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o assalto ao poder da escrita - Grupo de Estudos em Literatura ...

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<strong>Literatura</strong> marginal:o <strong>assalto</strong> <strong>ao</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>da</strong> <strong>escrita</strong>Fernando Villarraga EslavaEntão, tudo é conteúdo. É uma forma <strong>de</strong> você ocupar a mente.Lá <strong>de</strong>ntro t<strong>em</strong> vários escritores, t<strong>em</strong> os caras que escrev<strong>em</strong>,pegam a caneta, montam várias histórias basea<strong>da</strong>s na sua história.A literatura é muito gran<strong>de</strong> lá <strong>de</strong>ntro, é infinita.Sobrevivente André du Rap(do Massacre do Carandiru)A questão inicial que se coloca para qu<strong>em</strong> procura se aproximar s<strong>em</strong>preconceitos teóricos ou culturais a uma manifestação como a <strong>da</strong>auto<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> literatura marginal é, fora <strong>de</strong> to<strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, a <strong>de</strong> abandonaras atitu<strong>de</strong>s tradicionais do hom<strong>em</strong> ilustrado frente <strong>ao</strong>s fenômenosque <strong>de</strong>sajustam sua própria visão e valores, isso que antes, numoutro contexto histórico, se expressava <strong>em</strong> termos do conflito entre civilizaçãoe barbárie, para encontrar o que aqui <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ia ser <strong>de</strong>finido comoprincípio <strong>de</strong> in<strong>da</strong>gação hermenêutica, caso se queira começar a <strong>de</strong>cifraras possíveis significações e implicações <strong>de</strong> práticas escriturais quev<strong>em</strong> se projetando no âmbito nacional, para arrepios <strong>de</strong> alguns e espanto<strong>de</strong> outros 1 . Porque os primeiros sinais <strong>de</strong> recepção crítica indicam <strong>de</strong>forma muito evi<strong>de</strong>nte que as <strong>de</strong>sconfianças são muitas e as suspeitasenormes, <strong>da</strong>do que, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> insistência <strong>de</strong> seus “atos I, II e III” 2e <strong>da</strong> peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seus respectivos projetos, algumas vozes dos camposacadêmico e jornalístico advert<strong>em</strong> alarma<strong>da</strong>s sobre os riscos, as confusõese as promiscui<strong>da</strong><strong>de</strong>s que supostamente comporta a ca<strong>da</strong> vez maisvisível on<strong>da</strong> dos marginais, com suas afirmações sobre a condição <strong>de</strong>ser<strong>em</strong> escritores e seus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> se ver<strong>em</strong> reconhecidos como parte <strong>da</strong>literatura nacional. Pois, como se diz no seu manifesto inaugural, numgesto que l<strong>em</strong>bra imediatamente uma <strong>da</strong>s práticas <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong>1Algumas <strong>da</strong>s idéias principais <strong>de</strong>ste artigo foram expostas na comunicação apresenta<strong>da</strong> no Simpósio“O lugar, o não-lugar e o fora-<strong>de</strong>-lugar” do IX Congresso <strong>da</strong> ABRALIC, realizado <strong>em</strong> Porto Alegre,<strong>de</strong> 18 a 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2004.2A cultura <strong>da</strong> periferia: <strong>Literatura</strong> marginal – Ato I, Ato II e Ato III, <strong>em</strong> Caros Amigos.


36 Fernando Villarraga Eslavahistórica, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> justificar suas raízes sociais e filiações artísticas:“estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço para queno futuro os autores do gueto sejam l<strong>em</strong>brados e eternizados” 3 . Portanto, s<strong>em</strong>pedir qualquer licença às autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> cultura oficial e canônica, ecom o explícito respaldo editorial e i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> “caros amigos”, os subalternosdo Brasil cont<strong>em</strong>porâneo <strong>de</strong>cidiram invadir <strong>de</strong> forma orquestrad<strong>ao</strong> espaço público para lançar suas vozes estri<strong>de</strong>ntes e <strong>escrita</strong>s <strong>de</strong>sengonça<strong>da</strong>s,para reclamar seu direito a um nicho na seleta república letra<strong>da</strong><strong>ao</strong> se consi<strong>de</strong>rar<strong>em</strong> expressão direta e essencial <strong>de</strong> um “povo composto<strong>de</strong> minorias, mas <strong>em</strong> sua maioria um todo”. Não disseram, como a mineiraboliviana Domitila, se me <strong>de</strong>ixam falar, porque se apropriaram <strong>de</strong> vez <strong>da</strong>palavra <strong>escrita</strong> para <strong>da</strong>r fisionomia a suas criações literárias e artísticas.As reações contra essa pretensão vêm se traduzindo <strong>em</strong> diversas <strong>de</strong>clarações<strong>de</strong> alerta para tornar claro o que pareceria ser fun<strong>da</strong>mental nasmanifestações que se recolh<strong>em</strong> sob tal rótulo. Para alguns, o que po<strong>de</strong>estar motivando <strong>de</strong>terminados sujeitos periféricos a tomar a caneta, àsvezes literalmente pela falta <strong>de</strong> um computador, estaria ligado à lógicaperversa <strong>da</strong> indústria editorial, pois, pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> vital <strong>de</strong> expandirseus mercados, ela direciona suas estratégias para incentivar a produção<strong>de</strong> objetos que possam ser consumidos por um leitor acrítico, ávido <strong>de</strong>quaisquer novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, o que explicaria, entre outras coisas, o boom <strong>da</strong>literatura carcerária e <strong>da</strong> violência. Para outros, o aspecto relevante secentraria não no fato <strong>de</strong> tais sujeitos tentar<strong>em</strong> construir sua própria representaçãosimbólica no terreno literário, o que lhes outorgaria numcerto sentido algum grau <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas no <strong>de</strong>ficitário e quaseprimário domínio que suas expressões revelam dos códigos e <strong>da</strong>s linguagensmais importantes <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> estética, com o que suas produçõesnão conseguiriam atingir transcendência e valor plenamente artísticos.Para uns poucos, finalmente, o que resulta mais notório é o caráterprobl<strong>em</strong>ático que a literatura marginal apresenta na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que s<strong>em</strong>ovimenta num território no qual vão se misturar, s<strong>em</strong> maiores distinçõesformais, a vonta<strong>de</strong> documental, a força do test<strong>em</strong>unho e a ficcionalização<strong>da</strong>s próprias experiências vivi<strong>da</strong>s pelos autores marginais, gerando, porconseqüência, dúvi<strong>da</strong>s e interrogantes sobre os parâmetros críticos3Ferréz, “Manifesto <strong>de</strong> abertura: <strong>Literatura</strong> marginal”, Ato I.


<strong>Literatura</strong> marginal 37pertinentes para abor<strong>da</strong>r o fenômeno nas suas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras dimensões,s<strong>em</strong> resquícios <strong>de</strong> matiz universalista ou canônico 4 . De qualquer maneira,percebe-se nas diversas reações superficialmente referi<strong>da</strong>s a presençado incômodo comum frente <strong>ao</strong> que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a periferia social e humana <strong>de</strong><strong>de</strong>terminados centros urbanos brasileiros v<strong>em</strong> se projetando, graças àmediação <strong>de</strong> diversos agentes culturais e dos mecanismos inerentes <strong>ao</strong>mercado, como um conjunto <strong>de</strong> produções textuais que carregam o signoinequívoco <strong>da</strong> literatura, com o a<strong>de</strong>ndo do na<strong>da</strong> pacífico adjetivo marginalque, é oportuno l<strong>em</strong>brar, seus próprios artífices <strong>de</strong>cidiram imprimir-lhespara ser<strong>em</strong> postas <strong>em</strong> circulação.Nesse sentido, então, o que se propõe realizar aqui é principalmente olevantamento <strong>de</strong> uma agen<strong>da</strong> inicial orienta<strong>da</strong> para a compreensão crítica<strong>de</strong> um inédito movimento literário e cultural hoje consoli<strong>da</strong>do, cujasrepercussões diretas ou indiretas se faz<strong>em</strong> sentir há um bom t<strong>em</strong>po, apesar<strong>da</strong>s más intenções <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>tratores e <strong>em</strong> correspondência com oapoio <strong>de</strong> seus simpatizantes, na esfera <strong>de</strong> preocupações e <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>alguns professores e instituições universitárias, <strong>ao</strong> mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> queganha a a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> diversos escritores e artistas inseridos na tradição letra<strong>da</strong>e obtém ou lhe são concedidos espaços nos canais <strong>de</strong> comunicaçãomassiva ou alternativa. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong> um movimento que, apesar<strong>de</strong> carregar consigo marcas visíveis <strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong> periférica, possuipresença viva no cenário <strong>da</strong>s práticas discursivas que integram o atualcampo literário brasileiro, sejam quais for<strong>em</strong> suas conotações simbólicaspara os respectivos produtores e receptores. Por isso não po<strong>de</strong> ser ignorado,ain<strong>da</strong> que, para alguns espíritos sensíveis, possa ferir as normas dobom gosto ou <strong>da</strong> exigência estética. Porque como sustenta o sociólogoCamero Martán, <strong>em</strong> relação a fenômenos similares <strong>da</strong> América Latina,nossos intelectuais, portadores s<strong>em</strong>pre <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, quando se<strong>de</strong>param com eles costumam <strong>da</strong>r respostas s<strong>em</strong> formular as perguntas, asquais geralmente traduz<strong>em</strong> é a cegueira <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se coloca na posição <strong>de</strong>um juiz que opta por não escutar o réu.Portanto, a partir <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> intenção <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar num universoa to<strong>da</strong>s vistas bastante probl<strong>em</strong>ático, já que implica se colocar4Cf. Ornellas, “5 notas sobre experiência, ‘pobreza’ e exclusão <strong>em</strong> Capão Pecado”, <strong>em</strong> ColóquioABRALIC 2001: Valores Mercado Política (textos <strong>de</strong> reflexão).


38 Fernando Villarraga Eslav<strong>ao</strong>brigatoriamente na perspectiva do reconhecimento <strong>da</strong> voz do outro, <strong>da</strong>chama<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, com o paradoxo <strong>de</strong> ser muito comum proclamar sobas brilhantes roupagens <strong>de</strong>mocráticas o direito à palavra que todos teriam,é que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser formula<strong>da</strong>s as in<strong>da</strong>gações na perspectiva críticapreliminar <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a natureza, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e a significação possíveis<strong>da</strong> auto<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> literatura marginal, para evitar, logicamente, asconclusões apressa<strong>da</strong>s e às vezes <strong>de</strong>finitivas que a razão ilustra<strong>da</strong> nas suasdiversas variantes enuncia quando sente que as sombras <strong>de</strong> corpos estranhosse tornam ameaçadoras para a or<strong>de</strong>m literária e cultural dominante.Sobretudo porque o que se nota nas resenhas ou comentários críticos, é atendência genérica a <strong>de</strong>squalificar, a restringir ou a superestimar os alcancesque teria o fenômeno marginal, s<strong>em</strong> se <strong>da</strong>r atenção específica aseus componentes híbridos ou contraditórios, às aporias que percorr<strong>em</strong>suas pretensões <strong>de</strong> representação, <strong>ao</strong>s múltiplos sentidos que <strong>de</strong>le brotam<strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> reunir um conjunto <strong>de</strong> práticas escriturais heterogêneas,enfim, <strong>ao</strong> que conforma essa literatura enquanto projeto coletivo e reali<strong>da</strong><strong>de</strong>específica no contexto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira cont<strong>em</strong>porânea 5 .Por isso, a questão inicial a ser enfrenta<strong>da</strong> é a que diz respeito àsdimensões s<strong>em</strong>ânticas e i<strong>de</strong>ológicas <strong>da</strong> própria <strong>de</strong>nominação, porque osdois termos, literatura e marginal, como se sabe, carregam uma longa história<strong>de</strong> polêmicas e <strong>de</strong>sencontros <strong>ao</strong> estar<strong>em</strong> atrelados a uma série <strong>de</strong>discursos com os que se nomeiam práticas humanas e sociais muito diversas.E o truísmo aqui não é tão evi<strong>de</strong>nte. Basta l<strong>em</strong>brar apenas que sob oconceito <strong>de</strong> literatura, substantivo que se escreve implicitamente commaiúscula, <strong>de</strong> acordo com uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> concepção, reúne-se quases<strong>em</strong>pre, nas plagas <strong>de</strong> Santa Cruz, a produção <strong>escrita</strong> que parecia se encaixarnos mol<strong>de</strong>s canônicos elaborados por algumas culturas européias.Ao extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> que nunca se tornou necessário o uso <strong>de</strong> qualquer adjetivopara sua distinção. Porém, o recorte que se impõe para a <strong>de</strong>limitaçãodo respectivo corpus <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> época, com to<strong>da</strong>s as possíveis variantessegundo a orientação <strong>de</strong> seus agentes e <strong>da</strong>s instituições representativas,5Na tentativa <strong>de</strong> impl<strong>em</strong>entar uma nova perspectiva crítica Benito Martinez Rodriguez propõe asugestiva e pertinente expressão “Mutirões <strong>da</strong> palavra” para i<strong>de</strong>ntificar o espírito que percorre ostextos do movimento. Ver <strong>em</strong> “Mutirões <strong>da</strong> palavra: literatura e vi<strong>da</strong> comunitária nas periferiasurbanas”.


<strong>Literatura</strong> marginal 39nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> estar ligado à operação implícita ou explícita <strong>de</strong> silenciarou <strong>de</strong> ignorar outras formas <strong>de</strong> manifestação literária que, <strong>em</strong> razãodos mecanismos expressivos e/ou dos formatos com os quais se estruturame veiculam, são consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como pertencentes <strong>ao</strong> universo folclóricoou massivo ou popular. E aqui se t<strong>em</strong> sentido, para essa perspectiva, ouso do adjetivo, pois com ele se executa a profilaxia do que po<strong>de</strong><strong>de</strong>sajustar. Por outro lado, a carga <strong>de</strong>notativa do marginal associa-seaté hoje com o que <strong>de</strong>ve ser con<strong>de</strong>nado e/ou banido, mesmo que setrate no caso <strong>de</strong> inocentes <strong>escrita</strong>s que se apresentam como literárias,mas cuja legitimação passa a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>em</strong> boa medi<strong>da</strong>, não por simplescoincidência, dos que controlam o <strong>po<strong>de</strong>r</strong> simbólico do campo. Um ex<strong>em</strong>plob<strong>em</strong> ilustrativo é a tão polêmica e esqueci<strong>da</strong> poesia marginal dosanos setenta. Daí a plena certeza <strong>de</strong> que quando se fala <strong>de</strong> literaturaestá-se aludindo a discursos que têm a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se diferenciar <strong>da</strong>reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo por seu alto grau <strong>de</strong> elaboração estética, por penetrar<strong>em</strong> esferas acessíveis só a privilegia<strong>da</strong>s sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e por atingiruma dimensão universal; portanto, s<strong>em</strong> vínculo nenhum com gestos ouatitu<strong>de</strong>s escriturais pertencentes a quaisquer sujeitos marginais que preten<strong>da</strong>minfiltrar-se no salão literário.To<strong>da</strong>via, no que se refere <strong>ao</strong> fenômeno aqui enfocado o que precisaser consi<strong>de</strong>rado é, justamente, as implicações que <strong>de</strong>rivam do gesto <strong>de</strong>auto<strong>de</strong>nominar sua produção textual como literatura marginal, já que comisso o “povo <strong>da</strong> periferia/favela/gueto” procura, s<strong>em</strong> aparentes recalques,assumir concreta e publicamente sua diferencia<strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> artística,cultural e social. É esse o <strong>da</strong>do inédito que se coloca, permiti<strong>da</strong> a paráfrase,quando novas personagens entram <strong>em</strong> cena. Dado que precisa ser entendido,então, como sinal evi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> <strong>em</strong>ergência recente <strong>de</strong> um movimentoque aglutina sujeitos <strong>de</strong> tribos e <strong>de</strong> galeras que, munidos <strong>da</strong>tecnologia <strong>da</strong> palavra, <strong>em</strong>bora seu domínio seja muito diferenciado, começama traçar seus signos para <strong>da</strong>r vazão a energias criadoras cuja fonteinspiradora é, <strong>de</strong> maneira preferencial, a própria experiência <strong>de</strong> sobrevivernos espaços marginais e marginalizados <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional. É oque explica o fato <strong>de</strong> o movimento ser integrado por autores que, <strong>em</strong>virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong> ou condição social, se apresentam como favelados,ex-presidiários, <strong>de</strong>tentos, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregados, índios, negros, nor<strong>de</strong>stinos,rappers, m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> bairro ou <strong>de</strong> pescadores, grafiteiros,


40 Fernando Villarraga Eslavaenfim, como seres integrados no cotidiano violento ou miserável do na<strong>da</strong>glamouroso mundo periférico. Daí que o marginal <strong>de</strong>ssa literatura leve <strong>ao</strong>centro <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> crítica o probl<strong>em</strong>a que gera a impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong>um adjetivo tão carregado <strong>de</strong> valor sociológico, pois, como é óbvio gramaticalmente,dá <strong>ao</strong> substantivo que acompanha uma dimensão assazdiferencia<strong>da</strong> <strong>da</strong> que costuma ter entre as elites letra<strong>da</strong>s.Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que esse adjetivo comporta é a vonta<strong>de</strong> radical <strong>de</strong>colocar <strong>em</strong> xeque o direito <strong>de</strong> exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que os setores heg<strong>em</strong>ônicos<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> teriam para <strong>em</strong>pregar a palavra <strong>escrita</strong> na sua articulaçãoliterária, porque para o movimento o que importa é, como fica claro noseu manifesto inaugural, reverter um processo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> quinhentosanos que soterrou o direito à voz dos que a história na<strong>da</strong> oficial do paísproclama como os vencidos. Então, é a forte e reprimi<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> falarescrito o que impulsiona o <strong>assalto</strong> <strong>ao</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>da</strong> palavra, porque essa ação,que é mais que literária, torna possível, segundo a própria visão dos sujeitosmarginais, traduzir no “nosso vocabulário que é muito precioso” o silenciado“grito do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro povo brasileiro”. A <strong>de</strong>claração é contun<strong>de</strong>nte einequívoca. Não há o menor indício <strong>de</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>princípios que norteia o movimento. Daí que nela se <strong>de</strong>staqu<strong>em</strong> <strong>de</strong> maneiraimediata duas questões primordiais: por um lado, uma concepçãoparticular do que seria a natureza e a função <strong>da</strong> literatura como prática<strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>; e, por outro, a intenção expressa <strong>de</strong> arquitetar a autorepresentaçãoatravés <strong>de</strong> enunciados textuais que se apresentam comoliterários s<strong>em</strong> aparentes mediações externas. Não se trata <strong>de</strong> algo novona história dos movimentos artísticos e culturais, é claro. Porém, <strong>da</strong>do oethos probl<strong>em</strong>ático que envolve, essas questões merec<strong>em</strong> ser analisa<strong>da</strong>s<strong>de</strong> perto, <strong>em</strong> razão, especialmente, <strong>de</strong> como vêm sendo enfrenta<strong>da</strong>s peloolhar acadêmico ou jornalístico.A primeira questão coloca mais uma vez na mesa <strong>de</strong> discussão, agorasob um prisma diverso, o sentido <strong>de</strong> se caracterizar a produção literária apartir do compromisso inevitável que teria com uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,a dos setores subalternos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, só que tendo comoagentes responsáveis os próprios sujeitos que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as margens sociais ehumanas a vão constituindo com suas <strong>escrita</strong>s heterogêneas. Aspecto <strong>de</strong>vital importância para a <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> suas t<strong>em</strong>áticas e linguagens, comas que irão se consoli<strong>da</strong>r discursos cujo teor literário parece estar ligado


<strong>Literatura</strong> marginal 41também a outros recursos expressivos, <strong>da</strong>do o vínculo estreito que mantémcom a cultura <strong>de</strong> rua <strong>de</strong> novas tribos urbanas. A segun<strong>da</strong> conduz, porsua vez, <strong>ao</strong> conhecido <strong>de</strong>bate que se inaugura com a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> sobrea pertinência e a vali<strong>de</strong>z <strong>de</strong> executar a representação do outro, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong>se projeta como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>quele que é passível <strong>de</strong> ser transposto nosuniversos simbólicos e artísticos por supostamente carecer dos mecanismosverbais do hom<strong>em</strong> letrado, tal como se registra, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong>algumas <strong>da</strong>s <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s literaturas populares, que escritores oriundos<strong>da</strong>s classes médias subscrev<strong>em</strong> por suposta soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica comas classes oprimi<strong>da</strong>s. E aqui não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar por seucaráter ilustrativo os polêmicos CPCs <strong>da</strong> UNE na época <strong>da</strong> ditadura militarcom suas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>de</strong> uma estética <strong>ao</strong> serviço <strong>da</strong> revolução popular 6 .A tese fun<strong>da</strong>mental que os sustenta é a do artista iluminado, como arautodos homens que, por sua própria condição histórica, não po<strong>de</strong>m setransformar <strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros sujeitos <strong>de</strong> sua representação política e artística.Enfim, duas questões que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> imediatamente <strong>ao</strong> que pareceser o cerne <strong>da</strong> probl<strong>em</strong>ática que acompanha a literatura marginal com suatoma<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição sobre as tarefas que <strong>de</strong>ve cumprir e o sentido muitomais que simbólico que a i<strong>de</strong>ntifica.Ambas as questões interliga<strong>da</strong>s agora na <strong>em</strong>issão <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong>juízos valorativos por parte <strong>de</strong> certas vozes esclareci<strong>da</strong>s, as quais procurama qualquer custo vali<strong>da</strong>r ou invali<strong>da</strong>r, imbuí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> um aparenterigor teórico e crítico, as manifestações do fenômeno marginal. Porém,as argumentações apresenta<strong>da</strong>s terminam divorcia<strong>da</strong>s, paradoxalmente,pela forte tendência a colocar <strong>em</strong> relevo as hipotéticas limitações <strong>de</strong>seus discursos <strong>ao</strong> ser<strong>em</strong> postos <strong>em</strong> confronto com os que assinam ascorrentes canônicas mo<strong>de</strong>rnas, <strong>da</strong> ânsia hermenêutica que <strong>em</strong> hipóteseas motiva. Em tal sentido, resulta significativo o fato <strong>de</strong> se assinalarquase <strong>de</strong> modo consensual o seguinte: seja o predomínio do documentalsobre o estético que nelas se percebe, isto é, as <strong>de</strong>ficiências ou imperíciasque, apesar <strong>da</strong> vali<strong>de</strong>z outorga<strong>da</strong> <strong>ao</strong> gesto e à substância que assustenta, terminam r<strong>em</strong>etendo-as <strong>ao</strong> círculo opaco <strong>de</strong> obras e textos quenão po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados parte <strong>da</strong>s altas literaturas; seja o caráter <strong>de</strong>6Para compreen<strong>de</strong>r algumas <strong>de</strong> suas implicações estético-i<strong>de</strong>ológicas po<strong>de</strong>-se confrontar o esclarecedorartigo <strong>de</strong> Marilena Chauí, “Notas sobre cultura popular”, <strong>em</strong> Arte <strong>em</strong> revista.


42 Fernando Villarraga Eslavaautentici<strong>da</strong><strong>de</strong> que supostamente se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> <strong>da</strong> perspectiva <strong>em</strong>prega<strong>da</strong>no tratamento dos assuntos t<strong>em</strong>áticos abor<strong>da</strong>dos, por correspon<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>acordo com o mesmo raciocínio, à experiência direta dos que as produz<strong>em</strong>,<strong>em</strong>bora se formul<strong>em</strong> algumas reservas sobre o fato <strong>de</strong> suas <strong>escrita</strong>s se<strong>de</strong>ixar<strong>em</strong> contaminar por fatores estranhos <strong>ao</strong> mundo subalterno. Com issose entra, então, num terreno bastante pantanoso on<strong>de</strong> se tenta preservar<strong>de</strong> qualquer maneira um conceito ilustrado <strong>de</strong> literatura e, paralelamente,<strong>de</strong>stacar essa espécie <strong>de</strong> essenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> ontológica que distinguiria ofazer dos que <strong>em</strong> termos canhestros recorr<strong>em</strong> <strong>ao</strong> uso <strong>da</strong> <strong>escrita</strong>; o que,conseqüent<strong>em</strong>ente, coloca <strong>de</strong> manifesto muitos dos preconceitos e <strong>da</strong>sambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que i<strong>de</strong>ntificam as ain<strong>da</strong> tími<strong>da</strong>s aproximações críticas àliteratura marginal.Os <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong>ssas visões interpretativas também se faz<strong>em</strong> sentir<strong>em</strong> relação a outros sentidos que teria essa literatura. Porque assim comoalguns reconhec<strong>em</strong> a urgência <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizar as práticas e os usos <strong>da</strong>palavra <strong>escrita</strong>, <strong>em</strong> particular a que se <strong>de</strong>stina à construção e recepção<strong>de</strong> representações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m literária, <strong>ao</strong> mesmo t<strong>em</strong>po não se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>questionar ou <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar as nefastas influências ou contaminações qu<strong>em</strong>ostrariam as vozes <strong>da</strong> periferia no plano <strong>de</strong> seus codificados signoslingüísticos. Parte-se implicitamente <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> pr<strong>em</strong>iss<strong>ao</strong>ntológica <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> pureza expressiva que <strong>de</strong>veria marcar a literaturamarginal. Só ela seria capaz <strong>de</strong> traduzir através <strong>de</strong> sua linguag<strong>em</strong> acontundência <strong>de</strong> certas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar suas camufla<strong>da</strong>sessências, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer as inócuas imagens que as cercam, resultado <strong>da</strong>cui<strong>da</strong>dosa operação executa<strong>da</strong>, sob o pretexto geral <strong>da</strong> informação, poroutros discursos. Os exageros não faltam. E não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar asaporias que se colocam para sua abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> crítica. Por ex<strong>em</strong>plo: a qu<strong>em</strong>pertenceria, por direito natural, no campo <strong>da</strong> ficção narrativa, a tarefa <strong>de</strong>elaborar a representação “genuína” <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> assustadora e banaliza<strong>da</strong>que é a violência urbana? A resposta que algumas cabeças progressistasvêm articulando é fácil <strong>de</strong> adivinhar: <strong>ao</strong>s autores marginais. Qu<strong>em</strong>melhor que eles para <strong>da</strong>r a versão “autêntica” <strong>de</strong> como funciona esse malassolador que perpassa to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira? Elesnasceram e cresceram no meio <strong>de</strong> seus tentáculos mortais, no dia-a-diase enfrentam com ela, conhec<strong>em</strong> b<strong>em</strong> as entranhas do monstro, além <strong>de</strong>ser<strong>em</strong> suas principais vitimas pela ausência do Estado ou a ação corrosiva


<strong>Literatura</strong> marginal 43do <strong>po<strong>de</strong>r</strong> institucional ou do paralelo. Até aí tudo é pacífico. Os porémirromp<strong>em</strong> quando se observa diretamente as obras, no caso certas narrativasromanescas que consegu<strong>em</strong> se projetar no público leitor, com seuspoucos milhares <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plares, num país <strong>de</strong> quase 170 milhões <strong>de</strong> habitantes,passando a conquistar, inclusive, o aval e a audiência <strong>de</strong> respeita<strong>da</strong>sfiguras intelectuais <strong>da</strong> república letra<strong>da</strong>.As fortes objeções que se faz<strong>em</strong>, na base <strong>de</strong> alguns pressupostos <strong>de</strong>aparente natureza sociológica, se concentram no caráter que assumiriamsuas respectivas linguagens. Assim, coloca-se <strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, entre outrascoisas, o grau <strong>de</strong> originali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s representações que os favelados ou exfaveladosrealizam porque estariam dirigi<strong>da</strong>s para o gosto massificado eespetacular <strong>da</strong> classe média, o que neutralizaria seu potencial valor simbólicoe literário, além, é claro, <strong>de</strong> acordo com o mesmo raciocínio, <strong>de</strong>respon<strong>de</strong>r às diabólicas maquinações <strong>da</strong> indústria cultural cuja lógicaimpõe certos mo<strong>de</strong>los bastardizados para manter <strong>em</strong> ação as leis do mercado.O curioso é que <strong>em</strong> tais enfoques nunca se oferece qualquer indício<strong>de</strong> como se chega à i<strong>de</strong>ntificação do referido gosto. Supõe-se que <strong>em</strong>razão <strong>da</strong>s t<strong>em</strong>áticas, <strong>da</strong>s técnicas e dos códigos que se registram nas narrativas<strong>em</strong> questão seja possível formular tal tipo <strong>de</strong> conclusões. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,o que parece sustentar <strong>de</strong> forma tácita as afirmações sobre a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>que existiria entre as obras dos marginais e as expectativas <strong>de</strong>um público leitor padronizado, é a tese <strong>de</strong> que, apesar dos propósitos queo movimento manifesta no referente à afirmação <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> artísticae cultural, seus expoentes não consegu<strong>em</strong> escapar às armadilhas <strong>da</strong>racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva imposta pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo. A exigência<strong>de</strong> se estruturar uma <strong>escrita</strong> capaz <strong>de</strong> preservar sua in<strong>de</strong>pendência eautonomia projetando-se como corolário, pois, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> quiçá do quese assinala como i<strong>de</strong>al estético, persiste a idéia <strong>de</strong> que ain<strong>da</strong> há condiçõespara se conformar representações literárias livres <strong>de</strong> qualquer interferênciamun<strong>da</strong>na. Acredita-se no imperativo categórico <strong>de</strong> que as obrasdo movimento teriam <strong>de</strong> ser a manifestação mais fi<strong>de</strong>digna do mundoperiférico e marginal.Portanto, se Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus ou Capão Pecado obtêm sucesso <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s,é porque não há dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que a t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> violência é trabalha<strong>da</strong>nessas duas obras sob a perspectiva <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que a converte <strong>em</strong>espetáculo, o que apagaria sua respectiva legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> artística. Ain<strong>da</strong>


44 Fernando Villarraga Eslavamais. A própria a<strong>da</strong>ptação cin<strong>em</strong>atográfica <strong>da</strong> primeira viria confirmarque se trata <strong>de</strong> um artefato <strong>de</strong> fácil manipulação mercadológica porquereúne os ingredientes básicos para seu consumo fácil por parte <strong>de</strong> umpúblico idiotizado. Com absoluta certeza o mesmo que <strong>de</strong>vora os livros <strong>de</strong>Lair Ribeiro ou <strong>de</strong> Paulo Coelho. Dois autores que surt<strong>em</strong> <strong>de</strong> best sellers asprateleiras <strong>de</strong> livrarias especializa<strong>da</strong>s e <strong>de</strong> shoppings centers. As quaistambém oferec<strong>em</strong> como novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s imperdíveis os títulos que aju<strong>da</strong>m aconsoli<strong>da</strong>r o filão <strong>da</strong> “mo<strong>da</strong> literária <strong>da</strong> estação”: a que fornec<strong>em</strong> os autores<strong>da</strong>s prisões. É que os meandros psicológicos <strong>da</strong> atual classe média<strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser alimentados, segundo a tese quase explícita que sustenta essavisão crítica, com o “exotismo” do que existe <strong>ao</strong> lado, mas só se conhecepor referências imagéticas, <strong>em</strong> especial televisivas. Daí que M<strong>em</strong>órias <strong>de</strong>um sobrevivente, Diário <strong>de</strong> um <strong>de</strong>tento ou Carandiru, os mo<strong>de</strong>los referenciaisdo novo gênero, a literatura prisional, sejam absorvidos vorazmente por talsetor social na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que satisfaz<strong>em</strong> sua curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> mórbi<strong>da</strong> pelosheróis do banditismo. Curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> que se reforça quando o último <strong>de</strong>sseslivros é a<strong>da</strong>ptado igualmente à tela do cin<strong>em</strong>a. Assim, tudo indicaria quese trata <strong>de</strong> um fenômeno orquestrado por uma combinação <strong>de</strong> fatores quevão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o simples interesse comercial, passando pela vonta<strong>de</strong>exibicionista dos agentes implicados, os anseios consumistas <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosgrupos sociais, até, logicamente, as operações i<strong>de</strong>ológicas que efetuamos que precisam preservar a or<strong>de</strong>m estabeleci<strong>da</strong>. Como diria o poeta:o círculo se fecha. Porque nessa perspectiva tudo fica submetido <strong>em</strong>última instância à dinâmica feroz do gran<strong>de</strong> irmão que opera sob as maisdiversas roupagens.Por outro lado, <strong>de</strong> acordo com a mesma tese crítica, os efeitosnocivos que exerc<strong>em</strong> sobre essa produção literária os aspectos referidossão agravados também pelas influências diretas ou indiretas queseus respectivos autores receb<strong>em</strong> <strong>da</strong> produção narrativa <strong>de</strong> famososescritores ilustrados, cuja abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> violência contacom uma boa tradição, pois, como assinalam estatísticas tácitas, nuncaexplicita<strong>da</strong>s, mas s<strong>em</strong>pre esgrimi<strong>da</strong>s, suas obras se tornaram ver<strong>da</strong><strong>de</strong>irosclássicos para os leitores homogeneizados <strong>da</strong> classe média. Aliás,classe que se converteu <strong>em</strong> bo<strong>de</strong> expiatório <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s mazelasculturais. É o que v<strong>em</strong> permitindo <strong>em</strong>itir o juízo con<strong>de</strong>natório sobre asuposta artificiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> corrente ficcional que inaugurou Rub<strong>em</strong>


<strong>Literatura</strong> marginal 45Fonseca <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primeiros livros, e que encontra nos seus atuais seguidores,Patrícia Melo e Marçal Aquino, para não esten<strong>de</strong>r a lista, umalinha <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> associa<strong>da</strong> a uma atitu<strong>de</strong> estética vouyerista, com aque se dá o registro <strong>da</strong>s peripécias e aventuras <strong>de</strong> seres marginais sob osartifícios <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> próxima dos mo<strong>de</strong>los cin<strong>em</strong>atográficos. Daía crescente banalização que suas obras concretizariam <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática <strong>da</strong>violência como el<strong>em</strong>ento que estrutura os enredos narrativos. Inclusive,chega-se a referir <strong>da</strong>dos biográficos do autor para explicar o porquê <strong>da</strong>ótica <strong>de</strong> seus narradores e do tratamento dispensado às personagens, istoé, <strong>da</strong>dos cuja ressonância se faria sentir no fascínio pelas variantes <strong>da</strong>violência que se revela como uma constante <strong>de</strong> suas ficções, só que perpassa<strong>da</strong>spor uma espécie <strong>de</strong> cegueira pr<strong>em</strong>edita<strong>da</strong> para penetrar no âmago<strong>de</strong> dita t<strong>em</strong>ática. Por isso, a conclusão mais evi<strong>de</strong>nte a que se chega é a<strong>de</strong> que, i<strong>de</strong>ntificados seus principais procedimentos literários, a obra doreferido escritor respon<strong>de</strong> a dois fatores: por uma parte, <strong>ao</strong> exotismo comque trabalha <strong>em</strong> termos literários o universo do crime e <strong>de</strong> seus protagonistas;por outra, <strong>ao</strong>s interesses ditados pelas estratégias <strong>de</strong> um mercadoeditorial que ardilosamente explora o fenômeno <strong>da</strong> violência tanto urbanacomo social. Enfim, tudo indica que ninguém está livre <strong>de</strong> culpa nessejogo <strong>da</strong> literatura que focaliza a t<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> questão, pois n<strong>em</strong> os marginaisn<strong>em</strong> os ilustrados conseguiriam elaborar a representação autêntica eresponsável <strong>da</strong> mesma, sobretudo pela carência <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vistaartístico capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira essência do que gera e promoveas práticas <strong>da</strong> violência na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira. Quase que se <strong>po<strong>de</strong>r</strong>iadizer, então, segundo essa linha <strong>de</strong> raciocínio, que a literatura marginal àsvezes chega a se tocar ou misturar com a que produz<strong>em</strong> alguns escritoresna<strong>da</strong> marginais, <strong>ao</strong> colocar ambas <strong>em</strong> circulação imagens similares oupróximas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que se procura representar. Não haveria uma linhadivisória para sua distinção clara como manifestações <strong>de</strong> sujeitos e <strong>de</strong>estéticas pertencentes a esferas diferencia<strong>da</strong>s. O samba do crioulo doidointerpretado e <strong>da</strong>nçado num salão <strong>de</strong> festas bastante promíscuo, eis aimag<strong>em</strong> que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas apreciações críticas.Perante esse quadro sintético resulta mais que pertinente perguntar,então: que é o que se nomeia <strong>em</strong> <strong>de</strong>finitivo com a expressão literaturamarginal? E, por conseqüência, quais seriam suas reais significações e sentidos?As respostas, aparent<strong>em</strong>ente simples, obrigam a consi<strong>de</strong>rar que se


46 Fernando Villarraga Eslavatrata <strong>de</strong> um movimento articulado cujas ramificações artísticas, culturaise sociais o tornam um tanto complexo. Por diversos motivos. A começarpelo fato <strong>de</strong> que, apesar <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> maioria <strong>de</strong> seus integrantes proce<strong>de</strong>rdos mesmos setores marginalizados, os produtos que colocam <strong>em</strong> circulaçãoatravés <strong>de</strong> livros, <strong>de</strong> revistas periódicas ou <strong>de</strong> sites <strong>da</strong> internet, sãobastante heterogêneos <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> recursos expressivos, <strong>de</strong> linguagense <strong>de</strong> técnicas literárias, com o que se quebra a aparente homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>que à primeira vista teria. Basta confrontar, por ex<strong>em</strong>plo, as mencionadosobras <strong>de</strong> Paulo Lins e <strong>de</strong> Ferréz, para perceber como Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus eCapão Pecado, transitando os mesmos âmbitos t<strong>em</strong>áticos, são dois projetosliterários com diferenças visíveis nas suas respectivas soluções ficcionais.E aqui resulta oportuno incorporar um <strong>da</strong>do sociológico inevitável. Nãoporque explique automaticamente ditas diferenças, mas porque aju<strong>da</strong> acompreen<strong>de</strong>r alguns aspectos <strong>de</strong> seus processos criativos, cujos resultadoso traduz<strong>em</strong> <strong>de</strong> certa maneira. Paulo Lins, ex-morador <strong>da</strong> favela, está vinculado<strong>ao</strong> território <strong>da</strong> cultura letra<strong>da</strong> <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua própria trajetóriaacadêmica como profissional <strong>da</strong> antropologia. Ferréz, atrelado ain<strong>da</strong>às condições <strong>de</strong> um bairro <strong>de</strong> periferia, se articula <strong>ao</strong> universo letradoseguindo o roteiro meio circunstancial <strong>de</strong> alguns autodi<strong>da</strong>tas. Os dois setornam escritores <strong>em</strong> contextos e condições na<strong>da</strong> similares. Não é poracaso que <strong>em</strong> relação <strong>ao</strong> segundo título <strong>de</strong>sse autor, Manual prático doódio, se evi<strong>de</strong>ncie, numa leitura ain<strong>da</strong> superficial, um domínio mais apurado<strong>da</strong> <strong>escrita</strong> romanesca. Porém, s<strong>em</strong> que tenham <strong>de</strong>saparecido os traçospeculiares que até o momento caracterizam uma narrativa que pareceoscilar entre o test<strong>em</strong>unho e o ficcional, entre uma linguag<strong>em</strong> <strong>de</strong> teorambivalente e <strong>de</strong> códigos híbridos, como ocorre com muitos outros textosmarginais. Daí a plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes e <strong>de</strong> <strong>escrita</strong>s que po<strong>de</strong>m seri<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s sob a rubrica genérica <strong>de</strong> literatura marginal, o que não apaga,<strong>em</strong> momento algum, o caráter <strong>de</strong> movimento que ela assumiu <strong>de</strong>s<strong>de</strong>sua programa<strong>da</strong> manifestação inaugural. E é esse caráter que obriga areconhecer que se existe uma aparente uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> princípios, as suasrealizações não são automaticamente uniformes, apesar <strong>da</strong>s potenciaiss<strong>em</strong>elhanças <strong>da</strong>s linguagens <strong>em</strong>prega<strong>da</strong>s, n<strong>em</strong> idênticas as respectivassignificações que passam a ter como construções literárias.To<strong>da</strong>via, não se po<strong>de</strong> ignorar que a literatura marginal é, com todos osreparos que se lhe possam fazer <strong>da</strong> perspectiva crítica heg<strong>em</strong>ônica, uma


<strong>Literatura</strong> marginal 47toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição por parte <strong>de</strong> sujeitos subalternos, que ela é el<strong>em</strong>entosubstancial <strong>de</strong> um projeto que vai além do literário, pois, além <strong>de</strong> mantervínculos estreitos com algumas expressões culturais <strong>de</strong> rua como o hip-hope a arte dos grafiteiros, busca se constituir <strong>em</strong> porta-voz estético e i<strong>de</strong>ológicodos que s<strong>em</strong>pre foram silenciados e hoje integram o “povo <strong>da</strong> periferia/favela/gueto”. Essa é a razão substancial que a impulsiona enquanto movimentoe lhe confere seus principais signos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social. E o que,justamente, vai r<strong>em</strong>eter <strong>ao</strong> núcleo probl<strong>em</strong>ático <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens críticasque tentam interpretar os sentidos <strong>de</strong> práticas escriturais cuja pr<strong>em</strong>issa é a<strong>de</strong> ser<strong>em</strong> auto-representações <strong>da</strong> condição e <strong>da</strong> experiência existencial <strong>de</strong>seus próprios artífices. Por isso, a questão nevrálgica que se coloca <strong>de</strong> maneiraprioritária, como foi dito antes, é a <strong>de</strong> estabelecer <strong>em</strong> termos judicativose às vezes absolutos qual seria o grau <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas expressões,pelo fato concreto <strong>de</strong> os subalternos assumir<strong>em</strong> a própria voz no terreno <strong>da</strong><strong>escrita</strong>, como se isto <strong>de</strong>cretasse, automaticamente, a nuli<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s outrasformas <strong>de</strong> representação literária nas que estes figuravam como objetosreferenciais. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a preocupação fun<strong>da</strong>mental que motiva essasabor<strong>da</strong>gens oscila entre as cobranças canônicas e as probabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s simbólicasque <strong>em</strong>anam do <strong>de</strong>bate atual <strong>em</strong> torno dos rumos <strong>da</strong> cultura no mundocont<strong>em</strong>porâneo. Sobretudo, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que as teses sobre a supostacrise ou falência <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> serv<strong>em</strong> <strong>de</strong> pressuposto para reafirmar ouquestionar as diversas posturas críticas <strong>em</strong> jogo, ora as que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m oprincípio <strong>da</strong> universali<strong>da</strong><strong>de</strong> que to<strong>da</strong> obra <strong>de</strong>ve atingir para ter valor comodiscurso artístico, ora as que <strong>de</strong>claram o repúdio a tal princípio comoparâmetro chave <strong>de</strong> valoração estética <strong>ao</strong> ser caracterizado como meroconstruto do hom<strong>em</strong> branco oci<strong>de</strong>ntal. Daí as opiniões críticas sobre a literaturamarginal estar<strong>em</strong> inseri<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> modo quase inevitável, ain<strong>da</strong> quen<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> termos explícitos, no marco teórico contextual que se produzcom o fenômeno do pós-mo<strong>de</strong>rnismo.Aqui resulta oportuno um pequeno parêntese para in<strong>da</strong>gar se não háantece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> subalternos que tenham assaltado o <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>da</strong> <strong>escrita</strong>antes. Ou se se trata <strong>de</strong> um fato inédito, realmente. A resposta leva arecor<strong>da</strong>r que <strong>em</strong> certos momentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> literária brasileira apareceramalgumas vozes dissonantes que <strong>de</strong>spertam profundo interesse <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong> ou condição social. Basta referir, por ex<strong>em</strong>plo, que até hojese discute qual seria o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro valor <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Lima Barreto, pelos


48 Fernando Villarraga Eslavasinais <strong>ao</strong> parecer tão pouco literários que singularizam sua <strong>escrita</strong>, resultado<strong>da</strong> s<strong>em</strong>pre assinala<strong>da</strong> pertença do escritor <strong>ao</strong> universo suburbano.Uma situação que, com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s variantes, parece repetir-se com afigura e a narrativa <strong>de</strong> João Antônio. Um dos raros nomes que os escritoresmarginais <strong>de</strong>stacam como mo<strong>de</strong>lo referencial obrigatório para sua produção.Porém, trata-se <strong>de</strong> dois autores cujas respectivas obras já foramassimila<strong>da</strong>s <strong>ao</strong> panteão <strong>da</strong> literatura nacional, com to<strong>da</strong>s as reservas quea historiografia e a crítica ain<strong>da</strong> possam manter a seu respeito.Mais <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático, para o que se tenta discutir sobre a literatura <strong>em</strong>questão, seria o caso <strong>de</strong> Carolina Maria <strong>de</strong> Jesus, a autora do hoje clássicoQuarto <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo, por traduzir o processo <strong>de</strong> qu<strong>em</strong>, vivendo nas margens<strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> hierárquica, enfrenta um intenso conflito <strong>ao</strong> seapropriar <strong>da</strong> palavra <strong>escrita</strong> para sua conversão <strong>em</strong> literatura, s<strong>em</strong> conseguirque sua obra se ajuste plenamente às exigências <strong>da</strong> cultura letra<strong>da</strong>.Porque, apesar <strong>de</strong> ter vencido as barreiras para <strong>po<strong>de</strong>r</strong> editar seus livros,<strong>da</strong>s simpatias que <strong>de</strong>spertou <strong>em</strong> alguns escritores e intelectuais <strong>de</strong> relevonacional, <strong>de</strong> uma relativa fortuna crítica, to<strong>da</strong> sua obra está carrega<strong>da</strong><strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> sina negativa que se mistura com os rumos <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>pessoal. Como ocorre também com Lima Barreto e João Antônio. Umacoincidência que termina abrindo espaço para a hipótese <strong>de</strong> que nos trêsa vi<strong>da</strong> se torna extensão do que se escreve, <strong>de</strong> que a palavra estáconsubstancia<strong>da</strong> com a existência. Só que tal coincidência não leva <strong>ao</strong>mesmo tratamento crítico <strong>da</strong>s linguagens que os i<strong>de</strong>ntificam, porque obalance indica, quando se olham os juízos sobre ca<strong>da</strong> um, que a <strong>de</strong> CarolinaMaria <strong>de</strong> Jesus teria um sentido mais sociológico que literário 7 . Dequalquer maneira, o que importa ressaltar é que, seja qual for a dimensãoartística <strong>da</strong><strong>da</strong> a suas respectivas obras, elas se projetam como fatos individuaise isolados com diferentes repercussões no cenário literário brasileiro,isto é, não respon<strong>de</strong>m a uma intenção programática ou a um gestoreivindicatório <strong>de</strong> um grupo social, n<strong>em</strong> à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> conformar umaalternativa frente às práticas literárias dos setores cultos e dominantes.7Alguns trabalhos recentes sobre a produção <strong>da</strong> escritora começam a inverter essa visão <strong>ao</strong> tentar<strong>de</strong>cifrar os alicerces <strong>de</strong> sua estética e seus processos <strong>de</strong> criação literária. Po<strong>de</strong>-se confrontar, porex<strong>em</strong>plo, o artigo <strong>de</strong> Elzira Divina Perpétua: “Aquém do Quarto <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo: a palavra <strong>de</strong> CarolinaMaria <strong>de</strong> Jesus nos manuscritos <strong>de</strong> seu diário”.


<strong>Literatura</strong> marginal 49Enfim, a visita panorâmica <strong>ao</strong> salão <strong>da</strong> tími<strong>da</strong> e polêmica recepçãocrítica <strong>da</strong> literatura marginal indica que ain<strong>da</strong> não se acharam as chavesnecessárias para uma leitura capaz <strong>de</strong> reconhecer as especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s e ossentidos <strong>de</strong> suas expressões, que falta (re)<strong>de</strong>finir os itens fun<strong>da</strong>mentaisque <strong>de</strong>v<strong>em</strong> orientar a in<strong>da</strong>gação hermenêutica <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> suas heterogêneas<strong>escrita</strong>s. Em tal sentido, para impl<strong>em</strong>entar a proposta <strong>de</strong> elaboração<strong>de</strong> uma agen<strong>da</strong> crítica inicial torna-se prioritário observar <strong>de</strong> formaconcreta como a tecnologia <strong>da</strong> palavra <strong>escrita</strong> é incorpora<strong>da</strong> por sujeitosque, por estar<strong>em</strong> inscritos <strong>em</strong> sua gran<strong>de</strong> maioria nas margens do mundosocial, como que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>m <strong>de</strong> suas sintéticas biografias, mantêmfortes ligações com os registros <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> e os objetos <strong>da</strong> culturaimagética. Um aspecto <strong>de</strong> vital importância que até agora não foi consi<strong>de</strong>rado<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s suas dimensões por aqueles que vêm <strong>da</strong>ndo os veredictoscríticos, inclusive porque às vezes n<strong>em</strong> figura nas argumentações sobreformas textuais cuja racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva parece indicar globalmentepoucas ligações com as que i<strong>de</strong>ntificam a tradição letra<strong>da</strong>, <strong>em</strong>boratambém sejam estrutura<strong>da</strong>s com os recursos e os procedimentos <strong>da</strong> palavra<strong>escrita</strong>. Quiçá seja o que explique alguns dos traços particulares ecaracterísticos <strong>de</strong> suas linguagens claras e diretas.Por outro lado, <strong>em</strong> relação direta com o aspecto anterior, é necessárioanalisar como as <strong>escrita</strong>s dos subalternos se <strong>de</strong>frontam com as<strong>de</strong>man<strong>da</strong>s e as convenções que impõ<strong>em</strong> as gramáticas dos setores cultose heg<strong>em</strong>ônicos. Porque não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser significativo que <strong>em</strong> muitostextos publicados sob a rubrica marginal seja visível uma certa correçãogramatical, um apego às exigências <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> norma culta <strong>da</strong>língua, como se seus autores tivess<strong>em</strong> um domínio bastante amadurecido<strong>da</strong> expressão <strong>escrita</strong>, o que, é possível convir, resulta um tantoestranho quando se constata a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social dos mesmos. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,é como se a posse <strong>da</strong> palavra <strong>escrita</strong> implicasse um insolúvelparadoxo, qu<strong>em</strong> sabe uma armadilha <strong>da</strong> qual não é possível escapar.Porque se com ela os subalternos po<strong>de</strong>m se afirmar enquanto sujeitos <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> literária, conquistar um lugar <strong>ao</strong> sol nas flexíveis fronteiras do atualcampo literário, usufruir o direito <strong>de</strong> exibir seus nomes nas promíscuasprateleiras do mercado <strong>de</strong> bens simbólicos, isto é, po<strong>de</strong>m assumir acondição <strong>de</strong> escritores oriundos e i<strong>de</strong>ntificados com as margens <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,s<strong>em</strong> esperar qualquer permissão proce<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> ação solidária


50 Fernando Villarraga Eslava<strong>de</strong> uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> ou <strong>da</strong>s benesses oficiais; <strong>ao</strong> mesmo t<strong>em</strong>po,então, esses sujeitos estariam presos à lógica dominante do universoletrado, às expectativas e às exigências <strong>da</strong> própria cultura que s<strong>em</strong>preos silenciou ou se nega a sua aceitação <strong>de</strong>finitiva.O probl<strong>em</strong>a é que se a literatura marginal renuncia a manter suafisionomia lingüística e cultural, <strong>ao</strong> fazer concessões <strong>ao</strong> padrão culto namedi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que apaga <strong>da</strong> <strong>escrita</strong> o que se projeta como erro ou <strong>de</strong>ficiência,termina <strong>de</strong> alguma forma por revogar <strong>em</strong> parte a natureza <strong>de</strong> suaslinguagens <strong>de</strong>sengonça<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> que pelo imperioso <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> obter opotencial título <strong>de</strong> literárias. Qu<strong>em</strong> sabe não seja isso o que está <strong>em</strong>butidono referido “manifesto <strong>de</strong> abertura” quando se proclama <strong>em</strong> tom utópicoque “estamos lutando para que no futuro os autores do gueto sejam tambéml<strong>em</strong>brados e eternizados”. Contudo, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser postos no patamardo que transcen<strong>de</strong> artisticamente não resolve a questão <strong>da</strong>s profun<strong>da</strong>stensões que suas <strong>escrita</strong>s registram, pois a aparente correção gramatical<strong>de</strong> algumas não soterra seu forte hibridismo, sobretudo o que gera a presençapouco visível <strong>de</strong> mecanismos expressivos pertencentes <strong>ao</strong> território<strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> e/ou <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos constitutivos <strong>da</strong> cultura imagética <strong>em</strong>assifica<strong>da</strong>. Itens cuja relevância obriga a sua inclusão na referi<strong>da</strong> agen<strong>da</strong>crítica. Além, é claro, do que diz respeito <strong>ao</strong> sentido simbólico <strong>de</strong>orquestrar o <strong>assalto</strong> <strong>ao</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>da</strong> <strong>escrita</strong> para postular que “estamos naárea e já somos vários”, apesar <strong>de</strong> saber<strong>em</strong> que nas margens <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>brasileira muito se fala e se olha e quase nunca se lê. O paradoxo é absoluto.Então: para o quê ou para qu<strong>em</strong> se escreve? Eis a questão substancialque ain<strong>da</strong> precisa ser in<strong>da</strong>ga<strong>da</strong>! Porque, como diz a epígrafe <strong>de</strong> Andrédu Rap, a título <strong>da</strong> razão que a justifica: “a literatura é muito gran<strong>de</strong> lá<strong>de</strong>ntro, é infinita”. Não apenas na prisão como <strong>em</strong> todos os sertões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>brasileira. E a marginal está aí para perturbar a boa ou a má consciência<strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se ocupa <strong>de</strong> fazer o balanço crítico <strong>da</strong>s manifestações literáriascont<strong>em</strong>porâneas.BibliografiaANDRÉ DU RAP. Sobrevivente André du Rap, do Massacre do Carandiru. S.Paulo: Labortexto Editorial, 2002._______. A cultura <strong>da</strong> periferia: <strong>Literatura</strong> marginal – Ato I, Ato II e AtoIII, Caros Amigos, São Paulo: Casa Amarela, s/d, s/d e abril <strong>de</strong> 2004.


<strong>Literatura</strong> marginal 51CHAUÍ, Marilena: “Notas sobre cultura popular”, <strong>em</strong> Arte <strong>em</strong> revista, n.º 3,São Paulo, 1980FERREZ. Capão pecado. 2 ed. São Paulo: Labortexto, 2000._______. Manual prático do ódio. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2003.JOCENIR. Diário <strong>de</strong> um <strong>de</strong>tento: o livro. 2 ed. São Paulo: Labortexto, 2001.LINS, Paulo. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. 2 ed. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2002.MENDES, Luis Alberto. M<strong>em</strong>órias <strong>de</strong> um sobrevivente. São Paulo: Companhia<strong>da</strong>s Letras, 2001.OORNELLAS, Sandro. “5 notas sobre experiência, ‘pobreza’ e exclusão <strong>em</strong>Capão Pecado”, <strong>em</strong> Colóquio ABRALIC 2001: Valores Mercado Política(textos <strong>de</strong> reflexão), Belo Horizonte, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> UFMG, 2001.RODRIGUEZ, Benito Martinez. “Mutirões <strong>da</strong> palavra: literatura e vi<strong>da</strong> comunitárianas periferias urbanas”. In: <strong>Estudos</strong> <strong>de</strong> literatura brasileira cont<strong>em</strong>porânea,n.º 22, Brasília, julho/<strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2003VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>sLetras, 1999.Recebido <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2004.Aprovado <strong>em</strong> outubro <strong>de</strong> 2004.Fernando Villarraga Eslava – “<strong>Literatura</strong> marginal: o <strong>assalto</strong> <strong>ao</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>da</strong> ewcrita”. <strong>Estudos</strong> <strong>de</strong><strong>Literatura</strong> Brasileira Cont<strong>em</strong>porânea, nº 24. Brasília, julho-<strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2004, pp. 35-51.

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