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O Rei de Amarelo<br />
mas, finalmente, rejeitando ambas como incertas demais, decidiu subir até a<br />
sacada, abrir a janela e educadamente perguntar por Rue Barrée. Ele podia<br />
ver que havia apenas uma janela iluminada na casa. Era no segundo andar,<br />
e ele lançou o olhar em sua direção. Então, subindo na barreira de madeira<br />
e escalando as pilhas de pedras, alcançou a calçada e olhou para a fachada<br />
para encontrar um ponto de apoio. Parecia impossível. Mas uma fúria<br />
repentina o tomou, uma obstinação cega e embriagada, e o sangue correu<br />
para sua cabeça pulsando, latejando em seus ouvidos como o estrondo vago<br />
do oceano. Ele cerrou os dentes e, saltando para um peitoril da janela, pulou<br />
e se agarrou nas barras de ferro. A razão sumiu; surgiu em seu cérebro o<br />
som de muitas vozes, seu coração saltava, batendo um toque de recolher<br />
ensandecido, e, se agarrando à cornija e à beirada, ele fez seu caminho pela<br />
fachada, se apoiando em canos e venezianas, se impulsionando para cima até<br />
entrar na sacada em frente à janela iluminada. Seu chapéu caiu e bateu na<br />
vidraça. Por um momento, ele se apoiou no parapeito, sem fôlego — então, a<br />
janela foi aberta vagarosamente pelo lado de dentro.<br />
Eles se olharam fixamente por algum tempo. Logo a garota deu dois<br />
passos incertos de volta ao quarto. Ele viu seu rosto, — todo vermelho agora,<br />
— ele a viu se afundar numa cadeira perto de uma mesa iluminada e, sem<br />
uma palavra, a seguiu até o fundo do quarto, fechando as vidraças, grandes<br />
como portas, atrás dele. Então eles se olharam por um instante em silêncio.<br />
O quarto era claro e pequeno; tudo ali era branco, — a cama com<br />
dossel, a pequena pia no canto, as paredes nuas, a lamparina de porcelana<br />
chinesa — e seu próprio rosto — soubesse ele disso, mas o rosto e o pescoço<br />
de Barrée estavam explodindo na cor que tingia a roseira florida na lareira a<br />
seu lado. Não ocorreu a ele falar. Ela parecia não esperar por isso. A mente<br />
dele lutava com as impressões do quarto. A brancura, a pureza extrema de<br />
tudo o distraía — e isso começou a incomodá-lo. À medida que seus olhos<br />
se acostumaram com a luz, outros objetos surgiram ao redor e tomaram seus<br />
lugares no círculo da luz da lamparina. Havia um piano, um cesto de carvão,<br />
um pequeno baú de ferro em uma banheira. Havia também uma fileira de<br />
ganchos na porta com uma cortina de chita branca cobrindo as roupas por<br />
baixo. Na cama havia uma sombrinha e um grande chapéu de palha, e, na<br />
mesa, um rolo de pianola desenrolado, um tinteiro e folhas de papel pautado.<br />
Atrás dele estava um guarda-roupa com espelho, mas, por alguma razão, ele<br />
não queria ver seu rosto naquele momento. Ele estava ficando sóbrio.<br />
A garota sentou-se, olhando para ele sem uma palavra. Seu rosto<br />
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Rue Barrée<br />
estava sem expressão, e ainda assim, às vezes seus lábios tremiam quase<br />
imperceptivelmente. Seus olhos, tão maravilhosamente azuis à luz do dia,<br />
pareciam escuros e macios como veludo, e a cor de seu pescoço se aprofundava<br />
e empalidecia com cada respiração. Ela parecia menor e mais esbelta do que<br />
quando ele a vira na rua, e agora havia algo na curva de sua bochecha que era<br />
quase infantil. Quando finalmente ele se virou e viu seu próprio reflexo no<br />
espelho, um choque o atravessou como se tivesse visto algo vergonhoso, e sua<br />
mente enevoada e seus pensamentos nublados começaram a clarear. Por um<br />
momento, olhos de ambos se encontraram, e então os dele buscaram o chão,<br />
seus lábios se apertaram e a luta dentro dele forçou sua cabeça a fazer uma<br />
reverência e retesou cada nervo à ruptura. E agora estava tudo terminado,<br />
pois sua voz interior havia falado. Ele a escutou, estupidamente interessado<br />
mas já sabendo o fim, — de fato, pouco importava; — o fim seria sempre<br />
o mesmo para ele; — ele sabia agora, — sempre o mesmo para ele, e ele<br />
escutou, estupidamente interessado, uma voz que crescia dentro dele. Depois<br />
de um tempo, ele se levantou, e ela levantou-se de uma vez, com uma mão<br />
pequena descansando na mesa. Logo ele abriu a janela, pegou seu chapéu e<br />
a fechou de novo. Então ele se curvou sobre a roseira e tocou os botões com<br />
o rosto. Uma rosa estava em um copo d’água na mesa, e, mecanicamente, a<br />
garota a pegou, a apertou nos lábios e a pôs na mesa perto dele. Ele a pegou<br />
sem uma palavra, e, cruzando quarto, abriu a porta. O corredor estava escuro<br />
e silencioso, mas a garota ergueu a lamparina e, deslizando à frente dele,<br />
desceu as escadas polidas até a entrada. Então, destravando os ferrolhos,<br />
abriu a portinhola de ferro.<br />
Através dela, ele passou com sua rosa.<br />
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