16.02.2015 Views

conceição evaristo, vera duarte e marlene nourbese philip - TEL

conceição evaristo, vera duarte e marlene nourbese philip - TEL

conceição evaristo, vera duarte e marlene nourbese philip - TEL

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

vozes atlânticas femininas em diálogo: conceição<br />

<strong>evaristo</strong>, <strong>vera</strong> <strong>duarte</strong> e <strong>marlene</strong> <strong>nourbese</strong> <strong>philip</strong><br />

Cláudia Maria Fernandes Corrêa 1<br />

A história do continente africano e das Américas foi construída<br />

nas águas do Atlântico. O mar levou os exploradores europeus para as<br />

terras africanas e, de lá, os filhos do sol foram levados para outras terras<br />

na condição de escravos, e, com isso, histórias foram submersas, vidas<br />

roubadas e a memória desses povos, para sempre marcada.<br />

Mas para que as histórias não sejam esquecidas, é preciso<br />

empreender uma viagem nas águas-memória para resgatar a história da<br />

diáspora e também a história daqueles que no continente africano ficaram<br />

e que, hoje, no mundo globalizado, sofrem os efeitos dos contínuos anos de<br />

exploração e usurpação de seus direitos.<br />

Propomos então que esse navegar rumo ao resgate seja conduzido<br />

pela mão, pelo olhar e pelas palavras de três mulheres atlânticas em seus<br />

contextos: Conceição Evaristo no Brasil, Vera Duarte em Cabo Verde e<br />

Marlene Nourbese Philip em Trinidad e Tobago.<br />

Textos em contexto<br />

Brasil – um país vítima da escravização e colonização portuguesa<br />

com os efeitos colaterais da dominação sentidos até os dias de hoje pelos<br />

afrodescendentes. Chegados das diversas terras africanas nos navios<br />

negreiros, ou as “tumbas da morte” como eram conhecidos, aqueles que<br />

sobrevi<strong>vera</strong>m à travessia do Atlântico e ao árduo trabalho nas fazendas<br />

de cacau, café e cana-de-açúcar, desde o dia 13 de maio de 1888, data da<br />

Abolição da escravatura no Brasil, foram entregues a sua própria sorte com<br />

nada além da liberdade. Não havia plano para integração dos ex-escravos<br />

à sociedade e, particularmente as mulheres negras, vistas na época da<br />

1 Doutoranda no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Faculdade de<br />

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. / Bolsista da Fundação<br />

de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

escravização como objetos para saciar a necessidade sexual do senhor<br />

de escravos e para as tarefas domésticas, saíram da casa-grande para<br />

continuar a servir aos brancos como cozinheiras, lavadeiras e passadeiras.<br />

Agora as mulheres afrodescendentes viviam nas favelas ou residências<br />

muito humildes, longe dos centros urbanos, mostrando o que viria a ser<br />

uma constante em nosso país: no Brasil, a pobreza e a opressão têm cor e<br />

endereço específico.<br />

Além de constituir a maioria dos mais pobres, ter menos acesso<br />

à educação, ter os mais baixos salários, é no serviço doméstico que se<br />

acentuam os traços mais relevantes da exclusão e desigualdade. Ocupação<br />

de baixo valor social, é neste setor que a maioria das mulheres negras<br />

e pobres busca trabalho, sinalizando a “continuidade dos traços mais<br />

perversos da herança escravista e patriarcal” (PINHEIRO et alii, 2009, p. 27),<br />

mostrando que a sociedade brasileira é um terreno violento, cruel, patriarcal<br />

e sexista para as mulheres afrodescendentes.<br />

Situação semelhante no que se refere à emancipação feminina é<br />

vivida por Cabo Verde. País composto por dez ilhas situadas na encruzilhada<br />

do mundo, Cabo Verde tem uma história de colonização e opressão<br />

semelhante àquela vivida pelo Brasil.<br />

Localizado a aproximadamente 455 km da costa ocidental africana<br />

na direção da Guiné-Bissau, Cabo Verde possui dois grupos de ilhas: “o do<br />

Sotavento, ao sul, com as ilhas de Santiago, Maio, Fogo, Brava e os ilhéus de<br />

Santa Maria, Luís Carneiro, Sapado, Grande e Cima, e o grupo do Barlavento,<br />

ao norte, com as ilhas de S. Vicente, S. Nicolau, Santo Antão, Santa Luzia,<br />

Boa Vista e Sal, além dos ilhéus Pássaro, Branco e Raso” (SECCO, 1999, p.<br />

9). Pela sua proximidade ao deserto do Sahael, o país é castigado pela seca<br />

e pela listada, os fortes ventos do leste, o que faz a vida insular dos caboverdianos<br />

um desafio diário e constante.<br />

As ilhas, descobertas em 1460 pelos portugueses, eram inabitadas.<br />

Posteriormente, foram povoadas por portugueses imigrantes da Ilha da<br />

Madeira e dos Açores e escravos levados da Guiné-Bissau. As ilhas se<br />

tornaram um importante entreposto de escravos e, após o encerramento


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

formal do tráfico negreiro, em fins do século XIX, Portugal investiu<br />

fortemente na colonização de Cabo Verde que, devido às populações que o<br />

habitaram durante a colonização, transformou-se em um país mestiço dado<br />

o cruzamento do europeu com o africano.<br />

Bilíngue por natureza, o cabo-verdiano convive com o crioulo, sua<br />

língua “de berço” e o português, a língua do “colonizador”. Devido às crises<br />

cíclicas que assolam Cabo Verde, o cabo-verdiano tornou-se um ser móvel<br />

e os deslocamentos são constantes, quer seja de uma ilha a outra ou nas<br />

grandes ondas migratórias em busca de trabalho no Brasil, na Europa ou<br />

nos Estados Unidos da América para, depois, regressar a sua terra-natal.<br />

Os deslocamentos pela evasão, isto é, o “querer partir e ter que ficar” ou<br />

pela emigração, “querer ficar e ter que partir”, refletem o isolamento, a<br />

insularidade e a solidão que marcam a vida dos cabo-verdianos: “Evasionismo<br />

e emigração. Aquele de raiz intelectual, a emigração procedendo de uma<br />

razão de ordem econômica e, deste modo, partilhada pelos desposados”<br />

(FERREIRA, 1975, p. 69).<br />

Com o impacto das questões econômicas e com o declínio das<br />

condições sociais durante o período colonial – é importante lembrar que<br />

Cabo Verde conseguiu sua independência de Portugal em 1975− coube às<br />

mulheres ocupar o papel dos homens que emigravam para buscar trabalho<br />

fora do arquipélago. Gerindo a casa, cuidando dos filhos, lançando-se na<br />

esfera pública, as mulheres cabo-verdianas ti<strong>vera</strong>m suas responsabilidades<br />

redobradas, porém seus direitos não foram ampliados na mesma proporção<br />

e situações de violência doméstica, maternidade precoce, alcoolismo, filhos<br />

sem pai e loucura impõem-se como obstáculos à emancipação feminina.<br />

Algo semelhante acontece em outro país insular. Trinidad e Tobago,<br />

descrito como um paraíso na terra por suas belezas naturais não é um paraíso<br />

que se materializa para a maior parte da população afro-trindadense. As<br />

ilhas, que foram foi trocadas entre Inglaterra, França, Holanda e Espanha,<br />

receberam escravos e, após a abolição da escravatura em 1834, receberam<br />

imigrantes da Índia, China, Ilha da Madeira. Dentre esses três grupos, os<br />

indianos foram os que mais se adaptaram as condições de vida nas ilhas<br />

e, com isso, a imigração indiana para Trinidad e Tobago seguiu até 1917.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Em 1888, as duas ilhas foram incorporadas à coroa inglesa; contudo, a<br />

independência do país veio somente em 1962 e, em 1976, o país se tornou<br />

uma república, mas, ainda que independente, Trinidad e Tobago mantém<br />

uma característica colonial como afirma V. S. Naipul (2002):<br />

So Trinidad was and remains a materialist immigrant<br />

society, continually growing and changing, never settling<br />

into any pattern, always retaining the atmosphere of the<br />

camp; unique in the West Indies in the absence of a history<br />

of enduring brutality, in the absence of a history; yet not<br />

an expanding society but a colonial society. 2<br />

A transição de país colonial à sociedade expansionista passa pela<br />

equidade de gênero, mas, segundo Patricia Ellis (2003), isso não ocorre em<br />

Trinidad e Tobago porque<br />

While for some women these perceptions and beliefs may<br />

be true, they certainly do not reflect the reality of all or<br />

even of the majority of women in the region. Ethnicity,<br />

class, age, social and marital status, and level of education<br />

are important factors that determine the status, position<br />

and condition of individual women and of particular<br />

groups of women. The belief that Caribbean societies are<br />

predominantly matrifocal also obscure the fact that in reality<br />

they are patriarchal and male-dominated. Consequently,<br />

Caribbean women are still discriminated against and hold<br />

fewer positions of Power at the highest levels of political<br />

decision making than men do. This is so because, in spite<br />

of their position and condition, and on empowering them,<br />

perceptions of manhood and womanhood continue to be<br />

based on traditional beliefs and gender stereotypes that<br />

their roots in the biological argument. 3<br />

2 NAIPUL, V. S. The Middle Passage: The Caribbean Revisited. New York: Vintage Books,<br />

2002/[1962], p. 49.<br />

3 ELLIS, Patricia. Women, Gender and Development in the Caribbean: Reflections and<br />

Projections. London & New York: Zed Books; Kingston, Jamaica: Ian Randle Publishers, 2003,<br />

p.17-18.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Em outras palavras, a dominação e violência patriarcal têm<br />

profundas bases históricas e estão enraizadas nas mentes e no tecido<br />

social da sociedade trindadense. Dentre os entraves para atingir a equidade<br />

de gênero, um dos fatores mais preocupantes é a violência. São ciclos<br />

intermináveis de intimidação, ameaças, abusos físicos, psicológicos que,<br />

por vezes, levam as mulheres a extremos, como por exemplo, o suicídio.<br />

A pobreza, aliada à violência em todas as suas formas, revela um cenário<br />

desalentador da vida das mulheres em Trinidad e Tobago, no Brasil e em<br />

Cabo Verde.<br />

Uma poética política<br />

Ainda que em contextos distintos, Conceições Evaristo, Vera Duarte<br />

e Marlene Nourbese Philip estão ligadas pela sua postura ante às injustiças<br />

sociais e sua luta em prol da emancipação feminina, tanto em suas vidas<br />

pessoais como em suas poéticas. Oriundas de contextos que vi<strong>vera</strong>m a<br />

colonização e escravização, as três poetas revestiram a palavra do estatuto<br />

de instrumento contra as desigualdades sociais herdadas do passado para<br />

que as histórias de violência, sexismo, racismo e desigualdade social não se<br />

repitam no presente, ou no futuro. Com isso, suas produções não são uma<br />

“proliferação de “histórias alternativas dos excluídos”” como quer Bhabha<br />

(2005, p. 25); pelo contrário, as autoras abrem espaço para a<br />

Revisão radical do próprio conceito de comunidade<br />

humana. O que seria esse espaço geopolítico, como<br />

realidade local ou transnacional, é o que se interroga e<br />

se reinaugura [...] é um salutar lembrete das relações<br />

“neocoloniais” remanescentes no interior da “nova”<br />

ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional.<br />

Tal perspectiva permite a autenticação de histórias<br />

de exploração e o desenvolvimento de estratégias de<br />

resistência 4 .<br />

4 HABHA, Homi K. O Local da Cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,<br />

Gláucia Renate Gonçalves. 3ª. reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 25; 26).


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Desenvolver estratégias de resistência implica a criação de<br />

instrumentos para reagir e se opor aos instrumentos de dominação.<br />

Portanto, acreditamos que o fazer poético das três autoras se instala como<br />

um local onde uma “luta agonística” ocorre, isto é, o espaço público, que é<br />

um local sempre plural, e dá espaço para o confronto agonístico em uma<br />

multiplicidade de superfícies discursivas (MOUFFE, 2007) e, entre essas<br />

superfícies, está a literatura negra de autoria.<br />

Nesse sentido, Poemas da Recordação e Outros Movimentos (2008),<br />

da afro-brasileira Conceição Evaristo, Preces e Súplicas ou Os Cânticos da<br />

Desesperança (2005), da cabo-verdiana Vera Duarte e She tries her tongue,<br />

her silence softly breaks (1989), da afro-caribenho-canadense Marlene<br />

Nourbese Philip, selecionados para nosso trabalho, são o espaço público no<br />

qual “a memória do trauma” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 73) é confrontada<br />

como forma de libertação e emancipação feminina.<br />

Notamos ser comum as três poetas a tentativa de recriar as histórias<br />

e seus mitos e integrar a eles as mais dolorosas experiências (PHILIP,<br />

1997): a perda do lugar, da humanidade, do domínio sobre o próprio corpo,<br />

de sua cultura, de suas palavras, do direito de narra-se visto que, no caso<br />

dos negros, esses foram narrados como “não humanos”, coisas, objetos<br />

reduzidos à condição de “não seres”.<br />

Alimentando sua escrita com a história de vida, os “causos”, histórias<br />

de infância e também da história coletiva de escravização, a afro-brasileira<br />

Conceição Evaristo faz um mergulho nas águas do tempo em Poemas da<br />

Recordação e Outros Movimentos (2008) para trazer à tona as histórias<br />

ofuscadas pela dor, pela escravização, pela sociedade patriarcal e pela<br />

exclusão daquelas que “não podiam ser”. São as memórias das mulheres<br />

negras que desde sua chegada ao Novo Mundo, tornaram-se mestres na<br />

“arte da sutil resistência” (LAGE, 1982, p. 132). Pelas mulheres, a cultura<br />

e a memória são preservadas, reinscritas e reconstruídas no presente<br />

para denunciar as atrocidades e violência que ainda persistem no mundo<br />

globalizado. Esta é a razão pela qual, “Recordar” e, acrescentamos, contar,<br />

“é preciso” (2008, p. 9). Como nos ensina Evaristo


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

é preciso observar que a família representou para a<br />

mulher negra uma das maiores formas de resistência e de<br />

sobrevivência. Como heroínas do cotidiano desenvolvem<br />

suas batalhas longe de qualquer clamor de glórias. Mães<br />

reais e/ou simbólicas, como as das Casas de Axé, foram e<br />

são elas, muitas vezes sozinhas, as grandes responsáveis<br />

não só pela subsistência do grupo, assim como pela<br />

manutenção da memória cultural no interior do mesmo 5 .<br />

Por sua ligação com o social e o gênero, a escrita feminina negra é<br />

uma literatura que navega em contra fluxo ao cânone porque, nessa literatura,<br />

“Privado e público, passado e presente, o psíquico e o social desenvolvem<br />

uma intimidade intersticial” (BHABHA, 2003, p. 35). Assim sendo, o sujeito<br />

poético da obra de Conceição Evaristo é investido do poder de intervenção,<br />

recuperando a memória contra o esquecimento e apagamento. É o que<br />

presenciamos no poema “De Mãe”, no qual o sujeito poético marca o papel<br />

da mulher como transmissora da cultura. Nas palavras de Evaristo (2008),<br />

o “cuidado de minha poesia”, “a brandura de minha fala” foram heranças<br />

da mãe, que era uma “mulher prenhe de dizeres, / fecundados na boca do<br />

mundo” (p. 32). O sujeito-poético é, portanto, um receptáculo das palavras<br />

segredadas pela mãe.<br />

De certa forma, essa interdependência entre gerações impulsiona<br />

o sujeito-poético em sua jornada que culmina com o reconhecimento do<br />

poder das palavras de sua antecessora de reabilitar o lugar das mulheres<br />

negras na estrutura social, provando, como sugere Helena Theodoro (1996,<br />

p. 119) que a arte dessas mulheres-sapiência “nasce de uma outra ordem:<br />

elas são as pequenas rupturas do cotidiano” que perfazem seu papel de<br />

“nutr[ir], protege[r], organiza[r], cria[r]”.<br />

Logo, o sujeito-poético reafirma seu compromisso em fazer da<br />

palavra “artifício / arte e ofício” (EVARISTO, 2008, p. 33), buscando, na força<br />

das palavras transmitidas pela mãe, “a revivência de lugares e modos de<br />

5 EVARISTO, Conceição. Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face.<br />

In: BARROS, Nadilza Martins de; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no mundo: etnia,<br />

marginalidade e diáspora. João Pessoa: Idéia, 2005, p. 203.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

ocupação das mulheres anteriores a elas. E da conduta de suas antecessoras,<br />

elas invent[am] estratégias de afirmação do presente” (EVARISTO, 2005,<br />

p. 206) numa ação intervencionista e exercício contínuo de busca pela<br />

equidade, justiça e respeito aos direitos humanos.<br />

Em tempos de supervias, deslocamentos virtuais e da globalização,<br />

inclusive da pobreza, uma voz se ergue na África contra os holocaustos<br />

passados, presentes e futuros, perpetrados por parte dos poderosos,<br />

opressores, colonizadores e neocolonizadores. Falamos da obra Preces<br />

e Súplicas ou Os Cânticos da Desesperança (2005) da cabo-verdiana<br />

Vera Duarte. Magistrada, ativista, mulher; uma mulher-ação, assim<br />

como Conceição Evaristo, uma mulher que não assiste indiferente às<br />

calamidades que assolam seu país e o mundo. Em sua obra, Vera Duarte<br />

se volta à memória da escravização, mas também aos acontecimentos que<br />

ceifam a vida de inocentes homens, crianças e mulheres e “sobretudo nos<br />

países periféricos, culminam em tortura, penas cruéis, execuções sumárias,<br />

racismo, dominação estrangeira, xenofobia, pobreza, fome, intolerância<br />

religiosa, terrorismo, discriminação contra a mulher e atropelo das formas<br />

jurídicas” (GOMES(a), 2008, p. 260). Vera Duarte nos alerta, no início de sua<br />

obra que ama “demasiado a humanidade para assistir indiferente às várias<br />

hecatombes que sacodem o nosso quotidiano” (DUARTE, 2005, p. 12).<br />

África, Sarajevo, Colômbia, África do Sul, Libéria, Serra Leone, Cabo<br />

Verde, Brasil, Trinidad e Tobago. Espaços onde a violência permanece e<br />

reverbera. É o sofrimento que já existe de longa data e que entalha suas<br />

marcas nos corpos como no poema “Vozes sem eco” (DUARTE, 2005, p.<br />

79), marcando “aos milhares e milhões / corpos iguais e exauridos” que<br />

“se arrastam às portas das cidades / Todas as cidades / Longínquas e<br />

inacessíveis Canaãs” (DUARTE, 2005, p. 80).<br />

O silêncio das preces elevadas a um ser supremo e divino também é<br />

um caminho para o processo de descolonização da linguagem, revertendo a<br />

condição colonial a que foram submetidos. Nas palavras de Marlene Philip<br />

(1997, p. 95), “o silêncio do espaço tem que ser fraturado” e preenchido<br />

com uma nova significação. A fratura ocorre pela denúncia feita pelo<br />

sujeito-poético que, por meio de uma voz individual, reflete o sofrimento


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

coletivo, elencando a genealogia de opressão a que foi submetido e que<br />

está “carregando este corpo / De criança sero [...] de menina infectada/<br />

violada por todos os batalhões / De mulher amputada / Pela fúria de<br />

rebeldes genocidas” (DUARTE, 2005, p. 80; 81). Num desfile de espectros, as<br />

crianças órfãs de guerra, as vítimas da AIDS, das guerras, dos estupros se<br />

perfilam ante “os ricos”, “poderosos”, “políticos”, “ditadores” e “assassinos”<br />

(DUARTE, 2005, p. 80), clamando por justiça, em silêncio.<br />

Ainda que o futuro pareça obscuro, o sujeito poético conserva em<br />

seu íntimo a esperança de que a mulher, elemento que sustenta e mantém<br />

a sociedade, como apontado por Conceição Evaristo (2005), desperte<br />

para um novo começo “e parta / em direção a uma madrugada diferente”<br />

(DUARTE, 2005, p. 93), feita de esperanças e direitos respeitados.<br />

Se como afirma bell hooks (1989), a palavra é o discurso em<br />

ação, podemos dizer que a mulher é o agente que coloca essa palavra em<br />

movimento, reagindo à marginalidade, à exclusão, à invisibilidade, ocupando<br />

seu espaço na sociedade pelo silêncio ou pelo grito. Nesse sentido, Marlene<br />

Nourbese Philip em She tries her tongue, her silence softy breaks (1989)<br />

faz um se<strong>vera</strong> crítica ao uso da língua inglesa como meio de anulação da<br />

humanidade dos africanos e afrodescendentess pelo colonizador pois, como<br />

ela afirma, tudo é uma questão de perspectiva e o desafio é “empregar a<br />

língua de tal forma que as realidades históricas não sejam apagadas ou<br />

obliteradas” (PHILIP, 1989, p. 19).<br />

Numa adaptação contemporânea das Metamorfoses de Ovídio sobre<br />

o rapto de Perséfone por Hades, Marlene Nourbese Philip utiliza em sua<br />

poética o mito do rapto como metáfora para tratar da dispersão diaspórica<br />

e das perdas inerentes a esse “rapto”, ou seja, o processo de retirada dos<br />

africanos de sua terra natal. Apesar da angústia imposta pela língua inglesa,<br />

Marlene Philip cria um deslocamento nas relações de poder coloniais e<br />

neocoloniais por meio da linguagem, recuperando a língua Afrospórica, a<br />

língua do povo caribenho, que se estabelece como um contradiscurso, que,<br />

segundo Heloisa Buarque de Hollanda “defin[e] espaços alternativos ou<br />

possíveis de expressão [...] um contradiscurso, cujo potencial subversivo<br />

não é desprezível e precisa ser explorado” (1992, p. 16).


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Por conseguinte, a escrita feminina, ao rasura e estabelecer<br />

outro discurso, cria uma “genealogia de resistência” (PHILIP, 1997), que é<br />

composta por diversas estratégias, entre elas, o uso da língua bifurcada,<br />

ou seja, um “universo discursivo dentro do universo discursivo branco”<br />

(GATES, 1988, p. 49). Logo, o título da obra de Marlene Philip mostra como<br />

uma dessas estratégias, o silêncio, também é um ato de performance, um<br />

silêncio articulado que sobrevive no ato de experimentar a língua (órgão)<br />

para falar em outras línguas, numa multiplicidade de superfícies discursivas<br />

que, segundo Marlene Philip, foram recebidas no momento do nascimento<br />

pela mãe, a grande detentora da cultura e dos saberes.<br />

THE MOTHER THEN PUT HER FINGERS INTO HER CHILD’S<br />

MOUTH−GENTLY FORCING IT OPEN; SHE TOUCHES HER<br />

TONGUE TO THE CHILD’S TONGUE, AND HOLDING THE<br />

TINY MOUTH OPEN, SHE BLOWS INTO IT−HARD. SHE<br />

WAS BLOWING WORDS−HER WORDS, HER MOTHER’S<br />

WORDS, THOSE OF HER MOTHER’S MOTHER, AND ALL<br />

THEIR MOTHERS BEFORE−INTO HER DAUGHTER’S 6 .<br />

As palavras recebidas trazem o eco das palavras ancestrais,<br />

recolhidas na memória e transmitidas ao sujeito poético pela mãe, guardiã<br />

dos costumes, que fornece tanto filiação quanto afiliação, possibilitando o<br />

retraçar da memória (LIONNET, 1992, p. 339).<br />

Nesse sentido, o sujeito poético de She tries her tongue, her<br />

silence softly breaks (1989) mergulha nas estruturas da língua inglesa<br />

para ligá-la à dominação, mas também à resistência e mostra que “as<br />

palavras carregam respostas físicas e emocionais” (PHILIP, 1989, p. 72), e<br />

estabelece, pela palavra, uma ponte entre o passado e o presente que tem<br />

“traduzido, atualizado e transmutado em produção cultural e a experiência<br />

de mulhere através de gerações [...] a palavra é por elas utilizada como<br />

ferramenta estética e de fruição, de autoconhecimento e de alavanca do<br />

mundo [...] a escrita de que falamos produz mundos fincados na realidade<br />

6 PHILIP, Marlene Nourbese. She Tries Her Tongue, Her Silence Softly Breaks. Canada: Gynergy<br />

Books, 1989, p. 58.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

social” (GOMES(b), 2004, p. 14; 15), e, com essa palavra, “na qual cresce a<br />

história”, Marlene Philip, Vera Duarte e Conceição Evaristo procuram “salvar<br />

o passado para servir ao presente e ao futuro” (LeGOFF, 2003, p. 471).<br />

Considerações Finais<br />

Em nosso trabalho, analisamos alguns pontos das poéticas de<br />

Conceição Evaristo, Vera Duarte e Marlene Philip, no intuito de cartografar<br />

as múltiplas faces que suas poéticas assumem, tecendo as palavras que,<br />

juntas, falam outras línguas, indo da recordação à elevação de súplicas<br />

daquelas que, apesar de tudo, ainda mantém viva a esperança.<br />

Na busca pela construção de um mundo mais justo, essas três vozes<br />

atlânticas se unem para resgatar a memória, num ato de cura da alma,<br />

transformando as perdas, a opressão e a marginalização na palavra fecunda<br />

para pavimentar o caminho rumo à emancipação, contra o sexismo, racismo<br />

e o apagamento social, pois, em meio “as várias hecatombes que sacodem<br />

nosso cotidiano” (DUARTE, 2005, p. 12) e, ainda que a luta e os obstáculos<br />

por vezes pareçam intransponíveis, pela palavra, essas mulheres, poetas e<br />

ativistas, reiteram seu compromisso para com aqueles cujas vozes não têm<br />

peso político na sociedade neoliberal capitalista, reafirmando assim como<br />

o poeta Manuel Alegre, que “há sempre alguém que resiste / há sempre<br />

alguém que diz não”.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Bibliografia<br />

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço<br />

de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 3ª. reimpressão. Belo Horizonte: Editora<br />

UFMG, 2005.<br />

DUARTE, Vera. Preces e Súplicas ou Os Cânticos da Desesperança. Lisboa: Instituto<br />

Piaget, 2005. Colecção Poética e Razão Imaginante.<br />

ELLIS, Patricia. Women, Gender and Development in the Caribbean: Reflections<br />

and Projections. London & New York: Zed Books; Kingston, Jamaica: Ian Randle<br />

Publishers, 2003.<br />

EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e Outros Movimentos. Belo Horizonte:<br />

Nandyala, 2008 (Coleção Vozes da Diáspora Negra, Volume 1).<br />

______. Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In:<br />

BARROS, Nadilza Martins de; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no mundo: etnia,<br />

marginalidade e diáspora. João Pessoa: Idéia, 2005.<br />

FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban: Antologia panorâmica da poesia africana<br />

de expressão portuguesa. 1º. Volume. Cabo Verde e Guiné Bissau. Lisboa: Seara<br />

Nova, 1975.<br />

GATES, Henry Louis, Jr.. The Signifying Monkey: A Theory of African-American literary<br />

Criticism. oxford University Press, 1988.<br />

GOMES(a), Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia, SP:<br />

Ateliê Editorial; Praia: Instituto da Biblioteca nacional e do Livro, 2008.<br />

GOMES(b), Heloisa Toller. “Visíveis e invisíveis grades”: vozes de mulheres na escrita<br />

Afro-descendente contemporânea. Caderno Espaço Feminino, v, 12, n.15, Ago./Dez.<br />

2004, PP. 13-26.<br />

HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como<br />

crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.<br />

HOOKS, bell. Talking Back: Thinking feminist, Thinking Black. Boston, MA: South End<br />

Press, 1989.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

LAGE, Nílson. Nossos Queridos Avós. In: LAGE, Nílson (Coord.). Os Grandes Enigmas<br />

de Nossa História. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1982, p.119-215.<br />

LeGOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão...[et alii.]. 5ª. Ed.<br />

Campinas, SP: Editora da UNICAMP,2003.<br />

LIONNET, Françoise. Of Mangoes and Maroons: Language, History, and the<br />

Multicultural Subject of Michelle Cliff’s Abeng. In: SMITH, Sidonie; WATSON,<br />

Julia (Editores). De/Colonizing the Subject: The Politics of Gender in Women’s<br />

Autobiography. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992, p. 321-345.<br />

MOUFFE, Chantal. Artistic Activism and Agonistic Spaces. Art&Research. United<br />

Kingdom, Volume 1, Number 2, Summer, 2007. p. 1-5. Disponível em: http://www.<br />

artandresearch.org.uk/v1n2/mouffe.html. Acesso: maio/ 2010.<br />

NAIPUL, V. S. The Middle Passage: The Caribbean Revisited. New York: Vintage<br />

Books, 2002/ [1962], p. 49.<br />

PHILIP, Marlene Nourbese. A Genealogy of Resistance and Other Essays. Toronto,<br />

Ontario: The Mercury Press, 1997.<br />

______. She Tries Her Tongue, Her Silence Softly Breaks. Canada: Gynergy Books,<br />

1989.<br />

PINHEIRO, Luana...[et alii]. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 3ª. Ed.<br />

Brasília: IPEA-SPM-UNIFEM, 2009.<br />

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro (Coord.). Antologia do mar na poesia africana de<br />

língua portuguesa do século XX: Cabo Verde. Volume II. Rio de Janeiro: Coordenação<br />

dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas<br />

de Língua Portuguesa, 1999. (Cadernos de letras africanas; 2).<br />

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur;<br />

SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e Representação: ensaios. São Paulo:<br />

Escuta, 200, p. 73-98.<br />

THEODORO, Helena. Mito e Espiritualidade: mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas,<br />

1996.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!