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O Rei de Amarelo<br />
cima, sem ir a lugar nenhum, sem fazer nenhum exercício saudável, sem<br />
fazer porcaria nenhuma a não ser se debruçar sobre todos aqueles livros ali<br />
na prateleira.”<br />
Ele olhou rapidamente ao longo da fileira de prateleiras. “Napoleão,<br />
Napoleão, Napoleão!”, ele leu. “Pelo amor de Deus, você não tem nada além<br />
de Napoleão aqui?”<br />
“Gostaria que fossem encadernados em ouro”, eu disse. “Mas, espere,<br />
sim, há outro livro, O Rei de Amarelo”. Olhei para ele firmemente.<br />
“Você já leu?”, perguntei.<br />
“Eu? Não, graças a Deus! Não quero ficar louco.”<br />
Vi que ele se arrependeu do que disse assim que proferiu aquelas<br />
palavras. Só existe uma palavra que detesto mais do que “lunático”, e essa<br />
palavra é “louco”. Mas me controlei e perguntei por que ele achava O Rei de<br />
Amarelo perigoso.<br />
“Oh, não sei”, ele disse com pressa. “Apenas me lembro da comoção<br />
que ele causou e das denúncias vindas dos religiosos e da imprensa. Acho<br />
que o autor se matou com um tiro após criar essa monstruosidade, não foi?”<br />
“Sei que ele ainda está vivo”, respondi.<br />
“Isso provavelmente é verdade”, ele murmurou; “balas não poderiam<br />
matar um demônio como aquele”.<br />
“É um livro de grandes verdades”, eu disse.<br />
“Sim”, respondeu, “de ‘verdades’ que deixam homens fora de si e<br />
destroem suas vidas. Não me importo se a coisa é, como dizem, a verdadeira<br />
essência suprema da arte. É um crime ter sido escrito, e com certeza nunca<br />
vou abrir suas páginas”.<br />
“É isso que você veio me dizer?”, perguntei.<br />
“Não”, ele disse. “Vim para lhe contar que vou me casar.”<br />
Acredito que, por um momento, meu coração parou de bater, mas<br />
mantive meus olhos em seu rosto.<br />
“Sim”, continuou, sorrindo alegremente, “casar com a garota mais doce<br />
na Terra”.<br />
“Constance Hawberk”, eu disse mecanicamente.<br />
“Como você sabia?”, perguntou, atônito. “Eu mesmo não sabia até<br />
aquela noite em abril passado, quando passeamos no calçadão à beira do rio<br />
antes do jantar.”<br />
“Quando vai ser?”, perguntei.<br />
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O Reparador de Reputações<br />
“Seria em setembro próximo, mas uma hora atrás um despacho<br />
chegou, mandando nosso regimento a Presidio, em São Francisco. Partiremos<br />
amanhã, ao meio-dia. Amanhã”, ele repetiu. “Pense só, Hildred, amanhã<br />
serei o homem mais feliz que já respirou neste belo mundo, pois Constance<br />
irá comigo.”<br />
Estendi minha mão para dar os parabéns, e ele a agarrou e apertou<br />
como o tolo bondoso que era — ou fingia ser.<br />
“Vou ganhar meu próprio esquadrão como presente de casamento”,<br />
tagarelou. “Capitão e sra. Louis Castaigne, hein, Hildred?”<br />
Então ele me contou onde seria e quem estaria lá, e me fez prometer<br />
ir e ser o padrinho. Cerrei meus dentes e ouvi sua conversa fiada infantil<br />
sem mostrar o que sentia, mas — Eu estava chegando ao limite da minha<br />
paciência, e quando ele se levantou de repente, e, batendo suas esporas até<br />
elas tilintarem, disse que precisava ir, não o detive.<br />
“Há uma coisa que quero pedir a você”, eu disse em voz baixa.<br />
“Peça-me, está prometido”, ele riu.<br />
“Quero que você me encontre para uma conversa de quinze minutos<br />
hoje à noite.”<br />
“É claro, como quiser”, ele disse, um pouco intrigado. “Onde?”<br />
“Em qualquer lugar, no parque, ali.”<br />
“A que horas, Hildred?”<br />
“Meia-noite.”<br />
“Por Deus, o que—”, ele começou, mas se controlou e, rindo,<br />
concordou. O vi descendo as escadas com pressa, seu sabre batendo a cada<br />
passo. Ele se voltou para a Bleecker Street, e eu sabia que ele estava indo<br />
ver Constance. Dei a ele dez minutos para desaparecer e então o segui em<br />
seus passos, levando comigo a coroa de pedras preciosas e a túnica de seda<br />
bordada com o Símbolo Amarelo. Quando cheguei à Bleecker Street, e entrei<br />
pelo portal que tinha o letreiro:<br />
SR. WILDE,<br />
REPARADOR DE REPUTAÇÕES.<br />
3ª campanhia.<br />
Vi o velho Hawberk andando por sua oficina e imaginei ouvir a voz<br />
de Constance no salão, mas os evitei e me apressei para as escadas trêmulas<br />
que levavam ao apartamento do sr. Wilde. Bati e entrei sem cerimônia.<br />
O sr. Wilde estava no chão, gemendo, seu rosto coberto de sangue, suas<br />
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