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Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />

NOTAS SOBRE A EPIFANIA EM CLARICE<br />

LISPECTOR E EM CARMEN MARTÍN GAITE<br />

Marilia Simari Crozara 1<br />

Yvonélio Nery Ferreira 2<br />

Ao observarmos a História da Literatura, é notória a supr<strong>em</strong>acia da<br />

produção literária do hom<strong>em</strong> ocidental, branco e de classe média/alta <strong>sobre</strong><br />

a da mulher. A ela, assim como a tantas outras minorias, era destinada a exclusão<br />

de seus escritos. O olhar da crítica voltava-se para a valorização da<br />

autoria masculina e legava à autoria f<strong>em</strong>inina o status de inferioridade.<br />

A partir dos anos de 1960, é possível evidenciar os traços de uma<br />

escrita f<strong>em</strong>inina marcada pela conscientização, pela autoafirmação e pela<br />

diferenciação de todo o gênero f<strong>em</strong>inino frente ao masculino. Tendo como<br />

pano de fundo a bandeira do f<strong>em</strong>inismo, <strong>em</strong> meados de 1970, a crítica de<br />

mesma natureza impõe à História da Literatura o resgate de inúmeras obras<br />

de autoria f<strong>em</strong>inina como forma de questionar a então ideologia dominante,<br />

uma vez que a mulher passa a atuar <strong>em</strong> um espaço tradicionalmente destinado<br />

ao hom<strong>em</strong>: o do mundo acadêmico e o da escrita literária.<br />

Pensar nas escritoras deste estudo, cada qual <strong>em</strong> suas condições<br />

sócio-históricas, é observar, tanto na escritora nacionalizada brasileira,<br />

Clarice Lispector, quanto na espanhola, Carmen Martín Gaite, a elaboração<br />

de uma “escrita de protesto” <strong>em</strong> favor do f<strong>em</strong>inino, implicando uma conscientização<br />

existencial do leitor por meio da personag<strong>em</strong>. Essa reflexão nos<br />

leva ao entendimento de que compreender o lugar dessas escrituras é uma<br />

condição da qual a mulher cont<strong>em</strong>porânea não pode privar-se. Mas, para se<br />

chegar a esse momento, pontuar<strong>em</strong>os aspectos destas conquistas apoiadas<br />

na evolução do movimento f<strong>em</strong>inista ocorridos no Brasil e na Espanha.<br />

1 Mestre <strong>em</strong> Linguística - UFU. mariliascz@yahoo.com.br<br />

2 Professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal<br />

do Acre, Campus Floresta, Centro Multidisciplinar, Cruzeiro do Sul – Acre. Doutorando <strong>em</strong><br />

Literatura – UFSC. yvonery@hotmail.com


Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />

Brasil e Espanha: aspectos do f<strong>em</strong>inismo<br />

O termo “f<strong>em</strong>inismo”, no Brasil, s<strong>em</strong>pre carregou a marca do preconceito<br />

e, mesmo tendo conquistado vitórias e derrotas, não conseguiu<br />

impor-se como motivo de orgulho para a maioria das mulheres. O antif<strong>em</strong>inismo<br />

era tão forte que atribuía às suas defensoras o caráter contrário a<br />

f<strong>em</strong>inino. Por receio de estigmatizações, várias escritoras e outras mulheres<br />

brasileiras rejeitaram tal nomenclatura.<br />

A História do f<strong>em</strong>inismo no Brasil pode ser abarcada a partir de quatro<br />

momentos <strong>em</strong> que o movimento atingiu seu ápice, havendo, entre eles, um<br />

entr<strong>em</strong>eio de mais ou menos 50 anos cujas ideias ficaram <strong>em</strong> estado de letargia.<br />

Essas fases são d<strong>em</strong>arcadas pelas décadas de 1830, 1870, 1920 e 1970.<br />

Nas primeiras décadas do século XX, a lista de escritores reconhecidos<br />

traz pouquíssimos nomes de mulheres; a partir dos anos de 1970 há<br />

uma modificação nesse quadro, pois escritoras como Cecília Meireles e Raquel<br />

de Queiroz colaboram para que diversas outras mulheres sejam inseridas<br />

no mercado editorial. Nessa linha de raciocínio, foi Clarice Lispector<br />

qu<strong>em</strong> abriu “uma tradição para a literatura da mulher no Brasil, gerando um<br />

sist<strong>em</strong>a de influências que se fará reconhecido na geração seguinte”, como<br />

destaca Viana (1995, p. 172).<br />

Não há o intuito de classificar a obra de Clarice Lispector como f<strong>em</strong>inista,<br />

mas, sim, de mostrar que há um questionamento dos valores patriarcais,<br />

apontando outro caminho ficcional baseado na conscientização<br />

do ser humano, valorizando o universo f<strong>em</strong>inino marcado pela repressão,<br />

diante de uma sociedade guiada por preceitos masculinos. Concordando<br />

com o posicionamento de Zolin (2005, p. 280), essas narrativas “questionam,<br />

por meio de discurso irônico, o modelo patriarcal <strong>em</strong> que a mulher fica<br />

reduzida ao que o espaço privado pode lhe proporcionar”.<br />

Em caminho s<strong>em</strong>elhante ao vivido no âmbito brasileiro, a “invenção<br />

de si” como uma forma de autonomia f<strong>em</strong>inina na sociedade espanhola também<br />

enfrentou dificuldades ao contrapor-se a discursos médicos, jurídicos e<br />

políticos extr<strong>em</strong>amente moralizantes e conservadores. Nesse ponto, enfrentar


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as relações de poder tornou-se condição de existência da mulher. Na mesma<br />

medida do enfrentamento, elaborar a natureza do existir evidencia uma relação<br />

imprescindível entre o poder e a m<strong>em</strong>ória, haja vista ser<strong>em</strong> inseparáveis:<br />

s<strong>em</strong> poder não se legitima um relato e, s<strong>em</strong> a m<strong>em</strong>ória, torna-se impossível<br />

legitimar a reflexão, outrora extirpada das mulheres como um ofício.<br />

O espaço ocupado pelo discurso f<strong>em</strong>inista na Espanha do século XX<br />

pode ser observado nas narrativas de Gaite. A pesquisadora Aline Coelho<br />

da Silva, <strong>em</strong> sua Tese de Doutorado “A contística de Carmen Martín Gaite<br />

como alternativa ao discurso franquista”, afirma que<br />

(...) Ocupar um espaço na narrativa da história é tarefa<br />

árdua para a mulher. Desde a formação da razão ocidental,<br />

o discurso heg<strong>em</strong>ônico masculino foi dominante e absoluto.<br />

Subverter esse discurso “miserabilista da opressão” (...)<br />

tornou-se parte da constituição do eu f<strong>em</strong>inino no século<br />

XX. Nos estados comandados pela força militar podese<br />

falar <strong>em</strong> uma dupla-opressão: se a opressão luta pela<br />

abertura d<strong>em</strong>ocrática, tal abertura não pauta <strong>em</strong> sua<br />

agenda a nova formação do espaço da mulher como<br />

pertencente a este topos (SILVA, 2007, p. 115).<br />

Para ex<strong>em</strong>plificar tais questões referentes à literatura de autoria<br />

f<strong>em</strong>inina e às características citadas, tangíveis às obras das autoras <strong>em</strong><br />

estudo, far<strong>em</strong>os considerações acerca do conto “Feliz aniversário” (LISPEC-<br />

TOR, 1998) da coletânea de intitulada “Laços de família”, para compará-lo<br />

ao conto “La chica de abajo”, de Carm<strong>em</strong> Martín Gaite (2000, p. 76), objetivando<br />

mostrar que as inquietações f<strong>em</strong>ininas abrang<strong>em</strong> mulheres diferentes<br />

<strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos igualmente diferentes.<br />

Anita e Francisca: o desvelar da consciência<br />

“Feliz aniversário” narra os acontecimentos da festa de aniversário<br />

de Anita − matriarca de uma família de seis filhos e uma filha − que estava<br />

completando 89 anos. O conto desvela as relações estabelecidas entre os<br />

m<strong>em</strong>bros da família, expondo ao leitor a falsidade que permeava o ato de


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estar<strong>em</strong> ali, naquela festa, não por vontade, mas por obrigação.<br />

Anita, a protagonista, vivia com Zilda, “a única mulher entre os seis<br />

irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço<br />

e t<strong>em</strong>po para alojar a aniversariante” (LISPECTOR, 1998, p. 55). O papel de<br />

cuidar da mãe ficou destinado à filha, não a um dos outros filhos, pressupondo<br />

que, após a velhice, os cuidados ficam destinados à mulher, não ao<br />

hom<strong>em</strong>.<br />

O ponto marcante <strong>em</strong> toda a narrativa é a postura cruel do narrador,<br />

desde o momento <strong>em</strong> que descreve a arrumação da festa até a despedida<br />

dos convivas. Anita havia sido preparada para a festa logo após o almoço,<br />

“para adiantar o expediente”, Zilda a vestiu, borrifou um pouco “de água de<br />

colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado e sentara-a a mesa”<br />

(LISPECTOR, 1998, p. 55). No desenrolar do texto, nota-se que Anita havia<br />

sido era posta à mesa, como se houvesse uma necessidade de devorá-la,<br />

para que aquele momento não mais se repetisse. Todos chegavam e se cumprimentavam,<br />

mas a insatisfação era evidente, inclusive para a matriarca.<br />

Por mais que os músculos do rosto da aniversariante não a interpretass<strong>em</strong><br />

mais e ninguém soubesse o que ela estava sentindo, ela estava consciente<br />

de si e da postura exposta pelos d<strong>em</strong>ais.<br />

Até a disposição da sala é representativa do desejo de que os parentes<br />

não se encontrass<strong>em</strong> mais, fato que só ocorreria com a morte da<br />

protagonista. A mesa está no centro e as cadeiras encostadas nas paredes,<br />

l<strong>em</strong>brando a disposição de um velório <strong>em</strong> que o morto é o motivo da reunião.<br />

O rito de morte continua, passando do velório ao enterro. O bolo era seco,<br />

chegava a esfarelar, cada pedaço de bolo era uma pá de terra lançada <strong>sobre</strong><br />

Anita, que meditava silenciosamente <strong>sobre</strong> o que se passava.<br />

Esse é ponto fundamental dessa narrativa, a postura silenciosa da<br />

protagonista, reveladora do gradativo entendimento acerca de si e de sua<br />

família. Questiona-se a criação dos filhos, as esposas escolhidas, o comportamento<br />

dos netos, como se eles tivess<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma árvore fraca que<br />

dera frutos podres. A quietude é quebrada e o silêncio é irrompido <strong>em</strong> raros<br />

momentos, responsáveis por apresentar a consciência que Anita possui a


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respeito de sua família, e que fora acidamente ruminada, levando a instantes<br />

de explosão da angústia sentida <strong>em</strong> meio ao que se presenciava:<br />

Ela, a forte, que casara <strong>em</strong> hora e t<strong>em</strong>po devidos com<br />

um bom hom<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> obediente e independente, ela<br />

respeitara; a qu<strong>em</strong> respeitara e que lhe fizera filhos e lhe<br />

pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco<br />

fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos,<br />

s<strong>em</strong> capacidade sequer para uma boa alegria. Como<br />

pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, s<strong>em</strong><br />

austeridade O rancor roncava no seu peito vazio. Uns<br />

comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os<br />

com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando,<br />

a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força<br />

insuspeita cuspiu no chão (LISPECTOR, 1998, p. 61)<br />

A atitude inesperada e que tanto choca os familiares, pode ser vista<br />

como o primeiro instante de insurreição e repulsa a seus entes. Há uma profunda<br />

reflexão <strong>sobre</strong> o papel da mulher na família, criação dos filhos, pois<br />

o hom<strong>em</strong> apenas os faz. Ela observa que possuíam caráter fraco e atitudes<br />

s<strong>em</strong> severidade, o que lhe causava um ódio profundo e um forte ressentimento<br />

por filhos incapazes de promover bons momentos de alegria. Cuspir<br />

no chão é, a partir do silêncio das palavras, dizer que ela discorda daquilo<br />

tudo, é um puro ato de descontentamento com o que poderia ter sido e que<br />

não foi, é circunstância lúcida.<br />

Ocasião ex<strong>em</strong>plificadora de outro momento expressivo de lucidez<br />

de Anita, agora verbal e que irrompe o silêncio, ocorre após ela cuspir no<br />

chão, quando, ao pedir um copo de vinho à sua neta Dorothy, esta a questionara<br />

se o vinho não lhe faria mal, ao que a protagonista responde, “− Que<br />

vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. − Que o diabo vos<br />

carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho,<br />

Dorothy!− ordenou.” (LISPECTOR, 1998, p. 62)<br />

Sob outro escopo, mas cumprindo o rito do entendimento/cuidado<br />

de si, no conto “La chica de abajo”, o narrador onisciente enuncia a história


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de duas meninas, Cecília e Paca. A amizade das jovens evidencia uma cumplicidade<br />

inquestionável, até o momento <strong>em</strong> que os pais de Cecília decidiram<br />

que a filha da porteira não seria mais a companhia adequada à menina,<br />

uma vez que elas frequentariam ambientes diferentes na juventude.<br />

Nesse sentido, as desigualdades entre as amigas serão mostradas<br />

a partir da convivência social com o outro. Portanto, s<strong>em</strong> compreender<strong>em</strong><br />

as razões para o distanciamento entre elas, será na presença de outras meninas<br />

de mesma faixa etária que, paulatinamente, a amizade da dupla se<br />

esvairá, restando, tão-somente, a promessa de que Cecília escreverá uma<br />

carta à amiga de outros t<strong>em</strong>pos. No entanto, tal promessa torna-se vã, uma<br />

vez que não se concretiza.<br />

Considerando essa perspectiva, é possível dizer que Martín Gaite<br />

sinaliza para o desvelamento das diferenças sociais e do espaço de enunciação<br />

f<strong>em</strong>inina, valendo-se da obra ficcional como forma simbólica de<br />

representar/questionar os conflitos históricos vividos, à guisa de citação,<br />

aclarando o leitor das consequências sócio-históricas advindas da Guerra<br />

Civil espanhola, deflagrada pelo General Franco. Com efeito, pod<strong>em</strong>os dizer<br />

que a narrativa <strong>em</strong> questão costura l<strong>em</strong>branças trazidas pelo fluir da consciência<br />

mediante o discurso indireto livre utilizado pelo narrador onisciente.<br />

Até o instante de contraste percebido a partir do convívio com as d<strong>em</strong>ais<br />

meninas, o espaço interno de Paca encontrava-se “harmoniosamente organizado”<br />

entre duas Pacas:<br />

(…) una, la de todos los días, si<strong>em</strong>pre igual, que la veían<br />

todos, la que hubiera podido detallar sin equivocarse en<br />

casi nada cualquier vecino, cualquier conocido de los de<br />

la plazuela. Y otra, la suya sola, la de verdad, la única<br />

que contaba. Y así cuando su madre la reñía o se le hacía<br />

pasado una tarea, se consolaba pensando que en realidad<br />

no era ella la que sufría aquellas cosas, sino la otra Paca,<br />

la de mentira, la que llevaba puesta por fuera como una<br />

máscara. (GAITE, 2000, p. 76).<br />

O cotidiano da personag<strong>em</strong> era dividido entre as atividades da “Paca


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de verdade”, envolta à ludicidade pueril construída no universo das duas meninas<br />

e daquela considerada “de mentira”, responsável por diversos afazeres,<br />

uma máscara da primeira. Essas duas formas de perceber o estar no mundo<br />

serão modificadas a partir do gradativo distanciamento de Cecília e da subsequente<br />

mudança de cidade da menina. Os traços psíquicos da protagonista<br />

no que se refere à “vida falseada” pod<strong>em</strong> ser apontados quando<br />

Paca se quedaba sola detrás de la cortina, mirando el<br />

esplendor rojiz que salía por la puerta entornada. Estarían<br />

allí los señores leyendo, fumando, hablando de viajes.<br />

Se oían las risas de las niñas, los besos que les daban.<br />

Muchas veces, antes de que volvieran a salir, ella se<br />

escurría a la portería, como una sombra, sin decir adiós a<br />

nadie (GAITE, 2000, p. 76).<br />

Nesse processo de entendimento do mundo circundante é que a<br />

personag<strong>em</strong> iniciará um processo de ‘retirada de véus’, que inebriam a visão<br />

da menina. Esse procedimento ocorrerá também por meio da observação<br />

das marcas de lugares sociais a ser<strong>em</strong> ocupados por homens e mulheres<br />

evidenciados nessa narrativa, tais como destinar aos homens a leitura e a<br />

fala <strong>sobre</strong> viagens de negócios <strong>em</strong> meio a fumaça de charutos e cigarros;<br />

quanto às mulheres, evidenciar “a frivolidade” de suas conversas por meio<br />

dos risos e dos beijos trocados pelas meninas do prédio.<br />

Somente com a simbólica chegada da primavera é que o leitor observará<br />

o amadurecimento de Paca, ação sublinhada a partir do momento<br />

<strong>em</strong> que ela recebe o cartão postal da antiga amiga na portaria, entretanto,<br />

endereçado às moradoras do edifício:<br />

Una mañana vino el cartero a mediodía y trajo una tarjeta<br />

de brillo con la fotografía de una reina de piedra que iba<br />

en su carro tirado por dos leones. Paca, que cogió el<br />

correo como todos los días, le dio la vuelta y vio que era de<br />

Cecilia para las niñas del segundo. Se sentó en el primer<br />

peldaño de la escalera y leyó lo que decía su amiga. Ahora<br />

iba a un colegio precioso, se había cortado las trenzas,


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estaba aprendiendo a patinar y a montar a caballo; tenía<br />

que cuentearles muchas cosas y esperaba verlas en el<br />

verano. Luego, en letra muy menudita, cruzadas en un<br />

ángulo, porque ya no había sitio, venían estas palabras:<br />

“Recuerdos a Paca la de abajo. (GAITE, 2000, p. 91-92).<br />

Diante da carta endereçada a outr<strong>em</strong>, essa negativa viabilizou a<br />

frustração das ilusões cultivadas pela personag<strong>em</strong> ao longo da existência.<br />

No entanto, o mal-estar é o ponto de inflexão <strong>em</strong> direção à construção de<br />

Paca, como se a personag<strong>em</strong> entendesse o seu lugar tanto na sociedade<br />

quanto como da mulher que surgia naquele momento: “Vivía abajo, pero no<br />

estaba abajo de nadie. Tenía sus apellidos, se llamaba Francisca Fernández<br />

Barbero, tenía su madre y su casa, con un rayo de sol por las mañanas; tenía<br />

su oficio y su vida; suyos, no prestados, no regalados por otro.” (GAITE,<br />

2000, p. 92-93).<br />

Esse rompimento com o mundo dogmático instituído ocorre por meio<br />

da elaboração da personag<strong>em</strong> na medida <strong>em</strong> que o silêncio de Paca se fez<br />

povoar de angústia, revolta e mesmo náusea diante do abandono sentido e<br />

da compreensão <strong>sobre</strong> a troca/preferência de Cecília pelas d<strong>em</strong>ais amigas.<br />

Na turbulência dessa revolta é que a personag<strong>em</strong> reorganiza o espaço que<br />

lhe cabe. Esse é o instante <strong>em</strong> que ela busca o locus “mulher-personag<strong>em</strong>”.<br />

Assim, o tom de desabafo e tristeza marcado por “unas lágrimas espesas y<br />

ardientes, que parecían de lava o plomo derretido” (GAITE, 2000, p. 92) correspond<strong>em</strong><br />

ao encaminhamento para o ponto alto da narrativa: o instante<br />

epifânico de olhar para si e assumir a “verdadeira existência”.<br />

Considerando as (des)construções possíveis na obra, observa-se<br />

que o leitor precisa movimentar-se na trama, perseguir as l<strong>em</strong>branças de<br />

Paca, a fim de chegar ao encontro com o novo espaço da mulher representado<br />

por Francisca.<br />

Considerações Finais<br />

No mesmo caminho de outras obras cont<strong>em</strong>porâneas, os olhares da<br />

idosa Dona Anita, <strong>em</strong> Lispector, e da pueril Francisca, <strong>em</strong> Gaite, suger<strong>em</strong>


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a continuação do cotidiano fragmentado tal qual estivéss<strong>em</strong>os a observar<br />

a vida pelo “buraco da fechadura” como disse Calvino 3 <strong>em</strong> suas propostas<br />

para a ficção cont<strong>em</strong>porânea.<br />

É desse recorte que procuramos apontar alguns traços do f<strong>em</strong>inino<br />

no Brasil e na Espanha, situados à marg<strong>em</strong> dos processos históricos de até<br />

então. Narrativas expressivas como essas nos levam a concordar com Tadié<br />

(1992, p. 97), ao refletir que “se deitarmos um olhar à história e talvez ao<br />

nosso próprio coração, não tardar<strong>em</strong>os a compreender que o hom<strong>em</strong> nunca<br />

pôde viver s<strong>em</strong> a satisfação das suas exigências metafísicas” 4 . É desse “experimentar”<br />

a vivência f<strong>em</strong>inina por meio dessas duas autorias que entend<strong>em</strong>os<br />

a significância de pensar a questão do gênero, do lugar da mulher,<br />

mas, <strong>sobre</strong>tudo, do lugar da mulher cont<strong>em</strong>porânea.<br />

3 CALVINO, 1990. 144p.<br />

4 TADIÉ, Jean-Yves. O romance no século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.p.197.


Anais do XIV S<strong>em</strong>inário Nacional Mulher e Literatura / V S<strong>em</strong>inário Internacional Mulher e Literatura<br />

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São Paulo, 2003. v.17 n.49, p. 151-172.<br />

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Janeiro: Graal, 1985. v.3.<br />

GAITE, Carmen Martín. La chica de abajo. In: Cuentos. Madrid: Castalia, 2000. p.<br />

71-95.<br />

LISPECTOR, Clarice. Feliz Aniversário. In: _____. Laços de família. 12.ed. Rio de<br />

Janeiro: Rocco: 1998.<br />

RAGO, Margareth. Novos modos de subjetivar: a experiência da organização<br />

Mujeres Libres na Revolução Espanhola. In: Revista Estudos F<strong>em</strong>inistas. v. 16.n.01.<br />

Florianópolis: Centro de Comunicação e Expressão – CCE/UFSC, 2008. p.187-206.<br />

SILVA, Aline Coelho da. A contística de Carmen Martín Gaite como alternativa<br />

ao discurso franquista. 2007. 149f. (Doutorado <strong>em</strong> Letras). Universidade Federal<br />

do Rio Grande do Sul , Porto Alegre, 2007. p.115.<br />

TADIÉ, Jean-Yves. O romance no século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.<br />

208p.<br />

VIANA, Lúcia Helena. Por uma tradição do f<strong>em</strong>inismo na literatura brasileira. In: ANAIS<br />

DO SEMINÁRIO NACIONAL MULHER E LITERATURA, Natal: UFRN/Universitária, 1995,<br />

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ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria f<strong>em</strong>inina. BONNNICI, Thomas; ZOLIN,<br />

Lúcia Osana (ORG) In: Teoria literária: abordagens históricas e tendências<br />

cont<strong>em</strong>porâneas. 2. ed. rev. e ampl. Maringá: Edu<strong>em</strong>, 2005, p. 275-283.

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