Roberto Carlos no altar de Nelson Leirner - ArtCultura
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22Cf. GALERIA BRITO CIMI-NO. <strong>Nelson</strong> <strong>Leirner</strong>: arte e nãoarte. Texto <strong>de</strong> Ta<strong>de</strong>u Chiarelli.São Paulo: Taka<strong>no</strong>, 2002, p.37.Na fila, o espectadorDuas vocações da arte contemporânea já estavam presentes em Adoração.A primeira diz respeito a sua necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformar o espectadorem agente ativo e experimentador. A segunda está diretamente ligada àobsessiva tensão entre artistas e instituições <strong>de</strong> arte. Para compreen<strong>de</strong>rmelhor como ambas afetaram a produção da obra em questão, precisaremos<strong>no</strong>s aproximar <strong>de</strong> outras “obras” produzidas antes e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1966.O momento em que <strong>Leirner</strong> passa a <strong>de</strong>spertar a atenção da críticaespecializada e dos pares coincidiu com o golpe militar <strong>de</strong> 1964, o queaguçou o sentido interativo e crítico <strong>de</strong> seu trabalho, que antes possuíaincursões na abstração informal. 22 O <strong>no</strong>vo regime político trouxe <strong>de</strong>safiosGrupo Rex,da esquerda para direita,em primeiro pla<strong>no</strong>: Barros,Lee, <strong>Leirner</strong> e <strong>Carlos</strong> Fajardo. Emsegundo pla<strong>no</strong>: Marcelo Nitschee José Resen<strong>de</strong>. No fundo, TeresaQuié e a obra Adoração. São Paulo,1966.204<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 11, n. 19, p. 197-209, jul.-<strong>de</strong>z. 2009
conceituais e políticos. Em 1965, uma obra sua fora retirada da mostraPropostas 65, 23 colocando-o, pela primeira vez, diante da censura. Naquelemesmo a<strong>no</strong>, ele apresenta seus “meta-objetos”, <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro início <strong>de</strong> umafase inquieta, ácida e provocadora, na Galeria Atrium — sempre em SãoPaulo — ao lado <strong>de</strong> Geraldo <strong>de</strong> Barros. Em 1966, ao lado <strong>de</strong> Barros e <strong>de</strong>Wesley Duke Lee, <strong>Leirner</strong> funda o grupo Rex. 24O grupo tinha como finalida<strong>de</strong> construir formas <strong>de</strong> divulgação daarte longe do circuito <strong>de</strong> galerias, que, segundo eles, incluía, também, acrítica especializada e as instituições oficiais <strong>de</strong> cultura. Para dar expressãoàs inquietações, o grupo abriu a Rex Gallery & Sons, seguida da publicaçãodo Rex Time e da realização <strong>de</strong> encontros, palestras e happenings <strong>de</strong> sotaqueneodadaísta.Graças ao Rex o artista pô<strong>de</strong> produzir exercícios e obras criativas cujoobjetivo era provocar interação entre o público e a obra. 25 Ao artista cabia“procurar um modo <strong>de</strong> dar ao indivíduo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ‘experimentar’,<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser espectador para ser participante”, segundo <strong>Leirner</strong>. 26 Além<strong>de</strong> Adoração, a obra mais <strong>no</strong>tável nesse tocante foi o happining Exposição-nãoexposição.Em 1967, <strong>Leirner</strong> anunciava que, em sua exposição individual, asobras expostas po<strong>de</strong>riam ser levadas pelo público <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se conseguisseretirá-las do lugar — as peças estavam meticulosa e obstinadamente fixadas—, para isso ele oferecia serras, martelos e outros instrumentos. No dia daabertura da mostra, uma multidão invadiu a Rex Gallery & Sons levandoobras ou <strong>de</strong>struindo as que não conseguiram carregar, numa balbúrdia eagressivida<strong>de</strong> que estavam em consonância com a postura antimercadológicado artista. 27Da mesma forma que Exposição-não-exposição buscava a interação nãoconvencional com seu público, <strong>de</strong>monstrava, também, sua antipatia pelaarte enquanto circuito e suas instituições, ao subverter o príncipio comercialdas exposições, doando as obras. É assim que naquele mesmo 1967, oartista provoca o circuito da arte, ao enviar para IV Salão <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna<strong>de</strong> Brasília um porco empalhado com pernil amarrado <strong>no</strong> pescoço <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> um engradado <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. A inscrição <strong>de</strong> O porco empalhado, comoexplicou o artista, tinha uma finalida<strong>de</strong> provocativa e visava, <strong>de</strong> modoconfesso, ser recusado pelo júri. Contudo, o corpo jurado (composto porMário Pedrosa, Fre<strong>de</strong>rico Moraes, Walter Zanini, Mário Barata e Clarivaldo Prado Valares) aceitou-o, fazendo com que o artista indagasse, em artigopublicado pelo Jornal da Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, sobre quais os critérios adotadospelos jurados para incluí-lo. Como <strong>no</strong>s esclarece Agnaldo Farias, <strong>Leirner</strong>“tor<strong>no</strong>u-se o primeiro não recusado <strong>de</strong> um salão a indagar ao júri, pelojornal, sobre quais tinham sido os critérios utilizados para sua seleção” 28 .O artista esclareceu a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois que:Ia ser um trabalho político. Era um porco empalhado numa gra<strong>de</strong> e tinha umacorrente <strong>no</strong> pescoço e acompanhava um presunto que foi consumido <strong>no</strong> caminho;comeram o presunto e <strong>de</strong>ixaram só a corrente. Essa era a obra. Mas havia um conceitopor trás do trabalho. Era a relação entre o produto industrializado, que era opresunto, e a forma bruta, que era o porco. E a idéia era o porco ir a Brasília. Aceitoou não, ele voltaria, e quando ele voltasse — eu já tinha combinado com um amigomeu — eu iria con<strong>de</strong>corar o porco por sua ida. Agora, como o porco foi aceito, mebateu aquela luz <strong>de</strong> falar com o Ivan Angelo, e ele publicou na página 2 do Jornalda Tar<strong>de</strong> a foto do porco e a frase: “O artista <strong>Nelson</strong> <strong>Leirner</strong> quer saber por que o23Propostas 65 fora inspiradana mostra carioca Opinião 65 eocorreu na Fundação ArmandoÁlvares Penteado, em SãoPaulo, <strong>no</strong> mês <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembrodaquele a<strong>no</strong>, organizada porWal<strong>de</strong>mar Cor<strong>de</strong>iro, FlávioImpério e Sérgio Ferro e contoucom 47 artistas; Cf. PECCINI-NI, Daisy. Figurações. Brasil a<strong>no</strong>s60. São Paulo: Itaú Cultural eEdusp, 1999, p.56.24Juntaram-se aos três <strong>de</strong>s<strong>de</strong>o início: Fre<strong>de</strong>rico Nasser,José Resen<strong>de</strong>, <strong>Carlos</strong> Fajardoe Thomaz Souto Correa; i<strong>de</strong>m,ibi<strong>de</strong>m, p.69 e 72.25<strong>Leirner</strong> esclarece em <strong>de</strong>poimentoao jornal O Estado <strong>de</strong> SãoPaulo, em 1967: “Durante o a<strong>no</strong>em que funcio<strong>no</strong>u, a Rex cumpriuuma missão que estavaestreitamente ligada à espécie<strong>de</strong> pesquisa artística a qual<strong>no</strong>s <strong>de</strong>votamos: a pesquisa dohappening, do acontecimento,da reação do público”, apudGALERIA BRITO CIMINO.op.cit., p.82.26apud FARIAS, Agnaldo. “Ofim da arte segundo <strong>Nelson</strong><strong>Leirner</strong>”. In <strong>Nelson</strong> <strong>Leirner</strong>.Catálogo da mostra retrospectiva.São Paulo: Paço das Artes,1994, p.30.27FARIAS, op.cit. p.38.28FARIAS, op. cit., p.49.A r t i g o s<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 11, n. 19, p. 197-209, jul.-<strong>de</strong>z. 2009 205
29Cf. Revista e do Sesc-SP, n.º78, <strong>no</strong>v. <strong>de</strong> 2003, acesso em 14<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2007, disponívelem: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link_home.cfm?Edicao_Id=170&breadcrumb=2&tipo=3.30Harrison White e CynthiaWhite, <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 60, batizaram<strong>de</strong>the <strong>de</strong>aler-critic system o pactoimplícito entre marchands, críticos,colecionadores e artistasfundado na segunda meta<strong>de</strong> doséculo XIX e que até hoje regeo mercado <strong>de</strong> arte e arrasta-separa <strong>de</strong>ntro das instituiçõesculturais; Cf. WHITE, H. &WHITE, C. Canvas and carrers:institucional change in the Frenchpainting world. Chicago/Londres:The University of ChicagoPress, 1993.31Lerner apud FARIAS. op.cit.,p.30. Um elemento que <strong>no</strong>sajuda a compreen<strong>de</strong>r o sentidoque a catraca possui é o movimentopara a <strong>de</strong>scatracalizaçãoda vida, ação artística produzidapelo coletivo Contra-filé,que colocou uma catraca numpe<strong>de</strong>stal e afixou-o <strong>no</strong> Largodo Aroche em 2004; Cf. BAM-BOZZI, Lucas. Interfaces coma Realida<strong>de</strong>. Texto para FILE(Electronic Language InternationalFestival), 2005; acesso em25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008; disponívelem: http://www.file.org.br/file2005/textos/symposium/eng/lucasbambozzi.doc.32Cf. REIS, Paulo R. O. Exposições<strong>de</strong> Arte. Vanguarda e políticaentre os a<strong>no</strong>s 1965 e 1970. Tese(Doutorado). Programa <strong>de</strong>Pós-Graduação <strong>de</strong> História.Curitiba: CHLA, Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, 2005, p.149.33“Na dúvida sobre seu papel<strong>de</strong> espectador, ele ‘participava’do gran<strong>de</strong> objeto do artista,ajoelhava-se nas almofadascoloridas, inclinava suas costasem direção a uma figurarecortada, sobre um fundo <strong>de</strong>raios intensos, e colocava suacabeça <strong>no</strong> espaço reservado aela. E o que ele veria? Nadaalém do reflexo <strong>de</strong> sua face,multiplicado pelo jogo <strong>de</strong> espelhos,embrulhado <strong>no</strong>s ‘raiosintensos’. A posição ajoelhada,porco foi aceito como obra <strong>de</strong> arte”. Aí causou toda uma polêmica, porque partedo júri começou a justificar por que tinha aceito, outra parte disse que não tinhacompartilhado da <strong>de</strong>cisão. As pessoas começaram a escrever coisas sobre o júri,dizendo que eles não entendiam <strong>de</strong> arte. E foram três meses <strong>de</strong> artigos sobre o júri,e eu e o meu trabalho <strong>de</strong>saparecemos <strong>de</strong> cena. 29Polêmica alimentada pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituir-se contra todo umestatuto do artístico, que longe <strong>de</strong> ser uniforme, acaba por instituir quaisobjetos ocupam o lugar do estético.Da mesma forma que o “porco”, a crítica ao estatuto do artísticoparece ter se tornado a vocação <strong>de</strong> outras obras <strong>de</strong> <strong>Leirner</strong>. Quando foraexposta na mostra “Nova Objetivida<strong>de</strong> Brasileira”, em 1967, <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro, Adoração também se propunha crítica às instituições da arte, queexecutavam, a seu modo, segundo <strong>Leirner</strong>, maneiras <strong>de</strong> excluir o públicoda dimensão estética da arte. A catraca vinha não apenas <strong>de</strong>nunciar umaiconização <strong>de</strong> <strong>Roberto</strong> ou, talvez, a própria lógica mercadológica do mercadoreligioso <strong>de</strong> bens simbólicos, como também salientava o sentido <strong>de</strong>bem-capital que a arte havia adquirido após a constituição do the <strong>de</strong>alercriticsystem. 30Adoração ou Altar para <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong>,<strong>Nelson</strong> <strong>Leirner</strong>, 1966, instalação (<strong>de</strong>talheexter<strong>no</strong>)206<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 11, n. 19, p. 197-209, jul.-<strong>de</strong>z. 2009
Missamóvel, 2000, objetos <strong>de</strong> gesso,plástico, tecido e ma<strong>de</strong>irasobre esqueite, coleção particular(<strong>de</strong>talhe).Fonte: GALERIA BRITO CIMI-NO. <strong>Nelson</strong> <strong>Leirner</strong>: arte e não arte.Catálogo <strong>de</strong> exposição. São Paulo:Taka<strong>no</strong>, 2002, p.14A r t i g o sprópria para rezar, implorarou colocar-se numa posição<strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>, colocava oespectador numa posição algoridícula — esperava-se algoque não era dado. A participaçãotinha como ‘prêmio’ umconfronto consigo próprio esua impotência.”; i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m,p.150.De fora e com cortinas cerradas, o Altar para <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> não podiaser visualizado; passar pela catraca — tomada não apenas como símbolo<strong>de</strong> inclusão/exclusão, mas também como objeto capaz <strong>de</strong> quantificar eportanto qualificar — é uma necessida<strong>de</strong> para acessar o interior da obra.<strong>Leirner</strong> obriga o espectador a uma <strong>de</strong>cisão diante da intimidadora catraca:“Não se trata mais <strong>de</strong> impor um acervo <strong>de</strong> idéias e estruturas acabadasao espectador, mas <strong>de</strong> procurar dar ao homem, ao indivíduo <strong>de</strong> hoje, apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experimentar a criação.” 31Paulo Reis possui uma leitura mais ousada <strong>de</strong> Adoração ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rque sua participação na citada exposição já preconizava uma crítica à obracomo fetiche; e mais: já criticava o fetiche da participação do espectador. 32Ele ainda <strong>no</strong>s oferece um par para obra <strong>de</strong> <strong>Leirner</strong>. Trata-se <strong>de</strong> “O <strong>altar</strong>,agora dobre os joelhos”, <strong>de</strong> Rubens Gerchman, executada em 1966. Defato, um <strong>altar</strong> com um genuflexório em ma<strong>de</strong>ira pintada com tinta acrílica,espelhos e almofadas <strong>de</strong> cetim, on<strong>de</strong> o espectador po<strong>de</strong>ria ajoelhar-se e,quando feito, veria apenas seu próprio reflexo. 33É certo que as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leituras da obra <strong>de</strong> <strong>Leirner</strong> acabampor transformá-la na materialida<strong>de</strong> da necessida<strong>de</strong> do artista em traduzira consciência da realida<strong>de</strong> urbana. 34 Consciência balizada na fé e na influênciados meios <strong>de</strong> comunicação <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> e na expansão do mercadoda “cultura” e do entretenimento. Mesmo que, para tanto, tenha apeladopara uma estética, que, ao longo dos a<strong>no</strong>s, foi <strong>no</strong>s parecendo cada vez maiskitsch, e que o uso <strong>de</strong> Brancas <strong>de</strong> Neve, He-mens, exus, iemanjás, roma<strong>no</strong>sem bigas, são jorges matando dragões, Patos Donalds, Sacis-Pererês, caboclose uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros objetos <strong>de</strong> borracha, porcelana e plásticoa tenha reforçado, sobretudo a partir dos a<strong>no</strong>s 80. 35Ao contrário <strong>de</strong> Warhol, que continuou a escolher outros “ídolos”midiáticos, <strong>Leirner</strong> não utilizou outros <strong>no</strong>mes famosos em suas obras34Nos a<strong>no</strong>s 70, a obra passariaa compor não apenas o elenco<strong>de</strong> trabalhos catalogadoscomo “pops”, mas tambémcomo índice do movimentotropicalista, algo que o crítico<strong>de</strong> arte Fre<strong>de</strong>rico Morais nãoreferendava. Ele acreditavaque algumas obras <strong>de</strong> GlaucoRodrigues (“Terra Brasílis”),<strong>de</strong> Oiticica (antes e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>“Tropicália”), <strong>de</strong> Gerchmann(“Lindonéia”) <strong>de</strong> <strong>Carlos</strong> Vergara(“O rei do mau gosto”), asbananas <strong>de</strong> Antonio HenriqueAmaral e “Altar para <strong>Roberto</strong><strong>Carlos</strong>” <strong>Leirner</strong> possuíssempontos em comuns, mas um“significado particular <strong>de</strong> cadauma é bastante diverso e mesmodivergente”, impedindo-as<strong>de</strong> participar em grupo <strong>de</strong> qualquerqualificação estética; Cf.MORAIS, Fre<strong>de</strong>rico. “A criseda vanguarda <strong>no</strong> Brasil”. In:_______. Artes Plásticas: a criseda hora atual. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Editora Paz e Terra, 1975, p.96.35É emblemática a criação dainstalação “O Gran<strong>de</strong> Combate”,montada na GaleriaLuisa Strina em 1985, em SãoPaulo, Cf. GALERIA BRITOCIMINO. op.cit, p.183-196.De modo obsessivo, o artistarecupera os mesmos motivosem outras importantes mostras,com títulos e arranjos diversos:“Terra a vista”, 1998 (Museu <strong>de</strong>Arte Contemporânea <strong>de</strong> Niterói);“A gran<strong>de</strong> parada”, 1999(48ª Bienal <strong>de</strong> Veneza, Itália);“Futebol”, 2001 (Sesc Pompéia,São Paulo).<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 11, n. 19, p. 197-209, jul.-<strong>de</strong>z. 2009 207
36Cf. ANJOS, op cit., p.86.37ARAÚJO, Paulo Cesar <strong>de</strong>.<strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> em <strong>de</strong>talhes. SãoPaulo: Planeta, 2006, p. 445e 446.38KALILI, Narciso. “Vejamquem chegou <strong>de</strong> repente”.Revista Realida<strong>de</strong>. n.º 02. SãoPaulo: Editoria Abril, maio<strong>de</strong> 1966.39FREIRE, <strong>Roberto</strong> e BESTER,Roger. “Este homem procuraum caminho”. Revista Realida<strong>de</strong>.nº 32, São Paulo: EditoraAbril, <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1968.posteriores — pelo me<strong>no</strong>s em obras que tenham entrado para as listasobrigatórias quando o assunto é sua trajetória poética. Ele pareceu maispreocupado em aproximar-se dos ícones religiosos — outras santida<strong>de</strong>scatólicas, cenas votivas do câ<strong>no</strong>ne cristão, <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>s afro-brasileiras e seresda mítica popular — que <strong>de</strong> <strong>no</strong>mes da indústria cultural. Essa predileçãoposterior, mesmo que num exercício anacrônico, porém irresistível, colocadúvidas sobre uma possível crítica direta a <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong>. O cantor —como os <strong>de</strong>mais — é antes um símbolo da mídia, compreendida comoinstituição por <strong>Leirner</strong>.Ao mesmo tempo, como “<strong>de</strong>sclassificador” <strong>Leirner</strong> nega uma leiturapuramente “religiosa” <strong>de</strong> suas obras. Teme as leituras reducionistas <strong>de</strong>qualquer aspecto <strong>de</strong> sua arte. No caso <strong>de</strong> Adoração, o artista é taxativo: “Seeu tivesse achado um material semelhante com imagens <strong>de</strong> pin ups, po<strong>de</strong>riater usado elas, e não os santos. O que me interessou ali foi a visualida<strong>de</strong>das imagens furadas com as luzes por trás e com o néon na frente”. 36 Visualida<strong>de</strong>marcada pelo <strong>de</strong>safio direto a uma história da arte ou da culturaque tenta a todo custo criar leituras lineares <strong>de</strong> experiências mais ou me<strong>no</strong>sousadas com valores seguros.De Rei da Juventu<strong>de</strong> a ReiNa outra ponta, o mito <strong>de</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> passaria, ainda pelos finaisdos a<strong>no</strong>s 60, por uma re-significação que implicou em <strong>de</strong>senhar <strong>no</strong>voscontor<strong>no</strong>s à representação midiática do artista, aproximando-o bastantedo universo religioso e reforçando o que uma leitura apressada e posteriorda obra <strong>de</strong> <strong>Leirner</strong> po<strong>de</strong>ria sugerir.Poucos meses antes da exposição <strong>de</strong> <strong>Leirner</strong>, em junho <strong>de</strong> 1966, apósuma apresentação em Vitória, cuja renda teria sido revertida para o OrfanatoCristo Rei, <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> fora procurado por uma ex professora, irmãFausta, que na ocasião trabalhava naquela instituição. Segundo Araújo, 37 apartir daquele dia os dois não per<strong>de</strong>ram mais o contato. Dois a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois,em julho <strong>de</strong> 1968, irmã Fausta doou o seu medalhão do Sagrado Coração <strong>de</strong>Jesus para <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong>, por ocasião da troca <strong>de</strong> hábito ocorrida quando<strong>de</strong> seus 25 a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa. Des<strong>de</strong> então, <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> passou ausar o medalhão como indumentária que carregava bem visível, pendurada<strong>no</strong> pescoço, dando um uso algo profa<strong>no</strong> ao símbolo religioso, ao mesmotempo em que evi<strong>de</strong>nciava sua ligação profunda, que o passar dos a<strong>no</strong>stornaria cada vez mais explícita, com o aquele universo.Essa “virada” na representação do “rei da juventu<strong>de</strong>” po<strong>de</strong> tambémser observada nas páginas da revista Realida<strong>de</strong>, em reportagem do a<strong>no</strong> <strong>de</strong>1968, <strong>de</strong>dicada ao artista. Se na reportagem anterior, <strong>de</strong> 1966, a mesmarevista anunciava que “Um môço <strong>de</strong> 23 a<strong>no</strong>s comanda(va) a revolução dajuventu<strong>de</strong>” 38 , mandando “tudo para o infer<strong>no</strong>”, nesta era outra a representaçãoveiculada: “ROBERTO CARLOS QUERIA SER PRÊTO”, anunciavaem letras garrafais a manchete <strong>de</strong> capa da matéria que Realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>dicavaa <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong>. 39A matéria verte um <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> atormentado, que “<strong>no</strong> auge dosucesso” é “um homem em crise”, em busca <strong>de</strong> “superar-se e encontrar<strong>no</strong>vas formas <strong>de</strong> comunicação.” Nessa busca, o artista volta-se para a músicanegra <strong>no</strong>rte americana, procurando ali o som que po<strong>de</strong>ria fazer a diferença.Alguns subtítulos da matéria que <strong>de</strong>dica 10 páginas a sua crise per-208<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 11, n. 19, p. 197-209, jul.-<strong>de</strong>z. 2009
mitem que <strong>no</strong>s aproximemos <strong>de</strong> algumas das figuras/representações que apartir <strong>de</strong> então passarão a alicerçar a construção <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>para o artista, voltada agora a um público mais amplo, e <strong>de</strong>finida pela substituiçãoda imagem do “Rei da Juventu<strong>de</strong>” pela do “Rei” <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong>:“Voz e jeito diferentes”; “Um profissional tenso, angustiado”; “Um somnôvo é o mais importante, um som diferente”; “Um mundo que êle nãoenten<strong>de</strong>”; “Sofro, mas é uma luta que me dá gran<strong>de</strong> satisfação”; “Cada umescolhe o próprio caminho”.No a<strong>no</strong> seguinte, 1969, o artista daria início à fase religiosa <strong>de</strong> seurepertório, compondo Jesus Cristo, canção que irá fazer parte <strong>de</strong> seu álbumlançado em 1970. A partir <strong>de</strong> então <strong>Roberto</strong> <strong>Carlos</strong> incorpora <strong>de</strong>finitivamentea religião a sua imagem. Tal processo <strong>de</strong> iconização, ou mesmo <strong>de</strong>auto-iconização, guarda com a obra <strong>de</strong> Leiner uma proximida<strong>de</strong> que mereceatenção. Numa leitura retrospectiva, sempre atenta aos apelos fáceise arbitrários do método, Adoração não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser profética na construção<strong>de</strong> um cenário cada vez mais comum na carreira do cantor a partir do finaldos a<strong>no</strong>s 60. Paradoxalmente, como vimos, a obra também sinaliza posturasdistintas do modo como cada um dos artistas posicio<strong>no</strong>u-se diante dareligião e das instituições religiosas.A r t i g o s℘Artigo recebido em janeiro <strong>de</strong> 2009. Aprovado em abril <strong>de</strong> 2009.<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 11, n. 19, p. 197-209, jul.-<strong>de</strong>z. 2009 209