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Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
NOTAS SOBRE A EPIFANIA EM CLARICE<br />
LISPECTOR E EM CARMEN MARTÍN GAITE<br />
Marilia Simari Crozara 1<br />
Yvonélio Nery Ferreira 2<br />
Ao observarmos a História da Literatura, é notória a supr<strong>em</strong>acia da<br />
produção literária do hom<strong>em</strong> ocidental, branco e de classe média/alta <strong>sobre</strong><br />
a da mulher. A ela, assim como a tantas outras minorias, era destinada a exclusão<br />
de seus escritos. O olhar da crítica voltava-se para a valorização da<br />
autoria masculina e legava à autoria f<strong>em</strong>inina o status de inferioridade.<br />
A partir dos anos de 1960, é possível evidenciar os traços de uma<br />
escrita f<strong>em</strong>inina marcada pela conscientização, pela autoafirmação e pela<br />
diferenciação de todo o gênero f<strong>em</strong>inino frente ao masculino. Tendo como<br />
pano de fundo a bandeira do f<strong>em</strong>inismo, <strong>em</strong> meados de 1970, a crítica de<br />
mesma natureza impõe à História da Literatura o resgate de inúmeras obras<br />
de autoria f<strong>em</strong>inina como forma de questionar a então ideologia dominante,<br />
uma vez que a mulher passa a atuar <strong>em</strong> um espaço tradicionalmente destinado<br />
ao hom<strong>em</strong>: o do mundo acadêmico e o da escrita literária.<br />
Pensar nas escritoras deste estudo, cada qual <strong>em</strong> suas condições<br />
sócio-históricas, é observar, tanto na escritora nacionalizada brasileira,<br />
Clarice Lispector, quanto na espanhola, Carmen Martín Gaite, a elaboração<br />
de uma “escrita de protesto” <strong>em</strong> favor do f<strong>em</strong>inino, implicando uma conscientização<br />
existencial do leitor por meio da personag<strong>em</strong>. Essa reflexão nos<br />
leva ao entendimento de que compreender o lugar dessas escrituras é uma<br />
condição da qual a mulher cont<strong>em</strong>porânea não pode privar-se. Mas, para se<br />
chegar a esse momento, pontuar<strong>em</strong>os aspectos destas conquistas apoiadas<br />
na evolução do movimento f<strong>em</strong>inista ocorridos no Brasil e na Espanha.<br />
1 Mestre <strong>em</strong> Linguística - UFU. mariliascz@yahoo.com.br<br />
2 Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal<br />
do Acre, Campus Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre. Doutorando <strong>em</strong><br />
Literatura – UFSC. yvonery@hotmail.com
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
Brasil e Espanha: aspectos do f<strong>em</strong>inismo<br />
O termo “f<strong>em</strong>inismo”, no Brasil, s<strong>em</strong>pre carregou a marca do preconceito<br />
e, mesmo tendo conquistado vitórias e derrotas, não conseguiu<br />
impor-se como motivo de orgulho para a maioria das mulheres. O antif<strong>em</strong>inismo<br />
era tão forte que atribuía às suas defensoras o caráter contrário a<br />
f<strong>em</strong>inino. Por receio de estigmatizações, várias escritoras e outras mulheres<br />
brasileiras rejeitaram tal nomenclatura.<br />
A História do f<strong>em</strong>inismo no Brasil pode ser abarcada a partir de quatro<br />
momentos <strong>em</strong> que o movimento atingiu seu ápice, havendo, entre eles, um<br />
entr<strong>em</strong>eio de mais ou menos 50 anos cujas ideias ficaram <strong>em</strong> estado de letargia.<br />
Essas fases são d<strong>em</strong>arcadas pelas décadas de 1830, 1870, 1920 e 1970.<br />
Nas primeiras décadas do século XX, a lista de escritores reconhecidos<br />
traz pouquíssimos nomes de mulheres; a partir dos anos de 1970 há<br />
uma modificação nesse quadro, pois escritoras como Cecília Meireles e Raquel<br />
de Queiroz colaboram para que diversas outras mulheres sejam inseridas<br />
no mercado editorial. Nessa linha de raciocínio, foi Clarice Lispector<br />
qu<strong>em</strong> abriu “uma tradição para a literatura da mulher no Brasil, gerando um<br />
sist<strong>em</strong>a de influências que se fará reconhecido na geração seguinte”, como<br />
destaca Viana (1995, p. 172).<br />
Não há o intuito de classificar a obra de Clarice Lispector como f<strong>em</strong>inista,<br />
mas, sim, de mostrar que há um questionamento dos valores patriarcais,<br />
apontando outro caminho ficcional baseado na conscientização<br />
do ser humano, valorizando o universo f<strong>em</strong>inino marcado pela repressão,<br />
diante de uma sociedade guiada por preceitos masculinos. Concordando<br />
com o posicionamento de Zolin (2005, p. 280), essas narrativas “questionam,<br />
por meio de discurso irônico, o modelo patriarcal <strong>em</strong> que a mulher fica<br />
reduzida ao que o espaço privado pode lhe proporcionar”.<br />
Em caminho s<strong>em</strong>elhante ao vivido no âmbito brasileiro, a “invenção<br />
de si” como uma forma de autonomia f<strong>em</strong>inina na sociedade espanhola também<br />
enfrentou dificuldades ao contrapor-se a discursos médicos, jurídicos e<br />
políticos extr<strong>em</strong>amente moralizantes e conservadores. Nesse ponto, enfrentar
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as relações de poder tornou-se condição de existência da mulher. Na mesma<br />
medida do enfrentamento, elaborar a natureza do existir evidencia uma relação<br />
imprescindível entre o poder e a m<strong>em</strong>ória, haja vista ser<strong>em</strong> inseparáveis:<br />
s<strong>em</strong> poder não se legitima um relato e, s<strong>em</strong> a m<strong>em</strong>ória, torna-se impossível<br />
legitimar a reflexão, outrora extirpada das mulheres como um ofício.<br />
O espaço ocupado pelo discurso f<strong>em</strong>inista na Espanha do século XX<br />
pode ser observado nas narrativas de Gaite. A pesquisadora Aline Coelho<br />
da Silva, <strong>em</strong> sua Tese de Doutorado “A contística de Carmen Martín Gaite<br />
como alternativa ao discurso franquista”, afirma que<br />
(...) Ocupar um espaço na narrativa da história é tarefa<br />
árdua para a mulher. Desde a formação da razão ocidental,<br />
o discurso heg<strong>em</strong>ônico masculino foi dominante e absoluto.<br />
Subverter esse discurso “miserabilista da opressão” (...)<br />
tornou-se parte da constituição do eu f<strong>em</strong>inino no século<br />
XX. Nos estados comandados pela força militar podese<br />
falar <strong>em</strong> uma dupla-opressão: se a opressão luta pela<br />
abertura d<strong>em</strong>ocrática, tal abertura não pauta <strong>em</strong> sua<br />
agenda a nova formação do espaço da mulher como<br />
pertencente a este topos (SILVA, 2007, p. 115).<br />
Para ex<strong>em</strong>plificar tais questões referentes à literatura de autoria<br />
f<strong>em</strong>inina e às características citadas, tangíveis às obras das autoras <strong>em</strong><br />
estudo, far<strong>em</strong>os considerações acerca do conto “Feliz aniversário” (LISPEC-<br />
TOR, 1998) da coletânea de intitulada “Laços de família”, para compará-lo<br />
ao conto “La chica de abajo”, de Carm<strong>em</strong> Martín Gaite (2000, p. 76), objetivando<br />
mostrar que as inquietações f<strong>em</strong>ininas abrang<strong>em</strong> mulheres diferentes<br />
<strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos igualmente diferentes.<br />
Anita e Francisca: o desvelar da consciência<br />
“Feliz aniversário” narra os acontecimentos da festa de aniversário<br />
de Anita − matriarca de uma família de seis filhos e uma filha − que estava<br />
completando 89 anos. O conto desvela as relações estabelecidas entre os<br />
m<strong>em</strong>bros da família, expondo ao leitor a falsidade que permeava o ato de
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estar<strong>em</strong> ali, naquela festa, não por vontade, mas por obrigação.<br />
Anita, a protagonista, vivia com Zilda, “a única mulher entre os seis<br />
irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço<br />
e t<strong>em</strong>po para alojar a aniversariante” (LISPECTOR, 1998, p. 55). O papel de<br />
cuidar da mãe ficou destinado à filha, não a um dos outros filhos, pressupondo<br />
que, após a velhice, os cuidados ficam destinados à mulher, não ao<br />
hom<strong>em</strong>.<br />
O ponto marcante <strong>em</strong> toda a narrativa é a postura cruel do narrador,<br />
desde o momento <strong>em</strong> que descreve a arrumação da festa até a despedida<br />
dos convivas. Anita havia sido preparada para a festa logo após o almoço,<br />
“para adiantar o expediente”, Zilda a vestiu, borrifou um pouco “de água de<br />
colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado e sentara-a a mesa”<br />
(LISPECTOR, 1998, p. 55). No desenrolar do texto, nota-se que Anita havia<br />
sido era posta à mesa, como se houvesse uma necessidade de devorá-la,<br />
para que aquele momento não mais se repetisse. Todos chegavam e se cumprimentavam,<br />
mas a insatisfação era evidente, inclusive para a matriarca.<br />
Por mais que os músculos do rosto da aniversariante não a interpretass<strong>em</strong><br />
mais e ninguém soubesse o que ela estava sentindo, ela estava consciente<br />
de si e da postura exposta pelos d<strong>em</strong>ais.<br />
Até a disposição da sala é representativa do desejo de que os parentes<br />
não se encontrass<strong>em</strong> mais, fato que só ocorreria com a morte da<br />
protagonista. A mesa está no centro e as cadeiras encostadas nas paredes,<br />
l<strong>em</strong>brando a disposição de um velório <strong>em</strong> que o morto é o motivo da reunião.<br />
O rito de morte continua, passando do velório ao enterro. O bolo era seco,<br />
chegava a esfarelar, cada pedaço de bolo era uma pá de terra lançada <strong>sobre</strong><br />
Anita, que meditava silenciosamente <strong>sobre</strong> o que se passava.<br />
Esse é ponto fundamental dessa narrativa, a postura silenciosa da<br />
protagonista, reveladora do gradativo entendimento acerca de si e de sua<br />
família. Questiona-se a criação dos filhos, as esposas escolhidas, o comportamento<br />
dos netos, como se eles tivess<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma árvore fraca que<br />
dera frutos podres. A quietude é quebrada e o silêncio é irrompido <strong>em</strong> raros<br />
momentos, responsáveis por apresentar a consciência que Anita possui a
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respeito de sua família, e que fora acidamente ruminada, levando a instantes<br />
de explosão da angústia sentida <strong>em</strong> meio ao que se presenciava:<br />
Ela, a forte, que casara <strong>em</strong> hora e t<strong>em</strong>po devidos com<br />
um bom hom<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> obediente e independente, ela<br />
respeitara; a qu<strong>em</strong> respeitara e que lhe fizera filhos e lhe<br />
pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco<br />
fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos,<br />
s<strong>em</strong> capacidade sequer para uma boa alegria. Como<br />
pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, s<strong>em</strong><br />
austeridade O rancor roncava no seu peito vazio. Uns<br />
comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os<br />
com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando,<br />
a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força<br />
insuspeita cuspiu no chão (LISPECTOR, 1998, p. 61)<br />
A atitude inesperada e que tanto choca os familiares, pode ser vista<br />
como o primeiro instante de insurreição e repulsa a seus entes. Há uma profunda<br />
reflexão <strong>sobre</strong> o papel da mulher na família, criação dos filhos, pois<br />
o hom<strong>em</strong> apenas os faz. Ela observa que possuíam caráter fraco e atitudes<br />
s<strong>em</strong> severidade, o que lhe causava um ódio profundo e um forte ressentimento<br />
por filhos incapazes de promover bons momentos de alegria. Cuspir<br />
no chão é, a partir do silêncio das palavras, dizer que ela discorda daquilo<br />
tudo, é um puro ato de descontentamento com o que poderia ter sido e que<br />
não foi, é circunstância lúcida.<br />
Ocasião ex<strong>em</strong>plificadora de outro momento expressivo de lucidez<br />
de Anita, agora verbal e que irrompe o silêncio, ocorre após ela cuspir no<br />
chão, quando, ao pedir um copo de vinho à sua neta Dorothy, esta a questionara<br />
se o vinho não lhe faria mal, ao que a protagonista responde, “− Que<br />
vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. − Que o diabo vos<br />
carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho,<br />
Dorothy!− ordenou.” (LISPECTOR, 1998, p. 62)<br />
Sob outro escopo, mas cumprindo o rito do entendimento/cuidado<br />
de si, no conto “La chica de abajo”, o narrador onisciente enuncia a história
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de duas meninas, Cecília e Paca. A amizade das jovens evidencia uma cumplicidade<br />
inquestionável, até o momento <strong>em</strong> que os pais de Cecília decidiram<br />
que a filha da porteira não seria mais a companhia adequada à menina,<br />
uma vez que elas frequentariam ambientes diferentes na juventude.<br />
Nesse sentido, as desigualdades entre as amigas serão mostradas<br />
a partir da convivência social com o outro. Portanto, s<strong>em</strong> compreender<strong>em</strong><br />
as razões para o distanciamento entre elas, será na presença de outras meninas<br />
de mesma faixa etária que, paulatinamente, a amizade da dupla se<br />
esvairá, restando, tão-somente, a promessa de que Cecília escreverá uma<br />
carta à amiga de outros t<strong>em</strong>pos. No entanto, tal promessa torna-se vã, uma<br />
vez que não se concretiza.<br />
Considerando essa perspectiva, é possível dizer que Martín Gaite<br />
sinaliza para o desvelamento das diferenças sociais e do espaço de enunciação<br />
f<strong>em</strong>inina, valendo-se da obra ficcional como forma simbólica de<br />
representar/questionar os conflitos históricos vividos, à guisa de citação,<br />
aclarando o leitor das consequências sócio-históricas advindas da Guerra<br />
Civil espanhola, deflagrada pelo General Franco. Com efeito, pod<strong>em</strong>os dizer<br />
que a narrativa <strong>em</strong> questão costura l<strong>em</strong>branças trazidas pelo fluir da consciência<br />
mediante o discurso indireto livre utilizado pelo narrador onisciente.<br />
Até o instante de contraste percebido a partir do convívio com as d<strong>em</strong>ais<br />
meninas, o espaço interno de Paca encontrava-se “harmoniosamente organizado”<br />
entre duas Pacas:<br />
(…) una, la de todos los días, si<strong>em</strong>pre igual, que la veían<br />
todos, la que hubiera podido detallar sin equivocarse en<br />
casi nada cualquier vecino, cualquier conocido de los de<br />
la plazuela. Y otra, la suya sola, la de verdad, la única<br />
que contaba. Y así cuando su madre la reñía o se le hacía<br />
pasado una tarea, se consolaba pensando que en realidad<br />
no era ella la que sufría aquellas cosas, sino la otra Paca,<br />
la de mentira, la que llevaba puesta por fuera como una<br />
máscara. (GAITE, 2000, p. 76).<br />
O cotidiano da personag<strong>em</strong> era dividido entre as atividades da “Paca
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de verdade”, envolta à ludicidade pueril construída no universo das duas meninas<br />
e daquela considerada “de mentira”, responsável por diversos afazeres,<br />
uma máscara da primeira. Essas duas formas de perceber o estar no mundo<br />
serão modificadas a partir do gradativo distanciamento de Cecília e da subsequente<br />
mudança de cidade da menina. Os traços psíquicos da protagonista<br />
no que se refere à “vida falseada” pod<strong>em</strong> ser apontados quando<br />
Paca se quedaba sola detrás de la cortina, mirando el<br />
esplendor rojiz que salía por la puerta entornada. Estarían<br />
allí los señores leyendo, fumando, hablando de viajes.<br />
Se oían las risas de las niñas, los besos que les daban.<br />
Muchas veces, antes de que volvieran a salir, ella se<br />
escurría a la portería, como una sombra, sin decir adiós a<br />
nadie (GAITE, 2000, p. 76).<br />
Nesse processo de entendimento do mundo circundante é que a<br />
personag<strong>em</strong> iniciará um processo de ‘retirada de véus’, que inebriam a visão<br />
da menina. Esse procedimento ocorrerá também por meio da observação<br />
das marcas de lugares sociais a ser<strong>em</strong> ocupados por homens e mulheres<br />
evidenciados nessa narrativa, tais como destinar aos homens a leitura e a<br />
fala <strong>sobre</strong> viagens de negócios <strong>em</strong> meio a fumaça de charutos e cigarros;<br />
quanto às mulheres, evidenciar “a frivolidade” de suas conversas por meio<br />
dos risos e dos beijos trocados pelas meninas do prédio.<br />
Somente com a simbólica chegada da primavera é que o leitor observará<br />
o amadurecimento de Paca, ação sublinhada a partir do momento<br />
<strong>em</strong> que ela recebe o cartão postal da antiga amiga na portaria, entretanto,<br />
endereçado às moradoras do edifício:<br />
Una mañana vino el cartero a mediodía y trajo una tarjeta<br />
de brillo con la fotografía de una reina de piedra que iba<br />
en su carro tirado por dos leones. Paca, que cogió el<br />
correo como todos los días, le dio la vuelta y vio que era de<br />
Cecilia para las niñas del segundo. Se sentó en el primer<br />
peldaño de la escalera y leyó lo que decía su amiga. Ahora<br />
iba a un colegio precioso, se había cortado las trenzas,
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estaba aprendiendo a patinar y a montar a caballo; tenía<br />
que cuentearles muchas cosas y esperaba verlas en el<br />
verano. Luego, en letra muy menudita, cruzadas en un<br />
ángulo, porque ya no había sitio, venían estas palabras:<br />
“Recuerdos a Paca la de abajo. (GAITE, 2000, p. 91-92).<br />
Diante da carta endereçada a outr<strong>em</strong>, essa negativa viabilizou a<br />
frustração das ilusões cultivadas pela personag<strong>em</strong> ao longo da existência.<br />
No entanto, o mal-estar é o ponto de inflexão <strong>em</strong> direção à construção de<br />
Paca, como se a personag<strong>em</strong> entendesse o seu lugar tanto na sociedade<br />
quanto como da mulher que surgia naquele momento: “Vivía abajo, pero no<br />
estaba abajo de nadie. Tenía sus apellidos, se llamaba Francisca Fernández<br />
Barbero, tenía su madre y su casa, con un rayo de sol por las mañanas; tenía<br />
su oficio y su vida; suyos, no prestados, no regalados por otro.” (GAITE,<br />
2000, p. 92-93).<br />
Esse rompimento com o mundo dogmático instituído ocorre por meio<br />
da elaboração da personag<strong>em</strong> na medida <strong>em</strong> que o silêncio de Paca se fez<br />
povoar de angústia, revolta e mesmo náusea diante do abandono sentido e<br />
da compreensão <strong>sobre</strong> a troca/preferência de Cecília pelas d<strong>em</strong>ais amigas.<br />
Na turbulência dessa revolta é que a personag<strong>em</strong> reorganiza o espaço que<br />
lhe cabe. Esse é o instante <strong>em</strong> que ela busca o locus “mulher-personag<strong>em</strong>”.<br />
Assim, o tom de desabafo e tristeza marcado por “unas lágrimas espesas y<br />
ardientes, que parecían de lava o plomo derretido” (GAITE, 2000, p. 92) correspond<strong>em</strong><br />
ao encaminhamento para o ponto alto da narrativa: o instante<br />
epifânico de olhar para si e assumir a “verdadeira existência”.<br />
Considerando as (des)construções possíveis na obra, observa-se<br />
que o leitor precisa movimentar-se na trama, perseguir as l<strong>em</strong>branças de<br />
Paca, a fim de chegar ao encontro com o novo espaço da mulher representado<br />
por Francisca.<br />
Considerações Finais<br />
No mesmo caminho de outras obras cont<strong>em</strong>porâneas, os olhares da<br />
idosa Dona Anita, <strong>em</strong> Lispector, e da pueril Francisca, <strong>em</strong> Gaite, suger<strong>em</strong>
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a continuação do cotidiano fragmentado tal qual estivéss<strong>em</strong>os a observar<br />
a vida pelo “buraco da fechadura” como disse Calvino 3 <strong>em</strong> suas propostas<br />
para a ficção cont<strong>em</strong>porânea.<br />
É desse recorte que procuramos apontar alguns traços do f<strong>em</strong>inino<br />
no Brasil e na Espanha, situados à marg<strong>em</strong> dos processos históricos de até<br />
então. Narrativas expressivas como essas nos levam a concordar com Tadié<br />
(1992, p. 97), ao refletir que “se deitarmos um olhar à história e talvez ao<br />
nosso próprio coração, não tardar<strong>em</strong>os a compreender que o hom<strong>em</strong> nunca<br />
pôde viver s<strong>em</strong> a satisfação das suas exigências metafísicas” 4 . É desse “experimentar”<br />
a vivência f<strong>em</strong>inina por meio dessas duas autorias que entend<strong>em</strong>os<br />
a significância de pensar a questão do gênero, do lugar da mulher,<br />
mas, <strong>sobre</strong>tudo, do lugar da mulher cont<strong>em</strong>porânea.<br />
3 CALVINO, 1990. 144p.<br />
4 TADIÉ, Jean-Yves. O romance no século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.p.197.
Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />
Bibliografia<br />
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1990. 144p.<br />
DUARTE, Constância Lima. F<strong>em</strong>inismo e Literatura no Brasil. In: Revista Estudos<br />
Avançados. [online]. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de<br />
São Paulo, 2003. v.17 n.49, p. 151-172.<br />
FOUCAULT, Michel. O cuidado de si. In:____. História da sexualidade. 6.ed. Rio de<br />
Janeiro: Graal, 1985. v.3.<br />
GAITE, Carmen Martín. La chica de abajo. In: Cuentos. Madrid: Castalia, 2000. p.<br />
71-95.<br />
LISPECTOR, Clarice. Feliz Aniversário. In: _____. Laços de família. 12.ed. Rio de<br />
Janeiro: Rocco: 1998.<br />
RAGO, Margareth. Novos modos de subjetivar: a experiência da organização<br />
Mujeres Libres na Revolução Espanhola. In: Revista Estudos F<strong>em</strong>inistas. v. 16.n.01.<br />
Florianópolis: Centro de Comunicação e Expressão – CCE/UFSC, 2008. p.187-206.<br />
SILVA, Aline Coelho da. A contística de Carmen Martín Gaite como alternativa<br />
ao discurso franquista. 2007. 149f. (Doutorado <strong>em</strong> Letras). Universidade Federal<br />
do Rio Grande do Sul , Porto Alegre, 2007. p.115.<br />
TADIÉ, Jean-Yves. O romance no século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.<br />
208p.<br />
VIANA, Lúcia Helena. Por uma tradição do f<strong>em</strong>inismo na literatura brasileira. In: ANAIS<br />
DO SEMINÁRIO NACIONAL MULHER E LITERATURA, Natal: UFRN/Universitária, 1995,<br />
v.5, p. 168-174.<br />
ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria f<strong>em</strong>inina. BONNNICI, Thomas; ZOLIN,<br />
Lúcia Osana (ORG) In: Teoria literária: abordagens históricas e tendências<br />
cont<strong>em</strong>porâneas. 2. ed. rev. e ampl. Maringá: Edu<strong>em</strong>, 2005, p. 275-283.