Título: Corte e Costura Autora: Cristiane Curi Abud Endereço: Al ...
Título: Corte e Costura Autora: Cristiane Curi Abud Endereço: Al ...
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<strong>Título</strong>: <strong>Corte</strong> e <strong>Costura</strong><br />
<strong>Autora</strong>: <strong>Cristiane</strong> <strong>Curi</strong> <strong>Abud</strong><br />
<strong>Endereço</strong>: <strong>Al</strong>. Joaquim Eugênio de Lima, 881, cj 1105<br />
Jardim Paulista CEP: 01403-001<br />
Currículo: Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes<br />
Sapientiae, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Doutoranda em Administração<br />
de Empresas pela FGV-SP, Psicóloga e Professora da UNIFESP-EPM.<br />
Sinopse<br />
Relato, neste trabalho, o caso clínico Angélica, paciente de 24 anos que sofreu, junto<br />
com sua irmã dois anos mais velha, abuso sexual na infância, dos três aos seis anos de<br />
idade, por parte do avô materno. Angélica apresentava uma intensa ansiedade que, por<br />
vezes, aumentava gerando tamanha aflição a ponto de ela precisar cortar-se com uma<br />
lâmina, queimar-se com um isqueiro e causar o vômito da grande quantidade de<br />
alimentos que havia ingerido, para aliviar-se. Os sintomas assolam o corpo da paciente,<br />
sendo seu psiquismo impedido de atividade fantasiosa. Proponho uma discussão sobre a<br />
formação e o sentido desses sintomas a partir da teoria freudiana, distinguindo sua<br />
formulação sobre a formação de sintomas neuróticos da sua elaboração de sintomas que<br />
estão “além do princípio do prazer”. Concluo que as formulações teóricas freudianas<br />
acerca das neuroses traumáticas propiciam uma melhor compreensão desse caso, que<br />
passa a exigir então, a partir da análise da transferência, um questionamento e uma<br />
discussão sobre seu manejo clínico.
<strong>Corte</strong> e costura<br />
<strong>Cristiane</strong> <strong>Curi</strong> <strong>Abud</strong><br />
Ângela procura atendimento psicoterápico, no Projeto Quixote do Hospital São<br />
Paulo/UNIFESP, por acreditar que seu pai poderia estar abusando de sua filha de quatro<br />
anos de idade. A equipe avaliou o caso, e Ângela relatou ela mesma ter sido abusada<br />
pelo avô materno dos cinco aos oito anos de idade. O avô abusava dela e de sua irmã<br />
Angélica ao mesmo tempo. O suposto abuso da filha de quatro anos se devia a uma<br />
intensa ansiedade de Ângela que não a confiava aos cuidados de ninguém, temendo que<br />
a filha sofresse da mesma sina que ela sofreu.<br />
A equipe decidiu então atender Ângela em psicoterapia, e logo, ela pede<br />
atendimento para sua irmã.<br />
Angélica vem então para o atendimento, no auge de seus 21 anos de idade. Uma<br />
mestiça muito bonita, índia de cabelos negros e lisos, negra de traços fortes, e branca de<br />
pele morena. Entretanto, toda sua formosura esconde-se atrás de uma postura dura e<br />
distante, quase masculina. Queixa-se de muita ansiedade, que transparece nos<br />
movimentos de seu corpo. Pernas e pés que não param de chacoalhar, e mãos sempre<br />
ocupadas com algum objeto que, não raramente, acaba sendo quebrado.<br />
A paciente atribui esta ansiedade à sua infância, pois dos três aos seis anos de<br />
idade foi abusada por seu avô materno. Sua mãe saía para trabalhar e o avô aproveitava<br />
para abusar de Angélica e de sua irmã, dois anos mais velha. Angélica contava os<br />
minutos no relógio para que seu avô terminasse logo o “serviço”. Ao terminar, ele a<br />
levava ao banheiro para limpar seu sangue anal e vaginal com papel higiênico, evitando<br />
que a mãe percebesse algo.<br />
Angélica vinha para as sessões sempre muito angustiada, falava pouco, agitava<br />
muito seu corpo, e contava os minutos no relógio para que a sessão acabasse.<br />
Combinamos então que a sessão acabaria quando ela quisesse, pois estava ali porque<br />
queria, nada a forçava a vir e muito menos a ficar. E assim tem sido. Angélica decide o<br />
encerramento da sessão, com o qual eu geralmente concordo, exceto em situações onde<br />
avalio que se trata de resistência.<br />
As sessões transcorrem com Angélica me contando, sempre com poucas<br />
palavras seu cotidiano de trabalho e os acontecimentos familiares. E ela, que saía pouco<br />
aos finais de semana, começa a sair com os colegas do trabalho. Até que um dia, me<br />
conta que foi a uma boate com esses colegas e “ficou” com um rapaz. Não gostou muito<br />
e sentiu muito sono. Chegou a dormir na boate após tê-lo beijado. Mas continuou a sair<br />
com os amigos e o rapaz insistiu e começaram a namorar. Fiquei, confesso, aflita com a<br />
notícia, pois imaginei que uma sexualidade mais ativa traria problemas para Angélica.<br />
Partilhei minha aflição com o psiquiatra que a atendia e ele muito tranquilamente disse<br />
que uma hora isso teria que acontecer e que seria muito bom se Angélica conseguisse<br />
ter uma vida amorosa. Com o consentimento do “pai”, fiquei mais tranqüila para<br />
acompanha-la nessa novidade que se instalava em sua vida.
<strong>Al</strong>guns meses de atendimento e noto uma pequena mancha de sangue, quase<br />
imperceptível em sua calça jeans. Reclamando que eu não deixo passar nada, Angélica<br />
revela estar se cortando com uma gilete há dois meses. Sente muita angústia e se corta,<br />
sentindo imediatamente um alívio. Sua família não percebe que Angélica anda se<br />
cortando. Sua mãe estranha o fato de Angélica estar lavando, ela própria suas roupas,<br />
mas deixa esta pista passar. Angélica relata que quando criança a mãe não percebia o<br />
abuso que sofria do avô.<br />
Incentivo Angélica a contar para alguém de sua família o que está ocorrendo, e<br />
ela conta para Ângela, que por sua vez conta para sua mãe. Chamo então essa mãe para<br />
uma conversa e ao telefone ela me pede para não contar nada a Angélica sobre a<br />
consulta que faria comigo. Digo que bastava de segredos na família e que iria contar<br />
sim. Ela vem agoniada sem saber como agir com a filha. Relata que seu pai abusava de<br />
suas irmãs e, certa vez, sua mãe o flagrou com uma criança de treze anos na cama de<br />
sua casa. Sente-se culpada por ter confiado as filhas aos cuidados do pai e por não ter<br />
percebido nada. Oriento a mãe para que tire objetos cortantes do alcance de Angélica e<br />
que não a deixe sozinha em casa. Ela me pergunta se pode cuidar dos ferimentos da<br />
filha, pois fica aflita de ver aqueles cortes e não se sente à vontade para se aproximar<br />
fisicamente da filha. Digo que ninguém melhor do que a mãe, ainda mais uma mãe cuja<br />
profissão é costureira, para ajudar a costurar as cicatrizes da filha.<br />
Assim, fica clara para mim também, a missão de ajudar essa moça a fazer a<br />
costura psíquica, de um corpo psiquicamente cortado.<br />
Em determinada sessão, muito tensa e agoniada, Angélica tenta encerrar a sessão<br />
e eu, avaliando tratar-se de uma resistência ao pensamento, pergunto se ela quer sair<br />
para se cortar. Ela concorda e eu peço para que ela descreva o que irá fazer. Angélica<br />
relata que vai ao banheiro, tira suas calças, pega a gilete e corta suas coxas. Às vezes<br />
tira a camisa e corta os braços. <strong>Al</strong>iviada, limpa o sangue com papel higiênico, para que<br />
ninguém perceba o ocorrido. Terminado o relato, observo que Angélica está tranqüila,<br />
concluindo que a fala substitui a ação.<br />
Essa descrição de seu ritual remete diretamente à cena de abuso na qual seu avô<br />
após fazê-la sangrar a limpava com papel higiênico. Relaciono ainda o aparecimento do<br />
sintoma nessa fase de sua vida com o fato de estar namorando. O despertar da<br />
sexualidade reaviva essas lembranças que atormentam Angélica. Percebo-a muito<br />
culpada negando qualquer possibilidade de prazer na relação com o namorado.<br />
Na primeira entrevista que realizei com a paciente me surpreendi dizendo que eu<br />
a atenderia duas vezes por semana, o que é raro acontecer num serviço público onde as<br />
vagas são sempre insuficientes. Mais ainda, dei o número do meu celular a ela, coisa<br />
que não costumo fazer assim tão prontamente. Agora, diante da grave situação, essas<br />
condutas fizeram todo o sentido para mim. Reafirmo então a possibilidade de Angélica<br />
me telefonar caso sua angústia fique muito insuportável.<br />
Angélica não me telefona justificando que isso não é profissional. Vem para uma<br />
sessão dizendo que no final de semana sentiu muita angústia e se cortou mais fundo,<br />
mas nem assim sentiu alívio. Levantou-se querendo encerrar a sessão. Perguntei a ela se<br />
eu tinha cara de lata de lixo na qual ela despejava sua angústia e ia embora. Angélica riu
e sentou, permanecendo na sessão até que a angústia se dissipasse. A minha angústia,<br />
pelo menos, se dissipou!<br />
A partir de então passou a me telefonar com alguma freqüência, como por<br />
exemplo, num sábado que estava sozinha em casa pensando em se matar. Seus pais<br />
haviam saído e precisei ficar com ela durante duas horas ao telefone até que seu pai<br />
retornou. Pedi para falar com ele e marquei uma consulta familiar na mesma semana, na<br />
qual reafirmei a necessidade de não deixar Angélica sozinha. Soube nessa sessão que<br />
Angélica dormia na cama com seu pai, e sua mãe dormia na sala. Orientei para que a<br />
mãe voltasse a dormir com seu marido, ao que ela se recusou, pois o casamento não ia<br />
bem. De qualquer forma, Angélica passou a dormir sozinha.<br />
Outros sintomas apareceram. Angélica começou a se queimar e a vomitar tudo o<br />
que comia. Achava-se gorda e passou a comer alface. Ás vezes não resistia aos doces,<br />
mas os vomitava em seguida. Pergunto se seu avô lhes dava doces caso elas o<br />
obedecessem e ela confirmou. Disse que os doces eram para que elas nada revelassem a<br />
seus pais. Ao mesmo tempo em que rejeitava o alimento oferecido pelo avô,<br />
representante da mãe, a paciente, já sem peito, sem curvas e quase amenorreica, negava<br />
sua sexualidade.<br />
Angélica emagreceu muito a ponto da psiquiatra que a atendia pensar em<br />
interná-la. Nesse momento senti muita raiva e disse a Angélica, do fundo de minha<br />
alma, que bastava, não queira mais ver seu corpo passar por tanto sofrimento, não<br />
queria vê-la internada correndo risco de vida. Saí da sessão com a nítida impressão de<br />
ter atuado minha raiva num desabafo desesperado, e que aquilo, do ponto de vista<br />
analítico, de nada serviria...<br />
O fato é que a paciente começou a alimentar-se melhor e engordou um pouco.<br />
<strong>Al</strong>gum tempo depois começou uma sessão dizendo que achava que estava grávida ao<br />
que eu respondi “que bom!”. Ela estranhou dizendo “como que bom Todo mundo, lá<br />
em casa, está desesperado”. E eu disse que ela me contava que havia uma vida nova<br />
crescendo dentro dela e isso era muito bom sim! Diante da possível gravidez, Angélica<br />
parou de tomar todos os remédios psiquiátricos, que não eram poucos. Mais uma vez<br />
fiquei aflita, mas a apoiei em sua decisão, uma vez que considerei tratar-se de um<br />
movimento de vida que a paciente fazia.<br />
A gravidez biológica não se confirmou, mas, a partir de então, desde meados de<br />
2005, Angélica não mais se cortou, queimou ou vomitou, confirmando assim sua<br />
gravidez psíquica.<br />
Para a psicanálise, os sintomas neuróticos, assim como as parapraxias e os<br />
sonhos, têm um sentido e se relacionam com a experiência dos pacientes. Freud 1<br />
exemplifica esta afirmação com um caso de neurose obsessiva. A paciente apresentava<br />
o seguinte sintoma: várias vezes ao dia, corria de seu quarto até um outro, ficava em<br />
determinada posição ao lado de uma mesa que estava coberta por uma toalha manchada,<br />
chamava a empregada com um sino, dava-lhe um recado e a dispensava. A paciente se<br />
posicionava diante da mesa do outro quarto, de tal forma que, necessariamente, a<br />
1 FREUD,S. (1916) O sentido dos sintomas, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas<br />
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Vol. XVI.
empregada visse a mancha na toalha. Nas suas associações, relata a Freud que se casou<br />
com um homem bem mais velho e na noite de núpcias ele ficou impotente. Preocupado<br />
com a empregada, ele derramou vinho no lençol, manchando-o, para simular uma<br />
relação sexual. Assim, Freud atribui o seguinte sentido ao sintoma: cúmplice de seu<br />
marido, a paciente substituiu a cama pela mesa -cama e mesa representam o casamentonegando<br />
a impotência de seu marido e sua decorrente frustração.<br />
Do ponto de vista psíquico os sintomas são indesejáveis para a pessoa, pois são<br />
inúteis e causam sofrimento. Eles exigem um dispêndio mental para sua formação e<br />
outro adicional para a luta contra eles. Assim, a energia mental da pessoa fica<br />
empobrecida impedindo-a de realizar as tarefas da vida.<br />
Segundo Freud 2 , os sintomas neuróticos são “resultado de um conflito, e que este<br />
surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido”. O conflito se dá entre duas<br />
forças em oposição, sendo que uma delas é a libido insatisfeita que procura outras<br />
formas de realização. Diante da realidade frustrante a libido regride a uma das<br />
organizações que já havia deixado para trás ou a um antigo objeto. A sua regressão se<br />
dá até o ponto de fixação determinado no curso de seu desenvolvimento.<br />
Outra parte do conflito são as objeções do ego que não concordam com essas<br />
regressões e impedem a satisfação da libido. Regredida, a libido desinveste o ego e<br />
catexiza fantasias inconscientes sujeitas aos seus processos-condensação e<br />
deslocamento. Assim como na construção onírica, na formação do sintoma, aquilo que<br />
representa a libido no inconsciente conta com a oposição do ego pré-consciente<br />
impelindo-a a encontrar uma expressão aceitável na consciência. “Assim o sintoma<br />
emerge como um derivado múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libidinal<br />
inconsciente, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois<br />
significados em completa contradição mútua”. 3<br />
Esta teoria é útil para compreender sintomas neuróticos, que sob a influência do<br />
princípio do prazer buscam evitar o desprazer que seria produzido pela liberação do<br />
conteúdo recalcado e insatisfeito. As objeções e resistências do ego funcionam em<br />
concordância com este princípio psíquico. No caso relatado por Freud, a paciente sofre<br />
o conflito entre o desejo sexual pelo marido que, insatisfeito busca outra forma de<br />
satisfação, através da fantasia de ter consumado a relação. A fantasia se expressa na<br />
toalha manchada que representa a consumação do ato sexual. Este sintoma reflete a<br />
conciliação entre o desejo sexual insatisfeito e a objeção egóica da paciente, cuja<br />
consciência não podia admitir o desejo sexual, assim como não admitia a frustração e<br />
raiva decorrentes de sua insatisfação.<br />
Mas esta teoria não serve para a compreensão dos sintomas e sonhos de<br />
Angélica, uma vez que se encontram além do princípio do prazer. Seus sintomas são<br />
compulsivos e causam enorme desprazer ao ego podendo ser compreendidos como<br />
aquilo que Freud 4 descreveu, mais tarde em sua obra, neuroses traumáticas. Uma<br />
2 FREUD,S. (1916) Os caminhos da formação dos sintomas, In: Ed. Standard Brasileira das Obras<br />
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Vol. XVI, p.419.<br />
3<br />
Ibid, p.421.<br />
4 FREUD,S. (1920) <strong>Al</strong>ém do princípio do prazer, In: Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas<br />
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, Vol. XVIII.
situação traumática caracteriza-se por um excesso de excitação, proveniente de fora do<br />
aparelho psíquico, e que o assola, sem dar-lhe tempo de preparar-se para o “ataque”.<br />
Toma-o de surpresa, anulando qualquer possibilidade de defesa que, normalmente, se dá<br />
através da ansiedade. A ansiedade prepara o corpo e o psiquismo para enfrentar<br />
situações de perigo real ou imaginário. Neste sentido, o trauma é insidioso, silencioso e<br />
covarde.<br />
Numa analogia com uma vesícula, possuidora uma membrana externa que ao<br />
mesmo tempo protege o organismo e mantém contato com o meio externo, Freud atribui<br />
ao psiquismo um escudo protetor possuir desta mesma dupla função.<br />
Angélica sofreu um colapso de seu escudo protetor, que foi corporal e<br />
mentalmente ferido, rasgado, arranhado, cortado. Trauma que ela repete inúmeras<br />
vezes, trazendo à tona todo o desprazer e angústia, a ele inerentes. Neste caso, não<br />
percebemos seus pensamentos e atitudes, regidos pelo princípio do prazer, mas pelo<br />
princípio da compulsão, que repete para tentar, quem sabe desta vez, controlar, evitar<br />
aquilo que há anos atrás tornou seu frágil escudo, de apenas três anos de idade,<br />
inoperante.<br />
Identificada com o avô, Angélica se corta, com o consolo que, desta vez é ela<br />
que se corta, na hora e do jeito que quiser. Controla as marcas em seu corpo, assim<br />
como controla o tempo em que isto de dá. Repete a cena, encarnando ao mesmo tempo<br />
o abusador e a abusada. Dupla personalidade numa só cena, num só tempo. O sintoma,<br />
neste caso, é uma tentativa de “tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser<br />
rememorado e elaborado na mente” 5 . O resultado dos cortes em seu corpo são<br />
quelóides largos e grossos, representantes concretos de um escudo protetor mais<br />
impermeável.<br />
Angélica sonha, e novamente não se trata de um sonho regido pela regra geral de<br />
que a função dos sonhos é a realização de desejos, segundo dita o princípio do prazer.<br />
Um pedaço de carne crua, sangrando, ferroada por pinos de ferro, este é o pesadelo que<br />
se repete nas noites de Angélica. Sonho, textualmente, nu e cru, que não requer grandes<br />
elucubrações para que sua relação com o trauma seja estabelecida. Ainda mais após sua<br />
fala: “ Meu avô ferrou com a minha vida”. Sem grandes disfarces, Angélica sonha sua<br />
dor. Devemos notar uma diferença entre sonhar com a carne cortada e se cortar de fato.<br />
No caso, sonhar, já é uma transformação da carne concretamente cortada em uma<br />
representação de coisa; a carne sangrenta ganha assim um estatuto psíquico. Contar-me<br />
o sonho transforma a representação de coisa – imagem da carne crua e sangrenta - em<br />
representação de palavra, que dentro do psiquismo, também reflete uma importante<br />
transformação. Ou seja, os sonhos traumáticos surgem em obediência à compulsão à<br />
repetição que tenta “dominar retrospectivamente o estímulo” 6 que desmontou o escudo<br />
protetor. Resta ao psiquismo vincular psiquicamente os estímulos, integrá-los, para<br />
então poder deles se desvencilhar. Uma vez vinculados no psiquismo, os estímulos que<br />
passam então a representar algo para o sujeito, tendem a dissipar-se. Sua energia é<br />
liberada para outras conexões e atividades psíquicas.<br />
Apesar das diferenças apresentadas entre o mecanismo dos sintomas neuróticos<br />
e traumáticos, o fato de que ambos possam ter um sentido a eles atribuído se mantém.<br />
5<br />
Ibid, p.29.<br />
6<br />
Ibid, p.48.
No primeiro caso trata-se de re-fazer o sentido, ou seja, restaurar a ligação uma vez<br />
existente, entre afeto e traço mnêmico, que foi desfeita por obra do recalque. Assim, no<br />
caso relatado por Freud, a paciente recalca afetos como frustração, impotência, e<br />
rejeição despertadas na sua noite de núpcias e, com estes mesmos afetos ou seus<br />
opostos, monta esta outra cena, a da toalha manchada, que por equivalência de sentido,<br />
e o sentido é dado pelo afeto, remonta a noite de núpcias, consertando-a, tornando-a<br />
mais próxima de seus sonhos. Em outras palavras o sentido afetivo da noite fatídica é<br />
recalcado, separado da situação que o originou, e deslocado para uma outra situação que<br />
tenta, imaginariamente, transformar o desprazer em prazer. O sintoma disfarça sua<br />
insatisfação, mas não a resolve.<br />
No caso de Angélica, o sintoma parece bem menos elaborado e disfarçado.<br />
Trata-se de uma repetição quase literal do trauma, sem direito a grandes deslocamentos<br />
e condensações. Como seu sonho, tudo é muito cru, concreto, desprovido de fantasias e<br />
imaginação. Num primeiro momento, o trauma é, e deve ser reconhecido como<br />
devastador. O analista se oferece como pára-excitação, para que o psiquismo do<br />
paciente se reorganize e possa, pouco a pouco, gerar condições para a superação do<br />
trauma que, finalmente, será possível, quando lhe for atribuído um sentido afetivo que o<br />
inclua na rede psíquica. Desta maneira, aquilo que era cru, bruto e pura excitação,<br />
poderá investir traços mnêmicos, idéias, imagens que uma vez catexizados passam a<br />
representar alguma coisa para o sujeito.<br />
Sabemos que a transferência, “processo pelo qual os desejos inconscientes<br />
se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação<br />
estabelecida com eles” 7 , é eminentemente, analítica. Mas sabemos que, esta “repetição<br />
de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada” 8 , se dá em<br />
todas as esferas da vida das pessoas.<br />
Assim, a paciente também repete seu sintoma no trabalho. Angélica<br />
trabalha, não por acaso, no “Poupa Tempo”, atendendo inúmeras pessoas todos os dias;<br />
trata-se de contatos muito rápidos, mas longos o suficiente para que ela seja maltratada<br />
pelos usuários do serviço.<br />
Novamente, Angélica é vítima de maus tratos e, ao mesmo tempo,<br />
identifica-se com seus carrascos, uma vez que, como ela, os clientes são, muitas vezes,<br />
vítimas do descaso e da negligência do governo, representante paterno da nação.<br />
Recentemente, chegou a uma sessão chorando, pois havia acabado de atender uma<br />
viúva, que não recebeu, por alguns meses, o auxílio que costumava receber.<br />
Impossibilitada de pagar seu aluguel, foi despejada e, na rua com os filhos, foi<br />
estuprada.<br />
Angélica repete a cena traumática também nas sessões, quando, por<br />
exemplo, diz que “fazer terapia é uma tortura”, ou mesmo quando fica olhando o tempo,<br />
que nunca passa, no relógio.<br />
7<br />
LAPLANCHE,J. et al., Vocabulário de Psicanálise - São Paulo: Livraria Martins Fontes Ed.,1967,p.514.<br />
8<br />
Ibid., p.514.
Na transferência, mantinha uma distância comigo, que ela chamava de<br />
“profissional”, vindo sempre armada com seu escudo de quelóides que, ilusoriamente, a<br />
protegiam de suas desconfianças a meu respeito.<br />
Até que começou a reparar em meu consultório (a essa altura eu já deixara<br />
de trabalhar no Quixote e passei a atende-la em meu consultório). Reparava nos<br />
mínimos detalhes da sala, nos objetos, na minha bolsa, meus livros. Constatava uma<br />
ordem nas coisas que não saíam do lugar, sempre muito arrumadinhos. E caso algum<br />
objeto se encontrasse fora do lugar habitual ela estranhava.<br />
Angélica precisava garantir que tudo estava no seu devido lugar, espaços e<br />
papéis bem definidos.<br />
Passou então, a reparar no meu bem estar pessoal detectando o meu<br />
cansaço, tristeza, alegria, e saúde. E suas percepções sobre meu estado de espírito<br />
coincidiam com como eu me sentia. Tratava-se de uma sensibilidade bastante aguçada.<br />
<strong>Al</strong>gumas vezes perguntava sobre a minha vida, e de início tentei investigar quais eram<br />
suas fantasias a esse respeito. Mas Angélica não as expressava. Senti que insistir em<br />
saber sobre as suas fantasias a assustava e decidi responder, por vezes, suas perguntas,<br />
que não me eram invasivas. Soavam mais como a curiosidade de uma criança que mexe<br />
na bolsa da mãe para saber o que tem dentro dela.<br />
Na última sessão, antes de eu escrever esse trabalho, Angélica reparou que<br />
eu estava com olheiras. E perguntei quais seriam, para ela, os motivos dessas olheiras.<br />
Ela disse que talvez muito trabalho ou muito estudo. Após algum silêncio, brincou<br />
dizendo que poderia ter sido alguma “balada”. Desculpou-se pela brincadeira e<br />
perguntei por que não pensar que eu fosse à alguma balada, ao que ela respondeu que eu<br />
era muito “certinha” para isso. Assim, pela primeira vez, Angélica revela algo que pensa<br />
sobre mim, uma fantasia de que eu sou “certinha”, de que não sairei do meu papel de<br />
analista, “profissional”. É quase um pedido de que eu não desrespeite as diferenças<br />
hierárquicas, como seu avô fazia.