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Entre as escrituras deformadas, o alfabeto indecifrável e as ... - anpap

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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plástic<strong>as</strong><br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

<strong>Entre</strong> <strong>as</strong> escritur<strong>as</strong> deformad<strong>as</strong>, o <strong>alfabeto</strong> indecifrável e <strong>as</strong> escrit<strong>as</strong><br />

secret<strong>as</strong>.<br />

Resumo<br />

* Seb<strong>as</strong>tião Pedrosa<br />

Professor Associado – UFPE<br />

O artigo discute a obra do artista argentino León Ferrari que também faz uso da escrita<br />

como construção de visualidades. As ´escrit<strong>as</strong> deformad<strong>as</strong>`e os ´quadros escritos` são<br />

resultados de uma longa pesquisa em que o artista se utiliza de textos, alterando-os e<br />

chegando ao extremo do ininteligível, criando uma obra plástica de pura abstração.<br />

Seu trabalho tem contribuído para a afirmação da arte atual enquanto quebra de<br />

limites entre o texto e a imagem. Num segundo momento o autor reflete em seu<br />

próprio processo de criação e a relação com a obra de artist<strong>as</strong> estudados, entre eles<br />

Klee, Schwitters, Twombly e León Ferrari.<br />

Palavr<strong>as</strong>-chave: Processo criativo, Escrita/ imagem, Arte do Séc. XX, León Ferrari.<br />

Abstract<br />

The article discusses the work of the Argentinean artist León Ferrari who also makes<br />

use of writing <strong>as</strong> a construction of visualities. His ´deformed writings`, and ´written<br />

pictures` are the results of a long research in which the artist uses texts, altering them<br />

to the extent to become unintelligible, and creating a visual work of pure abstraction.<br />

His work h<strong>as</strong> contributed to the <strong>as</strong>sertion of today’s´ art <strong>as</strong> a break of boundaries<br />

between text and image. In a second instant the author reflects in his own creative<br />

process of artistic creation and the relationship with the work of other artists studied,<br />

among them Klee, Schwitters, Twombly and Ferrari.<br />

key words: Creative process, Writing/ image, XX Century Art, León Ferrari.<br />

As imagens escrit<strong>as</strong> de León Ferrari<br />

Mediante a ação de tomar o lápis, o pincel ou caneta e deslizar<br />

voluntária e conscientemente sobre uma folha de papel, impregnando-a de<br />

rabiscos, é possível se instaurar o processo de construção de uma obra de<br />

arte. Podemos chamar esse processo como atividade de desenho, projeto de<br />

gravura ou pintura, ou simplesmente construção de uma escrita deformada, ou<br />

garatuj<strong>as</strong>, <strong>alfabeto</strong> enigmático, desenhos que se tornam textos ou textos que<br />

se tornam obr<strong>as</strong> de arte. Esta é a impressão que temos quando olhamos a<br />

obra gráfica de León Ferrari, artista argentino que viveu no Br<strong>as</strong>il entre 1976 e<br />

1984.<br />

Sua obra desenvolvida num espaço de cinqüenta anos, quando olhada<br />

ligeiramente parece dispare e desarticulada entre si, m<strong>as</strong> quando verificada em<br />

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conjunto e relacionada aos títulos atribuídos, os tem<strong>as</strong> e o seu conteúdo se<br />

entrelaçam e permitem melhor leitura. Ferrari constrói desenhos, pintur<strong>as</strong>,<br />

escultur<strong>as</strong>, gravur<strong>as</strong>, instalações ou objetos híbridos que remetem aos<br />

questionamentos sobre valores éticos e estéticos dominantes, à imposição de<br />

poderes, aos horrores da violência, à posição da mulher na sociedade, ou às<br />

questões do erotismo. Toda temática tratada mediante o uso de montagens,<br />

colagens, repetições, ironia e gestualidade, quando se concentra no gesto<br />

gráfico, sua obra nos remete à construção de uma escritura, muit<strong>as</strong> vezes<br />

abstrata, sem o imediato reconhecimento do que significa. Isto só é melhor<br />

entendido se observarmos a reprodução na fig. 1, produzida em 1962.<br />

Fig. 1 - L. Ferrari. Sem título.1962.<br />

Água- forte, (25,5 x 19,5 cm).<br />

Fig. 2 – L. Ferrari. Carta a um general<br />

1963. Naquim s/ papel (24 x 14,2 cm)<br />

Na série de trabalhos produzidos neste período nenhuma marca ou<br />

´escrita`se aproxima a qualquer signo gráfico existente no repertório de<br />

imagens já construído pelo homem; são marc<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong> por Ferrari, criando<br />

imagens construíd<strong>as</strong> por garatuj<strong>as</strong> dispost<strong>as</strong> em linh<strong>as</strong> paralel<strong>as</strong> na posição<br />

vertical da página sugerindo um fluxo de linh<strong>as</strong> que parecem se desenvolver da<br />

esquerda para a direita, levando o espectador à agir como adivinho ou<br />

decifrador de textos manuscritos.<br />

A incorporação da idéia de escrita em sua obra toma vários conceitos e<br />

configurações; vejamos algum<strong>as</strong>:<br />

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Escritur<strong>as</strong> Deformad<strong>as</strong><br />

Tomado por uma atitude política, em abril de 1963 León Ferrari produziu<br />

sua primeira “Carta a um General” (fig. 2) e deu início a uma série de trabalhos<br />

que ele denominou de ´escritur<strong>as</strong> deformad<strong>as</strong>`. São trabalhos que se<br />

apresentam como um emaranhado de linh<strong>as</strong> e garatuj<strong>as</strong> organizad<strong>as</strong> em<br />

paralel<strong>as</strong> como um texto literário ou partitura musical. O texto apresenta uma<br />

grafia que em momento algum pode ser decifrada e se revela como um<br />

emaranhado de linh<strong>as</strong> abstrat<strong>as</strong>. Segundo Andréa Giunta, n<strong>as</strong> imagens de<br />

Ferrari coexistem dois sentidos: o perceptível, relativo somente às form<strong>as</strong>, e o<br />

intelectual que remete ao texto original, embaralhado em linh<strong>as</strong>, que não é<br />

possível decifrar (1). Segundo essa autora, a grafia embora indecifrável, se<br />

manifesta como palavr<strong>as</strong>, e em cert<strong>as</strong> oc<strong>as</strong>iões têm um sentido político, como<br />

os desenhos que ele produziu na série ´Carta a um General` nos quais<br />

confrontam a escrita deformada com o título da série. Mesmo impossibilitado<br />

de decifrar <strong>as</strong> garatuj<strong>as</strong>, quando o espectador ler o título seu poder de<br />

<strong>as</strong>sociações é acionado. Talvez por isto Ferrari evite dar título à maioria de<br />

seus trabalhos.<br />

A obra de Ferrari, como ele próprio afirma, segue dois caminhos<br />

diferentes; um mais gráfico, abstrato, o outro mais iconográfico, com<br />

apropriação de estamp<strong>as</strong> e objetos reconhecíveis. “Quando faço os desenhos<br />

e <strong>as</strong> aquarel<strong>as</strong>, não pretendo querer significar nada; faço porque gosto de fazer<br />

e deixo para aquele que <strong>as</strong> observa a liberdade de interpretar, ou não.” (2).<br />

Nesta vertente está contida a obra em que o gesto gráfico, a ´escrita` é<br />

proeminente. A outra vertente para ele é a que se utiliza da apropriação de<br />

uma iconografia como estamp<strong>as</strong> e estatuet<strong>as</strong> de santos ou tem<strong>as</strong> políticos para<br />

expressar a idéia e, segundo ele “a diferença entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> linh<strong>as</strong> está no<br />

ponto de partida de cada uma, na forma como <strong>as</strong> faço” (3). De fato, mesmo<br />

quando ele constrói imagens de cunho abstrato, o significado político que<br />

talvez se evidencie mais quando ele usa uma iconografia reconhecível, como<br />

<strong>as</strong> fotografi<strong>as</strong> e estatuet<strong>as</strong>, também está implícito, como na série intitulada de<br />

´Cart<strong>as</strong> a um General`. Nessa imagem, a grafia explorada, embora indecifrável,<br />

se manifesta como palavr<strong>as</strong> e é reforçada pelo título da obra.<br />

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Quadro Escrito<br />

Antes de se envolver no processo gráfico, León Ferrari desenvolvia um<br />

trabalho tridimensional com arames retorcidos e soldados em estrutur<strong>as</strong><br />

espaciais que tinha um apelo gráfico. Por isto foi comissionado a executar uma<br />

gravura para integrar L´Avanguardia Internazionale de Schwarze, no início de<br />

1962 quando ele residia em Milão (fig 3). O ´Quadro Escrito`portanto, surge<br />

como culminância de um processo lento e exploratório. A partir do desenho de<br />

estrutur<strong>as</strong> composto de linh<strong>as</strong> com característic<strong>as</strong> divers<strong>as</strong>, entre ret<strong>as</strong>, curv<strong>as</strong><br />

e obliqu<strong>as</strong>, e exploração do sentido do plano, <strong>as</strong> imagens foram adquirindo<br />

semelhança com paut<strong>as</strong> e escritur<strong>as</strong>. Dessa maneira, su<strong>as</strong> escritur<strong>as</strong> têm<br />

como gênese o desenho, para depois surgirem textos, uma trajetória<br />

semelhante ao surgimento da escrita. Como culminância desse processo León<br />

Ferrari se apropria de uma pintura alheia e a descreve como se o artista<br />

pudesse pintá-la com palavr<strong>as</strong>. Dessa forma, ao invés de tinta a página é<br />

preenchida de uma escrita em que <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> ondulam e <strong>as</strong> letr<strong>as</strong> variam de<br />

tamanho e ocupação da página, criando um espaço composto de linh<strong>as</strong> e<br />

malha tonal, m<strong>as</strong> sempre com uma grafia legível.<br />

A experimentação com a escrita na obra de Ferrari ganha força e não se<br />

limita às experimentações. A escrita foi usada em manuscritos sobre corpos<br />

dos manequins, como na obra ´Deuteronômio`de 1994 em que ele escreve um<br />

fragmento do texto bíblico em um manequim. Em ´Arte visual escrita`, de 1996<br />

em que Ferrari se apropria de textos, às vezes artigos de jornais, que lhe<br />

parecem ideologicamente significativos, amplia e os transfere para a tela, em<br />

fieis caracteres tipográficos e o define de ´quadro puramente literário`. Em<br />

´Roupa Escrita` Ferrari escreve em figurinos de modelos conhecidos textos de<br />

Borges, Breton ou da Bíblia.<br />

O <strong>as</strong>pecto comunicacional de sua obra é estendido também aos<br />

deficientes de visão; vári<strong>as</strong> imagens são construíd<strong>as</strong> com a superposição da<br />

escrita em braile, seja sobre fotos de André Breton, Ferdinando Scianna ou<br />

sobre recortes de jornais, como por exemplo, quando ele usa a escrita em<br />

braile sobre <strong>as</strong> págin<strong>as</strong> do jornal Clarín para tratar de tem<strong>as</strong> contundentes<br />

como de um artigo que esse jornal comenta sobre o código moral dos talibans<br />

no Afeganistão. A manchete do jornal ilustrada por mulheres vestid<strong>as</strong> de<br />

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burc<strong>as</strong> afirma que “Los talibanes enterraron viva a una pareja de amantes”. A<br />

foto e o texto são apropriados por Ferrari e sobrepostos por um texto bíblico,<br />

em braile, retirado do Livro do Deuteronômio e transformado na obra intitulada<br />

de “Quando alguém se surpreender”, de 1998. (4).<br />

Assim, ao incorporar signos gráficos em braile, um código que o próprio<br />

artista desconhece, sobre fotos reconhecíveis, se estabelece a quebra de<br />

hierarquia entre imagem e escrita. E, em se apropriando desse <strong>alfabeto</strong><br />

desconhecido é como reafirmar a visualidade, e portanto, a pl<strong>as</strong>ticidade da<br />

escrita. O uso da escrita na obra plástica de Ferrari ocorre de muit<strong>as</strong> maneir<strong>as</strong>,<br />

desde a incorporação do texto legível na série “Quadro Escrito” até à referência<br />

caligráfica em trabalhos como aquele ilustrado na figura 1, ou mesmo em<br />

algum<strong>as</strong> de su<strong>as</strong> escultur<strong>as</strong> como “Torre de Babel”.<br />

Um pouco sobre o artista<br />

León Ferrari n<strong>as</strong>ceu em Buenos Aires em 1920, depois de ter vivido na<br />

Europa e no Br<strong>as</strong>il, atualmente vive e trabalha em Buenos Aires. Formou-se<br />

em engenharia na Faculdade de Ciênci<strong>as</strong> Exat<strong>as</strong>, Físic<strong>as</strong> e Naturais da<br />

Universidade de Buenos Aires. Sua produção artística teve início em 1955, com<br />

obr<strong>as</strong> em técnic<strong>as</strong> e suportes, como a colagem, o xerox, a arte postal e os<br />

objetos, elaborados em materiais como cerâmica, gesso, madeira, cimento e<br />

aço inoxidável. Nos primeiros cinco anos da década de 50 Ferrari viveu na<br />

Itália, entre Florença e Roma. De volta a Buenos Aires, León Ferrari concebeu<br />

su<strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> escultur<strong>as</strong> abstrat<strong>as</strong>, no início dos anos sessenta. São peç<strong>as</strong><br />

feit<strong>as</strong> com arame de aço inoxidável, tendo a linha como elemento de<br />

construção, mediante a soldagem de h<strong>as</strong>tes um<strong>as</strong> às outr<strong>as</strong>, que se emendam<br />

e se cruzam, geralmente em estrutur<strong>as</strong> verticais, m<strong>as</strong> sempre a partir de uma<br />

organização geométrica cuja luminosidade torna difuso o rigor construtivo.<br />

Participou da vanguarda argentina com su<strong>as</strong> investigações caligráfic<strong>as</strong> e<br />

descrição de pintur<strong>as</strong> e objetos também na década de 60.<br />

Onde quer que ele resida, Leon Ferrari sempre se articulava com<br />

artist<strong>as</strong> novos e experimentais, ou com intelectuais atuantes que<br />

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manifest<strong>as</strong>sem uma visão crítica do mundo. Viveu em São Paulo, como<br />

exilado político, de 1976 a 1984 e em 1991 retornou a sua cidade natal.<br />

A conotação política de sua obra artística sempre provocou querel<strong>as</strong> e<br />

polêmic<strong>as</strong>. A imprensa divulgou o incidente ocorrido na sua retrospectiva "León<br />

Ferrari 1954-2004", no Centro Cultural de Recoleta, em Buenos Aires. A<br />

exposição foi interditada por pressão de um grupo de católicos conservadores<br />

que a considerou uma bl<strong>as</strong>fêmia à fé católica e aos códigos morais. As<br />

manifestações se convertiam em ações violent<strong>as</strong>, mobilizando grupos<br />

contrários e favoráveis à sua obra, como por exemplo, um grupo de católicos<br />

que invadiu a instituição e destruiu dez d<strong>as</strong> peç<strong>as</strong> em exposição. Um mês<br />

depois de inaugurada, a mostra foi censurada por “bl<strong>as</strong>fêmia” e fechada por<br />

decisão judicial, o que gerou manifestações divers<strong>as</strong>, inclusive virtuais, pela<br />

internet, liderad<strong>as</strong> por intelectuais e artist<strong>as</strong>, até que a exposição novamente<br />

fosse aberta.<br />

Em volta de 1962, Ferrari inicia uma série de trabalhos manuscritos com<br />

nanquim sobre papel, em que os traços da caligrafia são desenhos e escritura<br />

a um só tempo. Segundo ele mesmo, em entrevista a críticos br<strong>as</strong>ileiros, afirma<br />

que os manuscritos marcam a primeira experiência do processo em que o<br />

cunho político do conteúdo de sua obra se estabelece:<br />

Eu comecei, em Milão, a fazer desenhos que eram escritos, ou<br />

desenhos que continham textos. Fiz, nesta época, <strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> cois<strong>as</strong><br />

com um caráter político, que eu chamei de ‘Cart<strong>as</strong> a um general’. Eram<br />

escritur<strong>as</strong> com letr<strong>as</strong> deformad<strong>as</strong>, em que eu falava cois<strong>as</strong> que agora<br />

não posso compreender. E não sei se o general <strong>as</strong> compreendia ou se<br />

eu fazia desta forma para que os generais não pudessem compreender<br />

o que eu pensava deles.” (4)<br />

A produção artística de Leon Ferrari se estabelece cada vez mais como<br />

afirmativa de um artista que se mostra antenado com a questão política/social<br />

que estremece o mundo. Sua participação no projeto coletivo de artist<strong>as</strong> que<br />

ficou conhecido como grupo “Tucumán Arde” confirma sua atuação como<br />

artista engajado. O Grupo formado no início de 1968 por sociólogos,<br />

pesquisadores e artist<strong>as</strong> de vanguarda argentinos unidos à cl<strong>as</strong>se operária,<br />

propunha uma arte coletiva de intervenção com o objetivo de pensar a<br />

realidade do país. O projeto foi concebido como uma programação envolvendo<br />

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três etap<strong>as</strong>: primeiramente, estabelecer contato com lideranç<strong>as</strong> polític<strong>as</strong> e<br />

organizações culturais n<strong>as</strong> provínci<strong>as</strong> de Tucumán e de Santa Fé, no interior<br />

da Argentina; num segundo momento, documentar <strong>as</strong> regiões através de filmes<br />

e fotos de plantações de cana-de-açúcar, fábric<strong>as</strong> abandonad<strong>as</strong>, hospitais e<br />

fazer entrevist<strong>as</strong> com a população; no terceiro momento realizar exposições<br />

n<strong>as</strong> cidades de Rosário e Buenos Aires, em espaços consagrados à arte, e<br />

espaços de organizações comunitári<strong>as</strong> como os sindicatos. Afirma Ferrari que<br />

“Na Argentina, havia, na década de 1960, uma tradição muito forte de arte<br />

política feita por coletivos. Fizemos com o “Tucumán Arde” uma mostra<br />

intitulada de “Homenaje a latinoamérica”. Sua participação como artista<br />

engajado não se limita apen<strong>as</strong> ao grupo Tucumán. Em 1968 juntamente com<br />

outros artista engajados realizou a “1ª Bienal de Arte de Vanguarda”, com a<br />

idéia de usar a arte como pretexto político, e afirmou em público que tinha uma<br />

grande confiança em que a arte podia fazer muito politicamente.<br />

Seus objetos, sempre instigantes refletem a visão crítica que o artista faz<br />

à imagem católica do inferno como uma justificativa da Igreja para matar e<br />

torturar gente desde a época da inquisição até <strong>as</strong> ditadur<strong>as</strong> latino-american<strong>as</strong><br />

da década de 1960 e 1970. <strong>Entre</strong> seus objetos polêmicos destaca-se a obra "A<br />

civilização ocidental e cristã” de 1965 em que um Cristo crucificado está preso<br />

em um avião de combate norte-americano.<br />

Escrit<strong>as</strong> que revelam imagens<br />

Na busca de encontrar <strong>as</strong> motivações própri<strong>as</strong> para a construção de<br />

imagens que derivam ou se espelham no gesto ancestral próximo ao da<br />

escrita, encontro artist<strong>as</strong> com os quais me identifico e partilho de certo modo de<br />

su<strong>as</strong> idéi<strong>as</strong> e construções. Em Paul Klee encontro a elaboração de um trabalho<br />

intertextual em que ele incorpora às pintur<strong>as</strong> signos, letr<strong>as</strong>, ideogram<strong>as</strong> ou<br />

<strong>alfabeto</strong>s inventados, tornando-<strong>as</strong> imagens mist<strong>as</strong> de elementos pictóricos e da<br />

escrita.<br />

A consciência sobre o fazer artístico de Klee tem me acompanhado<br />

desde há vários anos; o próprio título da série (Escrita Secreta) que venho<br />

desenvolvendo desde o final dos anos 90 eu tomei emprestado do título que<br />

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Paul Klee atribuiu a uma de su<strong>as</strong> obr<strong>as</strong>, Secret Writing em 1934. É uma pintura<br />

sobre papel medindo 48 X 63.5 cm. com nenhuma sedução cromática ou<br />

elementos que sugiram interpretações ou <strong>as</strong>sociações com o mundo visível, a<br />

exemplo de su<strong>as</strong> pintur<strong>as</strong> em que ele incorpora signos gráficos como “Porto<br />

Rico”. A obra intitulada de “Secret Writing” é pura abstração, pintura<br />

monocromática que se comporta como uma escrita, composta de signos<br />

inventados, justapostos e ocupando toda superfície do plano, sem<br />

hierarquização de um signo sobre o outro o que reforça uma leitura no plano<br />

bidimensional. Os signos não oferecem chave alguma ou talvez qualquer<br />

decifração nos permita a pensar que nos deparamos com signos ilegíveis que<br />

lembram <strong>alfabeto</strong>s arcaicos, de cultur<strong>as</strong> remot<strong>as</strong> no tempo, e portanto, com<br />

segredos ainda não revelados, permanecendo secretos. Mesmo <strong>as</strong>sim é uma<br />

imagem que cativa o olhar e nos leva a pensar.<br />

Já a obra de Kurt Schwitters me ensina a reutilizar fragmentos de<br />

palavr<strong>as</strong> encontrados em colet<strong>as</strong> esporádic<strong>as</strong> e lhes dar um novo significado<br />

quando transpostos para um novo contexto, criando uma nova imagem<br />

impregnada de elementos da escrita. Isto me resultou na execução de um<br />

pequeno livro de artista, de tiragem única que intitulei de “This is not a<br />

Merzbau”, realizado em 1996.<br />

Com a obra de Cy Twombly me sinto desafiado a garatujar, m<strong>as</strong> quando<br />

isto não acontece, sinto-me impulsionado a desconstruir a imagem criada para<br />

em seguida reconstruí-la num ato em que o olho não tem responsabilidade<br />

sobre o olho, como fazia Twombly em seus desenhos feitos no escuro de seu<br />

alojamento nos tempos em que servia o exército americano (5).<br />

Influenciado pela idéia de Twombly em desenhar no escuro, repensei o<br />

meu próprio método de construção de imagens. Tenho realizado alguns<br />

desenhos que são feitos gestualmente sem muita preocupação com o<br />

resultado final. Mesmo de olhos abertos deposito marc<strong>as</strong> indiscriminadamente<br />

sobre a superfície do papel ou outro material como suporte. Marc<strong>as</strong> que<br />

certamente têm o desejo da escrita, no dizer de Roland Barthes. M<strong>as</strong> não me<br />

atenho ao método dos expressionist<strong>as</strong> abstratos nem permaneço<br />

simplesmente no desenho guiado pelo automatismo psíquico adotado pelos<br />

surrealist<strong>as</strong>. Num segundo momento a folha de papel é quadriculada<br />

sistematicamente, numerada e recortada em pequenos módulos. Numa outra<br />

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superfície a imagem é reorganizada com a seqüência numeral alterada. Às<br />

vezes são justapostos o primeiro e último módulo e <strong>as</strong>sim sucessivamente, às<br />

vezes obedeço a um movimento pendular ou espiralar na reorganização dos<br />

módulos. E <strong>as</strong>sim o processo se torna um continuum.<br />

Em me deparar com a obra de León Ferrari foi como confirmar um antigo<br />

desejo: ampliar a pesquisa iniciada há dois anos sob o título: “A escrita<br />

indecifrável: a construção de imagens a partir de um <strong>alfabeto</strong> imaginário”. Seus<br />

desenhos e gravur<strong>as</strong>, principalmente a série de desenhos de nanquim sobre<br />

papel de 1962 a 1964 me deixam confortável. A grafia que ele explora, embora<br />

indecifrável, se manifesta como palavr<strong>as</strong>, e me traz familiaridade, empatia e o<br />

desejo de prosseguir, criando nov<strong>as</strong> imagens. A fig.3, de minha autoria foi<br />

realizada antes de meu contato com a obra de Ferrari. Embora sinto-me<br />

também convencido de que o registro visível do que hoje esboço não poderia<br />

ser resultado de um esforço espontâneo de genialidade. É evidente que foi<br />

precedido de métodos e pesquis<strong>as</strong> de outros artist<strong>as</strong> e como afirma Veneroso:<br />

“também a questão do movimento pendular na arte tem levado os artist<strong>as</strong> a<br />

buscar a visualidade da letra, reafirmando a origem imagética da escrita”. (6).<br />

Fig. 3 - Seb<strong>as</strong>tião Pedrosa. S/ título .Da<br />

Série Escrita Secreta. Água-tinta. 2005<br />

Neste repensar e recriar metodologi<strong>as</strong><br />

e na visitação de processos criativos<br />

de outros artist<strong>as</strong> encontro a<br />

visualidade da escrita como<br />

possibilidade de construção de uma<br />

poética visual. A partir do ato de fazer<br />

garatuj<strong>as</strong> consigo me liberar d<strong>as</strong> marc<strong>as</strong> preconcebid<strong>as</strong>, criando imagens que<br />

partem de uma escrita indecifrável, para a construção de uma escrita que<br />

revela imagens.<br />

____________<br />

NOTAS:<br />

(1) GIUNTA, Andréa (ed.) Perturbadora beleza; in Leon Ferrari Retrospectiva. Obr<strong>as</strong> 1954-2006. São<br />

Paulo: Cosac Naify/ Imprensa Oficial, 2006; p. 20.<br />

(2) Afirmativa de Leon Ferrari in NOÈ, Luis Felipe, visita a León Ferrari – Op. Cit – p. 31.<br />

(3) Ibid<br />

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(4) Afirmativa de León Ferrari em debate no auditório da Pinacoteca, São Paulo. In<br />

Acessado em 15/03/2008.<br />

(5) No ano de 1953/ 1954 Twombly produziu uma série de desenhos, sempre à noite, no escuro, quando<br />

<strong>as</strong> luzes de seu alojamento eram forçosamente apagad<strong>as</strong>. Se o gesto de escrever ou desenhar<br />

pressupõe uma conexão entre o olho e a mão, em desenhar completamente no escuro Twombly<br />

retirou do ato de olhar a responsabilidade do controle, da evidência e neste sentido ele liberou o<br />

desenho ou pintura do controle do olho. Ver PEDROSA, S. Sobre a relação Imagem e Texto na Arte<br />

do Século XX. Anais do 16º Encontro Nacional da ANPAP ISBN 85-98958-04-2<br />

(6) VENEROSO, Maria do Carmo de Freit<strong>as</strong>. Letra como imagem, a imagem da letra, in NAZARIO, Luiz<br />

e FRANCA, Patrícia (org.). Concepções Contemporâne<strong>as</strong> da Arte. Belo Horizonte: Editora UFMG,<br />

2006, p. 63.<br />

____________<br />

* Seb<strong>as</strong>tião Gomes Pedrosa – Professor Associado, vinculado ao<br />

Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE. É arte<br />

educador e artista plástico, com título de doutor obtido em 1993 pela University<br />

of Central England in Birmingham, na Inglaterra. É membro sócio da ANPAP<br />

desde o início dos anos 90.Tem participado de vári<strong>as</strong> exposições de arte, no<br />

Br<strong>as</strong>il e na Europa.<br />

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