Título: Corte e Costura Autora: Cristiane Curi Abud Endereço: Al ...

Na transferência, mantinha uma distância comigo, que ela chamava de
“profissional”, vindo sempre armada com seu escudo de quelóides que, ilusoriamente, a
protegiam de suas desconfianças a meu respeito.
Até que começou a reparar em meu consultório (a essa altura eu já deixara
de trabalhar no Quixote e passei a atende-la em meu consultório). Reparava nos
mínimos detalhes da sala, nos objetos, na minha bolsa, meus livros. Constatava uma
ordem nas coisas que não saíam do lugar, sempre muito arrumadinhos. E caso algum
objeto se encontrasse fora do lugar habitual ela estranhava.
Angélica precisava garantir que tudo estava no seu devido lugar, espaços e
papéis bem definidos.
Passou então, a reparar no meu bem estar pessoal detectando o meu
cansaço, tristeza, alegria, e saúde. E suas percepções sobre meu estado de espírito
coincidiam com como eu me sentia. Tratava-se de uma sensibilidade bastante aguçada.
Algumas vezes perguntava sobre a minha vida, e de início tentei investigar quais eram
suas fantasias a esse respeito. Mas Angélica não as expressava. Senti que insistir em
saber sobre as suas fantasias a assustava e decidi responder, por vezes, suas perguntas,
que não me eram invasivas. Soavam mais como a curiosidade de uma criança que mexe
na bolsa da mãe para saber o que tem dentro dela.
Na última sessão, antes de eu escrever esse trabalho, Angélica reparou que
eu estava com olheiras. E perguntei quais seriam, para ela, os motivos dessas olheiras.
Ela disse que talvez muito trabalho ou muito estudo. Após algum silêncio, brincou
dizendo que poderia ter sido alguma “balada”. Desculpou-se pela brincadeira e
perguntei por que não pensar que eu fosse à alguma balada, ao que ela respondeu que eu
era muito “certinha” para isso. Assim, pela primeira vez, Angélica revela algo que pensa
sobre mim, uma fantasia de que eu sou “certinha”, de que não sairei do meu papel de
analista, “profissional”. É quase um pedido de que eu não desrespeite as diferenças
hierárquicas, como seu avô fazia.