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* sui generis<br />
locução latina que significa<br />
"do seu género próprio";<br />
original, particular, singular.<br />
PROPRIEDADE: Colégio Pedro Arrupe | Disciplina de Clássicos da Literatura * 12C DIREÇÃO PROJETO: Eunice Maia e turma 12C CONTACTO:<br />
suigeneriscpa@gmail.com EDIÇÃO E PAGINAÇÃO: Departamento de Artes, Teresa Albino, Ana Nogueira DIREÇÃO CRIATIVA E ILUSTRAÇÃO: Ana<br />
Sofia Gonçalves e turma 10A2 (Artes) PLATAFORMA DIGITAL: Ismael Guedes e turma de Aplicações Informáticas (12ABC) COLABORADORES<br />
ILUSTRAÇÃO: Eva Monteiro; Cláudia Trindade; Sara Trindade; COLABORADORES FOTOGRAFIA: Rita Sousa; Inês Manso IMPRESSÃO: Publidisa<br />
TIRAGEM: 100 exemplares PERIODICIDADE: semestral MORADA: Passeio dos Heróis do Mar - Parque das Nações, 1990-529 - Lisboa
{ roteiro}<br />
equipa<br />
sui generis<br />
editorial<br />
efemérides<br />
em destaque<br />
utopia (s)<br />
agenda literária<br />
eSPAços de<br />
leitura<br />
acessório(s)<br />
montra<br />
{Apresentação dos elementos da redação e da ilustração}<br />
SG|1<br />
{10 anos da morte de Sophia de Mello Breyner}<br />
A coleção de Nuno Baltazar<br />
Entrevista a José Rui Teixeira<br />
{ À volta dos clássicos}<br />
Entrevista com Miguel Monjardino<br />
A Divina Comédia, de Dante Alighieri<br />
- Vasco Graça Moura<br />
- Dante Alighieri<br />
{Escrita criativa}<br />
Recriação do Inferno, de Dante<br />
Vestir as personagens, hoje<br />
{À volta dos livros}<br />
Especial Os Maias:<br />
- a adaptação para cinema de João Botelho<br />
- roteiro queirosiano<br />
- o Diário Íntimo de Carlos da Maia<br />
{Os melhores lugares para ler}<br />
Sugestões de livrarias, bibliotecas, cafés, jardins, esplanadas,<br />
sofás...<br />
{O esplendor do inútil}<br />
Sugestão de produtos associados à cultura portuguesa<br />
{Seleção de livros}<br />
Divulgação e sugestão de livros<br />
SG |<br />
3
{ equipa sui generis }<br />
Micaela Silva<br />
Uma força da natureza!<br />
Apaixonada pelas Letras,<br />
pela Literatura, por Camilo<br />
Castelo Branco. Devoradora<br />
assídua de vocabulário<br />
novo, suspira por aprender<br />
latim num curso intensivo.<br />
Quer dedicar-se ao Direito e<br />
à Justiça.<br />
Heytor Torres<br />
O poeta da turma! Entre<br />
a praia, as ondas e o sol,<br />
cultiva o Epicurismo e a<br />
serenidade olímpica. Traz<br />
na fala e nos sonhos o<br />
ritmo e a melodia suave<br />
dos trópicos.<br />
Mariana Soares<br />
Com os poderes mágicos<br />
que secretamente detém,<br />
a Mariana consegue<br />
dominar as maiores<br />
personagens da<br />
literatura! Gosta muito de<br />
Filosofia e o seu herói é<br />
Harry Potter. A sua<br />
alegria é contagiante. É<br />
um furacão!<br />
SG |<br />
4
{ equipa sui generis }<br />
Maria Inês de Castro<br />
Tem nome de Rainha, de<br />
personagem histórica que<br />
encantou de amores um<br />
Rei… Sentido apuradíssimo<br />
de justiça. A timidez não a<br />
impede de descobrir o<br />
mundo que a rodeia, de<br />
superar os seus próprios<br />
limites.<br />
….<br />
Inês Fernandes<br />
É uma devoradora de<br />
livros! Rendida à<br />
literatura inglesa<br />
(infelizmente!), deixou<br />
também um cantinho do<br />
seu coração para alguns<br />
autores portugueses.<br />
Quer ser jornalista e<br />
gosta muito de moda e<br />
de música.<br />
Rodrigo Chrystêllo Tavares<br />
É um gentleman, um<br />
cavalheiro à moda antiga!<br />
Apaixonado por<br />
antiguidades, artes<br />
decorativas, viagens,<br />
ópera, livros… Fluente em<br />
várias línguas, é um<br />
apreciador de literatura e<br />
dos grandes clássicos.<br />
SG |<br />
5
{ equipa sui generis }<br />
Eva Monteiro<br />
Com dezasseis anos já<br />
feitos, em vez de me<br />
preocupar em aproveitar o<br />
que esta idade tem de<br />
bom, desejo acima de tudo<br />
crescer e desvendar tudo o<br />
que, para mim, agora, não<br />
passa de um grande<br />
segredo. Tenho uma<br />
paixão desmedida pela<br />
música e pelo imaginário.<br />
Passo os dias presa a<br />
pensamentos que me<br />
retiram da realidade e me<br />
levam ao mundo dos<br />
sonhos.<br />
Carolina Mendonça<br />
Carolina Mendonça. 15<br />
anos. Integra a primeira<br />
turma de artes do colégio.<br />
Além da paixão pelo<br />
desenho, tem um interesse<br />
particular pela leitura e<br />
pelo desporto, tendo<br />
praticado ginástica<br />
acrobática durante vários<br />
anos. Os seus autores<br />
preferidos são a Stephenie<br />
Meyer e Nicholas Sparks.<br />
Maria Ana Gamito<br />
Chama-se Maria Ana,<br />
nasceu na Primavera e<br />
adora flores. O seu nome<br />
indica serenidade, força<br />
vital e vontade de viver!<br />
Está sempre a rir, mesmo<br />
nos momentos sérios.<br />
SG |<br />
6
{ equipa sui generis }<br />
Mariana Serra<br />
Nasceu no calor do verão<br />
de 1999, numa sexta-feira<br />
13. É uma desportista,<br />
federada em ginástica<br />
acrobática, fascinada por<br />
fotografia e louca por<br />
moda, embora goste de<br />
passar o fim de semana<br />
todo de pijama. É uma<br />
aventureira, adora desafios<br />
e ser levada até ao limite.<br />
Não só devora romances<br />
e thrillers, como é<br />
loucamente perdida por<br />
livros de viagens e diários<br />
gráficos. Devido à sua<br />
paixão pela música e ao<br />
seu gosto pelo desenho e<br />
pela pintura, com o apoio<br />
dos pais e com um futuro<br />
programado em mente,<br />
decidiu entrar no curso de<br />
artes. O seu maior sonho é<br />
participar nos jogos<br />
olímpicos, em vela. Anos<br />
mais tarde, depois de<br />
acabar o curso de<br />
arquitectura, gostava de ir<br />
trabalhar para o<br />
estrangeiro.<br />
Matias Souza<br />
Apaixonado por design,<br />
espera um dia poder<br />
trabalhar numa empresa<br />
de marketing e fazer a<br />
diferença. O seu gosto<br />
pela simplicidade marca<br />
fortemente a forma como<br />
realizou as ilustrações.<br />
Hussein Aly<br />
É um apaixonado pelo<br />
mundo da moda. Talvez<br />
inspirado pelo legado da<br />
sua família, gostaria de<br />
seguir esse rumo no<br />
futuro. Adora desenhar<br />
cabelos e tudo o que<br />
esteja relacionado com<br />
comida e com dinheiro.<br />
SG |<br />
7
{ editorial}<br />
Não sou nada.<br />
Nunca serei nada.<br />
Não posso querer ser nada.<br />
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.<br />
Álvaro de Campos, in Tabacaria<br />
SG |<br />
8
{ editorial}<br />
Tudo começou em junho, à volta de uma mesa… Alimentávamos o sonho de<br />
escrever uma revista literária sem filtros, sem restrições, sem fronteiras, com<br />
o nosso ADN. Um dos nossos principais objetivos era valorizar a nossa cultura<br />
e a nossa literatura, divulgando-as de forma original e sui generis.<br />
Foi um salto sem rede para uma aventura contínua, procurando desafiar o<br />
desconhecido. O mais difícil neste percurso foi encontrar a nossa voz e o<br />
nosso estilo próprio. Abraçámos a nossa diversidade e tirámos partido<br />
da mundividência de cada um, na certeza de que as nossas diferenças nos<br />
completam.<br />
Numa fusão entre o clássico e o contemporâneo, entre a tradição e a<br />
recriação, a literatura cruza-se, ao longo destas páginas, com a moda, a escrita<br />
criativa, o cinema e a arte. Em todo o processo, contámos com a participação<br />
e colaboração da equipa de ilustração e, juntos, num diálogo entre palavras e<br />
telas, interligámos mundos outros.<br />
E aqui está o resultado. O nosso primeiro número. Sem limites. Sem<br />
filtro. Com (muita) garra!<br />
*<br />
9À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.<br />
SG |
{efemérides}<br />
SG | 10
{ efemérides }<br />
Passou uma década sobre a morte de Sophia de Mello Breyner. A SG decidiu<br />
assinalar a data, dando destaque a duas personalidades de dois meios distintos:<br />
Nuno Baltazar, estilista nacional, e José Rui Teixeira, diretor da Cátedra com o<br />
nome da escritora, na Universidade Católica do Porto.<br />
A coleção de inverno 2014.15 de Nuno Baltazar é uma interpretação do universo<br />
pessoal e da poesia de Sophia. A sua elegância e, em particular, a sua relação<br />
com o mar, são o ponto de partida para uma coleção urbana e sofisticada.<br />
Nas palavras do criador, "A silhueta é feminina, em X e H com especial destaque<br />
para o trabalho de godés e jabots que conferem tridimensionalidade aos looks<br />
que oscilam entre propostas confortáveis e easy wear por oposição a imagens<br />
poéticas e fantasiosas. Lãs, viscoses, jacquards, veludos texturizados e feltros<br />
exteriores coexistem com crepes de seda lisos ou estampados, organza e mud<br />
silk. A paleta divide-se em múltiplos azuis - meia--noite, céu e ultramarino; tons<br />
de cinza em chumbo, fumo, nuvem e preto. Para contrastes, tons de barro e rosa<br />
poudre. "<br />
Logo no início do lookbook do desfile de apresentação, no Páteo da Galé, em<br />
março de 2014, surge, em epígrafe, um dos poemas de Sophia que terá inspirado<br />
o processo criativo.<br />
SG | 11
{ efemérides }<br />
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.<br />
a tua beleza aumenta quando estamos sós<br />
e tão fundo intimamente a tua voz<br />
segue o mais secreto bailar do meu sonho.<br />
que momentos há em que eu suponho<br />
seres um milagre criado só para mim.<br />
Sophia De Mello Breyner Andresen (1947)<br />
SG | 12
{ efemérides }<br />
José Rui Teixeira é o diretor e presidente do Conselho Científico da Cátedra<br />
«Poesia e Transcendência — Sophia de Mello Breyner Andresen». Estudou<br />
Teologia, Filosofia e Literatura. É professor na Escola das Artes, na Universidade<br />
Católica do Porto, investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português<br />
e Integra o Instituto de Pensamiento Iberoamericano da Universidad Pontificia<br />
de Salamanca. É autor de vários livros e de dezenas de artigos e ensaios<br />
publicados em revistas científicas e literárias. Em 2013, reuniu a sua poesia em<br />
Diáspora e publicou a dissertação de doutoramento em Literatura: Vida e Obra<br />
de Guilherme de Faria — Os versos de luz por escrever. É também editor da<br />
Cosmorama Edições.<br />
Porquê uma Cátedra de Sophia?<br />
A Cátedra de Sophia é a Cátedra Poesia e Transcendência. Foi<br />
instituída em 2006 pelo Prof. Doutor Arnaldo de Pinho, no<br />
Centro Regional do Porto da Universidade Católica<br />
Portuguesa. Foi instituída por vontade de Sophia de Mello<br />
Breyner Andresen, com um caráter multidisciplinar e<br />
intercultural, e com o objetivo de estudar as relações entre<br />
poesia e transcendência em autores portugueses e<br />
estrangeiros. Entre 2006 e 2008, foram organizados dois<br />
importantes seminários: nos 50 anos de vida literário do<br />
poeta Fernando Echevarría [2006] e nos 30 anos da morte de<br />
Ruy Belo [2008]. Em 2013.14, a Cátedra organizou e<br />
promoveu colóquios, ciclos de conferências e edições,<br />
parcerias com o Instituto de Pensamiento Iberoamericano da<br />
SG | 13
Universidad Pontificia de Salamanca e com a Facultat de<br />
Filosofia da Universitat Ramon Llull — Barcelona. Ou seja: não<br />
se trata de uma cátedra para estudar a poesia de Sophia, mas<br />
uma cátedra que Sophia — na condição de patrono —<br />
desejou instituir na Universidade Católica para que se<br />
estudasse a relação entre Poesia e Transcendência. Isto é<br />
muito interessante, na medida em que permite perceber a<br />
importância que Sophia dava a esta relação.<br />
O que representa para si Sophia?<br />
Sophia começa por representar uma presença tutelar<br />
naquele tempo em que chegou no formato quadrado dos<br />
livros dos contos, como O Cavaleiro da Dinamarca. Sophia<br />
tem — como autora — essa vantagem em relação a todos os<br />
portugueses que passaram pela escola nos últimos trinta<br />
anos. Com o tempo, a poeta foi ocupando outras estâncias,<br />
em livros muito brancos [luminosos...], nas capas e nas<br />
palavras que as páginas ora revelam, ora encobrem... como<br />
um segredo.<br />
Sophia adquiriu para mim, com o passar dos anos, os<br />
contornos de uma figura mítica, sempre próxima e,<br />
simultaneamente, sempre possibilitando outros longes.<br />
SG | 14
{ Efemérides }<br />
Como poeta, que influência teve na sua obra, na<br />
sua escrita?<br />
Tenho sempre muitas dificuldades em perceber a<br />
influência que um autor tem na minha expressão poética.<br />
Confesso que sinto que tudo me influencia e que é<br />
inevitável que uma poeta como Sophia me tenha<br />
influenciado de algum modo... Por vezes, ao reler a minha<br />
poesia, reconheço ecos de poemas de Sophia. E é verdade<br />
que há proximidades formais... Seja como for, agrada-me<br />
pensar que, mais do que uma influência, Sophia é uma<br />
inspiração, como pessoa e como poeta.<br />
Dois poemas de Sophia que traz consigo.<br />
Não tenho apenas um... são muitos os poemas de Sophia<br />
que trago por dentro. Prefiro destacar as Palavras<br />
proferidas por Sophia no dia 11 de julho de 1964, no<br />
almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de<br />
Escritores, por ocasião da entrega do Grande Prémio de<br />
Poesia: «Não aceitamos a fatalidade do mal. Como<br />
Antígona, a poesia do nosso tempo diz: "Eu sou aquela<br />
que não aprendeu a ceder aos desastres."» Porquê?<br />
Porque também não aceito a fatalidade do mal, nem<br />
aprendi a ceder aos desastres.<br />
José Rui Teixeira com Eduardo Lourenço<br />
e com Maria Sousa Tavares, no Panteão<br />
Nacional.<br />
Não aceitamos a fatalidade do mal. Como<br />
Antígona, a poesia do nosso tempo diz: "Eu sou<br />
aquela que não aprendeu a ceder aos desastres."<br />
Sophia<br />
SG | 15
{ em destaque }<br />
SG | 16
{ em destaque }<br />
A literatura, como toda a<br />
arte, é uma confissão de que<br />
a vida não basta.<br />
Fernando Pessoa<br />
SG | 17
{ em destaque }<br />
| Entrevista<br />
SG | 18
{ em destaque }<br />
*<br />
Entrevista a Miguel Monjardino<br />
|Inês Fernandes e Rodrigo Chrystêllo Tavares<br />
Chegou após uma manhã intensa de seminários, com a Ilíada e a<br />
Harvard Business Review debaixo do braço. Com o seu otimismo<br />
contagiante, juntou-se a nós para um almoço frugal. Partilhou<br />
connosco os heróis e as obras mais marcantes, a sua experiência de<br />
leitura e a importância dos clássicos.<br />
Como identificamos um clássico?<br />
Os clássicos são os livros que nós relemos. Nem<br />
todos os livros são clássicos. Os clássicos são os<br />
livros que nós relemos sistematicamente, são os<br />
livros que, no fim de contas, sobreviveram a<br />
décadas, séculos, no caso dos clássicos gregos,<br />
romanos, bem mais de dois mil anos. São livros<br />
especiais, porque são sobretudo livros que falam<br />
sobre a condição humana, e é por isso que nós os<br />
lemos e relemos. E eu acho que é isso que faz de<br />
um livro um clássico.<br />
Os clássicos ainda são atuais?<br />
Eu acho que são muito atuais, exatamente por<br />
causa da natureza humana; a natureza humana<br />
não muda. Uma pessoa que lê nunca está só, e<br />
há coisas que só a literatura pode ensinar pela<br />
sua enorme flexibilidade. Quando alguém<br />
escreve sobre história, quando alguém escreve<br />
sobre política, ou muitas outras coisas, muitas<br />
vezes, é difícil, quando se escreve sobre essas<br />
áreas, ter a imaginação necessária para pôr o<br />
problema de certa forma. A grande vantagem da<br />
literatura é a sua enorme flexibilidade como arte<br />
de colocar problemas eternos sobre a condição<br />
humana e de nos fazer pensar sobre o que é que<br />
estamos a ler, mas sobretudo também sobre o<br />
que é que nós somos ou em que é que nós<br />
acreditamos, e, portanto, quem lê nunca está só,<br />
quem lê nunca está só. E quando<br />
SG | 19
nós lemos, por exemplo, como fazemos aqui no<br />
[Colégio] Pedro Arrupe, só clássicos gregos, no<br />
fim de contas, percebo que os clássicos são<br />
muito atuais. Para dar um exemplo: Tucídides e a<br />
importância geopolítica de determinadas zonas;<br />
olhamos para aquilo que está a acontecer hoje<br />
na Europa, à volta da Ucrânia, e o problema é<br />
exatamente o mesmo. Em<br />
Tucídides, o que está em<br />
causa é saber, por<br />
exemplo, o destino de<br />
Plateias, no diferendo<br />
entre Esparta, Atenas,<br />
Tebas; o que se passa na<br />
Ucrânia é exatamente um<br />
problema semelhante -<br />
como é que a posição<br />
geográfica influencia o<br />
destino de uma<br />
comunidade, quais são os<br />
dilemas políticos que se<br />
geram à volta desse<br />
problema. Tucídides<br />
escreveu sobre isto. Está,<br />
hoje em dia, a acontecer<br />
exatamente a mesma<br />
coisa. Quando nós lemos<br />
hoje, por exemplo, o<br />
“A mim o que me<br />
fascina é conversar<br />
convosco sobre os<br />
livros, o que é que<br />
vocês veem, o que é<br />
que eu vejo, as nossas<br />
conversas à volta<br />
disto; isto é o mais<br />
fascinante, no fim de<br />
contas, eu vir falar de<br />
algo que lemos em<br />
conjunto.”<br />
Canto I e o Canto II da Ilíada, estes giram à volta<br />
do problema do comando, do problema da<br />
autoridade. Agamémnon e Aquiles são usados<br />
por Homero para uma meditação sobre o que é a<br />
liderança, o que é que a liderança envolve.<br />
Quando nós lemos, por exemplo, os primeiros<br />
quatro Cantos da Odisseia, como é que se<br />
cresce? Como é que Telémaco cresce? Estes são<br />
problemas eternos, quer em adolescentes, quer<br />
em adultos, portanto, quem lê clássicos, no fim<br />
de contas, tende a ter uma educação diferente e<br />
talvez uma capacidade de olhar para os<br />
problemas de outra forma, porque percebe que<br />
a sociedade em que nós vivemos, em que tudo é<br />
muito rápido e tudo parece novidade, afinal, não<br />
muda. Há coisas que são, afinal, muito, muito<br />
antigas, e os clássicos dão-nos esta capacidade<br />
de percebermos o que é que nós somos ao longo<br />
da história, o que é que muda<br />
e o que é não muda, e,<br />
portanto, é uma bagagem<br />
muito, muito importante na<br />
formação de uma pessoa. Não<br />
quer dizer que as pessoas<br />
tenham boas notas, são coisas<br />
diferentes; a maior parte das<br />
vezes, o ensino em Portugal<br />
(em Portugal e em todos os<br />
países do sul) é associado a<br />
boas notas, e nós não<br />
devemos ler clássicos só por<br />
notas, é uma coisa diferente,<br />
lê-se clássicos por outras<br />
razões que não têm a ver com<br />
notas e conhecimento<br />
académico puro e duro, é uma<br />
maneira diferente de nos<br />
educarmos, por assim dizer.<br />
No seu percurso, quais foram as obras<br />
mais decisivas para a sua formação?<br />
Eu aqui distinguira duas coisas: houve uma coisa<br />
que eu sempre quis fazer, que é a parte de política<br />
internacional e tudo o que tenha a ver com<br />
segurança, defesa, economia e energia, que são<br />
coisas interessantes, e aí há livros muito, muito<br />
bons que nós lemos ao longo da vida; e depois há<br />
uma parte, que foi um acidente na minha vida,<br />
que é isto, este programa foi um acidente, não foi<br />
SG | 20
uma coisa planeada, portanto, uma das coisas<br />
interessantes naquilo que eu faço é a surpresa…<br />
Foi algo surpreendente na minha vida este<br />
programa, foi uma ideia que apareceu. Portanto, a<br />
primeira lição é: na vida devemos estar<br />
preparados para ser surpreendidos e, às vezes,<br />
acabamos a fazer coisas que inicialmente não<br />
tínhamos planeado, que [aconteceram]. E aqui,<br />
quando eu leio clássicos, é um bocado difícil para<br />
mim escolher. Eu acho que são todos bons<br />
[gargalhadas], eu acho que<br />
são todos bons. Mas, por<br />
exemplo, para quem gosta<br />
muito de política, Tucídides é<br />
um autor incontornável; a<br />
Ilíada é um livro muito duro,<br />
difícil, trágico; a Odisseia é<br />
uma obra mais otimista<br />
sobre o futuro de uma<br />
família. Eu, pessoalmente,<br />
gosto muito de todos. O que<br />
me fascina é conversar<br />
convosco sobre os livros, o<br />
que é que vocês veem, o que<br />
é que eu vejo, as nossas<br />
conversas à volta disto; isto é<br />
o mais fascinante, eu vir falar<br />
de algo que lemos em<br />
conjunto.<br />
Da sua experiência, como é que os jovens<br />
reagem aos clássicos?<br />
Na primeira vez que eu falei com alguém sobre<br />
este projeto, disseram-me: “Vai ser um desastre”<br />
e "Vai ser um desastre, porque os adolescentes<br />
não leem, vai ser um desastre, porque os livros<br />
são muito difíceis", "Vai ser um desastre por outra<br />
razão: os clássicos não são para ser lidos por<br />
adolescentes, não é a idade certa<br />
“Os temas dos clássicos<br />
gregos são tão bons,<br />
que é muito difícil<br />
encontrar um aluno que<br />
não reaja a um clássico<br />
grego, gera emoções,<br />
são obras viscerais que<br />
nos provocam e que nos<br />
levam a pensar sobre<br />
muita, muita coisa.”<br />
para ler". E só há uma maneira de nós<br />
descobrimos estas coisas: é fazendo. Portanto, a<br />
minha experiência convosco e com as pessoas<br />
com quem eu leio é magnífica, tem sido sempre<br />
magnífica, porque é, sobretudo, continuar uma<br />
conversa muito antiga. Aquilo que nós fazemos é<br />
feito há milhares de anos: falar sobre livros. E,<br />
portanto, é uma aventura fascinante conversar<br />
com a vossa geração sobre estes livros.<br />
Qual foi o clássico<br />
mais importante na<br />
sua vida?<br />
Não sei bem a resposta a<br />
essa pergunta, porque<br />
depende muito da reação<br />
dos alunos. Há livros que<br />
chocam mais os alunos.<br />
Repare, porque é que eu<br />
escolhi clássicos gregos?<br />
Eu escolhi clássicos gregos,<br />
porque testei vários tipos<br />
de clássicos; há uns que<br />
funcionam muito bem;<br />
Shakespeare funciona<br />
sempre muito bem, muito<br />
bom, excecional, mas<br />
acabei por me fixar nos clássicos gregos,<br />
sobretudo, por um senhor, um autor<br />
extraordinário, Bernard Knox, que não foi<br />
propriamente um grande aluno de Cambridge,<br />
mas, como capitão na II Guerra Mundial, numa<br />
situação muito difícil, em Itália, encontrou um<br />
clássico romano e leu-o e disse: “Se eu sair vivo<br />
disto, eu vou estudar gregos como deve ser”. E<br />
tornou-se um professor excecional de clássicos<br />
gregos. E eu, ao ler a obra de Bernard Knox,<br />
percebi o poder imenso que estes livros têm e, no<br />
SG | 21
no fim de contas, não tem sido difícil conversar<br />
convosco sobre os livros, porque as personagens,<br />
os temas dos clássicos gregos são tão bons, que é<br />
muito difícil encontrar um aluno que não reaja a<br />
um clássico grego; gera emoções, são obras<br />
viscerais que nos provocam e que nos levam a<br />
pensar sobre muita, muita coisa. Muitas vezes,<br />
nós não concordamos quando lemos, não<br />
concordamos, mas não faz mal nenhum, não há<br />
problema absolutamente nenhum. Mas eu tenho<br />
dificuldade em escolher uma obra. Há coisas<br />
muito comoventes, por exemplo, o canto VI da<br />
Ilíada. O canto VI da<br />
Ilíada, a despedida de<br />
Andrómaca e de Heitor,<br />
“A mim o que me<br />
interessa mais é que tipo<br />
de pessoas é que vocês<br />
serão, ou que tipo de<br />
pessoa é que eu sou, ou<br />
que tipo de vida é que<br />
nós deveremos ter para<br />
além da profissão”<br />
o Canto XXIV da Ilíada;<br />
se há coisa que mostra<br />
que Homero é um génio<br />
é capaz de ser o Canto<br />
XXIV. Outras coisas<br />
comoventes [são] As<br />
Troianas, de Eurípides,<br />
a despedida de<br />
Andrómaca do seu filho,<br />
e o contexto político em<br />
que Eurípides escreve a<br />
obra, durante a guerra<br />
do Peloponeso, e são<br />
coisas comoventes, por exemplo, a retirada final<br />
das tropas atenienses da Sicília; o poder literário<br />
da descrição de Tucídides é extraordinário,<br />
quando aqueles homens bebem sangue no rio,<br />
sedentos, cheios de medo, isso são coisas que nos<br />
chocam, porque são comoventes. Mas também há<br />
coisas que nós lemos que nos chocam, porque são<br />
violentíssimas, algumas das descrições de<br />
combates na Ilíada, a execução final das servas no<br />
palácio, em Ítaca, há muitas coisas desse tipo, a<br />
vingança de Clitemnestra em<br />
relação a Agamémnon, na Oresteia; Medeia por<br />
exemplo, que assassina os seus filhos, a vingar um<br />
homem que amou. Portanto, há aqui muitas coisas<br />
que são comoventes ou chocantes nas obras, mas,<br />
mais uma vez, eu tenho dificuldade em escolher<br />
uma obra em especial. Embora eu pessoalmente<br />
goste muito da Ilíada, da tragédia que engloba.<br />
Que papel têm as Humanidades nos dias<br />
de hoje?<br />
Eu diria, eu digo que têm um papel essencial. A<br />
conceção, a nossa atual conceção de educação<br />
[pressupõe uma]<br />
tendência muito vertical.<br />
Eu fui educado numa<br />
perspetiva quase de silos:<br />
Matemática, Física,<br />
História, Biologia. E é<br />
difícil, muitas vezes, os<br />
professores ( não é fácil<br />
pela maneira como os<br />
programas estão<br />
estruturados) terem<br />
pontes de contacto,<br />
tornarem o ensino mais<br />
horizontal. É o que torna<br />
muito interessantes estas<br />
nossas conversas aqui no<br />
Colégio Pedro Arrupe. Por exemplo, hoje, nós<br />
estávamos a ler sobre o problema do comando,<br />
no Canto I e II na Ilíada, e há dois artigos muito<br />
interessantes na Harvard Business Review que<br />
não são sobre clássicos, mas giram à volta do<br />
potencial de crescimento que as pessoas têm.<br />
Um bom argumento é que é evidente que as<br />
pessoas [precisam] do ponto de vista técnico,<br />
para terem um bom futuro, mas há outras coisas<br />
que também são essenciais na vida<br />
SG | 22
de uma pessoa. O que me preocupa tanto, o que<br />
me preocupa mais, ou o que eu acho mais<br />
interessante, não é saber qual é o futuro<br />
profissional dos alunos, apesar de compreender<br />
que é importante; a<br />
mim o que me<br />
interessa mais é que<br />
tipo de pessoas é que<br />
vocês serão, ou que<br />
tipo de pessoa é que<br />
eu sou, ou que tipo de<br />
vida é que nós<br />
deveremos ter para<br />
além da profissão. E,<br />
para<br />
nós<br />
respondermos a esta<br />
pergunta, acho que é<br />
uma enorme vantagem nós lermos muito,<br />
porque nos obriga a pensar sobre nós e os<br />
outros, e é por isso que eu acho que as<br />
Humanidades são tão importantes como a<br />
Matemática, ou como a Física. Portanto, eu acho<br />
que a formação de uma pessoa deve assentar,<br />
obviamente, em coisas técnicas, que são<br />
científicas, que são importantes para o futuro.<br />
Qual a importância da leitura?<br />
Eu diria que é essencial, embora reconheça uma<br />
coisa: a vossa geração é uma geração digital, e a<br />
geração digital obviamente fará as coisas de uma<br />
forma diferente da minha. Para mim, é quase<br />
inconcebível ler um livro em formato digital,<br />
tenho que sentir o livro… Mas compreendo<br />
perfeitamente que para pessoas que são criadas<br />
no meio digital, se calhar, o formato melhor<br />
para ler será esse formato. Portanto, eu não<br />
tenho uma ideia pré-concebida de<br />
que as pessoas só devem ler livros físicos, aliás,<br />
eu imagino que um problema de viver em Lisboa<br />
seja arranjar espaço numa casa para ter livros;<br />
eu não tenho esse problema, porque eu vivo<br />
muito longe de Lisboa, mas<br />
compreendo que para<br />
quem vive num<br />
apartamento em Lisboa<br />
deva ser muito difícil ler<br />
livros. Quem tem um kindle<br />
pode ter 600, 700, 800<br />
livros num quadradinho. Eu<br />
acho que o que é<br />
interessante é ler. Ler<br />
muito. É o vocabulário, é a<br />
capacidade de conversar, a<br />
própria capacidade de<br />
compreender e de interpretar o que está a<br />
acontecer, e eu acho que isso é muito, muito<br />
importante para uma pessoa. E, depois, tem uma<br />
vantagem grande: a leitura obriga as pessoas a<br />
concentrarem-se, e, hoje em dia, num mundo<br />
digital, eu imagino que seja muito difícil para as<br />
pessoas concentrarem-se. Há, todavia, um autor<br />
que eu acho que está muito de acordo com esta<br />
era digital; é Heródoto, Heródoto, às vezes,<br />
enfurece-nos, porque está a contar-nos uma<br />
coisa e depois desvia-se e conta uma coisa à<br />
volta. Heródoto é, sem dúvida, o autor que está<br />
mais sintonizado com esta era digital de ter<br />
concentração curta e de dispersão, porque ele<br />
dispersa-se involuntariamente, e é muito<br />
curioso; é a mesma coisa que um de vocês, ou<br />
eu, estarmos a consultar uma página na internet<br />
e de repente termos uma coisa na página que<br />
SG | 23
nos desvia, e vamos parar a outro lado.<br />
Sob esse ponto de vista, Heródoto é<br />
talvez o autor que é mais parecido com<br />
os tempos, por assim dizer, de<br />
concentração e leitura da vossa<br />
geração. Quer dizer, ele, de vez em<br />
quando, desvia-se para a esquerda,<br />
desvia-se para a direita, e depois só<br />
retoma a história quatro ou cinco ou<br />
dez parágrafos à frente, portanto, sob<br />
esse ponto de vista, parece-me ser um<br />
historiador muito curioso nesta idade<br />
de informação rápida, a circular de um<br />
lado para o outro, muda, vira, volta<br />
atrás… Parece-me ser parecido.<br />
Evocando o ideal “mente sã em corpo<br />
são”, como é que podemos estabelecer<br />
uma ligação entre estas duas dimensões<br />
no contexto da literatura?<br />
Hum… [pondera] Nós, de certa maneira, somos<br />
muito herdeiros deles, devemos muito aos gregos;<br />
há uma parte que nós hoje em dia cultivamos<br />
mais, que é a parte física, os ginásios, o culto do<br />
corpo; sobre essa parte, por aquilo que vejo, não<br />
há grande dificuldade em convencer as pessoas a<br />
ir para o ginásio. Vivemos numa sociedade que<br />
acentua muito o culto da beleza, o culto do corpo.<br />
Talvez seja mais complicado hoje as famílias terem<br />
tempo para ler. Essa é a grande diferença, por<br />
exemplo, em relação à minha geração; eu tenho<br />
52 anos e, até aos 14, 15 anos, eu não via<br />
televisão, não havia televisão no sítio onde eu<br />
cresci. Havia tempo para ler, havia tempo para<br />
conversar, à refeição, principalmente no jantar,<br />
conversava-se muito. E o arco das gerações dos<br />
mais novos aos mais velhos era grande, portanto,<br />
havia muita conversa entre gerações. Hoje em dia,<br />
as solicitações são tantas, que é muito mais difícil,<br />
imagino eu, em termos familiares, haver tempo<br />
para ler e para se conversar. Onde é que esse<br />
trabalho está a ser feito? Está a ser transferido<br />
todo para as escolas. Mas não é fisicamente<br />
possível para os professores, por mais bem<br />
intencionados e competentes que sejam,<br />
substituir-se a algo que deve ser feito, ou deveria<br />
ser feito, noutro sítio. E também se calhar não é<br />
fácil, para adolescentes ou alunos que queiram ler,<br />
arranjar um tempo e um espaço, para estarem sós<br />
e lerem sossegadamente… Essa parte é mais<br />
difícil. Agora, eu diria que, para termos uma vida<br />
boa, ou uma vida interessante, tem de haver esta<br />
harmonia, por assim dizer, entre a parte<br />
intelectual e a parte física. Por exemplo, se nós<br />
lermos Platão, A República, [isso] está lá, embora,<br />
como nós vemos no livro, Platão não gostasse que<br />
as pessoas aprendessem certas coisas… peças de<br />
teatro, por exemplo. Inicialmente, no livro,<br />
Sócrates acha que é um disparate as pessoas<br />
aprenderem esse tipo de coisa, depois, enfim,<br />
SG | 24
muda de opinião; mas cá está, é um problema<br />
muito antigo que nos continua a perseguir.<br />
Que mensagem final gostaria de deixar<br />
aos alunos do Colégio Pedro Arrupe?<br />
Eu gostava que fossem, para terem uma vida<br />
interessante, gostava que fossem corajosos, talvez<br />
seja a coisa mais importante, ser corajoso, ser<br />
muito persistente. E leiam, conversem,<br />
escrevam... Eu acho que isso ajuda muito a ter<br />
uma vida interessante, um bom caminho. Mas tem<br />
muito a ver com virtudes, que é uma palavra que<br />
não é muito usada hoje em dia, e a coragem é<br />
uma grande virtude e, aliás, isso vê-se muito nos<br />
clássicos gregos. Talvez seja a virtude mais<br />
importante; as pessoas podem ser muito boas<br />
intelectualmente, mas, se não tiverem coragem,<br />
não vão chegar muito longe. Uma pessoa tem que<br />
ser corajosa, a curiosidade ajuda muito também. A<br />
curiosidade ajuda muito. Ulisses é um homem<br />
muito curioso e é por isso que é magnífico… Mas<br />
Ulisses, cá está, talvez o melhor herói, a melhor<br />
personagem para esta conversa seja Ulisses,<br />
porque ele era curioso e é muito inteligente, ele<br />
sofre e nunca desiste, e não é possível ser-se<br />
interessante sem ter essas qualidades. A vida não<br />
é necessariamente uma linha reta. Não é fácil… O<br />
paradoxo é que o Homem talvez mais interessante<br />
que nós encontramos e que lemos aqui nunca leu<br />
um livro. Ulisses nunca leu um livro. Acho o<br />
paradoxo interessante: nunca leu um livro e<br />
provavelmente era analfabeto, mas era um<br />
Homem fascinante, pelas qualidades que tinha. Na<br />
dúvida, mesmo que as pessoas tenham essas<br />
qualidades que não são fáceis de ter, continuem a<br />
ler, ler muito.<br />
“Talvez seja a virtude mais<br />
importante, as pessoas<br />
podem ser muito boas<br />
intelectualmente, que se<br />
não tiverem coragem, não<br />
vão chegar muito longe.”<br />
SG | 25
{ em destaque }<br />
*<br />
Vasco Graça Moura<br />
|Maria Inês de Castro<br />
Que poderemos dizer sobre uma das grandes personalidades do século XX, que<br />
tanto contribuiu para o enriquecimento da literatura portuguesa?<br />
Nascido no Porto, em 1942, Vasco Graça Moura foi poeta, romancista, ensaísta e,<br />
ainda, tradutor. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, exerceu o<br />
cargo de advogado, entre os anos de 1966 a 1983. Posteriormente, enveredou<br />
pela carreira literária (1983), deixando a advocacia e abraçando funções diretivas<br />
na RTP, na Imprensa Nacional-Casa da Moeda e na Comissão para as<br />
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, entre tantas outras tarefas a<br />
que se dedicou.<br />
SG | 26
{ em destaque }<br />
Mais tarde, opta pela carreira política, sendo Secretário de Estado de dois<br />
Governos Provisórios, e torna-se deputado no Parlamento Europeu (2012).<br />
Assume, igualmente, a presidência da Fundação Centro Cultural de Belém, em<br />
2012.<br />
Concebe dois ensaios sobre Camões: Alguns Desafios (1980), Camões e a Divina<br />
Proporção (1985).<br />
Recebe o prémio da Associação Portuguesa de Escritores, com Uma carta no<br />
inverno e Poemas com pessoas, o Prémio Pessoa em 1995, e o Prémio Vergílio<br />
Ferreira, em 2007 , entre outros. Graças à sua genial tradução da obra Divina<br />
Comédia, é-lhe atribuída uma medalha de ouro da comuna de Florença, em 1998.<br />
No que diz respeito à poesia, esta é para si “uma questão de técnica e de<br />
melancolia”, sendo notória no seu espólio poético a influência de Camões, Jorge<br />
de Sena, Dante, Rilke e Shakespeare.<br />
Graça Moura sempre foi um acérrimo opositor do novo acordo ortográfico, contra<br />
o qual pugnou nos últimos anos de vida.<br />
Foi homenageado com um Doutoramento Honoris Causa da Universidade do<br />
Porto, sendo esta a última cerimónia à qual compareceu. Miguel Cadilhe, seu<br />
grande amigo, recordará para sempre esse momento: “Levanta-se e vai sozinho,<br />
direito, honrado, impressionante, consigo vai o justo orgulho de uma vida inteira<br />
(...)” (Jornal de Notícias).<br />
Vasco Graça Moura morre em Lisboa, a 27 de abril de 2014.<br />
Num dos seus poemas, antecipava os dias que se seguiriam à sua morte: virão<br />
dias, semanas, meses, anos, / e os ciclos dos astros indiferentes, / mover-se-ão na<br />
mesma os oceanos / e as placas que sustentam continentes.<br />
O seu nome será sempre relembrado como um dos grandes pilares da Língua, da<br />
Literatura e da Cultura Portuguesas.<br />
SG | 27
{ em destaque }<br />
*<br />
Vasco Graça Moura | Poemas escolhidos<br />
| Maria Inês de Castro e Heytor Torres<br />
Lamento para a língua portuguesa<br />
não és mais do que as outras, mas és nossa,<br />
e crescemos em ti. nem se imagina<br />
que alguma vez uma outra língua possa<br />
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,<br />
ser remédio brutal, mera aspirina,<br />
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,<br />
ou dar-nos vida nova e repentina.<br />
mas é o teu país que te destroça,<br />
o teu próprio país quer-te esquecer<br />
e a sua condição te contamina<br />
e no seu dia-a-dia te assassina [...]<br />
in Uma Carta no Inverno, Quetzal<br />
Soneto de dante alighieri<br />
guido, oxalá que tu e lapo e eu<br />
fôssemos presos por encantamento<br />
dentro de um barco a ir por todo o vento<br />
pelo mar fora a vosso querer e meu;<br />
e assim fortuna ou outro adverso céu<br />
não nos pudesse ser impedimento,<br />
como a quem vive e quer, num só alento,<br />
desejo de estar juntos mais cresceu.<br />
e as damas vanna e lagia logo após<br />
mais essa que nas trinta está presente<br />
juntasse a nós o bom encantador:<br />
e cada uma fosse tao contente<br />
quanto, bem creio, assim fôramos nós.<br />
SG | 28
{ em destaque }<br />
O mel<br />
“tens mel”, disse num dia da minha juventude,<br />
beijando a musa — e guardei na memória<br />
do corpo a sensação de ter provado<br />
um favo de ouro doce a misturar-se,<br />
escorrendo, aos sentimentos ainda por dizer<br />
e a tantos mais impulsos em desordem,<br />
mel a imprimir-se como um paladar<br />
nas fronteiras que ligam corpo e alma,<br />
com um gosto indelével e que havia<br />
de modelar-me a vida nas palavras.<br />
depois tomou-me o sono, o sono que é frequente<br />
antes que as coisas sejam, saber delas:<br />
na musa havia mel todos os dias, quando<br />
grave e contente me oferecia a boca<br />
para que eu respirasse, ao sol, à chuva,<br />
à luz mediterrânica, ao vento atlântico,<br />
à noite, vendo a lua subir por detrás das oliveiras,<br />
à mesa de um café, numa manhã de verão,<br />
junto de um templo, de um eirado, ao pé de um rio,<br />
a vir não só da boca, mas dos olhos,<br />
a vir não só dos olhos, mas da pele,<br />
a vir não só da pele, mas da figura,<br />
a vir também até da própria sombra<br />
aos sons que me ressoam na cabeça,<br />
a vir mais transparente, quando a ausência<br />
com saudade e desejo faz de abelha<br />
e a esse mel mistura a musa o seu,<br />
como âmbar de luz quente, devagar.<br />
in Poesia 1997 | 2000, Quetzal<br />
SG | 29
{ em destaque }<br />
*<br />
Colagem | Retalhos poéticos de Vasco Graça Moura<br />
| Heytor Torres<br />
Por dizer(?)<br />
Dei-te um anel com pedra de safira,<br />
subtil, implacável, a sustentar atitudes e descuidos.<br />
Podes não gostar de mim, do vento e do destino,<br />
das coisas que não disseram, é quando a solidão<br />
se encorpa nas palavras que no mundo<br />
costumam suceder.<br />
Amor, ó meu amor, melancolia,<br />
quero a leveza da pluma.<br />
à meia-noite os cedros quando o céu<br />
que nasce como a sombra,<br />
mais um clarão de morte avança de<br />
cauda tracejante que desponta.<br />
Ela cantava o fado e de repente no jardim,<br />
às escuras, entre árvores e rosas, uma mulher<br />
contempla o seu retrato. Vejo-a a passar a mão pelos<br />
cabelos, o coração falhava e era tão cedo,<br />
e então digo e desdigo, do tempo adulto e de criança<br />
morrermos assim era verdade.<br />
SG | 30
{ em destaque }<br />
*<br />
Dante Alighieri<br />
| Micaela Silva<br />
Nasceu a 1265, em Florença, pertencia à baixa nobreza, e a sua infância foi<br />
marcada pelo falecimento da sua mãe e, mais tarde, com dezoito anos, do seu pai.<br />
A sua vida é baseada em suposições propagadas pelos seus primeiros biógrafos, a<br />
partir da sua obra Vida Nova, em que encontramos alguma informação<br />
autobiográfica, sendo descrito o amor platónico por Beatriz, provavelmente<br />
Beatriz Portinari, com quem contactou pela primeira vez quando tinha apenas<br />
nove anos, e com quem, mais tarde, voltará a ter novo contacto, em 1283.<br />
Provavelmente, em 1285, estudou na Universidade de Bolonha.<br />
SG | 31
{ em destaque }<br />
No século XIII, a maioria dos matrimónios era feita por conveniência, tendo casado<br />
com Gemma Donati, com quem teve quatro filhos. Uma das suas filhas enveredou<br />
pelo caminho religioso, tendo assumido o nome de Beatrice. Em 1287, Beatriz<br />
casou-se com Simoni Bardi, um banqueiro.<br />
Em 1289, após a sua família se ter filiado na fação política dos Guelfos, lutou com<br />
o exército guelfo de Florença na batalha de Campaldino. Saindo vencedor contra o<br />
exército guibelino de Pisa e Arezzo, recuperou o poder citadino.<br />
Em 1290, morre Beatriz, deixando Dante inconsolável; a partir de então, decide<br />
dedicar-se ao estudo de obras filosóficas de Aristóteles e à arte poética.<br />
Em 1300, inscreveu-se na Guilda de médicos e farmacêuticos, disputando eleições<br />
em Florença, para o Conselho da Cidade.<br />
Face ao atrito constante entre Guelfos, e após múltiplas divisões, foi alvo de<br />
inúmeras acusações, como corrupção, improbidade administrativa e oposição ao<br />
Papa. Exilou-se e foi condenado ao pagamento de uma elevada coima.<br />
No exílio, contatou com a causa guibelina, à medida que a tirania da igreja<br />
aumentava, e escreveu em latim a Vulgar Eloquentia, obra<br />
em que defendia a utilização da língua-mãe. Em De<br />
Monarchia, defende a laicização do Estado e, por fim, na<br />
Commedia, escrita durante catorze anos, imagina a sua<br />
própria passagem pelo Inferno, Purgatório e o Paraíso, sendo<br />
esta a sua obra-prima.<br />
Cinco anos antes da sua morte, o governo convidou-o a<br />
retornar a Florença, mas os termos propostos eram<br />
extremamente humilhantes, assemelhando-se àqueles que<br />
eram aplicados a crimes hediondos. Desta forma, rejeitou por<br />
completo o convite, continuando instalado em Ravenna, local<br />
do seu falecimento, em 14 de setembro de 1321.<br />
SG | 32
{ em destaque }<br />
*<br />
À volta dos livros |texto de apreciação crítica<br />
| Maria Inês de Castro<br />
A Divina Comédia é um poema épico italiano da autoria de Dante Alighieri, escrito no<br />
século XIV, que retrata a sua imaginária viagem metafísica, guiada por Virgílio e<br />
Beatriz. A jornada está dividida em três partes, narradas em verso: o Purgatório, o<br />
Inferno e o Paraíso.<br />
A ação desenrola-se em torno de uma peregrinação escatológica que é uma autêntica<br />
metáfora para a reflexão sobre a condição humana. É bem notória a denúncia dos<br />
pecados humanos, através das pesadas sentenças que as almas prevaricadoras foram<br />
forçadas a cumprir depois da vida. Deste modo, a cada um dos nove pecados (luxúria,<br />
gula, ganância, ira, heresia, violência, avareza, fraude e traição) era atribuído um<br />
círculo, ao qual cada alma se devia deslocar (sob o juízo de Minos), para expiar as suas<br />
ofensas e vícios. Um dos momentos mais marcantes acontece precisamente no sétimo<br />
círculo, onde se encontram os violentos (contra si, contra Deus e contra os outros) e<br />
SG | 33
{ em destaque }<br />
onde os suicidas sofrem a terrível pena de se transformarem em árvores, estando as<br />
suas folhas condenadas a serem feroz e inexoravelmente arrancadas pelas impiedosas<br />
Harpias (seres com rosto de mulher e corpo de pássaro). Por outro lado, é também<br />
visível a apologia de uma vida pura e sem pecados, uma vez que estas almas são<br />
recompensadas, sendo-lhes atribuído um lugar no paraíso. O limbo é um patamar<br />
intermédio na entrada do Inferno, a que estão destinados os que não foram batizados<br />
ou nasceram antes de Cristo.<br />
No que concerne às personagens, é de salientar o protagonismo de Virgílio e de<br />
Beatriz, enquanto guias, e de Dante, enquanto personagem principal. Virgílio será o<br />
cicerone de Dante no Inferno e caracteriza-se pela sua persistência e pela proteção do<br />
seu discípulo. É também obstinado, nunca desistindo - lembre-se o momento em que<br />
lhe é negada a entrada na porta de Dite ("[...] a luta/teremos de vencê-la"). Além disso,<br />
assume-se, igualmente, como defensor do seu prosélito, na medida em que o protege<br />
dos perigos do Inferno, nomeadamente, do poder das Górgonas que transformam em<br />
pedra todos os que as fitam diretamente nos olhos ("[…] quem nos visse,/não mais em<br />
seu regresso fora posto"), tapando a vista de Dante com as mãos ("E o meu próprio<br />
mestre [...]/me voltou, não bastando a minha mão,/que das suas ainda me cobrisse").<br />
Por sua vez, Dante demonstra a sua coragem e determinação, bem como o seu lado<br />
piedoso. No que diz respeito à sua bravura, esta evidencia-se ao aventurar-se na<br />
passagem pelo Inferno, apesar da consciência da existência de monstros horrendos e,<br />
consequentemente, de um ambiente tétrico. Por outro lado, realce-se igualmente a<br />
sua determinação, visto que nunca desiste da sua travessia pelo lugar Infernal ("Que tu<br />
me leves lá onde disseste/à porta de S. Pedro, ora te rogo, / e a esses que tão triste<br />
descreveste"), apesar de perder os sentidos ("[...] e caí como alguém que apanha o<br />
sonho"). Finalmente, saliente-se, ainda, o seu lado misericordioso, uma vez que se<br />
compadece perante as almas pecadoras ("[...]o rosto já me tinge/do apiedar [...] que tu<br />
sentes" ; "[...] eu não posso que a pena me descora").<br />
SG | 34
{ em destaque }<br />
A obra adquire contornos de grande realismo e visualismo, sendo<br />
frequente a sugestão de sensações auditivas ("[...] e pios dão nas<br />
árvores insanos") e visuais ("Eis vão dois pela sinistra encosta/esfolados<br />
e nus em tal desnorte/que quebram cada silva que os arrasta").<br />
Também o facto de a narração ser realizada na primeira pessoa ("[…]<br />
que o coração me enchera de tormento") aumenta o poder e a<br />
verosimilhança do relato.<br />
Confesso que esta viagem metafísica me surpreendeu, superando<br />
completamente as minhas expectativas; a sua carga alegórica<br />
transporta o leitor para um plano transcendente, desenvolvendo uma questão<br />
incontornável: o que há depois da vida? Haverá questão mais inquietante do que esta?<br />
SG | 35
{utopias} O Inferno de Dante<br />
SG | 36
{ utopias}<br />
utopia<br />
substantivo feminino<br />
(do grego ou-, não + tópos, ou, lugar)<br />
fantasia, quimera, sonho<br />
SG | 37
{ utopias}<br />
llustração de Maria Ana Gamito<br />
SG | 38
{ utopias}<br />
| Maria Inês de Castro<br />
Eis Virgílio, de olhos esbugalhados e castanhos, cabelo claro e ondulado, tez<br />
nívea e rubicunda. Homem agnóstico, indeciso, sempre procurara ser crente,<br />
mas tinha demasiadas dúvidas.... Era bastante observador, passava horas a<br />
examinar os comportamentos de outros e tentava, através destes, decifrar os<br />
seus próprios medos. Quanto mais presenciava os comportamentos humanos,<br />
mais estes o repugnavam, pois cada vez assistia mais a injustiças, corrupção,<br />
inveja, hipocrisia...<br />
Refugiava-se da cruel realidade através do pensamento; tinha construído um<br />
mundo que refletia as suas ambições e os seus medos. Mergulhando bem fundo,<br />
encontraríamos inicialmente o plano onírico: aqui, a imponência e a inigualável<br />
fragrância das flores estavam em sintonia com a calma ondulação do rio que os<br />
brilhantes raios de sol penetravam, com o plácido voo das aves que chilreavam.<br />
No entanto, o mundo de Virgílio congregava também, no seu plano mais<br />
tenebroso, um espaço sombrio, que o envolvia nos momentos funestos. À<br />
entrada, uma aberração com quatro olhos, que jorrava sangue pelos mesmos,<br />
tinha como função abrir a porta das trevas a quem passava por ali, assustando<br />
com os seus gritos ululantes. Ali tudo era obscuro e tétrico, a todo o ódio o céu<br />
assistia, impassível. Os corvos blasfemavam a natural bondade, esvoaçando na<br />
consciência remorsa, e o rio, correndo ferozmente, arrastava consigo as lágrimas<br />
que dos seus olhos se precipitavam. “«Deixai toda a esperança, vós que<br />
entrais», pois o alento já<br />
escasseia”, gritavam as almas condenadas que<br />
esvoaçavam por entre os troncos caídos na lama pestilenta.<br />
SG | 39
{ utopias}<br />
Ali, qualquer ambição, desejo ou sonho eram submersos pelo sangue de que<br />
cada uma das almas, em vida, esteve, um dia, tão sedenta.<br />
E Virgílio, que, quando menosprezava as suas capacidades e subestimava o<br />
seu mérito, cavava aqui a sua entrada, deixou-se, por consequência, desabar,<br />
tanto na sua realidade, como neste mundo, criado através da imaginação.<br />
llustração de Mariana Serra<br />
SG | 40
{ utopias}<br />
| Rodrigo Chrystêllo Tavares<br />
“Deixai toda a esperança, vós que entrais”<br />
Canto III, v. 9, A Divina Comédia, Dante Alighieri<br />
Corria o ano da Graça de Deus de mil quinhentos e dezasseis, na mais rica e<br />
cosmopolita urbe da Cristandade ocidental, quando no Terreiro do Paço e na<br />
vizinha Ribeira das Naus, vasto rossio integrado no novo complexo políticoadministrativo<br />
nacional, tornado necessário pela expansão de empórios<br />
portugueses pela Ásia e pela Oceânia, naves sobre naves, recém-chegadas do<br />
Oriente do Oriente, carregadas com especiarias diversas, como o anil de<br />
Cambaia, a canela de Ceilão, o cardamomo do Malabar, o cravo de Tidore, a nozmoscada<br />
de Banda, a cânfora do Bornéu, o sândalo de Timor, o benjoim de<br />
Samatra, a curcuma de Bengala e o índigo de Salém; buíam os aromas de um<br />
império que se estendia da Amazónia aos confins das Molucas.<br />
Mendo de Tarouca, formoso cortesão de do círculo íntimo d’El-Rei D. Manuel, o<br />
Venturoso, de quem foi guarda-roupa e escrivão da puridade, além de<br />
sobejamente abastado, reputado pela ignominiosa soberba que mostrava e pela<br />
debochada e licenciosa vida que levava, contava-se entre as figuras de primeira<br />
ordem do Portugal de Quinhentos.<br />
As suas torpezas, ações deliberadas e conscientes, valeram-lhe, em vida, um<br />
elevado estatuto e um elevado conhecimento dos destinos da política nacional, a<br />
par da grande preponderância nos assuntos da corte. Não obstante, no Hades,<br />
de nada lhe serviram estes atributos, pelo contrário, mais o danaram.<br />
De entre as suas infindáveis torpezas, destaco algumas, somente para não<br />
enfadar. Primeiramente, as suas segundas núpcias, na magnífica Capela Real do<br />
Paço, com Genebra Pessanha, devota e rica viúva, filha do Almirante de Portugal,<br />
cargo instituído pelo rei D. Dinis, a favor do genovês Manuel Pessanha.<br />
SG | 41
{ utopias}<br />
llustração de Carolina Mendonça<br />
SG | 42
{ utopias}<br />
Estas núpcias, somente contraídas pelas fazendas e títulos que delas poderiam<br />
provir, tornaram-no Almirante, razão que lhe permitiu almejar a governação de<br />
Ceuta, e da qual foi titular.<br />
Aquando do exercício das funções de donatário em Porto Santo, recentemente<br />
fundado, entregou-se largamente a voluptuosidades escabrosas e dignas da ira<br />
de Deus. E, em simultâneo, mantinha relações concupiscentes com três senhoras<br />
da sociedade local, sem que ninguém ousasse desconfiar, tal era o ardil, além de,<br />
imagine-se, emprenhar um sem número de serviçais da sua casa!...<br />
Por fim, utilizou as suas influências e amizades para, por um lado, acumular<br />
grande riqueza, aliás, considerada a terceira maior do reino, e subornar os<br />
funcionários da Chancelaria-Mor, para que lhe fossem outorgadas cartas de<br />
doação de domínios feudais, e deles obter rendimentos; além disso, tentou<br />
derrubar a reputação dos seus rivais mais poderosos, lançando calúnias e<br />
fazendo, inclusivamente, através de um mensageiro, publicar diversos folhetins,<br />
que circulavam pela capital, em que os injuriados eram apelidados de burlões e<br />
simoníacos.<br />
Subitamente, não pôde mais o poderoso senhor continuar a usufruir das suas<br />
regalias, posto que, no ano de mil quinhentos e dezasseis, entrou em Lisboa um<br />
surto de tifo, que dizimaria cerca de um terço da população nacional. Os galeões<br />
e as carracas da Carreira das Índias tinham aferrado em Porto Santo, para<br />
receber água e mantimentos, onde, por sinal, também estava fundeada uma<br />
esquadra genovesa, a qual trazia, entre os seus tripulantes, o tifo.<br />
O grande alvoroço das populações da capital conduziu-o, imaginando talvez uma<br />
morte súbita, à loucura. Mostrando um físico muito volumoso, fruto de uma gula<br />
desenvergonhada, renunciou às suas posições e partiu, com os quatro filhos,<br />
para a sua terra-natal. A idade avançada e a saúde debilitada fizeram-no perecer<br />
no dia de Pentecostes desse ano. Apesar de ter ordenado, anos antes, a<br />
construção de uma capela particular na Igreja de S. Pedro, adjacente ao altarmor,<br />
onde reuniu grande parte de seus familiares, foi sepultado no ossário fora<br />
de muros, facto somente explicável pelo receio dos que não haviam padecido de<br />
que a praga exalasse das frias e graníticas pedras do templo.<br />
SG | 43
{ utopias}<br />
Chegado às portas do Inferno, deparou-se o poderoso senhor com uma paisagem<br />
aterradora. Com exceção de um monumental pórtico com a inscrição “Deixai<br />
toda a esperança, vós que entrais”, guardado por Nero e Calígula, tudo o resto,<br />
uma infinda planície, era árido e escarpado. Em seu redor, milhares de almas<br />
erravam, cinzentas e macabras, roncando e vociferando, porque não haviam<br />
pagado o óbolo e haveriam de aí pairar até à eternidade, conferindo àquele<br />
espaço infindo, de aspeto lúgubre e atmosfera sombria, contornos sinistros e<br />
arrepiantes. No vale onde corria o sanguíneo rio, mais abaixo, boiavam as<br />
cabeças e os membros dos decepados, enforcados e mutilados, cujas expressões<br />
medonhas assustariam qualquer um do mundo dos vivos; alguns sem olhos,<br />
outros sem língua, outros ainda com o cérebro saindo pelos orifícios do nariz e<br />
dos ouvidos.<br />
*<br />
llustração de Hussein Ally<br />
SG | 44
{ utopias}<br />
Para chegar às suas margens, teve Mendo que descer uma escadaria<br />
ingremíssima, totalmente constituída pelas ossadas dos que haviam somente<br />
tributado meio óbolo e que seriam condenados a ser pisados para todo o<br />
sempre. Chegado ao patamar mais baixo, cujo imenso corrimão o obrigava a ficar<br />
submerso, avistou alta caverna, negra e gélida, guardada por duas hidras<br />
colossais e aterradoras, cujas múltiplas línguas atingiam um alcance de dez<br />
metros e que devoravam qualquer cadáver em segundos. Em seu redor,<br />
avistavam-se numerosos corpos esquartejados, cabeças aqui, troncos além e<br />
membros em toda a parte. De súbito, surgiu, roncante e pervígil, uma figura<br />
medonha, com mais de cinco metros de altura, com múltiplas garras e cabeças,<br />
que o injuriou e manteve cativo. Durante todo esse tempo, obrigou-o a manter-<br />
-se na escuridão, a comer cadáveres e a beber água putrefacta, o que<br />
rapidamente deteriorou a sua saúde e o levou a uma loucura inimaginável.<br />
Neste patamar, chovia incessantemente, trovejava ruidosamente e nevava<br />
abundantemente. Os corpos estavam constantemente semi-submersos e<br />
vomitavam amiudadamente, facto que tornava este círculo fétido e pestilento.<br />
As próprias almas danadas, ruidosas e ameaçadoras, faziam incursões às turbas,<br />
que dilaceravam e consumiam. As mulheres que haviam padecido grávidas<br />
davam constantemente à luz criaturas horripilantes, como hidras, cérberos e<br />
minotauros. Os senes eram cegados com espadas incandescentes e as suas<br />
línguas eram cortadas, para que morressem à míngua de alimentos.<br />
Estando ainda no nível dos primeiros condenados, e vendo uma bandeira que<br />
girava […] correndo em veloz jeito e, mais atrás, longa fila a eito de gente, pôsse,<br />
também ele, correndo atrás do dito estandarte, castigo este atribuído aos<br />
que a Deus foram nocivos. Para além de continuamente seguir o pavilhão, nu e<br />
bradando a qualquer Deus, em claro jeito de insânia, era ininterruptamente<br />
picado por vespas e moscardos, que lhe dilaceravam o corpo, ao ponto de o<br />
fazerem perder as forças e quedar-se caído por longos dias.<br />
Em simultâneo, eram lançados cães esfaimados e enraivecidos, que corriam<br />
velozmente e devoravam o que se lhes servisse de alimento. Estes contínuos e<br />
sucessivos tormentos fizeram-no atingir um estado de frequentes delírios,<br />
durante os quais parecia reconhecer os vultos de seus avoengos, exortando-o<br />
para que conquistasse o mundo ou simplesmente para que não se olvidasse de<br />
seguir, correndo, a bandeira.<br />
Apesar deste permanente estado de alienação, conseguia ter escassos e breves<br />
momentos de lucidez, durante os quais se deixava cair e assim permanecia, e,<br />
esforçando-se por se relembrar quem havia sido, desmaiava, longos dias, sendo<br />
continuamente pisado pelos condenados e enlameando-se. O terreno pedregoso<br />
SG | 45
{ utopias}<br />
havia-o deixado praticamente irreconhecível, aliás, facto pouco importante, pois<br />
que todos aí presentes apresentavam alguma deformidade.<br />
Porém, numa noite de breu, julgou ter-se livrado das alucinações e afirmou ter visto<br />
um grande clarão, onde estaria a Santíssima Trindade, em majestade, rodeada de<br />
santos, anjos, serafins, querubins e todos os divinos seres, qual Céu, Olimpo ou<br />
Panteão. Esta aparição foi a primeira de uma série, na qual lhe apareciam os<br />
filósofos gregos e romanos, entre os quais Sócrates, Platão, discursando na Pnix e<br />
no Fórum Imperial, os escritores da Humanidade como Virgílio, Cícero e Tácito, os<br />
imperadores romanos do Oriente e Ocidente, de Augusto a Constantino XI,<br />
sentados todos em redor de uma enorme mesa, comendo e bebendo, tocando e<br />
dançando, discursando e deleitando-se; enfim, entregando-se aos prazeres<br />
mundanos.<br />
Passado algum tempo, outra quimera lhe surgiu. A sua visão pareceu ver um vulto<br />
que se afastava daquele patamar e que nele despertou um desejo de curiosidade.<br />
Abandonou a multidão deicida e foi-se dirigindo, inconscientemente, gritando e<br />
esbracejando, para a caverna do hediondo ser, que prontamente lhe arrancou uma<br />
perna, o que o deixou num estado visceral. De forma a poder voltar a andar, atraiu<br />
um outro condenado e arrancou-lhe a perna, atarraxando-a, de seguida, no seu<br />
corpo.<br />
Assim permaneceu demorados anos, ao longo dos quais ninguém o desejou<br />
recolher. Esta existência cruel e impiedosa fê-lo invejar todos os que ali chegavam,<br />
independentemente do que haviam sido no plano terreno. Políticos e usurários<br />
esquartejou sem piedade. Aos que chegavam mancos, causou-lhes tanto pavor, que<br />
pouco lhes importava a bandeira, mas sim serem seus servidores. A cada um foi<br />
ditado destino mais cruel que o anterior.<br />
Certo dia, viu surgir, ao longe, dois vultos. Prontamente, qual Dom Quixote de la<br />
Mancha, arremessou as pedras que, no momento, conseguiu juntar. Sem sucesso;<br />
conseguiram ambos aproximarem-se e falarem-lhe. Não eram estes, como sabem,<br />
senão Dante e seu cicerone, Virgílio. Primeiro lhe falou o autor da Eneida,<br />
inquirindo-o acerca da razão de tão violento acolhimento, tendo Mendo devolvido a<br />
questão e inquirindo-os sobre o motivo que os ali trouxera. Dante olhava-o,<br />
espavorido e incrédulo, interrogando-se sobre a existência de algum ser, quiçá<br />
guerreiro, mais carniceiro que aquele. Prontamente o poeta romano lhe replicou<br />
que conduziria o florentino pelos oito círculos do Inferno, após os quais o guiaria<br />
Beatrice Portinari pelo Paraíso.<br />
SG | 46
{ utopias}<br />
Debandaram Dante e Virgílio pela garganta dos deicidas, onde tiveram<br />
oportunidade de vislumbrar os altíssimos príncipes da Santa Católica e Apostólica<br />
Igreja e os anjos que não foram nem revéis nem fiéis a Deus. Mais adiante, terão<br />
visto a imensa aberração devorando os pobres condenados. O que em vida fora o<br />
poderoso Mendo de Tarouca era agora uma alma insana e obnóxia. Após esta<br />
existência monótona, foi o cadáver dado como alimento a Cérbero. O vate<br />
florentino terá ficado tão perturbado com o que aqui viu, que caiu num sono<br />
profundo, do qual só acordou horas depois.<br />
Sete horas da manhã. Desponta a aurora em Lisboa. No Paço, ainda dormem os<br />
poderosos senhores. Tudo não terá passado, à semelhança da comédia<br />
shakespeareana de Teseu e Hipólita, de um sonho. Pelas nove horas da manhã,<br />
toma o Magnânimo o seu chocolate numa baixela de prata e olha, com desdém, o<br />
fantasioso alfarrábio. Hoje, dia dezasseis de março do ano de mil setecentos e<br />
catorze, a procissão de Nossa Senhora dos Passos sai às ruas. Duas semanas depois,<br />
é queimado no Rossio, num auto-de-fé, Abel Garção da Silva….<br />
Fotografia de Inês Manso<br />
SG | 47
{ utopias}<br />
llustração de Sara Trindade<br />
SG | 48
{ utopias}<br />
| Micaela Silva<br />
Canto XXXIV [Círculo nono, encontro com Lúcifer. Condenação de Dante.]<br />
Alongando o passo ferozmente, dei conta de que estava perto do último círculo,<br />
prestes a contactar com Satanás, frente a frente com o pior dos demónios. Sinto<br />
medo, é como se o meu sangue fervilhasse dentro das minhas veias, dilatando-<br />
-as. Este pânico sufoca-me, esfola e espedaça as minhas vísceras.<br />
Continuo a caminhar de mãos dadas como o meu mestre, enquanto limpo as<br />
lágrimas que pesadamente escorrem, regando o sórdido paul emudecido. Já<br />
avisto o inferno, aquele lugar onde toda a esperança e alegria são sepultadas.<br />
Paro e observo o ambiente imundo que se encontra diante de mim, escuto os<br />
gritos ululantes e esganiçados entre “ais” sangrentos, ouço o choro e até o riso e<br />
a alegria do contacto com a dor.<br />
Entro e não vejo nada. É tão escuro, que estar de olhos abertos ou fechados<br />
parece-me o mesmo. Encontro-me só, inspiro e suspiro, sinto perfeitamente os<br />
meus batimentos cardíacos a aumentarem, continuo a não ver rigorosamente<br />
nada, apenas ouço os gemidos dos demónios e sinto o odor putrefacto do<br />
sangue coalhado.<br />
A luminosidade parece aumentar, revelando um homem sentado de uma beleza<br />
ideal; louro, de tez nívea e lábios carmesim. Contemplo detalhadamente os seus<br />
pés desprovidos de dedos, as suas mãos, onde habitam garras felinas, e sou<br />
surpreendido pelo desenho de um esgar irónico.<br />
No ar, flutua uma emanação pútrida biliar, exalando um vómito azedo decalcado<br />
sobre o muco glauco do pântano. Rapidamente, com a face lívida, abateu-se<br />
sobre mim uma fortíssima sensação de enjoo.<br />
"Sabes quem eu sou?”- o seu hálito ardente atingiu-me violentamente. Levantei<br />
a cabeça e fixei-o sem proferir uma única palavra. Nesse instante, levantou as<br />
suas assustadoras garras e perfurou o meu peito, revolvendo-o. Estava<br />
completamente mergulhado no meu próprio sangue, quando senti um dos meus<br />
pulmões a ser brutalmente retirado. Gritei, enquanto Lúcifer o comia com<br />
SG | 49
{ utopias}<br />
enorme prazer. De seguida, arrancou cada dedo da minha mão e esmagou-os.<br />
Uma fragrância fúnebre pairava. Após ingerir os meus dedos, amputou-me as<br />
mãos e os pés, golpeando, em simultâneo, as minhas pernas, roendo os meus<br />
ossos do joelho, até os extrair de mim.<br />
Sentou-se e sorriu com o corpo coberto de morte, mastigando os meus<br />
músculos, que transformara num bolo alimentar de carne humana. Ergueu-se e<br />
feriu-me as fauces, e, com a ponta das suas ignóbeis garras, torturou a minha<br />
traqueia, até esta ficar totalmente vulnerável. Sentia-me a desaparecer… Só<br />
queria que aquele monstro findasse com o meu tormento. No entanto, a<br />
carnificina era insaciável. Aproximou-se outra vez de mim e, com uma ufana<br />
satisfação, rasgou-me a boca de “orelha a orelha”, desenraizando todos os<br />
dentes, até obter a perfuração do meu céu da boca. Como se não bastasse,<br />
incinerou-me os olhos com o seu “bafo” e, por fim, esmagou o meu crânio com<br />
ambas as mãos, abrindo-se o cérebro e dilacerou os meus miolos até pingar um<br />
líquido alvo viscoso.<br />
Finalmente, tinha acabado o meu sofrimento. O odor cadavérico assombrava<br />
aquele lugar, assemelhando-se a enxofre. Foi então que me relembrei da<br />
inscrição no vestíbulo do Inferno: “Deixai toda a esperança, vós que entrais”, e<br />
percebi que era uma profecia, ou, neste caso, uma praga. O fedor das minhas<br />
entranhas em decomposição alastrava-se… Estava condenado a habitar naquele<br />
lugar de desespero, de terror. O pior lugar da terra, aquele que todos os seres<br />
humanos temem, o Inferno.<br />
“-E assim terminou a viagem escatológica de Dante, com uma violenta<br />
condenação, uma autêntica chacina.”- murmurou Virgílio com os olhos<br />
marejados, desaparecendo no horizonte em brasa.<br />
SG | 50
{ utopias}<br />
| Inês Fernandes<br />
O Inferno<br />
No verão anterior, Dante decidira que a sua vida tinha tomado um rumo<br />
indesejável e começou a pôr em causa as suas decisões do passado. Por isso,<br />
num momento de aventura, inscreveu-se na expedição dos "restos mortais" dos<br />
livros de Virgílio, escritor que, num ato de loucura, decidira incendiar as suas<br />
obras. Porém, estudos recentes demonstravam que a família, apesar de cumprir,<br />
em parte, com o seu pedido, espalhara nove volumes de uma obra complexa<br />
sobre pecados por diferentes regiões italianas.<br />
llustração de Carolina Mendonça<br />
Fez as malas em duas horas; malas que o acompanhariam durante dois meses<br />
por nove regiões diferentes. Olhou em redor para aquele tenebroso<br />
apartamento e nem uma única lágrima caiu dos seus magoados olhos. Refletindo<br />
sobre todos os momentos passados naquele pequeno T2 – a maneira como este<br />
absorvia o cheiro do champô dela todas as manhãs; a forma como a acolhia e<br />
aquecia, depois de um dia nublado e desencorajador, e o tornava acolhedor e<br />
SG | 51
{ Utopias}<br />
apaixonado, com um simples iluminar de vela, quando as luzes se desvaneciam,<br />
e suspirou de alívio e de dor, porque, a partir do momento que ela partira, a sua<br />
outrora reconfortante figura tornou-se uma mancha vazia do lado de lá da cama,<br />
na cadeira abandonada na cozinha, na solidão vincada no seu coração; e esta<br />
mancha assombrava-o , conduzindo-o à depressão, à melancolia, ao desejo de<br />
beijar o fundo do sedutor oceano.<br />
No dia da sua partida, ninguém se viera despedir dele; os seus amigos riam-se da<br />
sua ideia e davam-lhe palmadinhas condescendentes nas costas; a sua família<br />
declarara-o, entre murmúrios e sussurros, um louco, e descartou de imediato<br />
essa “infeliz” ideia.<br />
A viagem de avião não durou mais que um descansar de olhos, e Dante aterrou<br />
num país que é símbolo do culto do que é clássico, sob uma neblina de mistério<br />
que arrepiou os pequeninos pelos na sua nuca. O entusiasmo emanava por todos<br />
os poros, na tentativa de se concentrar na sua missão (ou distração da realidade<br />
e dos seus problemas). Encontrou-se com o seu grupo, que daí por diante seria a<br />
sua família, num hostel no<br />
perímetro de Florença, a<br />
poucos quilómetros das<br />
"Deixai toda a<br />
coordenadas do primeiro<br />
volume virgiliano. Na primeira<br />
noite, apresentaram-se e esperança, vós<br />
acostumaram-se aos nomes<br />
internacionais,<br />
com<br />
pronúncias complicadas e, que entrais"<br />
depois de um brinde ao seu sucesso, desculparam-se e regressaram aos seus<br />
quartos.<br />
Com o sol a irromper por entre as cortinas do cubículo, num matinal<br />
chamamento para o trabalho, partiram de imediato, percorrendo terras aráveis,<br />
despidas de pessoas e de céu encoberto. Passaram por uma inscrição nuns<br />
troncos de árvores, onde se lia “Deixai toda a esperança vós que entrais”. Dante<br />
piscou várias vezes os olhos, numa tentativa de guardar aquelas assombradas<br />
palavras na memória; colou-se igualmente ao vidro, cabeça virando, a tentar<br />
compreender aquelas letras enigmáticas, no meio da estrada vazia. Olhou em<br />
redor e nenhum dos seus companheiros se apresentou espantado, preocupado<br />
ou aterrorizado, o que o colocou numa posição de autodúvida face à imagem<br />
daquelas escrituras selvagens.<br />
SG | 52
{ utopias}<br />
Chegaram ao destino no tempo que ele demorou a assimilar aquelas palavras e o<br />
seu espanto foi tanto, que esqueceu todos os seus problemas anteriores. De<br />
olhos esbugalhados e maxilares caídos, encontrava-se perante um velho cabaré:<br />
o sinal semi-inteiro, com luzes a piscar esporadicamente, em períodos de tempo<br />
tão pequenos, que deveriam ter um sinal de perigo. Estava fora de uso e o<br />
interior, velho e usado, transpirava imundície e pecado. O grupo teve<br />
rapidamente de adotar uma postura profissional e procurar a porta para a sala<br />
designada. Entraram e o estado decadente das paredes e os bichos<br />
enclausurados e pútridos causaram uma nauseabunda repulsa psicológica, mas<br />
que seria ultrapassada pelo desejo de conhecimento. Os homens puseram-se ao<br />
llustração de Eva Monteiro<br />
trabalho, força bruta sendo necessária para atingir o troféu literário. Com a<br />
parede destruída e a sensação de aranhas a rastejarem sobre as suas peles, um<br />
cofre medieval, com estranhas formas e figuras mitológicas – destacando-se<br />
Medusa, que na boca continha a ranhura da fechadura – foi resgatado, e mãos<br />
SG | 53
{ utopias}<br />
delicadas, com a ajuda de aparatos contemporâneos, moldaram a ranhura para<br />
construir a chave, e trémulos dedos abriram o cofre. Com um clique final e um<br />
suspiro de concretização, a língua de Medusa expandiu-se e os olhos abriram-se<br />
rapidamente, assustando todo o grupo, que, com um passo atrás e mãos nos<br />
olhos, impedindo o contacto visual, se concentrou apenas nos ruídos. Ao<br />
ouvirem o cofre a abrir, rapidamente o circularam e agarraram o volume,<br />
podendo agora identificar o seu nome – Luxúria – e afastaram-se da caixa. Assim<br />
que o livro abandonou a segurança do seu protetor, Medusa voltou a deitar a<br />
língua de fora, como se de um grito alarmante de agonia pela separação de bens<br />
se tratasse, e fechou a caixa. Porém, o cofre não voltou à sua forma original; os<br />
olhos de Medusa não fecharam, em sinal de violação e roubo. Mas o grupo<br />
estava tão contente pela sua fácil conquista, que o detalhe não lhes marcou a<br />
mente.<br />
Ao chegarem ao local de repouso, notaram que o livro estava num estado<br />
lastimável: metade da primeira página estava queimada e exibia também<br />
palavras gastas, num latim tão arcaico, que nem o representante do Museu<br />
Literário de Florença (que era quem recolhera o volume, para exposição e<br />
tradução) conseguira traduzir.<br />
Nessa noite, o grupo festejou: comida tradicional italiana, Lambrusco para<br />
acompanhar. Risos e anedotas, fazendo Dante esquecer o pesadelo na sua terra<br />
natal. No entanto, na chegada ao quarto, sentou-se no canto da cama, cabeça<br />
pesada sobre as pobres e trémulas mãos, numa reflexão sobre o dia: as palavras<br />
indecifráveis nas árvores, Medusa, a sensação de estar a ser observado... Sacudiu<br />
a cabeça, negando a última hipótese; despiu-se e deitou-se nos lençóis frios,<br />
repousou a mente.<br />
Acordou com um estrondo; sobressaltado, levantou-se e vestiu-se e saiu porta<br />
fora, sentiu um arrepio a percorrer-lhe na espinha. Percebeu que estava sozinho<br />
no corredor, só ele, mais uma vez... Suspirou, pela décima vez nesse dia, e voltou<br />
a dormir.<br />
Após o pequeno almoço, que foi tomado ao primeiro beijo dos raios solares,<br />
partiram para a localidade de Pizza, onde encontrariam o II volume das obras.<br />
Dentro de Itália, a viagem durou duas horas, sempre acompanhados de natureza<br />
bucólica e hipnotizante. Assim que chegaram, partiram de imediato para<br />
expedição no terreno. As coordenadas guiaram-nos até um beco, que, sob as<br />
nuvens sombrias e medonhas que cobriam o céu e impossibilitavam a visão, se<br />
tornava compreensivelmente assustador. Procuraram durante algum tempo o<br />
local exato das coordenadas, descobrindo depois que o artefacto se encontrava<br />
nas traseiras de um típico restaurante italiano.<br />
SG | 54
{ utopias}<br />
Porém, ao chegarem às traseiras do<br />
estabelecimento, após serem guiados por<br />
um muito mal humorado empregado, cuja<br />
voz era continuamente afetada pelo<br />
excessivo tabaco e anos de álcool, Dante<br />
teve de levar as mãos à boca e ao nariz,<br />
retraindo o cheiro, que igualmente fazia<br />
arder os olhos, do lixo do restaurante. Para<br />
um restaurante tão vazio, produzia uma<br />
quantidade de lixo avassaladora. Esta<br />
infeliz podridão impediu-os de<br />
trabalharem naquele dia, pois a falta de<br />
preparação tecnológica e psicológica para<br />
a pesquisa num local tão tóxico e<br />
contaminado sobrepôs-se à vontade do<br />
grupo de trabalhar.<br />
Na muda e pálida viagem de volta ao hotel,<br />
as pesadas mentes congeminavam e<br />
listavam os materiais que teriam de pedir<br />
aos sócios para o dia seguinte. Dante<br />
perdia-se nas formas das nuvens, nas cores<br />
da cidade, na obscuridade que o<br />
llustração de Carolina Mendonça<br />
enclausurava e prendia ao passado; claro<br />
que estava triste por perder um dia de trabalho, mas esse acaso, ao mesmo<br />
tempo, permitia-lhe descansar, o que, com o sobressalto da noite passada, fora<br />
algo que ele não conseguira ter.<br />
Após terem completado a lista, dirigiram-se à biblioteca local, um grande<br />
monumento renascentista, com uma fachada embelezada com estátuas de<br />
formas e atividades humanas, erigido em mármore, límpido e altivo, com um<br />
livro preso às garras de uma coruja. Falaram de imediato com o diretor, um<br />
senhor culto e amável, que se dispôs logo a auxiliá-los.<br />
Na manhã seguinte, acordaram com os engenhos já na receção do hotel e<br />
despertaram com agradáveis gargalhadas e vontade de trabalhar. Partiram. Mais<br />
uma vez, um dia nublado, de nuvens baixas e volumosas, prenunciava chuva, o<br />
que lhes atrapalharia o trabalho.<br />
SG | 55
{ utopias}<br />
Chegaram ao restaurante e foram guiados, de novo, pelo frígido empregado, que<br />
aparentava não ter mudado de roupa (as mesmas manchas de suor na barriga e<br />
nas costas, a mesma mancha de mostarda na bainha da camisola e o mesmo<br />
buraco na manga esquerda indicavam o mesmo) e que os encaminhou às<br />
traseiras do seu local de trabalho. O grupo vestiu os fatos antibacterianos,<br />
colocou luvas brancas e óculos transparentes. Por entre todos os ratos em<br />
decomposição, a descoberta de insetos asquerosos e a observação da<br />
quantidade de comida desperdiçada, encontraram, ao lado de umas escadas de<br />
incêndio, o local exato do volume e meteram mãos ao trabalho... Literalmente:<br />
derrubaram a parede, fazendo mais estragos que o pretendido e atraindo<br />
comentários menos agradáveis dos moradores. Dentro de uma barca guiada por<br />
uma figura de vestes negras – imediatamente identificada como sendo Caronte,<br />
estava um livro que se denominava “Gula”. A imagem do artefacto prendeu-se à<br />
mente de Dante: Caronte a transportar a “Gula” pelo Aqueronte... Fixando-se no<br />
livro, parou-se-lhe a respiração, quando a figura de negra pedra de Caronte<br />
levantou a cabeça e o olhou, imóvel. Dante esfregou os olhos e, reabrindo-os,<br />
notou que a estátua estava de novo com a cabeça baixa. Olhando em redor e<br />
notando que mais ninguém estava sobressaltado, respirou fundo e calou-se daí<br />
em diante.<br />
Após terem entregado o livro à biblioteca e agradecido o empréstimo dos<br />
aparelhos, e de se terem desinfetado, era hora de relatar a descoberta dos dois<br />
primeiros volumes e de ligar para casa. D. voluntariou-se para escrever os<br />
relatórios, visto que não tinha ninguém a quem quisesse ligar; desta forma,<br />
mantinha a mente ocupada.<br />
Passou toda a noite a documentar e a descrever ambas as expedições e, quando<br />
finalmente repousou, foi acolhido calmamente pelo mundo onírico.<br />
Acordou com o canto matinal de Apolo, mais tarde do que pretendia, mas,<br />
reparando no bilhete encorajador dos colegas, arranjou-se e empacotou as<br />
roupas na mala, serenamente, para depois chegar à porta do hotel e ser<br />
recebido com quentes sorrisos e “bons dias”.<br />
Partiram logo após tomar o pequeno-almoço; Tarento era o próximo destino.<br />
Entraram na localidade que, sendo beijada pelo mar, deveria ser radiantemente<br />
iluminada por um sol ardente, mas que se encontrava debaixo de uma chuva<br />
intensa e forte vento. A meteorologia desmotivou o grupo, que, entre suspiros e<br />
minuciosas mãos que passavam por indignados cabelos, assentou as malas no<br />
hotel e partiu para a “boca de Tarento”, uma gruta a nordeste do hotel, que, na<br />
maré cheia, ficava interdita, pois a água preenchia todo o espaço.<br />
SG | 56
{ utopias}<br />
À entrada da gruta, a que o mar ainda só agarrava os tornozelos, o grupo<br />
partilhava palavras cautelosas e avisos de perigos que iriam enfrentar; o facto de<br />
o céu estar sob constante ameaça de chuva só piorava a situação, pois significava<br />
que o mar poderia aprofundar o seu abraço mais cedo do que desejável e do que<br />
normal. Já equipados com as apropriadas vestes, deram início à expedição.<br />
Andaram durante dez minutos e encontraram uma passagem que os obrigava a<br />
rastejar, o que, com a água já a tocar-lhes nas canelas, causou um tremor e bater<br />
de dentes geral. Levantando-se, D. bateu com a cabeça nas rochas, o que o<br />
perturbou, a ele e aos morcegos, que esvoaçaram; alguns desviando-se e outros<br />
embatendo contra cabeças,<br />
desde aquele pequeno beco até<br />
ao final da gruta. Mal cabiam lá<br />
todos, o que tornou a<br />
movimentação e a procura do<br />
volume complicadas. Por outro<br />
lado, desta forma, conseguiam<br />
vasculhar todo o espaço com um<br />
simples olhar, e quando, numa<br />
tentativa de equilíbrio, tocaram<br />
no teto e sentiram uma textura<br />
diferente, apontaram de<br />
imediato as lanternas para o<br />
sítio, para descobrirem, sobre a<br />
cabeça de Cérbero, o guardião<br />
do submundo, um cão negro,<br />
medonho e agressivo, uma caixa<br />
banhada de ouro branco,<br />
cintilante e majestosa, que<br />
continha o "III volume:<br />
Avareza”.<br />
llustração de Maria Ana Gamito<br />
Ao olharem de volta para a<br />
passagem, concluíram que, apesar de a água ainda estar baixa, teriam de passar<br />
com a respiração contida, o que não ajudava ao transporte da obra. O primeiro a<br />
atravessar carregou o livro consigo, porque, se a maré piorasse entretanto, ele<br />
haveria passado enquanto esta estava ainda mais calma. D. voluntariou-se para<br />
ser o último – sendo um homem de estatura alta, possuía fortes pulmões que lhe<br />
permitiam um maior tempo debaixo de água. Já debaixo do apertado espaço,<br />
sentiu algo a puxá-lo ferozmente de volta, quase a sugá-lo; dentes a rasgarem-lhe<br />
as calças, uma força alarmante e intrigante, visto tinha sido a última pessoa a<br />
passar o túnel e não tinha visto lá mais nenhuma alma.<br />
SG | 57
{ utopias}<br />
O seu cérebro, numa tentativa de acalmar o seu coração, consumiu mais oxigénio;<br />
oxigénio que os pulmões haviam armazenado para chegar ao outro lado. As mãos<br />
tentavam agarrar-se, mas falhavam; os pulmões tentavam produzir menos dióxido<br />
de carbono, mas falhavam; Dante tentava pontapear, soltar-se, avançar, mas,<br />
tendo-se o pânico instalado, sem ver nada, apavorado pela hipótese de poder ficar<br />
preso naquele túnel, os seus sentidos foram desvanecendo pouco a pouco; olhos a<br />
fecharem, boca a permitir a forçada entrada da água, movimentos pesados e a<br />
mente consciente de que a morte o aguardava. Numa última sacudidela do corpo,<br />
numa final tentativa de se soltar do mal, uma mão apanhou-o e roubou-o do sono<br />
eterno.<br />
Esperneando e sacudindo os braços, chegou ao outro lado do túnel. Elevou a<br />
cabeça e respirou, num inspirar profundo e alarmante, que levou os seus<br />
companheiros a socorrê-lo de imediato. Deitaram-no de barriga para cima e este<br />
soluçou a água ingerida. Mirou a bainha das calças e estavam intactas, deixando-<br />
-o confuso e desorientado, assaltado de dúvida e espanto em relação à<br />
verosimilhança do episódio anterior. Quando questionado, respondeu que uma<br />
onda o apanhou desprevenido, mas que estava bem.<br />
Ao chegarem ao hotel, foi diretamente para o quarto e mergulhou no vale dos<br />
lençóis, devido à exaustão.<br />
Acordou exaltado, o episódio repetindo-se infinitamente nos seus sonhos, o que<br />
não lhe permitiu um descanso completo. Tomou um banho relaxante e notou<br />
que a mão que o puxara e o salvara estava impressa na sua pele, num tom<br />
vermelho que radiava e vibrava; uma marca hipnotizante do seu incógnito<br />
salvador. Vestiu-se calmamente e foi tomar o pequeno-almoço solitário. Por fim,<br />
arrumou as suas malas e voluntariou-se para guiar a carrinha do grupo – uma<br />
forma de manter o corpo e a mente ocupados – em direção a Bari. Durante a<br />
viagem, contaram-lhe que entregaram o livro ao Museu Literário de Tarento, que<br />
ficou “eternamente grato” pelo “III Volume: Avareza”. Dante sorriu, o seu<br />
coração enchendo-se de orgulho e ternura.<br />
Ao chegarem a Bari, largaram as malas no pequeno apartamento alugado e<br />
partiram em busca do próximo livro. D. mal passara tempo sozinho, e os episódios<br />
anteriores não o assombraram ou aterrorizaram, ainda. Estacionando a carrinha<br />
no local indicado pelo GPS, notou-se um geral entusiasmo pelo facto de o lugar ser<br />
um ginásio de box, com pugilistas fortes e intimidantes a fumarem cigarros à<br />
porta. Uma sinapse certeira no cérebro<br />
SG | 58
{ utopias}<br />
de Dante e ele recordou como ela o obrigara a parar de fumar, por entre beijos<br />
conquistadores e a promessa de uma vida mais longa a seu lado... Sacudiu a<br />
cabeça, e baixou-a, punhos fechados numa tentativa de controlar a raiva, o<br />
sentimento de traição que viajava na sua alma... Ela mentira-lhe, iludira-o,<br />
encorajara-o somente para o despedaçar... Pensar nela deixava-lhe sempre um<br />
buraco negro no fundo da barriga, como se o seu coração não conseguisse<br />
conter toda a dor e esta se expandisse para o resto do seu corpo. Cravou um<br />
cigarro a um dos fumadores, que, mesmo debaixo das gotículas de água, não<br />
continham o vício; rapidamente inalou o fumo envenenado, sentindo a nicotina a<br />
espalhar uma calmante sensação por todo o seu corpo. O grupo esperou com<br />
ele, ao mesmo tempo que fazia small talk com os integrantes do clube de treino.<br />
Entraram e sentiram de imediato os olhares ridicularizantes e reprovadores dos<br />
pugilistas. Era óbvio o paradoxo entre os musculados e medonhos desportistas e<br />
os preocupados e diligentes literatos. Falaram com o diretor do ginásio, que lhes<br />
permitiu de imediato a transgressão das regras e a invasão de todos os espaços<br />
para a demanda do artefacto. Este gesto espantou Dante, que erradamente<br />
julgou o conjunto de fato de treino azul escuro da Adidas como equivalente a<br />
mesquinhez e brutidão.<br />
llustração de Mariana Serra<br />
Inconvenientemente, as coordenadas guiaram-nos aos balneários, o que<br />
incomodou alguns dos usufruidores do ginásio. Porém, e felizmente, não<br />
precisaram de destruir nenhuma parede, pois o volume localizava-se debaixo de<br />
dois lavatórios. Os grunhidos de esforço físico e de cansaço ecoavam no pequeno<br />
balneário. Embora o ambiente fosse pouco propício, o grupo teve de encontrar<br />
forma de recuperar o livro sem grandes estragos. Iniciaram a desmontagem dos<br />
SG | 59
{ utopias}<br />
lavatórios, que causou mais barulho do que trabalho, e de imediato se<br />
aperceberam do encaixe do livro.<br />
Estava sobre a armadura de Ares, o Deus da Guerra. A estátua era pesada e<br />
estava submersa no cimento, dificultando a sua remoção. Com a incrível ajuda de<br />
alguns pugilistas, o grupo conseguiu retirar a obra e a estátua, ambas intactas.<br />
Dante pegou na estátua por um momento e fixou-se no buraco na armadura de<br />
Ares, onde encaixava o livro, e viu o seu reflexo. Mas não o reflexo de agora,<br />
mas sim o reflexo da sua vida a afundar-se naquele estreito túnel, e viu a mão e<br />
um corpo, um comprido vestido azul claro, pertencente a uma mulher de cabelo<br />
claro e longo, que na miragem se expandia pelas águas e se entrelaçava com o<br />
seu vestido.<br />
llustração de Mariana Serra<br />
A imagem completa da mão conduziu-o a um episódio em que ela o tinha<br />
salvado de ser atropelado, puxando-o bruscamente para junto do peito dela...<br />
Mas era impossível ser ela; ela deixara-o neste mundo de pecados e injúrias,<br />
para lidar com todos os terríveis presentes natalícios que os pais dela lhes<br />
mandavam e que ele, agora, tinha que receber com um sorriso ainda mais<br />
forçado do que aquele que eles todos os anos treinavam à frente do espelho...<br />
Sacudiu a cabeça, e, mantendo a miragem na sua mente, deslocou-se até lá fora,<br />
onde, pela primeira vez, após incontáveis ameaças do céu nublado, chovia.<br />
Chovia e cada gota arrefecia mais que a anterior, e cada gota lhe escorria mais<br />
longe pelo corpo, numa imaginária corrida na qual o chão era a meta; chovia e a<br />
camisa dele colava-se ao corpo, numa vã tentativa de proteção; chovia e<br />
SG | 60
{ utopias}<br />
também os olhos de Dante choviam. Todas as memórias dela o sufocavam,<br />
esquadrinhavam, prendiam a um precioso passado que fora manchado pela sua<br />
partida. As suas lágrimas anexavam-se à chuva, frio e quente, um paradoxo fatal<br />
para a sua alma. Será que estava a ficar maluco?<br />
Todas aquelas miragens e sensações impugnáveis, inexplicáveis à luz da<br />
racionalidade humana, o assustavam e assombravam. Quando os outros<br />
chegaram cá fora, Dante limpou as lágrimas à camisa molhada, encurralou-se no<br />
banco de trás e fingiu adormecer, para evitar conversas.<br />
Desta vez, não se voluntariou para nada, nem para entregar o “IV Volume: Ira” à<br />
Universidade de Letras, nem para proferir o discurso encomiástico depois do<br />
jantar. Sentou-se num canto da mesa, sorriu quando lhe dirigiram a palavra, mas<br />
nada mais. Assim que se despediram, quase correu para a reconfortante clausura<br />
do quarto. Deitou-se na cama, na esperança de refletir sobre o episódio daquele<br />
dia, mas, assim que a sua pesada cabeça relaxou sobre a almofada, Dante<br />
adormeceu.<br />
Foi acordado por alguém a bater à porta. Atordoado, saltou da cama e foi<br />
cumprimentado por um colega que tinha sido designado para o ajudar a tratar<br />
das malas, para se irem embora. Confuso, Dante olhou para o relógio e notou<br />
que era, de facto, hora de partida. Despiu-se, enquanto tentava arrumar as suas<br />
malas. Saíram do quarto e D. desculpou o seu descuido perante os colegas que<br />
já estavam dentro da carrinha prontos para se dirigirem a Veneza. Acomodando-<br />
-se no lugar de trás, bloqueando as conversas que estavam a decorrer à sua<br />
volta, adormeceu e só voltou a acordar, quando uma colega lhe tirou o cabelo da<br />
cara e lhe sussurrou que haviam chegado. Depositaram as malas nos quartos<br />
que, infelizmente, devido ao pedido de materiais aos sócios e, portanto, a um<br />
budget reduzido, não eram individuais. Dante viu a sua privacidade ser violada, o<br />
que não lhe agradara de todo. Dirigiu-se à receção e ofereceu-se para pagar o<br />
seu próprio quarto, mas a rececionista disse que o hotel estava cheio, logo, não<br />
permitiam trocas. Dante passou os dedos no longo cabelo - já não o cortava há<br />
cinco meses, um completo desleixo; e suspirou. Agradecendo, virou as costas e<br />
foi para o “seu” quarto. Dividiram as respetivas áreas e saíram lado a lado em<br />
direção à carrinha, para partirem em busca do V volume.<br />
Ao chegarem ao local designado, vislumbraram um pequenino banco na margem<br />
de um estreito canal veneziano. O edifício era uma casa de um andar, pequeno e<br />
pacato, azul claro, janelas brancas e com uma moeda de ouro sobre o nome.<br />
Dante saiu de imediato do barco, sentindo-se enjoado e desejando a maior<br />
distância possível da água. Falaram com os proprietários, que eram um casal<br />
idoso que os recebeu esplendidamente e que de imediato permitiu a<br />
SG | 61
{ utopias}<br />
procura do volume sob o seu teto. Enquanto o grupo de Dante via onde se<br />
deveria escavar, partir ou desmontar, a dona do banco fazia bolachas com<br />
pepitas de chocolate, para agradecer “o esforço pela cultura do mundo”. Porém,<br />
não foi preciso partir nada; os canais de Veneza já são parte da cidade desde o<br />
tempo de Virgílio, e as casas são construídas sobre as antigas estruturas, por isso,<br />
ao verem quão fácil era de tirar a madeira do chão e aceder aos restos da antiga<br />
casa, puseram logo mãos à obra.<br />
Cuidadosamente, levantaram as<br />
tábuas do soalho e viram o antigo<br />
alicerce, ainda intacto, que servia de<br />
base para esta casa. Destruíram-no,<br />
causando uma onda de som altíssima e<br />
incomodativa, mas necessária para<br />
atingirem o seu objetivo. Viram O V<br />
volume erguido na mão de Métis, a<br />
Deusa da Prudência, o que Dante<br />
achara irónico, visto que o titulo do V<br />
volume era “Usura”. Desenterram-no<br />
escrupulosamente, trazendo com o<br />
livro também a estátua da Deusa.<br />
Dante foi deixado para último, por<br />
casualidade e porque ele próprio não<br />
Fotografia de Eunice Maia se opôs. Saíram todos calmamente,<br />
sem problemas aparentes e sem<br />
dificuldade no transporte das obras, mas, chegando à vez de Dante, quando este<br />
se preparava para sair da parte de baixo da estrutura, sentiu o chão a estremecer<br />
e, desequilibrando-se, caiu, batendo com a cabeça na fria pedra. Quando foi<br />
acordado, com preocupadas estaladas e um pano frio sobre a cara, sacudiu o<br />
susto e levantou-se sorrindo, de forma a não preocupar os observadores. Os seus<br />
colegas diziam que ele estava com mau karma, mas que não se devia preocupar,<br />
pois as boas ações coletivas iriam ajudá-lo a ultrapassar aquela maré de azar.<br />
Dante riu-se, mas sem achar piada, e só pensava em como o azar o assombrara a<br />
vida toda e se tinha agravado no último ano.<br />
Voltou a enclausurar-se no hotel, cada vez mais afastado das tarefas do grupo,<br />
porque a sua mente encontrava sempre uma maneira de reavivar a sua memória<br />
em relação a ela... Ele odiava o peso que ela tinha sobre tudo o que ele fazia e<br />
professava-lhe ódio numa vaga tentativa de parar de pensar na sua figura... No<br />
entanto, cada vez mais concluía que, mesmo que ele se tentasse distrair, ela<br />
SG | 62
{ utopias}<br />
pairaria sempre sobre ele... Mesmo quando, inconsciente, o mundo que lhe fora<br />
exposto – pessoas nuas a correr sobre lava, crucificadas, de membros separados,<br />
enquanto um cheiro a carne queimada lhe intoxicava os sentidos e os gritos<br />
ululantes, desesperantes, dolorosos, angustiosos, funestos, infernais, como se o<br />
próprio inferno presenciasse... Mesmo então, lá estava aquela figura que o<br />
salvara vezes e vezes sem conta, com o seu vestido branco e longos cabelos<br />
claros, contrastando com aquele cenário aterrorizador.<br />
Suspirou e adormeceu agarrado à almofada, com o pensamento dela na sua<br />
mente.<br />
llustração de Mariana Serra<br />
Mais uma vez, os seus colegas, deixaram-no dormir até mais tarde e foi uma<br />
colega acordá-lo do sossegado sono, com "falinhas mansas" e sorrisos<br />
complacentes. Dante sorriu-lhe, um sorriso tão forçado, que a hipocrisia até lhe<br />
fazia doer o coração; arranjou-se e transportou cansadamente as malas para o<br />
carro. Foi recebido com uma exacerbada simpatia, o que o incomodou, ele não<br />
necessitava da piedade de ninguém, mas de imediato sacudiu esta negatividade,<br />
percebendo que eles não o conheciam o suficiente para saber como lidar com<br />
esta situação e que somente uma pessoa costumava saber como lidar... Com a<br />
cabeça encostada ao vidro, pensou no VI volume e em quão perto eles estavam<br />
de fazer uma descoberta que revolucionaria a literatura clássica. Um sorriso<br />
dançou nos seus lábios, orgulhoso do projeto que levava avante.<br />
SG | 63
{ utopias}<br />
Chegaram a Voltera e pousaram as coisas na pequena pousada, de cores pastéis<br />
(rosas, azuis, amarelos) e de janelas e portas brancas, que mais parecia saída de<br />
um filme dos anos 50. Dali emanava uma aura de acolhimento e aventura,<br />
reconfortando a mente de Dante. Estava empolgado pelo facto de a localização<br />
do VI Volume ser num cemitério. Não que Dante fosse macabro, mas era um<br />
ambiente novo, mais conservador, que se ajustava mais à sua calma e silenciosa<br />
personalidade . A maior parte do grupo, no entanto, e compreensivelmente, não<br />
se sentia confortável por perturbar corpos em eterno repouso. Dante não era um<br />
grande crente... Tinha sido criado numa família católica, e até chegou a fazer a<br />
primeira comunhão, mas, desde então, tanta injustiça fora cometida, que ele não<br />
conseguia acreditar numa divindade suprema e boa. Ofereceu-se para<br />
desenterrar o caixão, que já era antigo e pertencia a uma senhora chamada<br />
Donatella Marchesa, que tinha um grande cabelo grisalho, um maxilar forte,<br />
sobrancelhas arqueadas e nariz comprido, de olhos escuros e severos, de lábios<br />
finos e afiados. Repousava numa lápide que não era visitada há muito tempo.<br />
Isto consolou Dante, pois significava que não estariam a injuriar alguém com<br />
familiares. Com a ajuda do coveiro, pousaram o caixão de lado e rezaram uma<br />
oração, pedindo perdão por perturbarem esta alma. D. continuou a aprofundar a<br />
sua força, até que a sua pá embateu contra algo forte. Limpando o terreno,<br />
agora com mais cuidado, desenterrou a arca cuja fachada tinha uma série de<br />
caixões seguidos, com pessoas deitadas sobre eles, em chamas e com caras<br />
agonizantes. Olhou para o lado: estas imagens eram semelhantes à miragem que<br />
tivera enquanto inconsciente. O grupo cercou o cofre e tentou usar a força bruta<br />
para partir o cadeado; homens batiam e esfolavam consecutivamente a<br />
fechadura, mas ela não quebrava. Então, uma pequenina voz lembrou-se de<br />
experimentar a mesma chave que tinham usado para Medusa e, curiosamente,<br />
funcionou. O cimo do cofre abriu muito lentamente, criando uma aura de<br />
suspense, e o grupo, assim que pôde, espreitou, à procura do artefacto. Sorriram<br />
todos, ao olharem para o “VI Volume: Violência” e retiraram-no de dentro do<br />
familiar veludo vermelho. Tudo naquele ambiente gritava pecado, inferno,<br />
maldade, e, ironicamente, a imagem principal do cofre era de Hades, com a sua<br />
cara de felicidade a castigar os mortos. Agradeceram a colaboração e, unidos,<br />
entregaram o volume à Santa Sé, que o estudaria minuciosamente.<br />
O dia seguinte era de folga. Com todo aquele correr atrás, D. já nem sabia em<br />
que dia ia.... Ligando o telemóvel pela primeira vez desde que chegara a Itália,<br />
notou que tinha imensas mensagens da sua mãe e inúmeros telefonemas dos<br />
seus amigos... Teve a sensação de que os deveria ter avisado e de que, se calhar,<br />
lhes deveria ligar, mas depois concluiu que esta viagem não fora só uma viagem<br />
física, mas uma viagem espiritual, para ele organizar as ideias, e, honestamente,<br />
ele nem sentira falta de nenhum deles... Por isso, decidiu mandar<br />
SG | 64
{ utopias}<br />
uma mensagem geral, “Estou bem, não se preocupem, só preciso de espaço”, e,<br />
tendo enviado a mensagem, voltou a desligar o telemóvel e a vaguear no mundo<br />
dos sonhos.<br />
Acordou a meio da tarde, o relógio do quarto a ditar serem seis da tarde.<br />
Rebolou para o lado frio da cama e dormiu até os primeiros raios de sol do novo<br />
dia.<br />
Partiram cedo; alguns ansiosos para fazerem as últimas descobertas para<br />
voltarem às suas casas, aos namorados e namoradas, aos filhos que esperam<br />
todos os dias à porta; mas não Dante, Dante queria ficar parado naquele mundo<br />
onde o tempo aparentava não passar; onde todos estavam tão concentrados no<br />
passado, que o presente e o futuro eram postos de lado, em nome do bem<br />
comum. Rapidamente chegaram a Toscana, onde encontrariam o VII volume.<br />
Estacionando a carrinha no parque do motel, fizeram a distribuição de quartos e<br />
voltaram ao veículo, prontos a dirigirem-se à Câmara . Chegaram rapidamente,<br />
as estradas adornadas com todo o tipo de árvores e plantas, transmitindo uma<br />
ideia de paz e calma, que deixara Dante de bom humor e pronto para um melhor<br />
dia de trabalho. O edifício era imponente, de alta fachada de pedra amarela, com<br />
um relógio na torre e uma aura tipicamente católica.<br />
O grupo entrou suavemente, mas foi interrompido pela secretária que lhes<br />
perguntou qual o propósito daquela visita. Após mostrar o certificado da<br />
embaixada e a permissão para procurar em todos os espaços, públicos ou<br />
privados, os volumes de Virgílio, a rapariga, apesar de confusa e atordoada,<br />
deixou-os passar, sabendo que não os podia impedir. Entraram numa sala, com<br />
uma mesa oval de madeira escura no centro, de paredes amarelas e cadeiras<br />
almofadadas concordando com a cor da mesa. O grupo suspirou, porque, pela<br />
arrumação da sala, eles teriam de fazer grandes estragos, que nenhum deles – o<br />
grupo ou a câmara – desejava. Pondo mãos ao trabalho, removeram a pesada<br />
mesa do centro, afastaram o tapete e começaram a levantar o soalho.<br />
O barulho incomodou-os também e vários funcionários vieram reclamar com os<br />
historiadores, mas não havia nada que eles pudessem fazer para minimizar o<br />
som, por isso, continuaram, durante três horas a perfurar o chão.<br />
SG | 65
{ utopias}<br />
Finalmente, quando já estavam todos exaustos e surdos, avistaram um cofre de<br />
ouro a iluminar o caminho até eles. Escavaram o pequeno pedaço que os<br />
separava e, com um grunhido de último esforço, retiraram-no do meio da<br />
confusão que se encontrava no chão. Desta vez, o cofre não tinha ranhura, o que<br />
provocou no grupo um feliz sentimento de uma “fácil conquista”. Porém, ao abri-<br />
-lo, depararam com outro cofre, menos brilhante, e assim sucessivamente:<br />
cofres dentro de cofres, cada um mais chamuscado que o anterior, até que,<br />
chegando ao sétimo cofre, se defrontaram com um cofre com uma fechadura.<br />
Tentaram a chave que servira nos últimos dois, mas esta foi rejeitada de<br />
imediato, quando notaram que a fechadura era pequena demais para a chave.<br />
Assim matutaram durante um tempo, até que a secretária entrou no meio<br />
daquela desorganização e perguntou se queriam algo para comer ou beber, e foi<br />
llustração de Matias Souza<br />
SG | 66
{ utopias}<br />
aí que Dante reparou que, no seu uniforme, tinha um pin com uma chave e com<br />
o ícone da Câmara por baixo. Levantando-se e apontando para o seu acessório,<br />
pediu com urgência que os elucidasse sobre o simbolismo da chave e ela<br />
respondeu que era a chave do “consagrado sino de Toscana”, isto é, que era a<br />
chave do sino que se encontrava por cima do relógio na torre. O grupo separou-<br />
-se e uns ficaram com os cofres, enquanto Dante subia à torre. Encontrou-a logo;<br />
estava junto do sino, numa caixa de vidro, retirou-a, com cuidado, mas<br />
apressadamente, e quase a deixou cair, quando viu um vulto a passar atrás do<br />
sino… Uma gota de suor escorreu-lhe pela testa, e as suas mãos começaram a<br />
tremer… O vulto deu a volta ao sino e dirigiu-se a Dante, que, paralisado com o<br />
medo, não conseguira afastar-se… O negro véu sobre a sua figura impediu a<br />
identificação da pessoa, mas, quando as mãos frias e delicadas lhe levantaram o<br />
queixo, um sentimento de familiaridade e reconforto espalhou-se na sua alma,<br />
acalmando-o. De repente, e tão rápido quanto apareceu, o vulto desvaneceu-se<br />
no ar, deixando o seu coração acelerado e o seu lábio inferior trémulo. Limpando<br />
as gotas de medo da sua testa, reuniu-se aos restantes colegas. Ansiosamente,<br />
minuciosamente, encaixaram a chave e ouviram o clique final. Abrindo o cofre,<br />
avistaram o “VII Volume: Fraude”. Sorrisos foram trocados, pois, após um árduo<br />
dia de descobertas, nada se equipara à onda de deleite que descobrirem os<br />
volumes trazia.<br />
Após a entrega do livro à própria câmara de Toscana, o grupo descansou, sem a<br />
usual jantarada celebrativa, pois a única cura para os esgotados braços era o<br />
repouso. Dante deitou-se, mas não conseguiu dormir. O dia passara rápido,<br />
todavia, a sua cabeça doía. Talvez devido à queda que ele dera,<br />
permanentemente marcada na cicatriz do olho esquerdo... Necessitava de<br />
descansar, mas a sensação de que os seus dedos ainda o tocavam atordoava-o<br />
ao amanhecer. Acordou, se se puder contar que dormira de todo, e acordou os<br />
colegas, incentivando-os para se arranjarem e partirem para Mentana, onde<br />
encontrariam o VIII Volume. Colou-se ao lugar do condutor e apressou todos,<br />
com palavras de entusiasmo, a instalarem-se, nos seus lugares, para poderem<br />
procurar o livro o mais rápido possível.<br />
Mentana era hipnotizante, as verdes árvores forneciam sombra e acolhiam o<br />
grupo na sua penúltima expedição, como se há muito os aguardassem.<br />
Instalaram-se num hotel no centro da localidade, que permitia um fácil e rápido<br />
acesso a todos os pontos da cidade. O GPS, no entanto, levou-os a um convento<br />
no perímetro da cidade, feito de branco mármore, que se expandia para todos os<br />
lados. Encontrava-se num estado decadente, era óbvia a falta de aproveitamento<br />
do bonito edifício. No convento, encontravam-se dez freiras, muito simpáticas,<br />
que receberam o grupo de sorrisos na cara. O grupo prometeu<br />
SG | 67
{ utopias}<br />
tentar não as perturbar muito, por respeito e cortesia. As irmãs acompanharam<br />
o grupo até ao local exato do volume, mas tiveram que se ausentar para a<br />
oração, o que o grupo, com sorrisos e um coração entendedor, compreendeu.<br />
O volume estava por baixo da estátua do padroeiro de Itália, São Francisco de<br />
Assis, e Dante sentia-se inquieto por ter de perturbar tal figura. Felizmente, só<br />
tiveram de deslocar a estátua, sem cometer maiores atrocidades. Avistaram uma<br />
pequena porta, como forma de passagem para a sala onde se encontrava o livro.<br />
Rastejando, e sujando os joelhos com a lamacenta terra, chegaram à divisão e<br />
com a ajuda de lanternas, deduziram que aquela câmara era de uma antiga cela.<br />
llustração de Matias Souza<br />
Escrituras feitas com sangue e a marcação dos dias passados estavam inscritos<br />
na parede, o que arrepiou a alma de Dante. A cela enojava-os, como se todas as<br />
barbaridades e injustiças aqui cometidas influenciassem os seus sentidos: o<br />
olfato repugnante, a audição agoniante, a visão perturbante, o paladar metálico<br />
e o toque bruto; séculos e séculos de crueldade.<br />
SG | 68
{ utopias}<br />
Cavaram o manchado chão e encontraram logo o livro, sobre o pesado peito de<br />
Cronos. A estátua, feita de pedra vulcânica, tinha um macabro aspeto, que<br />
coincidia com o sinistro espaço, ao livro, o Volume VIII: Hipocrisia”. Mais uma<br />
vez, irónico; ali estavam eles numa sala lúgubre num convento de freiras...<br />
Arrastaram o livro e todas as teias de aranha anexadas para o exterior, onde as<br />
freiras lhes sorriram amavelmente. Porém, o grupo enfeitava sorrisos, após a<br />
visão daquela sala, debatendo-se com as atrocidades que haviam sido cometidas<br />
naquele local sagrado.<br />
Saíram o mais rápido possível. Tendo doado o livro à biblioteca de Mentara,<br />
voltaram para o Motel, onde se sentaram todos à volta da mesa de jantar e<br />
partilharam a melhor experiência desta expedição. Quando chegou à vez de<br />
Dante, a resposta que se sentava na ponta da língua era quando ela o salvara,<br />
mas, apercebendo-se da sua inocente inconsciência, disse que fora a procura do I<br />
Volume, pois o entusiasmo enchia-o de energia e fome de descoberta. Deixando<br />
as gargalhadas para trás, o grupo disse as suas “boas noites” e separou-se, cada<br />
um para seu quarto. Quando o seu lasso corpo aterrou na cama, Dante<br />
apercebeu-se de que nada de mal lhe tinha acontecido e que, se calhar, as boas<br />
ações começavam a influenciar o karma, porém, conforme as suas pálpebras se<br />
beijaram e a figura de São Francisco de Assis encurralado naquela cela, nu e<br />
anorético, tremendo de medo e de frio, apavorou a sua mente, não conseguiu<br />
mais descansar o resto da noite.<br />
Levantaram-se todos cedo - o contentamento de procurarem pelo último volume<br />
exalava em cada passada. Saíram do motel em direção a Vittoria, a última cidade<br />
italiana que abrigava o último volume virgiliano. Sob o céu nublado, fizeram a<br />
pequena viagem de carro, cabeças girando e apontando para tudo e todos, uma<br />
aura de felicidade genuína pairando sobre o carro. Descarregaram as malas no<br />
moderno hotel e dirigiram-se de imediato para a escola onde o livro se<br />
encontrava. A escola era antiga, de fachada comprida e clássica, de cor branca,<br />
monótona e desinteressante. Pediram permissão ao diretor para estudarem a<br />
área da escola e ele exclamou que podiam e até divulgou a presença do grupo na<br />
rádio escolar. Dante sentia os olhares carnais com que era olhado, e o simples<br />
pensamento de contacto físico com uma mulher, outra mulher, repugnava-o…<br />
Concentrando-se na descoberta do artefacto, estava no parque escolar, onde a<br />
vida social da escola decorria. A visão de todos os casais e da afeição pública<br />
entristecia-o e enraivecia-o, pois era como se estivesse a dar um pulo ao seu<br />
passado; ele e ela sempre de mãos unidas, sentados à parte do mundo, no banco<br />
verde, que era sempre banhado pela sombra do longo chorão, no verão,<br />
protegido pelas compridas folhas, no inverno.<br />
SG | 69
{ utopias}<br />
llustrações de Hussein Ally<br />
Sacudiu a cabeça, desistindo do doloroso pensamento. As coordenadas<br />
dirigiram-nos para debaixo de um banco, no canto esquerdo do parque.<br />
Meteram logo as mãos ao trabalho e escavaram até anoitecer. Encontravam-se<br />
sozinhos e o frio causara uma coletiva sinfonia de bater de dentes, que se<br />
agravava com a passagem do tempo. Após a pausa para jantarem, pouco e<br />
apressadamente, voltaram ao trabalho e foi aí que encontraram dentro uma<br />
caixa vermelha com a figura de Afrodite, a Deusa do amor. Abrindo o interior da<br />
caixa, encontraram o último livro, o “Volume IX: Traição”. Dante pegou no livro<br />
e, olhando para o nome do mesmo, uma lágrima escapou-se-lhe dos olhos, sem<br />
nunca ter chegado ao chão... Uma meiga mão limpou-lhe o sofrimento e,<br />
olhando para cima, sentiu os dedos dela no seu queixo. Vislumbrou a cara de<br />
Beatriz, o nome soando amargo e manchado na sua boca. Olhando para ela,<br />
questionou-se como podia ele alguma vez ter declarado odiá-la? Ela, que tudo<br />
faria para estar ali com ele; ela que abdicara de uma vida, porque ele não estava<br />
pronto; ela que irradiava luz e compaixão em cada passo na rua. O mundo à volta<br />
desapareceu e só ficaram Beatriz e Dante numa disputa de olhares de ternura e<br />
desejo, de perdão e culpa, de sofrimento e amor. Tudo nele chorava, tudo nele<br />
tremia, tudo nele partia, por esta dolorosa miragem. Ela sorriu-lhe docemente, e<br />
acariciou-lhe a sofrida cara. Dante encurralou a mão dela entre o seu perfil e o<br />
seu ombro, numa inocente tentativa de a manter com ele para<br />
SG | 70
{ utopias}<br />
sempre, de a manter de pés na terra, a seu lado. Ela sorria, ternamente, ao seu<br />
amado, a despedaçada figura do homem que, outrora, com ela a seu lado, tivera<br />
tudo.<br />
Baixando-se ao seu nível, Beatriz sussurrou-lhe ao ouvido, e o coração de Dante<br />
falhou um batimento e seus olhos abriram-se, perplexo. A imagem dela começou<br />
a ser perturbada por vozes exteriores que gritavam pelo seu nome.<br />
Quando acordou, estava rodeado pelos seus colegas, que, mais uma vez, lhe<br />
davam palmadinhas na cara, para ele sair do seu transe. Desta vez, contudo, não<br />
fingiu estar bem, porque o estava verdadeiramente. Com um sorriso, levantou-se<br />
e abraçou-os a todos, antes de pegar no livro e o levar para o carro, para<br />
poderem de imediato entregá-lo à instituição curadora.<br />
Nessa noite, comeram cedo e ligaram às famílias, a avisar que voltariam no<br />
seguinte dia. O entusiasmo e o cansaço tornaram a viagem de regresso muito<br />
mais aprazível. A despedida tinha sido emocionante, lágrimas e gargalhas<br />
misturadas na nuvem de orgulho que os acolhia.<br />
Quando aterrou no seu país, apanhou um táxi de volta para casa e, chegando ao<br />
vazio apartamento, finalmente fez o lado dela na cama e, deitando-se sobre o<br />
mesmo, adormeceu.<br />
SG | 71
{ utopias}<br />
llustração de Cláudia Trindade<br />
SG | 72
{ utopias}<br />
| Mariana Soares<br />
Passei pela Porta do Inferno<br />
e avistei um casal: Paolo e Giulia.<br />
Vi ainda os nove círculos:<br />
o círculo do Limbo, onde encontrei Sócrates e outros filósofos conhecidos,<br />
o da Luxúria, onde encontrei Romeu e Julieta,<br />
o da Gula, onde encontrei Menelau, Heitor e o seu irmão Páris,<br />
o dos Avaros e pródigos,<br />
o da Hipocrisia,<br />
o da Violência,<br />
o da Fraude<br />
e o pior círculo de todos, o da Traição,<br />
onde paira o pior demónio alado de todos os tempos:<br />
Lúcifer, ou, como aqui lhe chamam: o Diabo.<br />
Mas ainda antes de entrar no círculo da Traição,<br />
tive de passar pelo poço do Gigante.<br />
Enfrentei o Minotauro e as ruínas infernais,<br />
Guiei-me pelos Centauros,<br />
Deixei que as Harpias me dilacerassem…<br />
E eis a entrada da cidade de Dite.<br />
Aí conheci Éricto, a feiticeira da Tessália,<br />
que fez reviver um morto para prever a Sexto Pompeu a vitória de Farsália.<br />
Acordo. Que alívio! É apenas um sonho “infernal”.<br />
SG | 73
{ utopias}<br />
llustrações de Matias Souza<br />
SG | 74
{ utopias}<br />
| Heytor Torres<br />
Inferno no meio da vida<br />
O dia ia fugindo e o ar cinzento<br />
Impedia aquele meu destino.<br />
Como um grão no deserto,<br />
Segui em busca da<br />
Terra prometida.<br />
- Muito hás de correr para o Cão não<br />
Te alcançar.<br />
No meio do caminho - tal coisa não existe!<br />
Todos os ventos<br />
Sopram a meu favor, de céu a céu.<br />
"Deixai toda a esperança,<br />
vós que entrais."<br />
Amor e virtude me sustentam,<br />
Sapiência alcançarei, se as terríveis<br />
Infâmias de que padeço me não tocarem.<br />
SG | 75
{ utopias}<br />
*<br />
VESTIR AS PERSONAGENS<br />
| Inês Fernandes<br />
Bea<br />
triz<br />
Vestido festival branco: For Love and Lemons; Kimono com franja e de mangas compridas:<br />
Topshop; Botins de camurça com fecho, cor de cogumelo: All Saints –<br />
SG | 76
{ utopias}<br />
Dante<br />
T-Shirt Oxford de manga curta em branco: Topman; Casaso de mistura de lã em azul escuro:<br />
Topman; Dexter skinny jeans, azul escuro em Khaki Topma; Sapatos de camurça azuis escuros:<br />
Zara.<br />
SG | 77
{ utopias}<br />
Virgílio<br />
Camisa branca medida slim Sven’1: Hugo Boss; Calças de espinha de tubarão medida<br />
contemporânea em cinza: Hugo Boss; Casaco em veludo preto: Emporio Armani; Mocassins<br />
pretos: Sacoor.<br />
SG | 78
Fotografia de Rita Sousa<br />
{agenda literária}<br />
SG | 79
{ agenda literária}<br />
*<br />
À VOLTA DOS LIVROS<br />
Os Maias, de Eça de Queiroz<br />
| Micaela Silva e Maria Inês de Castro<br />
Numa sexta-feira à tarde, num Chiado mergulhado na<br />
luz resplandecente de outono e no aroma doce de<br />
castanhas assadas, dirigimo-nos ao renovado Cinema<br />
Ideal, com o intuito de assistir à adaptação<br />
cinematográfica da obra-prima de Eça de Queiroz, Os<br />
Maias, na sua versão longa, realizada por João<br />
Botelho. Ironia do destino, tivemos o privilégio de<br />
conhecer e conversar com o realizador, durante o<br />
intervalo da sessão.<br />
As expetativas dividiam-se entre o receio de o<br />
resultado final não fazer justiça ao original<br />
queirosiano e a curiosidade de descobrir a perspetiva pessoal de Botelho. Movia-<br />
-nos o desejo de comparar o mundo que construíramos a partir da leitura e a<br />
visão iconográfica.<br />
De imediato, logo nas primeiras cenas, através da presença de uma voz narrativa<br />
(a poderosa locução do barítono Jorge Vaz de Carvalho), constatámos a<br />
fidelidade ao texto de Eça, o que demonstra claramente a reverência por parte<br />
da produção em relação ao autor. Esta fidelidade traduz-se também na opção<br />
deliberada pela viagem até à época romântica, tempo da ação. A matriz literária<br />
é também preservada nos incensuráveis interiores (filmados numa casa senhorial<br />
de Ponte de Lima), nos impecáveis adereços e no vestuário irrepreensível, que<br />
nos transportam até ao ano de 1875, ou, no caso da analepse, exposta, numa<br />
estratégia inteligente, a preto e branco, até décadas anteriores (Inglaterra, Santa<br />
Olávia, Benfica...).<br />
SG | 80
{ agenda literária}<br />
No que diz respeito às interpretações,<br />
destacamos a prestação inigualável de<br />
Pedro Inês, um fabuloso João da Ega,<br />
assim como o contributo de Pedro<br />
Lacerda, o prodigioso Tomás de Alencar,<br />
e de Graciano Dias, o diletante Carlos da<br />
Maia, extraordinário herói trágico da<br />
intriga. Também o aclamado João Perry<br />
empresta à tela o seu dom para a construção da grandeza de caráter de Afonso<br />
da Maia, conferindo à personagem a gravitas de que fora investida por Eça no<br />
romance.<br />
apenas no século XX).<br />
Por outro lado, a opção pelos<br />
cenários em telas, da autoria de João<br />
Queiroz, retira por completo, quanto<br />
a nós, a verosimilhança histórica<br />
conquistada nos interiores. O mesmo<br />
efeito anulador tem a presença<br />
anacrónica de A Brazileira (que surge<br />
Por fim, a crítica social presente em cenas como a do Hipódromo ou a do Sarau é<br />
assustadoramente atual, pelo atraso atávico que denuncia, pelo provincianismo<br />
exacerbado, pela tacanhez dos oradores e políticos. Após a visualização,<br />
envolvidos de tal forma na intriga, abandonámos a sala na expetativa de nos<br />
confrontarmos a qualquer instante com um qualquer Gouvarinho ao virar da<br />
esquina… Inesquecível!<br />
SG | 81
{ agenda literária}<br />
*<br />
À VOLTA DOS LIVROS<br />
Carlos da Maia nos salões do Grémio Literário<br />
| Rodrigo Chrystêllo Tavares<br />
O Grémio Literário de Lisboa foi palco de uma<br />
revisitação de Carlos da Maia e do seu criador, Eça<br />
de Queiroz, tendo sido apresentado o diário, até<br />
agora inédito, de Carlos da Maia, protagonista da<br />
obra-prima do realismo português, Os Maias.<br />
Poder-se-á mesmo dizer que Eça assistiu à<br />
apresentação do diário do seu Carlinhos, naquele<br />
espaço que há uma centúria frequentava, e onde,<br />
conjuntamente com os Vencidos da Vida, se reunia<br />
com outras figuras para ler Les Fleurs du Mal, de<br />
Baudelaire.<br />
A. Campos Matos, detentor do manuscrito, facto<br />
somente explicável pela súbita morte de Carlos<br />
Afonso da Maia, aos 48 anos, vítima de embolia pulmonar; apresentou esta<br />
magnífica obra.<br />
Este diário revela-nos, entre outras interessantes notícias, as peripécias da estadia<br />
de Carlos em Paris, qual Jacinto; o seu casamento com a filha do procurador da<br />
família; a sua permanência em Santa Olávia e alguns dos seus planos<br />
arquitetónicos…<br />
Viajamos também pelos episódios mais marcantes da I Guerra Mundial e pela vida<br />
de seu filho, Carlos Afonso, mobilizado para os campos da Flandres, assistimos ao<br />
interesse de Carlos pelos arquitetos modernistas como Le Corbusier, ao seu<br />
fascínio eloquente por Camilo e Falaubert e, simultaneamente, pelas maravilhosas<br />
composições e melodias de Bach e Beethoven.<br />
SG | 82
{ agenda literária}<br />
*<br />
À VOLTA DOS LIVROS<br />
Roteiro queirosiano {Chiado}<br />
Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada.<br />
SG | 83
{ agenda literária}<br />
Hotel Central Praça Duque da Terceira<br />
“Entravam então no peristilo do Hotel<br />
Central – e nesse momento um coupé da<br />
Companhia, chegando a largo trote do lado da Rua<br />
do Arsenal, veio estacar à porta.<br />
Eça e a Musa Rua do Alecrim<br />
No coração do Chiado, encontramos a<br />
estátua do criador e da sua Musa. Na pedra, a<br />
inscrição: "Sob a nudez forte da verdade, o manto<br />
diáfano da fantasia.". Estamos prontos para a<br />
viagem.<br />
Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca<br />
e calção, correu logo à portinhola; de dentro um<br />
rapaz muito magro, de barba muito negra, passoulhe<br />
uma deliciosa cadelinha escocesa, de pelos<br />
esguedelhados, finos como seda e cor de prata;<br />
depois apeando-se indolente e poseur ofereceu a<br />
mão a uma senhora alta, loira, com um meio véu<br />
muito apertado e muito escuro que realçava o<br />
esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos<br />
afastaram-se, ela passou diante deles, num passo<br />
de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando<br />
atrás de si como uma claridade, um reflexo de<br />
cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um<br />
acasaco colante de veludo branco de Génova, e um<br />
momento sobre as lajes do peristilo brilhou o<br />
verniz das suas botinas. O rapaz ao lado, esticado<br />
num fato de xadrezinho inglês, abria<br />
negligentemente um telegrama; o preto seguia<br />
com a cadelinha nos braços. E no silêncio a voz de<br />
Craft murmurou: - Très chic.". Capítulo VI, p.156<br />
SG | 84
{ agenda literária}<br />
Largo de Camões<br />
"Estavam no Loreto; e Carlos parara, olhando,<br />
reentrando na intimidade daquele velho coração da<br />
capital. Nada mudara a mesma sentinela sonolenta<br />
rondava em torno à estátua triste de Camões. Os<br />
mesmos reposteiros vermelhos, com brasões<br />
eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O<br />
Hotel Aliança conservava o mesmo ar mudo e<br />
deserto. Um lindo sol dourava o lajedo; batedores de<br />
chapéu à faia fustigavam as pilecas; três varinas, de<br />
canastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e<br />
ágeis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos<br />
fumavam; e na esquina defronte, na Havanesa,<br />
fumavam também outros vadios, de sobrecasaca,<br />
politicando. ". Capítulo XVIII p.697<br />
Casa de Maria Eduarda<br />
"No Cais do Sodré deixou a carruagem, subiu a<br />
pé pelo Ferregial, veio passar diante das janelas<br />
na rua de S. Francisco. Só pôde ver uma vaga tira<br />
de claridade entre as portadas meio cerradas.<br />
Mas isso bastava-lhe. Podia agora imaginar com<br />
precisão o serão calmo que ela estava passando<br />
na larga sala de repes vermelho. " Capítulo XI<br />
p.364<br />
Consultório de Carlos<br />
Teatro da Trindade<br />
"Pararam à porta do teatro da Trindade no<br />
momento em que de uma tipoia de praça se<br />
apeava um sujeito de barbas de apóstolo todo de<br />
luto, com um chapéu de largas abas recurvas à<br />
moda de 1830. " Capítulo XVI, p.586<br />
"O seu gabinete, no consultório, dormia numa<br />
paz tépida entre os espessos veludos escuros, na<br />
penumbra que faziam os estores de seda verde<br />
corridos. Do Rossio, o ruído das carroças, os<br />
gritos errantes de pregões, o rolar dos<br />
americanos subiam, numa vibração mais clara<br />
por aquele ar fino de novembro: uma luz macia,<br />
escorregando docemente do azul-ferrete, vinha<br />
dourar as fachadas enxovalhadas, as copas<br />
SG | 85
{ agenda literária}<br />
mesquinhas das árvores do Município, vadiando<br />
pelos bancos: e essa sussurração lenta de cidade<br />
preguiçosa, esse ar aveludado de clima rico,<br />
pareciam ir penetrando pouco a pouco naquele<br />
abafado gabinete e resvalando pelos veludos<br />
pesados, pelo verniz dos móveis envolver Carlos<br />
numa indolência e numa dormência..." Capítulo<br />
IV, p.103<br />
S. Carlos<br />
"Carlos ficou pensando naquela proposta do<br />
Ega, na maneira como ele sublinhara o<br />
"empenho" da condessa. Lembrava-se agora que<br />
ela era muito íntima da Cohen: e ultimamente,<br />
em S. Carlos, naquela fácil vizinhança de frisa,<br />
surpreendera certos olhares dela..." Capítulo V,<br />
p. 135<br />
Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada.<br />
SG | 86
| e(SPA)ços de leitura<br />
Fotografia de Rita Sousa<br />
SG | 87
{ eSPAços de leitura}<br />
*<br />
À VOLTA DOS LIVROS<br />
1. São fábulas, Senhor, são fábulas 2. Amor com amor se paga<br />
O Fábulas situa-se no Chiado e, com os seus<br />
tons sombrios, envolve o visitante numa aura<br />
de mistério e cultura. O café transporta-nos<br />
para a Lisboa boémia do século XX, das<br />
tertúlias literárias. Um espaço acolhedor e<br />
reconfortante, com laivos modernos e preços<br />
acessíveis. Calçada Nova de São Francisco 14, 1200-<br />
300 Lisboa.<br />
Esta antiga Pensão é uma homenagem ao estilo<br />
burlesco e ao ambiente de cabaret. A decoração<br />
é alternativa e o ambiente agradável e informal.<br />
Boa música e bar aberto, tanto de dia como de<br />
noite. O antigo e degradado edifício renasceu e<br />
espera-o com múltiplos projetos criativos<br />
(cabeleireiro, bar, livraria...). Rua do Alecrim, 19,<br />
1200-292 Lisboa<br />
3. Aqui morou Fernando Pessoa<br />
Numa das inúmeras casas onde morou Fernando<br />
Pessoa, encontramos um café aprazível, com<br />
propostas saudáveis e que nos transporta ao mundo<br />
do poeta português, num espaço luminoso e<br />
moderno. Os preços são acessíveis. Local ideal para<br />
meditar ou repousar. Oferece uma bela vista para o<br />
Largo do Carmo.<br />
Rua da Trindade, nº 1<br />
SG | 88
{ eSPAço de leitura}<br />
4. Livraria Sá da Costa<br />
5. Livraria Campos-Trindade<br />
6. Livraria Bertrand<br />
Em pleno Chiado, esta<br />
magnifica livraria<br />
centenária sobreviveu a<br />
um iminente encerramento<br />
e, como uma Fénix,<br />
renasce, afirmando-se<br />
novamente como polo<br />
cultural e ícone<br />
alfarrabista.<br />
Rua Garrett, Chiado<br />
Este espaço, ideal para ver e<br />
comprar primeiras edições de<br />
clássicos e outras<br />
preciosidades, está envolto<br />
numa aura clássica e<br />
requintada, permitindo-nos o<br />
acesso a uma literatura<br />
erudita, que alenta o espírito.<br />
Rua do Alecrim, Chiado<br />
A mais antiga livraria de<br />
Portugal, fundada em 1732,<br />
abraça-nos num labirinto de<br />
salas forradas de estantes,<br />
onde os velhos alfarrábios se<br />
nos transportam para um<br />
passado que se confunde com<br />
o presente.<br />
Rua Garrett, Chiado<br />
7. Livraria Ler Devagar<br />
8. Hotel Ramalhete<br />
9. Grémio Literário<br />
Este antigo espaço de<br />
impressão foi considerado<br />
pelo New York Times uma<br />
das mais belas livrarias do<br />
mundo. Situa-se no polo<br />
industrial Lx Factory e<br />
oferece várias propostas<br />
culturais, de teatros a<br />
exposições, de livros a<br />
conferências.<br />
Lx Factory<br />
Num edifício do século XVIII<br />
fica o palacete que terá<br />
inspirado Eça de Queiroz para<br />
criar o Ramalhete, a casa da<br />
família Maia. Ambiente calmo<br />
e sofisticado, com vista para o<br />
Tejo.<br />
Rua das Janelas Verdes, 92<br />
Instalado num prédio do século<br />
XIX, em pleno Chiado, é local de<br />
passagem obrigatório para<br />
todos os intelectuais que<br />
visitam ou residem na capital.<br />
Rua Ivens, 37<br />
SG | 89
| acessórios<br />
SG | 90
{ acessório(s)}<br />
Tia Minda | Tradições Gourmet<br />
À primeira vista, aparentam ser típicas embalagens de<br />
conserva; na verdade, contêm folhas aromáticas de chá de<br />
exóticos sabores. Ideais para acompanhar a leitura do seu livro<br />
preferido, no conforto do sofá, numa noite de Inverno, junto à<br />
lareira.<br />
Sardinha by Bordallo Pinheiro | Vista Alegre<br />
Após o concurso “Sardinhas das Festas de Lisboa”, a Vista<br />
Alegre relançou vinte e uma novas peças inspiradas na faiança<br />
artesanal de Bordallo Pinheiro. São vendidas embaladas em<br />
papel de jornal, recriando a venda de peixe.<br />
Paler by João Bosco<br />
Fruto de uma ideia nacional, este acessório, que pretende<br />
auxiliar a sua leitura, é totalmente elaborado com um dos<br />
mais emblemáticos produto português: a cortiça.<br />
O irreverente surfista Matt Wilkison, atleta<br />
patrocinado pela marca Rip Curl, no campeonato<br />
mundial de surf, em Peniche, em 2013,<br />
homenageou a cultura portuguesa,<br />
apresentando-se com um fato personalizado. É<br />
uma peça única em todos os sentidos: a camisa<br />
com o padrão típico do traje tradicional de<br />
pescador e as jardineiras formam o fato<br />
completo, que, infelizmente, não é<br />
comercializado…<br />
SG | 91
{ acessório(s)}<br />
Lady in Cork<br />
O fato foi criado por Teresa Martins e é composto por um<br />
vestido e capa em pele de cortiça nacional, folheada a ouro e<br />
prata, bordada à mão com missangas e fios metálicos. Lady<br />
Gaga recebeu-o na sua passagem por Lisboa, tendo-o usado em<br />
Espanha, como homenagem à cultura portuguesa.<br />
Sabonetes Claus Porto<br />
São portugueses e já atravessaram<br />
fronteiras. Estes sabonetes de luxo<br />
da Claus Porto tiveram direito a<br />
destaque na Oprah Magazine,<br />
devido à sua elevada qualidade.<br />
Carlos do Carmo<br />
Aplaudimos o seu sucesso! Ah, fadista! Premiado com o<br />
Grammy Latino, recompensa pelo intenso trabalho de uma<br />
vida, este é um dos últimos trabalhos, contando com vários<br />
convidados. Uma homenagem ao fado e à cultura<br />
portuguesa.<br />
SG | 92
{ acessório(s)}<br />
Alma Portuguesa<br />
A marca foi criada em 2013 por duas irmãs<br />
economistas de formação, mas profundamente<br />
ligadas às artes. As suas transformações e<br />
intervenções são feitas em peças únicas, com<br />
materiais usados ecologicamente. Tradição e<br />
recriação no seu melhor.<br />
Gelados Olá e os 500 anos de Peregrinação<br />
Os 500 anos de Peregrinação, obra sobre os feitos<br />
portugueses no Oriente, são celebrados pela marca<br />
internacional de gelados Olá. Nos vários quiosques, podemos<br />
encontrar passagens da aventura picaresca de Fernão<br />
Mendes Pinto. É caso para dizer que "Quem gosta gosta<br />
sempre!".<br />
SG | 93
| montra<br />
SG | 94
{ montra }<br />
Redescobrir Aquilino<br />
| José Larião<br />
Falar de teoremas (verdades que carecem de demonstração) é<br />
naturalmente uma obrigação para um professor de<br />
matemática; falar de leituras é ousadamente uma intromissão<br />
na lógica descritiva de um escritor ou na lógica interpretativa<br />
de um professor de Português. Em ambas as situações, não<br />
deixa de ser uma aceitação de uma verdade interior, daí as<br />
leituras serem, para mim, postulados ou axiomas que só<br />
precisam de ser vividos, nunca demonstrados.<br />
Cada livro desperta em mim um conjunto de sentimentos e um<br />
rol de vivências que ultrapassam a mera lista quantificada de quantos livros se leem, ou<br />
quantos autores se conhecem ou entusiasmam. Ler é para mim uma operação cognitiva<br />
do domínio dos sentidos, para além de uma lógica binária de verdade ou de falsidade.<br />
A Batalha sem Fim, romance de Aquilino Ribeiro, foi um desses livros, simples se o<br />
sentirmos, difícil se o lermos e analisarmos à luz da sintaxe ou da semântica.<br />
Fala de vidas, e aí a gramática perde muito, como perdem na matemática as fórmulas<br />
que não traduzem o quotidiano.<br />
Durante a leitura, sentimos binómios de forças que fazem com que o “tempo se faça<br />
vida” e, por isso, me despertou o desejo de escrever estas linhas, não como pretenso<br />
crítico do romance, mas como saudosa personagem de tempos em memória.<br />
Aliás, os nomes das personagens desta obra; Algodres, Lavagante, Passafome,<br />
Savelheiro, Inocência, Vermoil, Ratampum, etc, são nomes que arrastam vida. A<br />
dicotomia entre pescador e lavrador; arrais e fidalgo; necessitado e abastado; sonhador<br />
e realista; a praia e o pinhal; a ficção e a realidade, traduz diferentes faces das mesmas<br />
moedas, que se amealham neste romance e ajudam a descrever vidas de qualquer<br />
tempo.<br />
Quem lê esta obra percebe que as vidas destas personagens não são imaginadas, são<br />
sentidas por quem conhece as gentes das nossas terras, e não deixam indiferente quem<br />
nelas mergulha, seja no mar, seja na duna.<br />
SG | 95
{ montra }<br />
A mim deu-me prazer reler este clássico, recordar expressões de uma infância, exercitar<br />
um português que não é o do mundo, mas o da boca de um povo. Aproveite-se a ideia<br />
base, amplie-se esta aventura, e teremos a aventura da humanidade, no tempo e no<br />
espaço, a Batalhar sem Fim.<br />
Aquilino Gomes Ribeiro- Escritor Português (Sernancelhe, Carregal, 13 de Setembro de1885 — Lisboa, 27<br />
de Maio de 1963)<br />
A Batalha sem Fim – romance neorrealista escrito por Aquilino Ribeiro em 1932<br />
Nobel da Literatura de 2014 | Patrick Mondiano<br />
Eleito pela revista Lire como o melhor romance de<br />
2007, No Café da Juventude Perdida, do Nobel Patrick<br />
Mondiano, segue quatro visões diferentes de homens,<br />
com passados distintos, e que somente têm em<br />
comum o fascínio pela misteriosa Louki. Escrito de<br />
forma linear, o romance vicia completamente o leitor,<br />
num desejo sempre suspenso de conhecer a vida<br />
daquela órfã parisiense, que morava em hotéis e vivia em cafés.<br />
Vasco Graça Moura<br />
Numa antologia de poemas de 1997 a 2000, Vasco Graça Moura conduz-<br />
-nos pelo seu mundo interior, repleto de erudição e de referências<br />
culturais, que oscilam entre a matriz clássica e a contemporaneidade.<br />
Subvertendo as convenções, a sua poesia liberta-se da pontuação rígida e<br />
das preocupações métricas, tornando-se livre de espartilhos formais.<br />
SG | 96
{ montra }<br />
Na Senda de Fernão Mendes Pinto<br />
Guilherme d'Oliveira Martins<br />
Gradiva<br />
A Divina Comédia<br />
Dante Alighieri<br />
Quetzal<br />
A Morte de Virgílio<br />
Hermann Broch<br />
Relógio d'Água<br />
O quarto alugado<br />
Ricardo Belo de Morais<br />
verso de kapa<br />
Ilíada<br />
Homero<br />
Cotovia<br />
Odisseia<br />
Homero<br />
Cotovia<br />
Diário Íntimo de Carlos da Maia<br />
A. Campos Matos<br />
Edições Colibri<br />
O osso da borboleta<br />
Rui Cardoso Martins<br />
Tinta-da-China<br />
Meninas<br />
Maria Teresa Horta<br />
D. Quixote<br />
SG | 97
| bastidores<br />
Fotografia de Sara Trindade<br />
SG | 98
{ bastidores }<br />
| Roteiro queirosiano no Chiado<br />
E com o realizador João Botelho<br />
SG | 99
{ bastidores }<br />
| A redação<br />
SG | 100
{ bastidores }<br />
| A equipa de ilustração<br />
SG | 101
DA INFELICIDADE DA<br />
COMPOSIÇÃO, DOS<br />
ERROS DA ESCRITURA<br />
E DE OUTRAS<br />
IMPERFEIÇÕES DA<br />
ESTAMPA, NÃO HÁ<br />
QUE DIZER-VOS. VÓS<br />
OS VEDES. VÓS OS<br />
CASTIGAI...<br />
D. Francisco Manuel de Mello<br />
SG | 102
Agradecemos ainda a colaboração de:<br />
Inês Manso | fotografia<br />
Rita Sousa | fotografia<br />
Cláudia Trindade | ilustrações<br />
Sara Trindade | ilustrações<br />
Maria Teresa Albino | design gráfico<br />
Ana Nogueira | design e paginação<br />
Ismael Guedes e turma 12 A | design gráfico e plataforma digital<br />
Segue-nos!<br />
SG | 103
SG | 104