Título: Corte e Costura Autora: Cristiane Curi Abud Endereço: Al ...
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situação traumática caracteriza-se por um excesso de excitação, proveniente de fora do<br />
aparelho psíquico, e que o assola, sem dar-lhe tempo de preparar-se para o “ataque”.<br />
Toma-o de surpresa, anulando qualquer possibilidade de defesa que, normalmente, se dá<br />
através da ansiedade. A ansiedade prepara o corpo e o psiquismo para enfrentar<br />
situações de perigo real ou imaginário. Neste sentido, o trauma é insidioso, silencioso e<br />
covarde.<br />
Numa analogia com uma vesícula, possuidora uma membrana externa que ao<br />
mesmo tempo protege o organismo e mantém contato com o meio externo, Freud atribui<br />
ao psiquismo um escudo protetor possuir desta mesma dupla função.<br />
Angélica sofreu um colapso de seu escudo protetor, que foi corporal e<br />
mentalmente ferido, rasgado, arranhado, cortado. Trauma que ela repete inúmeras<br />
vezes, trazendo à tona todo o desprazer e angústia, a ele inerentes. Neste caso, não<br />
percebemos seus pensamentos e atitudes, regidos pelo princípio do prazer, mas pelo<br />
princípio da compulsão, que repete para tentar, quem sabe desta vez, controlar, evitar<br />
aquilo que há anos atrás tornou seu frágil escudo, de apenas três anos de idade,<br />
inoperante.<br />
Identificada com o avô, Angélica se corta, com o consolo que, desta vez é ela<br />
que se corta, na hora e do jeito que quiser. Controla as marcas em seu corpo, assim<br />
como controla o tempo em que isto de dá. Repete a cena, encarnando ao mesmo tempo<br />
o abusador e a abusada. Dupla personalidade numa só cena, num só tempo. O sintoma,<br />
neste caso, é uma tentativa de “tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser<br />
rememorado e elaborado na mente” 5 . O resultado dos cortes em seu corpo são<br />
quelóides largos e grossos, representantes concretos de um escudo protetor mais<br />
impermeável.<br />
Angélica sonha, e novamente não se trata de um sonho regido pela regra geral de<br />
que a função dos sonhos é a realização de desejos, segundo dita o princípio do prazer.<br />
Um pedaço de carne crua, sangrando, ferroada por pinos de ferro, este é o pesadelo que<br />
se repete nas noites de Angélica. Sonho, textualmente, nu e cru, que não requer grandes<br />
elucubrações para que sua relação com o trauma seja estabelecida. Ainda mais após sua<br />
fala: “ Meu avô ferrou com a minha vida”. Sem grandes disfarces, Angélica sonha sua<br />
dor. Devemos notar uma diferença entre sonhar com a carne cortada e se cortar de fato.<br />
No caso, sonhar, já é uma transformação da carne concretamente cortada em uma<br />
representação de coisa; a carne sangrenta ganha assim um estatuto psíquico. Contar-me<br />
o sonho transforma a representação de coisa – imagem da carne crua e sangrenta - em<br />
representação de palavra, que dentro do psiquismo, também reflete uma importante<br />
transformação. Ou seja, os sonhos traumáticos surgem em obediência à compulsão à<br />
repetição que tenta “dominar retrospectivamente o estímulo” 6 que desmontou o escudo<br />
protetor. Resta ao psiquismo vincular psiquicamente os estímulos, integrá-los, para<br />
então poder deles se desvencilhar. Uma vez vinculados no psiquismo, os estímulos que<br />
passam então a representar algo para o sujeito, tendem a dissipar-se. Sua energia é<br />
liberada para outras conexões e atividades psíquicas.<br />
Apesar das diferenças apresentadas entre o mecanismo dos sintomas neuróticos<br />
e traumáticos, o fato de que ambos possam ter um sentido a eles atribuído se mantém.<br />
5<br />
Ibid, p.29.<br />
6<br />
Ibid, p.48.