status da divindade.<br />

Ainda Nogueira afirma que o Palhaço faz parte da tríade dos guias<br />

imaginários que subjazem à vida e às idéias: o profeta, o palhaço e o<br />

rei… 182 . Para quem o Circo (é com maiúscula que Ariano escreve) é uma<br />

das imagens mais completas da estranha representação da vida, do<br />

destino do homem sobre a terra, e compreende-se a essencialidade do<br />

Palhaço que, segundo Ariano, muitas vezes era o papel desempenhado<br />

pelos donos dos circos que aportavam no sertão nordestino de sua<br />

infância. O palhaço da infância, como todo palhaço, assume o riso e<br />

tem a função de ligar <strong>presente</strong>, <strong>passado</strong>, e futuro. O palhaço é o<br />

elemento que vincula, ata memória e imagi<strong>na</strong>ção.<br />

O palhaço é, também, a possibilidade de libertação, assim como a<br />

leitura. O circo funcio<strong>na</strong>ria, no registro de Agnes Heller, como a<br />

suspensão do cotidiano e a elevação do espírito no leque da arte. O circo<br />

é a festa, o não-oficial que transforma o terreno baldio, <strong>na</strong> periferia da<br />

cidade, nos cafundós do sertão, em praça, em riso, em car<strong>na</strong>val. A<br />

presença do circo <strong>na</strong> cidade transfigura não só o aspecto físico, a<br />

aparência da vila com sua lo<strong>na</strong> colorida, como muda o modo de vida<br />

dos habitantes. Há todo um ritual a ser cumprido pelas pessoas:<br />

arrumar-se, vestir-se adequadamente, sair de casa, dirigir-se <strong>ao</strong> local<br />

onde o circo está instalado, comprar os bilhetes, acomodar-se <strong>na</strong>s<br />

arquibancadas. A roti<strong>na</strong> é quebrada enquanto o circo permanece <strong>na</strong><br />

cidade. Mesmo os que a ele não se agregam diretamente pela freqüência<br />

são atingidos pela presença dele. O centro do circo é a are<strong>na</strong>,<br />

construída com madeira pintada, cola, papel colorido, é o palco do<br />

mundo – e aí desfilam os rebanhos de cavalos e outros bichos, entre os<br />

quais ressalta o cortejo do rebanho humano – os Reis, atores trágicos,<br />

182 NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro tresmalhado, p. 21.<br />

105


dançari<strong>na</strong>s, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós. 183 O fato<br />

de o palco ser a are<strong>na</strong> de circo em toda a sua “artificialidade” remete <strong>ao</strong><br />

dado da ficção vista como elaboração artística. É ficção o que ali se<br />

passa e é preciso perceber, conscientizar-se que assim é. O Palhaço é<br />

uma figura essencial <strong>ao</strong> circo, ele quase que caracteriza, melhor,<br />

identifica o circo. Não se concebe, <strong>na</strong> experiência cultural popular, um<br />

circo sem palhaço. Não à toa a frustração demonstrada por Suassu<strong>na</strong><br />

pela ausência do Palhaço em Guel Arraes.<br />

Se a influência de autores ibéricos e românticos ingleses deixou<br />

rastros evidentes nos textos suassunianos, o universo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, melhor,<br />

nordestino, é a referência principal. Mitos, contos e histórias <strong>na</strong>rradas,<br />

muitas sem dono, servem a Ariano para a criação de seu universo<br />

ficcio<strong>na</strong>l e dramatúrgico. Nesse sentido, o primeiro ato do Auto da<br />

Compadecida, baseia-se no folheto O enterro do cachorro (Leandro<br />

Gomes de Barros) e o segundo <strong>na</strong> História do cavalo que defecava<br />

dinheiro (anônimo), enquanto o terceiro se origi<strong>na</strong>ria no auto popular<br />

nordestino O castigo da soberba 184 . Suassu<strong>na</strong> empresta da literatura<br />

popular temas e modelos, portanto, é herdeiro (e apropriador) do<br />

discurso oral, do improviso, do espontâneo, do primeiro bakhtiniano. E<br />

tem um quê do <strong>na</strong>rrador benjaminiano, aquele que conta o <strong>passado</strong>, o<br />

vivido e faz reavivar a memória. Mais, dialoga com autores do <strong>passado</strong> e<br />

os faz intertexto com os do <strong>presente</strong>, que buscam nos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is,<br />

tradicio<strong>na</strong>is e populares, material para recriação que retor<strong>na</strong> <strong>ao</strong> povo<br />

em novos e elaborados formatos artísticos. As peças de Suassu<strong>na</strong>, e a<br />

Compadecida é exemplo claro, recriam com a intenção de realizar uma<br />

arte <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de caráter universal.<br />

Como o Palhaço, os outros perso<strong>na</strong>gens são também tirados da<br />

vivência sertaneja, homens religiosos, de espírito um tanto mágico,<br />

crentes em milagres e sempre abertos <strong>ao</strong> sobre<strong>na</strong>tural que, em extremo,<br />

encontram explicação <strong>na</strong>s palavras de Chicó <strong>ao</strong> tentar justificar as<br />

183 SUASSUNA, Ariano. O palhaço e o circo. Diário de Per<strong>na</strong>mbuco, 19 novembro 1975, p. 5.<br />

184 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 8-9.<br />

106


histórias estapafúrdias que inventa e conta para João Grilo: Não sei, só<br />

sei que foi assim 185 .<br />

João Grilo é perso<strong>na</strong>gem tirado de uma história conhecida em<br />

toda a região. Tem algo de Arlequim: está sempre tentando desenrolar,<br />

desembrulhar as encrencas e confusões por ele mesmo urdidas no seu<br />

viver, ou <strong>na</strong> luta pela sobrevivência. Na ce<strong>na</strong> do julgamento, quando o<br />

Demônio aparece e declara ser a hora da verdade, João imediatamente<br />

afirma: Então já sei que estou desgraçado, porque comigo era <strong>na</strong><br />

mentira 186 . Em busca de melhores momentos, João Grilo arma<br />

confusões, aprecia montar presepadas e se mostra mais corajoso do que<br />

de fato é. Sua fala o identifica e seu discurso é o meio pelo qual<br />

situações efetivas de vida se estruturam 187 Como toda proferição, a de<br />

João Grilo reestrutura a situação e é por esse discurso que ele se dá a<br />

conhecer:<br />

Chicó:<br />

João, deixe de ser vingativo que você se desgraça!<br />

Qualquer dia você inda se mete numa embrulhada séria!<br />

João Grilo:<br />

E o que é que tem isso? Você pensa que eu tenho<br />

medo? Só assim é que posso me divertir. Sou louco por<br />

uma embrulhada!<br />

Chicó:<br />

Permita então que eu lhe dê os parabéns, João,<br />

porque você acaba de se meter numa da<strong>na</strong>da.<br />

João Grilo:<br />

Eu? Que há?<br />

Chicó:<br />

O Major Antônio Moraes vem subindo a ladeira.<br />

Certamente vem procurar o padre.<br />

João Grilo:<br />

Ave Maria! Que é que se faz Chicó?<br />

Chicó:<br />

Não sei, não tenho <strong>na</strong>da a ver com isso! Você que<br />

inventou a história e que gosta de embrulhada, que<br />

resolva! 188<br />

185 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 20.<br />

186 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 129.<br />

187 CLARK, Kateri<strong>na</strong>; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.<br />

228.<br />

188 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 28-29.<br />

107


João Grilo é o “quengo”, o amarelinho esperto, que vence os<br />

poderosos pela astúcia, o próprio Cristo reconhece: (…) Sei que você é<br />

astuto 189 ; pela mentira, pela safadeza, nem sempre “politicamente<br />

correta”, mas compreendida e justificada, mesmo porque nossos<br />

pequenos furtos latinos e mestiços não são <strong>na</strong>da, comparados com essa<br />

vasta ladroagem, que não fomos propriamente nós, Povos escuros e<br />

pobres do mundo, que planejamos e organizamos. 190 Grilo busca alguns<br />

momentos bons, mas no fundo a questão é mais grave. Seu objetivo<br />

primordial é a sobrevivência. É um homem do povo, e como tal, seu<br />

maior problema é a luta pelo pão de cada dia. É preciso um lugar para<br />

dormir, é preciso um trapo <strong>ao</strong> menos sobre o corpo e um bife no prato,<br />

coisas que João Grilo e seu amigo Chicó não têm. Mas João Grilo não é<br />

o malandro que extorque o outro. Ele dá um duro da<strong>na</strong>do <strong>na</strong> padaria e<br />

como trabalhador é sempre explorado pelo patrão que lhe nega até um<br />

pedaço de pão por ele mesmo fabricado. Ao ser questio<strong>na</strong>do por Chicó<br />

sobre a raiva que sente da mulher do padeiro, fica clara essa situação<br />

de exploração a que ele é submetido no trabalho e da qual seu discurso<br />

comprova a consciência:<br />

João Grilo:<br />

O homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está<br />

esquecido de que ela deixou você? Está esquecido da<br />

exploração que eles fazem conosco <strong>na</strong>quela padaria do<br />

inferno? Pensam que são o Cão só porque enriqueceram,<br />

mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é<br />

porque quando estava doente, me acabando em cima de<br />

uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava<br />

pr’o cachorro. Até carne passada <strong>na</strong> manteiga tinha. Pra<br />

mim <strong>na</strong>da, João Grilo que se da<strong>na</strong>sse. Um dia eu me<br />

vingo! 191<br />

Mesmo o aspecto da vingança encontra explicação. João Grilo<br />

seria uma perso<strong>na</strong>lidade, um caráter vingativo ou a mágoa pelo<br />

desprezo, pelo tratamento desumano o levou a se enraivecer<br />

“justamente”? Em outras ocasiões, seu caráter é o de um homem justo.<br />

Nunca, em nenhum momento ou circunstância, ele passa a per<strong>na</strong> em<br />

Chicó. Quando da morte de Severino, ele surrupia o dinheiro que estava<br />

189 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 150.<br />

190 SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 25.<br />

191 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 28.<br />

108


nos bolsos do cangaceiro, sai cantando vitória e julgando-se a si próprio<br />

como sendo o mais sábio dos homens, numa mostra de vaidade, mas<br />

não esquece o amigo:<br />

João Grilo:<br />

E agora vida boa e independência para João Grilo e<br />

para Chicó, graças à minha altíssima sabedoria e <strong>ao</strong><br />

testamento do cachorro. 192<br />

Sua proximidade com Nossa Senhora, a quem chama de “A mãe<br />

da justiça” e invoca de modo bastante familiar e <strong>na</strong> certeza de ser<br />

atendido, aponta para sua religiosidade:<br />

João Grilo:<br />

Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial,<br />

em verso. Garanto que ela vem, querem ver? (Recitando)<br />

Valha-me Nossa Senhora,/ Mãe de Deus de Nazaré!<br />

A vaca mansa dá leite,/ a braba dá quando quer.<br />

A mansa dá sossegada,/ a braba levanta o pé.<br />

Já fui barco, fui <strong>na</strong>vio,/mas hoje sou escaler.<br />

Já fui menino, fui homem,/ só me falta ser mulher.<br />

Encourado:<br />

Vá vendo a falta de respeito, viu?<br />

João Grilo:<br />

Falta de respeito <strong>na</strong>da, rapaz! Isso é o versinho de<br />

Canário Pardo que minha mãe cantava pra eu dormir. Isso<br />

tem <strong>na</strong>da de falta de respeito!<br />

Já fui barco, fui <strong>na</strong>vio,/ mas hoje sou escaler.<br />

Já fui menino, fui homem/ só me falta ser mulher.<br />

Valha-me Nossa Senhora,/ Mãe de Deus de<br />

Nazaré. 193<br />

Nossa Senhora irrompe <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> em resposta à invocação e ainda<br />

agradece a forma como foi chamada.<br />

João Grilo é comparado por muitos críticos a Macu<strong>na</strong>íma, idéia<br />

que não tem o apoio de Suassu<strong>na</strong>:<br />

Aí eu não concordo. Chego a brigar (risos). Não aceito<br />

que João Grilo seja considerado um herói sem nenhum<br />

caráter, pois, no meu entender, ele tem caráter, e muito.<br />

Também minha concepção de herói é diferente. Ele é um<br />

camarada <strong>na</strong>scido pobre, que passa por dificuldades,<br />

mas, <strong>na</strong> peça, derrota a burguesia urba<strong>na</strong> representada<br />

pelo padeiro e a mulher, vence o patriarcado rural no papel<br />

do major Antônio Moraes, derrota até o demônio. Então, se<br />

um perso<strong>na</strong>gem como esse não é herói, não sei quem é. Só<br />

192 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 122.<br />

193 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 157.<br />

109


digo que Macu<strong>na</strong>íma não é, o que é dito pelo próprio Mário<br />

de Andrade. 194<br />

Fica claro que o lado Arlequim de João Grilo exibe uma esperteza<br />

que é comum <strong>ao</strong>s pobres diabos deserdados pela vida. Na Commedia<br />

del’Arte, Arlequim é perso<strong>na</strong>gem emblemático. Geralmente acrobata de<br />

circo, é vivaz, multifacetado, costumeiramente falta com a palavra.<br />

Armada a confusão, ele precisa de perspicácia para se desvencilhar, ou<br />

defender-se dos mais fortes. Invoca Nossa Senhora e argumenta em<br />

busca de sua proteção como defensora e intermediária entre o Redentor<br />

e os homens. Ele sobrevive pelo discurso:<br />

Compadecida:<br />

E pra que você me chamou, João?<br />

João:<br />

É que esse filho de chocadeira quer levar a gente<br />

pro inferno. Eu só podia me apegar, mesmo, com a<br />

senhora.<br />

………………………………………………………………………….<br />

João Grilo:<br />

E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos<br />

defender. Padre João, puxe aí uma Ave-Maria.<br />

João ainda orienta os réus, interrompendo a reza, sobre o quê e<br />

como deveriam dizer:<br />

João Grilo:<br />

Um momento, um momento. Antes de<br />

respondermos, lembrem-se de dizer em vez de “agora e <strong>na</strong><br />

hora de nossa morte”, “agora <strong>na</strong> hora de nossa morte”<br />

porque do jeito que nós estamos, está tudo misturado. 195<br />

As sutilezas discursivas são usadas por João Grilo de modo<br />

competente, a exclusão de conjunção aditiva muda todo o significado.<br />

Inclui os demais em seu pedido à Virgem: Maria vai nos defender. 196<br />

Pode ser esperteza, estão todos no mesmo barco, e Nossa Senhora,<br />

como o Cristo, talvez não gostasse de uma atitude egoísta, do tipo,<br />

salvo-me e os outros que se danem. Algumas falas depois, João sabe<br />

muito bem como buscar o melhor para si. Quando Manuel fala que o<br />

194 BRASIL, Ubiratã. O Policarpo Quaresma do sertão no novo século. O Estado de S. Paulo, São<br />

Paulo, 24 abril 2005, p. D8-D9, Caderno2/Cultura.<br />

195 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 160.<br />

196 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 160.<br />

110


padeiro e sua mulher eram vistos pela Virgem e Ele lá do céu, fazendo<br />

maldades com João Grilo, este imediatamente responde:<br />

João Grilo:<br />

Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão<br />

sem-vergonha, que já me esqueci de tudinho. 197<br />

Esse esquecimento, para o Cristo, deveria ter acontecido <strong>na</strong> terra<br />

e não <strong>na</strong> hora do julgamento e no fundo ele não acontece, é um artifício<br />

discursivo de João. A proposta de João Grilo de mandar os restantes no<br />

julgamento para o purgatório, ficando de fora, é pura esperteza<br />

travestida de bondade. Pede a palavra e:<br />

João Grilo:<br />

Os cinco últimos lugares do purgatório estão<br />

desocupados?<br />

Manuel:<br />

Estão.<br />

João Grilo:<br />

Pegue esses cinco camaradas e bote lá! 198<br />

………………………………………………………………………..<br />

Manuel:<br />

E agora, nós, João Grilo. Por que sugeriu o negócio<br />

pra os outros e ficou de fora?<br />

João Grilo:<br />

Porque, modéstia a parte, acho que meu caso é de<br />

salvação direta 199 .<br />

Segue-se toda uma arenga, <strong>na</strong> qual João Grilo argumenta com a<br />

Compadecida em termos realistas: é melhor pedir o céu para ficar mais<br />

fácil negociar o purgatório com o Diabo. Por fim, a Compadecida solicita<br />

a Manuel que o deixe voltar para a terra dos viventes, com o que o<br />

Cristo concorda, impondo uma condição que põe à prova a vivacidade, a<br />

perspicácia de João Grilo:<br />

Manuel:<br />

Você me faz uma pergunta que eu não possa<br />

responder. Pode ser? 200<br />

197 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 164.<br />

198 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 168.<br />

199 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 169.<br />

200 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 173.<br />

111


E João Grilo, depois de uma outra arenga, desta vez com Manuel,<br />

se sai muito bem com a pergunta:<br />

João Grilo:<br />

……. Bom, se o senhor não faz objeção, minha<br />

pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda<br />

vinda <strong>ao</strong> mundo? 201<br />

Quando fala em objeção por parte do Cristo, João dá uma espécie<br />

de cheque-mate. Se a sabedoria divi<strong>na</strong>, a onisciência do Cristo<br />

admitisse objeção, seu poder deixaria um flanco a ser explorado. Notese<br />

que, logo depois, o Cristo diz já ter conhecimento antecipado da<br />

pergunta e que já estava tudo combi<strong>na</strong>do com a Compadecida – a<br />

onisciência divi<strong>na</strong> é preservada.<br />

Assim como dá mostras de conhecer o texto sagrado, João Grilo<br />

tem noções do texto da lei e não vai se deixar levar pelo autoritarismo<br />

do Encourado:<br />

João Grilo:<br />

É assim, de vez? É só dizer “ora dentro” e vai tudo?<br />

Que diabo de tribu<strong>na</strong>l é esse que não tem apelação?<br />

Encourado:<br />

É assim mesmo e não tem para onde fugir.<br />

João Grilo:<br />

Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que pra<br />

se conde<strong>na</strong>r uma pessoa ela tem de ser ouvida! 202<br />

João Grilo se safa, volta a terra, não sem antes levar algumas<br />

repreensões para não se julgar melhor do que os outros viventes e<br />

pecadores. Encontrando-se numa rede para ser enterrado por Chicó,<br />

João acorda do desmaio sofrido pelo balaço de raspão que levara e,<br />

reatada a “sociedade” com Chicó, explica que perdera o dinheiro. Seguese<br />

o diálogo em que Chicó conta a promessa feita à Nossa Senhora de<br />

lhe entregar o dinheiro, o que os faz continuar pobres. João Grilo tenta<br />

de todas as formas ficar com, pelo menos, parte do dinheiro, a metade<br />

que lhe cabe. Mas frente <strong>ao</strong>s argumentos de Chicó de que, quando<br />

prometera, o dinheiro lhe pertencia inteiramente porque João estava<br />

201 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 174.<br />

202 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 132.<br />

112


morto, Grilo acaba por concordar com a entrega total do dinheiro,<br />

mesmo porque:<br />

João Grilo:<br />

Entrego. Palavra é palavra, e depois estive<br />

pensando: quem sabe se a gente, depois de ficar rico, não<br />

ia termi<strong>na</strong>r como o padeiro? Assim é melhor cumprir a<br />

promessa: com desgraça a gente já está acostumado e<br />

assim pelo menos não se fica com aquela cara.<br />

Não se pode negar a João uma postura ética, afi<strong>na</strong>l palavra é<br />

palavra, e depois estive pensando, quem sabe se a gente, depois de ficar<br />

rico, não ia termi<strong>na</strong>r como o padeiro? 203 , ou seja, com sua falta de<br />

caráter, de solidariedade, de humanidade. Não valeria a pe<strong>na</strong>. João<br />

Grilo tem sua ética, seus valores.<br />

Segundo Bráulio Tavares 204 , João Grilo é a encar<strong>na</strong>ção de Pedro<br />

Malasartes, herói picaresco brasileiro que tem seus ante<strong>passado</strong>s em<br />

Pedro Urdemalas <strong>na</strong> Espanha, e também Lazarillo de Tormes, guia de<br />

cego que, <strong>na</strong> luta pela sobrevivência, tor<strong>na</strong>-se sagaz e trapaceiro, para<br />

não dizer cruel. São esses modelos para heróis picarescos do cordel<br />

nordestino, encontrados nos folhetos de Leandro Gomes e Barros<br />

(1865-1918) e de Manoel Camilo de Santos (1905-1992), que<br />

reencar<strong>na</strong>m pela mão de Suassu<strong>na</strong>, pois suas características universais<br />

se prestam muito bem a um trabalho de apropriação que é o que Ariano<br />

faz <strong>ao</strong> (re)atribuir-lhes outras funções de perso<strong>na</strong>gens, conforme sua<br />

conveniência e intenção.<br />

Chicó é o companheiro inseparável de João Grilo. Um loroteiro de<br />

primeira água, simples e ingênuo, homem do povo, mas que, à sua<br />

moda também tem recursos para a sobrevivência, principalmente é um<br />

grande inventor e contador de causos. O autor teria como modelo um<br />

tipo real existente em Taperoá. É o ficcionista se apoderando do<br />

indivíduo em seu cotidiano, num povoado nordestino, associando-o <strong>ao</strong><br />

picaresco universal, inserindo-o numa dupla conhecida pelo povo<br />

castanho – O Palhaço e a Besta – um palhaço espertalhão, no caso João<br />

203 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 188.<br />

204 TAVARES, Braulio. Tradição popular e recriação no ‘Auto da Compadecida’. In:<br />

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 196.<br />

113


Grilo, e um outro meio ingênuo e um tanto covarde, que se deixa levar<br />

pelo mais esperto, sendo responsável muitas vezes por mais confusões<br />

do que as esperadas pelo ladino. Mas a grande marca de Chicó é sua<br />

habilidade de contador de histórias. O ‘mentiroso’, sem confiança no<br />

dizer de Grilo, apossa-se do já existente, muitas vezes matéria mítica, e<br />

no seu inventar-contar vai desdobrando, qual Sherazade, uma outra<br />

história e uma outra e assim, sucessivamente elas vão sendo<br />

reinventadas, não encontrando nunca um fi<strong>na</strong>l, permanecendo portas<br />

abertas para outras. O contador também sabe em que momento da<br />

trama que é vida dele, desencavar um causo, outro e um outro. Mil e<br />

uma histórias. É a supremacia do poder criativo. No diálogo inicial entre<br />

João e Chicó já se evidencia a característica de contador do último.<br />

Chicó avisa João Grilo da chegada do padeiro para pedir <strong>ao</strong> padre que<br />

benza o cachorro da mulher que está morrendo. João não acredita, pois<br />

desconfia de Chicó, um homem tão sem confiança. Chicó jura estar<br />

dizendo a verdade e, para justificar a benzedura, afirma que já tivera<br />

um cavalo bento e … tome-lhe história:<br />

João Grilo:<br />

Que é isso Chicó? (Passa o dedo <strong>na</strong> garganta) Já<br />

estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma<br />

coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem<br />

sempre com “não sei, só sei que foi assim”.<br />

Chicó:<br />

Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é<br />

que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?<br />

João Grilo:<br />

Você vem com uma história dessas e depois se<br />

queixa porque o povo diz que você é sem confiança.<br />

Chicó:<br />

Eu, sem confiança? Antônio Martinho está aí pra<br />

dar provas do que eu digo.<br />

João Grilo:<br />

Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu.<br />

Chicó:<br />

Mas era vivo quando eu tive o bicho.<br />

João Grilo:<br />

Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o<br />

bicho?<br />

114


Chicó:<br />

Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me<br />

admiro mais de <strong>na</strong>da. No mês <strong>passado</strong> uma mulher pariu<br />

um, <strong>na</strong> serra do Araripe, para os lados do Ceará. 205<br />

No discurso de Chicó, histórias são para serem contadas e não<br />

explicadas. <strong>Do</strong> cachorro a ser benzido para um cavalo bento foi um<br />

átimo. Invoca uma testemunha já morta, mas isso não o impede de<br />

continuar sua história. O trocadilho montado por João sobre ter um<br />

cavalo no sentido de parir, deu oportunidade a Chicó para enganchar<br />

uma outra história, que só não se desenvolveu porque Grilo jogou um<br />

balde de água fria – Isso é coisa da seca. Acaba nisso, essa fome:<br />

ninguém pode ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais<br />

barata e é coisa que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi? 206 – a fim<br />

de recuperar o fio da meada da história primeira, ou seja, a do cavalo<br />

bento. Ao retomar a história, Chicó começa correndo atrás de uma<br />

garrota e acaba tangendo um boi.<br />

João Grilo:<br />

O boi? Não era uma garrota?<br />

Chicó:<br />

Uma garrota e um boi.<br />

João Grilo:<br />

E você corria atrás dos dois?<br />

Chicó:<br />

Corria, é proibido?<br />

Na história de Chicó, ele vai de Taperoá, <strong>na</strong> Paraíba, para Propriá,<br />

no Sergipe, correndo no lombo de seu cavalo bento:<br />

João Grilo:<br />

Mas Chicó, e o rio São Francisco?<br />

Chicó:<br />

Só podia estar seco nesse tempo, porque não me<br />

lembro quando passei… E nesse tempo todo o cavalo ali<br />

comigo, sem reclamar <strong>na</strong>da!<br />

João Grilo:<br />

Eu me admirava era se ele reclamasse.<br />

205 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 18-29.<br />

206 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 19.<br />

115


Chicó:<br />

É por causa dessas e de outras que eu não me<br />

admiro mais de <strong>na</strong>da, João. Cachorro bento, cavalo bento,<br />

tudo isso eu já vi. 207<br />

As reticências estão aí para mostrar a hesitação resolvida, numa<br />

fração de segundo, pelo exímio contador. A ironia da fala de João Grilo<br />

tem resposta pronta, mas ela é formalizada de modo a dar a idéia de<br />

que não foi percebida.<br />

Para enterrar João Grilo, Chicó conta com a ajuda do Palhaço.<br />

Quando João levanta-se <strong>na</strong> rede e fala, instala-se um diálogo que<br />

mostra a falta de crédito que Chicó gozava. O Palhaço não acredita nele,<br />

mesmo quando diz a verdade:<br />

Chicó:<br />

Você ouviu alguma coisa?<br />

Palhaço:<br />

Eu não.<br />

Chicó:<br />

Pois eu ouvi direitinho a fala de João!<br />

Palhaço:<br />

Ai, ai, ai, você já começa com suas histórias! 208<br />

A fala de Chicó, quando da “morte” do amigo, mostra o afeto<br />

existente entre eles, a expectativa da solidão que experimentaria, a<br />

admiração que nutria pelo amigo, bem como a certeza de sua esperteza<br />

e inteligência, assim como também sua postura em relação não só à<br />

morte, mas, à vida:<br />

Chicó:<br />

João! João! Morreu! Ai meu Deus, morreu pobre de<br />

João Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer assim! Que é<br />

que eu faço no mundo sem João? João! João! Não tem<br />

mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais<br />

inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrouse<br />

com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de<br />

nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem<br />

explicação que iguala tudo que é vivo num só rebanho de<br />

conde<strong>na</strong>dos, porque tudo que é vivo morre. Que posso<br />

fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma. 209<br />

207 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 20-21.<br />

208 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 177.<br />

209 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 123.<br />

116


aperreado:<br />

Ao se perceber vivo, João dá por falta do dinheiro e fica<br />

Chicó:<br />

Pode ficar descansado, João, o dinheiro da<br />

sociedade está aqui. Eu tirei de seu bolso, antes de você<br />

se enterrar.<br />

João Grilo:<br />

Ah, cabra safado! Com pe<strong>na</strong> de mim, mas não se<br />

esqueceu do dinheiro, hein!<br />

Chicó:<br />

Homem, quer saber de uma coisa? Foi! Você já<br />

estava morto, esse dinheiro não ia mais lhe servir, achei<br />

que era mais seguro eu ficar com ele! 210<br />

Pode ser ingênuo, nosso amigo Chicó, mas de espírito bem<br />

prático, pragmatismo esse que é, se não derrotado, confrontado pelo<br />

afeto:<br />

Chicó:<br />

Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz<br />

uma promessa a Nossa Senhora pra dar todo o dinheiro a<br />

ela, se você escapasse!<br />

E Chicó leva, pela sua retórica, que não dispensa a ironia, João a<br />

compreender que seria preciso cumprir a promessa:<br />

Chicó:<br />

E eu sabia lá que você ia escapar, desgraça? Oh<br />

homem duro de morrer, meu Deus.<br />

………………………………………………………………………..<br />

Chicó:<br />

E só reclama de mim! E você, por que achou de<br />

escapar? 211<br />

Contador de lorotas, um grande inventor de causos e de histórias,<br />

mas um homem de caráter:<br />

Chicó:<br />

Está certo, homem, estou tão desgostoso quanto<br />

você! Diabo de uma reclamação em cima da gente de<br />

minuto em minuto! É melhor deixar de conversa: vamos<br />

pagar o que se deve!<br />

………………………………………………………………………..<br />

210 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 182.<br />

211 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 184.<br />

117


Chicó:<br />

Então fique com sua parte e assuma a<br />

responsabilidade. Eu vou entregar a minha. 212<br />

Esse traço de caráter não pode ser isolado do aspecto religioso<br />

emprestado <strong>ao</strong> texto pelo autor. Protestante de formação, convertido <strong>ao</strong><br />

catolicismo, nunca renegando sua preocupação religiosa, fica clara a<br />

preocupação de Ariano Suassu<strong>na</strong> com o divino. Frente à morte,<br />

inexplicável e sem sentido, que faz da vida <strong>na</strong>da mais que um contrato<br />

temporário, daí a ausência de significação, sendo Deus a única<br />

possibilidade de ressignificação. Para Chicó, a vida do amigo é<br />

prioritária e Deus, pela mediação da Virgem Maria, seria capaz de<br />

devolvê-la. A promessa tinha de ser cumprida. O discurso de Chicó não<br />

indicia em nenhum momento falta de caráter, mas esse traço positivo<br />

pode ser creditado à sua religiosidade. Afi<strong>na</strong>l, não se pode negar <strong>ao</strong><br />

discurso religioso um caráter de ameaça, o aceno com a pe<strong>na</strong>, o castigo,<br />

quando do não cumprimento das promessas feitas à Divindade e, em<br />

contrapartida, a premiação para os cumpridores.<br />

As perso<strong>na</strong>gens clericais poderiam ser classificadas de hilárias<br />

se não fossem trágicas, no sentido do dito popular. Se a Igreja, <strong>na</strong> visão<br />

do autor, deve ser preservada e é o único caminho para a salvação, seus<br />

mais ilustres representantes são pouco dignos. Salvo o Frade, que <strong>na</strong><br />

hierarquia é o menor, os demais são alvos da ferocidade autoral.<br />

Padre João, o pároco da paupérrima povoação, desenha-se,<br />

independente das marcações – Fala afetadamente com aquela pronúncia<br />

e aquele estilo que Leon Bloy chamava de “sacerdotais”, em outro<br />

momento com desprezo, referindo-se <strong>ao</strong> modo como o padre deve falar<br />

213 – como um vira-casacas logo de início. Avisado por Chicó da chegada<br />

de uma pessoa que traria um cachorro para ser benzido, ele não só se<br />

recusa a fazê-lo como acha uma besteira, uma maluquice. Afirma que<br />

benzer um motor é possível porque todo mundo faz, já cachorro ele<br />

mesmo nunca vira ser benzido. Mas <strong>ao</strong> saber que o cachorro pertencia<br />

212 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 186.<br />

213 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 21.<br />

118


(é uma mentira de João Grilo) <strong>ao</strong> Major Antônio Moraes, poderoso das<br />

cercanias, muda seu raciocínio:<br />

Padre:<br />

Zangar <strong>na</strong>da, João! Quem é um ministro de Deus<br />

para ter direito a se zangar? Falei por falar, mas também<br />

vocês não tinham dito de quem era o cachorro! 214<br />

O Padre é nteresseiro, afi<strong>na</strong>l o Major tem dinheiro e o poder que<br />

dele advém. Um enunciado liga pessoas e, no caso, essa terceira,<br />

Antônio Moraes, que entra no horizonte da comunicação, passa a<br />

responder diretamente pela intenção discursiva do padre:<br />

Padre:<br />

Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio de<br />

Moraes <strong>na</strong> igreja! Há quanto tempo esses pés não cruzam<br />

os umbrais da casa de Deus!<br />

Encontra desculpas para essa ausência:<br />

Padre:<br />

Qual o quê, eu sei de suas ocupações, de sua<br />

saúde… 215<br />

O diálogo entre o Major e o Padre vai mostrar um pobre diabo<br />

inteiramente à mercê do autoritarismo e prepotência do outro. Essa<br />

mesma subserviência aparece <strong>na</strong> conversa do Padre com Severino de<br />

Aracaju, o malvado invasor de Taperoá, <strong>ao</strong> insistir em chamá-lo de<br />

capitão:<br />

Padre:<br />

É que nós não temos coragem de chamar uma<br />

pessoa tão importante de Severino. 216<br />

E reaparece, quando, em presença de Cristo, no julgamento fi<strong>na</strong>l,<br />

o padre se declara não preconceituoso e o Encourado (Diabo) afirma<br />

que batizava as crianças brancas sempre <strong>na</strong> frente das negras, <strong>ao</strong> que o<br />

padre retruca:<br />

Padre:<br />

Mentira! Muitas vezes batizei os pretos <strong>na</strong> frente.<br />

214 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 24.<br />

215 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 32.<br />

216 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 98.<br />

119


Encourado:<br />

Muitas vezes, não, poucas vezes: e, assim mesmo<br />

essas poucas, quando os pretos eram ricos.<br />

Padre:<br />

Prova de que eu não me incomodava com a cor, de<br />

que o que me interessava….<br />

É interrompido, um ‘deslize discursivo’ <strong>na</strong> presença das<br />

reticências, o revela:<br />

Manuel:<br />

Era a posição social, o dinheiro, não é, Padre<br />

João?… 217<br />

Ambos, Padre e Major, são vítimas da tramóia armada por João<br />

Grilo. Enquanto o Major fala do filho a ser benzido, o Padre fala do<br />

cachorro, ambos enredam-se e comprometem-se no discurso. O Major<br />

ameaça queixar-se <strong>ao</strong> Bispo, deixando o Padre em pânico e a partir daí<br />

ele está <strong>na</strong>s mãos de João Grilo, que tem prometido pelo Major um<br />

emprego em sua fazenda, diz-se amigo do Major e promete livrar o<br />

Padre da fúria do poderoso. O padre teme o Bispo e, principalmente, ser<br />

suspenso; assim frente à promessa de Grilo de tudo se arranjar, afirma<br />

que este não se arrependerá – uma mão lava a outra e o pároco vai se<br />

enredando <strong>na</strong> malha de desatinos urdida por João Grilo.<br />

Padre:<br />

Arranja mesmo, João? Como?<br />

………………………………………………………………………….<br />

Padre:<br />

Pois arranje as coisas, João, que você não se<br />

arrepende. 218<br />

Da mesma forma que se enreda com João, o Padre o faz com o<br />

esperto e pedante Sacristão que ouve a conversa sobre o testamento do<br />

cachorro.<br />

Grilo:<br />

Estou aqui dizendo que, se é desse jeito, vai ser<br />

difícil cumprir o testamento do cachorro, <strong>na</strong> parte do<br />

dinheiro que ele deixou para o padre e o sacristão.<br />

217 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 140.<br />

218 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 36.<br />

120


A partir daí, o Sacristão toma a si a responsabilidade de conseguir<br />

que se enterre o cachorro em latim e, de posse da informação sobre o<br />

testamento tem em suas mãos o padre:<br />

Sacristão:<br />

Mas eu não disse que fica tudo por minha conta?<br />

Padre:<br />

Por sua conta como, se o vigário sou eu?<br />

Sacristão:<br />

O vigário é o senhor, mas quem sabe quanto vale o<br />

testamento sou eu. 219<br />

A fala do Sacristão, a par de uma ento<strong>na</strong>ção cortante e calculista<br />

sugerida por Suassu<strong>na</strong>, é recheada de afirmações que não admitem<br />

recusas: E mesmo não será preciso que Vossa Reverendíssima<br />

intervenha. Eu faço tudo! Logo em seguida: Faço. 220 E de fato, fez:<br />

enterrou o cachorro e em latim. O padre não acompanha o enterro. De<br />

acordo com a rubrica autoral, <strong>na</strong> ce<strong>na</strong>, coloca a mão <strong>na</strong> boca, fica<br />

angustiado, mas a única coisa que faz é correr para a igreja: o que não<br />

é dito emerge da expressividade discursiva e dá conta da situação.<br />

Atitude de Pilatos, como a dizer: “Foi o Sacristão, não eu, que enterrou<br />

o cachorro”. Essa mesma tentativa de se eximir das responsabilidades e<br />

de se julgar, por outro lado, i<strong>na</strong>tingível, aparece quando <strong>ao</strong> ser acusado<br />

pelo Encourado:<br />

Padre:<br />

De mim ele não tem <strong>na</strong>da o que dizer!<br />

………………………………………………………………………….<br />

Padre:<br />

Mas não citei o Código Canônico em falso.<br />

Acusado de falta de coleguismo, retruca:<br />

Padre:<br />

Mas o que eu fizer aqui ainda voga? 221<br />

Durante todo o processo de acusação, o que se mais se ouve da<br />

boca do padre é: Ah, patife! , referindo-se <strong>ao</strong>s outros.<br />

219 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 55.<br />

220 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 57 e 58.<br />

221 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 143.<br />

121


Em relação <strong>ao</strong> Sacristão, é preciso dizer que seu discurso, além<br />

de impositivo como já exposto, é tão hipócrita e interesseiro quanto o do<br />

padre. Desde que beneficiado pelo testamento do cachorro, este passa a<br />

ser um animal especial e o sacristão repete o padre: Que animal<br />

inteligente! Que sentimento nobre! 222<br />

Sem opinião própria, fraco, o padre pede o parecer de Chicó, o<br />

sem confiança do lugar:<br />

Padre:<br />

Você o que é que acha?<br />

Chicó:<br />

Eu não acho <strong>na</strong>da de mais!<br />

Padre:<br />

Nem eu. Não vejo mal nenhum em se abençoar as<br />

criaturas de Deus! 223<br />

diz:<br />

Mas não mantém nem mesmo a opinião alheia, pois logo a seguir<br />

Padre:<br />

Pensando bem, acho melhor não benzer! O Bispo<br />

está aí e eu só benzo se ele der licença. ... Aliás, não<br />

permite nem a entrada do casal com o cachorro<br />

agonizante, este tem de ficar fora da igreja: Parem, parem!<br />

Um momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro<br />

fica lá! 224<br />

A ausência do Bispo, talvez permitisse que a opinião de Chicó<br />

prevalecesse. O máximo da desfacetez do padre fica patente em seu<br />

diálogo com João Grilo. Emocio<strong>na</strong>do pela choradeira da do<strong>na</strong> do<br />

cachorro, o padre exclama: Pobre mulher! Pobre cachorro! O marido se<br />

aproveita do momento e:<br />

Padeiro:<br />

O senhor benze o cachorro, padre João?<br />

João Grilo se mete <strong>na</strong> conversa e afirma que o padre só benzeria o<br />

cachorro do Major Moraes, pois este é gente importante. O padre só<br />

sabe dizer, num tom apaziguador: Que é isso, que é isso? E essa fala é<br />

uma constante no discurso do padre, aparecendo também <strong>na</strong> fala do<br />

222 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 52.<br />

223 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 24.<br />

224 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 40- 41.<br />

122


Sacristão. Esse apaziguamento <strong>na</strong>da mais é do que um ganhar tempo<br />

para ver o que dá para fazer, pois há o interesse de auferir lucros da<br />

situação. Portanto, o discurso vai em linha oposta à intenção, ou seja,<br />

<strong>na</strong> superfície é uma coisa, <strong>na</strong> realidade, outra. Ou seja, as entrelinhas<br />

revelam a verdadeira intenção, aquilo que não é dito e significa.<br />

O padre é um fraco que recorda, lamentando:<br />

Padre:<br />

Ai meus dias de seminário, minha juventude<br />

heróica e firme! 225<br />

Na atualidade, se dá <strong>ao</strong> desplante de dizer:<br />

Padre:<br />

Não me decido coisa nenhuma, não tenho mais<br />

idade pra isso. Vou é me trancar <strong>na</strong> igreja e de lá ninguém<br />

me tira! 226<br />

Não à toa será acusado pelo Encourado, quando do julgamento,<br />

de ser preguiçoso:<br />

Encourado:<br />

A preguiça. Deixava tudo <strong>na</strong>s costas do sacristão e<br />

a paróquia ficava completamente entregue a esse patife,<br />

por sua culpa. 227<br />

A entrada em ce<strong>na</strong> do bispo leva o discurso do padre a exibir seu<br />

preconceito em relação <strong>ao</strong> pobre do João Grilo e também sua lentidão<br />

de percepção:<br />

Padre:<br />

Um ca<strong>na</strong>lhinha amarelo que mora aqui e trabalha<br />

<strong>na</strong> padaria. Chegou dizendo que o cachorro de Antônio<br />

Moraes estava doente e que ele queria que eu o benzesse.<br />

Quando o homem chegou, a confusão foi a maior do<br />

mundo. Agora eu entendo tudo. Mas ele me paga! 228<br />

Padre:<br />

Porque você é um amarelo muito safado.<br />

225 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 42-43.<br />

226 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 41.<br />

227 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 144.<br />

228 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 64.<br />

123


Ao se perceber em situação difícil diante do bispo, o padre vira<br />

sua fala, numa tentativa de cooptar João Grilo, depois de simular um<br />

mal-estar:<br />

Padre:<br />

Ai, João Grilo, meu querido, me acuda que estou<br />

morrendo!<br />

João Grilo:<br />

Eu? Quem sou eu pra socorrer padre, eu, um<br />

amarelo muito safado?<br />

Padre:<br />

Eu retiro o que disse, João. 229<br />

O Bispo é apresentado pelo Palhaço como sendo uma grande<br />

figura (…) além de bispo, um grande administrador e político (…) grande<br />

príncipe da Igreja. Como perso<strong>na</strong>gem criada pelo autor, e <strong>na</strong> fala do<br />

mesmo, trata-se de um medíocre e enfatuado que se faz acompanhar de<br />

um Frade, alegre e bondoso a quem todos tratam com desprezo mal<br />

disfarçado. Enquanto o Bispo desdenha o Palhaço, quando este se<br />

curva perante ele, o Frade aponta o Palhaço e ri desbragadamente. De<br />

quem ri o Frade? Ou de que ri? O discurso gestual diz ser do Palhaço.<br />

Sugerimos o rapapé entre Bispo e Palhaço, também discurso, como<br />

deflagrador do riso. Nessa perspectiva, o Frade ri dos dois, sendo seu<br />

‘discurso-riso’ uma resposta <strong>ao</strong> ‘discurso-mesura’ do Bispo e do<br />

Palhaço.<br />

Apesar do salamaleque <strong>ao</strong> Bispo, a fala de apresentação do<br />

Palhaço introduz a ironia que cerca todo o discurso sobre o Bispo, os<br />

enunciados a ele dirigidos, assim como o discurso do próprio. Dirigindose<br />

<strong>ao</strong> Bispo:<br />

Palhaço:<br />

Muito bem, olá, como está Vossa Reverendíssima?<br />

Como vai essa prosápia, essa bizarria… 230<br />

primeiro:<br />

A resposta não tarda: Retro, onde está o padre?<br />

A fala do Bispo sobre o Frade mostra bem o mau caráter do<br />

229 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 68-69.<br />

230 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 61.<br />

124


Bispo:<br />

É horrível ter de viver com um débil mental às<br />

costas, mas meu antecessor gostava dele e não quis<br />

desprestigiá-lo, porque afi<strong>na</strong>l de contas era meu colega, de<br />

modo que conservei essa lesma no lugar em que a<br />

encontrei. 231<br />

Ao dirigir-se <strong>ao</strong> Padre, as palavras do Bispo são ríspidas, sendo a<br />

escolha e estrutura sintática responsáveis pela ento<strong>na</strong>ção e<br />

expressividade que indiciam a questão do valor, isto é, a relação entre<br />

os sujeitos discursivos e a situação discursiva, apontando para a<br />

perso<strong>na</strong>lidade autoritária do Bispo.<br />

Bispo:<br />

Pois entenderá já. Quando eu lhe disser que<br />

Antônio Moraes falou comigo… 232<br />

A conversa entre o Bispo e o Padre mostra a infantilidade de<br />

ambos, apresenta-se i<strong>na</strong>dmissível que a grande figura se preste a levar<br />

um discurso desse tipo avante. 233 Acusado de chamar a mulher de<br />

Moraes de cachorra, o padre nega e o bate-boca se instala:<br />

Padre:<br />

Não, nunca, Deus me livre! Mas juro que não<br />

chamei a mulher dele de cachorra.<br />

Bispo:<br />

Chamou, Padre João!<br />

Padre:<br />

Não chamei, senhor Bispo!<br />

Bispo:<br />

Chamou, Padre João!<br />

Padre:<br />

Não chamei, senhor Bispo!<br />

Bispo:<br />

Chamou, Padre João! 234<br />

Ao saber do enterro do cachorro, o Bispo se dispõe a suspender o<br />

padre por achar sua atitude Uma vergonha! Uma desmoralização!, além<br />

de uma afronta <strong>ao</strong> Código Canônico, que o Bispo cita com toda a<br />

empáfia:<br />

231 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 62.<br />

232 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 63.<br />

233 No item Car<strong>na</strong>valização essa fala se explicará como sendo o processo de degradação<br />

bakhtiniano.<br />

234 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 64.<br />

125


Bispo:<br />

Se é proibido? É mais do que proibido! Código<br />

Canônico, artigo 1672, parágrafo único, letra k. Padre, o<br />

senhor está suspenso. 235<br />

A vergonha e a desmoralização pelo enterro deixam de existir no<br />

momento em João Grilo ironicamente declara:<br />

João Grilo:<br />

É mesmo, é uma vergonha! Um cachorro safado<br />

daquele se atrever a deixar três contos de réis para o<br />

sacristão, quatro para o padre e seis para o bispo, é<br />

demais.<br />

Bispo (mão em concha no ouvido):<br />

Como?<br />

………………………………………………………………………..<br />

Bispo:<br />

É por isso que vivo dizendo que os animais também<br />

são criaturas de Deus. Que animal inteligente! Que<br />

sentimento nobre! 236<br />

As aparências – ou hipocrisia – precisam ser mantidas:<br />

Bispo:<br />

É preciso deliberar. É assunto pra se discutir com<br />

muito cuidado. Vamos reunir o concílio.<br />

Não à toa, um grande administrador e o divulgador dessa virtude<br />

é o Sacristão:<br />

Sacristão (do limiar, antes de entrar <strong>na</strong> igreja):<br />

Na verdade, vê-se logo que é um grande<br />

administrador. 237<br />

Sem dúvida. Ao retor<strong>na</strong>r à ce<strong>na</strong>, a fala do Bispo é contundente:<br />

Bispo:<br />

Não resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e<br />

permitido. Código Canônico, artigo 368, parágrafo terceiro,<br />

letra b. 238<br />

A pretensão do Bispo (e a ironia autoral) fica evidente no uso da<br />

palavra “concílio”, pois o termo significa reunião de altos dignitários da<br />

235 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 71.<br />

236 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 74-75.<br />

237 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 76.<br />

238 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 89.<br />

126


Igreja, especialmente bispos, deve ser presidido ou sancio<strong>na</strong>do pelo<br />

Papa. Não era o caso, mas impressio<strong>na</strong>ria os envolvidos.<br />

Mentiroso, até aqui ardiloso – afi<strong>na</strong>l quem iria conferir o Código<br />

Canônico? – agora passa a ser deslavado. Na presença de Severino,<br />

finge desmaiar. Confundido com um cônego por Severino, mais que<br />

depressa esclarece a situação: Bispo. Tentando comprar a simpatia de<br />

Severino, trata-o de Capitão, como o padre faz. E só pensa em salvar<br />

sua própria pele. Em nenhum momento durante o embate com<br />

Severino, que os mataria a todos, pensa em outra coisa que não seja<br />

salvar-se a si mesmo, chegando <strong>ao</strong> ridículo de gritar:<br />

Bispo:<br />

É um louco! Socorro! Socorro! 239<br />

E se não bastasse, chega <strong>ao</strong> cúmulo da crueldade quando o<br />

Frade, numa atitude de profundo amor <strong>ao</strong> próximo, de responsabilidade<br />

espiritual como religioso que era, absolve a todos os que iriam morrer:<br />

Frade:<br />

Severino!<br />

Severino:<br />

Senhor!<br />

Frade:<br />

Deixe eu confessar esse povo.<br />

Severino:<br />

O senhor Frade vai me perdoar, mas eu não tenho<br />

tempo. A polícia pode voltar e tenho que matar vocês de<br />

um por um.<br />

Frade:<br />

Então vou absolver todos condicio<strong>na</strong>lmente, e peço<br />

<strong>ao</strong> padre que faça o mesmo comigo.<br />

Bispo:<br />

Débil mental! (a Severino) Cavalheiro… 240<br />

O julgamento mostra o Bispo com o mesmo ignóbil<br />

comportamento a ponto de pedir clemência <strong>ao</strong> demônio e tratá-lo por<br />

senhor: Senhor demônio, tenha compaixão de um pobre bispo! 241 Faz-se<br />

de desentendido das acusações feitas pelo Encourado, continua<br />

239 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 105.<br />

240 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 106.<br />

241 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 131.<br />

127


maldizendo o frade mesmo sabendo, segundo Manuel, que o religioso<br />

solicitara ser missionário, e será martirizado, estando assim já a<br />

caminho do processo de beatificação. Acaba como o padre, o sacristão e<br />

o casal no purgatório a pedido de Grilo e por intermediação de Nossa<br />

Senhora, porque ele mesmo não fez <strong>na</strong>da por si, menos ainda pelos<br />

outros.<br />

O padeiro e a mulher são perso<strong>na</strong>gens não nomeados. Para<br />

Carlos Newton Jr. talvez o autor tenha com isso a intenção de fazê-los<br />

perso<strong>na</strong>gens tipos, encar<strong>na</strong>ndo toda uma classe. As perso<strong>na</strong>gens<br />

religiosas, à exceção de Padre João também não são nomeadas. A<br />

mulher é aquela para quem o cachorro é o filho que eu conheço, daí seu<br />

desespero em tentar salvá-lo através da benzedura e depois enterrá-lo,<br />

como se fosse um ser humano, em latim e tudo o mais. Quando João<br />

Grilo diz da impossibilidade de benzer o cachorro, porque isso só seria<br />

possível se o bichinho fosse do Major, gente mais importante, pode-se<br />

pensar <strong>na</strong> sugestão de Newton Jr. e vê-los, o padeiro e sua mulher,<br />

como representantes da burguesia e não da “nobreza” do lugar.<br />

Burguesia essa já detentora do poder econômico, pois o padeiro é<br />

presidente e sócio benfeitor da Irmandade das Almas, à qual fornece<br />

pão para as obras de caridade, além disso mantendo <strong>na</strong> paróquia uma<br />

vaca que fornece leite para o vigário e custeando a reforma da igreja.<br />

Mulher:<br />

Está cortado o rendimento da irmandade!<br />

Padeiro:<br />

Está cortado o rendimento da irmandade!<br />

Mulher:<br />

Meu marido considera-se demitido da presidência.<br />

Padeiro:<br />

Considero-me demitido da presidência! 242<br />

João Grilo organiza o enterro do cachorro: Vamos eu, o Chicó. Com<br />

o senhor e sua mulher, acho que já dá um bom enterro!<br />

Padeiro:<br />

Você acha que está bem assim?<br />

Mulher:<br />

Acho.<br />

242 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 50.<br />

128


Padeiro:<br />

Então eu também acho! 243<br />

O marido é dono de um discurso redundante, está sempre a<br />

repetir as falas da mulher e essa postura discursiva sugere a<br />

ascendência dela sobre ele. A mulher prefere animais a gente. João<br />

Grilo arranja-lhe um gato e ela fica feliz: Ai, João, traga pra eu ver!<br />

Chega me dá uma agonia! Traga, João, já estou gostando do bichinho.<br />

Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá gosto. Projetando essa<br />

fala, lembramos uma autoridade que é do<strong>na</strong> de um discurso<br />

semelhante.<br />

Mas é sovi<strong>na</strong>: Espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o<br />

gato que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que<br />

aconteceu com o cachorro? Terminei tendo que fazer testamento. 244<br />

Ao comprovar que o gato descome dinheiro, a mulher não<br />

titubeia: Nossa Senhora, é mesmo! João, me arranje esse gato, pelo amor<br />

de Deus!<br />

Mulher:<br />

Passe o gato, Chicó. Meu Deus, que gatinho lindo!<br />

Agora a coisa é outra, tenho um filho de novo e vou tirar o<br />

prejuízo. 245<br />

Descoberta a lambança, é o padeiro que, <strong>na</strong> qualidade de<br />

presidente da Irmandade das Almas, vai tirar satisfação com João Grilo<br />

e prestar queixa <strong>ao</strong> Bispo. A queixa é aceita, mas <strong>na</strong>da se resolve,<br />

porque Severino invade a cidade exatamente nessa hora. A mulher dá a<br />

primeira mostra de afetividade (ou seria medo?) para com o marido, a<br />

quem costumeiramente enga<strong>na</strong>: ….Ai, meu marido de minha alma…<br />

João Grilo:<br />

Deixe de besteira, Chicó, todo mundo já sabe que a<br />

mulher do padeiro enga<strong>na</strong> o marido!<br />

Chicó:<br />

João, da<strong>na</strong>do, ou você fala baixo ou eu esgano você<br />

já, já.<br />

João Grilo:<br />

Mas todo mundo não sabe mesmo?<br />

243 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 58.<br />

244 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 83.<br />

245 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 88.<br />

129


Chicó:<br />

Sabe, mas não sabe que foi comigo, entendeu? E<br />

mesmo ela já me deixou por outro! Uma vez, João, e não<br />

posso me esquecer dela. Mas não quer mais <strong>na</strong>da<br />

comigo. 246<br />

O desprezo por Chicó tem a ver com a miséria deste: ….e a<br />

fraqueza dela é dinheiro e bicho. Ela não teria deixado você se você fosse<br />

rico 247 …, segundo Grilo.<br />

A mulher é tão despida de censura e de respeito que tenta seduzir<br />

Severino com a fi<strong>na</strong>lidade de se safar da morte: Então venha trabalhar<br />

comigo <strong>na</strong> padaria. Garanto que não se arrependerá. Continua em seu<br />

comportamento quando declara a Severino: É, sou casada com essa<br />

desgraça aí, mas estou tão arrependida! Só gosto de homens valentes e<br />

esse é uma vergonha. 248 O discurso da mulher carrega as tintas do<br />

desprezo pelo marido. A afirmação inicial, o uso da expressão essa<br />

desgraça, <strong>na</strong> qual o demonstrativo como que coisifica o homem culmi<strong>na</strong><br />

com o advérbio aí. São índices discursivos que apontam para seu<br />

desprezo pelo companheiro. Mas é corajosa e dig<strong>na</strong> <strong>na</strong> hora da morte,<br />

quando o padeiro comprova sua já conhecida fraqueza de perso<strong>na</strong>lidade<br />

e acresce a da vingança:<br />

Padeiro:<br />

Quero que ela morra primeiro, para eu ver.<br />

Severino:<br />

Concedido. Mate a mulher primeiro.<br />

Mulher:<br />

Ah desgraçado!<br />

Padeiro:<br />

Desgraçada é você que me desgraçava a testa sem<br />

eu saber! E se <strong>ao</strong> menos fosse com uma pessoa de<br />

respeito! Mas até Chicó!<br />

………………………………………………............................….<br />

Padeiro:<br />

Eu não digo? Você me desgraçou. Caminhe <strong>na</strong><br />

frente! Faço questão de ver essa desgraça morrer!<br />

Mulher:<br />

E então, pensa que vou fazer cara feia? Está muito<br />

enga<strong>na</strong>do, tenho mais coragem do que muito homem<br />

246 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 27.<br />

247 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 27.<br />

248 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 100.<br />

130


safado! Você, sim, está aí em tempo de se acabar. Pensa<br />

que não vi as per<strong>na</strong>s de suas calças tremendo, desde que<br />

ele entrou? Frouxo, safado, não lhe dou o gosto de me<br />

queixar de jeito nenhum. (Ao cangaceiro) Está pronto?<br />

Severino:<br />

Estou.<br />

Mulher:<br />

Pois vamos. (Sai firmemente, acompanhada pelo<br />

marido que cambaleia) Eu não disse? Segure aqui que eu<br />

ajudo. 249<br />

Embora denotando desejo de vingança, o padeiro tem medo e não<br />

consegue manter a aparência de coragem. A mulher consegue até<br />

reverter a situação <strong>ao</strong> perguntar a Severino se ele está pronto, como a<br />

sugerir que ela já estava há muito. O padeiro parece ser apaixo<strong>na</strong>do,<br />

pois <strong>na</strong> hora fi<strong>na</strong>l não cumpriu o prometido e acabou abraçando-se à<br />

mulher para morrer. Ou continuou sendo movido pelo medo? Para a<br />

Compadecida foi amor, perdão: O perdão que o marido deu à mulher <strong>na</strong><br />

hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem juntos. Note-se,<br />

entretanto, que o padeiro não se defende, não age no sentido de<br />

justificar ações e comportamentos, como se tudo que partisse dele fosse<br />

normal e aceito A mulher o faz mais de uma vez, sendo a última diante<br />

do tribu<strong>na</strong>l, a dirigir-se à Compadecida, num triste e feminino discurso<br />

no qual mostra um critério de justiça próprio:<br />

Mulher:<br />

Porque era maltratada por ele. Logo no começo do<br />

nosso casamento começou a me enga<strong>na</strong>r. A senhora não<br />

sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada<br />

com homem rico, como eu. Amor com amor se paga. 250<br />

Também há o discurso fi<strong>na</strong>l do padeiro, que pode não ser ou ter a<br />

solução, mas não deixa de revelar nobreza, pois aponta para o<br />

espiritual: A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais ofendido pelos<br />

atos que ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela. Isso deve ter<br />

algum valor 251 . Claro que ele o usa para ganhar pontos favoráveis no<br />

julgamento, pontos esses que são estendidos à mulher, sendo que<br />

249 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 110.<br />

250 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 164.<br />

251 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166.<br />

131


ambos acabam por receber a graça, pois não deixa de ser graça: a de ir<br />

para o purgatório.<br />

Severino do Aracaju é o violento, roubador que se faz<br />

acompanhar de um acecla que é chamado de Cangaceiro. Severino é<br />

nome emblemático e já se aplica como uma metonímia do originário do<br />

nordeste brasileiro. João Cabral também nos <strong>presente</strong>ou com um<br />

maravilhoso Severino. O de Suassu<strong>na</strong>, irônico, não perde oportunidade<br />

para mostrar sua valentia e disposição em fazer justiça com suas<br />

próprias mãos. A primeira vítima de sua ironia é o Bispo que, <strong>ao</strong> vê-lo,<br />

desmaia e é tido como um simples (para ele, cioso da hierarquia)<br />

cônego:<br />

Severino:<br />

O que é isso que está aí deitado, um cônego? 252<br />

O demonstrativo ‘isso’ é bem explorado <strong>na</strong> fala, à medida que<br />

coisifica o já humilhado bispo. Espírito prático, em Severino frescura<br />

não encontra oportunidade. O título de capitão, que lhe é dado pelo<br />

padre e pelo bispo, é renegado logo de saída: …E deixe de me chamar de<br />

capitão, que eu não gosto!… Severino que é meu nome de batismo! E<br />

mais: sabe muito bem porque está sendo tratado de capitão, não nutre<br />

ilusões:<br />

Severino:<br />

Isso tudo é porque quem está com o rifle sou eu! Se<br />

fosse qualquer um de vocês eu era chamado era de Biu!<br />

Deixem de conversa, que isso comigo não vale. Mostre o<br />

bolso. (Tirando o dinheiro.) Seis contos! Mas é possível? Já<br />

vi que o negócio de reza está prosperando por aqui. 253<br />

Discurso irônico, em que transparece a crítica à capitalização da<br />

igreja, e esperto <strong>na</strong> conversa com o padre, revelando outra faceta de<br />

Severino, a inteligência:<br />

Severino:<br />

É mesmo padre? Não é possível! Numa terra em que<br />

o bispo tem seis contos, o padre deve ter, no mínimo, três<br />

contos. […] Três contos! Estou quase pensando em deixar o<br />

cangaço. Eu deixava vocês viverem, o bispo demitia o<br />

sacristão e me nomeava no lugar dele. Com mais uns<br />

252 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 97.<br />

253 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 98.<br />

132


cinqüenta cachorros que se enterrassem eu me<br />

aposentava. […] 254<br />

Crueldade que se manifesta cínica e ironicamente, quando mata o<br />

padre e o sacristão:<br />

Severino:<br />

Que é isso quer deixar o padre sem poder rezar o<br />

ofício?<br />

Sacristão:<br />

O ofício? Que ofício, o dos mortos?<br />

Severino:<br />

Nada, o do casamento. Vou casar vocês dois com a<br />

morte. Ra…ra, essa foi boa! 255<br />

Moralista, Severino não admite a tentativa de sedução da mulher<br />

do padeiro, chegando a destratá-la de modo agressivo e ameaçador:<br />

Severino:<br />

Vergonha é uma mulher casada <strong>na</strong> igreja se<br />

oferecer desse jeito. Aliás já tinha ouvido falar que a<br />

senhora enga<strong>na</strong>va seu marido com todo mundo. [...] A<br />

coisa que eu tenho mais raiva no mundo é de mulher<br />

assim. Sabe o que é que eu faço com as que encontro com<br />

esse costume? 256<br />

Aparentemente contraditório, Severino ofende-se quando João<br />

Grilo tenta comprar sua liberdade e a de Chicó:<br />

João Grilo:<br />

Homem, eu já sei qual é a conversa que você quer<br />

ter comigo. Tome logo meus duzentos e cinqüenta mil réis e<br />

deixe eu ir-me embora. Dê os seus também, Chicó, e<br />

vamos sair daqui que o calor está aumentando.<br />

Severino:<br />

Nada disso. Você agora fica e vai morrer com os<br />

outros. Está me chamando de ladrão? Severino do Aracaju<br />

pode ser assassino, mas não mata ninguém sem motivo.<br />

Até hoje só matei para roubar. É assim que garanto meu<br />

sustento. Mas você me chamou de ladrão e vai se<br />

arrepender. 257<br />

Ladrão Severino é, qualquer que seja a justificativa. A questão de<br />

honra para ele está <strong>na</strong> motivação: mata para roubar, para se sustentar.<br />

254 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 98-99.<br />

255 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 108.<br />

256 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 100.<br />

257 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 104-105.<br />

133


Ele mata, não vende a preservação, ou seja, não aceita suborno nem<br />

resgate pela vida.<br />

Sujeito religioso, Severino não mata defronte a igreja, manda<br />

todos se retirarem e orde<strong>na</strong> <strong>ao</strong> seu cúmplice que os execute. Sua<br />

devoção <strong>ao</strong> Padre Cícero acaba levando-o à morte. A esperteza de João<br />

Grilo é grande, sua capacidade de forjar artifícios para sobreviver é<br />

típica da perso<strong>na</strong>gem picaresca que é, mas <strong>ao</strong> vislumbrar para Severino<br />

a possibilidade de ver Padim Ciço, ganhou definitivamente a parada:<br />

Severino:<br />

Nossa Senhora! Só tendo sido abençoada por Meu<br />

Padrinho Padre Cícero! Você não está sentindo <strong>na</strong>da?<br />

Este cai como uma criança que acredita em mágicas:<br />

Chicó:<br />

Disse (Padre Cícero) “Essa gaitinha que eu abençoei<br />

antes de morrer, vocês devem dá-la a Severino, que<br />

precisa dela mais do que vocês.”<br />

Severino:<br />

Ai meu Deus, só podia ser meu Padrinho Padre<br />

Cícero mesmo! João me dê essa gaitinha!<br />

………………………………………………………………………..<br />

João Grilo:<br />

Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu<br />

Padrinho Padre Cícero e você me paga desse modo!<br />

Severino:<br />

Conhecer? Nunca tive essa sorte! Fui uma vez <strong>ao</strong><br />

Juazeiro só para conhecer Meu Padrinho, mas pensaram<br />

que eu ia atacar a cidade e fui recebido a bala! 258<br />

E mesmo com toda a insistência do Cangaceiro, seu comparsa,<br />

Severino se deixa levar pela safadeza de João Grilo e de Chicó e acaba<br />

morto.<br />

Mais tarde, <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> do julgamento, Severino revela-se um homem<br />

consciente de suas culpas: Ai, meu Deus, vou pagar minhas mortes no<br />

inferno! […] É. Matei, não vou negar. 259<br />

Mas é um infeliz que nunca conheceu sequer a misericórdia,<br />

quanto mais outro afeto. Quando João diz ser a mãe da justiça seu<br />

258 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 114, 116-117.<br />

259 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 131-147.<br />

134


maior trunfo, e Manuel fala em misericórdia, o discurso de Severino é<br />

terrível e remete à questão da universalidade do amor de Deus: Foi coisa<br />

que nunca conheci. Onde mora? Como chamá-la? Deve ter conhecido o<br />

amor de mãe, pois quando o Encourado critica o chamego da Virgem<br />

com a humanidade, ele diz: Você só fala assim porque nunca teve mãe. É<br />

considerado inculpável, assim como seu companheiro, por Manuel e vai<br />

para o céu: Quanto a esses, deixe comigo. Estão ambos salvos. […]<br />

Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera (de<br />

Deus). Enlouqueceram ambos depois que a polícia matou a família deles<br />

e não eram responsáveis por seus atos. Podem ir pra ali. 260 Outra<br />

questão está posta: Deus é passível de cólera? E cólera que permite<br />

tamanha crueldade como a praticada contra uma criança? Pois<br />

Severino era um menino quando presenciou a morte bárbara de toda a<br />

família.<br />

Se, como postula Bakhtin, palavra e discurso têm um caráter<br />

ideológico e cada falante é um ideólogo, ou seja, expressa idéias,<br />

reproduz a visão de mundo que lhe é peculiar no contexto interacio<strong>na</strong>l,<br />

temos, no discurso de Severino e do Cristo suassunianos, dois ideólogos<br />

que dão o que pensar. Em Suassu<strong>na</strong> temos um autor que trafegou<br />

pelas esferas da filosofia e da teologia, em profícuo diálogo e os<br />

resultados estão <strong>na</strong> sua criação artística.<br />

Chegamos <strong>ao</strong>s perso<strong>na</strong>gens que surgem no julgamento: o<br />

Demônio, O Encourado (Diabo), Manuel (Cristo) e a Compadecida<br />

(Virgem Maria).<br />

O Demônio inicia a “sessão”, anunciando o que vai suceder:<br />

Demônio:<br />

Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do<br />

comando para mim. E calem-se todos. Vem chegando<br />

agora quem pode mais do que eu e do que vocês. Deitemse!<br />

Deitem-se! Ouçam o que eu estou dizendo, senão será<br />

pior! 261<br />

O Demônio é tido como imbecil, imagem profundamente<br />

repug<strong>na</strong>nte, que reflete a do Encourado. Sai das sombras, anuncia a<br />

260 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166.<br />

261 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 129.<br />

135


chegada do Diabo, persegue os mortos com o objetivo de levá-los para o<br />

inferno.<br />

Encourado é o nome pelo qual o Diabo é tratado no sertão. De<br />

acordo com a palavra do autor <strong>na</strong> rubrica inicial da ce<strong>na</strong> do julgamento,<br />

é, segundo uma crença do nordeste, um homem que se veste de<br />

vaqueiro. Amedronta, assusta e orde<strong>na</strong> que todos o sigam para o fogo<br />

eterno. Faz-se anunciar por pancadas ritmadas, o que lhe empresta<br />

dignidade e <strong>ao</strong> ambiente ares soturnos, que remetem <strong>ao</strong>s de um<br />

tribu<strong>na</strong>l (<strong>na</strong> minissérie, esse procedimento tem efeito de grande<br />

expressividade). Seu discurso, autoritário e impiedoso, revela seu<br />

caráter diabólico.<br />

Encourado:<br />

(…) Que vergonha! Todos tremendo! Tão corajosos antes,<br />

tão covardes agora! Capaz de dizer verdades sem meiaspalavras:<br />

O senhor bispo, tão cheio de dignidade, o padre,<br />

o valente Severino… E você, o Grilo que enga<strong>na</strong>va todo<br />

mundo, tremendo como qualquer safado.<br />

É impiedoso, como só pode ser o Diabo: Ah, compaixão… Como<br />

pilhéria é boa! 262 . Sem respeito <strong>ao</strong>s direitos humanos, <strong>ao</strong> ser<br />

questio<strong>na</strong>do por João Grilo sobre a ausência de apelação, responde: É<br />

assim mesmo e não tem para onde fugir! 263<br />

Sabedor dos maus atos cometidos pelo padre, diz: Muitas vezes,<br />

não, poucas; e, mesmo essas poucas, quando os pretos eram ricos 264 .<br />

Assim como estava muitíssimo bem informado sobre os atos e<br />

comportamento do bispo e dos outros, à medida que, segundo a<br />

doutri<strong>na</strong> cristã, não sendo onisciente como Deus, tem poderes para<br />

‘enxergar’ os humanos 265 . Porque é o acusador no julgamento, e como<br />

tal bastante esperto, pega as falhas dos acusados no ato: Em<br />

compensação acaba de incorrer em falta de coleguismo com o bispo.<br />

Intolerante e atrevido, a uma resposta brincalho<strong>na</strong> do Cristo, reage<br />

262 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 131.<br />

263 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 132.<br />

264 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 139.<br />

265 Agostinho em De Divi<strong>na</strong>tione daemomum, III afirma sobre os demônios possuírem corpos<br />

etéreos, extr<strong>ao</strong>rdinária capacidade de percepção, competência para transportarem-se<br />

velozmente através dos ares. VIDAL, Marly C.B.; MARQUES, Jane A. Porque Hoje é Dia de<br />

Maria, Todos os Dias são Dias de Maria. In: A<strong>na</strong>is do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da<br />

Comunicação.<br />

136


inclemente: Protesto contra essas brincadeiras! Aqui é um lugar sério.<br />

Pelo Cristo, é acusado de ser preconceituoso, pois não o olha. A nós<br />

essa atitude sugere a ojeriza <strong>ao</strong> homem santo e maior de todos, para<br />

cultura cristã, que ali está e que o Encourado reconhece: Está aí um<br />

que é maior do que esse não sei o quê e vai me entregar você. Embora<br />

seja atrevido com o Cristo: Homem, dê-se o respeito! E com a Virgem: Lá<br />

vem a Compadecida! Mulher que em tudo se mete! 266<br />

A Compadecida traz no nome sua característica maior, a<br />

misericórdia, <strong>na</strong>scida de uma profunda compreensão, conseqüente de<br />

sua própria humanidade: convivi com os homens: começam com medo,<br />

coitados, e termi<strong>na</strong>m por fazer o que não presta, quase sem querer. É<br />

medo. Tendo encontrado graça diante de Deus, por isso escolhida para<br />

ser a mãe de Cristo, seu caráter misericordioso parece anteceder a<br />

função de intercessora, que é bastante clara: Intercedo por esses pobres<br />

que não têm ninguém por eles, meu filho. Não os condene. 267 A<br />

Compadecida não esquece de nenhum dos pobres réus e para todos e<br />

por todos tem uma palavra intercessora, ditada pela experiência<br />

huma<strong>na</strong> por ela vivida: Seja então compassivo com quem é fraco 268 ,<br />

solidária com as mulheres: Eu entendo tudo isso mais do que você<br />

pensa. Sei o que as mulheres passam no mundo... 269 .<br />

Quando a situação dos réus já está altamente comprometida,<br />

João Grilo decide chamar Por alguém que está mais perto de nós, por<br />

gente que é gente mesmo! 270 . Segundo João Grilo, a Compadecida é a<br />

mãe da justiça, que é a misericórdia e que ele invoca poeticamente com<br />

uns versos que Canário Pardo fez para a Virgem e dos quais ela gosta<br />

muito, principalmente porque Tem umas graças, mas isso até a tor<strong>na</strong><br />

mais alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é<br />

o diabo 271 . Portanto, é uma pessoa alegre. Tem o respeito e o crédito do<br />

266 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 139, 143-144, 149-<br />

158.<br />

267 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 162.<br />

268 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 164.<br />

269 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p 165.<br />

270 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 153.<br />

271 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 159.<br />

137


filho Manuel: Minha mãe o que é que achas 272 ? Boa advogada, como ela<br />

mesma se proclama, libertou a todos pelos quais intercedeu.<br />

A Compadecida mostra grande intimidade com João Grilo, sabe<br />

tudo sobre sua vida e busca argumentos para livrá-lo da conde<strong>na</strong>ção,<br />

obtendo sucesso: João foi um pobre como nós meu filho. Teve de suportar<br />

as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa. Não o<br />

condene, deixe João ir para o purgatório 273 . Acaba por fim conseguindo o<br />

retorno de João Grilo à vida: Peço-lhe muito simplesmente que não<br />

condene João.[...]Dê-lhe outra oportunidade.[...]Deixe João Voltar 274 . É<br />

muito sugestiva a palavra oportunidade. O que João obtém, pela<br />

intercessão da Compadecida, é uma oportunidade para mudar seu<br />

modo de vida, pois <strong>na</strong> verdade, não morrera. Melhor ainda, sua “morte”<br />

foi o modo encontrado pela autoria para, dando-lhe uma lição, que esta<br />

se universalizasse. Afi<strong>na</strong>l, a proposta declarada do autor é o exercício da<br />

moralidade 275 .<br />

A Compadecida tem conhecimento dos Evangelhos: Como todo<br />

fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu<br />

consumado 276 . Conhece e aceita a missão de Cristo proposta, pelo Pai,<br />

quando consola Manuel, que diz ter morrido abando<strong>na</strong>do: Era preciso e<br />

eu estava a seu lado, recorda-lhe o medo: Mas não se esqueça da noite<br />

no jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de<br />

carne e de sangue como qualquer outro e, como qualquer outro<br />

abando<strong>na</strong>do diante da morte e do sofrimento 277 .<br />

Por fim, mas não fi<strong>na</strong>lmente, cumpre com a profecia, esmagando<br />

a cabeça do Diabo, quando este, furioso porque ela livrara João, vira-se<br />

para ele e vê a Compadecida em toda sua bondade e beleza.<br />

Manuel, também chamado Leão de Judá, Filho de Davi, Jesus, o<br />

Cristo é compassivo e amoroso, permitindo a João que o chame de<br />

Jesus. Mas, é também rigoroso no seu julgamento: sua obrigação é ser<br />

272 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 168.<br />

273 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 170.<br />

274 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p, 171.<br />

275 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.<br />

276 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 159.<br />

277 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 163.<br />

138


humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e<br />

virtude se requer. Exerce seu direito:<br />

Que direito tem você de repreender João porque<br />

falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em<br />

vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento<br />

Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa<br />

admiração por prudência munda<strong>na</strong>. O tempo da mentira já<br />

passou. 278<br />

A questão aqui foi o espanto de João Grilo <strong>ao</strong> se deparar com um<br />

Cristo Negro, que ele esperava fosse menos queimado. Onisciente: (…)<br />

Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque<br />

sabia que isso ia despertar comentário 279 .É também alegre, extrovertido:<br />

É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha atenção, notei<br />

que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão. 280 Em sua profunda<br />

humanidade lembra-se de que tem família:<br />

(…) Davi fez coisa muito pior traindo o amigo com a mulher<br />

e mandando ainda por cima o pobre homem <strong>na</strong> guerra e,<br />

no entanto, era meu avô e grande amigo meu, um santo de<br />

quem você não tem coragem nem de pronunciar o nome 281 .<br />

Misericordioso e compassivo, busca a justiça. Quando Grilo se<br />

julga merecedor de salvação direta e o Encourado lembra sua armação<br />

para a mulher do padeiro, Manuel reconhece e aponta a gravidade: É<br />

João, aquilo foi grave. Face à insistência da Compadecida <strong>na</strong> não<br />

conde<strong>na</strong>ção do Grilo, Manuel declara: O caso é duro. Compreendo as<br />

circunstâncias em que João viveu, mas isso também tem um limite. Afi<strong>na</strong>l<br />

de contas, o mandamento existe e foi transgredido. Acho que não posso<br />

salvá-lo 282 . É o papel do juiz a quem não compete questio<strong>na</strong>r a lei e sim<br />

aplicá-la, por isso o não posso dito por Cristo. A condição imposta a<br />

João para voltar funcio<strong>na</strong> como uma atitude discipli<strong>na</strong>r, <strong>na</strong> linguagem<br />

jurídica uma espécie de “pe<strong>na</strong>”, e esta condição implica mais uma vez<br />

inteligência e astúcia da parte do perguntado, e rigor da parte do<br />

questio<strong>na</strong>dor: Você me fazer uma pergunta a que eu não possa<br />

278 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 138-139.<br />

279 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 139.<br />

280 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 144.<br />

281 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 148.<br />

282 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 170-171.<br />

139


esponder. E desafiadora. Quando João declara ser difícil, Cristo<br />

retruca: É possível, você que é tão esperto 283 ? A interrogação funcio<strong>na</strong><br />

como lembrete de autoridade, mesmo porque João Grilo estava muito<br />

saído, segundo Manuel e precisava de uns apertos.<br />

Major Antônio Moraes, rico proprietário de terras, dono de mi<strong>na</strong>,<br />

representante de um segmento ocioso da sociedade, Ocupações? O<br />

senhor sabe muito bem que não trabalho e que minha saúde é perfeita,<br />

segundo suas próprias palavras, Os donos de terra é que perderam hoje<br />

em dia o senso de sua autoridade. Vêem-se senhores trabalhando em<br />

suas terras como qualquer foreiro. Mas comigo as coisas são como<br />

antigamente, a velha ociosidade senhorial 284 . Autoritário: Pois vamos<br />

esclarecer a história, porque alguém vai pagar por essa brincadeira. (…)<br />

Mas fique certo de uma coisa: hei de esclarecer tudo, e se você está com<br />

brincadeiras pra meu lado, há de se arrepender 285 . Orgulhoso de suas<br />

origens e linhagem: (…) Meu nome todo é Antônio Noronha de Britto<br />

Moraes e esse Noronha de Britto veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gente<br />

que veio com as caravelas, ouviu? Sabe recompensar os que o apóiam<br />

(ou o bajulam). Quando Grilo lhe diz que o padre estava louco, mal<br />

sabendo que toda a confusão fora armada elo próprio e que ele, Moraes,<br />

havia sido <strong>passado</strong> para trás, afirma: Você tinha razão. Apareça nos<br />

Angicos, que não se arrependerá 286 . Perso<strong>na</strong>gem que se presta a João<br />

Grilo para deto<strong>na</strong>r a confusão, constranger o padre e apontar a atitude<br />

condescendente da Igreja para com os poderosos, os endinheirados.<br />

O teatro, segundo Suassu<strong>na</strong>, assim como o cinema, o balé, a<br />

ópera, está dentro da rubrica Artes de Espetáculo. Está <strong>presente</strong> uma<br />

ação, o <strong>na</strong>rrar de um acontecimento sucedido a uma perso<strong>na</strong>gem, a<br />

presença de pessoas atuando num cenário único ou variado. Há um<br />

texto, no qual diálogos e rubricas fazem o arcabouço, algo como um<br />

esqueleto <strong>ao</strong> qual diretor e perso<strong>na</strong>gens encar<strong>na</strong>rão. Há uma<br />

arquitetura de cenário, decoração, roupas, ilumi<strong>na</strong>ção, música.<br />

Elementos como a marcação, os gestos, a movimentação, a entoação<br />

283 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 174-175.<br />

284 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 32.<br />

285 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 31.<br />

286 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 35.<br />

140


que existem já coladas <strong>ao</strong> texto verbal, entendido como discurso. O<br />

espetáculo seria, não a mistura de todos esses elementos e sim um todo<br />

plasmado e (re)fundido, resultando <strong>na</strong> criação de uma outra arte.<br />

Para Décio Almeida Prado 287 , a universalidade do teatro<br />

suassuniano emerge <strong>na</strong> visão metafísica proporcio<strong>na</strong>da pelo catolicismo<br />

do autor. No catolicismo, dois fatos centrais impõem-se à humanidade:<br />

a morte e a existência de Deus. A primeira, que não tem sentido e retira<br />

qualquer possibilidade de sentido à vida 288 e a segunda, que restitui a<br />

racio<strong>na</strong>lidade e a significação moral perdidas. Antes da morte, a miséria<br />

degradante – concretizada pelos ca<strong>na</strong>lhas que vão a julgamento –; no<br />

confronto com a eternidade, a esperança de redenção: A intervenção de<br />

Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto<br />

da Compadecida! 289 . Mantém-se a coerência da proposição quando, no<br />

julgamento, ocorre a salvação ou o purgatório – possibilidade de<br />

purgação e conseqüentemente de garantia da salvação futura – de todos<br />

os ca<strong>na</strong>lhas pela intermediação misericordiosa da Virgem e pelo amor<br />

infindo do Cristo. O universal de Suassu<strong>na</strong> tem seu ponto de partida no<br />

medo lá do começo, tão bem compreendido pela Virgem. Por outro lado,<br />

além do medo, a luxúria, a mentira, a cobiça, a avareza, a soberba, a<br />

ostentação, a prepotência, a arrogância são sentimentos<br />

experimentados em escala universal, extrapolam a vivência individual,<br />

estão <strong>presente</strong>s em qualquer sociedade.<br />

As características simbólicas do teatro suassuniano apontam<br />

para situações que, sendo típicas do nordeste brasileiro, nem por isso<br />

carecem de representatividade política. Autores contemporâneos, como<br />

Guarnieri, Vianinha e mesmo Boal, reduzem seus perso<strong>na</strong>gens a termos<br />

universais de operário e patrão 290 . Suassu<strong>na</strong>, ocupa a ce<strong>na</strong> com o<br />

‘amarelo’, o cangaceiro, o pobre nordestino, injustiçado tanto quanto o<br />

operário. A profunda ligação do autor com a região nordesti<strong>na</strong> tem,<br />

indubitavelmente, peso no desenvolvimento da temática. A perso<strong>na</strong>gem<br />

287 PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno.<br />

288 SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca. Recife: Imprensa Universitária, 1964, p. 11. Apud<br />

PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno, p. 81.<br />

289 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.<br />

290 PRADO, Décio Almeida. O teatro brasileiro moderno, p. 79.<br />

141


suassunia<strong>na</strong> é o homem do povo, profundamente identificada com o<br />

sertanejo a quem o autor empresta astúcia, esperteza, presença de<br />

espírito – Prado as nomeia qualidades imagi<strong>na</strong>tivas – que o fazem capaz<br />

de vencer todas as agruras às quais está constantemente exposto. A<br />

ambientação também não disfarça a geografia regio<strong>na</strong>l, e o que se tem é<br />

um <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l fluindo através do regio<strong>na</strong>lismo que impreg<strong>na</strong> a peça.<br />

A peça está estruturada em 3 atos, embora essas divisões não<br />

sejam rígidas, <strong>na</strong> fala do autor: Aqui o espetáculo pode ser interrompido<br />

a critério do ence<strong>na</strong>dor marcando o fim do primeiro ato 291 . A primeira<br />

parte encerra-se com o enterro de Xaréu, o cachorro. O Palhaço como<br />

condutor e elo de ligação entre os atos entra em ce<strong>na</strong> para anunciar o<br />

segundo ato que <strong>na</strong>rra o que acontece <strong>na</strong> cidade. O Bispo pede<br />

satisfações <strong>ao</strong> Padre sobre o acontecido entre ele e o Major Moraes,<br />

enquanto Grilo e Chicó engendram falcatruas para não só ganharem<br />

dinheiro, como também para se livrarem das encrencas em que se<br />

meteram. É nesse ato que vendem o gato que descome dinheiro para a<br />

mulher do padeiro, assim como a extorquem em nome do enterro do<br />

cachorro. Severino invade a cidade e todos acabam mortos, com exceção<br />

de Chicó. O terceiro e último ato é o julgamento fi<strong>na</strong>l, no qual alguns<br />

religiosos e o casal vão para o purgatório. Severino e o Cangaceiro vão<br />

para o céu, enquanto Grilo recebe a graça do retorno a terra. O dinheiro<br />

ganho com as falcatruas da dupla fica em poder de Chicó, que o<br />

promete à Virgem pela vida de Grilo; ambos levam o dinheiro à Santa e<br />

continuam pobres como sempre foram. O Palhaço fecha a peça dizendo:<br />

a história da Compadecida acaba aqui 292 . Canta um verso e pede<br />

aplausos em pagamento. É o circo-teatro.<br />

A fala fi<strong>na</strong>l do Palhaço projeta o foco sobre a Compadecida e a<br />

ilumi<strong>na</strong>: a história é dela. As demais perso<strong>na</strong>gens e suas ações estão ali<br />

por ela e para ela. Em conexão com Jesus Cristo, ninguém mais do que<br />

Maria Santíssima esteve unida a toda a humanidade 293 , daí sua<br />

mediação ser inclusiva, envolvendo todos os homens. Parece-nos<br />

291 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 59.<br />

292 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 188.<br />

293 BOFF, Leo<strong>na</strong>rdo. O rosto materno de Deus. Petrópolis, RJ: Vozes, 1979, p. 190.<br />

142


patente essa noção teológica <strong>na</strong> obra de Suassu<strong>na</strong> em seu profundo<br />

diálogo com a fé, com a religião. Para a concretização dessa postura, ele<br />

recria, em termos brasileiros, buscando no popular encontrado em sua<br />

vivência de menino sertanejo o material a ser trabalhado e o faz<br />

interdiscurso com o que, já maduro, encontra <strong>na</strong>s andanças pelo<br />

grande tempo onde habitam entre outros Gil Vicente, Cervantes,<br />

Goldoni, Shakespeare...<br />

143


PARTE 4 – A MICROSSÉRIE O AUTO DA COMPADECIDA<br />

7 A RECRIAÇÃO<br />

<br />

A afirmação de Henrique Oscar <strong>na</strong> apresentação da obra de<br />

Suassu<strong>na</strong> Auto da Compadecida de que a aproximação do texto<br />

suassuniano com as raízes populares, especialmente o romanceiro<br />

nordestino e também os autos vicentinos e o teatro espanhol não é uma<br />

mera cópia, transposição, adaptação e sim a recriação em termos<br />

brasileiros tanto pela ambientação como pela estruturação, sendo uma<br />

obra inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente<br />

origi<strong>na</strong>l 294 cabe igualmente para a obra homônima televisiva de Guel<br />

Arraes, Adria<strong>na</strong> e João Falcão.<br />

O que visualizamos em O Auto da Compadecida é um jogo de<br />

aproximações <strong>ao</strong> texto de ancoragem, sempre marcadas e assumidas<br />

pela autoria. Concomitantemente ocorrem afastamentos, à medida que<br />

há intromissões <strong>na</strong> trama, no enredo. Tendo como ponto de partida um<br />

texto dramatúrgico, a autoria vai, através de operações de linguagem,<br />

construir um outro discurso, inserido em um novo suporte: a TV. O que<br />

temos agora é um discurso teledramatúrgico, com características<br />

peculiares, um outro e novo produto cultural.<br />

294 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1978, p. 10.<br />

145


7.1 Inclusões-exclusões<br />

O primeiro movimento que notamos em O Auto da Compadecida é<br />

um jogo de inclusões e exclusões, considerando a inserção e a retirada<br />

de perso<strong>na</strong>gens, resultando em modificações estruturais no modo de<br />

contar, bem como no enredo. No âmbito do movimento de inclusões,<br />

consideramos a extensão da participação de alguns perso<strong>na</strong>gens e as<br />

mudanças no processo enunciativo, daí advindas com a conseqüente<br />

diferenciação em relação <strong>ao</strong> texto-fonte.<br />

Guel Arraes insere, em seu trabalho, elementos e perso<strong>na</strong>gens de<br />

outras obras de Suassu<strong>na</strong>, atribuindo-lhes características e funções<br />

diferentes, sem contudo, destruir sumariamente as origi<strong>na</strong>is, em busca<br />

da adequação <strong>ao</strong> suporte televisivo. O núcleo amoroso que se forma a<br />

partir da chegada de Rosinha, objeto da paixão de Chicó, e que agrega o<br />

Cabo Setenta e Vicentão, não existe no texto-fonte e sim ancora-se em<br />

perso<strong>na</strong>gens existentes em outras obras de Suassu<strong>na</strong>. O surgimento<br />

desses perso<strong>na</strong>gens <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa provoca mudanças estruturais,<br />

inclusive em termos dos diálogos que, muito próximos <strong>ao</strong>s da obra<br />

‘origi<strong>na</strong>l’, sofrem modificações com as interferências, os acréscimos de<br />

novas falas, de novos registros e modos de ser. Rosinha, que vive no<br />

Recife, é do<strong>na</strong> de um registro urbanizado, do qual estão ausentes as<br />

expressões e conteúdo próprios das vilas sertanejas. Vicentão, abusado<br />

nos gestos tanto corporais como vocais, faz jus <strong>ao</strong> comentário de <strong>Do</strong>ra<br />

de que Deus lhe dera um corpão, mas tirara-lhe a cabeça. O Cabo<br />

Setenta domi<strong>na</strong> a linguagem empolada, própria da função social por ele<br />

exercida, e dela só abdica quando em crise amorosa.<br />

A trama sofre interferências importantes, como o romance Chicó-<br />

Rosinha, que proporcio<strong>na</strong> outras tantas presepadas de João Grilo para<br />

ganhar dinheiro e mais confusões, dilatando o enredo. Herdeira de uma<br />

porquinha de barro repleta de moedas, Rosinha tor<strong>na</strong>-se tão pobre<br />

como os sertanejos, <strong>ao</strong> descobrir que o dinheiro estava fora de<br />

circulação. Há aí um remetimento para a situação do país que, de há<br />

146


muito, vem trocando inúmeras vezes de moeda. O retorno do Major<br />

Antônio Moraes à vila (e à <strong>na</strong>rrativa) ocorre como corolário do romance<br />

Chicó-Rosinha, pois ele procura um noivo doutor e rico para a filha.<br />

Para fazer com que o Major aceite Chicó, Grilo o apresenta como um<br />

rico proprietário de terras e advogado. Dá como garantia do negócio – o<br />

casamento – uma propriedade inexistente, mas nomeada, Fazenda de<br />

Serra Talhada, nome comum à obra suassunia<strong>na</strong>. Como não há o<br />

registro de propriedade solicitado pelo Major, Grilo dá como penhor um<br />

<strong>na</strong>co, uma talhada, como se diz no nordeste, de couro do lombo de<br />

Chicó. Na Veneza do século XVI, o jovem Bessânio quer conquistar<br />

Portia, uma rica herdeira, e para tal pede ajuda fi<strong>na</strong>nceira a Antônio,<br />

seu amigo que, não tendo recursos disponíveis, faz um empréstimo com<br />

o agiota Shylock, dando como garantia um pedaço da própria carne.<br />

Como no contrato não se mencio<strong>na</strong> a palavra sangue e seria impossível<br />

a retirada da carne sem sangue, Portia livra Antônio da morte, quando<br />

este não consegue pagar a dívida 295 . Tão inteligente e esperta como<br />

Portia é Rosinha. Bem mais esperto do que Antônio é o amigo Grilo:<br />

empenha o couro do próprio interessado, Chicó.<br />

Suassu<strong>na</strong>, <strong>ao</strong> criar para João Grilo, picaresco de marca, um<br />

amigo de estripulias como Chicó, faz surgir uma dupla fabulosa e assim<br />

enriquece o universo da picardia. Arraes, <strong>ao</strong> criar Rosinha e um amor<br />

para Chicó, subverte todo esse universo e desenrola uma série de<br />

episódios que, pelos desencontros, confusões, humor e amor,<br />

aumentam o interesse pela trama e, claro, fazem a alegria do espectador<br />

de TV que tem nela seu momento de lazer e entretenimento. A amizade<br />

entre João Grilo e Chicó incorpora Rosinha e o que antes era uma dupla<br />

tor<strong>na</strong>-se, de modo <strong>na</strong>tural, um trio, sem nenhum si<strong>na</strong>l que não o da<br />

relação de amizade, mantendo o amor entre Rosinha e Chicó. A<br />

existência de um núcleo amoroso parece ser exigência de obras<br />

ficcio<strong>na</strong>is televisivas, disso resulta uma mudança estrutural face <strong>ao</strong><br />

gênero agora praticado, teledramaturgia televisiva, no qual suporte,<br />

295 SHAKESPEARE, Willian. O Mercador de Veneza. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. O<br />

MERCADOR de Veneza. Direção e roteiro: Michael Redford. Produção: Cary Brokaw,<br />

Michael Cowan, Barry Navidi e Jason Piette. Produzido por Sony Pictures Classics,<br />

California Filmes, 2004. 1 videocassete.<br />

147


linguagem e modos operacio<strong>na</strong>is não são os mesmos do teatro. Segundo<br />

Guel Arraes a<br />

Adaptação precisava ser maior, e uma das coisas que<br />

criam interesse é uma história de amor. Era uma idéia<br />

arriscada porque a característica dos perso<strong>na</strong>gens<br />

picarescos, como João Grilo e Chicó, é a de não ter<br />

preocupação sentimental. A busca deles é por comida e<br />

comida. Quase que a gente dividiu Chicó em dois. 296<br />

Figura 1 – O encontro de Chicó e Rosinha<br />

O episódio do encontro com o Cristo <strong>na</strong> estrada que leva à vila é<br />

outra criação da autoria da microssérie e possível, como conseqüência<br />

da existência do trio de amigos, das confusões ocorridas no casamento<br />

de Rosinha com Chicó, sua expulsão e deserdamento pelo Major. Grilo e<br />

Chicó nunca tiveram <strong>na</strong>da de seu, afora a própria vida. Rosinha sempre<br />

foi rica. Empobrecida, é a única que entende a mensagem contida no<br />

julgamento: reparte com o mendigo o pouco que lhe ficara, ou seja,<br />

exercita a misericórdia, reportando-se <strong>ao</strong>s Evangelhos, que dizem do<br />

Cristo se apresentar como mendigo para testar a bondade dos homens.<br />

E os novos autores se apoderam do texto sagrado e o recontextualizam.<br />

296 RIZZO, Sérgio. Guel Arraes. Revista SET – Cinema, DVD e Vídeo. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 28 julho 2004. Segundo acesso em: 10 março 2006.<br />

148


A tropa policial que chega à cidade com a função de defendê-la é<br />

de um ridículo de fazer pe<strong>na</strong>. Logo em sua entrada, patética e pomposa,<br />

evidencia, <strong>na</strong> pessoa de seu comandante, Cabo Setenta, a<br />

incompetência, a falta de preparo e a covardia. Cabo Setenta, todo<br />

maneiroso, com ares de importante, <strong>ao</strong> chegar à praça é recebido por<br />

Eurico e <strong>Do</strong>ra, tendo <strong>ao</strong> lado Vicentão, ce<strong>na</strong> que mostra bem o modo de<br />

ser da burguesia da vila. <strong>Do</strong>ra, de olho no cabo, e Eurico todo elogios<br />

para Rosinha que chega <strong>ao</strong> mesmo tempo, gerando uma ciumeira<br />

da<strong>na</strong>da <strong>na</strong> mulher do padeiro. Rosinha, filha do coronel ricaço do lugar<br />

e que está <strong>na</strong> vila a fim de se tratar de ‘males da cidade’, bonita, rica,<br />

urba<strong>na</strong>, sempre cheirosa e bem vestida, causa celeuma <strong>na</strong> comunidade.<br />

Cabo Setenta encanta-se com ela e a ce<strong>na</strong> em que bate em retirada<br />

atrás dela, que se dirige à igreja, exibe, além do conluio da autoridade<br />

com a igreja, a falta de compostura do comandante. Ele faz continência<br />

e dispara: A autoridade militar vai visitar a autoridade religiosa. Mais<br />

tarde, é envolvido numa confusão por João Grilo, <strong>na</strong> qual mostra toda a<br />

sua fraqueza e despreparo: o episódio em que <strong>presente</strong>ia Rosinha com<br />

dois brincos, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que Vicentão lhe dá um broche, tudo<br />

através do esperto João Grilo e suas safadezas. Nesse episódio, ambos,<br />

Setenta e Vicentão, ficam à mercê de João Grilo, que os manipula a seu<br />

bel-prazer e interesse, já que, além de esperto, está lidando com dois<br />

patetas apaixo<strong>na</strong>dos por uma mulher que não lhes dispensa o menor<br />

interesse.<br />

Vicentão, perso<strong>na</strong>gem enxertado, outro caso de <strong>Do</strong>ra, valentão<br />

metido a conquistador, dono de um físico avantajado e dotado de pouco<br />

cérebro, cai, junto com Setenta, <strong>na</strong> armadilha arranjada por Grilo, com<br />

a intenção dar cabo <strong>ao</strong>s dois em benefício de Chicó, <strong>na</strong> disputa pelo<br />

coração de Rosinha. No duelo – de três participantes, armado por Grilo<br />

–, ambos são tirados da parada amorosa e da cidade também, fazendo<br />

de Chicó, o mais covarde dos três, um herói. Cabo Setenta e Vicentão<br />

são perso<strong>na</strong>gens desencavadas das chanchadas brasileiras da década<br />

de 50, em que a paródia e a maluquice herdada da comédia america<strong>na</strong><br />

dos anos 30, a ‘crazy comedy’, se fazem <strong>presente</strong>s.<br />

149


A caracterização visual das duas perso<strong>na</strong>gens valoriza a imagem,<br />

que passa a ser usada como um cineminha de humor. Para Arraes, a TV<br />

já tem de si essa coisa de fazer paródias visuais. 297 O bigodinho, o<br />

cabelo espetado pelo uso de gel, a importância dada <strong>ao</strong> quépi pelo Cabo<br />

Setenta, bem como as mangas dobradas da camisa de Vicentão, de<br />

forma a evidenciar sua musculatura avantajada, as escrachadas<br />

cuspidas que dá, a choramingação dos dois por causa de Rosinha,<br />

remetem <strong>ao</strong> cinema americano dos anos quarenta e <strong>ao</strong>s filmes<br />

brasileiros de Carlos Manga. Esses procedimentos já aparecem nos<br />

programas televisivos de humor com certa freqüência e, no campo da<br />

ficcio<strong>na</strong>lidade, são prerrogativas de Sílvio Abreu e do próprio Manga, de<br />

quem Abreu foi assistente. Arraes vai utilizá-los no seu Auto, bem como<br />

em outros produtos teledramatúrgicos e cinematográficos 298 de sua<br />

autoria.<br />

A perso<strong>na</strong>gem Severino do Aracaju ganha um outro status em<br />

termos participativos. Desde o início da <strong>na</strong>rrativa 299 , ele está <strong>presente</strong>,<br />

travestido de um pobre diabo, mendigo, cego, todos os dias a esmolar<br />

<strong>na</strong> porta da Igreja, tratado <strong>ao</strong>s trancos e barrancos por todos, inclusive<br />

o pároco local. Enquanto ali permanece, fica sabendo das falcatruas<br />

cometidas pelos outros perso<strong>na</strong>gens da trama, aprende sobre os<br />

habitantes, seus hábitos, modos de vida e percebe a ausência da polícia<br />

o que vai facilitar a invasão que planeja fazer à cidade. Ao mesmo<br />

tempo, a maior presença do cangaceiro reforça o caráter crítico do<br />

trabalho, especialmente, em relação à Igreja, <strong>ao</strong> clero e até mesmo <strong>ao</strong>s<br />

freqüentadores dos cultos e rezas, pelo desprezo com que tratam o<br />

mendigo à porta do templo. Com esse procedimento, cria-se um diálogo<br />

com os tempos iniciais do cristianismo, quando a presença de pedintes<br />

era comum às portas dos templos e <strong>ao</strong>s quais o Cristo dava atenção,<br />

enquanto autoridades legais e eclesiásticas do judaísmo desprezavam e<br />

297 In: SILVA, Gonçalo Jr. Pais da TV: a história da televisão contada por Gonçalo Silva Jr, p.<br />

182.<br />

298 Ver Lisbela e o prisioneiro; O coronel e o lobisomem, especiais de TV e fimes.<br />

299 Na ce<strong>na</strong> 6, quando João Grilo conversa com o Major Antônio Moraes em frente à igreja,<br />

Severino aparece encolhido <strong>na</strong> porta da igreja. O Major <strong>ao</strong> entrar <strong>na</strong> igreja por pouco não o<br />

atropela. O AUTO DA Compadecida. Direção: Guel Arraes. Roteiro: Guel Arraes, Adria<strong>na</strong><br />

Falcão e João Falcão, baseado em peça de Ariano Suassu<strong>na</strong>. Produção: Daniel Filho e Guel<br />

Arraes. Produzido por Globo Filmes, 2000. DVD.<br />

150


dos quais passavam à distância. O tratamento visual valoriza<br />

sobremaneira a perso<strong>na</strong>gem. O aspecto de miserabilidade, de feiúra, o<br />

exagero que caracteriza a aparência do mendigo, são elementos que<br />

reforçam, <strong>ao</strong>s olhos do espectador, a prática do descaso.<br />

Figura 2 – Major Antônio Moraes e Severino de Aracaju <strong>na</strong> porta da igreja<br />

O padeiro e sua mulher são nomeados - Eurico e <strong>Do</strong>ra. Eurico<br />

aparece em O Santo e a Porca, peça de Suassu<strong>na</strong> escrita em 1957.<br />

Euricão Árabe, o protagonista, passa a vida a privar-se de tudo para<br />

rechear uma porca de madeira com dinheiro e, quando se dá conta, ele<br />

já não vale mais <strong>na</strong>da. A vida o trai, segundo Suassu<strong>na</strong> no prólogo do<br />

texto. De modo diferente, a vida trai o padeiro que, como seu ancestral,<br />

tem grande preocupação com o dinheiro, paga mal seus empregados,<br />

briga por dez tostões de pão. Seus bens são roubados por Severino e a<br />

morte o leva <strong>na</strong> juventude. Rosinha, Chicó e Grilo são pegos <strong>na</strong> mesma<br />

armadilha da porca; sendo ela mais traída do que os dois mequetrefes,<br />

pois perde também a herança pater<strong>na</strong>.<br />

No texto teatral, a ausência de nomenclatura poderia apontar<br />

para a idéia de ‘tipos’, no caso um desejo de satirizar uma classe social,<br />

a burguesia, no dizer de Newton Jr. em texto citado. A microssérie,<br />

outra forma, outro veículo, outro público, emissão e recepção<br />

completamente diferentes, suportaria essa ausência? Parece-nos<br />

151


complicado, levando-se em conta tudo isso, a existência de perso<strong>na</strong>gens<br />

não nomeados. A serialização em capítulos, a exibição fragmentada e<br />

em circunstâncias de menos concentração e atenção, como é o caso da<br />

televisão, exigem a nomeação.<br />

Os atos libidinosos da mulher do padeiro, que não tem só Chicó<br />

como amante, são concretizados. Os encontros de <strong>Do</strong>ra com Chicó e<br />

Vicentão rendem à microssérie momentos de riso e de expectativa. Riso<br />

pelo tipo feminino criado por <strong>Do</strong>ra, a perso<strong>na</strong>lidade fogosa, o uso de um<br />

figurino exagerado e o servir-se constantemente do xale, o que favorece<br />

um hilário striptease que se repete – e mais uma vez, o procedimento da<br />

redundância está <strong>presente</strong> – de modo semelhante para os <strong>na</strong>morados e<br />

para o marido. A expectativa existe, sendo também risível, à medida que<br />

o espectador sabe de antemão que o flagrante não acontecerá, mas a<br />

situação é usada para provocar o hilário, a crítica e a paródia. <strong>Do</strong>ra<br />

sempre escapará e mais estripulias ocorrerão: a inversão que ela<br />

provoca quando <strong>ao</strong> chegar fora de hora em casa, a noite <strong>ao</strong> relento que<br />

faz o marido passar à espera de um encontro dela com o <strong>na</strong>morado, a<br />

surra que o pobre do Eurico, fantasiado de mulher, toma de Chicó atrás<br />

da igreja. Esses episódios têm o mesmo caráter das chanchadas<br />

brasileiras dos anos 50.<br />

Rosinha é a perso<strong>na</strong>gem que chega para (des)orde<strong>na</strong>r, que<br />

desestrutura/reestrutura as relações já estabelecidas. É o elemento<br />

externo, o estranho que chega e modifica, para o bem ou para o mal, a<br />

organização existente. Funcio<strong>na</strong> como contraponto à Virgem quando<br />

traz para a vida o amor sensual, mas sua vivacidade, alegria e beleza a<br />

fazem semelhante a Nossa Senhora. Esperta e inteligente, disposta para<br />

o amor, reconhecendo o homem que ama em todas as suas fraquezas,<br />

inclusive a covardia, mas nem por isso recusando-o. Rosinha<br />

transforma a relação Grilo/Chicó, mas de modo a, entrosando-se,<br />

aceitá-los e à situação nova com a qual se depara. O fi<strong>na</strong>l da<br />

microssérie abre possibilidades. A estrada está à frente das três<br />

perso<strong>na</strong>gens, elas continuarão a história.<br />

152


Figura 3 – O fi<strong>na</strong>l da história: Rosinha, Chicó e João Grilo<br />

Outros elementos suassunianos são excluídos: o frade,<br />

acompanhante do Bispo, e o sacristão, auxiliar do padre João. Essas<br />

ausências permitem maior ênfase <strong>ao</strong> Padre e <strong>ao</strong> Bispo, já que as ações<br />

por eles praticadas são de responsabilidade exclusiva dos dois. O<br />

Demônio surge <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> inicial do julgamento ape<strong>na</strong>s para anunciar o<br />

Diabo. Em Suassu<strong>na</strong>, o Demônio, pela intensa irritação contra ele<br />

demonstrada pelo Encourado, faz um contraponto <strong>ao</strong> Frade, secretário<br />

do Bispo, já que este sente pelo outro desprezo e irritação.<br />

A ausência do Palhaço, condutor da <strong>na</strong>rrativa em Suassu<strong>na</strong>,<br />

altera a composição da obra, mas não tira dela a sugestão circense<br />

postulada pelo autor. Em Suassu<strong>na</strong>, o Palhaço tem importância vital, à<br />

medida que sua função não é somente a de anunciar o espetáculo. O<br />

Palhaço estabelece ligações entre os atos e se responsabiliza pelo ‘grand<br />

fi<strong>na</strong>le’ e, como já anotado no capítulo 2, é igualmente a voz da<br />

reflexividade que a obra possui. Na microssérie, a ligação é feita por<br />

procedimentos dramatúrgicos, próprios à linguagem televisiva,<br />

utilizando-se do recurso do gancho.<br />

O séqüito do enterro de Bolinha, (<strong>na</strong> peça teatral é o Xaréu) a<br />

cachorrinha de <strong>Do</strong>ra, fornece o motivo para o início do segundo, quando<br />

a vinheta de abertura aparece durante o sepultamento e a conversa<br />

sobre animal ter alma dá o mote para Chicó contar sua história. No<br />

153


segundo capítulo, o velório de João Grilo <strong>na</strong> igreja fecha o bloco. O<br />

terceiro capítulo inicia-se com o séqüito do enterro pelas ruas da Vila e<br />

termi<strong>na</strong> com o “duelo de três” e o espanto de Rosinha pela valentia de<br />

Chicó. Inicia-se o último capítulo com a repetição da ce<strong>na</strong> do duelo,<br />

agora com Chicó todo empertigado pela vitória conquistada.<br />

A rapidez, às vezes nervosa, que caracteriza a linguagem de Guel<br />

Arraes, instala-se logo após a vinheta de abertura. Poucas tomadas, o<br />

enredo é retomado, com episódios novos entrando de enfiada,<br />

anunciados por uma vinheta do episódio. Um exemplo: no terceiro<br />

capítulo após a vinheta de abertura, o povo já se encontra <strong>na</strong> igreja, e o<br />

velório já foi retomado. João Grilo levanta-se e se diz portador de um<br />

recado de Padre Cícero para Severino, que ameaça a todos,<br />

especialmente o pobre Grilo. Numa sucessão de falas rápidas, tudo se<br />

resolve. Severino bate em retirada e João Grilo já está <strong>na</strong> rua, aclamado<br />

pelo povo como herói. O padeiro e a mulher entram <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> e começa o<br />

ajuste de contas entre eles e Grilo. A vinheta de episódio anuncia: A<br />

peleja de Chicó contra os dois ferrabrás. A próxima tomada, <strong>na</strong> padaria,<br />

resolve a briga entre patrões e empregado e João Grilo já aparece <strong>na</strong> rua<br />

com a repetitiva queixa contra os patrões. Rapidamente, numa nervosa<br />

sucessão de ce<strong>na</strong>s, em que os diálogos acontecem simultaneamente às<br />

ações das perso<strong>na</strong>gens, vão ocorrendo os episódios que perfazem o<br />

capítulo que é totalmente enxerto, ocorrendo o maior desvio em relação<br />

<strong>ao</strong> texto-fonte.<br />

7.2 Interferências nos diálogos<br />

Os diálogos origi<strong>na</strong>is, bastante ágeis, são mantidos, quase em sua<br />

integridade por Arraes. Quando se apresentam mais longos, aceitáveis<br />

no teatro, mas pouco adequados à televisão, o autor opera uma<br />

di<strong>na</strong>mização, tor<strong>na</strong>ndo-os mais ágeis. Exemplo notável é a conversa<br />

entre o padeiro e o Major. Enquanto conversam, o padeiro serve uma<br />

bebida <strong>ao</strong> major e as falas são como que decupadas em função das<br />

154


tomadas de ce<strong>na</strong>. O mesmo ocorre quando Grilo fala sobre o testamento<br />

da cachorra para os clérigos; a fala de Severino quando entra <strong>na</strong> igreja e<br />

surrupia o dinheiro que está em poder do Bispo e do Padre.<br />

Algumas falas mudam de emissor. O sacristão que faz o enterro<br />

do cachorro em Suassu<strong>na</strong> é substituído pelo Padre em Arraes, por isso<br />

é ele que pergunta <strong>ao</strong> Bispo: Quer dizer que não agi mal? Quando João<br />

Grilo entra <strong>na</strong> sacristia e coloca o dinheiro dentro do Código Canônico,<br />

é o Bispo que, fingindo-se admirado, exclama: Que é isso? Que é isso 300 ?<br />

Fala esta, em Suassu<strong>na</strong>, do Sacristão. Levando-se em conta a<br />

hierarquia, importância religiosa dos dois emitentes em relação <strong>ao</strong><br />

sacristão, podemos dizer que a crítica ‘guelia<strong>na</strong>’ tor<strong>na</strong>-se mais<br />

contundente. Em contrapartida, em Suassu<strong>na</strong>, a ironia de Manuel é<br />

mais feri<strong>na</strong>:<br />

Manuel:<br />

Deixe a acusação para o colega dele.<br />

Sacristão:<br />

Colega?<br />

Manuel:<br />

É brincadeira minha, mas, depois que João chamou<br />

minha atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito de<br />

sacristão. 301<br />

Há uma fala da Compadecida, em Arraes, belíssima, que em<br />

Suassu<strong>na</strong> é do Padeiro: A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais<br />

ofendido pelos atos que ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela.<br />

Isso deve ter algum valor 302 . Assim como, é do Padeiro, uma fala<br />

anterior, em resposta à questão do medo suscitada pela Virgem: Medo<br />

da solidão. Perdoei minha mulher <strong>na</strong> hora da morte, porque a amava e<br />

porque sempre tive um medo terrível da solidão 303 . A perso<strong>na</strong>gem Eurico,<br />

o padeiro, <strong>na</strong> microssérie, tem como traço marcante ser, antes de vítima<br />

da infidelidade da mulher, um manipulável, sempre a repicar as falas e<br />

posturas de <strong>Do</strong>ra, um mero repetidor dos discursos da mulher. Sem<br />

300 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 90. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 19.<br />

301 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 144.<br />

302 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 23.<br />

303 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 163.<br />

155


deixar de ser um tanto fraco, em Suassu<strong>na</strong>, o Padeiro, <strong>na</strong>s falas fi<strong>na</strong>is,<br />

resgata sua dignidade. Em Arraes, a dignidade de Eurico é resgatada<br />

pela fala da Compadecida, mas não se pode deixar de levar em conta<br />

seu discurso <strong>na</strong> hora da morte, um discurso de amor que o engrandece<br />

sobremaneira.<br />

7.3 Desordem <strong>na</strong> fronteira<br />

A microssérie recebe um tratamento diferenciado por meio da<br />

filmagem em película de celulóide 35mm, de uso comum <strong>na</strong> produção<br />

de filmes para televisão america<strong>na</strong>, já com uma intenção futura – como<br />

de fato ocorreu – de transformá-lo em filme cinematográfico. Segundo<br />

Arraes, ele sonhava fazer da obra de Suassu<strong>na</strong> um filme, por<br />

reconhecer nela uma vocação cinematográfica, mas a proposta da TV<br />

Globo para uma minissérie atropelou seus projetos. É Daniel Filho<br />

quem sugere a filmagem em película o que, de certa maneira, permite a<br />

manutenção da intenção primeira.<br />

A existência de uma tecnologia de ponta à disposição dos autores<br />

provoca mudanças nos modos de criar. Uma ce<strong>na</strong> pensada apóia-se <strong>na</strong><br />

existência dessa tecnologia, ou seja, o processo de contar a história de<br />

Suassu<strong>na</strong> hoje leva em conta possibilidades tecnológicas atuais; assim<br />

a autoria trabalha com uma visão impossível há 20 anos. Mecanismos<br />

desenvolvidos para televisão incorporam os desenvolvidos para o<br />

cinema; diretores conceituados e criativos como Godard, Gree<strong>na</strong>way,<br />

Antonioni, Coppola trabalham com equipamento eletrônicos; estudiosos<br />

e pesquisadores, inclusive brasileiros, Fechine, Figueirôa, Machado<br />

constroem um fecundo diálogo entre cinema e vídeo, o que, segundo<br />

Figueirôa, permite considerar que a distinção entre cinema e televisão a<br />

partir do suporte não faz mais sentido. Entretanto, esse mesmo autor<br />

sugere a necessidade de não se ignorar até que ponto e de que maneira<br />

esse trânsito do vídeo para película e vice-versa [apresenta] distinções<br />

nos modos de organização inter<strong>na</strong> dos discursos televisual e<br />

156


cinematográfico 304 . Isso nos leva a pensar <strong>na</strong> necessidade de se estudar<br />

a linguagem de Guel Arraes à luz das influências que o cinema exerce<br />

em seus trabalhos. Ainda mais levando-se em conta que, <strong>ao</strong> chegar <strong>ao</strong><br />

Brasil, Guel incorpora-se a um grupo de profissio<strong>na</strong>is que, bebendo <strong>na</strong><br />

fonte do experimentalismo preconizado pelo cinema, fizeram parte do<br />

movimento do vídeo independente que busca a renovação da estética da<br />

TV, muitas vezes subvertendo seus modelos de representação, da sua<br />

linguagem e de seus formatos como estratégia para estimular o<br />

surgimento de um público mais crítico e a demanda por uma TV mais<br />

criativa. 305 É inegável que a preferência pelo vídeo tem a ver com a<br />

questão de custos menores em relação à película, mas não é só isso que<br />

caracteriza o vídeo independente. A paródia da própria TV, em termos<br />

de produtos e sua produção, a preocupação em explorar a função<br />

cultural da televisão, as possibilidades intertextuais que o próprio<br />

veículo oferece são itens prioritários para essa turma pioneira em<br />

inovações.<br />

Na busca de um texto-fonte para reelaborá-lo, reorganizá-lo,<br />

dando-lhe novas e plurais significações e nesse processo mostrar sua<br />

heterogeneidade já se revela a intertextualidade. Utilizar-se de<br />

procedimentos cinematográficos explícitos: enquanto a Virgem faz seu<br />

discurso em defesa dos pobres diabos que estão sendo julgados, suas<br />

vidas pregressas aparecem ilustradas, em fotos em branco e preto, num<br />

remetimento claro <strong>ao</strong> cinema verdade, presentifica-se o modo<br />

cinematográfico no discurso microssérie. E mais: a Virgem funcio<strong>na</strong><br />

como <strong>na</strong>rrador, evoca o <strong>passado</strong> e este se materializa <strong>na</strong>s fotos.<br />

Ao ingressar <strong>na</strong> TV Globo, Arraes vai trabalhar com Silvio de<br />

Abreu e Jorge Fer<strong>na</strong>ndo em telenovela, gênero dos mais tradicio<strong>na</strong>is e<br />

conservadores <strong>na</strong> televisão. Silvio já trabalhara como assistente de<br />

Carlos Manga, diretor de inúmeras chanchadas brasileiras. Arraes<br />

304 FIGUEIRÔA, Alexandre. Os limites entre o cinematográfico e o televisivo no cinema de<br />

Guel Arraes. In: A<strong>na</strong>is do VII Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema.<br />

Universidade Federal da Bahia. Salvador, 5-8 novembro 2003. Mesa Redonda: O cinema de<br />

Guel Arraes, coorde<strong>na</strong>ção do autor.<br />

305 YVANA, Fechine. Televisão e experimentalismo: o núcleo Guel Arraes como paradigma.<br />

In: A<strong>na</strong>is do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte, 2-6<br />

setembro 2003.<br />

157


ecupera sua infância de cinéfilo lá no nordeste. O humor ingênuo e um<br />

tanto vulgar das chanchadas, sua tendência à paródia passam a ser<br />

utilizados <strong>na</strong>s telenovelas revestidos de um toque de nobreza. Ou seja, o<br />

gênero televisivo incorpora o cinematográfico. Por outro lado, Arraes<br />

declara-se admirador do cinema popular, que ele entende como sendo<br />

aquele que fala de perto do povo para o povo com um toque de erudição,<br />

ou seja, que lança mão de uma estratégia culta, o que entendemos<br />

como sendo a preocupação com a TV no seu papel cultural e, <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo, remonta à idéia armorial, <strong>na</strong> qual a erudição é pedra de toque<br />

<strong>na</strong> construção de uma obra popular. A obra de Arraes mostra o mesmo<br />

cuidado com a língua que existe no texto de Suassu<strong>na</strong>, como que a<br />

si<strong>na</strong>lizar, o popular não é o achincalhamento gratuito do idioma assim<br />

como não é a vulgarização das informações veiculadas pelo produto. O<br />

popular demanda, requer respeito àquilo que <strong>na</strong>sce <strong>na</strong> praça, entre o<br />

povo em seu viver. O autor popular busca, lá no suburbano mundo dos<br />

menos favorecidos economicamente, seus tipos e situações. Daí a<br />

linguagem liberta dos cânones oficiais. Situações íntimas vividas de<br />

modo menos discreto, desde as roupas até o comportamento<br />

propriamente dito. <strong>Do</strong>ra, seus trejeitos e vestimenta, é um bom<br />

exemplo. A preocupação do casal em fazer do enterro da cachorra uma<br />

cerimônia com toques de elegância burguesa: <strong>Do</strong>ra de vestido preto e<br />

chapéu, Eurico de terno. Numa comunidade como a de Taperoá, <strong>na</strong><br />

qual a Igreja tem papel fundamental, a presença da linguagem religiosa<br />

se faz <strong>presente</strong> <strong>na</strong>turalmente. As orações, os diálogos entre os religiosos<br />

e mesmo o modo – desabusado – de João Grilo dirigir-se <strong>ao</strong>s religiosos<br />

estão salpicados de expressões de tratamento, conjugação verbal em<br />

segunda pessoa do plural, assim como uso freqüente de terminologia<br />

clerical. Conte-se com o fator armorial. Trabalhar Suassu<strong>na</strong> é<br />

impossível sem pensar as teses armoriais, especialmente a da criação<br />

de uma arte brasileira que originária e fincada no popular não se<br />

descure da erudição. No desespero de se ver a braços com um<br />

“ressurreto”, Chicó se expressa com todo o maneirismo da linguagem<br />

158


teológica: Ai Meu Deus, é João! João, dizei-me o que quereis e se estais<br />

no céu, no inferno ou no purgatório. Segundo João Grilo, fala de alma 306 .<br />

Por outro lado, o cinema popular recorre <strong>ao</strong> burlesco, que se vale<br />

da comicidade para parodiar, ridicularizar obras anteriores renomadas,<br />

situações sérias e pessoas socialmente importantes. Usa e abusa de<br />

gags (efeito que sugere improvisação, utilizando-se de situações<br />

inusitadas), da desproporção que empresta a uma coisa em relação à<br />

coisa em si, usa de inversões <strong>na</strong> tentativa de ridicularizar. O palavrório<br />

exagerado, verborrágico, acelerado de João Grilo, acompanhado de<br />

movimentos corporais que o fazem assemelhar-se a um boneco de<br />

molas em que, principalmente, os braços se agitam como se fossem<br />

despencar do corpo, são explorados através de enquadramentos e da<br />

marcação detalhada das deslocações do ator. Planos longos, abertos,<br />

em contra-luz de grande eficiência <strong>na</strong> tela grande, mas que perdem<br />

efeitos <strong>na</strong> televisão, nem por isso deixam de ser usados. Há uma<br />

intenção autoral que percebe a necessidade ou as possibilidades desse<br />

procedimento e dele se apropria, emprestando-lhe um novo uso, em<br />

outro contexto. A panorâmica inicial em que João Grilo e Chicó estão<br />

<strong>na</strong>s ruas de Taperoá fazendo a promoção do filme é rápida e<br />

entrecortada de aproximações que permitem o foco no detalhe. O<br />

espectador percebe o marasmo da vila, o desalento de seus moradores<br />

às portas e Devagar...as janelas olham./Êta vida besta, meu Deus.” 307 .<br />

O cortejo fúnebre da cachorra que trafega atrás da Igreja é um plano<br />

mais aberto, porque é preciso que ele seja observado pelo olhar da<br />

Virgem pintada <strong>na</strong> parede posterior da igreja. E mesmo assim o corte é<br />

rápido, certeiro, e a visão da parede pintada exige a mesma rapidez do<br />

olhar do espectador.<br />

306 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 179. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 24.<br />

307 ANDRADE, Carlos Drummond de. Cidadezinha qualquer. Alguma poesia. Rio de Janeiro:<br />

Record, 2001.<br />

159


Figura 4 – Chicó e João Grilo fazem a divulgação do filme<br />

A Paixão de Cristo<br />

Figura 5 – O cortejo fúnebre de Bolinha<br />

Aspecto notório <strong>na</strong> Compadecida é a rapidez com que ce<strong>na</strong>s e<br />

diálogos se sucedem no espaço da telinha, reclamando até um<br />

espectador não típico de televisão – dividido e desconcentrado em<br />

conseqüência dos modos de recepção. Ao contrário da linguagem da<br />

telenovela, em os diálogos são montados com o recurso do<br />

plano/contraplano, Arraes decupa as falas de modo a não interromper o<br />

diálogo, enquanto as ações das perso<strong>na</strong>gens são desempenhadas. Essa<br />

excessiva aceleração, de acordo com Fechine 308 , estaria associada à<br />

exorbitância de informações numa única seqüência o que vai exigir<br />

308 FECHINE, Yva<strong>na</strong>. Televisão e experimentalismo: o núcleo Guel Arraes como paradigma, p.<br />

6.<br />

160


cortes rápidos, seqüências curtas. Se pensarmos o diálogo teatral<br />

origi<strong>na</strong>l, o da microssérie sofre algumas compressões de modo a<br />

acompanhar a rapidez das ce<strong>na</strong>s. Arraes concentra informações<br />

verbais, visuais especialmente, e sonoras como forma de lidar com a<br />

multiplicidade constitutiva das formas expressivas próprias à<br />

contemporaneidade 309 . Rosinha chega à fazenda do pai, acompanhada<br />

de João Grilo à noite. Numa tomada rápida e curta é possível vê-los<br />

caminhando em direção a casa cuja fachada adquire um ar tétrico pelo<br />

azul escuro, ‘noturno’ que a rodeia, o céu estrelado em contra-campo e<br />

ouve-se Rosinha, dirigindo-se a João Grilo: Eu li que anos atrás, o sertão<br />

também foi um mar. O Major Antônio Moraes assoma à porta com seu<br />

vozeirão e idéias: Hoje uma moça entra <strong>na</strong> água solteira e sai casada 310 .<br />

A mesma concentração pode ser verificada <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s em que o<br />

filme A Paixão de Cristo é inserido <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa, presta-se a abrir uma<br />

seqüência e também é pano de fundo para os créditos. Se o espectador<br />

não for rápido, a ce<strong>na</strong> já se foi. É o que os estudiosos de cinema<br />

afirmam ser a “tomada vertical”, preconizada por Einsenstein, segundo<br />

Fechine 311 : a superposição, a combi<strong>na</strong>ção numa mesma tomada de<br />

diferentes sistemas semióticos. Atualmente, essa concentração de<br />

informações num mínimo de tempo, tor<strong>na</strong>-se possível a partir das<br />

técnicas de pós-produção disponíveis. A primeira ce<strong>na</strong> <strong>na</strong> igreja<br />

apresenta o auditório sentado, João Grilo passando a sacolinha,<br />

recebendo do<strong>na</strong>tivos e <strong>na</strong> tela, um lençol, <strong>ao</strong> fundo, o filme é exibido. A<br />

câmera passeia sobre o auditório, afasta-se para alcançar João Grilo,<br />

como se fosse uma tomada para um noticiário. O recurso <strong>ao</strong> filme A<br />

Paixão de Cristo, que logo no inicio já se faz <strong>presente</strong>, é uma forma de<br />

referencialização <strong>ao</strong> cinema, lá no antigamente, nos primórdios da<br />

sétima arte, pois é em preto e branco, não sonoro. Na microssérie,<br />

recebe um tratamento de colorização que lhe empresta um tom pastel.<br />

Vale notar seu papel diegético, pois é o filme, pela sua exibição <strong>na</strong><br />

309 MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinema. Campi<strong>na</strong>s, SP: Papirus, 1997, p. 237.<br />

310 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 14.<br />

311 FECHINE, Yva<strong>na</strong>. Televisão e experimentalismo: o núcleo Guel Arraes como paradigma, p.<br />

6.<br />

161


igreja, que vai nos apresentar os protagonistas, <strong>ao</strong> mesmo tempo<br />

desencadeia as presepadas da dupla e mostra seu caráter picaresco.<br />

Figura 6 – Cinema <strong>na</strong> igreja<br />

Para Figueirôa 312 , a utilização do filme como recurso <strong>na</strong>rrativo tem<br />

uma carga metalingüística que desvelaria a intenção autoral de mostrar<br />

a hibridização da linguagem caracterizada pela relação de meios<br />

diversos de expressão imagética, independente da origem de seus<br />

suportes. O filme não está ape<strong>na</strong>s e simplesmente emoldurando, mas é<br />

também diegético, criando uma simbologia própria. A Paixão foi, mais<br />

do que tudo um ato de misericórdia, determi<strong>na</strong>do pelo amor de Deus<br />

para com os homens, segundo o ideário do texto-fonte que é, <strong>na</strong> forma<br />

visual televisiva, a visão de Arraes pela apropriação e estilização.<br />

A ce<strong>na</strong> do aparecimento da Compadecida, no episódio do<br />

julgamento, assim como a da morte do casal de padeiros são<br />

procedimentos cinematográficos largamente utilizados de fusão e<br />

superposição de imagens. Toda a ce<strong>na</strong> do julgamento é uma mescla de<br />

efeitos cenográficos e de computação gráfica. Quando Cristo aparece em<br />

seu trono, com sua corte de anjos, ocorre um processo de fusão e os<br />

lugares por eles ocupados são os mesmos do afresco <strong>na</strong> parede da<br />

igreja. Por um processo de computação gráfica, os anjinhos são<br />

deslocados, sobem <strong>ao</strong>s céus e só o Cristo fica.<br />

312 FIGUEIRÔA, Alexandre. Os limites entre o cinematográfico e o televisivo no cinema de<br />

Guel Arraes, p. 4.<br />

162


Figura 7 – Cristo em seu trono rodeado de anjos<br />

Figura 8 – Ascensão dos anjos<br />

Para as ce<strong>na</strong>s das mentiras de Chicó, o relato é inserido,<br />

apresentando imagens em preto e branco. Foi usado um cartoon feito de<br />

tapadeiras de cenografia sobre o qual Ramazzini, o responsável pelos<br />

efeitos visuais, desenhou árvores, rio, margens etc. É esse fundo feito<br />

de tapadeira desenhada e recortada que se move. O efeito obtido é o de<br />

uma litografia de cordel em movimento. Há, portanto, uma mescla de<br />

procedimentos, até certo ponto artesa<strong>na</strong>is, que se tor<strong>na</strong>m sofisticados<br />

pelo uso inteligente e criativo das possibilidades tecnológicas 313 . Ou<br />

seja, uma composição imagética <strong>na</strong> qual se mesclam desenho, vídeo,<br />

313 Esse processo, em detalhes, é relatado por Capy Ramazzini a Orofino, pesquisadora e<br />

autora de Mediações <strong>na</strong> Produção de Teleficção: videotecnologia e reflexividade <strong>na</strong> microssérie<br />

‘O Auto da Compadecida’.<br />

163


fotografia e imagens que migram de um meio para outro, de uma<br />

<strong>na</strong>tureza para outra. Tudo é válido, e tudo está em relação – o pictórico,<br />

o fotográfico, o digital, o eletrônico.<br />

Figura 9 – Chicó e seu cavalo bento<br />

Mais do que uma desordem fronteiriça televisão/cinema, o que<br />

Arraes provoca é uma (des)orde<strong>na</strong>ção do estabelecido, do oficial, de<br />

forma a (re)ordená-lo em outros modos. Esses outros modos estilizam<br />

as possibilidades da linguagem cinematográfica em uma nova e criativa<br />

disposição, introduzindo-a em um produto televisivo que é a<br />

microssérie, fazendo dela um novo discurso no qual estão <strong>presente</strong>s<br />

como elementos constitutivos duas (e mais) linguagens, dois (e mais)<br />

modos de falar/mostrar. Aqui, especificamente, a linguagem<br />

cinematográfica e a linguagem televisiva configurando dois estilos, duas<br />

perspectivas semânticas e axiológicas. Ou seja, um híbrido que se<br />

mostra abertamente como tal.<br />

164


7.4 Sons e ruídos – leais acompanhantes<br />

Um som manso, leve e fortuito, fingindo-se imprevisível, como que<br />

sobrevém, delicada e discretamente, acompanhando as ações, nunca se<br />

sobrepondo a elas. Música instrumental, <strong>na</strong> qual os ritmos típicos do<br />

nordeste surgem entrelaçados, apontando para a idéia armorial<br />

suassunia<strong>na</strong>, ou seja, música criada a partir do popular, das canções<br />

de domínio público, das cantigas de roda e música negra que<br />

expressam o espírito de fusão <strong>presente</strong> <strong>na</strong> música nordesti<strong>na</strong>, <strong>na</strong><br />

per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong> em especial. Na mesma variedade dos ritmos, os<br />

instrumentos se entrelaçam, sem preconceitos. O clarinete, o violoncelo,<br />

a flauta transversal aliam-se <strong>ao</strong> som produzido pela rabeca, pelo pífano,<br />

pela viola sertaneja. Alegre e brejeira é a música que acompanha a<br />

‘ressurreição’ de Chicó. Esperta e safada, a música que acompanha as<br />

picardias de João Grilo. Nas seqüências do julgamento, a música soa a<br />

ladainha, música de romaria, de procissão, lamentosa e um tanto triste,<br />

acompanhante perfeita para o ambiente, para a seriedade própria do<br />

momento. A produção musical (João Falcão e Carlinhos Borges) exibe a<br />

presença do cômico, do alegre e também o toque de erudição,<br />

características <strong>presente</strong>s no pessoal do Armorial, no caso, Sá Gomes e<br />

Antônio Madureira. Na vinheta de abertura, segundo pudemos apurar,<br />

a música é feita pelo marimbau 314 e lembra a sonoridade árabe, o que<br />

não é de se estranhar à medida que Arraes, como Suassu<strong>na</strong>, vê<br />

influências ibéricas <strong>na</strong> cultura nordesti<strong>na</strong> e o que nos chega, da antiga<br />

e boa península, guarda um parentesco próximo com o oriente árabe.<br />

Assim como a música, os ruídos, o espoucar dos tiros que<br />

acontecem quando Severino invade a cidade, ou quando o Cangaceiro<br />

mata as perso<strong>na</strong>gens do lado de fora da Igreja, são acompanhantes<br />

óbvios das ações. Note-se que a ce<strong>na</strong> da invasão da cidade é um plano<br />

longo, no qual a população em desabalada e doida correria, sem saber<br />

314 O marimbau, espécie de berimbau tocado transversalmente, instrumento muito usado por<br />

músicos de feira.<br />

165


para que lado se bandear para se safar do bandido, faz lembrar em tudo<br />

o cinema antigo. A confusão se instala de tal modo que tiros e gritos<br />

formam um coro uníssono. Não há ruídos ou músicas (trilha sonora)<br />

que identifiquem, marquem a presença de uma perso<strong>na</strong>gem ou a ela,<br />

especificamente, se refiram.<br />

Em linguagem musical, teríamos o que se convencionou como<br />

música incidental. A trilha sonora acompanha, nunca se sobrepõe à<br />

ação das perso<strong>na</strong>gens, ou seja, não os pontua, menos ainda, caracteriza<br />

ou anuncia presença de perso<strong>na</strong>gens.<br />

7.5 Onde o Brasil é medieval<br />

Segundo Suassu<strong>na</strong>, as três histórias que deram origem <strong>ao</strong> Auto<br />

da Compadecida são de origem moura ou ibérica, com as raízes fincadas<br />

nesse mundo mítico mediterrâneo que é tanto peninsular como árabenegro,<br />

e, portanto, brasileiro e nordestino. 315 Ariano, e Arraes vai <strong>na</strong><br />

mesma direção, tem como característica tomar emprestado temas e<br />

modelos da literatura, para não dizer da arte, popular e num exercício<br />

perene de reescritura, recriação e reorganização emprestar-lhes novos<br />

significados. Afunilando a idéia, a literatura de cordel é o eixo<br />

gravitacio<strong>na</strong>l da obra de um e de outro. Suassu<strong>na</strong> reconhece em Gil<br />

Vicente – seu ancestral – um poeta que, cronologicamente, pertencente<br />

<strong>ao</strong> período de transição Re<strong>na</strong>scensa/Barroco, tem suas peças muito<br />

mais ligadas às raízes medievais do povo português, mesmo porque<br />

Portugal prolonga, em seu comportamento cultural, a Idade Média. Daí<br />

a presença de traços medievais <strong>na</strong> Compadecida que Guel Arraes soube<br />

captar e materializar no discurso visual.<br />

A padaria funcio<strong>na</strong> no mesmo espaço da casa dos donos, daí a<br />

convivência dos mesmos com seus empregados, que circulam por ali,<br />

315 SUASSUNA, Ariano. A compadecida e o romanceiro nordestino. In: DIÉGUES JR., Manuel<br />

et al. Literatura popular em verso. Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro: Itatiaia, Edusp,<br />

Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 189.<br />

166


como se a casa fosse um ambiente público, de caráter um tanto<br />

coletivo, como acontecia com a moradia medieval. A especialização, ou<br />

seja, cômodos feitos para uma determi<strong>na</strong>da função, é precária, embora<br />

a casa como um todo a<strong>presente</strong> uma divisão de ambientes: o quarto do<br />

casal, uma espécie de ante-sala, pintados com cores muito fortes, e a<br />

cozinha seriam a parte íntima da casa. Um salão, que se mistura <strong>ao</strong><br />

restante da casa pela extrema proximidade, faz as vezes da padaria.<br />

Uma tosca mesa e um forno de barro, nos moldes de antanho, são os<br />

equipamentos essenciais <strong>ao</strong> estabelecimento, que tem também um<br />

balcão de atendimento. Uma gamela grande serve de recipiente no qual<br />

a massa de pão, manualmente sovada, é deixada para crescer. Pás de<br />

madeira, de longos cabos, servem para colocar os pães, que mais<br />

parecem bolachas, no forno, os quais, depois de prontos, ficam numa<br />

espécie de tabuleiro de madeira. Réstias de alho pendem das paredes da<br />

padaria e se espalham pelo corredor da casa. Enquanto <strong>Do</strong>ra cozinha<br />

em um fogão de lenha e panelas de ferro, João Grilo e Chicó armam<br />

uma trempe no quintal e cozinham sua gororoba. A comida dos dois é<br />

colocada em vasilhas que aparentam ser de barro e criam contraste com<br />

a que <strong>Do</strong>ra usa para o bife da cachorra, um utensílio moderno, próprio<br />

para o animal. Os dois rapazes dormem em uma espécie de beliche que<br />

fica como que encravado <strong>na</strong> parede, a uma certa altura do chão, no<br />

fundo do salão em que funcio<strong>na</strong> a padaria. Mas tudo é interligado.<br />

Empregados e patrões, cachorro e <strong>na</strong>morados circulam livremente. A<br />

simplicidade e austeridade, diríamos melhor, a precariedade ambiental,<br />

fazem parte do medieval. Em contraste com o ambiente, a aparência, as<br />

roupas do casal de padeiros, o que se relacio<strong>na</strong> <strong>ao</strong>s empregados,<br />

apresenta-se numa cor de terra. Há uma predominância de cores<br />

terrosas, ocres, inclusive <strong>na</strong>s vestes, especialmente da dupla central. É<br />

como se tudo fosse já velho, muito velho, gasto pelo tempo. Em<br />

determi<strong>na</strong>das tomadas, é possível a um espectador atento perceber a<br />

textura dos tecidos usados <strong>na</strong>s roupas, as costuras e cerzidos.<br />

O mesmo é aplicável a Severino. Ele parece caminhar carregando<br />

um peso feito de roupas superpostas. Uma capa enorme, um chapelão<br />

despropositadamente grande, cheio de penduricalhos, que esconde seu<br />

167


osto, lembrando os cruzados, as perso<strong>na</strong>gens shakespearia<strong>na</strong>s e, por<br />

que não, <strong>Do</strong>m Quixote em sua ancestralidade mourisca pelos caminhos<br />

de La Mancha. Em contrapartida, as vestimentas do padre e do bispo<br />

são elaboradas de acordo com os parâmetros requintados, formais e da<br />

riqueza do clero. Assim como o anel do Bispo que tem lugar de destaque<br />

<strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s em que ele aparece. Os trajes, as jóias são signos carregados<br />

de ideologia, símbolos, especialmente o anel, do poder da Igreja.<br />

Em se falando de roupas, não há como deixar de observar as<br />

diferenças de figurino entre <strong>Do</strong>ra e Rosinha, incluindo o penteado.<br />

Enquanto <strong>Do</strong>ra remete para a contemporaneidade, cabelos e vestidos<br />

curtos, cores variadas; Rosinha, esguia e delicada, apresenta-se com<br />

modelos longos e rendados, sempre em tons claros, quase brancos,<br />

destoando também das cores terrosas e poeirentas do sertão. O uso e<br />

abuso de rendas e de fricotes criam uma Julieta do agreste, cuja figura<br />

os autores foram buscar nos figurinos dos 50/60, a famosa linha<br />

diretório, e <strong>na</strong>s almofadas, toalhas e colchas das rendeiras nordesti<strong>na</strong>s.<br />

As roupas emprestam a Rosinha um ar etéreo, diáfano, mas muito bem<br />

encar<strong>na</strong>do, embora de modo oposto <strong>ao</strong> de <strong>Do</strong>ra. Cabelos longos, ora<br />

soltos, ora trançados remetendo às mulheres-esfínges da Idade Média.<br />

Rosinha se aproxima da santidade, pura e virgi<strong>na</strong>l; <strong>Do</strong>ra é a terra <strong>na</strong><br />

sua quentura. As roupas de Rosinha não permitiriam o striptease. As<br />

roupas de <strong>Do</strong>ra são feitas para o striptease.<br />

Figura 10 – O striptease de <strong>Do</strong>ra<br />

168


7.6 O gótico nos estertores do século XX<br />

A arte Gótica tem seus primórdios no século XII, em meio a<br />

grandes mudanças sociais e intelectuais origi<strong>na</strong>das no norte da Europa,<br />

que experimenta rápida expansão da população urba<strong>na</strong> e entrevê<br />

possibilidade de grande progresso e de fortalecimento do poder real. Há<br />

preocupação crescente com a educação e o conseqüente<br />

desenvolvimento das habilidades técnicas e intelectuais da juventude.<br />

As igrejas alargam suas portas, ilumi<strong>na</strong>m-se com belíssimos vitrais e<br />

clareiam suas paredes inter<strong>na</strong>s decoradas com pinturas de teor<br />

religioso e de caráter didático. A arte gótica, com fins religiosos, faz-se<br />

expressar por meio de ícones, facilitando assim a compreensão dos<br />

fatos religiosos pela população, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que motivam a<br />

contemplação. O ícone se caracteriza por representar perso<strong>na</strong>gens e<br />

ce<strong>na</strong>s sagradas, pintadas <strong>na</strong> madeira. A técnica é chapada,<br />

preferencialmente a perso<strong>na</strong>gem é vista de frente e se presta à descrição<br />

e <strong>na</strong>rração do sagrado.<br />

Quando João Grilo e Chicó entram e saem da Igreja de Taperoá,<br />

<strong>na</strong> prática de suas estripulias, o espectador pode ver, <strong>na</strong>s paredes que<br />

fazem o fundo das ce<strong>na</strong>s, uma série de quadros que têm como tema a<br />

história sagrada. Esses mesmos ícones aparecem em uma conversa<br />

entre o Bispo e o Padre, em que aquele procura justificativas para o ato<br />

de corrupção praticado pelos dois. Enquanto os ícones indiciam a<br />

sacralidade do local, a conversa é de teor ignóbil. Conteúdo,<br />

participantes e local contrapõem-se de forma a rebaixar os valores<br />

religiosos e o discurso assume um caráter grotesco, instala-se a<br />

desarmonia entre a imagem dos locutores, o conteúdo da enunciação e<br />

o local do pronunciamento. O mesmo se pode dizer da pintura <strong>na</strong><br />

parede exter<strong>na</strong> anterior da igreja e que em várias ce<strong>na</strong>s está <strong>presente</strong><br />

como ocorre no enterro da cachorrinha de <strong>Do</strong>ra. Não sendo um ícone, e<br />

sim um painel, <strong>ao</strong> que tudo indica um afresco, exerce a mesma função,<br />

seja, identificar o local, <strong>na</strong>rrar a história sagrada e estimular a prece e a<br />

devoção. Quando Arraes escolhe esse espaço, para montar a ce<strong>na</strong> do<br />

169


enterro de Bolinha, com sua carga de histrionismo proveniente da<br />

própria situação, do comportamento de Grilo e de Chicó, o discurso em<br />

latim do Padre João e a imagem santa <strong>na</strong> parede sagrada da igreja<br />

fazem irromper o contraste, a desarmonia do discurso que se degrada,<br />

daí o grotesco.<br />

Figura 11 – O sagrado representado no ícone da parede da igreja<br />

Figura 12 – A negociação entre o bispo e o padre <strong>na</strong> igreja<br />

O quadro televisivo e cinematográfico criado por Arraes, quando<br />

da ce<strong>na</strong> do julgamento, de alto impacto visual é bastante persuasivo e<br />

de alta espiritualidade. O aparecimento do Cristo Negro que num<br />

170


truque cinematográfico ‘desce’ do céu pintado <strong>na</strong> parede, assume o<br />

trono, também pintado, e se achega a Terra. A subida dos anjinhos, que<br />

ladeiam a perso<strong>na</strong>gem <strong>na</strong> pintura, lança o foco de importância para o<br />

Cristo. Mais ainda, a chegada triunfal da Virgem, com vestes magníficas<br />

e or<strong>na</strong>da com um diadema esplendoroso. Quando a Compadecida<br />

chega, o foco de ilumi<strong>na</strong>ção desloca-se para ela. O trono de Cristo fica<br />

em uma meia-obscuridade. A Virgem adianta-se, como se <strong>na</strong>quele<br />

instante se materializasse. Ce<strong>na</strong> colorida, brilhante, em que a presença<br />

de auréolas cintilantes, indicadoras de santidade, e a riqueza das vestes<br />

criam uma contraposição <strong>ao</strong> terreno, pobre e simples da igreja e dos<br />

humanos à espera do julgamento. O brilho do gótico e o opaco da<br />

realidade.<br />

Figura 13 – A chegada triunfal da Virgem<br />

Figura 14 – Diálogo entre Mãe e Filho<br />

171


A concretização da humanidade da Virgem, que habita o céu e a<br />

terra, faz-se pela beleza singela esculpida no rosto de Fer<strong>na</strong>nda<br />

Montenegro e pela fala de João Grilo: Por alguém que está mais perto de<br />

nós, por alguém que é gente mesmo! 316 Na ce<strong>na</strong> da morte de <strong>Do</strong>ra e de<br />

Eurico, a imagem da Virgem, pintada <strong>na</strong> parede, dirige seu olhar para<br />

eles e é transposta para o rosto de Fer<strong>na</strong>nda Montenegro, utilizando<br />

processos de fusão e superposição de imagens, ocorre o auge da<br />

aproximação da Virgem com a humanidade, em sua humanidade.<br />

As ce<strong>na</strong>s descritas, todas elas bastante delicadas, contrastam<br />

com a aparição barulhenta e escandalosa do diabo, suas falas irônicas e<br />

agressivas. Sob vários nomes – o Encourado para homem do nordeste, o<br />

Tis<strong>na</strong>do, e mais 91 sinônimos, no sertão roseano – ele é sempre um<br />

bicho elusivo que tende a se esquivar, a se esgueirar. O de Arraes bem<br />

adequado, fisicamente, à perso<strong>na</strong>lidade: uma cara não tão assustadora,<br />

segundo João Grilo, e uma outra medonha. Ou seja, <strong>na</strong>da claro, todo<br />

ele vago e imprevisivo. Surge num escancarar de portas – são as portas<br />

da igreja – e no meio de línguas de fogo que persistem <strong>ao</strong> fundo,<br />

lembrando as cores flamejantes de Hieronymus Bosch.<br />

Figura 15 – A chegada do Encourado<br />

316 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 22.<br />

172


Figura 16 – Fala de Chicó: ... mas eu gostava mesmo era<br />

de enga<strong>na</strong>r aquela gente<br />

O jogo de cores, a presença das trevas e da luz, o profano e o<br />

sagrado, a atmosfera fantástica gerada pela presença de entes<br />

sobre<strong>na</strong>turais seria para os estudiosos da pintura o que se<br />

convencionou chamar <strong>na</strong>turalismo gótico. São esses elementos que,<br />

<strong>presente</strong>s <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s do julgamento, emprestam <strong>ao</strong> discurso “gueliano”<br />

um tom gótico.<br />

7.7 A vinheta de abertura<br />

A vinheta de abertura feita por Hans <strong>Do</strong>nner utiliza o mesmo<br />

filme – A Paixão de Cristo – que é exibido <strong>na</strong> igreja e do qual Grilo e<br />

Chicó fazem a promoção <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> inicial da microssérie. Logo de início,<br />

portanto, a microssérie utiliza-se do cinema num jogo de<br />

intertextualidade, mostrando uma característica guelia<strong>na</strong>, a de misturar<br />

linguagens de diferentes suportes. O Cristo aparece, seguido por uma<br />

multidão. Num outro plano os créditos dos atores aparecem<br />

sobrepostos a um fundo em que Cristo anda sobre o mar. E assim<br />

sucessivamente, ou seja, o filme, em diferentes planos, serve de suporte<br />

<strong>ao</strong>s créditos. E como em qualquer produto artístico <strong>na</strong>da é aleatório.<br />

173


Matheus Nachtergaele e Selton Mello, que dão vida <strong>ao</strong>s<br />

protagonistas, aparecem num quadro emoldurado por uma espécie de<br />

entalhe, o mesmo que aparece no logo da microssérie, o que permite um<br />

aprofundamento da ce<strong>na</strong> do filme em que Cristo caminha sobre o mar,<br />

relatado nos Evangelhos como sendo milagre. João Grilo e Chicó, em<br />

sua miséria ancestral, são viventes por milagre. O nome de Marco<br />

Nanini (Severino) está numa ce<strong>na</strong> belíssima e altamente sugestiva: o<br />

Cristo de mãos postas, vestido com um manto cor de vinho, uma coroa<br />

de espinhos à cabeça que se move meio tombada e tendo atrás, escrita<br />

numa parede, sua identidade: ECCE HOMO. Não nos esqueçamos que<br />

Severino é um cangaceiro, matador e contou com a extrema simpatia da<br />

Compadecida e foi direto para o céu por determi<strong>na</strong>ção do próprio Cristo,<br />

no julgamento. Lima Duarte (Bispo) tem seu nome <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> fi<strong>na</strong>l da<br />

crucificação, quando Cristo já está <strong>na</strong> cruz, ladeado por seus dois<br />

companheiros e a multidão em torno. Fer<strong>na</strong>nda Montenegro<br />

(Compadecida) aparece imediatamente anterior <strong>ao</strong> nome de Guel Arraes<br />

<strong>na</strong> ce<strong>na</strong> em que Cristo está ascendendo <strong>ao</strong> céu, ladeado por um círculo<br />

de nuvens, outro menor dourado. Quase são alçados, eles também.<br />

Nota-se que, desde a vinheta, Arraes brinca, de modo sério, com a<br />

miscelânea de linguagem. São escolhas intencio<strong>na</strong>is a indiciam leituras<br />

que ultrapassam o nível superficial e ali estão para sugerir idéias que<br />

repousam <strong>na</strong>s entrelinhas, ou “entrece<strong>na</strong>s”.<br />

7.8 Perso<strong>na</strong>gens de O Auto da Compadecida<br />

Tratamos aqui das perso<strong>na</strong>gens que foram acrescidas pela autoria<br />

da minissérie, levando em conta o fato, já anotado anteriormente, que<br />

não ocorrem mudanças de características, bem como em suas atitudes,<br />

comportamento e ações com as perso<strong>na</strong>gens suassunia<strong>na</strong>s<br />

conservadas. A exceção, se assim podemos dizer, corre por conta de<br />

Chicó. Na galeria das perso<strong>na</strong>gens picarescas, Chicó tem como<br />

preocupação única a sobrevivência. No texto-fonte, segundo ele, tinha<br />

174


estado de amores com a mulher do padeiro uma única vez e não<br />

conseguia esquecê-la. Na microssérie as coisas acontecem de outra<br />

maneira. O relacio<strong>na</strong>mento entre os dois não é ocasio<strong>na</strong>l, pois os<br />

encontros ocorrem com certa freqüência e concorrem para extensão da<br />

<strong>na</strong>rrativa, permitindo episódios hilariantes que envolvem o padeiro, o<br />

padre, Vicentão e propiciam o striptease de <strong>Do</strong>ra. Com a chegada de<br />

Rosinha e a paixão que ela desperta em Chicó, a microssérie ganha um<br />

ar “novelesco”, com as marchas e contra-marchas de um amor entre<br />

diferentes, as oposições, lutas, encontros e desencontros. Entretanto,<br />

mesmo contrariando o caráter picaresco – não ter amores – o cerne da<br />

picardia permanece. Chicó, para sobreviver, acompanha Grilo em suas<br />

falcatruas com o objetivo de ganhar um dinheirinho. Até o casamento<br />

com Rosinha é efetuado <strong>na</strong> base da esperteza e da safadeza, se bem que<br />

urdida por Grilo, mas com anuência e participação de Chicó. A<br />

frouxidão e a covardia, sua decantada ingenuidade permanecem. Bom<br />

<strong>na</strong>morador, sabe, e muito bem, como seduzir Rosinha.<br />

A “transgressão” <strong>ao</strong>s moldes picarescos cometida por Chicó<br />

remete-nos a mestre Antonio Candido em sua análise do romance<br />

Memórias de um Sargento de Milícias no ensaio Dialética da<br />

Malandragem. Interessam-nos algumas idéias levantadas pelo autor<br />

sobre a categoria ‘picaresco’. Para Antonio Candido, o romance<br />

picaresco é <strong>na</strong>rrado em primeira pessoa, portanto, o próprio pícaro<br />

<strong>na</strong>rra suas desventuras. A categoria <strong>na</strong>rrador não entra em nossas<br />

cogitações, visto que, segundo Prado 317 , a perso<strong>na</strong>gem teatral<br />

dispensaria a mediação do <strong>na</strong>rrador para dirigir-se <strong>ao</strong> público, por<br />

extensão, pode-se considerar o mesmo em relação à dramaturgia<br />

televisiva. Candido traça, entretanto, relações entre <strong>na</strong>rrador e<br />

perso<strong>na</strong>gem, no caso, Leo<strong>na</strong>rdo Pataca, com base <strong>na</strong> picardia<br />

espanhola, para traçar seu caráter, considerado como um jogo de<br />

aproximações e distanciamentos do modelo. Levando-se em conta a<br />

aproximação, em termos bakhtinianos, o dialogismo cultura<br />

317 PRADO, Décio de Almeida. A perso<strong>na</strong>gem no teatro. In: CANDIDO, Antonio;<br />

ROSENFELD, A<strong>na</strong>tol; PRADO, Décio A.; GOMES, Paulo E. S. A perso<strong>na</strong>gem de ficção. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1985.<br />

175


sertaneja/cultura ibérica 318 , consideramos ser possível um diálogo com<br />

as idéias de Antonio Candido.<br />

O pícaro seria de origem humilde e ingênuo; largado no mundo,<br />

arrastado à mentira e empulhação pela brutalidade da vida. O traço<br />

básico do pícaro seria o choque áspero com a realidade que leva à<br />

mentira, à dissimulação, <strong>ao</strong> roubo, e constitui a maior desculpa das<br />

“picardias” 319 . A Compadecida, <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> do julgamento, nos fornece a<br />

origem de João Grilo: comedor de macambira e espectador do<br />

assassi<strong>na</strong>to de sua família. Chicó desenha-se como se estivesse<br />

perambulando, desde sempre, um andarilho <strong>na</strong> vida. Nada sabemos<br />

sobre sua origem, seu <strong>passado</strong> a não ser, por suas histórias<br />

estapafúrdias, uma estada em um seminário, o que, no caso dele,<br />

sugere orfandade. As andanças de Chicó, levando-se em conta suas<br />

histórias, são muitas. É típico da perso<strong>na</strong>gem picaresca, andar de um<br />

lugar para outro, entrar em contato com grupos e até mesmo culturas<br />

diferentes. Sob esse aspecto, Chicó sugere ser mais pícaro que João<br />

Grilo. Todavia, ambos justificam a picardia pela dureza da vida, pela<br />

luta insólita pela sobrevivência.<br />

A origem humilde e o desamparo levariam o pícaro a uma<br />

situação de subserviência. É sempre um criado e como tal passa de um<br />

amo a outro, mudando de ambiente constantemente o que lhe permite<br />

conhecer a sociedade em seu conjunto. O servilismo, como sendo a<br />

submissão, a sujeição absoluta <strong>ao</strong>s patrões, não encontra lugar em<br />

nossos heróis, especialmente em João Grilo. A exploração a que são<br />

submetidos tem seu contraponto <strong>na</strong>s maqui<strong>na</strong>ções, de todas as<br />

espécies, que armam contra os patrões. Com a mesma rapidez que<br />

abando<strong>na</strong>m o casal de padeiros, eles safam-se de Antônio Moraes e<br />

caem no mundo, outra vez ‘largados’, outra vez pobres. Entretanto, o<br />

aviso de João a Chicó – Mas de outra vez, veja o que promete, infeliz,<br />

318 Referimo-nos às idéias assumidas por Suassu<strong>na</strong> sobre a aproximação cultural entre o sertão<br />

e a Península Ibérica. Ver capítulo 2.<br />

319 CANDIDO, Antonio. A dialética da malandragem. In: CANDIDO, Antonio. O discurso e a<br />

cidade. São Paulo, Rio de Janeiro: Duas Cidades, Ouro sobre Azul, 2004, p. 19.<br />

176


porque essa, ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito ! 320 -<br />

indicia que ele aprendeu com a experiência vivida. A característica da<br />

perso<strong>na</strong>gem picaresca de aprender e que a levaria a um<br />

amadurecimento, conduziria também a uma visão desencantada da<br />

vida que para João Grilo e Chicó estaria <strong>na</strong> aceitação da miséria: com a<br />

pobreza já estamos acostumados 321 .<br />

Retomando a ‘transgressão’ de Chicó, ou seja, seu casamento,<br />

encontramos um aspecto contraditório da picardia. O pícaro agiria por<br />

reflexo de ataque e defesa e não por sentimentos. Contumaz traidor de<br />

amigos e enga<strong>na</strong>dor de patrões, não tem uma linha de conduta e<br />

quando se casa, o faz por interesse, nunca por amor, acomodando-se a<br />

situações foscas, como o pobre Lazarillo 322 . Ora, Chicó, contraria essa<br />

peculiaridade, pois ele ama verdadeiramente Rosinha. A relação de<br />

amizade entre Chicó e João é i<strong>na</strong>balável e também existe uma linha de<br />

conduta senão ética, determi<strong>na</strong>da pela religiosidade: o cumprimento da<br />

promessa feita. Paradoxalmente, Rosinha manifesta uma faceta pícara.<br />

Durante e negociação fi<strong>na</strong>l para seu casamento, quando se revela que<br />

Chicó não tem o dinheiro para pagar sua dívida com o Major, Rosinha<br />

tem respostas e atitudes prontas e espertas a ponto de João Grilo<br />

exclamar: Chicó, você ganhou uma parceira no amor, e eu achei uma<br />

parceira <strong>na</strong> inteligência 323 . Inteligência aqui, pode ser lida como<br />

esperteza.<br />

No centro das perso<strong>na</strong>gens-filhas trazidas à trama pelo trio de<br />

autores televisivos está Rosinha, encar<strong>na</strong>da por Virgínia Cavendish.<br />

Jovem, urba<strong>na</strong>, bonita, bem tratada, rica, enjoada da cidade grande,<br />

onde vive com a mãe, e casadoira. Há uma Rosa que morre por amor<br />

em Uma mulher vestida de sol – e não é o caso desta Rosa – mas como<br />

Rosinha, é uma linda e interessante mulher. Em Torturas de um coração<br />

ou Em boca fechada não entra mosca, os perso<strong>na</strong>gens são alguns dos<br />

320 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 188. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 24.<br />

321 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 25.<br />

322 CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade, p. 21. Lazarillo de Tormes, ou La vida de Lazarillo de<br />

Tormes y sus fortu<strong>na</strong>s y adversidades. Obra anônima. Barcelo<strong>na</strong>: Cátedra, 1989.<br />

323 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 25.<br />

177


“tipos” fixos do mamulengo nordestino – Vicentão, Cabo Setenta 324 –, que<br />

disputam o coração de Marieta (perso<strong>na</strong>gem do mundo mítico de<br />

Suassu<strong>na</strong>). Aqui, Arraes os faz dialogarem com as perso<strong>na</strong>gens das<br />

chanchadas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. De acordo com o pai, Antônio Moraes, a jovem<br />

recebera o nome – Rosa – em home<strong>na</strong>gem a avó. Ao chegar a Taperoá,<br />

encontra-se com Chicó <strong>na</strong> quermesse, festa popular de rua, geralmente<br />

<strong>na</strong>s cercanias da igreja, por ele se apaixo<strong>na</strong> à primeira vista. Cortejada<br />

pelo Cabo Setenta e por Vicentão, espertamente dá um jeito de livrar-se<br />

deles para ficar com Chicó. Aliás, Rosinha mostra elegância <strong>ao</strong> se livrar<br />

das grosserias de <strong>Do</strong>ra, bastante enciumada com a chegada de tanta<br />

belezura e já prevendo seu destro<strong>na</strong>mento.<br />

– Por mim não sairia mais daqui, mas mainha só<br />

quer saber da cidade.<br />

..............................................................................................<br />

– Com licença. Tenho de ir à Igreja, antes de ir para a<br />

fazenda. O Padre vai dar a bênção. 325<br />

Romântica e sensível, encanta-se com a noite sertaneja quando<br />

chega à fazenda, e ainda dá mostras de conhecimento: Eu li que há<br />

milhões de anos o sertão já foi mar. Esperta, combi<strong>na</strong> e, muito bem, com<br />

Grilo <strong>na</strong> defesa de Chicó: A única palavra que se pronunciou nesse<br />

contrato foi couro. 326<br />

Bonita e inteligente, Rosinha não foge <strong>ao</strong> protótipo feminino. Sem<br />

meios de sobrevivência, é dependente do pai e a ele se sujeita: o<br />

candidato a marido, deveria ter diploma ou ser rico, era exigência do<br />

pai. Como Chicó é um pobre diabo, Rosinha acaba deserdada e expulsa<br />

de casa pelo Major, sem lágrimas nem reclamações, diga-se, embora<br />

consciente de sua nova situação: Eu nunca fui pobre 327 .<br />

Vicentão é o valentão típico com fortes traços de machismo.<br />

Batendo escandalosamente <strong>na</strong> porta e <strong>ao</strong>s berros, chega à casa do<br />

324 SUASSUNA, Ariano. A pe<strong>na</strong> e a lei. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 150.<br />

325 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 25.<br />

326 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 17.<br />

327 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 26.<br />

178


padeiro: Abra aqui <strong>Do</strong>ra. [...] Eta que hoje estou com a gota. Entrando<br />

como se a casa fosse dele: Por que não abriu a porta logo que cheguei?[...]<br />

E eu que sei? A casa é sua. Quem manda aqui é você. 328 Nada de<br />

comprometimento, quando o dono da casa chega, <strong>Do</strong>ra que se vire. De<br />

pouca inteligência, custa-lhe muito compreender o plano de escape que<br />

<strong>Do</strong>ra arma, evidenciando bem o homem que só tem corpo. Com o Cabo<br />

Setenta faz a dupla que se enrola no duelo com Chicó e acaba cedendo<br />

o título de valente <strong>ao</strong> mais covarde de todos.<br />

Setenta não nega sua farda, sempre empolado, cheio de<br />

maneirismos: Cabo Setenta para servi-la no que for preciso. 329 Para<br />

seguir Rosinha, que vai para a igreja, e escapar dos outros usa o<br />

artifício da autoridade: Com licença, a autoridade militar vai saudar a<br />

religiosa. Apaixo<strong>na</strong>do por Rosinha, perde completamente a compostura<br />

e é feito de bobo pelo esperto João Grilo. Mais uma façanha do amarelo.<br />

Há apropriação do discurso dramatúrgico suassuniano e uma<br />

explosão guelia<strong>na</strong>. Amplia-se a trama, surgem outros perso<strong>na</strong>gens –<br />

novos discursos. O cenário se expande. O discurso agora se faz mais<br />

rápido e ágil como exigência televisiva, decupados, os diálogos sugerem<br />

menos extensão. As aventuras de João Grilo e Chicó são recontadas e<br />

para tal são mobilizados fatores e valores vários, diferentes daqueles<br />

próprios do teatro.<br />

O que se tem em O Auto da Compadecida é uma recriação em<br />

termos estruturais, o que faz dela uma obra inédita, nova, uma outra<br />

em relação à ‘primeira’ <strong>na</strong> qual se ancorou. Por isso, em forma de<br />

apropriação, fazemos da fala de Suassu<strong>na</strong> discurso de Arraes: Oxente!<br />

Escrevi foi a microssérie!<br />

328 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 10.<br />

329 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 14.<br />

179


PARTE 5 – TEORIA E OBJETO EM DIÁLOGO<br />

8 LINGUAGEM<br />

330<br />

Mediadora entre homem e mundo, tendo a palavra como<br />

constitutiva, a linguagem é condição necessária <strong>ao</strong> pensamento<br />

conceitual: os sistemas de si<strong>na</strong>is, chamados línguas, são os suportes do<br />

pensamento conceptual 331 , Circulando entre o social dado e o individual<br />

criador, a linguagem é impreg<strong>na</strong>da de traços ideológicos. Ela conserva e<br />

transmite a experiência acumulada e incorpora as mudanças, <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo que oferece as categorias necessárias à constituição do<br />

pensamento conceitual 332 Não sendo i<strong>na</strong>ta, a palavra é transmitida e<br />

desenvolve-se no processo social da educação, experiência social que<br />

permite <strong>ao</strong> homem aprender a falar e pensar. O homem recebe um<br />

produto feito: unidade linguagem-pensamento, que é a experiência<br />

acumulada <strong>na</strong> filogênese e fixada <strong>na</strong>s categorias da linguagem 333 .Vemos<br />

o mundo pelas lentes das gerações passadas, fator de fundamental<br />

importância, mas não o único determi<strong>na</strong>nte, de nosso pensamento. A<br />

linguagem, como mediadora, forma a base do pensamento e liga os<br />

membros da mesma comunidade lingüística <strong>na</strong> qual se dá a criação<br />

intelectual individual.<br />

Auto da Compadecida! O julgamento de alguns ca<strong>na</strong>lhas, entre os<br />

quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da<br />

moralidade. 334<br />

330 A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Evangelho Segundo São João, 1:1. São Paulo: Pauli<strong>na</strong>s, s.d.<br />

331 SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento. Coimbra: Almedi<strong>na</strong>, 1974, p. 251.<br />

332 MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano <strong>na</strong> telenovela, p. 21.<br />

333 SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento, p. 250.<br />

334 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 15.<br />

181


A primeira fala do Palhaço, no texto suassuniano, revela as lentes<br />

de gerações passadas. De formação protestante, convertido <strong>ao</strong><br />

catolicismo <strong>na</strong> juventude, religiões que têm Cristo por ‘pedra angular’,<br />

portanto, cristãs em sua essência, é <strong>na</strong>tural a postura do autor. Tanto<br />

para o protestantismo como para o catolicismo, o julgamento da<br />

ca<strong>na</strong>lhice – o pecado – huma<strong>na</strong> é doutri<strong>na</strong> e será exercido por Cristo, <strong>na</strong><br />

sua função de juiz, em sua segunda vinda a terra, no fi<strong>na</strong>l dos tempos.<br />

Para o catolicismo, a Virgem Maria é co-autora da redenção huma<strong>na</strong> e<br />

mediadora entre os homens e Cristo, exercendo a função de advogada,<br />

muito bem pleiteada por João Grilo, lídimo representante da<br />

humanidade pecadora.<br />

– A mãe da justiça. 335<br />

– Valha-me Nossa senhora, [...] 336<br />

– Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me<br />

valeu! [...] Até à vista grande advogada. [...] 337<br />

Essa mesma posição de dependência e esperança <strong>na</strong> intervenção<br />

da Virgem aparece <strong>na</strong> microssérie. No Julgamento, respondendo <strong>ao</strong><br />

Cristo, João Grilo, de frente para o trono e à frente dos demais sentados<br />

no primeiro banco da igreja, declara com enorme fé e esperança:<br />

Vou me apegar com alguém mais perto de nós.<br />

João recita o poema invocatório, fazendo gestos simples, óbvios<br />

mesmo, de quem está desesperado, rezando, clamando pela ajuda<br />

divi<strong>na</strong>. Os dois últimos versos em tom de quase desespero, as<br />

derradeiras palavras em brados:<br />

335 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 157. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 23.<br />

336 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 158. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 23.<br />

337 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 175. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 22.<br />

182


Figura 17 – Fala de João Grilo: Valha-me Nossa Senhora, /<br />

Mãe de Deus de Nazaré! 338<br />

A criação individual ocorre contami<strong>na</strong>da pela visão dos<br />

ante<strong>passado</strong>s, continente de um certo conhecimento objetivo do mundo<br />

que nos permite mobilidade e adaptação, geradores de nossa<br />

sobrevivência. Mas também de estereótipos. Schaff afirma: a linguagem,<br />

que é um reflexo específico da realidade, é também, em certo sentido, a<br />

criadora da nossa imagem do mundo. E continua: o reflexo da realidade<br />

objetiva e a ‘criação’ subjetiva de sua imagem no processo do<br />

conhecimento não se excluem, mas completam-se, constituindo um<br />

todo 339 .<br />

Tendo como referencial admitido sua realidade, Suassu<strong>na</strong> parte<br />

do que é de seu conhecimento de mundo: os folhetos de cordel que<br />

povoam a região onde vive. No primeiro ato da Compadecida, é notável a<br />

presença de um folheto de cordel O dinheiro de Leandro Gomes de<br />

Barros; no segundo estão <strong>presente</strong>s episódios de História do cavalo que<br />

defecava dinheiro; no terceiro há correspondência com o auto de autor<br />

338 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 158. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 23.<br />

339 SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento, p. 254.<br />

183


anônimo O castigo da soberba. 340 O próprio autor afirma que, <strong>ao</strong> dar o<br />

nome de João Grilo <strong>ao</strong> protagonista, pensava fazer uma relação entre<br />

seu teatro e o cordel nordestino numa home<strong>na</strong>gem <strong>ao</strong> herói de um<br />

romance de cordel, da autoria de João Martins de Athayde, intitulado<br />

As proezas de João Grilo e acaba por descobrir que esse mesmo herói<br />

picaresco existe em Portugal, com o mesmo nome. Suassu<strong>na</strong>, em<br />

Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, à<br />

pági<strong>na</strong> 516, faz (re)surgir João Grilo, um ajudante de padaria, líder de<br />

um bando de desocupados <strong>na</strong> vila de Taperoá, que empurra ladeira<br />

abaixo um pobre diabo paralítico que se locomovia em um carrinho de<br />

mão empurrado pela filha. Na cidade em que viveu quando menino,<br />

Ariano conheceu um esperto, astucioso, segundo ele, vendedor de jor<strong>na</strong>l<br />

com esse apelido. O companheiro inseparável e amigo para sempre de<br />

João Grilo, Chicó, <strong>na</strong>sce de um indivíduo que vivia em Taperoá, no qual<br />

Ariano diz ter se inspirado. Chicó forma com João Grilo a dupla de<br />

palhaços, um esperto que se mete em situações arriscadas,<br />

influenciando o outro, ingênuo e que, às vezes, acaba por atrapalhar o<br />

espertalhão. Essa dupla é batizada de O Palhaço e o Besta 341 <strong>na</strong> região<br />

sertaneja. Temos aí a convergência de dois aspectos fundamentais à<br />

produção de Suassu<strong>na</strong> e que estão <strong>presente</strong>s <strong>na</strong> obra ‘guelia<strong>na</strong>’: o<br />

enraizamento no popular e no cotidiano. O cordel já de si está fincado<br />

no popular, em sua maioria é de autoria anônima ou coletiva, do povo.<br />

O autor/cantador de feira apossa-se do que existe entre o povo e<br />

reelabora em matéria escrita – o folheto de cordel – que tematiza o diaa-dia<br />

da comunidade.<br />

O visto por Suassu<strong>na</strong> é assimilado pelo olhar da trinca roteirista<br />

(Arraes, Adria<strong>na</strong> e João Falcão) e por ela recriado, desenhando-se num<br />

outro todo que é a microssérie. Não se pode negar a Suassu<strong>na</strong> a<br />

prioridade dada à linguagem verbal. O teatro suassuniano caracterizase<br />

pela essencialidade da linguagem verbal, daí a simplicidade da<br />

ence<strong>na</strong>ção. O que se nota <strong>na</strong> teledramaturgia de Arraes é a manutenção<br />

340 TAVARES, Bráulio. Tradição popular e recriação no “Auto da Compadecida. In:<br />

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191-193.<br />

341 TAVARES, Bráulio. Tradição popular e recriação no “Auto da Compadecida”. In:<br />

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191.<br />

184


da importância da palavra, sem se descurar da linguagem televisiva, ou<br />

seja, da imagem, tida como fundamental <strong>na</strong> televisão e no cinema. O<br />

tratamento dado à imagem, cuidadoso, altamente tecnológico (note-se a<br />

animação <strong>presente</strong> nos causos de Chicó, <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s do julgamento), a<br />

par de muita criatividade artesa<strong>na</strong>l, reflete/refrata uma visão própria, é<br />

a imagem de mundo do homem simples, nem por isso despido de<br />

sensibilidade, que vive <strong>na</strong>s brenhas e penhas do sertão, sobrevivendo<br />

“picarescamente”. As histórias de Chicó, <strong>ao</strong> serem transplantadas para<br />

outra linguagem – a da imagem, e da animação –, o são dentro da visão<br />

e do universo da perso<strong>na</strong>gem, daí a escolha dos traços, do desenho<br />

como se fossem de cordel. Isso ocorre em face de, sendo modelada<br />

socialmente, reflexo e refração, a linguagem constituir-se em resposta<br />

às questões práticas, influenciando a produção cultural, seja ela<br />

científica ou artística.<br />

A microssérie corporifica os causos de Chicó, utilizando-se de<br />

efeitos especiais (trucagens e soluções físicas <strong>na</strong> produção de efeitos) e<br />

recursos próprios do campo de produção de imagens. O uso, tanto dos<br />

efeitos como da técnica, é intencio<strong>na</strong>l, é uma decisão da autoria,<br />

portanto, de um fazer que, para ‘reler’ eletronicamente a visão de Chicó,<br />

utiliza-se de toda uma parafernália tecnológica só possível num estúdio,<br />

com instrumental e pessoal altamente técnico.<br />

9 O DISCURSO<br />

<br />

Para Brandão, o discurso é efeito de sentido construído no<br />

processo de interlocução 342 , portanto, recusa à mera transmissão de<br />

informação, uma ação para Clark e Holquist 343 . O discurso não é uma<br />

grande frase, nem um aglomerado de frases, mas um todo de<br />

342 BRANDÃO, Hele<strong>na</strong> N. Introdução à Análise do Discurso, p. 89.<br />

343 CLARK, Kateri<strong>na</strong>; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin, p. 237.<br />

185


significação, para Fiorin 344 . Bakhtin entende o discurso como: (...)<br />

fenômeno social – social em todas as esferas da sua existência e em<br />

todos os seus momentos, desde a imagem sonora até os estratos<br />

semânticos mais abstratos. 345 O discurso <strong>na</strong>sce no diálogo com sua<br />

réplica viva, forma-se <strong>na</strong> mútua orientação do discurso de outrem no<br />

interior do objeto. A concepção que o discurso tem de seu objeto é<br />

dialógica. 346<br />

Espaço de exercício da linguagem por sujeitos em ação recíproca,<br />

lugar em que enunciações manifestam ideologias. Espaço de luta,<br />

are<strong>na</strong>, como diz Bakhtin, em que idéias defrontam-se, completam-se,<br />

concordam, discordam, polemizam.<br />

9.1 Enunciação<br />

<br />

! <br />

347<br />

O homem tem o poder da elocução – expressão de idéias,<br />

sentimentos – e toda elocução é um elo em uma cadeia complexa de<br />

comunicação: interlocução, vista como processo de interação entre<br />

indivíduos através da linguagem verbal ou não verbal 348 . Essa interação<br />

manifesta-se através da enunciação: conjunto de signos provenientes de<br />

indivíduos socialmente organizados e, como tal, concreto,<br />

compreendendo o produto (material) e o processo (situação), sempre em<br />

interação orgânica.<br />

Território comum do locutor e do interlocutor, a palavra determi<strong>na</strong>se<br />

por proceder de alguém e dirigir-se a alguém, ou seja, serve de<br />

344 FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1999, p. 30.<br />

345 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo:<br />

Hucitec, 1993, p. 71.<br />

346 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 88-89.<br />

347 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 274.<br />

348 BRANDÃO, Hele<strong>na</strong> N. Introdução à Análise do Discurso, p. 90.<br />

186


expressão a um em relação <strong>ao</strong> outro 349 . Mesmo se pensarmos em mundo<br />

interior e reflexão individual, não podemos abster-nos de um auditório<br />

social bem estabelecido, e a palavra continua mantendo uma dupla<br />

orientação. A enunciação leva em conta o auditório, visto ser o discurso<br />

manifestação que, supondo o diálogo (Bakhtin), caracteriza-se por<br />

produzir um efeito de sentido 350 . Assim é determi<strong>na</strong>nte a inter-relação<br />

entre locutor e seu parceiro de comunicação, bem como a situação<br />

social mais imediata e o meio social mais amplo determi<strong>na</strong>m<br />

completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a<br />

estrutura da enunciação 351 .<br />

A enunciação, como conjunto de manifestações sígnicas que<br />

cercam o ato de comunicação, precisa da voz do locutor, subentende o<br />

receptor e seu contexto, assim como tempo e espaço de sua produção.<br />

Uma palavra dita faz-se entender quando a<strong>na</strong>lisada dentro de um<br />

conjunto de fatores em que implicam o que é dito e o que não é dito. Só<br />

desta forma a enunciação é constituída e significa, sendo ela própria a<br />

simultaneidade do que é dito e do que é pressuposto.<br />

Há uma conexão concreta do locutor com o ouvinte e destes – um<br />

discurso liga pessoas – com o existente de modo simultâneo e isso vai<br />

permitir a enunciação, ou seja, a existência da enunciação depende<br />

dessas relações. Na enunciação, mesmo que de uma única palavra, há<br />

um texto realizado e um nexo que o liga <strong>ao</strong> contexto de sua proferição e<br />

essa ligação, essa ponte foi criada pela ento<strong>na</strong>ção – expressão avaliativa<br />

que pode estar num gesto, numa cor, num movimento. Toda palavra<br />

contém um acento de valor ou apreciativo, isto é, quando um conteúdo<br />

objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é sempre<br />

acompanhado por um acento apreciativo determi<strong>na</strong>do. Sem acento<br />

apreciativo não há palavra. 352 Quase sempre determi<strong>na</strong>da pela situação<br />

imediata e suas circunstâncias mais efêmeras, a ento<strong>na</strong>ção vai suprir o<br />

que não se diz: categorias como posição social, grau de intimidade,<br />

relações afetivo-emocio<strong>na</strong>is, etc., são configuradas nos padrões sonoros<br />

349 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 113.<br />

350 BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura, p. 91.<br />

351 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo de filosofia da linguagem, p. 113.<br />

352 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 132.<br />

187


das proferições concretas. A ento<strong>na</strong>ção – modo como uma coisa é dita –<br />

tor<strong>na</strong> evidente a simultaneidade do que é dito e do que não é dito 353 – e<br />

tem efeitos evidentes sobre a linguagem, pode se materializar num<br />

trejeito, numa careta de João Grilo; num remexer de olhos de Chicó;<br />

nos “modelitos” de <strong>Do</strong>ra, nos longos vestidos e cabelos de Rosinha. Vai<br />

existir também nos andrajos de João Grilo e Chicó, <strong>na</strong>s boti<strong>na</strong>s que este<br />

carrega debaixo dos braços.<br />

Figura 18 – Chicó e suas boti<strong>na</strong>s<br />

Sob a repetida queixa de João Grilo: Três dias passei em cima de<br />

uma cama pra morrer e nem um copo d’água me mandaram, fala<br />

acompanhada de uma ento<strong>na</strong>ção vocal e corporal, abrigam-se mágoa e<br />

ressentimento. A freqüência dessa fala também pode ser pensada como<br />

valor, ela está como que entranhada <strong>na</strong> alma do pobre João Grilo o que<br />

o leva a reiterá-la. A quem Grilo quer atingir? Qual a força desse<br />

enunciado sobre o desti<strong>na</strong>tário? A queixa é repetida frente à Virgem<br />

quando do julgamento. Tem o mesmo valor da emitida durante a<br />

conversa com Chicó? No julgamento, João Grilo intenta salvar sua pele,<br />

precisa mostrar suas virtudes, ou <strong>ao</strong> menos o sofrimento por que<br />

passara <strong>na</strong> terra – como Cristo <strong>na</strong> sepultura antes da ressurreição, três<br />

dias passara consumindo-se – como que apostando <strong>na</strong> compreensão da<br />

Virgem e <strong>ao</strong> mesmo tempo denunciando a maldade dos outros, seus<br />

algozes <strong>na</strong> vida terre<strong>na</strong>, os patrões. Na tagarelice com Chicó, Grilo<br />

353 CLARK, Kateri<strong>na</strong>; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin, p. 225.<br />

188


queixa-se, numa linguagem mais coloquial, ‘desabafa’, chega a maldizêlos<br />

e exibe todo seu ódio.<br />

Figura 19 – Fala de João Grilo: Três dias passei... 354<br />

Em seu ensaio, O discurso <strong>na</strong> vida e <strong>na</strong> arte, Bakhtin preocupa-se<br />

com a diferença entre os discursos da vida e os da arte, ou seja, a<br />

comunicação <strong>na</strong> vida cotidia<strong>na</strong> e a comunicação estética. Ele pensava<br />

então <strong>na</strong> inexistência de uma poética sociológica viável. Os formalistas,<br />

<strong>ao</strong> estabelecerem uma teoria de interpretação de textos literários,<br />

desconsideraram o contexto social e histórico e batem-se contra os<br />

marxistas, que afirmavam ser a literatura um reflexo ideológico das<br />

forças econômicas <strong>na</strong> organização social. Bakhtin entende o discurso<br />

artístico como uma forma especial de comunicação social. Enquanto <strong>na</strong><br />

comunicação cotidia<strong>na</strong>, as conexões com o ambiente de formulação da<br />

enunciação são fortes e intensas, criando sólida e evidente dependência<br />

para o significado, os textos estéticos, embora inexistam como objeto<br />

autotélico, são menos implicados em seus ambientes de percepção. O<br />

discurso estético seria menos dependente do contexto imediato, embora<br />

nunca deixe de existir o nexo relacio<strong>na</strong>l autor/obra/leitor, mesmo<br />

porque o grande denomi<strong>na</strong>dor do discurso é, para Bakhtin, a<br />

enunciação e esta é a interação – ponte entre pessoas socialmente<br />

determi<strong>na</strong>das. A forma artisticamente criativa dá formas antes de tudo<br />

354 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 145. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 12.<br />

189


<strong>ao</strong> homem, depois <strong>ao</strong> mundo, mas mundo somente enquanto mundo do<br />

homem. 355 Não há como se negar <strong>ao</strong> discurso artístico sua inserção no<br />

social, no contexto e no intertexto. O discurso artístico é um conjunto<br />

prenhe de linguagens socialmente diversificadas e artisticamente<br />

organizadas, no qual línguas e vozes individuais de autores, de<br />

<strong>na</strong>rradores, de perso<strong>na</strong>gens, os gêneros intercalados vivem/convivem e<br />

é dessa pluralidade de linguagens, de vozes e visões, várias e diferentes,<br />

em orquestração, que se faz o discurso artístico com toda sua carga<br />

semântica, figurativa e expressiva.<br />

A intensidade e importância do verbal <strong>na</strong> obra dramatúrgica<br />

suassunia<strong>na</strong>, que se mantém <strong>na</strong> teledramaturgia guelia<strong>na</strong> é,<br />

essencialmente, oral, é a fala em sua inteireza de entoação, de variação,<br />

de musicalidade. Por outro lado, a televisão é tida e havida como veículo<br />

imagético em sua essência. À riqueza de variação do oral se mescla a<br />

imagem cuidada, intensa, produto do olhar da câmera, mas que<br />

implode em outras: a animação que materializa os causos de Chicó; a<br />

pictórica, com o aproveitamento do painel pintado no altar da igreja,<br />

que vai ser “trazido” para a terra e tor<strong>na</strong>r-se o trono do Cristo no<br />

julgamento por efeito de trucagem cinematográfica. Deve-se ainda notar<br />

que a parte anterior exter<strong>na</strong> da igreja também apresenta um painel, no<br />

qual se vê a Virgem e que em vários momentos e em diversas ce<strong>na</strong>s<br />

explode <strong>na</strong> tela, de forma rápida, mas que atrai para si o olhar do<br />

espectador, apontando i<strong>na</strong>pelavelmente para um elemento-chave: Nossa<br />

Senhora. É ali, junto <strong>ao</strong> painel, que o padeiro, vestido de mulher, por<br />

artimanhas de João Grilo, leva uma surra de Chicó e é objeto de riso e<br />

escárnio, mais ainda, de repreensão por parte do padre. Principalmente,<br />

é o painel pintado <strong>na</strong> parede que serve de cenário, em contracampo,<br />

para as execuções praticadas pelo cangaceiro, sob as ordens de<br />

Severino.<br />

Chicó fala como perso<strong>na</strong>gem, dialoga com Grilo boa parte do<br />

tempo, mesmo porque os dois se configuram como protagonistas, mas é<br />

o <strong>na</strong>rrador dos causos que, diz ele, viveu. A fala de Chicó manifesta-se<br />

como discurso da memória que se anuncia como mistério: das<br />

355 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 69.<br />

190


aforadas do cigarro de Chicó, surge uma fumaça esbranquiçada e os<br />

‘causos’ se materializam em imagem, diferenciada porque outra<br />

linguagem. Perso<strong>na</strong>gem desses causos, Chicó, quando questio<strong>na</strong>do<br />

sobre a veracidade do que conta, replica: Não sei, só sei que foi assim.<br />

Se memória é ficcio<strong>na</strong>lizada. Se ficção é memorializada e adquire foro de<br />

verdade. Realidade e ficção constituem-se um todo discursivo e<br />

linguagens entram em confronto <strong>na</strong> are<strong>na</strong> discursiva, visto que o<br />

diálogo entre diferentes discursos nem sempre é harmonioso e<br />

simétrico, daí a instauração da <strong>na</strong>tureza da interdiscursividade da<br />

linguagem.<br />

A máxima ‘filosófica’ que repete a cada morte – Cumpriu sua<br />

sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a<br />

marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem<br />

explicação que iguala tudo que é vivo num só rebanho de conde<strong>na</strong>dos,<br />

porque tudo que é vivo, morre! – revela a postura de Chicó diante da<br />

morte. É a perso<strong>na</strong>gem ideólogo à qual Bakhtin refere-se, quando<br />

afirma sobre o caráter ideológico da palavra e do discurso, pois exprime<br />

idéias, expressa visão de mundo do falante.<br />

Para Bakhtin, a enunciação é de <strong>na</strong>tureza social, portanto a<br />

situação social, isto é, a condição real da enunciação vai determi<strong>na</strong>r<br />

todo e qualquer aspecto da expressão objetivada. A enunciação é,<br />

portanto, o processo interlocutivo, incluindo aí o contexto histórico,<br />

social, cultural, as ideologias que perpassam as diferentes instâncias<br />

sociais. Assim pensada, a enunciação tem como produto o discurso,<br />

este sim, efeito de sentido, ponto de articulação dos processos<br />

ideológicos e dos fenômenos lingüísticos. 356 Não existe texto, não existe<br />

discurso fora da sociedade. O discurso não se encerra <strong>na</strong> unicidade da<br />

língua como sistema, no código pictórico, musical nem no psiquismo do<br />

indivíduo produtor ou intérprete. Só existe no, e para o social. O<br />

discurso tem uma intensa vida social fora do atelier do artista, <strong>na</strong>s<br />

vastidões das praças, ruas, cidades e aldeias, grupos sociais, gerações e<br />

épocas. 357<br />

356 BRANDÃO, Hele<strong>na</strong> N. Introdução à Análise do Discurso, p. 12.<br />

357 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 71.<br />

191


Se o discurso de João Grilo, <strong>ao</strong> invocar a Virgem para socorrê-lo,<br />

não adquire forma <strong>na</strong> praça, a situação <strong>na</strong> qual João encontra-se, que<br />

se apresenta como sendo de total desesperança, impõe uma<br />

ressonância, a de prece, de solicitação urgente e marcada pela relação<br />

íntima que existe entre os dois interlocutores. Essa relação dá a João<br />

Grilo a liberdade para invocar a Virgem através de versos simples,<br />

populares, despidos de toda a pompa própria das invocações religiosas,<br />

e à Compadecida condições para a compreensão e aceitação.<br />

A rede de relações tecida entre interlocutores e situação permite a<br />

expressão, já que esta não é jamais organizada pela atividade mental e<br />

sim organiza, modela e determi<strong>na</strong> sua orientação. Em Questões de<br />

literatura e estética lemos: O discurso <strong>na</strong>sce no diálogo com sua réplica<br />

viva, forma-se <strong>na</strong> mútua orientação do discurso de outrem no interior do<br />

objeto. A concepção que o discurso tem de seu objeto é dialógica. 358<br />

9.2 O dialogismo<br />

" # <br />

$%%%#& 359<br />

Para os estudiosos da obra de Bakhtin, o dialogismo ocupa lugar<br />

central no seu sistema de pensamento. Preocupado com uma filosofia<br />

da linguagem, que para Stam é também uma ética e a base de um<br />

método literário de análise 360 , o tema, linguagem e dialogia, percorre<br />

toda a sua obra, recebendo, segundo Stam, diversos nomes 361 , mas<br />

sempre relacio<strong>na</strong>do com a comunicação através da diferença. Para o<br />

358 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 88-89.<br />

359 VARELLA, Flavia; IWASSO, Simone. Entrevista de Silviano Santiago: Em vez de remédio,<br />

um bom livro. O Estado de S. Paulo, 09 outubro 2005, p. A-28.<br />

360 STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa, p. 12.<br />

361 Para Stam, os nomes com que esse tema é tratado são poliglossia, heteroglossia, polifonia,<br />

dialogismo.<br />

192


professor Boris Schaidermann 362 a dialogia é uma filosofia de vida<br />

bakhtinia<strong>na</strong>, Bakhtin é dialógico. O dialogismo é marca do homem, a<br />

alteridade seria a definidora da nossa humanidade, pois é impossível<br />

pensar o homem sem relacioná-lo com o outro. Ao discutir o problema<br />

do autor e do herói <strong>na</strong> atividade estética, Bakhtin afirma sobre o<br />

primeiro:<br />

Ele deve tor<strong>na</strong>r-se outro relativamente a si mesmo, ver-se<br />

pelos olhos de outro. Pois <strong>na</strong> vida nós fazemos isto (...)<br />

julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando<br />

compreender, levar em conta o que é transcendente à<br />

nossa própria consciência (...) presumimos, levamos em<br />

conta, o que se passará após nossa morte, o que é<br />

resultado <strong>global</strong> da nossa vida e não existe, claro, senão<br />

para os outros. 363<br />

Princípio constitutivo da linguagem, o dialogismo é exigência,<br />

condição do sentido do discurso. No capítulo referente à interação<br />

verbal, em Marxismo e filosofia da linguagem, podemos rastrear<br />

aspectos importantes do dialogismo entre interlocutores – enunciador e<br />

enunciatário – do texto. Dando clara preferência à questão social,<br />

Bakhtin enxerga uma oposição entre individual e social, por isso<br />

atribuir fundamental importância <strong>ao</strong> interlocutor e considerar a<br />

interação entre sujeitos como sendo a essencialidade da linguagem.<br />

Bakhtin afirma que a linguagem é essencial para a comunicação e<br />

também que a interação dos interlocutores funda a linguagem. Por seu<br />

turno, sendo a enunciação carente da voz do locutor, do horizonte do<br />

receptor, do tempo e espaço (contexto social e histórico) de sua<br />

produção, o sentido só se constrói <strong>na</strong> interação entre os sujeitos do<br />

discurso, ou seja, <strong>na</strong> produção e interpretação do texto. O conceito de<br />

sujeito bakhtiniano é a de um sujeito social, pertencente a um grupo ou<br />

classe, participando de um sistema hierárquico, de um momento e de<br />

um tempo, por isso histórico. E como tal, portador de voz, produzida a<br />

partir de um determi<strong>na</strong>do lugar e de um determi<strong>na</strong>do tempo, o sujeito<br />

362 Interferência do Prof. Sch<strong>na</strong>iderman <strong>na</strong> Mesa Redonda: Inter-relações entre sistemas e<br />

linguagens, no I Encontro Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para o estudo da Semiosfera. São Paulo, 22-26<br />

agosto 2005.<br />

363 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 35-36.<br />

193


aqui é ideológico e seu discurso vai situar-se em relação <strong>ao</strong>s discursos<br />

do outro.<br />

O que temos agora é uma concepção de comunicação amplificada,<br />

acontecendo entre sujeitos constituídos no diálogo e que se avaliam<br />

constantemente. Emissor e receptor são sujeitos dotados de<br />

competência comunicativa, lingüística, mas também de valores,<br />

conseqüentes das relações sociais. Temos como locutores, seres sociais<br />

que se constituem concomitantemente pela interação entre eles e pelas<br />

relações “extra-lingüísticas”, com a sociedade. Sob essa ótica, o texto 364<br />

legitima-se como objeto lingüístico-discursivo, social e histórico – um<br />

enunciado, um discurso que se produz <strong>na</strong>/pela enunciação, esta vista<br />

como o contexto sócio-histórico, ou seja, o “outro”. Decorrente disso,<br />

temos que os discursos dialogam entre si.<br />

Preocupado com questões estéticas, especialmente no campo da<br />

literatura, Bakhtin manteve intenso diálogo com outras discipli<strong>na</strong>s<br />

filosóficas, com as recentes, para seu tempo, proposições da Física e<br />

dos demais conhecimentos científicos. Daí o dialogismo visto como o<br />

jogo das relações e seus estudos trafegarem por interstícios e<br />

intersecções de várias discipli<strong>na</strong>s. Holquist, estudioso americano,<br />

afirma que a obra bakhtinia<strong>na</strong> assume o caráter de uma teoria do<br />

conhecimento pragmaticamente orientada 365 , portanto, ultrapassa os<br />

limites propostos por cânones cristalizados dos modos de pensar a arte<br />

e por extensão a produção cultural. Holquist afirma ser o difícil em<br />

Bakhtin a exigência que seu modo de pensar faz <strong>ao</strong> nosso, a exigência<br />

de mudar as categorias básicas que a maioria de nós utiliza para<br />

organizar o próprio pensamento. 366 A ênfase dada à relação, a abertura<br />

<strong>ao</strong> diálogo reenviam nosso pensamento – ainda preso <strong>ao</strong> dialético ou<br />

partitivo como norma mais ou menos universal – <strong>ao</strong> pensamento<br />

dialógico ou relacio<strong>na</strong>l.<br />

364 Texto para Bakhtin é tudo aquilo que diz respeito à produção cultural fundada <strong>na</strong><br />

linguagem, não havendo produção cultural fora da linguagem.<br />

365 HOLQUIST, Michael. Dialogism: Bakhtin and his world. London and New York, Routledge,<br />

1990. Apud MACHADO, Irene. O romance e a voz: a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin,<br />

p. 36.<br />

366 CLARK, Kateri<strong>na</strong>; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin, p. 33.<br />

194


A dialogização discursiva orienta-se para outros discursos, outras<br />

vozes, outras palavras que, contraditoriamente pluriacentuadas,<br />

cruzam-se no interior do discurso e é desse entrecruzamento que o<br />

sentido se constitui. Várias são as vozes ouvidas e muitas vezes vindas<br />

de longe, de tempos outros, de culturas outras que situam o discurso<br />

<strong>na</strong> história, exigindo a busca de um espaço semântico que explique as<br />

relações entre os discursos, a polêmica que se instaura, exigindo uma<br />

abordagem nova que permita a compreensão entre os diversos<br />

discursos.<br />

Assim como interagem inter<strong>na</strong>mente à obra os diferentes<br />

interlocutores, as mais variadas vozes, que encar<strong>na</strong>m tempos e espaços<br />

outros, cruzam-se no discurso que, assim construído, produz a<br />

interação com seu desti<strong>na</strong>tário e, concomitantemente, dialoga com<br />

outros discursos.<br />

Segundo Suassu<strong>na</strong>, a ce<strong>na</strong> em que o padre enterra o cachorro,<br />

Trata-se do mito de Fausto, as falsas mortes, de acordo com Guel<br />

Arraes, têm sua origem no Decameron 367 . A imagem do cavalo que<br />

defecava dinheiro foi usada por Cervantes, por isso a peça não causou<br />

estranheza a outros povos. Segundo Suassu<strong>na</strong>: Essas histórias<br />

<strong>na</strong>sceram <strong>na</strong> África e passaram para o sul da Europa e Península Ibérica<br />

até chegar <strong>ao</strong> Brasil. Não é de estranhar que sejam tão familiares a<br />

diferentes povos. 368 No contexto vivido <strong>na</strong> peça e <strong>na</strong> microssérie, o cavalo<br />

vê-se substituído por um gato, pois se prestaria bem melhor às<br />

intenções de Grilo e <strong>ao</strong> gosto de <strong>Do</strong>ra, mantendo o espírito cervantino.<br />

367 PORTO SEGURO BRASIL. Guel Arraes só o humor constrói. Disponível em: . Acesso em: 4<br />

agosto 2002.<br />

368 LEITURA ESCRITA. Guel Arraes. Disponível em: . Acesso em: 4 agosto 2004.<br />

195


9.3 Interdiscursividade<br />

369<br />

% #' <br />

Intertextualidade é o jogo dialógico entre os muitos textos da<br />

cultura instalado no interior de cada texto e seu definidor. Para<br />

Barros 370 afirmação do primado do intertextual sobre o textual: a<br />

intertextualidade não é mais uma dimensão derivada, mas, <strong>ao</strong> contrário,<br />

a dimensão primeira de que o texto deriva, tecido que é de múltiplas<br />

vozes polemizando, que se completam ou respondem umas às outras.<br />

Essas vozes encontram-se, inter<strong>na</strong>mente no texto, reproduzindo<br />

diálogos. Texto aqui pensado como produção cultural fundada <strong>na</strong><br />

linguagem e que, por isso, apaga as linhas divisórias entre as<br />

discipli<strong>na</strong>s, segundo Stam 371 .<br />

Modernos estudiosos do discurso, Maingueneau, Ducrot, os<br />

teóricos da semiótica da Escola de Tártu, os a<strong>na</strong>listas dos estudos da<br />

linha francesa como Althusser, Foucault, o primeiro <strong>ao</strong> estudar as<br />

formações ideológicas e o segundo as formações discursivas, concordam<br />

que não se pode desvincular os estudos de linguagem de suas condições<br />

de produção. É necessário buscar as relações que se tecem entre os<br />

discursos, os espaços semânticos em que emergem, as polêmicas que se<br />

travam entre eles, os contratos ou conflitos acontecidos no interior de<br />

cada discurso, remetendo a outras falas, recapturando outras vozes. É<br />

necessário perceber as estratégias textuais que fazem um discurso, já<br />

caracterizado pela dialogia porque constituído de/pela linguagem,<br />

permitir entrever as múltiplas vozes dos quais se tece ou, <strong>ao</strong> contrário,<br />

como as resguarda, oculta, constituindo-se em discursos<br />

pretensamente monofônicos. O que ocorre é a existência de um efeito<br />

369 QUINTANA, Mário. A volta da esqui<strong>na</strong>. Porto Alegre: Globo, 1979, p. 29.<br />

370 BARROS, Dia<strong>na</strong> Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia, enunciação. In: BARROS, Dia<strong>na</strong> L.<br />

P.; FIORIN, José Luiz. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin.<br />

371 STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa, p. 13.<br />

196


monofônico ou polifônico como resultante de estratégias, de<br />

procedimentos discursivos utilizados nos textos. Nenhum texto é<br />

monofônico por constituição, visto a linguagem ser dialógica em sua<br />

essência, mas alguns exibem a polifonia, outros, como o discurso<br />

autoritário, o que se pretende ou se supõe objetivo, resguardam-<strong>na</strong>.<br />

Produzidos num contexto social, por indivíduos em interação não há<br />

como um discurso ser uma voz única. Isso equivale a dizer que não só o<br />

discurso poético é dialógico. Outros discursos, que vagueiam pelo<br />

cotidiano humano da cozinha à intimidade do quarto, da sala à rua, da<br />

escola <strong>ao</strong> jor<strong>na</strong>l, estão embebidos <strong>na</strong> dialogia, estão em acordo ou<br />

desacordo com outros discursos, outras falas, outras ideologias,<br />

portanto são intertextualizados. Oral ou escrito, cotidiano ou não, um<br />

discurso nunca é o primeiro.<br />

Discorrendo sobre o diálogo, Bakhtin afirma que ele deve ser<br />

compreendido não ape<strong>na</strong>s como comunicação em voz alta entre pessoas<br />

colocadas face a face, mas em toda comunicação verbal. Aceitando<br />

bakhtinia<strong>na</strong>mente o discurso como conjunto de manifestações de<br />

linguagens em confronto ele é uma fração, um elo de uma corrente<br />

comunicativa ininterrupta constituindo um momento <strong>na</strong> continuidade<br />

evolutiva de um grupo social 372 . Justifica-se a importância dos estudos<br />

das relações entre a interação concreta da enunciação com a situação<br />

extralingüística. Esse espaço extralingüístico permite a inclusão de<br />

outros tipos de comunicação, pois que situados <strong>na</strong> amplidão do social,<br />

temos gestos do trabalho, atos simbólicos, rituais, cerimônias etc.,<br />

participantes da concretude vivida o que implica a situação de<br />

produção. Toda essa existência verbal e extraverbal <strong>ao</strong> discurso, através<br />

de estratégias e procedimentos estilizadores, são nele introduzidos,<br />

fazendo-o sempre um interdiscurso. O discurso se faz, portanto, a partir<br />

de um lugar social e denuncia esse lugar. Aponta para uma situação,<br />

um momento histórico, traz marcas desse social-histórico. Não à toa,<br />

Quinta<strong>na</strong> poetiza: O <strong>passado</strong> não reconhece o seu lugar: está sempre<br />

372 Enunciação vista como conjunto de manifestações verbais e não-verbais que estão no<br />

entorno do ato de comunicação.<br />

197


<strong>presente</strong>. 373 E o <strong>presente</strong> sabe bem como capturar o <strong>passado</strong>,<br />

estabelecer o diálogo, inseri-lo em suas reelaborações e construir um<br />

outro discurso.<br />

9.4 Estilização<br />

(# %<br />

# <br />

!%)*# <br />

% #+ "%, <br />

-$-.” 374<br />

Por estilização entendemos, em princípio, os procedimentos que<br />

permitem a um discurso a adoção de variações estilísticas, ou seja, a<br />

exploração, no discurso, de outros estilos, como se a prosa<br />

representasse artisticamente o estilo de outrem, modificando o tom.<br />

Para Bakhtin, toda estilização é a representação do estilo lingüístico de<br />

outrem 375 . Para falar de uma outra situação, numa outra conjuntura,<br />

para elaborar/reelaborar um discurso denunciador de uma condição<br />

social, afirmativo ou negativo, cotidiano ou artístico, informativo ou<br />

científico, autores recuperam outras falas. Temos dois ou mais estilos<br />

opostos em sua origem, em sua fi<strong>na</strong>lidade e situação extraverbal.<br />

Ento<strong>na</strong>ções que são mudadas em função do novo falante, adquirem<br />

outras significações porque circulam em outro momento e outro espaço.<br />

Essa outra entoação, essas outras significações tocam, tangenciam a<br />

vida e apontam para a interação social entre interlocutores de diferentes<br />

posições sociais através do discurso, tendo, portanto, no caso de um<br />

discurso artístico, índice de avaliação social estética. Discurso artístico,<br />

inserido no social em que linguagens socialmente diversificadas,<br />

373 QUINTANA, Mário. A volta da esqui<strong>na</strong>, p. 29.<br />

374 SUASSUNA, Ariano. Uma dramaturgia da impureza, da misturada. Revista Vintém.<br />

Ensaios para um teatro dialético. Especial dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do<br />

Latão, n. 2, p. 3-8. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro<br />

tresmalhado.<br />

375 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 159.<br />

198


organizadas de modo a que várias vozes se entrelacem – vozes<br />

individuais, de autores, de <strong>na</strong>rradores, de perso<strong>na</strong>gens, gêneros<br />

intercalados – provocam uma algaravia altamente significativa. A<br />

crônica jor<strong>na</strong>lística, tanto impressa como televisiva, tem com muita<br />

freqüência, mesmo porque vive do cotidiano, do prosaico diário do<br />

homem, se apropriado de discursos outros e os integrado de modo<br />

inovador, emprestando-lhe outros acentos e conseqüentemente outras<br />

valorações.<br />

Referindo-se <strong>ao</strong> romance humorístico inglês, Bakhtin 376 aponta<br />

para a utilização pelos autores, numa evocação humorístico-paródica,<br />

das camadas da linguagem literária. Conforme o objeto de<br />

representação, a <strong>na</strong>rração reproduz parodicamente as formas da<br />

linguagem jurídica, bem como as formas de protocolo, a linguagem<br />

mercantil do centro econômico, o estilo moralizante dos sermões<br />

religiosos, a complexa linguagem científica e a maneira de falar de<br />

perso<strong>na</strong>gens social e concretamente definidos. Entretanto, o que<br />

caracteriza o discurso desse tipo de romance é o emprego de modo<br />

específico da “linguagem comum” 377 , tomada como opinião corrente, a<br />

atitude verbal para com seres e coisas, normal para um certo meio social,<br />

“o ponto de vista e o juízo correntes” 378 . Nesse momento, o autor estaria<br />

objetivando a linguagem comum, obrigando-a a uma refração através do<br />

meio da opinião pública. O autor estaria deformando parodicamente a<br />

linguagem comum, revelando a sua i<strong>na</strong>dequação <strong>ao</strong> objeto. Pode<br />

também se solidarizar com essa linguagem e às vezes até faz ressoar<br />

nela sua voz, confundindo-a com a voz outra.<br />

Na estilização, apresentam-se duas consciências lingüísticas<br />

individualizadas: a que representa (a consciência lingüística do estilista)<br />

e a que é para ser representada, estilizada 379 . Essa segunda consciência<br />

lingüística, do estilista e de seu auditório contemporâneo, permite o<br />

aclaramento da língua estilizada:<br />

376 Fielding, Smollet, Sterne, Dickens, Thackeray são tidos como exemplos típicos. Ver:<br />

BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.<br />

377 Linguagem comum é entendida como sendo aquela comumente falada e escrita pela média<br />

de um dado ambiente.<br />

378 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 108.<br />

379 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 159.<br />

199


(...) separa certos elementos, deixando outros <strong>na</strong> sombra,<br />

cria acentos particulares de seus momentos, como<br />

momentos da língua, cria ressonâncias especiais da<br />

linguagem a ser estilizada com uma consciência lingüística<br />

contemporânea, em uma palavra, cria uma linguagem livre<br />

da linguagem do outro, que traduz não só a vontade do<br />

que é estilizado, mas também a vontade lingüística e<br />

literária estilizante. 380<br />

Arraes constrói sua linguagem, mantendo a de Suassu<strong>na</strong> que<br />

aparece/transparece <strong>na</strong> criação guelia<strong>na</strong>. Guel apropria-se da<br />

linguagem de Ariano, obriga-a a uma refração, deforma-a<br />

estilisticamente e ela, agora, é outra e de outro. O terrível Antônio<br />

Moraes de Ariano sobe a ladeira a pé e usa bengala; o de Guel ganha<br />

cavalo, esporas, chicote, modos e ares de um autêntico cowboy da<br />

época áurea do cinema americano, ou seja, de outros tempos e outra<br />

cultura.<br />

Figura 20 – A chegada do Major Antônio Moraes a Taperoá<br />

A estilização, a paródia e o skaz 381 , <strong>ao</strong>s quais Bakhtin acrescenta<br />

o diálogo composicio<strong>na</strong>lmente expresso e que se desagrega em réplicas,<br />

seriam fenômenos com um traço comum: a palavra tem duplo sentido,<br />

voltado para o objeto do discurso enquanto palavra comum e para um<br />

380 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 160.<br />

381 ‘Skaz’ é um tipo específico de <strong>na</strong>rrativa estruturado como <strong>na</strong>rração de uma pessoa distanciada do<br />

autor (pessoa concretamente nomeada ou subentendida), dotada de uma forma de discurso própria e<br />

‘sui generis’, segundo Krátkaya literatúr<strong>na</strong>ya entsiklopédia (Breve Enciclopédia da<br />

Literatura). Apud BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski. Rio de Janeiro:<br />

Forense Universitária, 2005, p. 185.<br />

200


outro discurso, para o discurso de um outro 382 . Isso implica a exigência de<br />

conhecimento do contexto do discurso do outro, caso contrário a<br />

interpretação da estilização ou da paródia será feita à luz do discurso<br />

voltado para seu objeto: a estilização será interpretada como estilo, a<br />

paródia como obra má 383 .<br />

A estilização pressupõe o estilo, ou seja, pressupõe<br />

que o conjunto de procedimentos estilísticos que ela<br />

reproduz teve, em certa época, significação direta e<br />

imediata, exprimiu a última instância da significação. A<br />

idéia objetificada do outro (idéia artístico-objetiva) é<br />

colocada pela estilização a serviço dos seus fins, isto é,<br />

dos seus novos planos. O estilizador usa o discurso de um<br />

outro como discurso de um outro e assim lança um leve<br />

sombra objetificada sobre esse discurso. É verdade que a<br />

palavra não se tor<strong>na</strong> objeto. Afi<strong>na</strong>l de contas, o importante<br />

para o estilizador é o conjunto de procedimentos do<br />

discurso de uma outra pessoa precisamente como<br />

expressão de um ponto de vista específico. Ele trabalha<br />

com um ponto de vista do outro. 384<br />

Entre o estilo reproduzível enquanto discurso do outro, deve<br />

existir um certo distanciamento do discurso estilizado, há que se<br />

manter a percepção da intenção da estilização, caso contrário, incli<strong>na</strong>se<br />

para a imitação. A sombra objetificada lançada sobre o ponto de vista<br />

do outro convencio<strong>na</strong>liza o discurso e é essa convencio<strong>na</strong>lidade que<br />

permite a perceptibilidade deliberada do estilo reproduzível enquanto<br />

estilo do outro 385 .<br />

No discurso de Arraes, <strong>Do</strong>ra e, mesmo Eurico, têm maior<br />

destaque que no texto-base. O caráter sensual da mulher do padeiro é<br />

intensificado e vários episódios são acrescidos em conseqüência. <strong>Do</strong>ra<br />

não tem só Chicó como ‘caso’, tem também Vicentão e busca seduzir<br />

Cabo Setenta e o próprio Severino de Aracaju, este com intenções<br />

diferentes dos outros, mas sem deixar de ser jogo de sedução. Com<br />

Grilo arma situações vexatórias para o marido, que fica uma noite toda,<br />

<strong>ao</strong> relento, esperando por um encontro entre a mulher e Chicó. Em<br />

382 BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 185.<br />

383 BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 185.<br />

384 BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 189.<br />

385 BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 190.<br />

201


outro arranjo, Eurico, vestido como <strong>Do</strong>ra, leva uma surra de Chicó<br />

atrás da Igreja.<br />

Importante notar que Bakhtin valoriza bastante a dimensão oral<br />

da linguagem. Machado 386 , <strong>ao</strong> discutir a televisão, melhor, os produtos,<br />

os programas televisuais, refere-se à televisão como herdeira do rádio<br />

que se funda primordialmente no discurso oral, daí a essencialidade da<br />

palavra num suporte e numa linguagem que seqüestra para si a<br />

primazia da imagem. É preciso pensar o caráter da oralidade, sua<br />

função e importância, o papel que desempenha como elemento<br />

fundante <strong>na</strong> ficção televisiva. Já se observou nesse trabalho a<br />

manutenção da primazia do verbal suassuniano <strong>na</strong> microssérie.<br />

Enquanto episódios, perso<strong>na</strong>gens e situações “origi<strong>na</strong>is” mantidas, foi<br />

também anotado o intenso diálogo entre os dois discursos. Quando a<br />

microssérie, como discurso, exclui e inclui, ocorre a estilização.<br />

Ao excluir o Palhaço, Arraes apaga uma perso<strong>na</strong>gem considerada<br />

fundamental pelo autor primeiro, entretanto, mantém a atmosfera<br />

circense, mesmo quando dilata o espaço, fazendo-o transbordar de um<br />

quase “picadeiro” sugerido pelo autor do texto e ence<strong>na</strong>do, não só pelo<br />

primeiro, mas por outros diretores quando das várias montagens da<br />

peça. Com o palhaço são excluídos o sacristão (que empresta <strong>ao</strong> grupo<br />

eclesiástico uma enorme antipatia, no discurso teatral) e o frade, <strong>ao</strong><br />

contrário, dono de significativa afetuosidade e simpatia. Na fase do<br />

julgamento, o agressivo diálogo entre o Demônio e o Diabo, existente <strong>na</strong><br />

peça, desaparece, pois o Diabo não tem seu arauto. Não há perda, à<br />

medida que o Diabo se incumbe de dar conta de toda a maldade<br />

infer<strong>na</strong>l.<br />

O filho do Major é trocado por uma filha, que vai ser o centro de<br />

um núcleo inexistente no primeiro discurso e se responsabilizar pela<br />

característica dramatúrgica televisiva, que é uma história de amor, um<br />

romance e suas conseqüentes ramificações em episódios e de novos<br />

perso<strong>na</strong>gens, buscados por Arraes em outros textos suassunianos e em<br />

outros autores.<br />

386 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 71.<br />

202


O Major Moraes, por seu turno, desaparece depois do mal<br />

entendido com o padre, sobre serem seu filho e sua mulher confundidos<br />

com cachorros, para se queixar <strong>ao</strong> bispo. Ao retirar-se de Taperoá,<br />

dirige-se a João Grilo, convidando-o para ir a Angicos, sua fazenda. A<br />

abertura deixada para João Grilo é aproveitada por Arraes, quando<br />

aquele busca um emprego em Angicos e acaba fazendo o santo<br />

casamenteiro entre Chicó e Rosinha o que vai proporcio<strong>na</strong>r as<br />

peripécias que não só reintegram o Major à trama como constroem a<br />

sua fi<strong>na</strong>lização. O Major ganha, tendo maior presença <strong>na</strong> microssérie,<br />

por fazer parte do núcleo romântico criado por Arraes e com sua<br />

esperteza, rudeza e prepotência firma outros significados <strong>ao</strong> discurso<br />

televisivo.<br />

A maior presença de Severino, incluindo aí duas invasões – a<br />

primeira abortada por decisão do próprio, mas provocada pela primeira<br />

pseudo-morte do Grilo – faz emergir outros significados e gera outros<br />

episódios. Há também o ataque perpetrado pelo bando <strong>ao</strong> chefe, quando<br />

este sai da cidade após o período em que ficou esmolando e , <strong>ao</strong> mesmo<br />

tempo, observando, melhor, espio<strong>na</strong>ndo para articular a invasão. A<br />

confusão armada pelo bando nesse episódio ajuda a manutenção do<br />

clima circense da obra, e faz a crítica da incompetência, quando o grupo<br />

não reconhece seu chefe. Ce<strong>na</strong> cinematográfica aparentada à nossa<br />

velha e boa chanchada que é aqui magistralmente recuperada em<br />

termos de estilização.<br />

Acreditamos que o jogo de inclusão/exclusão ocorra por questões<br />

de economia <strong>na</strong>rrativa e adequação <strong>ao</strong> suporte televisão com suas<br />

inúmeras decorrências, especialmente as de ordem de recepção. É<br />

preciso, como afirmou Arraes, criar interesse. O desti<strong>na</strong>tário do<br />

discurso segundo, a microssérie, tem especificidades que devem ser de<br />

domínio do autor. O espectador tem <strong>na</strong> televisão seu lazer, sua<br />

diversão. E <strong>na</strong>da melhor do que uma boa e divertida história de amor<br />

para preencher o fim de noite. A obra em questão foi classificada como<br />

sendo microssérie (nome dado pela produção) e é oriunda da minissérie.<br />

O que se tem evidente é a similaridade menos a extensão que, <strong>na</strong><br />

microssérie, como o próprio nome sugere, é diminuída, o que não deixa<br />

203


de ser uma interferência em termos constitutivos do produto. Menos<br />

extensa, a microssérie exige maior concentração, enxugamento por<br />

parte do criador, sem perda de interesse e de qualidade 387 . Considera o<br />

receptor sob um outro ponto de vista, mais apressado, menor<br />

disponibilidade de tempo, menos disposto a tramas longas, enoveladas.<br />

A microssérie como produto cultural de massa está, i<strong>na</strong>pelavelmente,<br />

ligada <strong>ao</strong> mercado e suas exigências.<br />

Sob o ponto de vista bakhtiniano, o que se tem é um discurso,<br />

agora televisivo (posteriormente, mas já previsto, cinematográfico), que<br />

mantém, em relação <strong>ao</strong> discurso estilizado, um certo distanciamento, a<br />

clara percepção de existência do outro e a intenção, nunca negada, de<br />

estilização.<br />

10 OS GÊNEROS DISCURSIVOS<br />

(#$<br />

/ <br />

#$ 388<br />

O estudo dos gêneros discursivos sob a ótica bakhtinia<strong>na</strong><br />

demanda algumas explicitações. Tradicio<strong>na</strong>lmente, os estudos sobre<br />

gênero têm como base teórica os parâmetros aristotélicos, que<br />

apresentam <strong>na</strong>tureza poética e retórica, entretanto, foi a literatura que<br />

os consagrou no interior da cultura letrada. Na Poética, Aristóteles parte<br />

da representação mimética, classifica os gêneros como obras de voz e<br />

temos a lírica, a épica e o drama. O estatuto dos gêneros literários se<br />

consolidou e <strong>na</strong>da teria abalado seus domínios se o imperativo típico da<br />

época de Aristóteles tivesse se perpetuado, quer dizer, se não tivesse<br />

surgido a prosa comunicativa. 389 Esse objeto novo passa a reivindicar<br />

387 Detalhado no item Minissérie, abordado no capítulo 4, item Inclusões-exclusões.<br />

388 CALABRESE, Omar. La era neobarroca. Madri: Catedra, 1999, p. 197.<br />

389 MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chaves.<br />

São Paulo: Contexto, 2005, p. 264.<br />

204


outros parâmetros de análise e essa é a procura de Bakhtin <strong>ao</strong><br />

desenvolver seus estudos sobre gênero, considerando não mais a<br />

classificação das espécies e sim o dialogismo do processo comunicativo.<br />

Sob esse novo prisma, requer-se pensar as práticas prosaicas exercidas<br />

pela linguagem em diferentes usos do discurso, que se caracteriza por<br />

uma manifestação plural. Para Irene Machado 390 , esse é o núcleo<br />

conceitual que permite a Bakhtin pensar formulações sobre os gêneros<br />

que, distantes da teoria clássica, concedem espaço para a heteroglossia,<br />

ou seja, codificações não circunscritas à palavra. Fazem parte desse<br />

espectro, os discursos dos meios de comunicação de massa até os<br />

contemporâneos digitais, que sequer foram vividos por Bakhtin, mas<br />

encontram <strong>na</strong>s formulações bakhtinia<strong>na</strong>s permissão para inserção em<br />

seu sistema de pensar a cultura.<br />

Os gêneros discursivos são considerados produções culturais,<br />

inseridos no sistema mais amplo de funcio<strong>na</strong>mento da sociedade,<br />

fazendo parte da dinâmica social em todos os seus aspectos. Portanto,<br />

não podem ser pensados desvinculados de seu lugar de origem e de<br />

suas condições de produção e consumo.<br />

A realização de O Auto da Compadecida nega, de certa maneira,<br />

os limites entre televisão e cinema quando se utiliza de câmera de 35<br />

mm e película. Os autores apropriam-se de um texto teatral, suprimem,<br />

expandem, acrescentam, reelaboram elementos. Buscam referências em<br />

outras obras do dramaturgo de origem e de outros autores, muitos lá no<br />

antigamente, para fazer acréscimos. Cometem aquilo que classificamos<br />

como sendo estilização, exibindo, portanto, um outro modo de ser<br />

linguagem, emprestando-lhe outras acentuações. Nas seqüências<br />

iniciais, a autoria faz a inserção de imagens de um filme A Paixão de<br />

Cristo, com intenções diegéticas. O uso da animação quando Chicó<br />

conta seus causos, também é intencio<strong>na</strong>lmente diegética. O painel<br />

pintado <strong>na</strong> parede exter<strong>na</strong> da igreja que serve como cenário de fundo<br />

para muitas ce<strong>na</strong>s, assim como a pintura inter<strong>na</strong> que faz parte do altar<br />

e que numa trucagem cinematográfica se transforma no cenário do<br />

390 MACHADO, Irene. Gêneros discursivos em Bakhtin. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin:<br />

conceitos-chaves, p. 152.<br />

205


julgamento, são exemplos de codificações de <strong>na</strong>turezas diversas que se<br />

acoplam <strong>ao</strong> verbal dos diálogos, concretizando a heteroglossia.<br />

Ao discutirmos a ficção televisiva, afirmamos que <strong>na</strong> sociedade<br />

letrada a ficção se acomoda em romances, contos, novelas, contos de<br />

fada. Como criação do espírito humano que é, ela apresenta-se também<br />

em múltiplas e diversas linguagens que circulam no universo cultural.<br />

Estamos dizendo, portanto, que há outras e variadas possibilidades de<br />

linguagens, outras maneiras de se fazer ficção que não obrigatoriamente<br />

com a língua, com o verbal unicamente.<br />

Estamos também considerando que discurso é um processo<br />

interlocutivo, gerador de efeito de sentido, prática social em todas as<br />

esferas e momentos de sua existência. Levado a efeito por sujeitos no<br />

exercício da linguagem através do jogo da enunciação (ou enunciações),<br />

processo de interação entre indivíduos através da linguagem verbal ou<br />

não-verbal 391 . E Bakhtin afirma:<br />

Qualquer enunciação, por mais significativa e<br />

completa que seja, constitui ape<strong>na</strong>s uma fração de uma<br />

corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à<br />

vida cotidia<strong>na</strong>, à literatura, <strong>ao</strong> conhecimento, à política,<br />

etc.). Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui,<br />

por sua vez, ape<strong>na</strong>s um momento <strong>na</strong> evolução contínua,<br />

em todas as direções, de um grupo social determi<strong>na</strong>do.<br />

Continua:<br />

A comunicação verbal entrelaça-se<br />

inextricavelmente <strong>ao</strong>s outros tipos de comunicação e cresce<br />

com eles sobre o terreno comum da situação de produção.<br />

Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal<br />

dessa comunicação <strong>global</strong> em perpétua evolução. 392<br />

O que temos, num produto dramatúrgico televisivo, é um<br />

entrelaçamento de linguagens que, mais do que qualquer um, pode ser<br />

classificado como sendo <strong>global</strong> em perpétua evolução. Temos um<br />

discurso polissêmico, polivalente, multifacetado e vário, no qual<br />

linguagens em relação constituem o efeito de sentido. Consideramos, a<br />

partir dessas observações, o uso do termo linguagens em seu sentido<br />

391 BRANDÃO, Hele<strong>na</strong> N. Introdução à Análise do Discurso, p. 90.<br />

392 BAKHTIN, Mikhail M. Marxismo e filosofia da linguagem, p. 125.<br />

206


amplo, englobando, portanto, os diferentes conjuntos sígnicos, próprios<br />

de indivíduos socialmente organizados.<br />

(...) cada enunciado particular é individual, mas cada campo de<br />

utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de<br />

enunciados, os quais denomi<strong>na</strong>mos gêneros de discurso 393 . Múltiplas e<br />

variadas são as esferas de atividade huma<strong>na</strong>, múltiplos e variados serão<br />

os gêneros discursivos, ou seja, modos de utilização das linguagens<br />

através de enunciados, pensados aqui como processo e produto. Assim<br />

sendo, o enunciado reflete condições específicas e fi<strong>na</strong>lidades das<br />

variadas esferas (dos contextos), com as quais se encontra relacio<strong>na</strong>do,<br />

por seu conteúdo (temático), seu estilo (seleção e combi<strong>na</strong>ção operada<br />

nos recursos oferecidos pela linguagem) e, sobretudo, pela sua<br />

construção composicio<strong>na</strong>l (organização do material). Essa diversidade<br />

contextual, isto é, a variedade virtual da atividade huma<strong>na</strong>, comporta<br />

uma larga variedade de discursos, pois cada uma das esferas admite<br />

um número inesgotável e cada vez mais desenvolvido de gêneros,<br />

diferenciando-se e ampliando-se à medida que a sociedade se tor<strong>na</strong><br />

mais complexa. Por isso a ocorrência da heterogeneidade discursiva,<br />

tanto oral como escrita: a réplica do diálogo cotidiano e sua diversidade,<br />

a carta, o relato familiar, o contar da criança, os documentos oficiais, as<br />

ordens de autoridades. Acrescentemos a isso tudo as comunicações<br />

científicas e as formas literárias, dos mais simples ditados populares<br />

<strong>ao</strong>s mais elaborados e volumosos romances, as crônicas e ensaios, as<br />

comunicações teóricas e empíricas de ordem científica. Ajuntemos a<br />

heterogeneidade discursiva das demais enunciações não-verbais, o<br />

desenho, a pintura, a gravura, o grafite e aquelas já de si mescladas<br />

como o cinema. Somemos a produção tecnologicizada da<br />

contemporaneidade, o radiojor<strong>na</strong>l, o telejor<strong>na</strong>l e seus diferentes modos<br />

de apresentação, a internet. As exigências do estilo, que num produto<br />

televisivo, passa a ser “estilo-linguagem”, não mais só verbal; a<br />

construção composicio<strong>na</strong>l que vai demandar a manipulação de<br />

inúmeras outras linguagens, de elementos, de recursos, inclusive os<br />

altamente tecnológicos, pois o que temos agora, mais do que um<br />

393 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 262.<br />

207


conjunto sígnico heterogêneo, é um conjunto híbrido. Atualizando a<br />

terminologia, um gênero híbrido. Mescla do já existente, do anterior à<br />

televisão, <strong>na</strong> literatura, no teatro, <strong>na</strong>s artes plásticas, no cinema, no<br />

folhetim, <strong>na</strong> crônica jor<strong>na</strong>lística, no rádio com o que tem sido<br />

constantemente acrescido pela inventividade tecnológica e expressiva,<br />

como o videoclipe, a publicidade, a computação gráfica. Tudo é passível<br />

de acoplamentos, de migrações, de rupturas.<br />

O aparecimento dos híbridos só se tor<strong>na</strong> possível pelo discurso<br />

entendido como are<strong>na</strong>, campo de luta onde é possível a discussão de<br />

idéias, a construção de novos pontos de vista sobre o mundo e de novos<br />

códigos surgidos <strong>na</strong> cultura. E esse processamento só se tor<strong>na</strong> viável<br />

porque é acompanhado pela dinâmica dos gêneros, a partir dos quais se<br />

organizam os discursos. Ou seja, os gêneros estão em constante<br />

mobilidade e processamento face às imensas possibilidades da atividade<br />

huma<strong>na</strong>:<br />

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso<br />

são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da<br />

multiforme atividade huma<strong>na</strong> e porque em cada campo<br />

dessa atividade é integral o repertório de gêneros do<br />

discurso, que cresce e se diferencia à medida que se<br />

desenvolve e se complexifica um determi<strong>na</strong>do campo. 394<br />

10.1 A dimensão espácio-temporal do discurso<br />

O gênero deve ser pensado em sua dimensão espácio-temporal,<br />

aspecto estudado por Bakhtin em sua teoria do cronotopo. Esse termo<br />

foi emprestado das ciências matemáticas e tem sua fundamentação <strong>na</strong><br />

teoria da relatividade de Einstein. Bakhtin está interessado <strong>na</strong>s<br />

questões de literatura, especificamente, numa revisão da teoria do<br />

gênero fundada <strong>na</strong> Poética de Aristóteles. Esse interesse o leva a<br />

transportar o sentido – tempo-espaço – para o campo da crítica literária,<br />

em que a expressão de indissolubilidade de espaço e de tempo vai ser<br />

394 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 262.<br />

208


tratada como essencial à compreensão do gênero discursivo, percebido<br />

como uma existência cultural. Bakhtin passa então a trabalhar no<br />

sentido de entender como se dão as interações tempo-espaciais <strong>na</strong><br />

literatura, ou seja, como o processo de assimilação do tempo e do<br />

espaço, do individuo histórico real que se revela neles acontece, para tal<br />

ele entende o cronotopo como sendo uma categoria conteudístico-formal<br />

da literatura.<br />

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos<br />

indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e<br />

concreto. [...] Os índices do tempo transparecem no espaço<br />

e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo.<br />

Esse cruzamento de séries e a fusão de si<strong>na</strong>is<br />

caracterizam o cronotopo artístico. 395<br />

Para Bakhtin, o cronotopo determi<strong>na</strong> o gênero e suas variedades, assim<br />

como a imagem do homem. Entende o tempo e o espaço como formas<br />

da própria realidade efetiva, daí a importância que dá <strong>ao</strong> papel destas<br />

formas no processo do conhecimento artístico concreto (visão artística) 396 .<br />

Bakhtin desenvolve sua teoria do cronotopo, tendo por objeto de estudo<br />

o romance europeu e suas variantes, desde o romance grego, passando<br />

pelo de cavalaria, pelo de aventuras, pelo autobiográfico, chegando por<br />

fim a Gargantua e Pantagruel da autoria de Rabelais.<br />

Rabelais é o autor que nos serve de referência, por via da obra<br />

bakhtinia<strong>na</strong> A Cultura Popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: O<br />

Contexto de François Rabelais, para trabalharmos a questão do popular,<br />

do humor, do riso e, agora, a do cronotopo em O Auto da Compadecida.<br />

A apropriação teórica ocorre amparada pelas formulações bakhtinia<strong>na</strong>s<br />

sobre o campo do sério-cômico e pela abordagem dialógica do gênero,<br />

que o situa <strong>na</strong> cultura, onde estão depositadas as grandes conquistas<br />

da humanidade e lugar de onde emergem as descobertas, as inovações<br />

no campo do tempo e espaço. Isso nos permite perceber que a cultura<br />

está em constante mobilidade e as obras artísticas dialogam com o<br />

<strong>passado</strong> e apontam para o futuro<br />

395 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 211.<br />

396 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 212.<br />

209


Dentro das múltiplas esferas da produção discursiva, o<br />

surgimento de gêneros mediados – filmes, programas, formatos etc. –<br />

deve-se às demandas culturais do momento e são enunciados concretos<br />

da comunicação mediada por mídias e, portanto, gêneros discursivos da<br />

cultura prosaica 397 . Essas idéias reforçam o dito no item anterior,<br />

quando discutimos a microssérie como um gênero de produção cultural,<br />

e nos permitem uma incursão ‘cronotópica’ sobre O Auto da<br />

Compadecida.<br />

Na Idade Média, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que se desenvolvia a grande<br />

literatura, <strong>na</strong>s camadas mais baixas da sociedade surgiam algumas<br />

figuras, que seriam de importância vital para o desenvolvimento de<br />

formas artísticas satírico-paródicas, que vão ter influência direta <strong>na</strong>s<br />

modificações experimentadas pelos gêneros tradicio<strong>na</strong>is, especialmente<br />

o romance. São elas: o trapaceiro, o bufão e o bobo. Conhecidas desde a<br />

Antiguidade, essas perso<strong>na</strong>gens vinculam a literatura <strong>ao</strong> teatro, <strong>ao</strong>s<br />

espetáculos de máscaras, <strong>ao</strong>s ‘desfiles’ <strong>na</strong>s festas de rua, <strong>na</strong> praça, ou<br />

seja, <strong>ao</strong> popular. Tudo o que essas perso<strong>na</strong>gens fazem ou dizem não<br />

tem sentido direto e sim figurado. O trapaceiro é o único que tem um<br />

fio, ligando-o à realidade. Segundo Bakhtin, elas são os saltimbancos da<br />

vida e nunca se solidarizam com os modos de vida existentes, vêem o<br />

avesso e o falso de cada situação. Elas riem e são objeto do riso; elas<br />

vivem o outro lado da vida. No palco são perfeitamente aceitas,<br />

compreendidas, até familiares, pois estão no seu lugar. Quando<br />

inseridas <strong>na</strong> literatura artística, elas não só sofrem transformações<br />

como influenciam elementos da prosa, especialmente, a romanesca.<br />

No caso das produções culturais de massa, e especialmente, nos<br />

discursos televisivos, essas perso<strong>na</strong>gens, <strong>na</strong>scidas lá no antanho, têm<br />

encontrado destaque. O palhaço é recorrente <strong>na</strong> obra teatral de<br />

Suassu<strong>na</strong>, desaparece em Arraes, mas a dupla de trapaceiros<br />

permanece, bem como a atmosfera circense. Presença que garante a<br />

definição da posição do autor diante da vida - como e de onde ele vê e<br />

revela a vida – e sua posição em relação <strong>ao</strong> espectador, <strong>ao</strong> público, pois<br />

397 MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave, p.<br />

162.<br />

210


é desse lugar – o trapaceiro – que ele participa do “desmascaramento”<br />

do mundo. Face <strong>ao</strong> seu enraizamento profundo no popular, essas<br />

perso<strong>na</strong>gens adquirem privilégios consagrados, estão ligadas <strong>ao</strong><br />

cronotopo da praça pública e <strong>ao</strong> teatro de rua; o sentido figurado<br />

alegórico de que são portadoras lhes permitem a função da denúncia do<br />

convencio<strong>na</strong>lismo pernicioso, falso <strong>na</strong>s relações huma<strong>na</strong>s 398 . Os<br />

denunciantes, no caso, os trapaceiros, assim como o bobo e o bufão,<br />

não participam desse convencio<strong>na</strong>lismo, pois são estrangeiros nesse<br />

universo hipócrita e falso das aparências, mas são essas perso<strong>na</strong>gens<br />

que ganham o status de protagonista, função que, quase sempre, é<br />

portadora dos pontos de vista do autor. Para Bakhtin, os traços dessas<br />

perso<strong>na</strong>gens encontram-se no romance picaresco, especialmente em<br />

<strong>Do</strong>m Quixote, uma das mais fortes referências de Suassu<strong>na</strong>,<br />

conseqüentemente, de Arraes.<br />

João Grilo e Chicó são autênticas reencar<strong>na</strong>ções do trapaceiro<br />

medieval. Fazem da vida um palco, exteriorizam a vida pelo<br />

desmascaramento das falsidades, funcio<strong>na</strong>ndo como máscaras da<br />

autoria. Em busca da sobrevivência tudo é válido, mesmo porque não<br />

concordam com a ordem do mundo visto pertencerem à estirpe dos<br />

saltimbancos. Desembarcam em pleno século XX e têm muito a dizer à<br />

contemporaneidade.<br />

As ações das perso<strong>na</strong>gens encontram-se relacio<strong>na</strong>das de modo<br />

particular com o espaço-tempo. Taperoá é o sertão com sua imensidão e<br />

secura. Lugar de mitos, mistérios, de imensa religiosidade popular, que<br />

provoca a emergência de visões, de revelações. A localidade como marca<br />

do acontecimento. Isso é muito claro <strong>na</strong> produção suassunia<strong>na</strong> e é<br />

seguida (não sem motivo) por Arraes. É o espaço-tempo que permite a<br />

fantástica experiência (sonho? situação de ausência de consciência, de<br />

desmaio?) de João Grilo, encontrando-se com a Corte Divi<strong>na</strong> no<br />

julgamento. Chicó mente, inventa causos estapafúrdios porque o sol lhe<br />

faz mal, segundo Grilo. Ao inventar, Chicó resgata um tempo mítico em<br />

que os animais falavam, coisas fantásticas aconteciam. Nas histórias de<br />

Chicó, o rolar do tempo não obedece à logicidade do tempo medido e o<br />

398 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 274-278.<br />

211


espaço é vencido de forma mágica: de Taperoá, <strong>na</strong> Paraíba, até Propriá,<br />

em Sergipe, em seis horas, sem descanso do cavaleiro e da montaria,<br />

porque era um cavalo bento, e o São Francisco estava seco 399 .<br />

Há o outro lado de Taperoá – vila paupérrima, provincia<strong>na</strong> e<br />

modorrenta. Enquanto Grilo e Chicó fazem a promoção da exibição do<br />

filme <strong>na</strong> igreja, esse aspecto é evidente. Uma pessoa à janela, raríssimos<br />

passantes. Quando o Major Antônio Moraes chega à cidade, o vazio é<br />

tanto, que sua figura, trabalhada de modo a exibir toda sua arrogância<br />

e poder, ganha ares de um gigante. O tempo, que parece parado, como<br />

que rastejando, vê-se, repenti<strong>na</strong>mente, sacudido, como diria Chicó, por<br />

chegadas, encontros (considerado por Bakhtin como importantes<br />

cronotopos temáticos), fatos inusitados. É tempo da invasão do<br />

cangaceiro e por isso um novo batalhão policial desembarca <strong>na</strong> vila.<br />

Chegam o Major, logo depois o Bispo. Rosinha não só adentra a vila<br />

lindamente como é romântico e doce seu encontro com Chicó. O espaço<br />

comprime-se e restringe-se, em grande parte, à igreja, à padaria, e <strong>ao</strong><br />

pedaço de rua que faz a ligação entre eles. A igreja tor<strong>na</strong>-se o espaço<br />

preferencial e se alarga pelas intervenções das perso<strong>na</strong>gens: o painel<br />

externo, lugar das execuções e cenário de fundo para os enterros da<br />

cachorra e de João Grilo. Fato mais do que inusitado, a igreja tor<strong>na</strong>-se o<br />

lugar do Tribu<strong>na</strong>l Celeste, espaço da procissão dos mortos, e a porta é a<br />

soleira do inferno.<br />

Para Bakhtin, o cronotopo da soleira está associado com o tema<br />

do encontro, mas é, fundamentalmente, o cronotopo da crise, da<br />

mudança. Lembremo-nos de que Severino passa o tempo a mendigar <strong>na</strong><br />

soleira da igreja. A soleira separa o interior da igreja do exterior da<br />

praça. Lugares onde as coisas acontecem: as negociatas levadas a cabo<br />

pelo Bispo e pelo Padre com a mediação de Grilo; a crise desencadeada<br />

pela negativa do padre em enterrar a cachorra, a invasão da cidade que<br />

culmi<strong>na</strong> dentro da igreja. O julgamento acontece dentro da Igreja<br />

também. A soleira marca o inferno. É pela porta entreaberta que o<br />

Diabo surge e que podemos entrever o hades. <strong>Do</strong> lado de fora,<br />

399 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 20. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 7.<br />

212


acontecem as mortes, inclusive a pseudo-morte de Grilo, depois de toda<br />

a safadeza que ele arma contra Severino, o duelo entre os pretendentes<br />

de Rosinha. Fatos, decisões que podem determi<strong>na</strong>r uma vida. Espaço de<br />

passagem, o cronotopo da soleira toca o tempo de modo a fazê-lo um<br />

instante sem duração, instante em que tudo se entrelaça, <strong>presente</strong>,<br />

<strong>passado</strong> e futuro. Ninguém sai ileso da crise.<br />

Figura 21 – João Grilo à porta do inferno<br />

Ao entender o cronotopo como sendo uma categoria conteudísticoformal<br />

400 , Bakhtin remete a questão para o significado temático. É no<br />

cronotopo que se organizam os acontecimentos, os nós da trama são<br />

feitos e desfeitos e por isso ele sustenta temas fundamentais. Ce<strong>na</strong><br />

belíssima, que representa o processo de entrelaçamento de relações<br />

tempo-espaço, ocorre no discurso da Compadecida, quando defende os<br />

réus, recuperando o <strong>passado</strong> de cada um deles. Na fala da Virgem,<br />

altamente reveladora, são enxertados momentos trágicos do <strong>passado</strong><br />

das perso<strong>na</strong>gens, através da inserção de fotos em branco e preto. Os<br />

trágicos acontecimentos que marcaram para sempre suas vidas<br />

funcio<strong>na</strong>m como argumento para, se não a salvação imediata, a<br />

possibilidade de uma salvação futura pela purgação dos pecados. É,<br />

também, o momento em que a misericórdia – tema – é exercida em sua<br />

plenitude.<br />

400 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 211.<br />

213


Aspecto fundamental do cronotopo é a possibilidade que ele tem<br />

de construir, ou permitir a construção da imagem concreta dos fatos,<br />

ou seja, ele tem um significado figurativo. É o cronotopo que dá<br />

indicações sobre o lugar e o tempo da realização dos fatos, através da<br />

condensação e concretização espaciais dos índices do tempo 401 . Ao<br />

morrer o cachorro de <strong>Do</strong>ra, Chicó conta a história do pirarucu que o<br />

salvou de afogamento no Amazo<strong>na</strong>s e o levou por três dias e três noites<br />

rio acima, até um lugar seguro, <strong>na</strong>s proximidades de uma vila e então<br />

morreu. As relações temporais e espaciais da história contada adquirem<br />

um papel importante para os criadores da microssérie, à medida que,<br />

ela dá elementos que permitem a ‘visualização’ da ce<strong>na</strong>. Na microssérie,<br />

a imagem é concretizada pela feitura do produto, tor<strong>na</strong>ndo-se um<br />

segundo nível do discurso <strong>na</strong>rrativo, e as relações tempo-espaciais que<br />

lhe são próprias interligam-se com o plano primeiro da <strong>na</strong>rrativa.<br />

Incluímos <strong>na</strong>s questões do cronotopo algo sobre o autor-criador.<br />

O autor é um homem que vive sua vida biográfica, encontra-se dentro<br />

da obra como criador, porém fora dos cronotopos representados, como<br />

que numa tangente a eles 402 . Ele está <strong>na</strong> composição que organiza em<br />

capítulos, atos, ce<strong>na</strong>s etc., que variam conforme os gêneros. O criador<br />

move-se em seu tempo, começa sua <strong>na</strong>rrativa de onde bem entender,<br />

ajeita os acontecimentos representados de modo a não perder o curso<br />

temporal, ficando claro o tempo que representa e o que é representado.<br />

10.2 Gênero primário e gênero secundário<br />

Bakhtin distingue os gêneros em dois conjuntos básicos: os<br />

primários e os secundários. Considera a diferença entre eles essencial<br />

<strong>na</strong> definição do caráter genérico. Gênero de discurso primário, também<br />

nomeado simples, é o praticado <strong>na</strong> atividade lingüística oralizante,<br />

ligada <strong>ao</strong> cotidiano, que se constitui em circunstâncias da comunicação<br />

401 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 355.<br />

402 BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 359.<br />

214


discursiva imediata 403 ,ou ainda, espontânea face à situação de produção<br />

e que se apresenta em níveis variados, em constante trânsito pelo<br />

diálogo cotidiano. Gênero secundário ou complexo abarca o romance, o<br />

teatro, o discurso científico, ideológico, literário, etc., são discursos que<br />

surgem <strong>na</strong>s condições de um convívio cultural mais complexo e<br />

relativamente muito desenvolvido e organizado 404 . Bakhtin fala em outros<br />

gêneros, de existência comum em seu tempo, como o teatro e a<br />

literatura (à qual ele dedicou seus estudos, tempo e vida), mas aponta,<br />

indicia uma comunicação cultural complexa, evoluída, artística.<br />

Capturamos, atrevidamente, a permissão e passamos a considerar a<br />

microssérie um gênero secundário.<br />

Os gêneros secundários, <strong>ao</strong> se formarem, absorvem os primários e<br />

os transmutam. Um gênero primário como, por exemplo, uma conversa<br />

informal numa viagem de táxi, <strong>ao</strong> ser inserida num secundário perde<br />

sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos<br />

enunciados alheios, conservando sua forma e significado dentro do<br />

novo discurso. Integra-se a outra realidade, é uma outra coisa, um<br />

outro produto cultural ou artístico, pois passa a integrar essa nova<br />

realidade que é um gênero secundário. A conversa no táxi também é um<br />

enunciado e o que o diferencia é a condição de sua formação, mais<br />

espontânea em relação à do secundário. É o secundário absorvendo o<br />

primário: a cotidianidade, tão conhecida e trabalhada <strong>na</strong> telenovela por<br />

Motter 405 , também transita <strong>na</strong> minissérie, <strong>na</strong> microssérie. Está nesses<br />

discursos quando transmutada pela atividade segunda da produção<br />

cultural artística. João Grilo, negociando o emprego <strong>na</strong> padaria com<br />

Eurico e <strong>Do</strong>ra seria uma conversa trivial e cotidia<strong>na</strong>, possível a<br />

qualquer mortal que, apropriada e transmutada por Arraes com<br />

procedimentos e acréscimos próprios da linguagem imagética, institui<br />

um outro gênero secundário elaborado pela estilização, perseguindo o<br />

jeito discursivo suassuniano: o ritmo e o trocadilho.<br />

403 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 263.<br />

404 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 263.<br />

405 MOTTER, Maria Lourdes. Ficção e realidade: a construção do cotidiano <strong>na</strong> telenovela.<br />

215


A inter-relação primário/secundário é de fundamental importância<br />

para se entender a <strong>na</strong>tureza do enunciado e também a correlação entre<br />

linguagens, ideologias e visões de mundo. Língua, outras linguagens<br />

(conjuntos de signos) e vida relacio<strong>na</strong>m-se pelos enunciados que<br />

circulam entre elas. Se o enunciado é moldado pelo gênero como afirma<br />

Bakhtin, e este é determi<strong>na</strong>do pelas diferentes esferas das atividades<br />

huma<strong>na</strong>s, justifica-se a importância dada <strong>ao</strong> caráter do gênero e este só<br />

é compreendido, estudando-se o enunciado. Ao tomar como objeto as<br />

minisséries e suas inflexões históricas e políticas: a ficção no seu embate<br />

com a realidade 406 , Lobo trabalha um discurso secundário, que<br />

incorpora aquilo que ficara fora do discurso da história, do oficial, da<br />

mídia, muitas vezes por obra da censura, conseqüentemente, e em<br />

grande extensão, fora do conhecimento do país por questões ideológicas<br />

do regime sob o qual se vivia e pela ideologia educacio<strong>na</strong>l rei<strong>na</strong>nte.<br />

Linguagem e vida estão ali interacio<strong>na</strong>dos no processo enunciativo<br />

estudado pelo autor. Ao a<strong>na</strong>lisar a minissérie Anos Rebeldes, Lobo<br />

mostra o resgate histórico feito através do tratamento de um tema, por<br />

muito tempo, tabu para a televisão – a repressão, a luta armada. Muito<br />

dessa história não fazia parte do repertório de uma geração que, embora<br />

próxima dos fatos, desconhecia esse período de nossa história ou dele<br />

tinha, tão somente, uma vaga idéia. Lobo demonstra que, sob o<br />

tratamento ficcio<strong>na</strong>l de um produto televisivo de entretenimento, os<br />

fatos obscuros e terríveis vividos por muitos de nossos irmãos e, por<br />

extensão, pelo povo, estão lá, no enunciado minissérie, quando estuda a<br />

linguagem televisiva: imagens, planos, ritmo, diálogos; a cuidadosa<br />

ambientação.<br />

O enunciado – oral e escrito, primário e secundário, qualquer que<br />

seja, em qualquer esfera da comunicação – é individual e por isso pode<br />

refletir a individualidade de quem fala (ou escreve). Em outras palavras,<br />

possui um estilo individual 407 . Entretanto, nem todos os gêneros se<br />

prestam <strong>ao</strong> estilo individual, por conseguinte a refletir a individualidade<br />

<strong>na</strong> língua do enunciado. Os mais adequados são os artísticos. Os menos<br />

406 LOBO, Narciso. Ficção e política: o Brasil <strong>na</strong>s minisséries, p. 19.<br />

407 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 265.<br />

216


adequados ou propícios são os gêneros que solicitam uma forma mais<br />

padronizada: documentos, ordens de serviço, boletins quer<br />

empresariais, quer gover<strong>na</strong>mentais, de serviços, etc. Com exceção dos<br />

gêneros artísticos e literários, o estilo individual não entraria <strong>na</strong><br />

intenção do enunciado. Nos gêneros artísticos, o estilo individual é<br />

parte integrante e intencio<strong>na</strong>l do enunciado. O autor de uma obra<br />

manifesta sua individualidade, sua visão de mundo nos elementos<br />

estilísticos. Esse fator de individualidade é o que permite a distinção<br />

entre as obras, a percepção das obras que lhe antecederam, das obras<br />

com as quais dialoga, as obras <strong>na</strong>s quais se apóia, com as quais o autor<br />

luta, com as quais está em discordância. Ao discutirmos as<br />

características domi<strong>na</strong>ntes <strong>na</strong> obra de Guel Arraes, em outro momento<br />

desse trabalho, notamos a presença do humor e de um modo de fazer<br />

humor televisivo que permite a distinção dos discursos guelianos, ou<br />

seja, um modo operacio<strong>na</strong>l que os distingue, ou distingue a autoria, a<br />

individualidade e a intenção. A estilização que julgamos praticada <strong>na</strong><br />

Compadecida possibilita a percepção do diálogo estabelecido com o<br />

texto suassuniano, com outros discursos e outras linguagens.<br />

A noção de enunciado nos é dada pelo seu acabamento – a<br />

capacidade responsiva, ou seja, a alternância dos sujeitos falantes. O<br />

autor, <strong>ao</strong> criar sua obra o faz com uma intenção e para ser<br />

ouvido/lido/visto/assistido, portanto pressupõe um receptor. Essa<br />

alternância locutor/elocutário (interlocutores) permite a delimitação do<br />

enunciado, ou seja, o fechamento do elo dentro da cadeia da<br />

comunicação em que ele se constitui. Essa alternância termi<strong>na</strong>, daí a<br />

delimitação do enunciado, quando o autor disse tudo o que tinha ou<br />

queria dizer num determi<strong>na</strong>do momento, numa dada situação. O<br />

critério para se notar essa fi<strong>na</strong>lização é a possibilidade de responder a<br />

ele. 408 No caso de um enunciado do gênero ordem, executar a ordem. No<br />

caso de um discurso artístico, formular um juízo, ou seja, ocorre uma<br />

reação <strong>ao</strong> enunciado, o que é a possibilidade responsiva. Observe-se<br />

que a esse enunciado não basta só ser compreendido, porque inteligível,<br />

no nível da linguagem. É preciso que suscite uma reação e isso só será<br />

408 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 280.<br />

217


possível se o enunciado se circunscrever numa totalidade, isto é,<br />

constituir-se em um todo. É possível <strong>ao</strong> discurso caracterizar-se como<br />

‘diálogo inconcluso’, mas o enunciado é sempre uma manifestação<br />

conclusa, acabada, ou seja, uma ‘totalidade de sentido’, à qual se chega<br />

pelo gênero.<br />

Para que essa totalidade enunciativa possa ocorrer e provocar<br />

uma possibilidade de compreender de modo responsivo são necessários<br />

três fatores, organicamente relacio<strong>na</strong>dos <strong>ao</strong> enunciado: 1) a<br />

exauribilidade do objeto de sentido; 2) projeto de discurso ou vontade de<br />

discurso do falante; 3) as formas típicas composicio<strong>na</strong>is e de gênero do<br />

acabamento 409 .<br />

O tratamento exaustivo do objeto do sentido pode ser quase total<br />

em determi<strong>na</strong>das esferas, <strong>na</strong> vida prática (em algumas situações<br />

normatizadas), uma ordem emitida, as trocas documentais <strong>na</strong>s quais<br />

existem padronizações. Tor<strong>na</strong>-se quase impossível <strong>na</strong>s esferas criativas,<br />

sejam artísticas ou científicas. Nas ciências, o objeto é praticamente<br />

inesgotável, daí a necessidade de transformá-lo em tema e dar a ele um<br />

acabamento relativo, dentro de determi<strong>na</strong>das condições em função de<br />

uma abordagem, definida desde o início pelo autor. A definição dada <strong>ao</strong><br />

objeto de sentido pelo autor é seu intuito. O intuito do autor é seu<br />

querer-dizer e vai determi<strong>na</strong>r a escolha do objeto de sentido, a<br />

determi<strong>na</strong>ção de suas fronteiras enquanto tal <strong>na</strong>s circunstâncias<br />

comunicativas (individual, social, política, histórica, ideológica, e suas<br />

relações com outros enunciados). Esse objeto, a esfera da comunicação<br />

operacio<strong>na</strong>lizada pelo locutor, as necessidades de uma temática, o<br />

conjunto de parceiros, a situação social <strong>na</strong> qual se dá a comunicação,<br />

ou seja, todo o contexto vai determi<strong>na</strong>r a escolha do gênero do discurso.<br />

O intuito do autor, permeado pela sua subjetividade, pelo seu estilo<br />

individual adapta-se e estrutura-se num gênero. A estruturação<br />

processada pelo locutor para montar seu enunciado, a organização dos<br />

elementos, ou seja, a composição vai ser determi<strong>na</strong>da pelo gênero.<br />

409 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 281.<br />

218


Pressupondo essa estruturação como sendo a construção<br />

composicio<strong>na</strong>l, a organização de todo material 410 , há que se levar em<br />

conta a expressividade do locutor perante seu objeto, determi<strong>na</strong>da pela<br />

relação que ele tem com o mesmo. A intensidade e a importância da<br />

expressividade variam de acordo com a esfera comunicacio<strong>na</strong>l, mas são<br />

<strong>presente</strong>s em todo e qualquer enunciado, pois a neutralidade inexiste.<br />

Ao escolher uma palavra, um estilo, uma maneira de organizar, o<br />

locutor parte das suas intenções (seu querer-dizer) e o todo intencio<strong>na</strong>l<br />

construído. Interessado que era no discurso verbal, Bakhtin diz sobre a<br />

palavra que ela se põe para o falante, o usuário em três aspectos:<br />

pertencente à língua, a palavra é neutra e não é de ninguém; sob a<br />

perspectiva de pertencimento <strong>ao</strong>s outros, isto é, alheia, ela está prenhe<br />

de marcas de outros enunciados; apropriada pelo sujeito do enunciado,<br />

que sobre ela opera em uma situação determi<strong>na</strong>da e com uma intenção<br />

discursiva, a palavra se impreg<strong>na</strong> da expressividade do falante,<br />

atualizada através de um enunciado individual e expressa um juízo de<br />

valor. O mesmo princípio pode ser aplicado <strong>ao</strong>s elementos não verbais,<br />

levando-se em conta as múltiplas codificações possíveis no campo da<br />

produção cultural.<br />

10.3 Expressividade discursiva<br />

A expressividade é um indicador das relações do autor do<br />

discurso com o outro, ou seja, mantém em relação <strong>ao</strong> outro enunciado<br />

uma atitude responsiva, uma resposta àquilo que já foi preocupação de<br />

um dado objeto.<br />

A expressividade – relações valorativas de ordem subjetiva entre o<br />

sujeito do discurso e o conteúdo do objeto e do sentido – é outro<br />

determi<strong>na</strong>nte do estilo individual, ou seja, as escolhas a serem feitas<br />

410 Conteúdo temático (o querer-dizer do locutor), estilo individual, relações entre<br />

interlocutores, valores em jogo <strong>na</strong> relação autor/objeto de sentido, esferas de atividades<br />

comunicativas e huma<strong>na</strong>s, contexto comunicacio<strong>na</strong>l.<br />

219


dos recursos de linguagem postos à disposição do autor e suas<br />

possíveis combi<strong>na</strong>ções. No campo do verbal, palavras e mesmo orações<br />

desvinculadas do enunciado são inexpressivas. O mesmo pode-se dizer<br />

das codificações próprias da linguagem visual aliadas às possibilidades<br />

tecnológicas<br />

Palavras, assim como cores, seus tons e semitons; ilumi<strong>na</strong>ção e<br />

sua intensidade; som, ruído e silêncio; mobilidade e imobilidade<br />

adquirem valor, portanto, expressividade dentro do conjunto do<br />

enunciado, isto é, no processo de emprego <strong>na</strong> realidade do discurso.<br />

Exemplo claro das escolhas expressivas já foi anotado no item<br />

Minissérie, quando da referência a Pallottini e seu unitário Sapicuá de<br />

Lazarento. Deve-se também considerar que as escolhas feitas pelo<br />

autor, nem sempre o são a partir do sistema de linguagem em sua<br />

neutralidade e sim de outros enunciados congêneres. Aos espectadores<br />

dos filmes de mocinho e bandido não é estranha a ce<strong>na</strong> em que Chicó, e<br />

sua proverbial covardia, fica entre dois revólveres – o duelo de três<br />

forjado por João Grilo, bem como o foco <strong>na</strong>s esporas de Antônio Moraes,<br />

quando desmonta seu cavalo <strong>na</strong> praça de Taperoá, sua chegada à vila<br />

como um autêntico homem do oeste americano retratado pelo cinema<br />

hollywoodiano Também não é estranha a expressão patética do Cabo<br />

Setenta – as chanchadas brasileiras já nos apresentaram tal espécime.<br />

As cores e modelos usados por Rosinha e <strong>Do</strong>ra têm um valor,<br />

demonstram uma intenção dentro da obra. Os tons de ocre apontando a<br />

secura da terra, inter<strong>na</strong>mente os aspectos medievais que ainda<br />

subsistem no sertão. O verde escandaloso dos batentes das janelas da<br />

casa de Eurico e <strong>Do</strong>ra típicos da arquitetura interiora<strong>na</strong> dos séculos<br />

XVIII e XIX, principalmente. Assim como o cenário pobre do quintal da<br />

padaria, com a cerca feita de taquaras, dispostas verticalmente lado a<br />

lado e amarradas com cipó, características da pobreza e simplicidade do<br />

sertão. Escolhas feitas de acordo com a visão, o sistema de valores, a<br />

subjetividade autoral. O mesmo pode ser aplicado à noite azulada e<br />

fantasmagórica, quando da chegada de Rosinha à fazenda e a fala<br />

profética do Conselheiro em sua boca, prenunciando grandes<br />

mudanças.<br />

220


Figura 22 – O pauperismo do quintal da casa de <strong>Do</strong>ra e Eurico<br />

Figura 23 – As cores da casa de <strong>Do</strong>ra e Eurico<br />

Não há como confundir o discurso teatral (Suassu<strong>na</strong>), o discurso<br />

televisivo ficcio<strong>na</strong>l, dramatúrgico, microssérie, o discurso<br />

cinematográfico, e mais a edição em DVD. Cada um deles tem o<br />

tratamento, o acabamento gerado pelo querer dizer e as formas de<br />

estruturação do gênero, que permitem o acabamento do enunciado. Há<br />

intenções e modos diferenciados entre o teatro, a televisão, o cinema, o<br />

DVD. Outros auditórios, diferenciados interlocutores em condições de<br />

recepção outras, variadas condições de produção e processos de<br />

construção de sentido. O que não significa dizer ausência de<br />

interdiscursividade, de intromissões, exclusões, migrações. Entre si,<br />

221


todos os diferentes enunciados tocam-se, interpenetram-se e todos<br />

estão, em maior ou menor grau, num processo de alteridade e de<br />

assimilabilidade 411 em relação a outros discursos, a outras obras em<br />

circulação no universo de sua existência. Todos carregam em si<br />

expressões e valores alheios, que sofrem assimilações, reelaborações e<br />

reacentuações.<br />

Importante notar também que a época, o meio social, o momento<br />

histórico geram seus próprios enunciados e estes acabam “prescrevendo<br />

normas”: obras científicas, literárias, ideológicas às quais as pessoas se<br />

referem e <strong>na</strong>s quais buscam apoio para confrontos, refutações,<br />

concordância; às quais se referem, citam e imitam. Por isso a intensa<br />

mobilidade dos gêneros, eles estão sempre em processamento.<br />

Circulando entre diferentes esferas, em diferentes momentos, o gênero<br />

está sempre em renovação face <strong>ao</strong> di<strong>na</strong>mismo do mundo, pois ele <strong>na</strong>da<br />

mais é do que formas, maneiras de o homem perceber a realidade,<br />

pensar o mundo.<br />

O Brasil das telenovelas reinventou a fórmula existente a partir<br />

das radionovelas e das telenovelas de extração caribenha,<br />

especialmente cuba<strong>na</strong>. Prescreveu normas que a caracterizam como<br />

sendo produto diferenciado e próprio da televisão brasileira, um<br />

produto cultural massivo brasileiro. Espaço e momento produtivo,<br />

anseios de produtores culturais e demanda ou anseios do público<br />

receptor integram-se e acabam por fazer surgir um gênero. Desse<br />

gênero, é possível origi<strong>na</strong>r-se outro e outro e assim, sucessivamente,<br />

buscando preencher, satisfazer as circunstâncias variadas da produção<br />

cultural. É dessa corrente produtiva que surgem novos gêneros e<br />

formatos. É essa dinâmica que permite a minissérie, a microssérie com<br />

características que as diferenciam, embora pertençam à mesma matriz<br />

ficcio<strong>na</strong>l televisiva.<br />

411 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 294.<br />

222


11 O CAMPO DO SÉRIO-CÔMICO<br />

$$% 412<br />

O gênero re<strong>na</strong>sce e se renova [...] em cada obra individual de um<br />

dado gênero. Nesse processo de re<strong>na</strong>scimento, o gênero conserva<br />

elementos da archaica, segundo Paulo Bezerra, tradutor de Problemas<br />

da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, entendida como Antigüidade ou traços<br />

característicos e distintos dos tempos antigos. Essa archaica é<br />

eter<strong>na</strong>mente viva e tem a capacidade de renovar-se, daí Bakhtin afirmar<br />

que o gênero vive do <strong>presente</strong> mas sempre recorda o seu <strong>passado</strong>, o seu<br />

começo 413 , uma espécie de representante da memória criativa no<br />

processo de desenvolvimento, o que assegura sua continuidade e<br />

unidade.<br />

Nos contornos dessa dinâmica, Bakhtin fala de alguns gêneros<br />

denomi<strong>na</strong>dos pelos antigos de “sério-comico”: os mimos de Sófron, o<br />

“diálogo de Sócrates” (como gênero específico), a literatura dos<br />

simpósios (referindo-se, segundo Bezerra, à literatura que descreve os<br />

festins e bebedeiras <strong>na</strong> Grécia Antiga), a primeira Memorialística (Íon de<br />

Quio, Crítias), os panfletos, a poesia bucólica e a “sátira menipéia” que<br />

estariam em oposição <strong>ao</strong>s gêneros sérios: epopéia, tragédia, a história,<br />

etc. Todos esses gêneros, em maior ou menor grau, estão imbuídos de<br />

uma visão car<strong>na</strong>valesca de mundo. Os gêneros car<strong>na</strong>valescos seriam<br />

aqueles que sofreram influências do espírito car<strong>na</strong>valesco antigo e<br />

medieval. Na mesma linhagem do diálogo socrático, estaria a sátira<br />

menipéia, cuja denomi<strong>na</strong>ção se deve <strong>ao</strong> filósofo Menipo de Gandara,<br />

século II a.C., mas introduzido por Marco Terêncio Varro, no século I<br />

a.C., escritor romano das “saturae menippeia”. A menipéia configura-se<br />

como uma farsa <strong>na</strong> qual se encontram misturados o erudito, o burlesco,<br />

412 Frase de Guel Arraes. PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel já fez. Disponível em:<br />

. Acesso em: 31 abril 2004.<br />

413 BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 106.<br />

223


o popular, promove, portanto, a quebra de rigidez genérica, à medida<br />

que encerra em si vários gêneros. O aspecto que mais se sobressai,<br />

entretanto, é o cômico, buscando a criação de situações inusitadas,<br />

objetivando a comprovação da verdade.<br />

Segundo Bakhtin, três seriam a peculiaridades do gênero sériocômico.<br />

Primeiro, a nova maneira de tratar a realidade, que seria não só<br />

objeto da representação. O dia-a-dia tomado como o ponto de partida<br />

da interpretação e formalização da realidade. Os heróis, os mitos, as<br />

perso<strong>na</strong>lidades históricas são atualizadas, funcio<strong>na</strong>m <strong>na</strong> vida em<br />

processamento. Decorrente disso, os gêneros sério-cômicos não se<br />

baseiam <strong>na</strong> lenda e sim <strong>na</strong> experiência e <strong>na</strong> fantasia livre, tratando<br />

aquela com espírito crítico e, até mesmo cínico e desmascarador. A<br />

terceira peculiaridade seria a pluralidade de estilos, a renúncia à<br />

unicidade estilística. Na prática, significa dizer fusão do sublime e do<br />

vulgar, do sério e do cômico, [...] dos gêneros intercalados: cartas,<br />

manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros<br />

elevados, citações recriadas em paródias 414 etc. Muitas vezes, ocorre a<br />

fusão entre prosa e verso, a inclusão de jargões e até mesmo de<br />

dialetos.<br />

Em O Auto da Compadecida, deparamo-nos com o dia-a-dia de<br />

dois “filhos do mundo” e sua circunstância imediata – o trabalho, os<br />

afetos, a religião – como ponto de partida e o objeto da representação.<br />

Perso<strong>na</strong>lidades – algumas importantes, como o Major, o Bispo e mesmo<br />

o Padre numa vila interiora<strong>na</strong> – são tor<strong>na</strong>das perso<strong>na</strong>gens e passam a<br />

agir <strong>na</strong> atualidade i<strong>na</strong>cabada da vida. A fantasia e a imagi<strong>na</strong>ção correm<br />

soltas e mesmo as ações heroicizadas pela religião descem do céu e<br />

circunscrevem-se no espaço da vida, <strong>na</strong> zo<strong>na</strong> do contato imediato e até<br />

profundamente familiar, como diz Bakhtin. A ce<strong>na</strong> do julgamento é um<br />

exemplo claro dessa situação. Por isso a emergência da crítica séria<br />

feita pela via do cômico. Os diálogos relatados de Chicó – seus causos –<br />

são curiosos, engraçadíssimos e altamente imagi<strong>na</strong>tivos e fantasiosos; o<br />

sublime da fé, da crença, não chegando à vulgaridade pelo seu risível,<br />

414 BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 108.<br />

224


afastam-se da seriedade requerida pelo oficial: a pseudo-morte de Chicó<br />

assim como a de Grilo, a safadeza praticada com Severino em nome de<br />

Padim Ciço, os modos e o comportamento de Grilo no julgamento. Os<br />

gêneros intercalados: o verso invocatório a Nossa Senhora, os<br />

provérbios, a citação canônica, também são elementos <strong>presente</strong>s a<br />

comprovarem a presença do sério-cômico. Em relação <strong>ao</strong> código icônico<br />

temos o modo como se marca a serialidade: aparece um estandarte – e<br />

essa é uma paixão de Suassu<strong>na</strong> – num estilo de cordel, lembrando as<br />

procissões e desfiles tradicio<strong>na</strong>is como as cavalhadas, onde se lê a<br />

seqüência e o título do capítulo: Episódio de hoje: A morte da cachorra.<br />

Grilo e Chicó fazendo a divulgação do filme que será exibido <strong>na</strong> igreja, à<br />

noite, portando placas pirulito, Chicó berra as qualidades do filme e<br />

Grilo saracoteia, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que reforça a fala de Chicó. Todas<br />

essas intromissões pertencem a outros campos discursivos e inseridas<br />

no segundo bakhtiniano são elementos dele integrantes, agora gênero<br />

sério-cômico 415 . Até hoje é possível encontrar, mesmo <strong>na</strong>s grandes<br />

cidades, esse tipo de técnica de propaganda – os homens-placas.<br />

Palhaços, homens de per<strong>na</strong>-de-pau, homens-sanduíches são utilizados<br />

para divulgarem i<strong>na</strong>ugurações de lojas, espetáculos circenses, shows e<br />

outros acontecimentos sócio-culturais em cidades peque<strong>na</strong>s, bairros<br />

afastados. Até mesmo <strong>na</strong> região central de grandes cidades como São<br />

Paulo e Rio de Janeiro, encontram-se esse tipo de divulgação: comprase<br />

ouro, tira-se foto. Ou seja, é a linguagem publicitária de antanho,<br />

subsistindo <strong>na</strong> contemporaneidade. Essa linguagem é apropriada e<br />

passa a integrar o todo da obra televisiva. E mais, cria um contraste,<br />

sob certo ponto de vista cômico, considerando-se a tecnologia em uso<br />

para a feitura do produto.<br />

415 A importância do gênero sério-cômico para Bakhtin está em seu papel <strong>na</strong> evolução do<br />

romance europeu. O gênero romanesco se assentaria em três raízes básicas: a retórica, a<br />

épica e a car<strong>na</strong>valesca. É no gênero sério-cômico que Bakhtin situa os pontos de partida da<br />

obra de <strong>Do</strong>stoiévski.<br />

225


Figura 24 – A linguagem publicitária em Taperoá<br />

A fantástica transformação do adro da igreja em trono de Deus<br />

para o julgamento fi<strong>na</strong>l – lugar das últimas coisas. Independente da<br />

tecnologia e dos truques utilizados, o que se concretiza como linguagem<br />

é a fantasia exuberante. A igreja é transformada, repenti<strong>na</strong>mente, em<br />

uma passarela <strong>na</strong> qual a morte é representada pelos passantes, <strong>ao</strong> som<br />

de uma ladainha. Ce<strong>na</strong> de enorme beleza plástica, João Grilo está<br />

deitado no chão, com uma vela entre as mãos, despertando, enquanto<br />

<strong>ao</strong> seu lado o povo passa e a câmera aproxima-se, faz um close dos pés<br />

calçados por sandálias de couro – objeto emblemático para o nordestino<br />

– de um passante. A abertura súbita da porta do inferno, a ventania que<br />

faz com que João Grilo se agarre a uma colu<strong>na</strong> e acabe por ‘flutuar’,<br />

numa posição impossível <strong>ao</strong> ser humano. Especialmente a<br />

transformação do quadro pintado <strong>ao</strong> fundo do altar da igreja que se<br />

tor<strong>na</strong> o trono de Cristo, o tribu<strong>na</strong>l celeste, são exemplos de introdução<br />

do fantástico, para os crentes, milagre, com a fi<strong>na</strong>lidade de criar<br />

situações extr<strong>ao</strong>rdinárias para mostrar aquilo que é a verdade a ser<br />

transmitida: todos se deparam com a morte e serão julgados pelo juiz<br />

supremo. Não se pode negar à ce<strong>na</strong> criada a intromissão do gênero<br />

sagrado. O livro de Apocalipse de São João é pródigo em imagens<br />

fantásticas, que dizem respeito às últimas coisas, e muitas são as<br />

226


emissões bíblicas <strong>ao</strong> julgamento, <strong>ao</strong> inferno, <strong>ao</strong> céu que devem ter<br />

servido de referência <strong>ao</strong>s criadores, e que não deixam de ser, elas<br />

mesmas, fantásticas, resguardando aqui o respeito <strong>ao</strong> sagrado.<br />

Para se pensar gênero, formato, e/ou demais categorizações<br />

possíveis em relação a produtos televisivos, há de levar-se em conta,<br />

antes de tudo, as especificidades do veículo, ele mesmo ainda um tanto<br />

desconhecido em suas possibilidades, ainda se apresentando, face às<br />

mudanças e desenvolvimento tecnológicos, um ‘mutante’. A cada<br />

momento, novas e formidáveis possibilidades apresentam-se <strong>ao</strong>s que o<br />

utilizam como aparato comunicacio<strong>na</strong>l.<br />

No caso do gênero (melhor seria utilizar gêneros), só se tor<strong>na</strong><br />

viável o seu estudo, uma possível identificação e classificação pela<br />

análise da grade de programação, que se apresenta variada de emissora<br />

para emissora. Isso em grande parte já está feito sob a égide de nossos<br />

pesquisadores acadêmicos 416 (estamos pensando, especialmente,<br />

pesquisadores brasileiros, ligados à ficcio<strong>na</strong>lidade televisiva <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />

que é nosso campo de interesse). Entretanto, para pensarmos<br />

ficcio<strong>na</strong>lidade televisiva, temos de considerar o que já foi estabelecido,<br />

em termos mais genéricos, sobre gêneros televisivos.<br />

Pensemos inicialmente o termo ficção televisiva como i<strong>na</strong>ugural e<br />

que se desenrola em dramaturgia televisiva. Para Fadul 417 , a televisão<br />

brasileira, pensada como lazer, tem apresentado dois grandes gêneros:<br />

ficção e outros gêneros de entretenimento. Dessa categorização ela<br />

afirma ser a telenovela um gênero a partir do qual origi<strong>na</strong>r-se-iam a<br />

minissérie e, num dado momento, requerida pela situação, exigências<br />

mercadológicas e do veiculo, a microssérie, consideradas, ambas, como<br />

sub-gêneros. Portanto, a minissérie só foi possível por ter como<br />

antecessora a matriz telenovela, ou seja, estabelece um elo com o<br />

<strong>passado</strong>, com o já dado e permite o futuro, a microssérie. Para Bakhtin,<br />

um gênero que como os demais correspondem a situações típicas da<br />

416 Ver obras de Borelli, Fadul, Lobo, Motter, Ortiz, Sousa, dentre outros.<br />

417 FADUL, A<strong>na</strong>maria. Comentário registrado <strong>na</strong> fala da professora em participação <strong>na</strong> banca<br />

exami<strong>na</strong>dora da tese de doutorado O Protagonismo da Dramaturgia <strong>na</strong> TV Brasileira, de<br />

Maria Ataíde Malcher em 23 de setembro de 2005. Escola de Comunicações e Artes da<br />

Universidade de São Paulo.<br />

227


comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns<br />

contatos típicos dos significados [...] com a realidade concreta em<br />

circunstâncias típicas 418 . Num mundo em que a velocidade, a rapidez são<br />

virtudes muito mais valorizadas do que a reflexão, a maturação com<br />

sua exigência de lentidão; o tempo que se escoa é capital e precisa ser<br />

muitíssimo bem aproveitado, os modos de <strong>na</strong>rrar buscam alter<strong>na</strong>tivas<br />

para acompanhá-lo. Uma minissérie, melhor uma microssérie, nos leva<br />

de cá pra lá em algumas noites, às vezes, ape<strong>na</strong>s quatro. Bem de acordo<br />

com a realidade e as circunstâncias concretas. Quando um país sofre<br />

tanto pela i<strong>na</strong>nição de um governo paralisado por escândalos,<br />

rememorar os 50 anos em 5 de JK é um tema típico para um momento<br />

típico. Resguarde-se aqui a idéia de ser a minissérie comemorativa dos<br />

trinta anos da posse do Presidente Juscelino Kubitschek. Muito bemvinda<br />

a minissérie JK.<br />

11.1 Car<strong>na</strong>valização<br />

Em sua obra semi<strong>na</strong>l A Cultura Popular <strong>na</strong> Idade Média e no<br />

Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de François Rabelais, Bakhtin não intenta<br />

escrever uma história do riso, do cômico, da derrisão, mas constrói uma<br />

sólida teoria sobre a cultura cômica popular. Para tal, serve-se da<br />

literatura, dos ritos e práticas tradicio<strong>na</strong>is cultivados <strong>na</strong> Idade Média.<br />

<strong>Do</strong>is elementos são essenciais <strong>ao</strong> conceito de cultura popular<br />

bakhtiniano: o universo car<strong>na</strong>valesco e o realismo grotesco que têm no<br />

riso sua ancoragem mestra. O riso ocupa lugar essencial, altamente<br />

expressivo <strong>na</strong>s formas e sistema de imagens, que compunham o mundo<br />

das manifestações car<strong>na</strong>valescas.<br />

O mundo das formas e manifestações do riso opõe-se à cultura<br />

oficial, <strong>ao</strong> tom sério, religioso. Manifesta-se de forma bastante variada<br />

em festas públicas car<strong>na</strong>valescas, ritos e cultos cômicos especiais, em<br />

418 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 293.<br />

228


que bufões e tolos, gigantes e anões, monstrengos, palhaços são<br />

elementos importante; literatura paródica, teatro e, atualmente, em<br />

produtos culturais de massa. Todas essas manifestações possuem,<br />

entretanto, unidade de estilo e constituem partes, parcelas da cultura<br />

cômica popular, especialmente daquilo que Bakhtin chama de cultura<br />

car<strong>na</strong>valesca u<strong>na</strong> e indivisível. Essa unidade e indivisibilidade devem<br />

ser observadas cuidadosamente quando da utilização dos conceitos<br />

bakhtinianos para a<strong>na</strong>lisar a cultura contemporânea. Não se trata de<br />

tão somente transpor, transferir conceitos. Há que se ater às idéias<br />

bakhtinia<strong>na</strong>s e mantê-las contextualizadas. Isso só nos parece possível<br />

trafegando em todo o universo teórico e conceitual, abarcando,<br />

portanto, o pensamento dialógico do autor e suas categorias.<br />

A multiplicidade de manifestações da cultura cômica popular é<br />

subdividida por Bakhtin em: 1) formas dos ritos e espetáculos (festejos<br />

car<strong>na</strong>valescos, obras cômicas representadas <strong>na</strong> praça pública etc.); 2)<br />

obras cômicas verbais (inclusive as paródias) e de diversas <strong>na</strong>turezas:<br />

orais ou escritas, representadas em latim – Bakhtin refere-se aqui às<br />

obras antigas – ou em língua vulgar; 3) formas e gêneros do vocabulário<br />

familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.)<br />

Categorias heterogêneas, mas que refletem um mesmo aspecto<br />

cômico do mundo e inter-relacio<strong>na</strong>das, combi<strong>na</strong>ndo-se de diferentes<br />

maneiras. Portanto, entendemos car<strong>na</strong>valização como uma visão de<br />

mundo, do homem, das relações huma<strong>na</strong>s diferente e deliberadamente<br />

não-oficial, exterior à Igreja e <strong>ao</strong> Estado, poderes domi<strong>na</strong>ntes. É a<br />

construção de um segundo mundo, uma segunda vida <strong>ao</strong>s quais o<br />

homem pertencia e vivia em determi<strong>na</strong>das ocasiões, criando assim uma<br />

dualidade de mundo. Tem um valor de concepção do mundo:<br />

(...) o riso (...) é uma das formas capitais pelas quais se<br />

exprime a verdade sobre o mundo <strong>na</strong> sua totalidade, sobre<br />

a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e<br />

universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente,<br />

embora não menos importante (talvez mais) do que o sério;<br />

por isso a grande literatura (que coloca por outro lado<br />

problemas universais) deve admiti-lo da mesma forma que<br />

229


o sério: somente o riso; com efeito, pode ter acesso a certos<br />

aspectos extremamente importantes do mundo. 419<br />

Essa dualidade <strong>na</strong> percepção do mundo não era novidade <strong>na</strong><br />

Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento. Já existia entre os povos primitivos em<br />

que, <strong>ao</strong> lado do sério, manifestava-se o cômico: a conversão das<br />

divindades em objetos de burla e blasfêmia. Entre os gregos antigos,<br />

deuses e heróis convivendo com seus sósias paródicos, mitos sérios e os<br />

injuriosos e cômicos no mesmo espaço. É preciso observar que numa<br />

sociedade cujo regime não conhecia classes nem Estados, os aspectos<br />

cômicos da divindade, do mundo e do homem tinham algo de sagrado e<br />

por isso ‘oficiais’. Estabelecido o regime de classes e de Estado, as<br />

formas cômicas perdem seu status e tor<strong>na</strong>m-se, com o passar do tempo,<br />

não-oficiais, modificam-se seus sentidos, tor<strong>na</strong>m-se mais complexos e<br />

profundos para se transformarem em formas fundamentais de<br />

expressão da sensação popular do mundo, da cultura popular 420 .<br />

O princípio cômico liberta-se completamente da religião, do<br />

misticismo, da piedade. Ao mesmo tempo, as formas cômicas são<br />

desprovidas de caráter encantatório e mágico, <strong>na</strong>da pedem, <strong>na</strong>da<br />

exigem. Formas exteriores à Igreja, à religião, pertencem à esfera<br />

particular da vida cotidia<strong>na</strong>, daí seu caráter concreto e sensível.<br />

Apresentam um quê de jogo, relacio<strong>na</strong>das às formas animadas do<br />

espetáculo teatral, mas seu núcleo não é uma forma puramente<br />

artística e, de forma geral, não entra no domínio da arte, fica <strong>na</strong><br />

fronteira vida/arte: a vida apresentada com os elementos característicos<br />

da representação. Mesmo porque o car<strong>na</strong>val ignora a distinção<br />

ator/espectador. Os espectadores não assistem <strong>ao</strong> car<strong>na</strong>val, eles o<br />

vivem. Enquanto dura o car<strong>na</strong>val não há como não vivê-lo, pois ele não<br />

conhece nenhuma fronteira, suas leis são as da liberdade. De caráter<br />

universal, é um estado do mundo: seu re<strong>na</strong>scimento e sua renovação.<br />

Por isso a participação de todos: é a própria vida que representa e<br />

419 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 41.<br />

420 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 5.<br />

230


interpreta uma outra forma, que preconiza liberdade de sua realização,<br />

isto é, seu próprio re<strong>na</strong>scimento e renovação sob melhores princípios,<br />

uma vida nova, uma vida outra.<br />

Bufões e bobos são perso<strong>na</strong>gens característicos dessa cultura e<br />

de algum modo representantes consagrados do princípio car<strong>na</strong>valesco,<br />

não são atores e sim bobos e bufões em sua vida cotidia<strong>na</strong>, daí<br />

encar<strong>na</strong>rem um tipo de vida especial, <strong>ao</strong> mesmo tempo real e ideal. O<br />

car<strong>na</strong>val é a segunda vida do povo baseado no princípio do riso, é sua<br />

vida festiva. E a festa, qualquer que seja seu tipo, é uma forma<br />

primordial, marcante da civilização huma<strong>na</strong> 421 . As festividades tiveram e<br />

têm um conteúdo essencial, um sentido profundo e sempre expressam<br />

uma concepção de mundo e não ape<strong>na</strong>s o que Bakhtin chama de<br />

exercícios de regulamentação e aperfeiçoamento do processo de<br />

trabalho – o descanso, a trégua do trabalho – cuja sanção vem dos<br />

meios oficiais. A festa deve ter a chancela superior do mundo dos ideais,<br />

sem o que não pode haver clima festivo.<br />

Marcadamente relacio<strong>na</strong>das com o tempo, o <strong>na</strong>tural (cósmico), o<br />

biológico e o histórico, as festas ligam-se <strong>ao</strong>s períodos de crise <strong>na</strong> vida<br />

da <strong>na</strong>tureza, do homem, da sociedade. Na base, sempre a alternância e<br />

a renovação, a morte e a ressurreição. A festa é a forma com a qual se<br />

reveste a outra vida, a segunda vida do povo, caracterizada pela<br />

universalidade, liberdade, igualdade e abundância. A festa oficial não<br />

cria essa segunda vida, nem arranca o povo de sua vida formal,<br />

organizada, da ordem existente. Ao contrário, o oficial, consagra,<br />

sancio<strong>na</strong> a ordem, o regime em vigor. É uma forma de homologar as<br />

regras: hierarquias, valores, normas, tabus de todas as espécies em<br />

vigor. A festa oficial aponta sempre para os ideais de verdade eter<strong>na</strong>,<br />

imutável, perene e peremptória. Portanto, não comporta o riso, o<br />

grotesco, a alegria desmesurada, sem censura do car<strong>na</strong>val.<br />

O car<strong>na</strong>val opõe-se a toda e qualquer perpetuação, a todo<br />

aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda<br />

421 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 7.<br />

231


incompleto 422 . O banimento de toda e qualquer hierarquia consagra a<br />

igualdade, o contato livre e familiar entre pessoas separadas <strong>na</strong> vida<br />

cotidia<strong>na</strong> por barreiras intransponíveis, quer sociais, raciais, genéricas.<br />

É essa segunda vida que permite o estabelecimento de novas relações,<br />

verdadeiramente huma<strong>na</strong>s das quais a alie<strong>na</strong>ção desaparece. Para<br />

Bakhtin, o car<strong>na</strong>val é o verdadeiro humanismo experimentado no corpo,<br />

nesse contato vivo, material e sensível.<br />

A abolição da hierarquia, o nivelamento dos desiguais provoca o<br />

surgimento, <strong>na</strong> praça pública, de um novo tipo de comunicação<br />

inconcebível fora da festa: vocabulário e gestos, liberação das normas<br />

correntes de etiqueta e da decência. Em conseqüência, surge uma<br />

linguagem típica, a car<strong>na</strong>valesca, caracterizada pela lógica do avesso,<br />

do contrário, das permutações constantes – do alto e do baixo; da face e<br />

do traseiro; das formas paródicas, dos modos travestidos – um mundo<br />

<strong>ao</strong> revés. Bakhtin lembra que essa linguagem foi utilizada por Erasmo,<br />

Shakespeare, Cervantes, Tirso de Moli<strong>na</strong> e também Quevedo. Esse é um<br />

dado interessante para se entender Suassu<strong>na</strong> e, conseqüentemente<br />

Arraes de O Auto da Compadecida, pois o próprio Suassu<strong>na</strong> afirma que<br />

o fato histórico que deu origem à cultura européia foi semelhante <strong>ao</strong><br />

que originou a cultura brasileira. Na Europa foram os ‘bárbaros’ que<br />

recriaram e reinterpretaram a cultura greco-roma<strong>na</strong> e fundaram a<br />

medieval. Aqui, teriam sido os povos negros e vermelhos – também<br />

chamados ‘bárbaros’ que recriaram a cultura barroco-ibérica, que ele<br />

considera ser medieval, dando origem à cultura brasileira, que entre o<br />

povo mantém seu núcleo ligado aquilo que por falta de uma palavra<br />

melhor, nós chamamos de medieval 423 . Segundo Amálio Pinheiro 424 o<br />

brasileiro é tupi-negróide-imigrante. Nossa cultura é, de saída, plural,<br />

múltipla Essa multiplicidade encontra, nos modelos populares ibéricos,<br />

material e procedimentos dos quais se apropria e conjuga-os com<br />

422 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 9.<br />

423 SUASSUNA, Ariano. Carrero e a Novela Armorial. Apud NOGUEIRA, Maria Aparecida.<br />

Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro tresmalhado, p. 11.<br />

424 PINHEIRO, Amálio. Lotman e a questão das sociedades mestiças. Comunicação no I<br />

Encontro Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para o estudo da Semiosfera. Centro Universitário Belas Artes, São<br />

Paulo, promoção do Oktiabr, Grupo de Pesquisa para o estudo da Semiosfera, São Paulo:<br />

PUC, agosto 2005.<br />

232


efeitos de ce<strong>na</strong>s próprios do teatro de fi<strong>na</strong>l do século XIX e início do XX,<br />

e <strong>na</strong> contemporaneidade – espaço-tempo da Compadecida – os dispõe<br />

em suportes midiáticos, utilizando-se para tal de tecnologia avançada.<br />

Ao modelo ibérico, equivalente <strong>ao</strong> imigrante, nós, brasileiros,<br />

acrescentamos o já existente em Pindorama, o tupi e o negro que nos foi<br />

trazido pela escravidão.<br />

11.2 O riso<br />

O Palhaço suassuniano é um contador de histórias. No teatro<br />

conduz o fio <strong>na</strong>rrativo, faz as ligações entre os atos, recruta os<br />

perso<strong>na</strong>gens, organiza o cenário. O Palhaço remete à infância, de certa<br />

forma resgata-a, e à memória. É o Palhaço que dá uma sugestão sobre a<br />

continuação de uma história que está sendo <strong>na</strong>rrada 425 . Na infância está<br />

o circo, a festa, o momento de suspensão do cotidiano triste do menino<br />

órfão de pai, <strong>na</strong> terra ressequida do sertão. Lá estão as experiências e<br />

as perso<strong>na</strong>gens, que permitiram a construção do mundo ficcio<strong>na</strong>l,<br />

também ele outro, que se configura numa festa, no sentido bakhtiniano,<br />

pois expressa a visão de mundo, o sentimento de mundo, sob as lentes,<br />

por isso reflexo e refração, do dramaturgo. Mais uma vez justifica-se a<br />

postura suassunia<strong>na</strong> de decepção pela exclusão do Palhaço <strong>na</strong> obra<br />

teledramatúrgica. Entretanto, Arraes descarta o Palhaço, não o humor<br />

do palhaço, não o clima circense, festivo postulado pelo autor primeiro.<br />

O diálogo televisivo mantém, como já anotado em outro momento deste<br />

trabalho, o tom do texto que serve de base à estilização, os trocadilhos,<br />

repetições, as arapucas lingüísticas, que resultam em mal entendidos<br />

entre perso<strong>na</strong>gens e que constituem ou alavancam a história, são falas<br />

muito próprias de um palhaço. Por outro lado, a seleção, a escolha dos<br />

atores, especialmente os que personificam a dupla central, os recursos<br />

425 BENJAMIN, Walter. O <strong>na</strong>rrador: considerações sobre a Obra de Nicolai Leskov. In:<br />

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica: arte e política: ensaios sobre a literatura e história da<br />

cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 200. Obras escolhidas.<br />

233


histriônicos de que são portadores, a direção impressa <strong>ao</strong> espetáculo<br />

desde cenário, ambiente, figurino, caracterização até a interpretação<br />

propriamente dita, imprimem o clima circense que é o do riso.<br />

Bakhtin chama a atenção para o caráter festivo desse riso visto<br />

não ape<strong>na</strong>s como uma reação individual diante de um fato cômico ou<br />

ridículo. É patrimônio do povo. Universal, atinge pessoas e coisas, o<br />

mundo é percebido em seu aspecto jocoso, risonho. O riso car<strong>na</strong>valesco<br />

escarnece dos próprios burladores, daí sua diferença maior em relação<br />

<strong>ao</strong> riso moderno do qual o autor satírico se exclui, fica fora do objeto<br />

aludido no/pelo riso. Esse é outro dado fundamental para se a<strong>na</strong>lisar o<br />

moderno, empregando categorias bakhtinia<strong>na</strong>s. Suassu<strong>na</strong>, contador de<br />

histórias, parece-nos ter no humor, no riso, uma ancoragem para<br />

compensar o palhaço frustrado que diz habitar seu ser. Entre 1972 e<br />

1973, deu contornos mais nítidos a essa faceta com o lançamento do<br />

Alma<strong>na</strong>que Armorial do Nordeste, contendo idéias, enigmas,<br />

informações, comentários e a <strong>na</strong>rração de casos acontecidos ou<br />

inventados, contados em prosa e em verso, no ‘Livro Negro do Cotidiano’,<br />

pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes, Ariano Suassu<strong>na</strong> 426 .<br />

Como todo alma<strong>na</strong>que, este, uma colu<strong>na</strong> jor<strong>na</strong>lística, é um espaço de<br />

riso no qual Ariano inventa histórias, que emprestam algum sentido a<br />

meus atos e palavras, àquilo que, por <strong>na</strong>tureza, é desorde<strong>na</strong>do e sem<br />

brilho 427 . A forma escolhida por Suassu<strong>na</strong> para <strong>na</strong>rrar é o humor, não o<br />

gratuito, debochado e rasteiro, mas o humor feito para dizer do negro<br />

cotidiano da humanidade. Suas invenções <strong>na</strong>rrativas por mais trágicas<br />

e sanguinolentas que sejam, acabam sempre tendo um elemento de<br />

riso, de humor. Haja vista seu texto Romance d’A Pedra do Reino e o<br />

Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta em que, num ponto alto da <strong>na</strong>rrativa,<br />

ocorre um duelo – Arraes monta um duelo de três, em sua Compadecida<br />

– entre duas perso<strong>na</strong>gens, Samuel e Clemente, mentores intelectuais do<br />

<strong>na</strong>rrador e herói, Quader<strong>na</strong>, editor de alma<strong>na</strong>ques, decifrador e<br />

astrólogo – Chicó apresenta um currículo semelhante a Rosinha – que<br />

426 NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro tresmalhado, p. 156.<br />

427 NOGUEIRA, Maria Aparecida. Ariano Suassu<strong>na</strong>: o cabreiro tresmalhado, p. 157.<br />

234


exercia a função de bibliotecário <strong>na</strong> vila de Taperoá – a mesma de Grilo<br />

e Chicó – em que as armas escolhidas são, no mínimo, risíveis:<br />

[...] Mas nossa perplexidade durou pouco, e logo eu e<br />

Malaquias começamos a rir <strong>ao</strong> mesmo tempo.<br />

– São dois penicos! – disse Malaquias com uma expressão<br />

que exasperou logo o Fidalgo. – Era esse o telengo-tengo,<br />

Professor Clemente?<br />

– O telengo-tengo era esse! – confirmou o Filósofo.<br />

Samuel empalideceu e gaguejou exasperado:<br />

– Que brincadeira de mau gosto é essa, Clemente? Você<br />

está gracejando com uma coisa séria como essa refrega?<br />

– Gracejando o quê? Por acaso eu iria faltar com o respeito<br />

a um acontecimento no qual vou arriscar minha vida?<br />

Samuel, para mim, a Revolução é uma coisa sagrada!<br />

– E como é que vem com uma palhaçada dessas? Como é<br />

que escolhe dois objetos tão ridículos como armas para<br />

nossa pug<strong>na</strong>?<br />

– Escolhi, em primeiro lugar, porque a Esquerda com seus<br />

pontos de vista sérios e científicos, não vê <strong>na</strong>da de ridículo<br />

em objetos úteis. Em segundo lugar, para desmoralizar a<br />

Fidalguia. Em terceiro lugar, para mostrar como minha<br />

luta é realmente uma luta do Povo, uma luta popular. E<br />

fi<strong>na</strong>lmente, para desmascarar de uma vez para sempre<br />

sua figura empafiada de falso Fidalgo dos engenhos de<br />

Per<strong>na</strong>mbuco! Você vai morrer por minha mão, hoje,<br />

Samuel. E, o que é pior, vai morrer levando penicadas!<br />

Duas tragédias de uma só vez: primeiro, porque você vai<br />

morrer e a morte é sempre uma coisa desagradável;<br />

depois, porque vai morrer de morte engraçada, de modo<br />

que nunca mais deixarão de rir à sua custa. “Como morreu<br />

o <strong>Do</strong>utor Samuel Wan d’Ernes, descendente do homem de<br />

confiança do Príncipe João Maurício de Nassau?” –<br />

perguntarão uns. E os outros responderão: “Morreu duma<br />

penicada que levou <strong>na</strong> cabeça, dada por um Filósofo<br />

negro-tapuia e comunista!” 428<br />

É o riso em que o burlador escarnece de si próprio.<br />

Em O Auto da Compadecida, usando a linguagem popular,<br />

‘humor rasgado’ para contar a corrupção e a miséria, o amor e a<br />

traição, sobretudo a misericórdia, colocando em ce<strong>na</strong> a esperteza, a<br />

alegria, a coragem e a fé desse povo tão sofrido e ... risonho, o trabalho<br />

de Guel – e seus companheiros Adria<strong>na</strong> e João – apresenta o mesmo<br />

humor que se espraia pela obra de Suassu<strong>na</strong>. Arraes, como seu êmulo<br />

428 SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Rio de<br />

Janeiro: José Olympio, 2005, p. 283-284.<br />

235


(nesse trabalho), transfigura o real em algo prazenteiro, jovial, alegre e<br />

sedutor. O que notamos é o humor como ponto central e certeiro no<br />

trabalho “gueliano”.<br />

Em resposta à pergunta se o humor traduz uma maneira de ver o<br />

mundo, Arraes declara ser o humor seu alter-ego, aquilo que o salva da<br />

sisudez, mesmo porque se considera otimista, mas não engraçado. De<br />

formação cinematográfica, não esperava fazer televisão, quando retor<strong>na</strong><br />

<strong>ao</strong> Brasil. Para Arraes, a TV tem um lado car<strong>na</strong>valesco 429 . Não bastasse<br />

estar se iniciando num meio, já considerado diversão, entretenimento,<br />

Guel vai trabalhar com Sílvio de Abreu e Jorge Fer<strong>na</strong>ndo, em Guerra<br />

dos Sexos, uma comédia. Portanto, seu primeiro trabalho no Brasil,<br />

está nos padrões do humor, do risível. O imediatamente a seguir,<br />

Vereda Tropical, com suas to<strong>na</strong>lidades humorísticas, faz com que o<br />

vilão, Oliva (Walmor Chagas), não fosse de todo mau. Segundo as<br />

palavras de Guel, seu aprendizado televisivo, sua formação foi <strong>na</strong>s<br />

novelas, com Jorge Fer<strong>na</strong>ndo e Sílvio de Abreu. Foi com eles que aprendi<br />

a fazer humor 430 .<br />

TV Pirata, 1990, tor<strong>na</strong>-se um ‘cult’ da televisão brasileira (coisa<br />

que vai acontecer também com a Compadecida), melhor, do humor<br />

televisivo. Para Guel, a grande marca do programa é ter sido<br />

(...) feito por uma galera que era nova, a primeira turma de<br />

humor <strong>na</strong>scida com a televisão. Não é à toa que o assunto<br />

do programa era a própria TV. O TV Pirata era feito por<br />

comediantes mais do que por humoristas, isso talvez tenha<br />

a ver com a escolha dos atores. Eles não eram humoristas<br />

típicos, era uma surpresa para o público ver um ator ou<br />

uma atriz conhecida como o mocinho ou mocinha da novela<br />

fazer humor rasgado. Quando a Débora Bloch tirava sarro<br />

da mocinha da novela, isso dava credibilidade. 431<br />

Parece-nos que, para Arraes, o comediante tem mais características de<br />

ator – aquele que desempenha um papel em peças teatrais, televisivas –<br />

429 SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: só o humor constrói. Porto Seguro Brasil. Disponível em:<br />

. Acesso em: 31 abril<br />

2004. (Entrevista de Guel Arraes.)<br />

430 SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: só o humor constrói. Porto Seguro Brasil.<br />

431 SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: só o humor constrói. Porto Seguro Brasil.<br />

236


e como tal, sabe fingir, é um ‘farsante’ 432 . Pensamos aqui a possibilidade<br />

de se enquadrar nessa idéia de humorista diferente de comediante a<br />

presença de Montenegro e Autran, tidos e havidos como atores de teatro<br />

‘sério’, dramático, portanto não humoristas, se darem tão bem como<br />

comediantes em Guerra dos Sexos, que tinha a ‘ainda mãozinha’ de<br />

Arraes. Autran tem se revelado excelente comediante – muitas vezes só<br />

com o corpo e, principalmente, gestos de mãos – em suas últimas peças<br />

teatrais como Visitando o Sr. Green e Advinha quem vem para rezar, esta<br />

em cartaz atualmente no país. Nem é preciso falar em Marco Nanini e<br />

Marieta Severo liderando filhos e genro, mais a amiga, uma verdadeira<br />

usi<strong>na</strong> de fazer rir, em A grande família, em que o cotidiano é tratado sob<br />

a ótica do riso, ou seja, tem-se uma percepção car<strong>na</strong>valesca do dia-adia.<br />

Ainda em relação <strong>ao</strong> humor diz Arraes:<br />

Armação Ilimitada e TV Pirata foram autênticas criações<br />

de grupo, traduzindo para a televisão um verdadeiro<br />

movimento de renovação do humor e da comédia que<br />

estava acontecendo <strong>na</strong> época. O grupo Asdrúbal Trouxe o<br />

Trombone, o Teatro Besteirol, o Planeta Diário, os novos<br />

cartunistas de São Paulo e os textos de Luis Fer<strong>na</strong>ndo<br />

Verissimo são grandes representantes desse período. 433<br />

O grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, fundado em 1974, revela Luiz<br />

Fer<strong>na</strong>ndo Guimarães e Regi<strong>na</strong> Casé, em sua primeira montagem,<br />

Inspetor Geral 434 , de Nikolai Gogol. Em sua segunda fase, esse grupo<br />

monta, entre outras peças, Ubu Rei 435 , utilizando-se da linguagem<br />

circense, apresenta os atores vestidos de palhaços, figurino<br />

coloridíssimo, maquilagem desenhada como para circo. Manhas e<br />

Manias é outro grupo revelador de comediantes. Nele pontuam Débora<br />

432 Talvez exista nesse pensamento gueliano a influência da Comédie Française (1680) que,<br />

apesar do nome e do fato de guardar lembranças das ‘troupes de théâtres ambulantes’, não<br />

é um teatro de comédia e da mesma forma que ence<strong>na</strong> Moliére, ence<strong>na</strong> Corneille e outros<br />

grandes clássicos e trágicos. COMÉDIE-FRANÇAISE: Histoire de la Comédie Française.<br />

Disponível em: . Acesso em: 03 julho 2006.<br />

433 INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste. Disponível em:<br />

. Acesso em: 04 agosto 2004. Entrevista a<br />

A<strong>na</strong> Paula Conde, publicado origi<strong>na</strong>lmente no site: , em 13 maio<br />

2004.<br />

434 Refere-se à comédia teatral Inspetor Geral, de Nikolai V. GOGOL, datada de 1836.<br />

435 Refere-se à comédia teatral Ubu Rei, de Alfred JARRY.<br />

237


Bloch e Andréia Beltrão, antecipando o que fariam em Armação<br />

Ilimitada e TV Pirata. O pessoal do despertar de onde saem Maria<br />

Padilha, Zezé Polessa, Daniel Dantas. Grupos contemporâneos 436 , todos<br />

esses têm uma característica comum, postulada por Arraes para os<br />

programas de humor, a criação coletiva. E mais, os atores oriundos<br />

desses grupos estão freqüentemente nos trabalhos televisivos de Arraes.<br />

Note-se, ainda, nessa fala, a presença dos cartunistas paulistas,<br />

autores de peças criativas e inovadoras <strong>na</strong> área do humor. Verissimo<br />

dispensa comentários, seus textos não conseguem deixar de ser<br />

humorísticos por mais sérios que sejam tema e conteúdo. Como se<br />

observa, Guel Arraes busca material para seu trabalho <strong>na</strong> própria TV,<br />

até mesmo como assunto (TV Pirata), e também no teatro, no cartum,<br />

<strong>na</strong> crônica jor<strong>na</strong>lística.<br />

Expandindo a idéia de ser o humor uma característica de<br />

trabalho gueliano, retomamos Machado 437 quando afirma que a televisão<br />

é um meio pouco “visual”, fazendo uso da imagem, salvo exceções, de<br />

modo pouco sofisticado, e mais Herdeira direta do rádio, ela se funda<br />

primordialmente no discurso oral e faz da palavra sua matéria-prima<br />

principal. Interessam-nos essas anotações face <strong>ao</strong> que Saliba 438 , <strong>ao</strong><br />

a<strong>na</strong>lisar as representações humorísticas no Brasil desde a Belle Époque<br />

até o início da era radiofônica, afirma:<br />

(...) embora proveniente de alguns circuitos cultos da<br />

cultura letrada, manteve-se ligada, de alguma maneira, às<br />

práticas culturais que operavam noutros circuitos,<br />

certamente diferentes dos circuitos cultos e exclusivamente<br />

letrados. [...] A relação tem início no fato de alguns<br />

humoristas da Belle Époque, a cuja produção nos<br />

referimos nos capítulos anteriores, estarem envolvidos com<br />

setores da produção cultural que já utilizavam<br />

procedimentos de criação e linguagem muito variados: o<br />

teatro de revista, as várias formas de teatro musicado, a<br />

publicidade, ainda que sob forma de réclame jor<strong>na</strong>lístico<br />

etc. Todos aqueles praticantes do humorismo [...] não<br />

436 INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste. Disponível em:<br />

. Acesso em: 04 agosto 2004. Entrevista a<br />

A<strong>na</strong> Paula Conde, publicado origi<strong>na</strong>lmente no site: , em 13 maio<br />

2004.<br />

437 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 71.<br />

438 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística <strong>na</strong> história brasileira: da<br />

Belle Époque <strong>ao</strong>s primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,<br />

p.220.<br />

238


abando<strong>na</strong>ram a produção cômica, pelo contrário,<br />

desenvolveram-<strong>na</strong> utilizando-se de outros recursos<br />

cômicos, mais apropriados às revistas, às legendas das<br />

caricaturas, <strong>ao</strong> cinema, <strong>ao</strong>s jor<strong>na</strong>is falados, à música e,<br />

afi<strong>na</strong>l, <strong>ao</strong> humor radiofônico.<br />

Independente das questões ideológicas da implantação e<br />

desenvolvimento da radiofonia no Brasil, aqui não constantes por não<br />

fazerem parte de nosso recorte, é notória a influência e, dentro de<br />

alguns limites, até mesmo a determi<strong>na</strong>ção do rádio 439 no<br />

desenvolvimento da linguagem televisiva, mesmo porque muitos de seus<br />

nomes de relevo migraram para a TV, quando esta dava seus passos<br />

iniciais no Brasil. Mas é fundamental notar que a linguagem radiofônica<br />

também foi um constructo, que buscou elementos e modos de<br />

formalização em linguagens que lhe são anteriores:<br />

Enfim, quando o rádio procura uma linguagem<br />

própria, rápida, concisa e colada no dia-a-dia, suscetível<br />

de registrar o efêmero do cotidiano, ele vai encontrar<br />

aquilo que as criações humorísticas já haviam de certa<br />

forma elaborado em estreita ligação com o teatro<br />

musicado, o teatro de revista, e as primeiras gravações<br />

fonográficas, e até mesmo as primeiras produções<br />

cinematográficas: a mistura lingüística, a incorporação<br />

anárquica de ditos e refrões conhecidos por ampla maioria<br />

da população, a concisão, a rapidez, a habilidade dos<br />

trocadilhos e jogos de palavras, a facilidade <strong>na</strong> criação de<br />

versos prontamente adaptáveis à música, <strong>ao</strong>s ritmos<br />

rápidos da dança e <strong>ao</strong>s anúncios publicitários. 440<br />

Em ple<strong>na</strong> ‘guerra paulista’, nos idos de 1932, segundo relato de<br />

Saliba, Cornélio Pires utilizava-se do rádio e, em programetes, contava<br />

‘causos’ e ‘episódios’ pitorescos da guerra civil que mais tarde aparecem<br />

reunidos em um volume intitulado Chorando e rindo 441 . Como Pires,<br />

muitos são os nomes de humoristas que gravaram discos de humor,<br />

nos quais em forma de versos ou de ‘causos’ praticavam o humor<br />

paródico, e, por que não dizer, ‘ácido’ no sentido de fazer a crítica da<br />

sociedade da época. A língua e sua multiplicidade, já explorada <strong>na</strong> fala<br />

caipira proposta por Cornélio Pires, vê-se acrescida pela verdadeira<br />

439 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério, p. 71-72.<br />

440 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística <strong>na</strong> história brasileira: da<br />

Belle Époque <strong>ao</strong>s primeiros tempos do rádio, p. 228.<br />

441 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística <strong>na</strong> história brasileira: da<br />

Belle Époque <strong>ao</strong>s primeiros tempos do rádio, p. 242.<br />

239


abel promovida por Juó Ba<strong>na</strong>nére que, sob múltiplos heterônimos,<br />

falava de uma sociedade múltipla e heterogênea como sempre se<br />

apresentou a brasileira, numa linguagem também ela nem um pouco<br />

homogênea – o sotaque e o modo de ser japonês, tão bem explorado <strong>na</strong>s<br />

campanhas radiofônicas e televisivas da Semp Toshiba, já faziam parte<br />

do trabalho de Ba<strong>na</strong>nére nos anos 20/30, além de uma miscelânea<br />

árabe-judaica da qual só nos restam registros escritos, ainda de acordo<br />

com Saliba. O Programa Casé, levado <strong>ao</strong> ar <strong>na</strong> Rádio Philips e depois <strong>na</strong><br />

Rádio Transmissora, <strong>na</strong> década de 30, apresenta um comediante que se<br />

tor<strong>na</strong>ria famoso, Jorge Murad, que contava com forte sotaque “anedotas<br />

de turco”. Não pode ser esquecido nesse caldeirão de humor a figura de<br />

Adoniram Barbosa 442 que, não conhecendo esses humoristas, tomou<br />

contato com o rádio ouvindo as gravações de Juó Bo<strong>na</strong>nére e Cornélio<br />

Pires. Adoniram diverte o radiouvinte, a partir de 1941, com dezesseis<br />

interpretações de tipos comuns da vida brasileira, desde o negro esperto<br />

e tragicômico, passando pelo mascate de origem judia, chegando <strong>ao</strong> ator<br />

de teatro francês e <strong>ao</strong> cronista “delicheuse” dos bairros elegantes da<br />

cidade 443 . O rádio busca seus tipos e seu humor nos fatos do cotidiano<br />

brasileiro, nos tipos humanos que circulavam pelas vilas e mais ainda<br />

pela metrópole, que já era o Rio de Janeiro, e pela ainda provincia<strong>na</strong><br />

São Paulo. Aceitando o diálogo ser fundamento da televisão, como<br />

herdeira do rádio que ela é, o humor praticado pelo rádio está <strong>presente</strong><br />

no substrato do humor praticado pela televisão.<br />

Guel Arraes afirma, em uma de suas entrevistas, que seu<br />

interesse foi buscar, resgatar o humor radiofônico e reintegrá-lo <strong>na</strong><br />

televisão, diferenciando assim sua produção dos demais humorísticos<br />

televisivos. Sugerimos aqui a existência de um humor crítico, ácido,<br />

tendo como perso<strong>na</strong>gem a sociedade brasileira, e um humor no qual a<br />

própria TV se coloca, como elemento participante dessa sociedade que<br />

ela é: A TV no Brasil tem uma aceitação incomum. Ela é o teatro, o<br />

442 Não sendo assunto deste trabalho, remetemos para a obra citada – Saliba – em que outros<br />

famosos humoristas estão a<strong>na</strong>lisados: a dupla Lauro Borges e Castro Barbosa, Zé Fidélis e<br />

muitos outros.<br />

443 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística <strong>na</strong> história brasileira: da<br />

Belle Époque <strong>ao</strong>s primeiros tempos do rádio, p. 253.<br />

240


cinema e a TV do povo brasileiro 444 . Eu me sinto parte de um grupo de<br />

comédia, de pessoas entre os 30/40 anos, que cresceu com a TV e entrou<br />

para a televisão curtindo, não querendo destruí-la, mas sim usando-a em<br />

nosso favor 445 .<br />

A visão que Guel tem da televisão, como participante da vida, da<br />

sociedade brasileira, revela-se com características de análise, de<br />

distanciamento próprio de quem tenta percebê-la em suas relações com<br />

o sujeito social. Ao afirmar que a televisão é TV, e também cinema e<br />

teatro para o brasileiro, ele já está mostrando a multiplicidade. O<br />

telespectador, no processo de recepção, já se apropria, já negocia e<br />

incorpora <strong>na</strong>quilo que lhe é familiar, a TV, o teatro, o cinema <strong>ao</strong>s quais<br />

muitas vezes não tem acesso. O sentimento que Arraes tem em relação<br />

à TV, entretanto, é pessoal, é uma questão de afeto, de senti-la fazendo<br />

parte de sua vida pessoal e do grupo <strong>ao</strong> qual ele pertence. Essa<br />

dialética, se assim podemos dizer, tem sido demasiadamente favorável a<br />

ele como criador de mundos televisivos ficcio<strong>na</strong>is e para a televisão<br />

como veículo de grande alcance <strong>na</strong> sociedade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Ao entender a<br />

televisão em termos positivos, Arraes abre uma brecha para produtos<br />

culturais populares, em sentido duplo: <strong>na</strong>scidos coletivamente entre o<br />

povo e nem por isso menos complexos, <strong>ao</strong> mesmo tempo passíveis de<br />

elaboração intencio<strong>na</strong>lmente artística. Assim atuando, Guel derruba a<br />

barreira, ainda existente, erguida pelo segmento tido e havido como<br />

mais informado da sociedade, segregatório que classifica a<br />

programação, em geral, da TV como sendo ruim. A televisão pode sim<br />

ser lugar de produtos de qualidade, suporta mesmo os produtos<br />

culturais categorizados como sendo ‘nobres’. E mais, se pensarmos em<br />

televisão aberta, e este é o caso da produção guelia<strong>na</strong>, ela permite o<br />

acesso da maioria da população brasileira, levando em conta as<br />

relações que esta tem estabelecido com a TV, a produtos de qualidade.<br />

O Auto da Compadecida traz <strong>ao</strong> público televisivo um texto<br />

popular, considerado um clássico da dramaturgia brasileira, que<br />

444 INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste.<br />

445 REVISTA ÉPOCA. Íntegra da entrevista com o diretor Guel Arraes. Disponível em:<br />

. Acesso em: 18 agosto<br />

2004.<br />

241


esgata aspectos do teatro vicentino, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que busca,<br />

<strong>na</strong> cultura de extração popular, muitos de seus elementos. Era intenção<br />

de Arraes fazer um filme baseado <strong>na</strong> peça, já por ele percebida como<br />

vocacio<strong>na</strong>da para o cinema. Essa idéia encontra-se, de alguma maneira,<br />

já comprovada pela existência de duas obras cinematográficas<br />

antecessoras <strong>ao</strong> trabalho de Arraes: A Compadecida (George Jo<strong>na</strong>s,<br />

1969) e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (Roberto Farias, 1987).<br />

A oportunidade de fazer a microssérie acabou por atropelar o projeto<br />

cinematográfico. Aceita a idéia de rodar a microssérie com câmera<br />

35mm e em película, Arraes sente, no decorrer da feitura, que era o<br />

momento de aproveitar para fazer o filme e inicia o que ele chamou de<br />

mapeamento do roteiro para o cinema; filmou alter<strong>na</strong>tivas para atalhos<br />

<strong>na</strong> história e, antes mesmo de a microssérie ir para o ar, ele propõe a<br />

(re)feitura para o cinema. Portanto, Guel faz um périplo, que já está em<br />

sua cabeça quando declara que a TV, para o brasileiro, é televisão e<br />

também teatro e cinema. Ele coloca <strong>ao</strong> alcance do público, pelo<br />

processo de estilização, a possibilidade de se acercar de três produtos<br />

culturais diferenciados e, se pensarmos tecnologicamente, um quarto, o<br />

DVD.<br />

Por outro lado a microssérie, assim como os programas<br />

humorísticos (a televisão de modo geral) não podem ser olhados sob o<br />

prisma da unicidade e mesmo da bi<strong>na</strong>ridade de linguagens, senão o da<br />

multiplicidade. Todas as séries culturais penetram no objeto e entram<br />

em estado de fusão, de ebulição, interpenetração. O texto suassuniano<br />

não é somente uma base, um ponto de partida para o novo objeto que<br />

se tem. A microssérie toma para si e assimila o texto dramatúrgico,<br />

produzindo um outro objeto cultural. O mesmo acontece em relação <strong>ao</strong><br />

cinema que se encontra <strong>presente</strong> <strong>na</strong> microssérie, como está notado em<br />

sua descrição.<br />

Entre o homem de teatro e o homem de televisão existe em<br />

comum mais que latinidade-america<strong>na</strong>, a brasilidade. Existe o nordeste<br />

que está no humor, no riso que se resguarda <strong>na</strong> memória de ambos e<br />

para os quais tem um sabor popular. Um gosto, um cheiro de mato e<br />

fruta, um tom tropical, solar, uma textura terrosa de cor castanha.<br />

242


Guel Arraes defende a busca do humor que aproveite melhor os<br />

criadores regio<strong>na</strong>is sem cair no “folclorismo”. Temos uma cultura<br />

popular muito viva – e aqui não estou falando de folclore – que permeia<br />

as classes sociais 446 [...] O que me dá a cidadania é o fato de eu gostar<br />

tanto do humor nordestino. Sei que o entendo, pois humor aprende-se <strong>na</strong><br />

infância, para toda a vida. Sobre a especificidade do humor nordestino<br />

<strong>ao</strong> qual se refere, afirma Guel: A graça dele está no fato de ser vinculado<br />

a pessoas muito sérias. Aparentemente o nordestino é carrancudo, essa é<br />

a idéia que temos, mas essa tristeza é engraçada. O que é muito sério<br />

tem humor. 447<br />

O riso car<strong>na</strong>valesco, para Bakhtin, é de <strong>na</strong>tureza complexa, não<br />

uma reação individual a um fato engraçado, cômico isolado e sim riso<br />

festivo e patrimônio do povo, ou seja, tem um caráter popular, universal<br />

permite que o mundo seja percebido de modo cômico, jocoso. Um riso<br />

alvoroçado, mas burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e<br />

ressuscita simultaneamente 448 . Bakhtin chama a atenção para o fato de<br />

esse riso escarnecer dos próprios burladores. Essa característica é o<br />

que diferencia esse riso do riso satírico da época moder<strong>na</strong>. O riso<br />

popular, por expressar uma visão de mundo, e um mundo incompleto,<br />

sempre em mudança, em evolução, daí sua ambivalência, inclui o<br />

burlador. TV Pirata escarne do burlador, coloca a própria televisão como<br />

ator e centro de riso paródico e crítico, ‘pirateia’ a própria televisão.<br />

João Grilo precisa se safar da situação de enrosco em que está<br />

metido com o patrão. Monta toda uma trapalhada em que faz o Major e<br />

o Padre antagonistas. A situação é séria, mas mostrada de modo risível.<br />

A discussão entre os dois em que um fala da cachorra e o outro da filha<br />

mostra bem a inserção do falante no circuito da burla, isto é, eles estão<br />

inseridos no riso burlador. As ce<strong>na</strong>s iniciais, especialmente estas, mas<br />

não só, do pós-mortem, em que o Diabo de aproxima, em meio a um<br />

verdadeiro vendaval, e um cheiro de enxofre <strong>na</strong>useabundo invade o<br />

446 PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel já fez. Disponível em:<br />

. Acesso em: 31 janeiro 2004.<br />

447 REVISTA ÉPOCA. Íntegra da entrevista com o diretor Guel Arraes.<br />

448 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 10.<br />

243


ambiente, mostra uma situação mais do que séria à medida que todos<br />

vão enfrentar o julgamento, e João Grilo, no que não deixa de ser<br />

seguido pelos demais, arma um verdadeiro picadeiro com suas atitudes<br />

e palavras. O que é muito sério, acaba, como diz Arraes, tendo humor.<br />

Figura 25 – João Grilo fazendo si<strong>na</strong>l de corno para o Diabo<br />

Figura 26 – Fala de João Grilo: Esse sujeito é um mistura de tudo o que<br />

nunca gostei, promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia.<br />

É preciso notar que Bakhtin afirma sobre a car<strong>na</strong>valização ser o<br />

núcleo de uma cultura. O espectador não o assiste, ele vive o car<strong>na</strong>val.<br />

O car<strong>na</strong>val é o mundo às avessas, a quebra da hierarquia, a certeza da<br />

incompletude, do provisório da vida. Durante o car<strong>na</strong>val é a própria<br />

244


vida que representa e interpreta. Aqui a forma efetiva da vida é <strong>ao</strong><br />

mesmo tempo sua forma ideal ressuscitada. 449 Todos querem uma vida<br />

festiva.<br />

Chicó inventa os causos, Arraes os anima. Chicó os [re]vive. O<br />

espectador de TV, no jogo interativo emissor-texto-receptor, entra <strong>na</strong><br />

festa do riso, e o sério da vida se representa humoristicamente. A<br />

animação, possível pela tecnologia, mantém traços <strong>arcaico</strong>s do cordel,<br />

faz concreto o contar, desloca a perso<strong>na</strong>gem de uma esfera para outra<br />

da <strong>na</strong>rrativa, senão para outra <strong>na</strong>rrativa, sem que abandone a primeira.<br />

Na segunda esfera, a dos causos, em linguagem animada, tudo é<br />

possível, a ordem <strong>na</strong>tural do universo é alterada, o mundo é <strong>ao</strong> avesso e<br />

<strong>na</strong>da precisa de explicação: Não sei, só sei que foi assim! Quando<br />

percebem a morte da cachorra, Chicó inicia o causo do pirarucu. No<br />

meio da discussão enterra, ou não, o cachorro e a revelação da<br />

existência do testamento, Chicó põe-se a contar a história da travessia<br />

do riacho Cosme Pinto. É a quebra do fluxo da seriedade do ‘real’ pela<br />

maluquice dos causos mágicos, invertendo, revirando a lógica da<br />

<strong>na</strong>rrativa.<br />

As manifestações do sério não dão conta da enormidade da vida.<br />

É preciso o riso, esse sim, força criadora. Os grandes temas estão agora<br />

<strong>na</strong> vida, no cotidiano. Esse cotidiano é tratado sob um ponto de vista<br />

diferenciado, a ingenuidade de Chicó (a Besta da dupla nordesti<strong>na</strong>) e o<br />

arguto e um tanto safado João Grilo (o Palhaço) em luta pela<br />

sobrevivência, heróis picarescos que, mirabolantemente, conseguem o<br />

pão de cada dia, “loucos” diante das posturas da oficialidade. Não<br />

escapam do riso a morte, o sepultamento. O enterro da cachorra se faz<br />

seguido de um séqüito, no mínimo, pitoresco. As lamentações de <strong>Do</strong>ra,<br />

seguidas pela repetição que delas fazem João Grilo e Chicó. Benzer um<br />

cachorro e enterrá-lo seguindo o ritual da Igreja, pois é isso que está<br />

subentendido no enterrar em latim, é pôr em cheque uma norma que<br />

implica até mesmo aspectos doutrinários. A Igreja apresenta uma série<br />

de exigências, de ordem doutrinária, para enterrar os mortos. Se <strong>na</strong><br />

449 BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 7.<br />

245


peça teatral é o Sacristão que faz o enterro para poupar o Padre da<br />

potencial fúria do Bispo, <strong>na</strong> microssérie é o Padre mesmo a realizá-lo. O<br />

mundo oficial é criticado pelo riso, pelo humor do não-oficial, do<br />

car<strong>na</strong>valizado.<br />

Figura 27 – O velório de João Grilo<br />

A falsa morte de Grilo chega à profa<strong>na</strong>ção, pois ele é velado <strong>na</strong><br />

igreja, <strong>ao</strong> som de cantorias e rezas, exibindo características já<br />

consideradas grotescas. O ‘cadáver’ encontra-se acomodado numa tosca<br />

maca e com o rosto estrategicamente voltado para a câmera, exibindo<br />

um meio sorriso. As provocações de João Grilo <strong>ao</strong>s mortos quando do<br />

julgamento. A ousadia das respostas <strong>ao</strong> Diabo quando este afirma ser<br />

chegada a hora da verdade, já degradação, pois palavras desse teor<br />

estão em desacordo com o falante. Responde João Grilo: Então estou<br />

desgraçado, porque comigo era <strong>na</strong> mentira. O modo como se dirige à<br />

Virgem, utilizando-se um verso popular, da autoria de um tal Canário<br />

Pardo e que ela reconhece ser engraçado. 450<br />

450 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 158. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 22.<br />

246


Figura 28 – Fala de João Grilo: Por isso é que estou lascado,<br />

comigo era <strong>na</strong> mentira.<br />

Verso invocatório que Grilo diz no momento exato da entrada da<br />

Virgem e não satisfeito, inicia sua fala defensória quando chega hora de<br />

se defrontar com o Cristo, no que é impedido pela Virgem sorrindo,<br />

levando a sério, mas de forma bem-humorada: Só lhe falta ser mulher,<br />

João, já sei. A Virgem percebe a redundância existente. João Grilo não<br />

deixa escapar uma oportunidade de aperrear o Diabo. Dada a<br />

permissão a ele para voltar <strong>ao</strong> mundo dos viventes, provoca o demônio:<br />

Quem deve ficar da<strong>na</strong>do é o filho de chocadeira. 451<br />

Derradeiro confronto humano com o divino, o julgamento, não se<br />

pode dizer de ele não ser levado a sério, mas com humor e esse humor é<br />

sustentado, mais que pela imagem e jogo de ce<strong>na</strong>, pelo diálogo rápido,<br />

acelerado mesmo, conciso e risonho. A fala provocadora em dois<br />

sentidos, como qualidade e como deto<strong>na</strong>dora das ações, é a de João<br />

Grilo, que mantém com sua movimentação, agilidade e colocação<br />

espacial, o di<strong>na</strong>mismo que caracteriza a ence<strong>na</strong>ção, consideradas aqui<br />

como de teor circense.<br />

Questão fundamental que se nos apresenta é a produção verbal<br />

da cultura cômica popular, imbuída da concepção car<strong>na</strong>valesca do<br />

mundo, linguagem de formas car<strong>na</strong>valescas, riso festivo e ambivalente.<br />

451 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 172. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong>, 22.<br />

247


A influência do espírito car<strong>na</strong>valesco não poupava os clérigos que, <strong>na</strong><br />

solidão de suas celas, escreviam tratados paródicos e cômicos, textos<br />

em que a ideologia religiosa e os ritos são descritos do ponto de vista<br />

cômico: A ceia de São Ciprião (riso pascal), Vergilius Maro grammaticus,<br />

tratado semiparódico sobre a gramática lati<strong>na</strong>, o escolástico e os<br />

métodos científicos da Idade Média, i<strong>na</strong>uguram a literatura cômica<br />

medieval em latim. Elogio à loucura, de Erasmo, é considerada criação<br />

das mais iminentes do riso car<strong>na</strong>valesco. Paródias e travestis laicos<br />

tinham como tema o regime feudal e a epopéia heróica. Aparecem<br />

duplos de heróis épicos: um Rolando cômico. Romances de cavalaria<br />

paródicos. O riso car<strong>na</strong>valesco ressoa nos fabliaux e <strong>na</strong> lírica dos<br />

‘vagantes’ (estudantes cantores ambulantes). A dramaturgia faz-se<br />

representar por Adam de La Halle com Le jeu de la feuillé. 452<br />

Em ponto anterior deste trabalho, no capítulo 3 – O Texto-Fonte,<br />

Autoria, Gênero e Temática – dissemos sobre o teatro suassuniano ter<br />

suas raízes <strong>na</strong> dramaturgia vicenti<strong>na</strong>. Uma das observações a ser feita<br />

nesse teatro é a postura crítica do autor Gil Vicente em relação à Igreja<br />

Católica, mais do que a ela <strong>ao</strong>s homens que a lideram, ou seja, os<br />

clérigos, a nobreza hipócrita e interesseira. Católico, Vicente critica o<br />

que conhece, mas reconhece <strong>na</strong> Igreja o único caminho para a salvação.<br />

No fundo, o que ele postula é uma mudança de atitude dos homens em<br />

relação às coisas do espírito, ou seja, à religião, que nos parece<br />

indispensável para ele. Vislumbramos em Suassu<strong>na</strong> a mesma postura.<br />

Homem de formação religiosa, nunca negou a fé católica em seus<br />

escritos. Entretanto, é um grande crítico da Igreja como se vê <strong>na</strong><br />

Compadecida e em outras obras de sua autoria em que perso<strong>na</strong>gens<br />

mostram falhas de comportamento, que apontam para a falsidade, a<br />

hipocrisia com que se conduzem em termos não só religiosos, mas<br />

éticos e até morais. O que temos aqui é um texto com características<br />

car<strong>na</strong>valescas, exibindo o riso e o humor ambivalente e crítico, ou seja,<br />

produção verbal cômica falando de um assunto sério – o combate <strong>ao</strong><br />

mundanismo <strong>na</strong> Igreja e seu séqüito de problemas conseqüentes. Essa<br />

452 BAKHTIN, M. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de François<br />

Rabelais, p. 13.<br />

248


mesma postura crítica, que usa de modo alegre e risível a linguagem, é<br />

encontrada no trabalho televisivo.<br />

O vocabulário cotidiano, familiar não fica excluído da<br />

car<strong>na</strong>valização. A quebra de hierarquia, permitindo contato sem<br />

restrições, provoca o aparecimento de formas inéditas em termos de<br />

gênero e terminologia. A linguagem da praça caracteriza-se por<br />

grosserias, expressões e palavras injuriosas, às vezes longas e<br />

complicadas, trocadilhos, juramentos, dísticos e ‘repentes’. No processo<br />

de elimi<strong>na</strong>ção da linguagem oficial, no sistema criado de infração às<br />

regras lingüísticas e socializantes, as expressões e palavras adquirem<br />

valor cômico e tor<strong>na</strong>m-se ambivalentes, entrando no sistema<br />

regenerador do espírito car<strong>na</strong>valesco<br />

Chicó<br />

Mas era vivo quando eu tive o bicho.<br />

João Grilo<br />

Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o<br />

bicho Chicó? 453<br />

Outro diálogo do mesmo tipo e que só aparece <strong>na</strong> microssérie é o<br />

de João Grilo com os patrões quando negocia o salário. A rapidez, os<br />

trocadilhos levam os patrões e os espectadores a fazerem contas para<br />

concluir sobre o contrato.<br />

O trocadilho existente só é possível numa linguagem<br />

caracteristicamente oralizada. A apropriação da linguagem cotidia<strong>na</strong> –<br />

do primeiro – é bem clara, fazendo-se um segundo elaborado<br />

intencio<strong>na</strong>lmente. Face <strong>ao</strong>s falantes e a sua condição social, a<br />

linguagem pode ser considerada adequada, própria de dois picarescos,<br />

mas é usada por eles com a intenção clara de confundir. Armada a<br />

trapalhada a respeito da benzedura do cachorro, que dizem eles, é do<br />

Major Antônio Moraes, a chegada deste para falar com o Padre<br />

desencadeia um diálogo completamente fora de propósito <strong>na</strong> boca de<br />

um clérigo. Não há harmonia entre o conteúdo da fala e a imagem social<br />

do falante. Ou seja, está tudo fora de ordem, <strong>ao</strong> avesso, o que se nos<br />

453 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 18-19. O AUTO<br />

DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 5.<br />

249


apresenta é uma excrescência, mantida em toda sua extensão <strong>na</strong><br />

microssérie em referência <strong>ao</strong> texto-fonte.<br />

Padre<br />

Ah bem e <strong>na</strong> certa os ante<strong>passado</strong>s da bichinha<br />

também vieram <strong>na</strong>s caravelas, não é isso?<br />

Antônio Moraes<br />

Claro! Se meus ante<strong>passado</strong>s vieram, é claro que os<br />

dela vieram também. Que é que o senhor quer insinuar?<br />

Quer dizer por acaso que a mãe dela procedeu mal?<br />

Padre<br />

Mas, uma cachorra!<br />

Antônio Moraes<br />

O quê?<br />

Padre<br />

Uma cachorra!<br />

Antônio Moraes<br />

Repita!<br />

Padre<br />

Não vejo <strong>na</strong>da de mal em repetir, não é uma<br />

cachorra, mesmo? 454<br />

Ainda mais do que <strong>na</strong> boca de bispo e padre, é surpreendente que<br />

Arraes nos dê, pela palavra, um Cristo tão humano, crítico e irônico que<br />

não se peja de sair-se com uma declaração <strong>na</strong>da peculiar em se<br />

tratando de pessoa sagrada, quando diz, referindo-se <strong>ao</strong> Diabo: Esse<br />

sujeito é meio espírita e tem mania de fazer magia.<br />

O diálogo entre <strong>Do</strong>ra e Eurico, depois de este se passar por padre<br />

e ouvir a confissão da mulher, é bem característico de uma linguagem<br />

em que o respeito já se foi há muito, se pensarmos o esperado<br />

oficialmente. Aqui tudo já foi pelos ares, para o brejo, no vocabulário<br />

popular, da praça pública.<br />

<strong>Do</strong>ra<br />

Bom para levar chifre.<br />

..............................................................................................<br />

Quando penso em parar me arrependo mais ainda. 455<br />

454 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p 34-35. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 6.<br />

455 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 4.<br />

250


Não tem morto que não se levante e cego que não espie. <strong>Do</strong> filósofo<br />

taperoaense Chicó, segundo Arraes.<br />

A presença de máximas populares, dos provérbios que passam a<br />

fazer parte da fala das perso<strong>na</strong>gens, ou seja, mudam de um sistema a<br />

outro e assim fazem parte daquilo que Bakhtin chama de gênero<br />

secundário, no caso a microssérie. Chicó, falando sobre a sensualidade<br />

de <strong>Do</strong>ra e seus encontros, ouve de João Grilo à guisa de conselho: Onde<br />

se ganha o pão, não se come a carne. Ainda Chicó, quando diz que o<br />

Major só deixa a fazenda quando a galinha criar dentes. Numa conversa<br />

dos dois picarescos sobre mulher, Grilo afirma: Só existem duas<br />

mulheres boas. Uma já morreu e a outra não está. Severino em conversa<br />

com seu cupincha quando informa sobre a iminente invasão da cidade:<br />

Vai ser mais fácil do que dar tapa em bêbado. Mas prudente o suficiente<br />

para saber que Manda quem pode, obedece quem tem juízo 456 .<br />

A obscenidade chega pela boca de Antônio Moraes, que afirma de<br />

Taperoá: Isso aqui está uma merda de gato, só venho por obrigação 457 .<br />

Mas a mesma perso<strong>na</strong>gem quando conversa com o Bispo em sua casa e<br />

conta-lhe que o Padre chamara sua mulher de cachorra, não diz a<br />

palavra por classificá-la de blasfêmia e soletra com X. Como o Bispo<br />

corrige e emite a palavra, Moraes chama-lhe a atenção e o cinismo<br />

rabelaisiano revela-se: Eu falei cachorra com ch e como não existe<br />

cachorra com ch eu não falei.<br />

456 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 12.<br />

457 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 6.<br />

251


Figura 29 – A discussão entre o Bispo e Major sobre o fato de o Padre ter<br />

ou não chamado a mulher do Major de cachorra<br />

11.3 Realismo grotesco<br />

Imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação das<br />

necessidades <strong>na</strong>turais e da vida sexual, muitas vezes hipertrofiadas e<br />

exageradas, imagens referentes <strong>ao</strong> princípio material e corporal são<br />

heranças da cultura cômica popular, concepção que Bakhtin chama de<br />

realismo grotesco. <strong>Do</strong> mesmo modo que o car<strong>na</strong>val, o princípio material<br />

e corporal é benfazejo, festivo, utópico. Opõe-se a toda separação das<br />

raízes materiais e corporais, isolamento e confi<strong>na</strong>mento em si mesmo, a<br />

toda pretensão de significação independente da terra e do corpo.<br />

Muitas são as imagens construídas, tendo <strong>Do</strong>ra no centro, que<br />

mostram as necessidades da vida sexual. Ela não é apresentada como<br />

pervertida e sim uma mulher fogosa, que se recusa à negação,<br />

sexualmente falando. Chicó, com sua aparência ingênua, também tem<br />

necessidades corporais explícitas. Assim como as imagens, que<br />

representam a necessidade de matar a fome sentida por Chicó e Grilo,<br />

dispostos a comer aparas de pão e o alimento do cachorro. A troca dos<br />

pratos de comida dos dois pelo bife <strong>na</strong> manteiga, que pertencia à<br />

252


cachorrinha, é uma imagem forte que mostra a concretização das<br />

solicitações corporais. A necessidade ditada pela fome, e por que não, o<br />

desejo de um bife <strong>passado</strong> <strong>na</strong> manteiga, os leva a comer o alimento do<br />

animal. As necessidades corporais são abordadas como sendo <strong>na</strong>turais,<br />

próprias do homem e têm um sentido positivo.<br />

Figura 30 – Chicó em uma noite com <strong>Do</strong>ra<br />

Figura 31 – Um bife <strong>passado</strong> <strong>na</strong> manteiga<br />

O princípio material e corporal tem o povo como porta-voz, não o<br />

individualismo burguês e sim o povo em sua evolução, crescimento e<br />

renovação, daí sua representação exagerada, hipertrofiada apontando<br />

para a infinitude, por isso seu caráter positivo e afirmativo. Figura<br />

também a abundância, e como tal tem caráter festivo e alegre. É a festa,<br />

253


o banquete da alegria, como diz Bakhtin. Na Compadecida a<br />

abundância se manifesta numa antítese: é de fome, de miséria. Mas<br />

existe um exagero positivo <strong>na</strong>s estripulias de Grilo e Chicó, <strong>na</strong>s<br />

posturas de <strong>Do</strong>ra, <strong>na</strong> idiotice de Eurico, <strong>na</strong> safadeza dos religiosos.<br />

Tudo é demais, tudo é hipertrofiado, não à toa Severino carrega quilos<br />

de roupas e de penduricalhos como se seus pertences fizessem parte de<br />

seu corpo. E <strong>na</strong>da é aleatório. O exagero com sua carga de patético e de<br />

risível está ali para evidenciar a crítica autoral.<br />

O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a<br />

transferência para o plano material e corporal, a terra e o corpo em sua<br />

indissolúvel unidade, revelando o outro lado, pois o grotesco existe em<br />

oposição <strong>ao</strong> gênero elevado. Um dos procedimentos básicos da<br />

comicidade medieval constitui-se em transferir para o plano material e<br />

corporal os ritos, as cerimônias de ordem espiritual (a cultura elevada),<br />

<strong>na</strong>s quais bufões e palhaços tinham um papel importante. Muitos<br />

desses procedimentos aparecem em D. Quixote. Note-se que Cervantes<br />

é um dos autores mencio<strong>na</strong>dos por Suassu<strong>na</strong> como sendo de sua<br />

apropriação (portanto, de Arraes) para (re)criar sua arte.<br />

Para a estudiosa de Bakhtin, Irene Machado, as formulações do<br />

teórico russo sobre o campo do sério-cômico forneceriam instrumentos<br />

para a análise dos procedimentos orais da prosa <strong>na</strong>rrativa, fora dos<br />

limites da literaturidade 458 . A literaturidade definiria o padrão expressivo<br />

e lingüístico da cultura oficial. Bakhtin propõe um contraponto entre<br />

linguagem culta (enobrecida) e vulgar (rebaixada). A literatura grotesca<br />

praticada <strong>na</strong> Idade Média seria, portanto, entendida como manifestação<br />

de rebaixamento dos valores da cultura oficial que inclui a religiosa à<br />

medida que se viviam tempos teocêntricos. O grande interesse de<br />

Bakhtin, não há dúvida alguma, é o repertório lingüístico, de caráter<br />

eminentemente oral, praticado <strong>na</strong> praça pública. Pensando a televisão<br />

como fundada no diálogo e que tem <strong>na</strong> palavra sua matéria por<br />

excelência, consideramos ser cabível a inclusão desse instrumental<br />

para a análise de uma microssérie: produto televisivo no qual a palavra<br />

tem lugar proeminente.<br />

458 MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosa dialógica de Mikhail Bakhtin, p. 184.<br />

254


O tratamento dado às questões temáticas – o mundanismo <strong>na</strong><br />

igreja e suas conseqüências pouco éticas – pode ser considerado<br />

grotesco, ou seja, um tratamento no qual a inversão do alto para o<br />

baixo, do céu para a terra é flagrante. O interesse da Igreja está muito<br />

mais no material – grande administrador – epíteto aplicado <strong>ao</strong> Bispo<br />

(Nossa Senhora o justifica, diz que ele é trabalhador) mostra bem isso. A<br />

sensualidade de <strong>Do</strong>ra que a leva a constantes traições <strong>ao</strong> marido, e sua<br />

religiosidade, suas relações com a Igreja: fornece pão e leite, Eurico<br />

paga a reforma do templo. A imagem de <strong>Do</strong>ra tem um componente<br />

grotesco – valorização do corpo, dos gestos. Logo <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s iniciais, ela<br />

inicia o processo de sedução de Chicó. Também sua linguagem em um<br />

dos entreveros, “discursivo-sedutores”, com Chicó, utilizando-se da<br />

linguagem bíblica: Não cobiçarás a mulher do próximo. 459 E Chicó<br />

rápido: Depende da brabeza do próximo e da belezura da mulher dele.<br />

Os Dez Mandamentos, portanto, a citação é bíblica, entram no jogo sem<br />

a menor cerimônia por parte dos falantes. Deve-se lembrar aqui a<br />

extensão dada à perso<strong>na</strong>gem <strong>Do</strong>ra <strong>na</strong> minissérie e já anotada quando<br />

da descrição do objeto. <strong>Do</strong>ra é a perso<strong>na</strong>gem que, mais do que<br />

nenhuma outra, chama a si a responsabilidade pelo ‘rebaixamento’. A<br />

sensualidade ocupa lugar fundamental em sua vida e se manifesta<br />

desde os trajes que usa quando faz um striptease para Chicó, Vicentão<br />

e por último Eurico, passando pelos gestos corporais e expressões<br />

faciais até a concretização dos atos libidinosos. A picardia de João Grilo<br />

e Chicó também aponta para o rebaixamento se pensarmos que a<br />

preocupação do herói picaresco é a sobrevivência física, é a comida e a<br />

bebida. As questões espirituais só passam a ter importância frente à<br />

morte e mesmo assim João Grilo, no fundo, quer é safar-se dela, ou<br />

seja, voltar <strong>ao</strong> mundo dos viventes. A maior prova do interesse em viver<br />

e do esquecimento das experiências passadas é a rápida negativa <strong>ao</strong><br />

pedinte <strong>na</strong> estrada e a crítica que faz a Rosinha pela doação do pedaço<br />

de bolo.<br />

O cinismo da ce<strong>na</strong> em que o Bispo consulta o Código Canônico<br />

(que já havia sido citado de cabeça, ou seja, sem comprovação, por ele)<br />

459 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 4.<br />

255


<strong>na</strong> sacristia em companhia do Padre, sendo observados por João, já<br />

com o dinheiro em mãos. O religioso conclui solenemente, utilizando-se<br />

para tanto da empolada e formal linguagem religiosa:<br />

Bispo<br />

É preciso deliberar. É assunto pra se discutir com<br />

muito cuidado. Vamos reunir o concílio. 460<br />

..............................................................................................<br />

Bispo<br />

Não resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e<br />

permitido. Código Canônico, artigo, 368, parágrafo terceiro,<br />

letra b.<br />

Padre<br />

Quer dizer que não agi mal?<br />

Bispo<br />

Muito pelo contrário, você agiu muito bem. 461<br />

E mais cinicamente, portanto, grotescamente, João Grilo chancela<br />

a decisão: E aqui está a prova de que você agiu muito bem. Coloca o<br />

dinheiro dentro do código e o Bispo ‘admirado’, retruca: O que é isso? O<br />

que é isso? Mas embolsa rapidamente o dinheiro.<br />

Figura 32 – Fala do João Grilo: E aqui está a prova<br />

de que você agiu muito bem<br />

460 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 9.<br />

461 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 9.<br />

256


Não se pode negar a essas ce<strong>na</strong>s o tratamento grotesco dado a um<br />

assunto sério, que é o da corrupção <strong>na</strong> Igreja, entre os religiosos. As<br />

imagens grotescas, embora divertidas, são fortes e de impacto imediato.<br />

O gato que descome dinheiro é igualado <strong>ao</strong> cachorro que deixa<br />

testamento. O dinheiro é igualado a excremento. <strong>Do</strong>ra e Eurico engolem<br />

a história de João Grilo porque são desmedidamente ambiciosos, a<br />

ponto de perderem o bom senso. A morte e a ressurreição de Grilo,<br />

assim como o sangue da bexiga que se presta à morte e ressurreição de<br />

Chicó. A ce<strong>na</strong> é redundante. Morte e ressurreição, falsas todas elas, é o<br />

que mais vemos. Tavares 462 afirma que essa linguagem é ideogrâmica,<br />

expressa-se por imagens concretas mais do que abstratas. Podemos<br />

pensar que, nessa linguagem, reside a vocação cinematográfica,<br />

imagética diríamos, pleiteada por Guel Arraes para a obra de Suassu<strong>na</strong>.<br />

O vocabulário grotesco traz a marca da não-oficialidade.<br />

Grosserias, juramentos, maldições, “pregões de Paris” (reclames que os<br />

mercadores da capital gritavam em voz alta dando-lhes uma forma<br />

rimada e ritmada), anúncios, promoções de saltimbancos de feira e de<br />

comerciantes – inclusive de drogas – não estão isolados dos demais<br />

gêneros literários e de festas populares.<br />

João Grilo e Chicó estão <strong>na</strong> rua, Chicó carrega um cartaz onde se<br />

vê Cristo carregando a cruz e o título A Paixão de Cristo, João Grilo<br />

segue atrás saracoteando em seu jeito destemperado, num arremedo de<br />

dança, fazendo ‘reclame’ do filme que será exibido <strong>na</strong> igreja.<br />

Uma aventura que mostra um cabra sozinho<br />

enfrentando o Império romano todinho.<br />

Um filme de mistérios e acontecimentos do outro<br />

mundo.<br />

A paixão de Cristo, um filme sobre o homem mais<br />

arretado do mundo. 463<br />

Os charlatães de feira, os escritores-vendedores de romances de<br />

alguns centavos <strong>na</strong>s ruas fla<strong>na</strong>vam <strong>ao</strong>s berros fazendo a louvação de<br />

seus produtos de modo persuasivo, pois levavam a clientela a acreditar<br />

462 TAVARES, Bráulio. Tradição Popular e Recriação no ‘Auto da Compadecida’. In:<br />

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 191-197.<br />

463 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 2.<br />

257


nos remédios como em Deus. O produto – objeto da propaganda – se via<br />

envolvido por um jogo verbal profano/sagrado comum à praça visto que<br />

irma<strong>na</strong>dos. Tudo é redundante e hiperbólico, salpicado de ironia e<br />

aleivosia. O vendedor de livros vai dizer que as crônicas são um bom<br />

remédio para dor de dente e devem ser colocadas entre dois panos e<br />

aplicadas no lugar dolorido: receita em paródia. O vendedor usa injúrias<br />

ou elogios de acordo com a percepção que tem de seu ouvinte (provável<br />

comprador), ou seja, seu receptor. São os vendedores (“marqueteiros”<br />

também, diríamos hoje) abusados, impostores e sedutores e o<br />

vocabulário usado persuasivo, se não chegando <strong>ao</strong> desbocado, muitas<br />

vezes irônico, de duplo sentido.<br />

Muitas são as questões doutrinárias cristãs tratadas de modo<br />

hilário e mesmo irônico. Chicó conta sobre o tempo que vivera num<br />

seminário, onde havia um papagaio, que sabia a Bíblia de cor e que se<br />

converteu <strong>ao</strong> protestantismo e foi viver numa Igreja Batista, numa clara<br />

alusão <strong>ao</strong> fato de, normalmente, os protestantes lerem com certa<br />

constância a Bíblia e os Batistas serem um ramo, uma denomi<strong>na</strong>ção<br />

representativa do protestantismo histórico. João vai jogar com o Diabo<br />

quando luta para se livrar do inferno de um modo esperto, dando<br />

sugestões à Compadecida:<br />

E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me<br />

desgraçando pra o resto da vida? [...] Para o purgatório?<br />

Não faça isso não. [chamando a Compadecida à parte.]<br />

Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito<br />

negociante e com esse povo a gente pede mais para<br />

impressio<strong>na</strong>r. A senhora pede o céu, porque aí o acordo<br />

fica mais fácil a respeito do purgatório. [...] Confio, Nossa<br />

Senhora, mas esse camarada termi<strong>na</strong> enrolando nós<br />

dois! 464<br />

Brincavam com coisas perigosas, sérias e conde<strong>na</strong>vam, em suas<br />

arengas, os incrédulos do mesmo modo que a Igreja fazia com os<br />

descrentes de sua doutri<strong>na</strong> e idéias. O vocabulário é também<br />

ambivalente, louvação e imprecação convivem. Se não há imprecações<br />

não se pode negar à fala de João Grilo o ‘destro<strong>na</strong>mento’, a<br />

464 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 170-171. O AUTO<br />

DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 23.<br />

258


dessacralização e a quebra de hierarquia, pois não se fala assim a um<br />

superior e eclesiástico, mais ainda, sagrado, pois que é o próprio Cristo:<br />

João Grilo<br />

Então estou garantido. Eu me lembro de que uma<br />

vez, quando padre João estava me ensi<strong>na</strong>ndo catecismo,<br />

leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que ninguém<br />

sabe o dia e a hora em que haverá o dia do Juízo, nem o<br />

homem, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho.<br />

Somente o Pai que sabe. Está escrito lá, assim mesmo?<br />

Manuel<br />

Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze,<br />

versículo trinta e dois.<br />

João Grilo<br />

Isso é que é conhecer a Bíblia! O senhor é<br />

protestante?<br />

Manuel<br />

Sou não, João, sou católico.<br />

João Grilo<br />

Pois <strong>na</strong> minha terra, quando a gente vê uma pessoa<br />

boa que entende de Bíblia, vai ver é protestante. [...] 465<br />

A fala é seguida de uma postura corporal <strong>na</strong>da condizente com o<br />

que ali estava se desenrolando, o Juízo. A fala de Chicó sobre o<br />

papagaio, em um de seus causos, tem uma relação com o de João Grilo<br />

no julgamento – protestante conhece a Bíblia: O papagaio sabia Bíblia<br />

de cor.<br />

Os problemas difíceis, temíveis, sérios e importantes são<br />

transpostos para um registro alegre e ligeiro e todos têm um desfecho<br />

que produz alegria e alívio. Bakhtin afirma que não se trata de<br />

afirmações filosóficas e sim da direção do pensamento artístico e<br />

ideológico, no sentido de uma percepção de mundo com outros tons,<br />

uma abordagem do mundo como um jovial drama satírico e não um<br />

sombrio mistério.<br />

A multidão que enche a praça é um todo popular, organizado à<br />

sua maneira, contrária a toda e qualquer coerção social, econômica,<br />

racial, de classe, de gênero. Essa organização implica contato físico,<br />

social e afetivo em conseqüência da quebra de hierarquia e do<br />

nivelamento dos desiguais. A praça é praça, sua topografia é<br />

465 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 173-174. O AUTO<br />

DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 22.<br />

259


tipicamente igualitária; não tem dono, é de todos. Não à toa, em<br />

Taperoá, circulam pela praça Eurico e <strong>Do</strong>ra, os ricos da vila; a<br />

soldadesca e seu comandante, o valentão Vicentão, a bela Rosinha, a<br />

dupla João Grilo e Chicó. É <strong>na</strong> praça que Rosinha, bonita, urba<strong>na</strong>, rica<br />

se encanta por Chicó e faz charme para Vicentão e Cabo Setenta. Toda<br />

a hierarquia – social, econômica e de classe – é rompida. Não mais que<br />

de repente adentra Severino de Aracaju. O bispo desmaia.<br />

João Grilo<br />

Que grande administrador!<br />

Severino<br />

Um momento, ninguém corra! O primeiro que tentar<br />

fugir, morre! O que é isto que está deitado, é algum<br />

cônego?<br />

Bispo (abrindo os olhos cioso do posto)<br />

Bispo.<br />

Severino<br />

Ótimo. Nunca tinha matado um bispo, o senhor vai<br />

ser o primeiro!<br />

Bispo (desmaiando)<br />

Ai!<br />

Severino (dando-lhe um pontapé)<br />

Levante-se e deixe de chamego. Xilique comigo não<br />

pega [O Bispo levanta-se vagarosamente.] Vossa<br />

Reverendíssima vai-me desculpar, mas deixe ver os<br />

bolsos.<br />

Bispo<br />

Não tenho <strong>na</strong>da, o capitão compreende... 466<br />

A ironia de Grilo, a grosseria de Severino, a covardia e as<br />

mentiras do Bispo juntam-se para provocar o riso popular. O discurso<br />

do Bispo entra em contradição com sua figura e status clerical. O<br />

destro<strong>na</strong>mento dá-se pela linguagem desabusada de João Grilo e de<br />

Severino. O mesmo destro<strong>na</strong>mento observa-se no diálogo entre o Bispo<br />

e o Padre, no encontro inicial dos dois <strong>na</strong> igreja, no qual o Bispo o<br />

questio<strong>na</strong> por ter chamado a mulher de Antônio Moraes de cachorra:<br />

Bispo<br />

Chamou, Padre João!<br />

466 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 97. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 20.<br />

260


Padre<br />

Não chamei, Senhor Bispo!<br />

Bispo<br />

Chamou, Padre João!<br />

Padre<br />

Não chamei, Senhor Bispo!<br />

Bispo<br />

Chamou, Padre João!<br />

Padre<br />

Chamei, Senhor Bispo!<br />

Bispo<br />

Afi<strong>na</strong>l, chamou ou não chamou?<br />

Padre<br />

Não chamei, mas se Vossa Reverendíssima diz que<br />

eu chamei é porque sabe mais do que eu! 467<br />

Duas coisas podem ser pensadas nesse diálogo. O absurdo da<br />

situação, dois clérigos, um mais graduado, ‘grande administrador’,<br />

discutirem como duas crianças que se confrontam em uma situação de<br />

mentira; atitude e conteúdo <strong>na</strong>da têm a ver com a imagem social dos<br />

falantes. Ocorre também a existência de dois aspectos distintos, até<br />

mesmo opostos, mas simultâneos <strong>na</strong> última fala do Padre, que nega e<br />

concorda, mais ainda, justifica. O tom é de profunda ironia. Um diálogo<br />

similar a esse ocorre entre o Bispo e o Major<br />

Major<br />

Ele chamou minha mulher de cachorra.<br />

Bispo<br />

Não chamou, Major.<br />

Major<br />

Chamou, Senhor. Bispo.<br />

Bispo<br />

Então chamou. 468<br />

Na seqüência do julgamento, faz-se <strong>presente</strong> um diálogo<br />

desabusado por parte do Diabo, de João Grilo e de Severino. Para eles o<br />

Juízo <strong>na</strong>da mais é do que a rua, a praça, ou seja, o espaço do popular,<br />

467 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 64-65. O AUTO<br />

DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 9.<br />

468 O AUTO DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 6.<br />

261


do espontâneo, do tudo é permitido. Embora se deva notar a<br />

consciência que todos têm da situação limite em que se encontram:<br />

João Grilo (dirige-se <strong>ao</strong> Diabo, mas fala sobre a<br />

Compadecida)<br />

Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não é filha<br />

de chocadeira não!<br />

..............................................................................................<br />

João Grilo (falando sobre São José). A Compadecida<br />

elogiara o marido.<br />

Grande novidade<br />

Compadecida<br />

O que, João?<br />

João Grilo<br />

Falei não.<br />

Encourado<br />

Falou sim. Ele disse: “Grande novidade.”<br />

..............................................................................................<br />

Encourado<br />

A senhora está falando muito e vê-se perfeitamente<br />

sua proteção com esses nojentos...<br />

..............................................................................................<br />

Encourado (Dirigindo-se a Manuel)<br />

É, mas não posso ficar eter<strong>na</strong>mente à espera. Qual é<br />

a sentença? 469<br />

João falta <strong>ao</strong> respeito em sua linguagem, se pensarmos o oficial,<br />

especialmente no que concerne <strong>ao</strong> uso do pronome demonstrativo isso.<br />

O Encourado trata a Compadecida de modo íntimo, abusado a censura<br />

por falar demais, inverte posições <strong>ao</strong> cobrar de Cristo, em sua função de<br />

juiz, ação imediata.<br />

Na peça teatral, a carnifici<strong>na</strong> que se concretiza <strong>na</strong> morte das<br />

perso<strong>na</strong>gens, todas assassi<strong>na</strong>das a tiros, a mando de Severino, não<br />

ocorre à vista do espectador. Todos são mortos fora da igreja. Ouvem-se<br />

os tiros. Entretanto a ce<strong>na</strong> em que Grilo tenta se livrar da morte através<br />

da história da gaita milagrosa ocorre à vista do público e espectadores.<br />

E aí tem-se a oportunidade de perceber o que é carnifici<strong>na</strong> e o que é o<br />

grotesco. A bexiga que está <strong>na</strong> barriga de Chicó é rompida pela facada<br />

desferida por João Grilo, o sangue espalha-se pela ce<strong>na</strong>/tela. Grilo toca<br />

469 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 165-167. O AUTO<br />

DA Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 22.<br />

262


a gaita, Chicó ‘ressuscita’, tudo é demasiado cômico. É um assassi<strong>na</strong>to<br />

fictício praticado por João Grilo enquanto o capanga atira para matar, e<br />

a mando do próprio Severino.<br />

A morte de Severino e a pseudo-morte de João Grilo ocorrem num<br />

ambiente de pura car<strong>na</strong>valização. O humor e o cômico são tão<br />

<strong>presente</strong>s e atuantes que o fato fica acima de qualquer impressão<br />

negativa que porventura pudesse justificar a fala do Palhaço: Peço<br />

desculpas <strong>ao</strong> distinto público que teve de assistir a essa peque<strong>na</strong><br />

carnifici<strong>na</strong>, fala que <strong>na</strong> sua complementação é perfeitamente aceitável:<br />

mas ela era necessária <strong>ao</strong> desenrolar da história 470 . Na microssérie, esta<br />

fala é inexistente à medida que o Palhaço é excluído. Em contrapartida,<br />

as mortes são mostradas, em flash-back, quando do julgamento. Elas<br />

ocorrem <strong>na</strong> parte exter<strong>na</strong> da igreja, tendo por cenário a parede do fundo<br />

do templo, em contracampo, onde está pintado o rosto de Nossa<br />

Senhora. Essa parede transformada em quadro ou painel aparece, como<br />

já notado, em várias ce<strong>na</strong>s da microssérie. Na morte do casal <strong>Do</strong>ra-<br />

Eurico, ocorre um diálogo cheio de doçura e amor, de enorme<br />

profundidade, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que a morte é revestida de uma<br />

beleza plástica ímpar. Quando os corpos dos dois escorregam pela<br />

parede, para o lado direito do espectador, o olhar de Nossa Senhora os<br />

acompanha pelo lado esquerdo e o rosto da Compadecida (Fer<strong>na</strong>nda<br />

Montenegro) vai se sobrepondo <strong>ao</strong> do quadro. Ocorre um processo de<br />

fusão e superposição de imagens, recurso mais do que conhecido e<br />

explorado pelo cinema, desde seus primórdios. Efeito de linguagem que<br />

permite o jogo de inversão.<br />

470 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 125. O AUTO DA<br />

Compadecida, DVD, ce<strong>na</strong> 22.<br />

263


Figura 33 – O olhar Virgem <strong>na</strong> imagem parede<br />

Figura 34 – A morte de <strong>Do</strong>ra e Eurico acompanhada pelo olhar da Virgem<br />

Severino é mandado direto para o céu por Cristo. Durante sua<br />

defesa, feita pela Compadecida, vemos o extermínio brutal de sua<br />

família pela polícia, assim como a vida pregressa de João Grilo,<br />

caracterizada pela miséria desde sua infância. São ilustrações apostas<br />

<strong>ao</strong> discurso da Compadecida. As fotos são em preto e branco, o que <strong>ao</strong><br />

mesmo tempo em que proporcio<strong>na</strong> um ar sombrio, trágico e de<br />

veracidade, agride menos o olhar do espectador, pois contrastado com o<br />

colorido alegre e marcante da ce<strong>na</strong>. O procedimento lembra o Guel<br />

Arraes dos tempos franceses do cinema verdade, primeiras experiências<br />

do então estudante brasileiro <strong>na</strong> França.<br />

264


Figura 35 – Comedor de macambira<br />

Todos julgados, Severino no céu, o casal e os religiosos no<br />

purgatório, as mortes acabam por, de alguma forma, se enquadrarem<br />

<strong>na</strong> idéia de re<strong>na</strong>scer, pois o purgatório é, como o nome diz, lugar que<br />

permite a purgação dos pecados, daí a chance de salvação, ou seja, a<br />

vida eter<strong>na</strong> no Paraíso. Portanto, não há tristeza nessas mortes.<br />

12 A INTENÇÃO DISCURSIVA<br />

(.01$ <br />

.. 471<br />

1#$ <br />

23453 . <br />

6 6 <br />

. 472<br />

A intenção discursiva realiza-se pela escolha de um certo gênero<br />

de discurso determi<strong>na</strong>do pelas diversas situações de produção – o<br />

campo da comunicação, o tema, a situação concreta da comunicação,<br />

os participantes etc. A expressão estrutura-se através de gêneros<br />

471 Falas de Guel Arraes. INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste.<br />

472 REVISTA ÉPOCA. Íntegra da entrevista com o diretor Guel Arraes.<br />

265


discursivos, para Bakhtin formas relativamente estáveis e típicas da<br />

construção do todo 473 , o que significa que, mesmo desconhecendo a<br />

existência teórica dos gêneros, o usuário faz uso deles, aplica-os em seu<br />

dia a dia e, não raras vezes, de forma hábil e segura. Para Borelli somos<br />

capazes de ‘reconhecer’ este ou aquele gênero, falar de suas<br />

especificidades, mesmo ignorando as regras de sua produção, escritura e<br />

funcio<strong>na</strong>mento 474 . O discurso molda-se, organiza-se em forma de gênero<br />

o que permite seu reconhecimento embora sua variabilidade seja<br />

imensa. Da vida cotidia<strong>na</strong> às esferas mais formais da comunicação, há<br />

uma padronização que impele a vontade discursiva individual de modo<br />

a que ela se realize <strong>na</strong> escolha de um determi<strong>na</strong>do gênero e <strong>na</strong><br />

ento<strong>na</strong>ção expressiva. A saudação rápida entre vizinhos, as informações<br />

pedidas, as notícias breves trocadas no elevador são gêneros cotidianos<br />

que apresentam diversidades determi<strong>na</strong>das pela situação, pela posição<br />

social, pelas relações de reciprocidade entre os falantes. Dentro do<br />

campo oficial, isto é, da comunicação formal exigida por situações<br />

sociais, esses gêneros apresentam alto grau de estabilidade e a<br />

expressão individual perde intensidade, mas mesmo essa oficialidade<br />

pode sofrer reacentuação, por exemplo, a ironia. Assim como a mistura<br />

de gêneros de diferentes esferas. Haja vista a mistura de gêneros que<br />

ocorre nos discursos dos políticos, em tempo de CPIs e disputas<br />

eleitorais. A esfera é oficial, o campo é formal, mas os gêneros estão em<br />

constante mistura e entrelaçamento, chegando <strong>ao</strong> humor grosseiro, <strong>ao</strong><br />

achincalhe, passando pelo operístico, quando não pelo bufo.<br />

Os gêneros discursivos orais caracterizam-se pela grande<br />

mobilidade e reformulações, tal como os artísticos, prestam-se à<br />

liberdade e criação, mas para que isso ocorra é preciso o domínio dos<br />

processos articulatórios. Quanto maior for o domínio dos gêneros, mais<br />

livremente o usuário pode empregá-los e tanto mais nítida se faz a<br />

individualidade. Quanto maior for a habilidade discursiva, amplo o<br />

repertório, o domínio das formas da linguagem – entendida aqui como<br />

473 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 285.<br />

474 BORELLI, Silvia H. S. Gêneros ficcio<strong>na</strong>is, produção e cotidiano <strong>na</strong> cultura popular de<br />

massa. Gêneros Ficcio<strong>na</strong>is: matrizes culturais no continente. São Paulo: INTERCOM/CNPq,<br />

1994, p. 137.<br />

266


todas as possibilidades de linguagem, não somente a verbal – mais<br />

singular e criativo se fará o discurso. Para Bakhtin, a concepção sobre a<br />

forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre um determi<strong>na</strong>do gênero do<br />

discurso 475 é o guia no processo discursivo do sujeito do discurso que<br />

leva em conta as tarefas a que se propõe (idéias centradas no objeto e<br />

no sentido).<br />

Na complexidade de um discurso artístico próprio de microssérie<br />

intercambiam-se palavras, grupos de palavras, enunciados verbais em<br />

sua variabilidade – as <strong>na</strong>rrações de Chicó, os diálogos no sentido strictu<br />

–, os recursos próprios do veículo que vão dos efeitos especiais, muitos<br />

simples e criativos, até a tecnologia mais avançada. Cor, luz, som,<br />

música, no caso da Compadecida, a intromissão de um filme dos<br />

primeiros tempos cinematográficos: A Paixão de Cristo, <strong>na</strong>da disso é<br />

aleatório, tudo é muito bem pensado, escolhido, pois em busca da<br />

realização da vontade discursiva. Na utilização de elementos<br />

corriqueiros no cinema, mostra-se a intenção cinematográfica<br />

subjacente. No imbricamento – dramaturgia teatral, cinema, literatura –<br />

fica claro o domínio que a autoria discursiva tem do gênero que está<br />

sendo praticado e dos outros que estão sendo estilizados.<br />

Face à grande aceitação da televisão pelo povo, seu grande<br />

envolvimento com ela, é <strong>na</strong>tural que os autores busquem modos de<br />

fazer essa situação render dividendos artísticos e econômicos para si e<br />

para a emissora. A escolha de um produto que preencha essas<br />

intenções deve, portanto, ocupar as mentes dos autores e servir de<br />

balizamento <strong>na</strong>s decisões. Criar um produto que, pela sua maneira de<br />

ser, chegue <strong>ao</strong> público e o satisfaça demanda conhecimento, domínio do<br />

que Bakhtin afirma ser gênero discursivo, forma do conjunto<br />

enunciativo. Quando Arraes e sua trupe apossam-se do teatro<br />

suassuniano e, praticamente, o catapultam para a microssérie, da<br />

forma estilizadora como o fazem, eles demonstram claramente suas<br />

intenções. A filmagem, em película de celulóide de 35mm, indicia o<br />

futuro cinematográfico da microssérie. A visão “guelia<strong>na</strong>” do que é a<br />

475 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 286.<br />

267


televisão está posta em ação: Ela é o teatro, o cinema e a TV do povo<br />

brasileiro. 476<br />

12.1 Os outros para quem o discurso se faz<br />

Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação<br />

discursiva tem sua concepção típica de desti<strong>na</strong>tário que o determi<strong>na</strong><br />

enquanto gênero. 477 A TV é um meio de comunicação de massa, seus<br />

programas dirigem-se a públicos demasiado extensos se comparados<br />

com outros meios massivos; permanecendo o dia inteiro no ar, seus<br />

produtos são quase que voláteis. A dificuldade de se estabelecer<br />

características desse público em relação <strong>ao</strong> gosto médio é tão grande<br />

quanto ele mesmo. Como age esse público face às características<br />

próprias do produto, à linguagem televisiva, à grade horária são<br />

aspectos que dificultam o desenho, as concepções que o sujeito do<br />

discurso, que busca sempre alcançar uma atitude responsiva, possa ter<br />

de seu receptor. Paralelamente, estamos no reino da complexa<br />

comunicação cultural, ou seja, os gêneros em questão estão <strong>na</strong> esfera<br />

da comunicação cultural, <strong>na</strong> qual proliferam inúmeros e variados<br />

discursos em constante intercâmbio, assimilações, reacentuações.<br />

A microssérie, uma das esferas de uso da linguagem, é um<br />

enunciado que se manifesta no discurso. Considerada em sua função<br />

comunicativa, o processo dialógico instala-se em uma interação ativa<br />

sujeito discursivo/espectador. O espectador, <strong>ao</strong> compreender o<br />

significado do discurso, assume uma posição responsiva, ou seja, uma<br />

reação manifesta: concorda ou discorda (total ou parcialmente), complet<strong>ao</strong>,<br />

aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. Ocorre que muitas vezes o<br />

espectador de televisão toma conhecimento de um produto televisivo<br />

por ouvir falar, pelas peças promocio<strong>na</strong>is exibidas pela própria TV, mas<br />

não tem acesso direto – a assistência – à minissérie ou microssérie.<br />

476 INSTITUTO DE ESTUDOS DE TELEVISÃO. Diretor cabra da peste.<br />

477 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 301.<br />

268


Esses discursos, do gênero informativo, acabam por provocar também<br />

uma atitude responsiva. E a televisão passa a ser uma porta de entrada<br />

para outros gêneros que não televisivos: a busca pelo livro, pelo filme,<br />

pelo teatro. Uma resposta de outro tipo ou de efeito retardado.<br />

Esquemas de processos que sugerem um autoria ativa e recepção<br />

passiva para Bakhtin são ficção científica. O receptor é um participante<br />

real da comunicação discursiva. 478<br />

O que há no texto suassuniano, e que é mantido exemplarmente<br />

por Arraes, é o reflexo da realidade objetiva e a criação subjetiva de sua<br />

imagem no processo de conhecer. O que no signo suassuniano está<br />

refletido, está também refratado. O que temos em Ariano e o que temos,<br />

a posteriori, em Guel, é um reflexo específico da realidade, mas em certo<br />

sentido, a criadora da imagem de mundo de um e de outro. O olhar, o<br />

ponto de vista desse olhar, o recorte feito do visto <strong>na</strong> realidade, os<br />

acréscimos, as exclusões, configurando-se em duas obras, duas<br />

linguagens, duas maneiras, dois discursos, dialogando com vários<br />

outros que resgatados do grande tempo fazem-se actualizações em<br />

interdiscursos com a contemporaneidade.<br />

478 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal, p. 271.<br />

269


PARTE 6 – O AUTO DA COMPADECIDA – CINEMA<br />

13 ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA<br />

<br />

<br />

479<br />

Muita coisa mudou desde A Coroação do Czar Nicolau II (1896),<br />

filmado em Moscou, e que mostrava, em inúmeras ce<strong>na</strong>s, o importante<br />

evento. Câmeras fixas que, colocadas em um determi<strong>na</strong>do lugar,<br />

‘registravam’ o que estava <strong>na</strong> frente 480 . Iniciada a etapa ficcio<strong>na</strong>l, isto é,<br />

o cinema prestando-se a contar uma história, as câmeras continuaram<br />

por muito tempo fixas, o filme era uma sucessão de quadros,<br />

entrecortados por diálogos, configurando-se <strong>na</strong>quilo que Ber<strong>na</strong>rdet<br />

chama de tosca linguagem cinematográfica e que mantinha com o<br />

espectador a mesma relação que o teatro. Para se tor<strong>na</strong>r o contador de<br />

histórias popular e querido que tem sido desde o início do século XX –<br />

as bases da linguagem cinematográfica foram lançadas em torno do ano<br />

de 1915, pelos americanos –, buscas frenéticas ocorreram, sempre<br />

direcio<strong>na</strong>das para a elaboração de uma linguagem própria às novas<br />

tecnologias e balizadas pela ficção. Mesmo depois de muitas<br />

experimentações em termos de linguagem, que permitiram e permitem<br />

<strong>ao</strong> cinema descolar-se da ficção, esta continua a ter um lugar de honra<br />

<strong>na</strong> cinematografia.<br />

A primeira conquista foi passar do antes e depois para o<br />

“enquanto isso”, e daí as vitórias foram sucedendo-se: o deslocamento<br />

da câmera que hoje permite um giro de 360 graus, travellings para trás<br />

e para frente, laterais, para baixo e para cima. Lentes especiais facilitam<br />

o trabalho e permitem inovações. Equipamentos leves permitem grande<br />

479 Frase de Guel Arraes. PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel já fez.<br />

480 BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 32.<br />

271


mobilidade. Não satisfeita em se deslocar no espaço, a câmera o recorta,<br />

ou seja, assume uma posição em relação <strong>ao</strong> que está sendo filmado: o<br />

ângulo. Quando João Grilo “retor<strong>na</strong>”, temos uma bela ce<strong>na</strong>,<br />

cinematográfica, sem dúvida, e que está <strong>na</strong> microssérie: um plano geral<br />

vertical focaliza Chicó, cavando uma sepultura para João Grilo, que<br />

repousa numa carroça <strong>ao</strong> lado. O plano geral permite a visão do<br />

descampado, sugerindo a extremada solidão vivida por Chicó. A<br />

verticalização intensifica essa impressão. Chicó sozinho, não só no<br />

espaço, mas <strong>na</strong> vida, tendo <strong>ao</strong> lado o amigo morto. Recortado o espaço,<br />

temos as imagens filmadas (atividade de análise) que, posteriormente,<br />

são reunidas pelo processo de montagem (atividade de síntese). Ainda<br />

para Ber<strong>na</strong>rdet, é nesse momento do caminhar da linguagem<br />

cinematográfica que se evidenciam os modos básicos da expressão<br />

cinematográfica: a seleção das imagens e sua organização numa<br />

seqüência temporal. Nada é aleatório também no cinema, ele não é a<br />

reprodução do real e sim manipulação levada a efeito pelas escolhas<br />

autorais que se concretizam, basicamente, <strong>na</strong> captação das imagens e<br />

em sua montagem.<br />

Figura 36 – A volta de João Grilo<br />

272


13.1 A supressão como procedimento de estilização<br />

João Grilo e Chicó, fazendo a promoção da exibição de A Paixão<br />

de Cristo <strong>na</strong> igreja de Taperoá, solicitam um plano aberto – maior<br />

exposição de espaço; a falsa ressurreição de Chicó, porque falsa fora a<br />

morte, inicia-se pelo mexer os dedos da mão, do pé <strong>ao</strong> som de uma<br />

música alegre e saltitante – plano fechado. Entretanto os elementos em<br />

pauta não estão soltos, <strong>na</strong>vegando cada um por si e sim interrelacio<strong>na</strong>dos,<br />

em termos de planos uns com outros e inter<strong>na</strong>mente em<br />

cada plano. A câmara busca os movimentos das mãos, vai <strong>ao</strong>s pés, à<br />

cabeça para permitir a visão do corpo todo que se levanta saracoteando,<br />

mostrando que está vivo. João Grilo está “morto”, com uma vela entre<br />

as mãos, no chão da igreja, o espaço se comprime e um plano fechado<br />

leva o olhar para a cabeça de João Grilo, em primeiro plano. Mas o<br />

olhar de João Grilo dirige-se para o alto enquanto o do espectador é<br />

deslocado para um pé, rude e maltratado, calçado com uma sandália de<br />

couro: é a procissão dos mortos que João vê quando desperta. O fazer<br />

artístico como processo para configurar o discurso, com todas as suas<br />

implicações, pretendido pelo autor.<br />

Figura 37 – O despertar de João Grilo para o Julgamento<br />

273


Manipulações da linguagem já estavam <strong>presente</strong>s no projeto da<br />

microssérie, segundo o próprio autor 481 . Guel mostra-se consciente da<br />

existência de desigualdades entre os dois suportes quando afirma que é<br />

diferente a assistência a um e a outro, portanto a recepção do produto,<br />

o cinema, exigindo atenção redobrada do espectador em relação à<br />

televisão. O cinema tem exibição ininterrupta e situação específica: sala<br />

escura, tela grande. A televisão tem o fluxo de exibição contínuo e<br />

distendido, exibição dispersa – a do<strong>na</strong> de casa passa roupa, fala <strong>ao</strong><br />

telefone, espia o adolescente no computador e ‘vê TV’. O cinema opera<br />

por intensidade e a televisão por extensidade. No cinema não coube a<br />

ce<strong>na</strong> televisiva em que um vistoso estandarte, tão a gosto de Suassu<strong>na</strong>,<br />

avisa: Episódio de hoje: a morte da cachorra, assim como as várias<br />

entradas do filme A Paixão de Cristo, segundo estudiosos, é uma<br />

maneira de o autor inserir o cinema em seu trabalho televisivo e a<br />

metalinguagem no cinematográfico, foram apoucadas no filme.<br />

Entretanto, nota-se, no filme, a manutenção da estruturação por<br />

blocos, origi<strong>na</strong>lmente proposta pelo autor no texto-base, sendo seguida<br />

com o acréscimo de mais um, O gato que descome dinheiro, <strong>na</strong><br />

microssérie. Na peça, esses blocos seriam o equivalente <strong>ao</strong>s atos e<br />

marcados pela fala do Palhaço. 482 Na microssérie essa estruturação foi<br />

mantida, embora sem a presença do Palhaço. A segmentação própria da<br />

linguagem televisiva, ou seja, sua serialização é que faz a marcação dos<br />

blocos, daí 4 capítulos da microssérie. Esse mesmo material gravado<br />

para a microssérie vai servir de base para a feitura do filme. A questão<br />

agora é: como se deu essa ‘estilização’, recuperando o termo<br />

bakhtiniano?<br />

É fato que a serialização típica dos produtos dramatúrgicos<br />

televisivos não é invenção da TV. Ela já existia <strong>na</strong> literatura epistolar<br />

(cartas, sermões), <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas míticas (As mil e uma noites), nos<br />

folhetins que, como demonstrou Motter, seriam o berço das telenovelas.<br />

As radionovelas que nossas avós tanto apreciavam eram seriadas e<br />

481 Remetemos <strong>ao</strong> item O riso, Parte 5 – Teoria e objeto em diálogo, desta tese.<br />

482 Remetemos à Parte 3 – O texto-fonte, autoria, gênero, temática, desta tese.<br />

274


também os filmes da matinê domingueira, lugar de encontros de nossos<br />

pais. Segundo Machado, a serialização cinematográfica é que vai<br />

fornecer o modelo para a televisão. Os antigos nickelodeons, lá pelos<br />

anos dez do século <strong>passado</strong>, salas de exibição sem o mínimo conforto,<br />

preferencialmente freqüentadas pelos moradores da periferia, exibiam<br />

filmes curtos em oposição <strong>ao</strong>s longas-metragens que surgiram nessa<br />

época e exigiam salas maiores e melhores – os salões de cinema. Os<br />

filmes de longa duração, em partes, eram exibidos nos nickelodeons, e a<br />

base para sua realização foi encontrada nos folhetins jor<strong>na</strong>lísticos. A<br />

serialização permitia o atendimento às duas demandas, ou seja, ela<br />

<strong>na</strong>sce pela necessidade do mercado gerada pelas modificações sociais.<br />

O que se vê em O Auto da Compadecida agora é um esquema inverso:<br />

da serialização ‘origi<strong>na</strong>l’ da microssérie, atendendo à demanda<br />

televisiva, para o longa metragem feito para tela e sala grandes,<br />

pressupostamente, outro público, o cinéfilo.<br />

Já afirmamos anteriormente que os modos básicos da expressão<br />

cinematográfica são seleção das imagens e sua montagem, sua<br />

organização numa seqüência temporal. Das imagens captadas,<br />

selecio<strong>na</strong>das e organizadas para microssérie, a autoria (re)monta o<br />

filme. Estamos sugerindo a extrema valorização da montagem 483 , como<br />

atestado por Ber<strong>na</strong>rdet <strong>ao</strong> referir-se às propostas da escola soviética<br />

nos anos 20 do século XX. Para Eisenstein 484 a montagem não reproduz,<br />

produz, ela é a própria estrutura do pensamento, daí o cinema não ser<br />

meramente um contador de histórias, e sim capaz de produzir idéias.<br />

Portanto, a montagem é algo mais complexo do que processo técnico de<br />

articulação dos elementos de um texto audiovisual. Para Fechine é<br />

(...) o como contar o quê com os recursos técnicoexpressivos<br />

desses meios que operam sincreticamente com<br />

as imagens (imagem fixa, imagem em movimento, palavra<br />

escrita, etc.) e com os sons (música, ruído, palavra falada,<br />

etc.). [...] a montagem pode ser compreendida, enfim, como<br />

modo de articulação (interligação ou inter-relação) das<br />

partes em um todo, nos diferentes níveis de organização<br />

textual: da articulação de planos numa seqüência fílmica<br />

(nível discursivo) à articulação de segmentos <strong>na</strong>rrativos<br />

483 BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema, p. 48.<br />

484 EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.<br />

275


num percurso unificador (transformações de estados do<br />

sujeitos cujas ações se entrelaçam no curso da <strong>na</strong>rrativa<br />

englobante com um início, um desenvolvimento e um ponto<br />

fi<strong>na</strong>l). 485<br />

Ao decidir-se por como contar o quê a partir do existente, a<br />

microssérie, Arraes estaria transitando novamente pelo campo da<br />

estilização bakhtinia<strong>na</strong>. Sobre um discurso – a microssérie –, exaurir<br />

seu tema, acabá-lo de modo a obter responsividade, buscar uma<br />

organização de modo a ressignificá-lo, ou seja, um outro discurso – o<br />

filme –, ele estaria rearticulando, rearranjando, (re)inter-relacio<strong>na</strong>ndo os<br />

elementos múltiplos de um discurso de modo a fazê-lo outro, agora,<br />

fílmico. Se <strong>ao</strong> estilizar o auto suassuniano, Arraes, para atender às<br />

demandas do suporte televisivo, com todas as suas implicações, inclui<br />

mais do que exclui perso<strong>na</strong>gens, situações, episódios; aumenta a<br />

atuação de perso<strong>na</strong>gens; utiliza-se de procedimentos mais próximos da<br />

linguagem fílmica, de tecnologia de ponta a par de ações artesa<strong>na</strong>is,<br />

agora Arraes vai, atendendo a demandas produtivas e de consumo do<br />

cinema, excluir, compactar, reduzir. E esse discurso outro demandará o<br />

mesmo que os anteriores: um processo que o reorganize, que permita a<br />

ressignificação, e o estilo agora representado será o de Guel Arraes por<br />

Guel Arraes.<br />

Circundando a <strong>na</strong>rrativa principal: a fai<strong>na</strong> de João Grilo e seu<br />

companheiro Chicó pela sobrevivência, lutando contra os poderes<br />

domi<strong>na</strong>ntes <strong>na</strong> peque<strong>na</strong> Taperoá, metonimicamente representados<br />

pelas autoridades religiosas, o coronel, o comerciante, o cangaceiro, o<br />

soldado, o valentão – vários episódios agregam-se. Assim, houve<br />

escolhas que nortearam permanências e exclusões sem que a obra, em<br />

seu todo, perdesse as suas possibilidades de significação, o seu<br />

acabamento discursivo A montagem fílmica é então um exercício do<br />

pensar, é o desenvolvimento de idéias, como queria Eiseintein. O rearranjamento<br />

das seqüências <strong>na</strong>rrativas obedeceu a um mecanismo de<br />

supressão de ce<strong>na</strong>s e episódios, enriquecedores em termos de<br />

acréscimos de informações e de expressividade artística, mas não<br />

485 FECHINE, Yva<strong>na</strong>. Montagem e remontagem <strong>na</strong> produção audiovisual de Guel Arraes.<br />

276


impeditivas <strong>ao</strong> caminhar das perso<strong>na</strong>gens, no eixo principal, em busca<br />

de suas proposições <strong>na</strong>rrativas. A rearticulação, agora em filme, é outro<br />

discurso e como tal configura-se em um todo significativo.<br />

O filme se abre com a mesma panorâmica da microssérie, em que<br />

João Grilo e Chicó são vistos <strong>na</strong>s ruas da cidade promovendo o filme A<br />

Paixão de Cristo a ser exibido <strong>na</strong> igreja, à noite (vide figura 24). A<br />

exibição dos créditos inicia-se após essa tomada e pelo nome dos dois<br />

protagonistas sobre um quadro do filme. Na seqüência, os demais<br />

créditos são apresentados inseridos em ce<strong>na</strong>s de A Paixão de Cristo,<br />

como já anotado <strong>na</strong> parte 4 deste trabalho. A história propriamente dita<br />

inicia-se com os dois, Grilo e Chicó, já <strong>na</strong> padaria onde se desenrola o<br />

diálogo em que negociam o emprego com Eurico e <strong>Do</strong>ra, ce<strong>na</strong> que,<br />

tendo como conseqüência a obtenção de trabalho pelos dois, estabelece<br />

uma relação com o eixo <strong>na</strong>rrativo central de modo a se tor<strong>na</strong>r<br />

indispensável. A surra que o padeiro leva de Chicó atrás da Igreja,<br />

confusão também armada por João Grilo, o episódio (<strong>na</strong> microssérie,<br />

capítulo) inteiro do Gato que descome dinheiro são suprimidos. A ce<strong>na</strong><br />

em que Grilo finge estar doente <strong>na</strong> padaria e a pseudo-morte em que é<br />

velado <strong>na</strong> igreja também são suprimidas. Episódios que não mantêm<br />

entre si e com o eixo central uma relação de dependência e, <strong>na</strong><br />

rearticulação feita para o cinema, desaparecem.<br />

O trabalho de re-montagem da minissérie para o filme se dá,<br />

portanto, por supressão de episódios que não se subordi<strong>na</strong>m<br />

diretamente <strong>ao</strong> eixo principal da <strong>na</strong>rrativa, ou seja, as ações da dupla<br />

picaresca em busca da sobrevivência. A presença de Rosinha, já <strong>na</strong><br />

microssérie, quebrando a tradição picaresca de ausência de<br />

preocupação afetiva, é mantida como modo de interessar o público<br />

televisivo e o mesmo ocorre com a audiência cinematográfica, à medida<br />

que uma história de amor sempre prende a atenção.<br />

Por outro lado, a microssérie já apresenta elementos<br />

cinematográficos, ou seja, ela dialoga com os modos cinematográficos,<br />

incorpora modos expressivos imagéticos de outros suportes,<br />

constituindo-se em um produto híbrido como já anotado. Esses modos<br />

277


expressivos borram as fronteiras entre linguagens<br />

televisiva/cinematográfica como evidenciamos no item Desordem <strong>na</strong><br />

fronteira. Esse modo de ser híbrido é também característica da autoria.<br />

Sugerimos que a preocupação cinematográfica, evidenciada no correr da<br />

feitura da microssérie e que leva Arraes a mapear o roteiro para cinema,<br />

segundo ele afirma, influencia a estrutura do produto de modo a,<br />

posteriormente, facilitar a re-estruturação para o cinema.<br />

Milton Hatoum 486 , discorrendo sobre as relações literatura/<br />

cinema e a importância do roteiro, afirma que a<br />

(...) gênese da montagem cinematográfica se encontra no<br />

processo da escrita [...] um bom filme depende de algo que<br />

é um atributo fundamental de uma obra de ficção: a<br />

palavra escrita. Sem um roteiro plausível e capaz de dar<br />

coerência à trama, as imagens correm o risco de perder<br />

sua força e magia.<br />

<strong>Do</strong> mesmo modo, um roteiro é capaz de permitir supressões sem perda<br />

de coerência, de força e magia. Parece-nos que a gênese do filme já está<br />

<strong>na</strong> microssérie. O que no filme foi suprimido foi planejado pelo autor já<br />

<strong>na</strong> escritura e planejamento do produto televisivo.<br />

Guel Arraes já tinha experiência em lidar com a interpenetração<br />

cinema/televisão, quando da feitura de sua Compadecida. O Coronel e o<br />

Lobisomem, feito para a Terça-Nobre, exibido em 1994, foi,<br />

explicitamente, uma experiência de cinema <strong>na</strong> televisão, feita dentro da<br />

televisão, com a mesma equipe e ape<strong>na</strong>s mudança de câmera. Para<br />

Arraes 487 , foi um processo de desmistificação do fazer cinematográfico,<br />

um modo de fazer cinema que <strong>na</strong>sce da televisão e não mais um corpo<br />

estranho a ela. Se O Auto da Compadecida, não foi uma experiência<br />

radical como O Coronel e o Lobisomem, não se pode negar a<br />

interpenetrabilidade pré-existente televisão/cinema, desde seus passos<br />

iniciais com a filmagem em 35mm, passando pelo que Arraes chamou<br />

de mapeamento do roteiro para o cinema enquanto de sua feitura como<br />

microssérie.<br />

486 HATOUM, Milton. Flaubert e a pré-história do cinema. Entrelivros. São Paulo: Duetto, ano<br />

I, n. 3, p. 26-27.<br />

487 ARRAES, Guel. Humor e novas linguagens. In: ALMEIDA, Cândido José. M.; ARAÚJO,<br />

Maria Elisa As perspectivas da televisão brasileira <strong>ao</strong> vivo. Rio de Janeiro: Imago, 1995.<br />

278


Das 27 ce<strong>na</strong>s da microssérie 488 , 7 sublinhadas foram elimi<strong>na</strong>das:<br />

1. Créditos iniciais; 2. Cinema <strong>na</strong> Igreja; 3. Emprego <strong>na</strong> padaria; 4.<br />

Confissão de <strong>Do</strong>ra; 5. Bênção para o cachorro; 6.Major Antônio Moraes;<br />

7. A morte do cachorro; 8. O testamento; 9. Explicações para o Bispo;<br />

10. Encontro com Chicão; 11.O gato que “descome” dinheiro; 12. A<br />

morte de João Grilo; 13. Pedindo emprego <strong>ao</strong> Major; 14. A chegada de<br />

Rosinha; 15. Presentes para Rosinha; 16. Duelo com Chicó; 17.<br />

Pretendente; 18. Uma noite com <strong>Do</strong>ra; 19. Divisão do dinheiro com o<br />

Bispo; 20. Invasão dos cangaceiros; 21. Gaita milagrosa; 22. O<br />

julgamento fi<strong>na</strong>l; 23. Apelando para Nossa Senhora; 24. A volta de João<br />

Grilo; 25. Chicó e Rosinha casados; 26. O dinheiro da porca; 27.<br />

Créditos fi<strong>na</strong>is.<br />

13.2 Uma palavra sobre roteiro<br />

<br />

<br />

489<br />

O homem é um contador de histórias. O ato de contar <strong>na</strong>sceu <strong>na</strong>s<br />

primitivas culturas e vem atravessando tempo e espaço, modificandose,<br />

transmutando-se, mas persistindo. <strong>Do</strong>s velhos contadores em torno<br />

da fogueira <strong>ao</strong> experimentado contador benjaminiano, aquele que conta<br />

recebeu diversos nomes: escritor, romancista, cronista, dramaturgo. O<br />

cinema nos deu um contador cinematográfico. Contemporaneamente,<br />

temos um contador eletrônico. Esse contador cinematográfico e/ou<br />

eletrônico recebe o nome de roteirista.<br />

Como qualquer outro contador, precisa ter sensibilidade para<br />

captar fragmentos, nuances, breves momentos do viver e elaborá-los<br />

488 O levantamento foi feito a partir do DVD e das informações constantes do material<br />

descritivo do mesmo.<br />

489 COMPARATO, <strong>Do</strong>c. Da criação <strong>ao</strong> roteiro, 4ª. contracapa.<br />

279


numa história, ou seja, escrever. Mas, escrever não é a única tarefa de<br />

um roteirista. Ele se reúne com produtores, diretores, atores e muitas<br />

vezes patroci<strong>na</strong>dores. Ele tem que, muitas vezes, saber como arranjar<br />

dinheiro para seu projeto de pôr um roteiro em pé, isto é, alcançar a<br />

ple<strong>na</strong> função do roteiro: ser representado. Não entraremos nesses<br />

aspectos. Ape<strong>na</strong>s e tão somente, fazemos algumas observações, que<br />

julgamos importantes, sobre o roteiro.<br />

O roteiro, segundo <strong>Do</strong>c Comparato 490 , é o princípio de um processo<br />

visual e não o fi<strong>na</strong>l de um processo literário. A escrita de um roteiro tem<br />

como especificidade a referência a códigos diferenciados e nisso reside<br />

sua semelhança com a escrita dramática, pois esta também combi<strong>na</strong><br />

códigos. Como um romance, o roteiro manipula a fantasia, a invenção.<br />

Cria mundos e perso<strong>na</strong>gens que o habitam.<br />

Um roteiro exige uma idéia. Segundo o senso comum, tudo já se<br />

contou, portanto a idéia para se contar algo deve buscar sua<br />

origi<strong>na</strong>lidade no como contar o quê. Vários são os caminhos para uma<br />

idéia, ou para se “ter” uma boa idéia. Guel Arraes achou uma idéia no<br />

texto dramatúrgico de Suassu<strong>na</strong>, este a encontrou <strong>na</strong> sua vivência de<br />

sertanejo e de homem de leituras várias e quase infindas. Nenhum dos<br />

dois teria encontrado idéias se não estivessem dispostos, abertos e<br />

preparados para percebê-las. Arraes não teria notado as possibilidades<br />

do texto-fonte, não teria inventado tão interessantes e risíveis episódios<br />

se, não estivessem, ele e seus colaboradores, predispostos a isso, em<br />

outras palavras, se não fossem habilitados intelectualmente.<br />

<strong>Do</strong> texto-fonte, sobre o qual Guel trabalhou já constavam conflito,<br />

perso<strong>na</strong>gens, ação dramática, tempo dramático, unidade dramática,<br />

categorias, que segundo Comparato, fazem a estrutura de um roteiro.<br />

Há, entretanto, uma diferença crucial a ser vencida. Suassu<strong>na</strong> escreve<br />

para o palco. Guel vai escrever para um “palco” eletrônico: a TV. Outras<br />

linguagens, outros códigos. Por isso dizemos do trabalho de Arraes ser<br />

estilização: apropriação e reescritura, reelaboração, de modo a fazer<br />

<strong>na</strong>scer outro objeto artístico.<br />

490 COMPARATO, <strong>Do</strong>c. Da criação <strong>ao</strong> roteiro, p. 20.<br />

280


Sob o texto suassuniano, Arraes e seus colaboradores recriam um<br />

texto, fazem-no roteiro para televisão. Interferem, inserem, excluem,<br />

tudo em função do suporte (e já prevendo outro, o cinema). Nesse<br />

processo alteram as categorias de base, recombi<strong>na</strong>m e, num exercício<br />

de pensar por imagem eletrônica, criam o roteiro para a microssérie.<br />

Em um segundo, e cremos simultâneo, momento pensam<br />

cinematograficamente, e <strong>na</strong>sce o roteiro fílmico.<br />

A importância do roteiro está <strong>na</strong> necessidade de estabelecer-se<br />

um caminho a ser palmilhado, um mapa que oriente a produção e seu<br />

pessoal técnico, de apoio, diretores, produtores, e o elenco. Cada vez<br />

mais, a produção percebe a impossibilidade de se trabalhar sem o<br />

roteiro, sem um material escrito. É o roteiro que permite o dizer <strong>na</strong> tela,<br />

seja ela peque<strong>na</strong> ou grande. Ainda <strong>Do</strong>c Comparato: Um bom roteiro não<br />

é garantia de um bom filme, mas sem um bom roteiro não existe com<br />

certeza um bom filme.<br />

13.3 Vocação cinematográfica<br />

Auto da Compadecida serviu de texto-fonte para dois filmes<br />

anteriores <strong>ao</strong> de Guel Arraes. Em 1969, A Compadecida chega às telas<br />

assi<strong>na</strong>da por Suassu<strong>na</strong> e George Jo<strong>na</strong>s, em vers<strong>ao</strong> considerada a<br />

primeira tentativa de levar para o cinema as idéias estéticas armoriais.<br />

O filme contou com a inestimável colaboração da arquiteta Li<strong>na</strong> Bo<br />

Bardi, que fez os cenários e de Francisco Bren<strong>na</strong>nd, autor dos figurinos.<br />

Marcado por um ritmo excessivamente lento, mais ainda se comparado<br />

com a obra guelia<strong>na</strong>, caracterizada pela rapidez esperta própria da<br />

autoria, A Compadecida ganha um toque poético <strong>ao</strong> lançar mão de<br />

manifestações artísticas populares, muito a gosto de Suassu<strong>na</strong>, que<br />

apontam as intenções armoriais <strong>presente</strong>s no filme: a Cavalhada, o<br />

Bumba-meu-boi e o Mamulengo, tudo reforçado pelos cenários e<br />

figurinos. Procedimento estilizador, pois apropriação de outros textos<br />

culturais. Tanto Bo Bardi como Bren<strong>na</strong>nd estavam imbuídos do espírito<br />

281


armorial e seus discursos-fontes foram as expressões populares do<br />

nordeste, as festividades de rua bem <strong>ao</strong> espírito preconizado por<br />

Bakhtin.<br />

A Compadecida conta com Armando Bógus (João Grilo) e Antônio<br />

Fagundes (Chicó) que caracterizavam a dupla Besta e Palhaço,<br />

apresentando um baixinho fazendo o safado e um grandalhão, o<br />

ingênuo e trapalhão. Felipe Carone é o Padre e o comediante Ari Toledo,<br />

o Gangaceiro. Regi<strong>na</strong> Duarte antecede a doçura de Fer<strong>na</strong>nda<br />

Montenegro como Nossa Senhora. Parece-nos ser impossível negar um<br />

olhar “gueliano” sobre A Compadecida de Suassu<strong>na</strong>/Jo<strong>na</strong>s trinta anos<br />

depois.<br />

Os Trapalhões no Auto da Compadecida é realizado em 1987, sob<br />

a direção de Roberto Farias e roteiro de Suassu<strong>na</strong>. A maior virtude do<br />

filme é a trilha sonora de Antônio Madureira e não pode ser esquecida a<br />

ce<strong>na</strong> do julgamento, muito bem feita e que recebeu da crítica o adjetivo<br />

bela. É estrelado pelos Trapalhões, à época grupo formado por Didi,<br />

Dedé, Mussum e Zacarias.<br />

As 2 horas e 37 minutos da minissérie foram reduzidas para 1<br />

hora e 24 minutos; das 27 seqüências, 7 foram suprimidas, resultando<br />

no filme que foi exibido <strong>na</strong>s salas de cinema e <strong>na</strong>s versões para vídeo e<br />

DVD. O filme contou com a propaganda generosa da Rede Globo. De<br />

início, 80 cópias foram postas à disposição. Diz-se que o número cópias<br />

chegou a 180, para atender a todos os pedidos.<br />

Merecidamente a obra ganhou o Grande Prêmio Cinema Brasil:<br />

Melhor Lançamento em cinema – 2001; Melhor Diretor (Guel Arraes);<br />

Melhor Roteiro (Guel Arraes); Melhor Roteiro (Adria<strong>na</strong> Falcão); Melhor<br />

Roteiro (João Falcão); Melhor Ator (Matheus Nachtergaele) e o do<br />

Festival de Cinema do Recife – Troféu Guararapes/Voto do Júri Popular<br />

– 2001.<br />

282


CONSIDERAÇÕES FINAIS – REFAZENDO O PERCURSO<br />

<br />

491<br />

A proposição deste trabalho, perceber as articulações das<br />

diferentes linguagens, que suspeitávamos existir, <strong>na</strong> micróssérie O Auto<br />

da Compadecida, revelou-se maior e mais complexo do que a suposição<br />

inicial fazia crer. Traçado o risco, escolhidas as linhas e cores, agulhas<br />

entre os dedos, partimos, de início, rapidamente, como toda bordadeira.<br />

Logo, logo, as linhas embromaram-se e os nós apareceram. Para que a<br />

linha deslizasse pelo fundo da agulha e pelo risco, configurando-se em<br />

bordado, muitas foram as paragens e passagens – belas, instigantes,<br />

misteriosas – que exigiram muito esforço, físico e mental, para que,<br />

desfeitos os nós, prosseguíssemos.<br />

O Auto da Compadecida é um produto televisivo, usando a<br />

linguagem corrente, adaptado de um texto dramático e serviu à<br />

adaptação para o cinema. Nesse processo, o que permanece, o que é<br />

descartado? Se adaptado, qual o origi<strong>na</strong>lidade, a criatividade que<br />

existe? Que riscos orientam as mãos que bordam? Que linhas e cores e<br />

por que são escolhidas? Como se combi<strong>na</strong>m, melhor, recombi<strong>na</strong>m-se os<br />

elementos? Por quem? Para desfazer o nó foi preciso buscar o processo.<br />

Este visto como a sucessão de procedimentos que levam à formação de<br />

um todo que consideramos ser O Auto da Compadecida.<br />

Há um texto-fonte sob o qual a autoria da microssérie debruçouse<br />

de modo a conhecê-lo em seus meandros de feitura. Autores, num<br />

primeiro e longo estágio; depois produtores, técnicos e atores fizeram-se<br />

íntimos do sertão, da Taperoá ficcio<strong>na</strong>l e seus habitantes <strong>na</strong>da<br />

ficcio<strong>na</strong>is, para surpreendê-los em seus modos vivenciais. Arraes, desde<br />

sempre, usa sandálias de couro. O texto suassuniano fez parte de sua<br />

origem per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>, habitou a biblioteca dos Arraes. Seu objeto não<br />

491 MALCHER, Maria Ataide. O protagonismo da dramaturgia <strong>na</strong> TV brasileira, p. 213.<br />

284


é o teatro e sim a televisão, a longo prazo, o cinema, linguagens que se<br />

fazem discurso, não no palco, olho no olho com o público, no momento<br />

fugidio de uma ence<strong>na</strong>ção, mas <strong>na</strong> telinha e <strong>na</strong> tela grande, sob o olhar<br />

da câmera e buscando uma atitude responsiva de um público massivo.<br />

Arraes, com sua formação em cinema, cumprida <strong>na</strong> juventude<br />

francesa, aporta no Brasil, onde aprende a fazer televisão e,<br />

preferencialmente, comédia. Dessa pluralidade toda só poderia <strong>na</strong>scer<br />

um objeto múltiplo, heterogêneo em que o cruzamento de linguagens,<br />

numa miscelânea bem urdida, faz-se heteroglossia – diferentes<br />

linguagens e sistemas de signos em interação –, permitindo sua<br />

categorização como sendo um híbrido – texto, que orientado<br />

dialogicamente, interage com vários sistemas sígnicos. A origi<strong>na</strong>lidade e<br />

novidade residem nessa are<strong>na</strong> discursiva, <strong>na</strong> qual linguagens em<br />

simultânea ebulição nos <strong>presente</strong>iam com uma outra e nova<br />

Compadecida, um outro auto que não mais o de Suassu<strong>na</strong>.<br />

A busca espraia-se por um amplo e rico universo linguageiro. O<br />

cotidiano duro do sertanejo, lá de seu lugar seco e ventoso, fornece o<br />

discurso da vida que, refletido e refratado, apresenta-se deformado<br />

pelas articulações com antecessores que fla<strong>na</strong>m pela realidade. Mas<br />

esse discurso contata-se com manifestações de outras produções<br />

culturais, muitas lá no grande tempo 492 , onde residem os esquecidos ou<br />

incompreendidos em sua época de <strong>na</strong>scimento. Habitam também os que<br />

estão sempre a espiar o <strong>presente</strong> e são por este espiados: os discursos<br />

vicentinos, cervantinos, shakespereanos, goldonianos etc. e que<br />

parecem ter vida eter<strong>na</strong>. Nas manifestações tecnológicas<br />

contemporâneas, a autoria depara-se com as possibilidades discursivas<br />

da computação gráfica, do olhar rápido, certeiro e vário das moder<strong>na</strong>s<br />

câmeras cinematográficas, com o agitado mundo do videoclipe e da<br />

história em quadrinhos.<br />

Essencialmente, O Auto da Compadecida tem como grande<br />

parceiro dialógico o campo da cultura popular. O diálogo primeiro com o<br />

texto suassuniano já o marca como inserido no universo popular.<br />

492 O grande tempo é o espaço-tempo onde vivem as obras que rompem os limites de seu<br />

<strong>presente</strong> e remetem tanto <strong>ao</strong> <strong>passado</strong> como <strong>ao</strong> futuro, o devir.<br />

285


Recriando e reorganizando em outro(s) suporte(s), produzindo um outro<br />

discurso, a autoria mantém e reforça o interdiscurso, num diálogo<br />

profundo e poético com as origens. Origens aqui pensada como a noção<br />

de que o homem nordestino – perso<strong>na</strong>gem da história – vive os mesmos<br />

problemas e as mesmas paixões que os experimentados em qualquer<br />

lugar do mundo e, por isso, perso<strong>na</strong>gem histórico, universal. Taperoá é<br />

a síntese do mundo e do Brasil, em particular; é o palco onde a vida se<br />

revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há<br />

<strong>na</strong>da perfeito, nem completo, é a quintessência da incompletude 493 . Nessa<br />

contradição e incompletude reside o popular cuja expressão resiste <strong>ao</strong>s<br />

cânones estabelecidos, àquilo que Bakhtin chama de oficial. Como em<br />

Rabelais, o que está em Suassu<strong>na</strong> e o que temos estilizado em Arraes, é<br />

a marca do “caráter não-oficial”. As imagens “guelia<strong>na</strong>s” recusam-se <strong>ao</strong><br />

dogmatismo, à estabilidade, à formalidade limitada, constituem-se a<br />

partir das formas diversas e risonhas, próprias da praça, da festa, em<br />

que a vida, em toda a sua seriedade, é tratada com humor e o riso<br />

ocupa o trono. Os elementos limitadores próprios da cultura<br />

desaparecem e subsistem os humanos, universais e utópicos 494 .<br />

O espírito festivo e car<strong>na</strong>valesco, da mesma forma que revoga as<br />

relações hierárquicas, extingue as barreiras sociais e de classe,<br />

desalie<strong>na</strong> o vocabulário. A comunicação <strong>na</strong> praça constrói-se num clima<br />

desarvorado e livre, inconcebível em situações normatizadas. Os<br />

trocadilhos, os jogos de palavras, a absorção e reutilização dos<br />

provérbios e ditos populares, os juramentos, muitos proibidos ou<br />

censurados <strong>na</strong> comunicação oficial, <strong>na</strong> cultura popular, circulam<br />

livremente. Só no universo popular, é possível invocar a Virgem, através<br />

de um verso de cordel, entre saracoteios e salamalaques em <strong>na</strong>da<br />

condizente com o ambiente – o Julgamento Fi<strong>na</strong>l. É o grotesco<br />

manifestando-se pelo cômico em oposição às formas elevadas ou oficias.<br />

O Auto da Compadecida persiste <strong>na</strong> categoria dramaturgia, ficção<br />

televisiva serializada, microssérie. Entretanto, O Auto da Compadecida<br />

493 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 23.<br />

494 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular <strong>na</strong> Idade Média e no Re<strong>na</strong>scimento: o contexto de<br />

François Rabelais, p. 11.<br />

286


evelou algo a mais em termos de procedimentos, que o fazem especial<br />

como produto cultural de massa. Sua feitura revela um processo de<br />

estilização que sob a ótica bakhtinia<strong>na</strong> é a apropriação e a reutilização<br />

em outros e novos tons do já existente. É a emergência de uma outra(s)<br />

voz(s) que, fazendo-se interdiscurso entre si e com a realidade, traz à<br />

luz um outro em sua totalidade constitutiva, um enunciado completo,<br />

mas um discurso em aberto, por isso prestou-se <strong>ao</strong> cinema, uma outra<br />

obra e, como tal, uma totalidade. Em sua heterogeneidade e<br />

heteroglossia, um híbrido. Estrategicamente dialógico, pronto para<br />

outros embates discursivos.<br />

Desvendar algo é fazê-lo conhecido e também torná-lo manifesto,<br />

patente. Aquilo que é patente, manifesto não deixa dúvidas, daí o<br />

desvendado ser o desprovido de dúvidas, de mistérios.<br />

Pretensiosamente intentávamos desvendar, portanto, dar fim às<br />

dúvidas e seqüestrar os mistérios linguageiros escondidos <strong>na</strong>s dobras<br />

do manto da Compadecida. Fora melhor se tivéssemos um discurso<br />

menos arrogante e pensado em diligenciar, esforçar-nos para conhecer<br />

um pouco dos mistérios da feitura, da tessitura, dos riscos, linhas e<br />

cores que sustentam o bordado brilhante e sedutor que é O Auto da<br />

Compadecida. Mesmo porque, no mundo ainda não ocorreu <strong>na</strong>da<br />

definitivo, a ultima palavra do mundo e sobre o mundo ainda não foi<br />

pronunciada, o mundo é aberto e livre, tudo ainda está por vir e sempre<br />

estará por vir. 495<br />

495 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de <strong>Do</strong>stoiévski, p. 167.<br />

287


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e brocados de João Guimarães Rosa. Seleção e prefácio de Paulo Ró<strong>na</strong>i,<br />

edição comemorativa dos 75 anos que faria o autor. Edição especial e<br />

fora do comércio para MPM Propaganda, numerada de 0001 a 11000,<br />

exemplar n. 4669. Rio de Janeiro: Salamandra, 1983.<br />

SABOIA, Jakson. Manual do autor roteirista. Rio de Janeiro: Record,<br />

2001.<br />

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__________. A pe<strong>na</strong> e a lei. Rio de Janeiro: Agir, 2005.<br />

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Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte, MG, 2-6<br />

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__________. Porque ‘Hoje é Dia de Maria’, todos os dias são dias de<br />

Maria. In: A<strong>na</strong>is do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da<br />

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CROVINI, Peter et al. The book of art: a pictorial encyclopedia of<br />

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5 th imp. New York: Grolier, 1969. v. I: Origin of Western Art.<br />

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da<br />

Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Elaborado no<br />

Instituto Antonio Houaiss e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C<br />

Ltda.<br />

PROJETO MEMÓRIA das Organizações Globo. Dicionário da TV Globo.<br />

Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2003. v. 1: Programas de Dramaturgia &<br />

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Comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2001.<br />

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ADORO CINEMA. Os Trapalhões no ‘Auto da Compadecida’. Disponível<br />

em: .<br />

Acesso em: 03 junho 2006<br />

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.<br />

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. Acesso em: 03<br />

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em 25 janeiro 2006.<br />

LEITURA ESCRITA. Guel Arraes. Disponível em:<br />

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em: 04 agosto 2004.<br />

PÁGINA 20 – ESTILO. Uma arte brasileira erudita baseada <strong>na</strong> cultura<br />

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. Acesso em: 08 outubro 2004.<br />

PORTO SEGURO BRASIL. Guel Arraes: só o humor constrói. Disponível<br />

em: . Acesso: em 04 agosto 2002.<br />

__________. Veja o que Guel já fez. Disponível em:<br />

. Acesso em: 31<br />

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PORTO SEGURO BRASIL. Veja o que Guel já fez. Disponível em:<br />

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em: 31 janeiro 2004.<br />

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2006.<br />

300


REVISTA VEJA. Proezas bem brasileiras. 10/9/2002, p. 91 Sessão<br />

Filmes <strong>na</strong> TV.<br />

__________. O muso de Guel. São Paulo: Abril, 20 agosto 2003, p. 121.<br />

RODRIGUES, Apoe<strong>na</strong>n. Um jeito cordel de ser. Revista Isto É. São<br />

Paulo: Editora Três, n. 1768, 20 agosto 2003. Sessão Cinema.<br />

SELIGMAN, Airton. Guel Arraes: só o humor constrói. Porto Seguro<br />

Brasil. Disponível em: . Acesso em: 31 abril 2004.<br />

WEBCINE. Notas de produção. Disponível em:<br />

. Acesso em:<br />

05 abril 2004.<br />

MICROSSÉRIE / FILMES<br />

O AUTO da Compadecida. Direção e Núcleo: Guel Arraes. Roteiro: Guel<br />

Arraes, Adria<strong>na</strong> Falcão e João Falcão. Diretor de Produção: Eduardo<br />

Figueira. Coorde<strong>na</strong>ção de Produção: Gustavo Nielebock. Gerência de<br />

Produção: Andréa Cômodo. Direção de Arte: Lia Renha. Produção de<br />

Arte: Moa Batsow. Direção de Fotografia: Felix Monti. Figurino: C<strong>ao</strong><br />

Albuquerque. Caracterização: Marlene Moura. Cenografia: Fer<strong>na</strong>ndo<br />

Schmidt. Câmera: Ricardo Fuentes. Efeitos Visuais: Capy Ramazzi<strong>na</strong>.<br />

Efeitos Especiais: James Rothman. Produção Musical: João Falcão e<br />

Carlinhos Borges. Elenco: Aramis Trindade – Cabo Setenta; Bruno<br />

Garcia – Vicentão; Denise Fraga – <strong>Do</strong>ra, mulher do padeiro; Diogo Vilela<br />

– Eurico, padeiro; Enrique Diaz – comparsa de Severino; Fer<strong>na</strong>nda<br />

Montenegro – Compadecida; Lima Duarte – Bispo; Luiz Melo – Diabo;<br />

Marco Nanini – Severino, o Cangaceiro; Matheus Nachtergaele – João<br />

Grilo; Maurício Gonçalves – Jesus; Paulo Goulart – Major Antonio<br />

Moraes; Rogério Cardoso – Padre João; Selton Mello – Chicó; Virginia<br />

Cavendish – Rosinha. Produzida por Columbia Tristar Home Vídeo.<br />

Microssérie exibida entre 5-8 janeiro 1999, 22h30, 04 capítulos. 2<br />

DVDs.<br />

O MERCADOR de Veneza. Direção e roteiro: Michael Redford. Produção:<br />

Gary Brokaw, Michael Cowan, Barry Naviidi e Jason Piette. Produzido<br />

por Sony Pictures Classics, California Filmes, 2004.<br />

301


SEMINÁRIOS<br />

GRUPO DE PESQUISA para o estudo da Semiosfera. I Encontro<br />

Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para o estudo da Semiosfera. Centro Universitário Belas<br />

Artes, São Paulo, promoção do Oktiabr, PUC, São Paulo, agosto 2005.<br />

NPTN – Núcleo de Pesquisa de Telenovela. História faz bem para a<br />

memória. Ficção e história: o papel da ficção <strong>na</strong> recuperação da<br />

memória histórica brasileira: as relações entre criação ficcio<strong>na</strong>l e<br />

historiografia. Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São<br />

Paulo, São Paulo, 31 março 2003.<br />

NPTN – Núcleo de Pesquisa de Telenovela. Os anos JK. Escola de<br />

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 08<br />

dezembro 2005.<br />

302

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