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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
vozes atlânticas femininas em diálogo: conceição<br />
<strong>evaristo</strong>, <strong>vera</strong> <strong>duarte</strong> e <strong>marlene</strong> <strong>nourbese</strong> <strong>philip</strong><br />
Cláudia Maria Fernandes Corrêa 1<br />
A história do continente africano e das Américas foi construída<br />
nas águas do Atlântico. O mar levou os exploradores europeus para as<br />
terras africanas e, de lá, os filhos do sol foram levados para outras terras<br />
na condição de escravos, e, com isso, histórias foram submersas, vidas<br />
roubadas e a memória desses povos, para sempre marcada.<br />
Mas para que as histórias não sejam esquecidas, é preciso<br />
empreender uma viagem nas águas-memória para resgatar a história da<br />
diáspora e também a história daqueles que no continente africano ficaram<br />
e que, hoje, no mundo globalizado, sofrem os efeitos dos contínuos anos de<br />
exploração e usurpação de seus direitos.<br />
Propomos então que esse navegar rumo ao resgate seja conduzido<br />
pela mão, pelo olhar e pelas palavras de três mulheres atlânticas em seus<br />
contextos: Conceição Evaristo no Brasil, Vera Duarte em Cabo Verde e<br />
Marlene Nourbese Philip em Trinidad e Tobago.<br />
Textos em contexto<br />
Brasil – um país vítima da escravização e colonização portuguesa<br />
com os efeitos colaterais da dominação sentidos até os dias de hoje pelos<br />
afrodescendentes. Chegados das diversas terras africanas nos navios<br />
negreiros, ou as “tumbas da morte” como eram conhecidos, aqueles que<br />
sobrevi<strong>vera</strong>m à travessia do Atlântico e ao árduo trabalho nas fazendas<br />
de cacau, café e cana-de-açúcar, desde o dia 13 de maio de 1888, data da<br />
Abolição da escravatura no Brasil, foram entregues a sua própria sorte com<br />
nada além da liberdade. Não havia plano para integração dos ex-escravos<br />
à sociedade e, particularmente as mulheres negras, vistas na época da<br />
1 Doutoranda no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Faculdade de<br />
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. / Bolsista da Fundação<br />
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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escravização como objetos para saciar a necessidade sexual do senhor<br />
de escravos e para as tarefas domésticas, saíram da casa-grande para<br />
continuar a servir aos brancos como cozinheiras, lavadeiras e passadeiras.<br />
Agora as mulheres afrodescendentes viviam nas favelas ou residências<br />
muito humildes, longe dos centros urbanos, mostrando o que viria a ser<br />
uma constante em nosso país: no Brasil, a pobreza e a opressão têm cor e<br />
endereço específico.<br />
Além de constituir a maioria dos mais pobres, ter menos acesso<br />
à educação, ter os mais baixos salários, é no serviço doméstico que se<br />
acentuam os traços mais relevantes da exclusão e desigualdade. Ocupação<br />
de baixo valor social, é neste setor que a maioria das mulheres negras<br />
e pobres busca trabalho, sinalizando a “continuidade dos traços mais<br />
perversos da herança escravista e patriarcal” (PINHEIRO et alii, 2009, p. 27),<br />
mostrando que a sociedade brasileira é um terreno violento, cruel, patriarcal<br />
e sexista para as mulheres afrodescendentes.<br />
Situação semelhante no que se refere à emancipação feminina é<br />
vivida por Cabo Verde. País composto por dez ilhas situadas na encruzilhada<br />
do mundo, Cabo Verde tem uma história de colonização e opressão<br />
semelhante àquela vivida pelo Brasil.<br />
Localizado a aproximadamente 455 km da costa ocidental africana<br />
na direção da Guiné-Bissau, Cabo Verde possui dois grupos de ilhas: “o do<br />
Sotavento, ao sul, com as ilhas de Santiago, Maio, Fogo, Brava e os ilhéus de<br />
Santa Maria, Luís Carneiro, Sapado, Grande e Cima, e o grupo do Barlavento,<br />
ao norte, com as ilhas de S. Vicente, S. Nicolau, Santo Antão, Santa Luzia,<br />
Boa Vista e Sal, além dos ilhéus Pássaro, Branco e Raso” (SECCO, 1999, p.<br />
9). Pela sua proximidade ao deserto do Sahael, o país é castigado pela seca<br />
e pela listada, os fortes ventos do leste, o que faz a vida insular dos caboverdianos<br />
um desafio diário e constante.<br />
As ilhas, descobertas em 1460 pelos portugueses, eram inabitadas.<br />
Posteriormente, foram povoadas por portugueses imigrantes da Ilha da<br />
Madeira e dos Açores e escravos levados da Guiné-Bissau. As ilhas se<br />
tornaram um importante entreposto de escravos e, após o encerramento
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formal do tráfico negreiro, em fins do século XIX, Portugal investiu<br />
fortemente na colonização de Cabo Verde que, devido às populações que o<br />
habitaram durante a colonização, transformou-se em um país mestiço dado<br />
o cruzamento do europeu com o africano.<br />
Bilíngue por natureza, o cabo-verdiano convive com o crioulo, sua<br />
língua “de berço” e o português, a língua do “colonizador”. Devido às crises<br />
cíclicas que assolam Cabo Verde, o cabo-verdiano tornou-se um ser móvel<br />
e os deslocamentos são constantes, quer seja de uma ilha a outra ou nas<br />
grandes ondas migratórias em busca de trabalho no Brasil, na Europa ou<br />
nos Estados Unidos da América para, depois, regressar a sua terra-natal.<br />
Os deslocamentos pela evasão, isto é, o “querer partir e ter que ficar” ou<br />
pela emigração, “querer ficar e ter que partir”, refletem o isolamento, a<br />
insularidade e a solidão que marcam a vida dos cabo-verdianos: “Evasionismo<br />
e emigração. Aquele de raiz intelectual, a emigração procedendo de uma<br />
razão de ordem econômica e, deste modo, partilhada pelos desposados”<br />
(FERREIRA, 1975, p. 69).<br />
Com o impacto das questões econômicas e com o declínio das<br />
condições sociais durante o período colonial – é importante lembrar que<br />
Cabo Verde conseguiu sua independência de Portugal em 1975− coube às<br />
mulheres ocupar o papel dos homens que emigravam para buscar trabalho<br />
fora do arquipélago. Gerindo a casa, cuidando dos filhos, lançando-se na<br />
esfera pública, as mulheres cabo-verdianas ti<strong>vera</strong>m suas responsabilidades<br />
redobradas, porém seus direitos não foram ampliados na mesma proporção<br />
e situações de violência doméstica, maternidade precoce, alcoolismo, filhos<br />
sem pai e loucura impõem-se como obstáculos à emancipação feminina.<br />
Algo semelhante acontece em outro país insular. Trinidad e Tobago,<br />
descrito como um paraíso na terra por suas belezas naturais não é um paraíso<br />
que se materializa para a maior parte da população afro-trindadense. As<br />
ilhas, que foram foi trocadas entre Inglaterra, França, Holanda e Espanha,<br />
receberam escravos e, após a abolição da escravatura em 1834, receberam<br />
imigrantes da Índia, China, Ilha da Madeira. Dentre esses três grupos, os<br />
indianos foram os que mais se adaptaram as condições de vida nas ilhas<br />
e, com isso, a imigração indiana para Trinidad e Tobago seguiu até 1917.
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Em 1888, as duas ilhas foram incorporadas à coroa inglesa; contudo, a<br />
independência do país veio somente em 1962 e, em 1976, o país se tornou<br />
uma república, mas, ainda que independente, Trinidad e Tobago mantém<br />
uma característica colonial como afirma V. S. Naipul (2002):<br />
So Trinidad was and remains a materialist immigrant<br />
society, continually growing and changing, never settling<br />
into any pattern, always retaining the atmosphere of the<br />
camp; unique in the West Indies in the absence of a history<br />
of enduring brutality, in the absence of a history; yet not<br />
an expanding society but a colonial society. 2<br />
A transição de país colonial à sociedade expansionista passa pela<br />
equidade de gênero, mas, segundo Patricia Ellis (2003), isso não ocorre em<br />
Trinidad e Tobago porque<br />
While for some women these perceptions and beliefs may<br />
be true, they certainly do not reflect the reality of all or<br />
even of the majority of women in the region. Ethnicity,<br />
class, age, social and marital status, and level of education<br />
are important factors that determine the status, position<br />
and condition of individual women and of particular<br />
groups of women. The belief that Caribbean societies are<br />
predominantly matrifocal also obscure the fact that in reality<br />
they are patriarchal and male-dominated. Consequently,<br />
Caribbean women are still discriminated against and hold<br />
fewer positions of Power at the highest levels of political<br />
decision making than men do. This is so because, in spite<br />
of their position and condition, and on empowering them,<br />
perceptions of manhood and womanhood continue to be<br />
based on traditional beliefs and gender stereotypes that<br />
their roots in the biological argument. 3<br />
2 NAIPUL, V. S. The Middle Passage: The Caribbean Revisited. New York: Vintage Books,<br />
2002/[1962], p. 49.<br />
3 ELLIS, Patricia. Women, Gender and Development in the Caribbean: Reflections and<br />
Projections. London & New York: Zed Books; Kingston, Jamaica: Ian Randle Publishers, 2003,<br />
p.17-18.
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Em outras palavras, a dominação e violência patriarcal têm<br />
profundas bases históricas e estão enraizadas nas mentes e no tecido<br />
social da sociedade trindadense. Dentre os entraves para atingir a equidade<br />
de gênero, um dos fatores mais preocupantes é a violência. São ciclos<br />
intermináveis de intimidação, ameaças, abusos físicos, psicológicos que,<br />
por vezes, levam as mulheres a extremos, como por exemplo, o suicídio.<br />
A pobreza, aliada à violência em todas as suas formas, revela um cenário<br />
desalentador da vida das mulheres em Trinidad e Tobago, no Brasil e em<br />
Cabo Verde.<br />
Uma poética política<br />
Ainda que em contextos distintos, Conceições Evaristo, Vera Duarte<br />
e Marlene Nourbese Philip estão ligadas pela sua postura ante às injustiças<br />
sociais e sua luta em prol da emancipação feminina, tanto em suas vidas<br />
pessoais como em suas poéticas. Oriundas de contextos que vi<strong>vera</strong>m a<br />
colonização e escravização, as três poetas revestiram a palavra do estatuto<br />
de instrumento contra as desigualdades sociais herdadas do passado para<br />
que as histórias de violência, sexismo, racismo e desigualdade social não se<br />
repitam no presente, ou no futuro. Com isso, suas produções não são uma<br />
“proliferação de “histórias alternativas dos excluídos”” como quer Bhabha<br />
(2005, p. 25); pelo contrário, as autoras abrem espaço para a<br />
Revisão radical do próprio conceito de comunidade<br />
humana. O que seria esse espaço geopolítico, como<br />
realidade local ou transnacional, é o que se interroga e<br />
se reinaugura [...] é um salutar lembrete das relações<br />
“neocoloniais” remanescentes no interior da “nova”<br />
ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional.<br />
Tal perspectiva permite a autenticação de histórias<br />
de exploração e o desenvolvimento de estratégias de<br />
resistência 4 .<br />
4 HABHA, Homi K. O Local da Cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,<br />
Gláucia Renate Gonçalves. 3ª. reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 25; 26).
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Desenvolver estratégias de resistência implica a criação de<br />
instrumentos para reagir e se opor aos instrumentos de dominação.<br />
Portanto, acreditamos que o fazer poético das três autoras se instala como<br />
um local onde uma “luta agonística” ocorre, isto é, o espaço público, que é<br />
um local sempre plural, e dá espaço para o confronto agonístico em uma<br />
multiplicidade de superfícies discursivas (MOUFFE, 2007) e, entre essas<br />
superfícies, está a literatura negra de autoria.<br />
Nesse sentido, Poemas da Recordação e Outros Movimentos (2008),<br />
da afro-brasileira Conceição Evaristo, Preces e Súplicas ou Os Cânticos da<br />
Desesperança (2005), da cabo-verdiana Vera Duarte e She tries her tongue,<br />
her silence softly breaks (1989), da afro-caribenho-canadense Marlene<br />
Nourbese Philip, selecionados para nosso trabalho, são o espaço público no<br />
qual “a memória do trauma” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 73) é confrontada<br />
como forma de libertação e emancipação feminina.<br />
Notamos ser comum as três poetas a tentativa de recriar as histórias<br />
e seus mitos e integrar a eles as mais dolorosas experiências (PHILIP,<br />
1997): a perda do lugar, da humanidade, do domínio sobre o próprio corpo,<br />
de sua cultura, de suas palavras, do direito de narra-se visto que, no caso<br />
dos negros, esses foram narrados como “não humanos”, coisas, objetos<br />
reduzidos à condição de “não seres”.<br />
Alimentando sua escrita com a história de vida, os “causos”, histórias<br />
de infância e também da história coletiva de escravização, a afro-brasileira<br />
Conceição Evaristo faz um mergulho nas águas do tempo em Poemas da<br />
Recordação e Outros Movimentos (2008) para trazer à tona as histórias<br />
ofuscadas pela dor, pela escravização, pela sociedade patriarcal e pela<br />
exclusão daquelas que “não podiam ser”. São as memórias das mulheres<br />
negras que desde sua chegada ao Novo Mundo, tornaram-se mestres na<br />
“arte da sutil resistência” (LAGE, 1982, p. 132). Pelas mulheres, a cultura<br />
e a memória são preservadas, reinscritas e reconstruídas no presente<br />
para denunciar as atrocidades e violência que ainda persistem no mundo<br />
globalizado. Esta é a razão pela qual, “Recordar” e, acrescentamos, contar,<br />
“é preciso” (2008, p. 9). Como nos ensina Evaristo
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é preciso observar que a família representou para a<br />
mulher negra uma das maiores formas de resistência e de<br />
sobrevivência. Como heroínas do cotidiano desenvolvem<br />
suas batalhas longe de qualquer clamor de glórias. Mães<br />
reais e/ou simbólicas, como as das Casas de Axé, foram e<br />
são elas, muitas vezes sozinhas, as grandes responsáveis<br />
não só pela subsistência do grupo, assim como pela<br />
manutenção da memória cultural no interior do mesmo 5 .<br />
Por sua ligação com o social e o gênero, a escrita feminina negra é<br />
uma literatura que navega em contra fluxo ao cânone porque, nessa literatura,<br />
“Privado e público, passado e presente, o psíquico e o social desenvolvem<br />
uma intimidade intersticial” (BHABHA, 2003, p. 35). Assim sendo, o sujeito<br />
poético da obra de Conceição Evaristo é investido do poder de intervenção,<br />
recuperando a memória contra o esquecimento e apagamento. É o que<br />
presenciamos no poema “De Mãe”, no qual o sujeito poético marca o papel<br />
da mulher como transmissora da cultura. Nas palavras de Evaristo (2008),<br />
o “cuidado de minha poesia”, “a brandura de minha fala” foram heranças<br />
da mãe, que era uma “mulher prenhe de dizeres, / fecundados na boca do<br />
mundo” (p. 32). O sujeito-poético é, portanto, um receptáculo das palavras<br />
segredadas pela mãe.<br />
De certa forma, essa interdependência entre gerações impulsiona<br />
o sujeito-poético em sua jornada que culmina com o reconhecimento do<br />
poder das palavras de sua antecessora de reabilitar o lugar das mulheres<br />
negras na estrutura social, provando, como sugere Helena Theodoro (1996,<br />
p. 119) que a arte dessas mulheres-sapiência “nasce de uma outra ordem:<br />
elas são as pequenas rupturas do cotidiano” que perfazem seu papel de<br />
“nutr[ir], protege[r], organiza[r], cria[r]”.<br />
Logo, o sujeito-poético reafirma seu compromisso em fazer da<br />
palavra “artifício / arte e ofício” (EVARISTO, 2008, p. 33), buscando, na força<br />
das palavras transmitidas pela mãe, “a revivência de lugares e modos de<br />
5 EVARISTO, Conceição. Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face.<br />
In: BARROS, Nadilza Martins de; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no mundo: etnia,<br />
marginalidade e diáspora. João Pessoa: Idéia, 2005, p. 203.
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ocupação das mulheres anteriores a elas. E da conduta de suas antecessoras,<br />
elas invent[am] estratégias de afirmação do presente” (EVARISTO, 2005,<br />
p. 206) numa ação intervencionista e exercício contínuo de busca pela<br />
equidade, justiça e respeito aos direitos humanos.<br />
Em tempos de supervias, deslocamentos virtuais e da globalização,<br />
inclusive da pobreza, uma voz se ergue na África contra os holocaustos<br />
passados, presentes e futuros, perpetrados por parte dos poderosos,<br />
opressores, colonizadores e neocolonizadores. Falamos da obra Preces<br />
e Súplicas ou Os Cânticos da Desesperança (2005) da cabo-verdiana<br />
Vera Duarte. Magistrada, ativista, mulher; uma mulher-ação, assim<br />
como Conceição Evaristo, uma mulher que não assiste indiferente às<br />
calamidades que assolam seu país e o mundo. Em sua obra, Vera Duarte<br />
se volta à memória da escravização, mas também aos acontecimentos que<br />
ceifam a vida de inocentes homens, crianças e mulheres e “sobretudo nos<br />
países periféricos, culminam em tortura, penas cruéis, execuções sumárias,<br />
racismo, dominação estrangeira, xenofobia, pobreza, fome, intolerância<br />
religiosa, terrorismo, discriminação contra a mulher e atropelo das formas<br />
jurídicas” (GOMES(a), 2008, p. 260). Vera Duarte nos alerta, no início de sua<br />
obra que ama “demasiado a humanidade para assistir indiferente às várias<br />
hecatombes que sacodem o nosso quotidiano” (DUARTE, 2005, p. 12).<br />
África, Sarajevo, Colômbia, África do Sul, Libéria, Serra Leone, Cabo<br />
Verde, Brasil, Trinidad e Tobago. Espaços onde a violência permanece e<br />
reverbera. É o sofrimento que já existe de longa data e que entalha suas<br />
marcas nos corpos como no poema “Vozes sem eco” (DUARTE, 2005, p.<br />
79), marcando “aos milhares e milhões / corpos iguais e exauridos” que<br />
“se arrastam às portas das cidades / Todas as cidades / Longínquas e<br />
inacessíveis Canaãs” (DUARTE, 2005, p. 80).<br />
O silêncio das preces elevadas a um ser supremo e divino também é<br />
um caminho para o processo de descolonização da linguagem, revertendo a<br />
condição colonial a que foram submetidos. Nas palavras de Marlene Philip<br />
(1997, p. 95), “o silêncio do espaço tem que ser fraturado” e preenchido<br />
com uma nova significação. A fratura ocorre pela denúncia feita pelo<br />
sujeito-poético que, por meio de uma voz individual, reflete o sofrimento
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coletivo, elencando a genealogia de opressão a que foi submetido e que<br />
está “carregando este corpo / De criança sero [...] de menina infectada/<br />
violada por todos os batalhões / De mulher amputada / Pela fúria de<br />
rebeldes genocidas” (DUARTE, 2005, p. 80; 81). Num desfile de espectros, as<br />
crianças órfãs de guerra, as vítimas da AIDS, das guerras, dos estupros se<br />
perfilam ante “os ricos”, “poderosos”, “políticos”, “ditadores” e “assassinos”<br />
(DUARTE, 2005, p. 80), clamando por justiça, em silêncio.<br />
Ainda que o futuro pareça obscuro, o sujeito poético conserva em<br />
seu íntimo a esperança de que a mulher, elemento que sustenta e mantém<br />
a sociedade, como apontado por Conceição Evaristo (2005), desperte<br />
para um novo começo “e parta / em direção a uma madrugada diferente”<br />
(DUARTE, 2005, p. 93), feita de esperanças e direitos respeitados.<br />
Se como afirma bell hooks (1989), a palavra é o discurso em<br />
ação, podemos dizer que a mulher é o agente que coloca essa palavra em<br />
movimento, reagindo à marginalidade, à exclusão, à invisibilidade, ocupando<br />
seu espaço na sociedade pelo silêncio ou pelo grito. Nesse sentido, Marlene<br />
Nourbese Philip em She tries her tongue, her silence softy breaks (1989)<br />
faz um se<strong>vera</strong> crítica ao uso da língua inglesa como meio de anulação da<br />
humanidade dos africanos e afrodescendentess pelo colonizador pois, como<br />
ela afirma, tudo é uma questão de perspectiva e o desafio é “empregar a<br />
língua de tal forma que as realidades históricas não sejam apagadas ou<br />
obliteradas” (PHILIP, 1989, p. 19).<br />
Numa adaptação contemporânea das Metamorfoses de Ovídio sobre<br />
o rapto de Perséfone por Hades, Marlene Nourbese Philip utiliza em sua<br />
poética o mito do rapto como metáfora para tratar da dispersão diaspórica<br />
e das perdas inerentes a esse “rapto”, ou seja, o processo de retirada dos<br />
africanos de sua terra natal. Apesar da angústia imposta pela língua inglesa,<br />
Marlene Philip cria um deslocamento nas relações de poder coloniais e<br />
neocoloniais por meio da linguagem, recuperando a língua Afrospórica, a<br />
língua do povo caribenho, que se estabelece como um contradiscurso, que,<br />
segundo Heloisa Buarque de Hollanda “defin[e] espaços alternativos ou<br />
possíveis de expressão [...] um contradiscurso, cujo potencial subversivo<br />
não é desprezível e precisa ser explorado” (1992, p. 16).
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
Por conseguinte, a escrita feminina, ao rasura e estabelecer<br />
outro discurso, cria uma “genealogia de resistência” (PHILIP, 1997), que é<br />
composta por diversas estratégias, entre elas, o uso da língua bifurcada,<br />
ou seja, um “universo discursivo dentro do universo discursivo branco”<br />
(GATES, 1988, p. 49). Logo, o título da obra de Marlene Philip mostra como<br />
uma dessas estratégias, o silêncio, também é um ato de performance, um<br />
silêncio articulado que sobrevive no ato de experimentar a língua (órgão)<br />
para falar em outras línguas, numa multiplicidade de superfícies discursivas<br />
que, segundo Marlene Philip, foram recebidas no momento do nascimento<br />
pela mãe, a grande detentora da cultura e dos saberes.<br />
THE MOTHER THEN PUT HER FINGERS INTO HER CHILD’S<br />
MOUTH−GENTLY FORCING IT OPEN; SHE TOUCHES HER<br />
TONGUE TO THE CHILD’S TONGUE, AND HOLDING THE<br />
TINY MOUTH OPEN, SHE BLOWS INTO IT−HARD. SHE<br />
WAS BLOWING WORDS−HER WORDS, HER MOTHER’S<br />
WORDS, THOSE OF HER MOTHER’S MOTHER, AND ALL<br />
THEIR MOTHERS BEFORE−INTO HER DAUGHTER’S 6 .<br />
As palavras recebidas trazem o eco das palavras ancestrais,<br />
recolhidas na memória e transmitidas ao sujeito poético pela mãe, guardiã<br />
dos costumes, que fornece tanto filiação quanto afiliação, possibilitando o<br />
retraçar da memória (LIONNET, 1992, p. 339).<br />
Nesse sentido, o sujeito poético de She tries her tongue, her<br />
silence softly breaks (1989) mergulha nas estruturas da língua inglesa<br />
para ligá-la à dominação, mas também à resistência e mostra que “as<br />
palavras carregam respostas físicas e emocionais” (PHILIP, 1989, p. 72), e<br />
estabelece, pela palavra, uma ponte entre o passado e o presente que tem<br />
“traduzido, atualizado e transmutado em produção cultural e a experiência<br />
de mulhere através de gerações [...] a palavra é por elas utilizada como<br />
ferramenta estética e de fruição, de autoconhecimento e de alavanca do<br />
mundo [...] a escrita de que falamos produz mundos fincados na realidade<br />
6 PHILIP, Marlene Nourbese. She Tries Her Tongue, Her Silence Softly Breaks. Canada: Gynergy<br />
Books, 1989, p. 58.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
social” (GOMES(b), 2004, p. 14; 15), e, com essa palavra, “na qual cresce a<br />
história”, Marlene Philip, Vera Duarte e Conceição Evaristo procuram “salvar<br />
o passado para servir ao presente e ao futuro” (LeGOFF, 2003, p. 471).<br />
Considerações Finais<br />
Em nosso trabalho, analisamos alguns pontos das poéticas de<br />
Conceição Evaristo, Vera Duarte e Marlene Philip, no intuito de cartografar<br />
as múltiplas faces que suas poéticas assumem, tecendo as palavras que,<br />
juntas, falam outras línguas, indo da recordação à elevação de súplicas<br />
daquelas que, apesar de tudo, ainda mantém viva a esperança.<br />
Na busca pela construção de um mundo mais justo, essas três vozes<br />
atlânticas se unem para resgatar a memória, num ato de cura da alma,<br />
transformando as perdas, a opressão e a marginalização na palavra fecunda<br />
para pavimentar o caminho rumo à emancipação, contra o sexismo, racismo<br />
e o apagamento social, pois, em meio “as várias hecatombes que sacodem<br />
nosso cotidiano” (DUARTE, 2005, p. 12) e, ainda que a luta e os obstáculos<br />
por vezes pareçam intransponíveis, pela palavra, essas mulheres, poetas e<br />
ativistas, reiteram seu compromisso para com aqueles cujas vozes não têm<br />
peso político na sociedade neoliberal capitalista, reafirmando assim como<br />
o poeta Manuel Alegre, que “há sempre alguém que resiste / há sempre<br />
alguém que diz não”.
Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />
Bibliografia<br />
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BARROS, Nadilza Martins de; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no mundo: etnia,<br />
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FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban: Antologia panorâmica da poesia africana<br />
de expressão portuguesa. 1º. Volume. Cabo Verde e Guiné Bissau. Lisboa: Seara<br />
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GATES, Henry Louis, Jr.. The Signifying Monkey: A Theory of African-American literary<br />
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