Literatura marginal em revista - Grupo de Estudos em Literatura ...
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84 Marcos Zibordi<br />
E se a m<strong>em</strong>ória individual ten<strong>de</strong> a presentificar, a coletiva particulariza<br />
no personag<strong>em</strong> os probl<strong>em</strong>as gerais <strong>de</strong> que trata. É o caso <strong>de</strong> “Sonhos<br />
<strong>de</strong> um menino <strong>de</strong> rua”, no qual Garret cria um narrador <strong>em</strong> terceira<br />
pessoa para vasculhar digressivamente os pensamentos <strong>de</strong> Ramón, que<br />
incorpora todo o ódio aos mandantes do país e o <strong>de</strong>scaso com os mandados.<br />
Um personag<strong>em</strong>-síntese, digamos, com a função <strong>de</strong> carregar e representar<br />
as questões dos <strong>de</strong>svalidos, afirmando, na mesma esteira, que o<br />
indivíduo <strong>de</strong>sviado (viciado, assaltante, assassino) é fruto <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a<br />
que os faz assim, que exclui <strong>em</strong> geral e ferra <strong>em</strong> particular há muito<br />
t<strong>em</strong>po. A culpa é dos donos do po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> seus her<strong>de</strong>iros hereditários,<br />
que geram <strong>marginal</strong>izados e sucessores <strong>de</strong> geração <strong>em</strong> geração.<br />
O estilo virgulado do texto, que t<strong>em</strong> ponto final só no pé <strong>de</strong> cada<br />
parágrafo, começa focando o menino <strong>de</strong> rua, mas logo passa ao superherói<br />
i<strong>de</strong>alizado e ironizado pelo narrador. Muito b<strong>em</strong> explorado psicologicamente,<br />
é um tipo que encarna o mandante político nacional. A propósito,<br />
o autor Garret “também o<strong>de</strong>ia o presi<strong>de</strong>nte e não preten<strong>de</strong> lançar<br />
nenhum livro <strong>em</strong> vida”:<br />
De on<strong>de</strong> está jogado, ele pensa <strong>em</strong> várias coisas, no canto do mundo, no fundo do poço,<br />
como muitos diz<strong>em</strong>, ele sofre euforias, vertigens, sua mente entre <strong>em</strong> colapso, com<br />
fome, a cola não cumpriu a função, o esmalte também não, ele pensa num super-herói,<br />
um super-herói nacional, com gran<strong>de</strong> status, com uma gran<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>, um cu<br />
<strong>de</strong> burro trancado <strong>em</strong> uma sala, bebendo água mineral, respirando ar condicionado, e<br />
com o cu na mão, com medo <strong>de</strong> tomar um tiro, um a facada, ou sei lá que porra possa<br />
acontecer, qu<strong>em</strong> sabe um Zé Mané qualquer resolva pegar um canela seca e acabar com<br />
toda essa covardia.<br />
(...)<br />
Porém, ele sabe, apesar <strong>de</strong> estar jogado na rua, que antes, <strong>em</strong> sua adolescência, esse<br />
gran<strong>de</strong> hom<strong>em</strong> que governa essa gran<strong>de</strong> nação fumava nos banheiros dos melhores<br />
colégios <strong>de</strong> São Paulo, e sonhava <strong>em</strong> um dia ser presi<strong>de</strong>nte <strong>em</strong>bora nunca tenha sido<br />
gente da gente, <strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po r<strong>em</strong>oto ele até cheirou cocaína na virilha <strong>de</strong> várias vadias,<br />
transou consigo mesmo durante anos, escutando Bob Marley e Stones, usava seis <strong>de</strong>dos<br />
e tinha tendências homossexuais, pensava <strong>em</strong> sua mãe, mas <strong>de</strong>pois se envergonhava.<br />
Às vezes até pensava <strong>em</strong> suas tias, gozava, limpava com a coberta, e a coberta úmida na<br />
boca era passada mais tar<strong>de</strong>, ele adorava o gosto, seu pênis já murcho era friccionado até<br />
a segunda ejaculação.<br />
Mas agora ele dá or<strong>de</strong>ns e ven<strong>de</strong> um país inteiro por miséria, interesses pessoais, seu filho