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Presença musical italiana na formação do teatro brasileiro - ArtCultura

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Presença <strong>musical</strong> <strong>italia<strong>na</strong></strong><strong>na</strong> formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti)Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-<strong>do</strong>utora<strong>do</strong><strong>na</strong> Università di Torino/Itália. Professora <strong>do</strong> Departamento de Teoria e <strong>do</strong> Programade Pós-graduação em Teatro da Universidade Federal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio deJaneiro (Unirio). Pesquisa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> CNPq. Autora de Teatro e comicidades 2: mo<strong>do</strong>sde produção <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> ligeiro carioca. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.<strong>teatro</strong>comico@unirio.brDEBRET, Jean Baptiste. Sapatarias (detalhe), 1834/1839.


Presença <strong>musical</strong> <strong>italia<strong>na</strong></strong> <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>*Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti)* Este texto resulta, parcialmente,de conferência proferidano Ciclo sul <strong>teatro</strong> italianonel secon<strong>do</strong> Ottocento, <strong>na</strong>Università degli Studi di Pisa,ocorri<strong>do</strong> no Setor Teatro da Escolade Doutora<strong>do</strong>, e traduzi<strong>do</strong>por sua própria autora.Ele será publica<strong>do</strong>, em suaversão <strong>italia<strong>na</strong></strong>, em Il castellodi Elsinore, revista semestralde <strong>teatro</strong>, editada sob a chancela<strong>do</strong> Departamento de Discipli<strong>na</strong>sArtísticas, Musicais e<strong>do</strong> Espetáculo da Universitàdi Torino (Unito). Este ensaiofoi escrito no âmbito <strong>do</strong> estágiopós-<strong>do</strong>utoral realiza<strong>do</strong> <strong>na</strong>Unito, de agosto de 2007 ajulho de 2008, com a colaboraçãode Roberto Tessari e debolsa PDE/Capes. A pesquisade pós-<strong>do</strong>utoramento dedicou-seao <strong>teatro</strong> oitocentistaitaliano, por meio <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>da formação artística da bailari<strong>na</strong>Maria Bader<strong>na</strong> (CastelSangiovanni, 1828 – Rio de Janeiro,1892), tema geral <strong>do</strong>projeto de pesquisa <strong>do</strong>centejunto à Unirio.Os estu<strong>do</strong>s sobre a história <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> concentraram-sepor muito tempo <strong>na</strong> questão de suas origens, que remontariam ao séculoXIX, se observadas suas características determi<strong>na</strong>ntes e mais persistentes.Para alguns, seu marco de origem seria o ato oficial de i<strong>na</strong>uguraçãode um edifício teatral, em princípio desti<strong>na</strong><strong>do</strong> a acolher a produção deelite, e <strong>na</strong> verdade construí<strong>do</strong> especialmente como símbolo da presençareal após a transferência da Corte portuguesa para o Brasil (1808). Logodepois da chegada, o príncipe regente D. João ordenou a construção(autorizada em 1810) de um <strong>teatro</strong> real ergui<strong>do</strong> no Largo <strong>do</strong> Rossio, como nome de Teatro São João, cuja i<strong>na</strong>uguração se deu em 12 de outubrode 1813 com a presença da família real portuguesa. Segun<strong>do</strong> a maiorparte <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res, no entanto, o <strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>ocorreu somente em 1838, quan<strong>do</strong> pela primeira vez um texto dramáticocom autor e temas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is — Antonio José ou O poeta e a Inquisição,de Gonçalves Magalhães (Domingos José Gonçalves Magalhães, Rio deJaneiro – 1811, Roma – 1882) foi ence<strong>na</strong><strong>do</strong> pela companhia teatral <strong>do</strong>grande ator João Caetano <strong>do</strong>s Santos, formada substancialmente poratores <strong>brasileiro</strong>s, e não mais <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>da pelos atores portugueses.Por sua vez, os estu<strong>do</strong>s sobre a formação teatral brasileira <strong>do</strong> séculoXIX debateram-se, e confrontam-se ainda, com as noções de influênciae de modelos externos, que tendem a desaguar numa história dasidéias demarcada pelos fluxos de correntes literárias. Neste estu<strong>do</strong>, longede resolver tais problemas, procuro detectar e discutir o que entendecomo efetivas co-presenças em circuitos culturais e artísticos historicamentedetermi<strong>na</strong><strong>do</strong>s.Quanto ao problema das origens, o fato é que, ainda bastante distantesde qualquer conclusão, as visões sobre o propala<strong>do</strong> <strong>na</strong>scimento<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>, se, de início, se coligaram à defesa de um <strong>teatro</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l,percebi<strong>do</strong> como espaço ilustra<strong>do</strong> desti<strong>na</strong><strong>do</strong> a um projetociviliza<strong>do</strong>r, posteriormente se aproximaram das concepções de um grupode estudiosos conheci<strong>do</strong>s como intérpretes ou explica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> país,estudiosos de vários campos que procuraram, em fecun<strong>do</strong>s momentos<strong>do</strong> século XX, compreender a formação <strong>do</strong> país por meio de sua arte e desua cultura, de maneira mais complexa e orgânica.O sistema literário de Antonio Candi<strong>do</strong>O chama<strong>do</strong> “grupo de explica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Brasil” envolve um conjuntode intérpretes <strong>do</strong> país, volta<strong>do</strong>s para a percepção e a compreensão de62<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


uma identidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Esses estudiosos de uma geração, dedica<strong>do</strong>s adiversas discipli<strong>na</strong>s, entre os anos 30 e 50 <strong>do</strong> século XX, procuraram, emúltima instância, como já se disse, “tor<strong>na</strong>r mais inteligível o país aos próprios<strong>brasileiro</strong>s”. Caio Pra<strong>do</strong> Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e GilbertoFreyre foram os representantes de ponta desse grupo, e a eles remontaum conjunto de noções, de categorias, de instrumentos operativos,consistentes e criativos, que geraram vários filões de pensamento e pesquisanos anos sucessivos.Importantíssimo é o filão sociológico e literário que, em algumaspesquisas voltadas para o exame da relação entre literatura e sociedade,coloca problemas fundamentais e elabora categorias de análise muitoimportantes para a historiografia <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>. Seu representantemáximo é Antonio Candi<strong>do</strong> de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 1918),professor da Universidade de São Paulo, ensaísta de referência para osestu<strong>do</strong>s culturais e de teoria literária, pois “como ainda recentementerecor<strong>do</strong>u Roberto Schwarz: à maneira daqueles mestres <strong>do</strong> ensaio deinterpretação <strong>do</strong> Brasil, que haviam repassa<strong>do</strong> a gênese de nossos irregularespadrões de sociabilidade e vida econômica, Antonio Candi<strong>do</strong>,identifican<strong>do</strong> di<strong>na</strong>mismos específicos da vida cultural brasileira, expunhaa constituição de uma tradição literária <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l relativamente estável”.1Para o estu<strong>do</strong> da formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>do</strong> Oitocentos, AntonioCandi<strong>do</strong> nos interessa inicialmente porque elabora a noção fundamentalde “consciência ame<strong>na</strong> <strong>do</strong> atraso” <strong>do</strong> país, que vigorou no Brasilpor to<strong>do</strong> o século XIX e derivou da percepção <strong>do</strong> Brasil como “país jovem”.Esta concepção, observa Antonio Candi<strong>do</strong>, baseava-se <strong>na</strong> idéiade que a cultura, as letras e as artes poderiam mudar a situação de dependênciapolítica, social e econômica <strong>do</strong> país: “No tempo <strong>do</strong> que chameiconsciência ame<strong>na</strong> de atraso, o escritor partilhava da ideologia ilustrada,segun<strong>do</strong> a qual a instrução traz automaticamente to<strong>do</strong>s os benefíciosque permitem a humanização <strong>do</strong> homem e o progresso da sociedade”.2 Também interessa ao estu<strong>do</strong> da formação <strong>do</strong> nosso <strong>teatro</strong> um outroimportante trabalho <strong>do</strong> autor, pensa<strong>do</strong> e escrito no arco de um decênioe publica<strong>do</strong> em 1959 sob o título Formação da literatura brasileira:momentos decisivos. A relação histórica, necessária e orgânica, entre literaturae sociedade, solicitada para o estu<strong>do</strong> da formação da literaturano Brasil, é explicitada <strong>na</strong> conhecida introdução à obra:história & <strong>teatro</strong>Uma literatura empenhadaEste ponto de vista, aliás, é quase imposto pelo caráter da nossa literatura, sobretu<strong>do</strong>nos momentos estuda<strong>do</strong>s; se atentarmos bem, veremos que poucas têm si<strong>do</strong> tão conscientesda sua função histórica, em senti<strong>do</strong> amplo. [...] Depois da Independência open<strong>do</strong>r se acentuou, levan<strong>do</strong> a considerar a atividade literária como parte <strong>do</strong> esforçode construção <strong>do</strong> país livre, em cumprimento a um programa, bem ce<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong>,que visava à diferenciação e particularização <strong>do</strong>s temas e mo<strong>do</strong>s de exprimi-los. Istoexplica a importância atribuída, neste livro, à “tomada de consciência” <strong>do</strong>s autoresquanto ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a suaterra, mesmo quan<strong>do</strong> não a descreviam. [...] Esta disposição de espírito, historicamente<strong>do</strong> maior proveito, exprime certa encar<strong>na</strong>ção literária <strong>do</strong> espírito <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, redundan<strong>do</strong>muitas vezes nos escritores em prejuízo e desnorteio, sob o aspecto estético. Ela1ARANTES, Paulo Eduar<strong>do</strong>.Providências de um crítico literário<strong>na</strong> periferia <strong>do</strong> capitalismo.In: ARANTES, OtíliaBeatriz Fiori e ARANTESPaulo Eduar<strong>do</strong> (orgs.). Senti<strong>do</strong>da formação: três estu<strong>do</strong>ssobre Antonio Candi<strong>do</strong>, Gildade Mello e Souza e LúcioCosta. São Paulo: Paz e Terra,1997, p. 12.2Candi<strong>do</strong>, Antonio. Literaturae subdesenvolvimento. Argumento:revista mensal decultura, ano 1, n. 1, São Paulo,1973, p. 12.<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 63


3CANDIDO, Antonio. Introdução.In: Formação da literaturabrasileira: momentos decisivos.São Paulo: Martins,1959, p. 28.4Idem, ibidem, p. 26.continha realmente um elemento ambíguo de pragmatismo, que se foi acentuan<strong>do</strong> atéalcançar o máximo em certos momentos, como a fase joani<strong>na</strong> e os primeiros tempos daIndependência, a ponto de sermos por vezes obriga<strong>do</strong>s, para acompanhar até o limiteas suas manifestações, a aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r o terreno específico das belas-letras. 3Essa relação substancial entre literatura e sociedade brasileira impunhaao estudioso uma visão articulada <strong>do</strong>s vários elementos a seremtoma<strong>do</strong>s em consideração; um mo<strong>do</strong> de estudar, de interpretar e de exporo processo de formação ou de desenvolvimento que permitisse entendero momento de fundação de nossa literatura não como fato i<strong>na</strong>ugural,mas como “momento decisivo”. Em tal momento se podia observara presença de um sistema literário apto a distinguir tanto a “literaturaverdadeira e própria”; quanto a emergência de elementos imprescindíveisao estabelecimento de uma tradição literária, condição fundamentalpara identificar a formação compreendida como processo de longaduração.Um sistema literário — necessário para que exista “literatura propriamentedita” e não ape<strong>na</strong>s “manifestações literárias” dispersas e intermitentes— pressupõe um conjunto de autores, obras e público <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is,que dialoguem e se influenciem reciprocamente, de mo<strong>do</strong> a “fazersistema”, e que, ao dialogar também com os modelos externos, consegueoperar uma “síntese de tendências universalistas e particularistas”, comcapacidade de relação com experiências brasileiras anteriores. Em suma,o sistema exige uma complexidade de relações que possibilite a emergênciade estruturas de produção e de recepção literária especiais e decisivas.Isso implica a confluência de sínteses entre externo e interno (metrópolee periferia) e o empenho de convergência para hipóteses de tradição,a ponto de formar uma “história <strong>do</strong>s <strong>brasileiro</strong>s no seu desejo de teruma literatura”. Portanto, pode-se concluir que a categoria sistema emAntonio Candi<strong>do</strong> é, ao mesmo tempo, uma noção empenhada, porquecoligada a uma ideologia, a um projeto <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de literatura, e um instrumentopara explicar a formação dessa literatura no país.Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formação de um sistema, épreferível nos limitarmos aos seus artífices imediatos, mais os que se vão enquadran<strong>do</strong>como herdeiros <strong>na</strong>s suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo. Trata-se,então, (para dar realce às linhas), de averiguar quan<strong>do</strong> e como se definiu uma continuidadeininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre de integrarem umprocesso de formação literária. 4Diante desse grande enquadramento cultural, quepersiste como referência fundamental para vários camposde estu<strong>do</strong>s, o problema adquire hoje — num momentode crise das grandes identidades <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is —novíssimas dimensões, especialmente ao se discutir a oportunidadedas colocações <strong>do</strong>s primeiros grandes “explica<strong>do</strong>res”, volta<strong>do</strong>s paraa busca e a explicação <strong>do</strong> Brasil como <strong>na</strong>ção. Contu<strong>do</strong>, <strong>na</strong>s formulaçõesfunda<strong>do</strong>ras de Antonio Candi<strong>do</strong> no campo literário, sob muitos aspectosinsuperáveis, desenvolveu-se toda a primeira estação acadêmica dehistoriografia brasileira direcio<strong>na</strong>da para o estu<strong>do</strong> da formação<strong>do</strong> nosso <strong>teatro</strong>. Os mestres desse grupo são,64<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


indiscutivelmente, Sábato Magaldi e Décio de Almeida Pra<strong>do</strong>, da Universidadede São Paulo.A grande estação culturalista de estu<strong>do</strong>s teatraisA Décio de Almeida Pra<strong>do</strong>, professor, crítico teatral, escritor (SãoPaulo, 1917 – 2000), deve-se cerca de uma deze<strong>na</strong> de livros dedica<strong>do</strong>s àliteratura dramática, à história e à formação de inúmeros pesquisa<strong>do</strong>res<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>. Ele participou ativamente <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> processo demodernização teatral <strong>do</strong> país; em mais de uma obra, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> problema<strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> no Brasil durante o século XIX, Déciode Almeida Pra<strong>do</strong> usou, fundamentalmente, a categoria sistema propostapor Antonio Candi<strong>do</strong>.João Roberto Faria (professor da Universidade de São Paulo e, semdúvida, um <strong>do</strong>s principais discípulos de Décio de Almeida Pra<strong>do</strong>), numensaio de síntese sobre a formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>, sublinha as relaçõesexistentes entre o discurso teatral de Décio e o de seus companheirosde geração:história & <strong>teatro</strong>Em outras palavras, é no romantismo que o <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> se constitui como um“sistema” integra<strong>do</strong> por autores, atores, obras e público. Desse mo<strong>do</strong>, à semelhançade seus companheiros de geração, Antonio Candi<strong>do</strong> e Paulo Emílio Salles Gomes, queestudaram o processo formativo da literatura e <strong>do</strong> cinema em nosso país, Décio deAlmeida Pra<strong>do</strong> procurou fazer o mesmo com o <strong>teatro</strong>, investigan<strong>do</strong> o primeiro momento— ou o que Antonio Candi<strong>do</strong> chamaria de ‘momento decisivo’ — em quehouve entre nós as condições intelectuais e materiais que puderam proporcio<strong>na</strong>r umacontinuidade fecunda <strong>do</strong> trabalho cênico. 5Na tentativa de compreender o desenvolvimento <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>,Décio de Almeida Pra<strong>do</strong> buscou seu momento inicial: o romantismolhe pareceu um gênero dramático e um movimento artístico-teatraldecisivo para o nosso <strong>teatro</strong> porque por meio deles se conseguiu colocarem prática o complexo de elementos articula<strong>do</strong>s, necessários ao que oestudioso caracterizou como “<strong>teatro</strong> verdadeiro e próprio”.Nessa direção, os funda<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> teriam si<strong>do</strong> GonçalvesMagalhães, com a tragédia Antonio Jose ou O poeta e a Inquisição(1838), e o ator João Caetano, (Rio de Janeiro, 1808 – 1863), o Talma <strong>brasileiro</strong>,como destaca nosso autor, graças à articulação sistêmica que conseguiuestabelecer uma certa relação entre autor, dramaturgia e ator/público. Todavia, a comédia de costume, que no Brasil <strong>na</strong>sceu com MartinsPe<strong>na</strong>, teria si<strong>do</strong> a “nossa única tradição teatral” 6 possível. Daí que, emmais de uma obra de Pra<strong>do</strong>, a comédia de costumes brasileira foi compreendidano seu papel de protagonista <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> em umpaís em busca de si próprio.Da mesma forma, ela foi cuida<strong>do</strong>samente estudada no Panorama<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> (1962), livro clássico de Sábato Magaldi 7 (<strong>na</strong>sci<strong>do</strong> emMi<strong>na</strong>s Gerais em 1927, crítico teatral, professor da Universidade de SãoPaulo, historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> e membro da Academia Brasileira de Letras).Essa obra é bastante representativa <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre a origem <strong>do</strong><strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> em termos literários culturalistas. Centrada <strong>na</strong> históriada literatura dramática, a busca de uma tradição teatral <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l —5FARIA, João Roberto. A formação<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>. In:O <strong>teatro</strong> <strong>na</strong> estante: estu<strong>do</strong>s sobredramaturgia brasileira eestrangeira. São Paulo: Ateliê,1998, p. 15 e 16.6PRADO, Décio de Almeida.História concisa <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>.São Paulo: Edusp, 1999,p. 138.7Ver MAGALDI, Sábato. Panorama<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>. SãoPaulo: Global, 1997.<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 65


8Ver RELA, Walter (org.). Teatrocostumbrista brasileño. Riode Janeiro: MEC/INL, 1961.9Ver RABETTI, Maria deLourdes (Beti Rabetti). Temários<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> cômico no Brasil:o urdimento da trama a-morosa entre moldura familiare circulação urba<strong>na</strong> <strong>na</strong>s comédiasde costumes ligeiras.In: Teatro e comicidades 2:mo<strong>do</strong>s de produção <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>ligeiro carioca. Rio de Janeiro:7 Letras, 2007, p. 19-33.elemento básico <strong>do</strong> pensamento relativo à formação teatral —, põe emdestaque sua profunda conexão com a nossa comédia de costumes, comoserá visto a seguir.A questão da comédia de costumes brasileira“El <strong>teatro</strong> di costumbres en Brasil es el más genuino ejempo — sinoel único — de <strong>teatro</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, escrevia em 1961 Walter Rela <strong>na</strong> introduçãoao seu Teatro costumbrista brasileño 8 , segun<strong>do</strong> volume de uma coletâneade traduções espanholas de “grandes autores <strong>brasileiro</strong>s”.Efetivamente, <strong>na</strong> esteira <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s de Décio de Almeida Pra<strong>do</strong> eSábato Magaldi, a comédia de costumes é considerada, pela quase totalidade<strong>do</strong>s estudiosos da história <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>do</strong> século XIX, umgênero dramático que alcançou origi<strong>na</strong>lidade e maturidade suficientespara constituir uma tradição teatral no Brasil. Ela teria si<strong>do</strong> o espaçoadequa<strong>do</strong>, no que tange ao exercício de construção dramatúrgica, paraaprendiza<strong>do</strong> da escrita compositiva, pela relação de confronto que estabeleceuentre autores de diversas gerações, de mo<strong>do</strong> a sugerir a criaçãode uma tradição. Por outro la<strong>do</strong>, <strong>na</strong> comédia de costumes teria si<strong>do</strong> realizadaa síntese <strong>do</strong> universalismo e <strong>do</strong> particularismo, devi<strong>do</strong> ao fato deque nela se aproximavam os modelos externos ou clássicos da comédia(dentre os quais sobressaiu a “comédia nova”, com seu eixo temáticoamoroso explora<strong>do</strong> em âmbito <strong>do</strong>méstico) e a “matéria local” (com tratamentode tipos e costumes localmente identificáveis, em quadros vivosou em desfile, inúmeras vezes festivos, quase sempre exageradamenteridículos).Como já foi discuti<strong>do</strong> em texto anterior 9 , a essa síntese articulou-seainda, de mo<strong>do</strong> recorrente, outro campo temático, verdadeiro cânoneda comédia de costumes brasileira: a oposição entre campo e cidade (Cortee província, capital federal e interior, centro da cidade e periferia),operada com freqüência e com suaves atualizações que mantiveram, noentanto, a sempre essencial positividade <strong>do</strong> campo, reserva de valoresmorais que se andavam perden<strong>do</strong> nos raros mas atrativos centros urbanos[idem] daquele longo perío<strong>do</strong>. Tal oposição, frise-se, permitiu aproximarveios de comicidade ridícula e rústica a conceitos e gracejos espirituosos,manti<strong>do</strong>s estes últimos <strong>na</strong> superfície aparente e pitoresca de fenômenosque eram liga<strong>do</strong>s, todavia, a radicais contradições inter<strong>na</strong>s denossa sociedade e, acima de tu<strong>do</strong>, à oposição entre <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e estrangeiro.O retrato sem trato da comédia brasileiraAo elenco de características mencio<strong>na</strong>das, deve-se acrescentar umúltimo da<strong>do</strong> fundamental, a meu ver, especialmente deriva<strong>do</strong> <strong>do</strong> empenhopresente em tantos estu<strong>do</strong>s de nossa história <strong>teatro</strong> ou de nossadramaturgia: de mo<strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte, as interpretações clássicas da tradiçãoteatral brasileira das comédias de costume a entendem como retrato,algumas vezes inclusive como <strong>do</strong>cumento de costumes que contribuiupara fixar. No entanto, estas comédias parecem ser feitas sobretu<strong>do</strong>de fatos da ce<strong>na</strong>, expedientes cômicos antigos e novos, movimentos eritmos diversos, música: elementos que falam mais <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>, e de seus66<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


ecursos metateatrais, que de matéria local característica ou típica, quadrossociais bem retrata<strong>do</strong>s, a título de fixação de costumes.O olhar <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> sobre o processo de formaçãooitocentista <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> no Brasil, criva<strong>do</strong> pela normativa de gêneros literários,pelo parâmetro <strong>do</strong>s modelos estrangeiros, e pela defesa de um<strong>teatro</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l no qual colar imagens de realidade brasileira, tendeu arefutar, ou não deu a atenção necessária, a algumas formas de aproximaçãoentre <strong>teatro</strong> e música como componentes formativos da experiênciadramatúrgica e cênica brasileira. Aproximações, no entanto, que <strong>na</strong>realidade <strong>do</strong>s espetáculos e no gosto <strong>do</strong> público eram a razão <strong>do</strong> sucesso<strong>do</strong> melodrama, em desvantagem para o drama romântico, transforman<strong>do</strong>tantas tragédias em “dramalhões”. Mas, se presenças musicais contribuírampara a transfiguração de tragédias em “dramalhões”, pateticamentemelodiosos, ou rimbombantes, ou em melodramas operísticos,elas infiltraram-se também <strong>na</strong>s divertidas farsas e comédias de costumeonde ocuparam papéis relevantes, temática e estruturalmente.Grande parte da obra cômica de Martins Pe<strong>na</strong> e de Joaquim Manoelde Mace<strong>do</strong>, por exemplo, atesta a excelente conjugação prosa e músicaalcançada em nossas comédias de costume, com vantagem para o rendimentocênico, a despeito da perda <strong>do</strong> enfoque <strong>do</strong> retrato da realidade,que resulta deforma<strong>do</strong>.Se então, como acredito, a concepção culturalista <strong>do</strong> desenvolvimentoteatral <strong>brasileiro</strong> percebeu o <strong>teatro</strong> de costumes como retrato, acanha<strong>do</strong>,porém testemunho social, crítico, alegre e festivo, isso se deu principalmenteporque nele perseguiu exemplos aproximativos da alta comédiade Molière e da comédia realista. Penso que, demasiadamentefocada <strong>na</strong> perspectiva classicista, determi<strong>na</strong>da pela teoria <strong>do</strong> gênero, aconcepção culturalista da história <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>, norteada por modelos literário-dramatúrgicose não suficientemente voltada para o mo<strong>do</strong> de produçãoteatral <strong>do</strong> tempo da formação, submeteu-se aos limites dita<strong>do</strong>spelas vagas correntes da história das idéias e à superfície de seu jogo deinfluências. Criou enquadramentos da realidade teatral <strong>do</strong> século XIX<strong>brasileiro</strong> onde o <strong>teatro</strong> emergia com demasiada vida própria, ou emdependência quase que exclusiva da relação que estabelecia com as idéiaseuropéias; parecen<strong>do</strong> se desprender <strong>do</strong>s fatos da cultura local quan<strong>do</strong>entendi<strong>do</strong>s em seu senti<strong>do</strong> mais amplo. Mesmo consideran<strong>do</strong> que manifestose programas mais ou menos guia<strong>do</strong>s por modelos matriciais geraramimportantes experiências locais de caráter um pouco mais canônicoe constituíram parte importante <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> em formação, tantoou mais relevantes e significativas foram a produção (dramatúrgica,atorial e de ce<strong>na</strong>) e a recepção que não conseguiam ou pretendiam afastaro <strong>teatro</strong> da música, fazen<strong>do</strong> nele explodir o caráter melodramático, otom declamatório, geran<strong>do</strong> um <strong>teatro</strong> de prosa banha<strong>do</strong> de infiltrações.Terreno em que floresceram muitas comédias de costume: retratos umtanto falsos, acanha<strong>do</strong>s frente aos exemplares europeus, e marca<strong>do</strong>s porfortes traços musicais.história & <strong>teatro</strong>O traço <strong>musical</strong> da formaçãoA co-presença de música e <strong>teatro</strong>, não suficientemente considerada<strong>na</strong>s análises históricas dedicadas ao estu<strong>do</strong> da formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> no<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 67


10PRADO, Décio de Almeida.Teatro de Anchieta a Alencar.São Paulo: Perspectiva, 1993,p. 121.11ALENCASTRO, Luiz Felipe.Vida privada e ordem privadano Império. In: ALENCAS-TRO (org.). História da vidaprivada no Brasil – Império: acorte e a modernidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.São Paulo: Companhiadas Letras, 1997, p. 47.12Ver MAUAD, A<strong>na</strong> Maria.Imagem e auto-imagem <strong>do</strong>Segun<strong>do</strong> Rei<strong>na</strong><strong>do</strong>. In: ALEN-CASTRO, Luiz Felipe (org.).História da vida privada no Brasil– Império: a corte e a modernidade<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. São Paulo:Companhia das Letras, 1997,p. 181-231. A viagem que D.Pedro realizara pela provínciafluminense no verão de1848, diz a autora, “contribuírapara ajudar a classe senhoriala construir sua auto-imagemà semelhança da imagem<strong>do</strong> Império. E qual era essaimagem? A imagem <strong>do</strong> próprioimpera<strong>do</strong>r? (p.184). Paramais adiante afirmar: “o Impera<strong>do</strong>ré a imagem <strong>do</strong> Império<strong>na</strong>s exposições universais,e a fotografia possibilita essaidentificação.” (p.197).13Adelaide Ristori, célebreatriz <strong>italia<strong>na</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>do</strong>Risorgimento, <strong>na</strong>scida de paisartistas (Friuli, 1822– Roma,1906), foi membro, “nume tutelar”,da importante CompagniaReale Sarda, instituídapor decreto real de 1820,mas que pouco relevo teve no<strong>teatro</strong> italiano da época, sesua existência e seus decretosforem compara<strong>do</strong>s às perspectivasteatrais institucio<strong>na</strong>isreforma<strong>do</strong>ras pensadas pelosjacobinos e às proposiçõesatoriais de Gustavo Mode<strong>na</strong>.A Ristori, casada com o marquêsGrillo, de Paris empreendeuviagens pelo mun<strong>do</strong>,duas das quais contemplaramapresentações <strong>na</strong> Corte <strong>do</strong> Riode Janeiro. Cf. COSTETTI,Giuseppe. La Compagnia RealeSarda e il Teatro Italiano dal 1821al 1855. Bolog<strong>na</strong>: Ar<strong>na</strong>l<strong>do</strong>Forni, 1979 (re-impressãoa<strong>na</strong>stática, Milano, 1893)14Carlotta Augusta Angeoli<strong>na</strong>Candiani <strong>na</strong>sce em Milão a 3de abril de 1820 e chega noBrasil em 1843, onde passa aviver, como cantora e atriz.Morre em 1890, no Rio de Janeiro.Oitocentos <strong>brasileiro</strong>, é, ao meu ver, fundamental para compreender osenti<strong>do</strong> e as várias facetas que a lírica <strong>italia<strong>na</strong></strong> apresentou ao manifestarseno interior da comédia de costume. Ao levar em conta que o <strong>teatro</strong>lírico italiano encantava a Corte brasileira desde o perío<strong>do</strong> joanino, eque continuou sen<strong>do</strong> muito aprecia<strong>do</strong> e cultiva<strong>do</strong> pelo impera<strong>do</strong>r D.Pedro II, o estu<strong>do</strong> das relações entre música e <strong>teatro</strong> daquele perío<strong>do</strong>solicita mais que nunca uma abordagem cultural e política. Nesta direção,porém, a discussão ditada estritamente por gêneros literários ouestilos de espetáculo ou de atuação teatral resulta insuficiente ou mesmopouco útil para a compreensão da formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> em nosso séculoXIX.No Brasil <strong>do</strong> Oitocentos, o <strong>teatro</strong> <strong>na</strong>sce e se desenvolve sob os ditames<strong>do</strong> romantismo europeu, no senti<strong>do</strong> de que faz sistema também comaquela ideologia da formação de um <strong>teatro</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, como se lê nos principaisestu<strong>do</strong>s da bibliografia corrente. No entanto, não se pode deixarde levar em conta o fato que este romantismo chega e se realiza no Brasilde mo<strong>do</strong> bastante particular. Pois, se, “de repente, em 1836, chega ao<strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>”, “de cambulhada”, como nos diz Décio de AlmeidaPra<strong>do</strong> 10 , todavia não consegue interromper a avalanche <strong>do</strong>s dramas históricosdiante <strong>do</strong>s quais a classe dirigente e os jovens intelectuais “bacharéis”verão reafirma<strong>do</strong> seu ambíguo pertencimento a uma histórianão limitada à elite monárquica exclusiva <strong>do</strong> “Novo Mun<strong>do</strong>”; dramasde uma ce<strong>na</strong> mais ampla em que os atores, agora <strong>brasileiro</strong>s e negros emgrande parte, não adquirem ou assumem outra consciência política quenão aquela de senti<strong>do</strong> bastante restrito, isto é “patriótico”.O Segun<strong>do</strong> Rei<strong>na</strong><strong>do</strong>, que perdurou da declaração de maioridade,em 1840, até a proclamação da República, em 1889, estabeleci<strong>do</strong> apósum perío<strong>do</strong> de regência em que eclodiram rebeliões por to<strong>do</strong> o país, alcançoualguma estabilidade. Os recursos monetários e econômicos —especialmente advin<strong>do</strong>s da extinção <strong>do</strong> tráfico de escravos (em 1850, sobpressão da revolução industrial inglesa, lembre-se) — permitiriam à elitedirigente e à classe abastada da Corte e de algumas províncias a importaçãode vários bens, inclusive culturais. A entrada de pianos e de professoresde música e de canto fez com que fossem rapidamente considera<strong>do</strong>spresenças obrigatórias em palácios, palacetes, solares ou casas urba<strong>na</strong>smais prósperas, nos saraus, nos bailes, como coloração da maissimples recepção. O piano, que era “objeto de desejo <strong>do</strong>s lares patriarcais”11 <strong>do</strong> Brasil colônia e <strong>do</strong> primeiro Império — e que se transformou,vale lembrar, em corriqueiro e indispensável elemento de composição dece<strong>na</strong> em tanta comédia de costume <strong>do</strong> Oitocentos <strong>brasileiro</strong> -, tornou-seentão importante símbolo da modernidade possível ao país, e pareceuabundar subitamente <strong>na</strong>s casas mais importantes da Corte e das cidadesde província, onde preceitos e costumes reais chegavam junto com oimpera<strong>do</strong>r D. Pedro II em estudadas e freqüentes visitas políticas, ou denegócios, sempre úteis à propaganda e à reafirmação da imagem <strong>do</strong>Império. 12O impera<strong>do</strong>r admirava a recitação de Adelaide Ristori 13 , que seapresentou no Brasil em duas temporadas, 1869 e 1874, e com a qual omo<strong>na</strong>rca manteve correspondência por muitos anos. Mas o impera<strong>do</strong>rapreciava muitíssimo Augusta Candiani 14 , cantora lírica responsável peloque teria si<strong>do</strong> uma verdadeira “mania da Norma”, de Bellini que tomou68<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


a Corte brasileira, onde viveu até sua morte. Teresa Cristi<strong>na</strong> Maria dasDuas Sicílias, Bourbon de <strong>na</strong>scimento e esposa <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r <strong>brasileiro</strong>,teria si<strong>do</strong> também a “boa cantora e musicista, que alegrava o paláciocom seus constantes saraus”, batizara a filha de Candiani e teria obti<strong>do</strong>de D. Pedro um apoio econômico para a primeira temporada de estu<strong>do</strong>s<strong>do</strong> compositor Antonio Carlos Gomes em Milão, em 1863.Aliás, qualquer referência ao papel da música <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>no Brasil <strong>do</strong> Oitocentos seria impensável sem pelo menos lembrareste maestro compositor, o mais importante <strong>do</strong> século, <strong>na</strong>sci<strong>do</strong> em 1836e morto em 1896: Carlos Gomes estu<strong>do</strong>u <strong>na</strong> Itália a partir de 1864, eobteve em Milão o título de Maestro junto ao Conservatório. Em marçode 1870, apresentou no Scala a ópera O guarany, com libreto extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong>romance indianista de José de Alencar. Certos indica<strong>do</strong>res relativos àsua carreira e ao seu longo soggiorno italiano, com visitas regulares aoBrasil, ajudam a pensar nos fortes laços musicais, por vezes com colori<strong>do</strong>sinstitucio<strong>na</strong>is, entre Brasil e Itália <strong>na</strong>quele perío<strong>do</strong>. Quanto ao libretode Antonio Scalvini, de 1870, diga-se que substituiu o “aventureiro italiano”Loredano pelo “espanhol Gonzales” e alterou o fi<strong>na</strong>l: em lugar deuma grande inundação, o palacete é devora<strong>do</strong> pelo fogo e desmoro<strong>na</strong>,sem ferir, no entanto, a perduração da imagem indianista românticaresultante <strong>do</strong> sobrevivente amor entre Cecy e Pery. 15A elite oficial, monárquica e burguesa, com seus projetos e realizaçõesespetaculares, por meio de mece<strong>na</strong>to direto ou favorecimentos, <strong>na</strong>Itália e no Brasil, garantiu a vinda de importantes companhias líricas ede prosa <strong>italia<strong>na</strong></strong>s à América <strong>do</strong> Sul, com passagem obrigatória pela Corte<strong>do</strong> Rio de Janeiro. Algumas destas companhias foram co-envolvidas emverdadeiras missões político-diplomáticas. Um fenômeno que, certamente,teve papel fundamental <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> espetáculo e <strong>do</strong> público noBrasil <strong>do</strong> século XIX. Referimos Adelaide Ristori, da Compagnia RealeSarda, mas poderíamos lembrar Tommaso Salvini, Augusta Candiani,Ida Edelvira, as bailari<strong>na</strong>s Maria Bader<strong>na</strong> e Emilia Ber<strong>na</strong>cchi, que viveramou estiveram vários anos no Brasil (em alguns casos até a morte,como Candiani e Bader<strong>na</strong>) e que, ao menos no momento de partida daEuropa, possivelmente tiveram algum apoio oficial ou priva<strong>do</strong> para agarantia da viagem. Mas, vai lembra<strong>do</strong> também que, nos anos mais férteis<strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Rei<strong>na</strong><strong>do</strong>, além da presença de renoma<strong>do</strong>s artistas dalírica, da prosa e da dança, experiências menos ilustres e semqualquer tipo de chancela oficial fizeram conhecer a música<strong>italia<strong>na</strong></strong> por meio de circuitos inespera<strong>do</strong>s e imprevistos.A inegável presença da lírica <strong>italia<strong>na</strong></strong> <strong>na</strong> formação<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> não se fez só de excursões ou missõeselevadas, como as comumente referidas. Nesta direção,para compreender as várias instâncias que compõem aexperiência teatral em formação no Brasil <strong>do</strong> século XIX,podem nos auxiliar em boa medida as considerações feitaspor Giusi Baldissone sobre “a província das maravilhas”<strong>italia<strong>na</strong></strong>:15A ópera O guarani estreouem 19 de março de 1870, noScala de Milão, depois seguin<strong>do</strong>para Florença, Gênova, Ferrara,Londres, Vicenza, Treviso,Turim, Palermo, Catânia,Reggio Emilia, Lugo, BuenosAires, Varsóvia, Rio de Janeiro,Montevidéu, Paris, SãoPetersburgo e Moscou, numtotal de 231 apresentações emoito anos. Segun<strong>do</strong> interpretaçãoque de mo<strong>do</strong> aproxima<strong>do</strong>se repete em vários sitesque circulam atualmente <strong>na</strong>web, “a obra de Carlos Gomescelebra o amor entre Cecy ePery, que transpõe as diferençasétnicas e culturais <strong>do</strong> casale carrega elementos simbólicosda formação <strong>do</strong> Brasil”.Disponível em .Acesso em 15 jan. 2007.história & <strong>teatro</strong>Mas o que maravilha e encanta não é tanto a passagemvercellese [Vercelli, cidade <strong>do</strong> Piemonte] de Carlota Marchionniem 1812, ou a de Adelaide Ristori em 1864, ou de Irma<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 69


16BALDISSONE, Giusi apudSGOTTO, Mario. La fabbricadelle meraviglie: <strong>teatro</strong> e spettacolonell’Ottocento a Vercelli.Torino: SEB 27, 2003, p.13 e 14 (Línea Teatrale – 5).17MAGALDI, Sábato, op. cit.,p. 61.Gramatica em 1896, quanto à própria forma de <strong>teatro</strong> proposta em seu conjunto:ape<strong>na</strong>s a tragédia não ia ao encontro de “contami<strong>na</strong>ções”, a comédia, ao contrário, eraproposta com a aproximação a formas <strong>do</strong> espetáculo de variedade, ao <strong>teatro</strong> de bonecose a outras formas espetaculares que iam da montagem <strong>do</strong> balão aerostático àexibição de animais em jaulas, a jogos de magia e fantasistas [...]. Tu<strong>do</strong> isso, longe decaracterizar uma realidade provincial que não mantinha bem diferenciadas as formasbaixas e as formas altas da representação teatral, ao contrário, caminhava <strong>na</strong>direção típica assumida pelo <strong>teatro</strong> em to<strong>do</strong>s os paises europeus: a da mistura <strong>do</strong>sgêneros e das formas, a da espetacularização das novidades, <strong>do</strong> próprio progresso daciência e da técnica. [...] Única exceção, em função <strong>do</strong>s custos de montagem, o <strong>teatro</strong> deópera, que freqüentemente resultou decepcio<strong>na</strong>nte devi<strong>do</strong> à modéstia <strong>do</strong>s recursosemprega<strong>do</strong>s. 16Um quadro histórico contami<strong>na</strong><strong>do</strong> de <strong>musical</strong>idadeApesar das limitações de toda ordem, a comédia de Martins Pe<strong>na</strong> representa de fato omarco inicial da fixação <strong>do</strong>s costumes <strong>brasileiro</strong>s, que são explora<strong>do</strong>s por JoaquimManoel de Mace<strong>do</strong>, José de Alencar, França Júnior e Artur Azeve<strong>do</strong>, os principaiscultores <strong>do</strong> gênero, numa continuidade de trabalhos que vem até o princípio desteséculo.Numerosos traços da comédia de Martins Pe<strong>na</strong> reaparecem nos sucessores, conservan<strong>do</strong>o seu eco e as qualidades mais autênticas. Pode-se afirmar que os textos de reaisméritos que se distinguem <strong>na</strong> segunda metade <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> <strong>na</strong>scem de umasugestão contida em suas farsas despretensiosas. 17Nestes <strong>do</strong>is trechos de Sábato Magaldi, colhi<strong>do</strong>s de sua detalhadaanálise das obras de um <strong>do</strong>s mais importantes dramaturgos <strong>brasileiro</strong>s,estão assi<strong>na</strong>la<strong>do</strong>s os aspectos substanciais da pedra angular da nossacomédia de costume, lugar de fundação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> e meio de construçãoda tradição teatral brasileira, em virtude <strong>do</strong> papel decisivo desempenha<strong>do</strong>pelo <strong>teatro</strong> de Martins Pe<strong>na</strong> (Rio de Janeiro, 1815-Lisboa, 1848): a“fixação <strong>do</strong>s costumes <strong>brasileiro</strong>s”, a construção de “farsas despretensiosas”,a emergência de “sucessores”.No que se refere aos modelos inpira<strong>do</strong>res <strong>do</strong> autor, além de elementosestruturais e temáticos da comédia nova, Magaldi e outros estudiososconvocam os entremezes ibéricos, mais que a alta comédia francesade Molière, cujos tipos psicológicos Martins Pe<strong>na</strong> não conseguiuimitar, reelaborar.Martins Pe<strong>na</strong> foi bravo conhece<strong>do</strong>r e também exímio cronistafolhetinista <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> lírico. São seus os folhetins publica<strong>do</strong>s <strong>na</strong> sessão Asema<strong>na</strong> lírica <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Commercio, em que Pe<strong>na</strong> a<strong>na</strong>lisou o espetáculolírico da Corte, entre agosto de 1846 e outubro de 1847, cuidan<strong>do</strong>tanto das questões de gênero como <strong>do</strong>s problemas de ence<strong>na</strong>ção nos palcos<strong>do</strong> Rio de Janeiro. Mas, como veremos, sua relação com a lírica <strong>italia<strong>na</strong></strong>não se esgotou <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong>s folhetins: a lírica <strong>italia<strong>na</strong></strong> foi motivo defun<strong>do</strong> de sua comediografia, permitin<strong>do</strong>, por exemplo, que a “mania daNorma” e a “sensibilidade das almas” provocada por Bellini protagonizassema comédia O diletante, de 1844:Ato únicoSala em casa de José Antônio. No fun<strong>do</strong>, porta de saída; à direita e esquerda, portas70<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


que dão para o interior. Rica mobília de mogno. À direita, um piano, sobre o qualestarão várias músicas, e à esquerda, um sofá, sobre o qual estará uma viola. 18Dentro <strong>do</strong> típico espaço “de gabinete” da comédia brasileira <strong>do</strong>Oitocentos, cerra<strong>do</strong> ponto de encontro <strong>do</strong> interior familiar, a sala <strong>na</strong>casa <strong>do</strong> protagonista desta comédia de Martins Pe<strong>na</strong> contém os elementostradicio<strong>na</strong>is necessários à ação: portas que dão acesso a espaços aindamais internos, uma porta de fun<strong>do</strong> para o contato com o mun<strong>do</strong>físico externo, o sofá, o piano, símbolo da modernidade <strong>do</strong> núcleo familiar,e também um outro elemento fundamental, a viola, instrumentorústico, colocada em ponto oposto ao piano. O tema da oposição entrecampo e cidade, província e Corte, periferia e centro, se apresenta, deimediato, em seus elementos essenciais, <strong>musical</strong>mente evoca<strong>do</strong>s pelonosso dramaturgo folhetinista da Sema<strong>na</strong> Lírica. Os <strong>do</strong>is instrumentosmusicais, de fato, serão o traço principal <strong>do</strong>s perso<strong>na</strong>gens antagonistas:de um la<strong>do</strong>, José Antônio, o diletante da Corte, <strong>do</strong>mi<strong>na</strong><strong>do</strong> pela “maniada Norma”, cantada por Augusta Candiani, que excita toda a cidade(recorde-se que este é tema presente também no romance de Mace<strong>do</strong>, Omoço loiro), e leva-o a confundir arte e vida; de outro, Marcelo, o “caipira”da província, “um paulista <strong>do</strong>s sertões”, comerciante rico, decidi<strong>do</strong>,sincero, mas ignorante das regras <strong>do</strong> gosto e da elegância da Corte e, oque é mais importante para o rendimento da peça, <strong>do</strong> lugar em que seencontra em visita (a casa de um diletante fanático). Ao “espírito” <strong>musical</strong>da lírica <strong>italia<strong>na</strong></strong>, obsessivamente cultivada pelo aluci<strong>na</strong><strong>do</strong> José Antônio,mas que Marcelo traduz como “cantigas” que “não percebe”, preferea matéria <strong>do</strong> fa<strong>do</strong>, melancólico e corpóreo, pra dançar “rasgadinho”.Marcelo quer desposar Josefi<strong>na</strong>, cujo pai, José Antônio justamente,coloca <strong>na</strong> sua balança, de uma parte, o dinheiro <strong>do</strong> pretendente, de outra,seu tão rústico mo<strong>do</strong> de ser, a ponto de impedir que aprecie o quepara ele tornou-se não ape<strong>na</strong>s objeto de conhecimento e deleite, masmotivo guia, como para um cego, de to<strong>do</strong>s os minutos de uma vidadiletante. De conseqüência, tece insensatas considerações sobre o mo<strong>do</strong>de resolver o grande problema de fun<strong>do</strong> — o matrimônio da filha — oproblema que toda a comédia de costume brasileira <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> deve resolver:história & <strong>teatro</strong>Ce<strong>na</strong> IIIJosé Antônio (só) — [...] O amigo Marcelo é homem rico, honesto e bom, ainda querústico. Coita<strong>do</strong>, nunca saiu de S. Paulo! É [a] primeira vez que vem à Corte; andaespan[ta]diço. Só uma coisa desgosta-me nele: o não gostar da música. Levei- o ontemao <strong>teatro</strong> para ouvir a Norma e <strong>do</strong>rmiu a sono solto durante toda a representação.Dormir, quan<strong>do</strong> se canta Norma! Isto só faz um paulista <strong>do</strong>s sertões! Dormir quan<strong>do</strong>se pode ouvir esse canto incomparável <strong>do</strong> Cisne da Itália! Infeliz mancebo! Belliniinimitável, rei das almas sensíveis, portento de harmonia, morreste, e tão pouco nosdeixaste! Morreste... A terra te seja... melodiosa! 19Que a situação, nesse caso, não seja de fácil resolução pode-se bemdeduzir em função <strong>do</strong>s caracteres ficcio<strong>na</strong>lmente fixa<strong>do</strong>s: de um la<strong>do</strong>, arusticidade <strong>musical</strong> <strong>do</strong> duro caipirismo paulista e, de outro, a hiperbólicae cega mania diletante de José Antônio. Os fatos se complicam mediantea rigidez de gostos musicais tão diversos, que arriscaria imobilizar o jogo18PENA, Martins. O diletante(1844). In: DAMASCENO,Darcy (org.). Martins Pe<strong>na</strong> –comédias. Rio de Janeiro: INL,1956, p. 215.19Idem, ibidem, p. 216.<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 71


20Ver ALENCASTRO, LuizFelipe, op.cit., especialmentep. 45 a 51.21A configuração, contami<strong>na</strong>dae dançante <strong>do</strong> fa<strong>do</strong>, quesurge <strong>do</strong> confronto da cançãopopular portuguesa com olundu <strong>brasileiro</strong>, é confirmadatambém pelos dicionárioscorrentes, como o Novo dicionárioAurélio: versão eletrônicaPositiva – V. 5.11.70: “2.Canção popular portuguesa,de caráter triste e fatalista, linhamelódica simples, ao somda guitarra ou <strong>do</strong> acordeão, eque provavelmente se origi<strong>na</strong><strong>do</strong> lundu <strong>do</strong> Brasil colônia,introduzi<strong>do</strong> em Lisboa apóso regresso de D. João VI(1821). 3. Bras. No séc. XVIII,dança popular, ao som da viola,com coreografia de rodamovimentada, sapatea<strong>do</strong>s emeneios sensuais”.22Vale a pe<strong>na</strong> notar a implementação<strong>do</strong> caráter “sensível”ao perso<strong>na</strong>gem simplório,realiza<strong>do</strong> por nosso autor,nesse momento, ape<strong>na</strong>spor meio de uma intervençãode ordem vocabular, tão densaquanto precisa: “fadinho”,diminutivo que exprime agra<strong>do</strong>;“rasgadinho”, diminutivode “rasga<strong>do</strong>”, utiliza<strong>do</strong> parao mesmo fim e referin<strong>do</strong>-se ao“acompanhamento peculiar acertos instrumentos populares,como a guitarra, o violão,a viola de arame, e que consisteem passar as unhas, sucessivae rapidamente sobreas cordas, sem as pontear”.“Dança executada ao somdesse acompanhamento”. Novodicionário Aurélio: versão eletrônicaPositiva – V. 5.11.70.Mas, vale a pe<strong>na</strong> notar, sobretu<strong>do</strong>,a corporeidade dançanteimplicada <strong>na</strong> <strong>musical</strong>idade“rasgadinha”, aqui recordadapelo caipira “<strong>do</strong> interior” Marcelo.23PENA, Martins, op. cit., p.217 e 218.24Ver SCHWARZ, Roberto. Asidéias fora <strong>do</strong> lugar. Estu<strong>do</strong>sCebrap 3, São Paulo, Cebrap/Editora Brasileira de Ciências,1973.entre os perso<strong>na</strong>gens, não tivesse nosso autor cria<strong>do</strong> esta exagerada contraposiçãocom caráter exclusivamente formal, <strong>musical</strong>mente contrapontístico,propicia<strong>do</strong>r de intenso ritmo cênico. A confirmar que o empenhomaior é formal, <strong>musical</strong>, e não ape<strong>na</strong>s o de retratar, ou fixar, umquadro real, que não subsistiria frente à qualquer realidade, mesmo quepara fins de crítica feroz, estaria o fato de que, quan<strong>do</strong> se tornou freqüente<strong>na</strong>s casas <strong>do</strong>s aristocratas e da peque<strong>na</strong> burguesia urba<strong>na</strong> daCorte, o piano já era utiliza<strong>do</strong> para tocar músicas mais populares; alémda ópera, a música e as danças afro-brasileiras, a modinha 20 . No entanto,como e quanto Martins Pe<strong>na</strong> tira vantagem <strong>musical</strong> de um argumentoque evidentemente encontra lastro em práticas sociais da época, podesever no trecho que segue:Ce<strong>na</strong> IVMarcelo — [...] Tomara-me já em S. Paulo! (Senta-se no sofá.)José Antônio — Homem, goze primeiro os prazeres da Corte. Não queira enterrar-seem vida no sertão. Vá ao <strong>teatro</strong> ouvir Norma, Belisário, A<strong>na</strong> Bole<strong>na</strong>, Furioso.Marcelo — Não acho graça nenhuma. Umas cantigas que eu não percebo e que não sepode dançar. Não há <strong>na</strong>da como um fa<strong>do</strong>. 21José Antônio — Que horror, preferir um fa<strong>do</strong> à música <strong>italia<strong>na</strong></strong>! (À parte:) O que faza ignorância!Marcelo — É que o senhor ainda não ouviu um fadinho bem rasgadinho e bemchoradinho. 22 (Pega <strong>na</strong> viola e afi<strong>na</strong>, enquanto José Antônio fala)José Antônio — Nem quero ouvir! Não diga isto a ninguém, que desacredita. Amúsica <strong>italia<strong>na</strong></strong>, meu amigo, é o melhor presente que Deus nos fez, é o alimento dasalmas sensíveis.Marcelo — Pois o meu alimento é feijão com toucinho, fubá de milho e lombo deporco.José Antônio — Que blasfêmia! (À parte:) É o que faz a ignorância! 23Certamente, não se trata aqui de fixar um costume, mas sim deprovocar, por meio da exagerada contraposição de caracteres formaistão evidencia<strong>do</strong>s, elabora<strong>do</strong>s artisticamente a partir de matéria local, ahipérbole que deriva desta verdadeira oposição por oxímoro, bem presente<strong>na</strong>quela comicidade popular tradicio<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s entremezes e das farsas,é verdade. Trata-se ao mesmo tempo de uma operação cultural fundamental:não tanto espelhar a realidade, mas colocar o de<strong>do</strong> numa desuas principais feridas, a que deriva da violência <strong>do</strong> escravismo diante<strong>do</strong> qual to<strong>do</strong> sonho liberal, cultiva<strong>do</strong> por intelectuais ou diletantes “espirituosos”,é sempre obriga<strong>do</strong> a reconhecer seu próprio avesso. Quanto àintenção ou capacidade de espelhamento, no máximo, esta espécie decomédia <strong>musical</strong> oferece um retrato inverti<strong>do</strong>, que diverte levan<strong>do</strong> à ce<strong>na</strong>o ponto crucial da mais profunda contradição oitocentista <strong>do</strong> Brasil: sonharuma realidade de inspiração liberal e viver a evidência da escravidão,diante da qual to<strong>do</strong> homem livre vê-se constringi<strong>do</strong> a enga<strong>na</strong>r-secontinuadamente e não pode deixar de reconhecer que se encontra numacondição privilegiada, que se situa, afi<strong>na</strong>l, sempre “fora de lugar”. 24Não deixa de ser uma vida feita <strong>teatro</strong> aquela com que joga cenicamenteMartins Pe<strong>na</strong>, justamente graças à pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte impostação<strong>musical</strong>. A sua tor<strong>na</strong>-se assim metateatralidade trabalhada sobre o ritmo,numa comédia que termi<strong>na</strong> por se confundir com um melodrama,72<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


com direito a uma patética morte fi<strong>na</strong>l. A leitura das últimas ce<strong>na</strong>s éinteressante para avaliar o envolvimento <strong>do</strong> autor <strong>na</strong> calibração <strong>do</strong> ritmocom o qual, <strong>na</strong> verdade, elabora a inteira comédia, de ato único (<strong>na</strong>justa medida da duração adequada para sua função cênica, próxima a<strong>do</strong> intermezzo <strong>musical</strong>, no percurso da apresentação espetacular “séria”,lírica ou não):Ce<strong>na</strong> XVIIIJosefi<strong>na</strong> — [...] (Quan<strong>do</strong> volta para sair, aparece-lhe à porta D. Perpétua com<strong>do</strong>is filhinhos pela mão) — Quem é?Perpetua, entran<strong>do</strong> — Per<strong>do</strong>e-me, minha senhora, se a venho importu<strong>na</strong>r...Josefi<strong>na</strong>, com bondade — Não me importu<strong>na</strong>. Se quisesse ter a bondade de dizer-mequem é?Perpetua — Sou uma desgraçada que venho implorar a sua bondade e compaixão, epor[que] sei que está <strong>na</strong>s suas mãos o não ser eu mais infeliz <strong>do</strong> que sou...Josefi<strong>na</strong> — Quem será?Perpetua — Como eu, é a senhora moça e inexperiente, e como eu, também pode serenga<strong>na</strong>da...Josefi<strong>na</strong> — Ah!Perpetua — Não me queixo; fui culpada. Aban<strong>do</strong>nei aos meus para seguir um pérfi<strong>do</strong>,mas meus filhos, meus inocentes filhos, que culpa têm <strong>do</strong>s meus desvarios? (Obriga-osa ajoelharem-se.) Eles vos pedem pela minha voz que não lhe roubeis seupai... (Aqui aparece à porta Antônio, que ven<strong>do</strong> o que se passa, pára surpreendi<strong>do</strong>.)...que talvez algum dia, arrependi<strong>do</strong>, ainda se compadeça deles...história & <strong>teatro</strong>Ce<strong>na</strong> XIXJosé Antônio, caminhan<strong>do</strong> para frente — Bravo! Bravíssimo! (As duas surpreendem-se;os pequenos conservam-se de joelhos.) Continuem, eu acompanho.(Vai para o piano.)Perpetua — Ah!Josefi<strong>na</strong> — Continuar o quê, senhor?José Antônio — Pois não é o dueto da Norma que estavam cantan<strong>do</strong>?Josefi<strong>na</strong> — Qual dueto! Que loucura!José Antônio, caminhan<strong>do</strong> para ela — Ó filha, pois eu pensei que ias cantar. Vi estes<strong>do</strong>is pequenos de joelhos, julguei que tu ias fazer de Norma e ali a senhora de Adalgisa...Josefi<strong>na</strong> — E não se enganou de to<strong>do</strong>. Somente trocou os nomes: aqui a Adalgisa soueu, e a senhora a Norma, porque é a traída e aband[o<strong>na</strong>da] pelo falso...José Antônio — Pollione?Josefi<strong>na</strong> — Qual Pollione! Pelo Dr. Gaudêncio!José Antônio — Hem? O que estás dizen<strong>do</strong>?Ce<strong>na</strong> XXIEntra um pajem com uma carta, que entrega a [José] AntônioPajem — Esta carta que acabam de trazer para o senhor. (Entrega a carta.)José Antônio, abrin<strong>do</strong> a carta — Com sua licença. (Len<strong>do</strong> em voz alta:) “Meuamigo, <strong>do</strong>u-lhe a mais triste e infausta nova que se pode dar a um diletante.” (Deixan<strong>do</strong>de ler:) O que será? (Len<strong>do</strong>:)”Fecha-se o nosso <strong>teatro</strong> e a Companhia Italia<strong>na</strong>vai para a Europa.” (José Antônio acaba de ler a carta; fica por alguns instantestrêmulo, levanta os braços, dá um pungente gemi<strong>do</strong> e cai morto.)To<strong>do</strong>s — Ah! (Merencia<strong>na</strong> abaixa para socorrer Antônio. Grupo.)Gaudêncio, de joelhos, junto de José Antônio — Está morto!<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 73


25PENA, Martins, op. cit., p.233, p. 236 e 237.26Joaquim Manuel de Mace<strong>do</strong>(Itaboraí, 1820 – Rio de Janeiro,1882). Autor fecun<strong>do</strong>, degrande sucesso de público, cujoromance mais conheci<strong>do</strong> éA moreninha (1844). Situa<strong>do</strong>pelos estudiosos da formação<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>na</strong> linha decontinuidade entre MartinsPe<strong>na</strong> e José de Alencar, paranão falar de Arthur Azeve<strong>do</strong>,a <strong>musical</strong>idade esfuziante desuas comédias de costume(lembre-se A torre em concurso(1863), a título de exemplo)pode corroborar as considerações<strong>do</strong> presente texto.To<strong>do</strong>s — Morto! Que desgraça! (Grupam-se em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> corpo de Antônio e caio pano)[FIM] 25A modulação cômica <strong>musical</strong> inteiramente melodramática desteato único <strong>do</strong> nosso folhetinista de <strong>teatro</strong> lírico, funda<strong>do</strong>r da tradição dacomédia de costume brasileira, cria<strong>do</strong>r ou recria<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s recursos teatraismais importantes depois utiliza<strong>do</strong>s por tantos outros autores até o fi<strong>na</strong>l<strong>do</strong> século XIX, é emblemática de uma característica presente em toda aobra de Pe<strong>na</strong> e que prosseguirá, mais ou menos fortemente, <strong>na</strong> produçãocômica em que a música foi tema importante ou estrutura fundante:composição teatral voltada para a geração de intermezzi <strong>na</strong> noitada <strong>do</strong>espetáculo sério e elegante, que também satisfazia o público da classemédia urba<strong>na</strong> paulati<strong>na</strong>mente em formação no Rio de Janeiro. Dramaturgiaconsiderada sem pretensões, distendida por um único ato, escritapensan<strong>do</strong> justamente no lugar e <strong>na</strong> duração de sua colocação emce<strong>na</strong>: os intervalos, ou ao fi<strong>na</strong>l da obra séria que era o ponto forte, se não<strong>do</strong> gosto, ao menos <strong>do</strong> projeto de teatral <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l civiliza<strong>do</strong>r.Além de criar um bem sucedi<strong>do</strong> e funcio<strong>na</strong>l sistema, a comédia decostume de Martins Pe<strong>na</strong>, ainda quan<strong>do</strong> buscou elaborar, gradualmente,uma comediografia mais empenhada, mais séria e realista, jamaisalcançou, no desenvolvimento de nossa tradição teatral, um lugar dehonra no seio <strong>do</strong> projeto iluminista ilustra<strong>do</strong>. Mas, extremamente <strong>musical</strong>e teatralizada, esta espécie inicial de <strong>teatro</strong> musica<strong>do</strong> ofereceu festividadepopular e jogo farsesco com nossas piores características ou condiçõesmais problemáticas, devidas, como vimos, à situação de privilégio,de auto-engano contínuo e necessário para sobreviver, com a liberdadepossível, em convívio com a escravidão. Comédias de costumes com tantode <strong>musical</strong>idade que, também por isso, encontraram o gosto <strong>do</strong> públicoe assim realizaram uma certa continuidade teatral espetacular noBrasil <strong>do</strong> século XIX.A capacidade de Martins Pe<strong>na</strong> de observar esses costumes e operarartisticamente, por aproximações de opostos, desnudan<strong>do</strong> falsas aparênciase descobrin<strong>do</strong> o avesso da medalha, com expedientes cômicosteatrais e musicais, trará sua grande contribuição para a constituição deuma comédia de costume brasileira que nele não se tor<strong>na</strong> tanto um reflexopassivo ou realista da “matéria local”, colocada em confronto com asperspectivas exter<strong>na</strong>s, mas é escrita justamente como matéria de ce<strong>na</strong>,como obra cômica intensamente teatralizada. Os “sucessores” deverãofazer suas contas com um funda<strong>do</strong>r desse gênero e nível e, além de colhere reformular as sugestões destas experiências iniciais tão farsescasquanto melodramáticas, e decisivas para o <strong>teatro</strong> em formação no país,terão a árdua tarefa de se endereçar para um modelo “mais alto” decomédia e de <strong>teatro</strong>: a comédia de costume realista no Brasil, como veremos,deverá confrontar-se com esta tradição de <strong>teatro</strong> cômico musica<strong>do</strong>.Represamento <strong>musical</strong> <strong>na</strong> alta comédia realistaPor meio das comédias de José de Alencar (Ceará, 1829 – Rio deJaneiro, 1877) — romancista indianista de O guarani (1857), Iracema(1865), Ubirajara (1874) e dramaturgo realista de Rio de Janeiro, verso e74<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


everso e O demônio familiar (1857) —, o projeto realista, primorosa experiênciada ideologia ilustrada traduzida <strong>na</strong> percepção <strong>do</strong> “<strong>teatro</strong> comomissão”, foi coloca<strong>do</strong> <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> de nossa formação, alian<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> particular,e não sem contradições, o particular e o universal, com o méritode cruzar as formas de tratamento da relação amorosa presente <strong>na</strong> comédianova com os novos modelos <strong>do</strong> amor romântico, minuciosamentea<strong>na</strong>lisa<strong>do</strong> e resolvi<strong>do</strong>, no entanto, num matrimônio dita<strong>do</strong> por preceitosmorais próprios da constituição da família brasileira, então estruturadaa meio caminho entre os modelos patriarcal e burguês. Nessa dramaturgia,a <strong>musical</strong>idade fluente <strong>na</strong> prosa cômica de Martins Pe<strong>na</strong> e de Mace<strong>do</strong> 26será estancada e reduzida a papéis secundários, principalmente por meioda presença <strong>do</strong> raisonneur.No que se refere ao projeto realista, entre os anos cinqüenta e sessenta<strong>do</strong> século XIX, nos encontramos em ponto nodal da formação teatrale para compreender o papel da música e com ela o da presença<strong>italia<strong>na</strong></strong> nesse momento, é fundamental observar o lugar a ela reserva<strong>do</strong><strong>na</strong> peça O demônio familiar, a mais importante comédia de costume realistabrasileira.No emblemático O demônio familiar, como a ela parece referir-seDécio de Almeida Pra<strong>do</strong> 27 , uma comédia em quatro atos de 1857 quepode relacio<strong>na</strong>r Alencar à tradição da comédia de costume, o autor seaproximou com mais eficácia que em outras obras cômicas <strong>do</strong> projetorealista de <strong>teatro</strong> empenha<strong>do</strong> e civiliza<strong>do</strong>r, ao mesmo tempo em quemelhor realizou a ambição de compor alta comédia, segun<strong>do</strong> o modelofrancês da comédia burguesa moder<strong>na</strong>. É importante frisar desde logoque, seja em relação ao argumento da peça, seja pela resolução formalda obra, José de Alencar alcança uma maturação que, ao sintetizar tãosignificativamente os elementos mais importantes <strong>do</strong> projeto realista noBrasil, termi<strong>na</strong> por alcançar o ponto mais alto daquele caráter ilustra<strong>do</strong>e civiliza<strong>do</strong>r, liberal e burguês, então possível em terra e <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>s.A dramaturgia, os folhetins, as idéias teatrais em geral de José deAlencar se inserem limpidamente no universo mental e cultural delinea<strong>do</strong>por Antonio Candi<strong>do</strong> e por ele denomi<strong>na</strong><strong>do</strong> “consciência ame<strong>na</strong> <strong>do</strong>atraso”. Em perspectiva realista liberal, ao meu ver, a tessitura de O demôniofamiliar, ence<strong>na</strong>da no mesmo ano em que foi escrita, no TeatroGinásio Dramático <strong>do</strong> Rio de Janeiro, <strong>teatro</strong> depositário das maiores experiênciascênicas brasileiras neste âmbito, é o exemplo máximo das possibilidadese <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> movimento teatral realista traduzi<strong>do</strong> em comédia;limites que ao fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s anos sessenta ainda eram insuperáveis,dada a continuidade “modernizada” <strong>do</strong> sistema escravista, elementodetermi<strong>na</strong>nte da configuração <strong>do</strong> perfil <strong>do</strong> país durante to<strong>do</strong> o séculoXIX, como bem demonstra Alencastro:história & <strong>teatro</strong>o escravismo não se apresenta como uma herança colonial, como um vínculo com opassa<strong>do</strong> que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, istosim, como um compromisso para o futuro: o Império retoma e reconstrói a escravidãono quadro <strong>do</strong> direito moderno, dentro de um país independente, projetan<strong>do</strong>-a sobre acontemporaneidade. 28O demônio familiar, curioso protagonista cômico e ridículo da co-27Ver PRADO, Décio de Almeida.Teatro de Anchieta aAlencar, op. cit., p. 299-344.28ALENCASTRO, Luiz Felipe,op. cit., p. 17.<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 75


29ALENCAR, José de. O demôniofamiliar (1857). In:AGUIAR, Flávio. (org.) Antologia<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>: aaventura realista e o <strong>teatro</strong>musica<strong>do</strong>. São Paulo: Se<strong>na</strong>c,1998, p. 99 e 100. “Engonço”:a escolha <strong>do</strong> vocábulo não écasual, mas jogo de palavras,a indicar também uma possívelcrítica sutil à dança e aodivismo nela presente. “Engonço”,de fato, sugere per<strong>na</strong>sque se <strong>do</strong>bram, extremamentemaleáveis, mas tambémaparelho, mecanismo. Eremete à hipótese de crítica,rebaixa<strong>do</strong>ra, <strong>do</strong> movimentocorpóreo dançante. Vale ape<strong>na</strong> lembrar a grande polêmicagerada pelo divismo decorrenteda presença protagonistadas bailari<strong>na</strong>s no baléromântico e <strong>do</strong> grande espaçoque os espetáculos de dançacomeçaram a ocupar, emmuitos momentos, assustan<strong>do</strong>até mesmo os dramaturgos<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> de prosa. Foi ocaso, <strong>na</strong> Itália, <strong>do</strong> autor daconhecida A morte civil (1861),Paolo Giacometti. Autor decompanhia, que trabalhoupara Compagnia Reale Sardae escreveu para Adelaide Ristori,escreveu em 1841 Il poetae la balleri<strong>na</strong>, uma peça-manifestoem que atribuiu ao fascínioda bailari<strong>na</strong>, de seu corpoem movimento sobre a ce<strong>na</strong>(que neste caso teria observa<strong>do</strong>no que chamou “triunfosde Fanny Cerrito”) no espetáculode dança, a decadência<strong>do</strong> público <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> deprosa.média de costumes realista de Alencar, é o “típico” moleque (o vocábulodicio<strong>na</strong>riza<strong>do</strong> diz: quimbun<strong>do</strong>, língua banta africa<strong>na</strong>: menino; negrinho,jovem <strong>do</strong>méstico, indivíduo sem palavra, ca<strong>na</strong>lha, velhaco, demônio) denome Pedro, escravo <strong>do</strong>méstico, propriedade de nhanhã Carlotinha (iaiá,sinhá, expressão com que os escravos se dirigem a suas senhoras), desti<strong>na</strong><strong>do</strong>a desenvolver inúmeras atividades, dentro e fora de casa: limparquartos e tapetes, servir o chá <strong>na</strong> sala de visitas, andar pra lá e pra cá, acumprir pequenos afazeres, realizar peque<strong>na</strong>s despesas, entregar milcoisas, dentre as quais cartas e bilhetes de to<strong>do</strong> tipo, mas especialmentede amor. Pedro sabe um pouco de italiano, que, como to<strong>do</strong> o resto, foiaprendi<strong>do</strong> de memória, principalmente em função da tarefa de entregaras flores que seu patrão envia à “dançari<strong>na</strong> <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>”, mas também emmeio ao rumorejo da gente elegante que caminha pela Rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r,com suas vitrines cheias de objetos à última moda francesa e cujos sons emovimentos o moleque traz pra o interior da casa, embala<strong>do</strong>s no ritmovivaz de sua fala e de seu corpo. As pessoas saem <strong>do</strong>s cafés ou <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>,e pela estrada ecoam as árias mais populares da última ópera ence<strong>na</strong>da,os jovens se apaixo<strong>na</strong>m pelas bailari<strong>na</strong>s <strong>italia<strong>na</strong></strong>s e mandam flores, demo<strong>do</strong> que nosso Fígaro pode-se permitir tiradas de ce<strong>na</strong> moderadas eespirituosas como esta:Ce<strong>na</strong> VPedro, CarlotinhaCarlotinha — Já escrevi! Ah! Mano não está!... Pedro!...Pedro- Nhanhã!Carlotinha — Que fazes tu aí?Pedro — Oh! Pedro não está tão bom hoje, não; senhor está zanga<strong>do</strong>.Carlotinha — Por quê? Por causa de Henriqueta?Pedro — Sim. Pedro fez história de negro, enganou senhor. Mas hoje mesmo tu<strong>do</strong>fica direito.Carlotinha — Que vais tu fazer? Melhor é que estejas sossega<strong>do</strong>.Pedro — Oh! Pedro sabe como há de arranjar este negócio. Nhanhã não se lembra, no<strong>teatro</strong> lírico, uma peça que se representa e que tem homem chama<strong>do</strong> senhor Fígaro,que canta assim:Tra-la-la-la-la-la-la-la-tra!!Sono un barbiere di qualità!Fare la barba per carità!...Carlotinha (Rin<strong>do</strong>-se.) — Ah! O Barbeiro de Sevilha!Pedro — É isso mesmo. Esse barbeiro, senhor Fígaro, homem fino mesmo, faz tantacousa que arranja casamento de sinhá Rosinha com nhonhô Lindório. E velho <strong>do</strong>utorfica chupan<strong>do</strong> no de<strong>do</strong>, com aquele frade D. Basílio!Carlotinha — Que queres tu dizer com isto?Pedro — Pedro tem manha muita, mais que senhor Fígaro! Há de arranjar casamentode senhor moço Eduar<strong>do</strong> com sinhá Henriqueta. Nhanhã não sabe aquela ária quecanta sujeito que fala grosso? (Cantan<strong>do</strong>:) “La calunnia!...”Carlotinha — Deixa-te de prosas!Pedro — Prosa, não; é verso! Verso italiano que se canta!Carlotinha (Rin<strong>do</strong>.) — Tu também sabes italiano?Pedro — Ora! Quan<strong>do</strong> senhor moço era estudante e mandava levar ramos de flor àdançari<strong>na</strong> <strong>do</strong> <strong>teatro</strong>, aquela que tem per<strong>na</strong> de engonço, Pedro falava mesmo comopatrício dela: Un fiore, signori<strong>na</strong>! 2976<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


Como se pode ver, nosso demônio familiar é emblema também, ede não pouca monta, <strong>do</strong> mesmo circuito promotor de co-presenças deespetáculos musica<strong>do</strong>s, entre Europa e Brasil, a que já remetemos: o quepermitiria, neste caso, a multiplicação da referencialidade da música,devi<strong>do</strong> à decli<strong>na</strong>ção <strong>musical</strong> de experiências artísticas anteriores baseadas<strong>na</strong> obra paradigmática de Beaumarchais. 30 A concisão realista deAlencar, no entanto, não tira proveito destes veios musicais anuncia<strong>do</strong>s,que ficarão reti<strong>do</strong>s <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> referida.A memória de Pedro, campo preferencial a partir <strong>do</strong> qual acio<strong>na</strong>rsua vivaz inteligência e idear planos imediatos de sobrevivência e decuriosa e controlada ascensão (seu único sonho é, preservada sua condiçãoescrava, tor<strong>na</strong>r-se cocheiro de <strong>na</strong>nhã), guia o seu discurso e to<strong>do</strong> oseu corpo, sempre de mo<strong>do</strong> esperto e veloz, pela casa e pelas ruas, emsuas constantes escapadas de repreensões e basto<strong>na</strong>das, sempre que faz“história de negro”, como ele mesmo diz, “enga<strong>na</strong>n<strong>do</strong>” seu senhor. Eserá a mesma linguagem corpórea extremamente ágil deste Fígaroalencariano a trazer um pouco daquele mun<strong>do</strong> “externo”, aberto e to<strong>do</strong>movimento, de praças e ruas da Corte <strong>do</strong> Rio de Janeiro, para o internoquase imóvel desta peque<strong>na</strong> família burguesa, toda intimidade e confidências,que mantém, porém, como nos fará ver a trama da peça, forteslaços com a casa grande patriarcal. A casa citadi<strong>na</strong>, modesta casa burguesada Corte, onde habita e trabalha o demônio familiar, falso Fígaroe verdadeiro escravo, é o lugar que custodia os negócios sociais, econômicose sentimentais. Ali deve encontrar seu lugar também este Pedro,to<strong>do</strong> vórtices e piruetas físicas e verbais, ao qual a ausência de identidadeprópria não consente o uso da língua em primeira pessoa. O escravo<strong>do</strong>méstico, quan<strong>do</strong> fala, diz sempre, referin<strong>do</strong>-se a si mesmo, “ele”,“Pedro”, a exprimir, no cerco da memória gerada pela habitualidadeconsentida, a sua consciência possível, derivada de uma existência queconsiste no ser exclusivamente propriedade de outrem.Perso<strong>na</strong>gem importante, Pedro é uma espécie de protagonista àsavessas, que se sustenta num frágil equilíbrio até o momento fi<strong>na</strong>l da altacomédia de costumes de José de Alencar, pois que, afi<strong>na</strong>l, o Fígaro damais importante comédia realista de costumes brasileira é perso<strong>na</strong>gemreduzi<strong>do</strong> ao espaço de uma memória (sensível e corpórea) não origi<strong>na</strong>l,transfigurada para fins de sobrevivência. E nele Alencar irá concentrara <strong>musical</strong>idade calculada <strong>na</strong> medida para o tom sério e conciso adequa<strong>do</strong>ao modelo da alta comédia. Comparativamente, resulta que a experiêncialírica resta bastante circunscrita, coloratura irrisória, desti<strong>na</strong>da asufocar junto com a radicalmente invertida punição impingida ao perso<strong>na</strong>gemno encerramento da peça. Encerramento, aliás, em completaconcordância com aquela “modernização” desti<strong>na</strong>da a projetar o sistemaescravo para o futuro, como já referi<strong>do</strong>. 31Pedro, reduzi<strong>do</strong> à figura <strong>na</strong> longa conversação que constitui e dásenti<strong>do</strong> aos demais perso<strong>na</strong>gens, é contraposto ao protagonista razoável,to<strong>do</strong> bom senso, de calmos e longos discursos, tempera<strong>do</strong>s, plenosde lógica e boa moral burguesa, Eduar<strong>do</strong>. O protagonista sério da altacomédia de estampo francês adequada à realidade brasileira para ajudara civilizá-la em moldes modernos tem o papel de primogênito, irmãomais velho de grande envergadura moral e social: substituto <strong>do</strong> velhopai, ampara a união familiar, provê a sua continuidade e, com sabe<strong>do</strong>ria30Il Barbiere di Siviglia é umaópera cômica de GioacchinoRossini com libreto de CesareSterbini, basea<strong>do</strong> <strong>na</strong> peça deBeaumarchais Le Barbier deSéville, de 1775. Ao la<strong>do</strong> de LeMariage de Figaro, de 1784,colocada em ópera por Mozart,Le nozze di Figaro, LeBarbier é composição dramatúrgicade Beaumarchais historicamentereferida comopeça teatral que, pela primeiravez, admite, como obra sériade alta comédia, a possibilidadede efetivo protagonismoexercita<strong>do</strong> por parte deum perso<strong>na</strong>gem de classe subalter<strong>na</strong>.A concisão realistade Alencar, no entanto, nãotira proveito desses versosmusicais anuncia<strong>do</strong>s, que ficarãoreti<strong>do</strong>s <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> referida.31É por isso que a liberdadefi<strong>na</strong>l concedida por Eduar<strong>do</strong>a Pedro é vista por Alencarcomo punição: uma gravepunição desti<strong>na</strong>da ao molequeescravo pela mão (e pelasidéias) <strong>do</strong> raisonneur <strong>brasileiro</strong>,digno, socialmente sensato,espirituoso e elegante, masque mantém a força herdada<strong>do</strong> pai patriarca quan<strong>do</strong> deveresolver problemas decisivoscomo aqueles procura<strong>do</strong>s porPedro, a quem agora caberátotal responsabilidade pelospróprios atos, como bem frisao ex-senhor.história & <strong>teatro</strong><strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 77


32FARIA, João Roberto. Idéiasteatrais: o século XIX no Brasil.São Paulo: Perspectiva,2001, p. 155. Mais adiante,dirá João Roberto que “alémde Macha<strong>do</strong>, Alencar, LuisLeitão e Joaquim Manoel deMace<strong>do</strong>, vários escritores eintelectuais importantes[...]manifestaram-se sobre a situação<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> nosanos que se seguiram à ence<strong>na</strong>çãode Orphée aus Enfers, noAlcazar”, p. 160.sem par, administra <strong>do</strong> início ao fim da comédia a trama amorosa dajovem irmã Carlotinha e o restrito círculo de existência <strong>do</strong> escravo Pedro.Eduar<strong>do</strong>, o protagonista eleva<strong>do</strong> da alta comédia, realista, brasileira,sonha alturas que não consegue alcançar, em função de um aparentementeduplo protagonismo constituí<strong>do</strong> à base de um espelho inverti<strong>do</strong>,e sobretu<strong>do</strong> porque a trama mantém-se suspensa, presa <strong>do</strong> inícioao fim da peça aos fios entreteci<strong>do</strong>s por uma exclusiva, contínua, elegantee etérea conversação moral, liberal e exemplar, que praticamentenão varia o tom e não se faz jamais ação. Na linearidade dessa prosódia,o jorro <strong>musical</strong> anuncia<strong>do</strong> fica conti<strong>do</strong> e se restringe a aquelas peque<strong>na</strong>s<strong>do</strong>ses de suave e pitoresco sabor, destiladas pela traquinice <strong>do</strong> Fígaroescravo amoroso aqui referidas.E não poderia ser de outro mo<strong>do</strong>, pois que a comédia de José deAlencar, ali onde procurou soerguer as aspirações civiliza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> <strong>teatro</strong><strong>brasileiro</strong> em formação no século XIX, bem sob os ditames <strong>do</strong>s ideaisburgueses, e deven<strong>do</strong>, para tanto, retratar e ao mesmo tempo propor oque seria um país melhor porque moderno, exprime, como foi dito, oponto máximo da contradição própria daquele querer formar-se não sócomo o espelho <strong>do</strong> outro, mas também com o espelho <strong>do</strong> outro, que,nesse caso, resulta em espelho diverso. De sua superfície as idéias liberais<strong>do</strong> momento escorrem como água e perdem pé <strong>na</strong> estilhaçada realidade<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, escravocrata, sulcada de mo<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> por seus contrastesextrema<strong>do</strong>s.A <strong>musical</strong>idade reanimada <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> séculoO retrato parcial e inverti<strong>do</strong> construí<strong>do</strong> pela comédia realista decostume no Brasil parece indicar que as experiências iniciadas com otrabalho farsesco empreendi<strong>do</strong> por Martins Pe<strong>na</strong> teriam chega<strong>do</strong> a ummomento crucial, segun<strong>do</strong> termos <strong>do</strong> projeto iluminista. Demonstra-ouma significativa passagem <strong>do</strong> malogro da ence<strong>na</strong>ção de O Jesuíta deJosé de Alencar em 1875, pois “para tristeza <strong>do</strong> escritor, a ence<strong>na</strong>ção foium enorme fracasso. Depois de <strong>do</strong>is espetáculos, não havia mais públicointeressa<strong>do</strong> no drama histórico concebi<strong>do</strong> para glorificar a luta pela independênciano país” e “<strong>na</strong> mesma noite em que O Jesuíta estreava, a 18de setembro, estavam em cartaz as operetas Orphée aus Enfers e La fille deMme Angot. 32Para a perspectiva ilustrada, o paulatino sucesso <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> musica<strong>do</strong>pareceu indicar um <strong>do</strong>s principais motivos <strong>do</strong> que via como a decadência<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Uma falência que parecia poder abarcar a inteiraexperiência da produção cômica teatral brasileira, não fosse o fato queesta, sempre sob o perfil da comédia de costume, voltava a ligar-se complenitude à música que a ela sempre estivera bastante próxima, à parte adensa mas breve experiência realista.De fato, antes que a comédia perdesse totalmente o lugar conquista<strong>do</strong>durante o processo de formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>, novamente<strong>teatro</strong> e música — estes <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s artísticos que o projeto teatralciviliza<strong>do</strong>r, <strong>na</strong> dialética entre grandes experimentos dramatúrgicos e gosto<strong>do</strong> público, não parecia querer ver coliga<strong>do</strong>s — aproximaram-se novamentenos últimos anos <strong>do</strong> século, em virtude especialmente da enormee divertidíssima criação dramatúrgica espetacular de Arthur Azeve<strong>do</strong>78<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


(São Luís <strong>do</strong> Maranhão 1855 – Rio de Janeiro 1908), um de nossos maisimportantes dramaturgos, autor de inúmeras obras teatrais, verdadeirohomem <strong>do</strong> espetáculo, jor<strong>na</strong>lista e crítico, <strong>do</strong> qual se pode dizer que tenhacria<strong>do</strong> o <strong>teatro</strong> de revista <strong>brasileiro</strong> e consolida<strong>do</strong> a possibilidade dacomédia <strong>musical</strong> de costumes por meio de uma nova relação por eleestabelecida entre <strong>teatro</strong> e música popular.Arthur Azeve<strong>do</strong> é o autor de uma das mais conhecidas obras <strong>do</strong><strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>do</strong> Oitocentos, A capital federal, de 1897, por ele definidacomo “comédia opereta de costumes”! Sua maestria <strong>na</strong> nova reunião demúsica e <strong>teatro</strong> nos últimos anos <strong>do</strong> século durante o qual o <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong>veio se forman<strong>do</strong> fi<strong>na</strong>lmente estabeleceu um sistema bastante sóli<strong>do</strong>e capaz de articular, de mo<strong>do</strong> intensamente produtivo, autores e compositores,dramaturgia, ce<strong>na</strong> e público. Gerou uma produção espetacularcômica que, ao imitar, parodiar, traduzir e recompor os recentíssimosmodelos <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> popular europeu (da opereta à revista), uniu matériauniversal (o <strong>teatro</strong> parisiense, neste perío<strong>do</strong>, era o centro que acolhia efazia fervilhar experiências espetaculares populares de boa parte daEuropa) e matéria local, de maneira totalmente nova no Brasil. Criouuma espécie de dramaturgia cênica avant la lettre, feita de matéria teatrale <strong>musical</strong>, de fatos <strong>do</strong> dia radicalmente transforma<strong>do</strong>s, porém, emfatos de ce<strong>na</strong>, num ritmo de criação jamais visto anteriormente por partede um autor <strong>brasileiro</strong>. Criação que alimentou o profissio<strong>na</strong>lismo detrabalha<strong>do</strong>res teatrais, de mo<strong>do</strong> a que se pudesse atender a demanda<strong>do</strong>s <strong>teatro</strong>s cheios de uma cidade que vivia intensamente a instauraçãoda república e a virada <strong>do</strong> século: momento e lugar em que o chama<strong>do</strong>“<strong>teatro</strong> de evasão” encontrou um mo<strong>do</strong> de reatar o diálogo com a longatradição da nossa comédia de costume, por onde alguns filões da<strong>musical</strong>idade <strong>italia<strong>na</strong></strong>, até então, se infiltraram.história & <strong>teatro</strong>A formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> comoformação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong> musica<strong>do</strong>O que deve importar <strong>na</strong> perspectiva que se a<strong>do</strong>tou para este estu<strong>do</strong>,a de compreender a formação teatral no Brasil e a participação <strong>italia<strong>na</strong></strong>,por meio de presenças musicais insuspeitadas, ou aparentementenão <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntes no <strong>teatro</strong> de prosa, é o fato que, mesmo que a comédiade costume seja tradicio<strong>na</strong>lmente considerada “gênero” menor, como omelodrama por exemplo, com o qual manteve no Brasil contatos interessantíssimos,ela desenvolveu, sob formas diversas e durante to<strong>do</strong> o Oitocentos,o importante papel de nos ajudar em nossa formação, ou <strong>na</strong> necessidadede reconstruir continuadamente nosso desenvolvimento paraexplicar a nós mesmos.Se, de fato, entre nós, jamais se expressou como gênero puro, sejamais constituiu um retrato verdadeiro e próprio da sociedade brasileira,se não impulsionou de mo<strong>do</strong> suficiente uma continuidade de tradição,a comédia de costume correspondeu ao gosto <strong>do</strong> público então emvias de formação e contribuiu, especialmente em suas constantes experiênciasde contami<strong>na</strong>ção entre música e <strong>teatro</strong>, para criar aquele mínimode tradição teatral com base <strong>na</strong> qual a idéia de formação, de desenvolvimento,compreende a de transformação e contínua adequação àsmutáveis realidades locais: uma tradição, de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, muito particu-<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 79


lar, onde o espelhamento alcançou sempre um frágil retrato e encontroudificuldade para fixar tipos, costumes, ou uma realidade local determi<strong>na</strong>da,fazen<strong>do</strong> resultar quase sempre quadro muito aberto, profundamenteteatraliza<strong>do</strong> e <strong>musical</strong>.No que se refere à sua relação com a música, vale notar, foi habitualque nos casos melhores jamais tenha elimi<strong>na</strong><strong>do</strong> uma presença <strong>musical</strong>marcadamente <strong>italia<strong>na</strong></strong> por grande parte <strong>do</strong> século, até a constituição deum <strong>teatro</strong> fi<strong>na</strong>lmente reconheci<strong>do</strong> como <strong>teatro</strong> musica<strong>do</strong>; o estabeleci<strong>do</strong>por Arthur Azeve<strong>do</strong>, inspira<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> nos gêneros populares que,como dissemos, encontravam então fervida acolhida em Paris, num fi<strong>na</strong>lde século em que também <strong>na</strong> França o melodrama se fazia “em música”,como ocorreu marcadamente durante to<strong>do</strong> o século XIX italiano.Um <strong>teatro</strong> <strong>musical</strong> sui generis esteve presente durante to<strong>do</strong> o séculoXIX no Brasil, e seu papel fecun<strong>do</strong> e combativo, seguramente menosilustre e elegante que o das manifestações teatrais mais elevadas, desenvolveuuma crítica social, feita de paródia, da mistura da diversidade deritmos, <strong>do</strong>s fatos <strong>do</strong> dia reinventa<strong>do</strong>s, feita de meta<strong>teatro</strong>. Esta experiênciaacumulada no seio <strong>do</strong> processo oitocentista de formação <strong>do</strong> <strong>teatro</strong><strong>brasileiro</strong> foi relativamente longa e permitiu, após a breve experiênciarealista, contundente mas intervalar, o florescimento de tanta opereta erevista (lembre-se da “comédia opereta de costumes” de Arthur Azeve<strong>do</strong>),e já nos primeiros decênios <strong>do</strong> século XX soube se transformar emcomédia ligeira”, oferecida então a mais amplas camadas de público queo desenvolvimento da comédia de costume <strong>musical</strong> contribuiu para formar.Por isso, pode-se dizer que, nos primeiros anos <strong>do</strong> século XX, acidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro foi ela também uma “festa”, mesmo submetidaa uma ainda pesada memória da escravidão que então se acreditavaencerrada de fato, pela Lei Áurea de 1888.Nesta direção, vale notar ainda uma vez que o melodrama, no Brasil,não se fez somente graças à grande lírica, mais ou menos tutelada oficialmente,através das companhias <strong>italia<strong>na</strong></strong>s que visitaram a Corte brasileiradurante to<strong>do</strong> o século, mas aproximan<strong>do</strong>-se da fecunda comicidadeespetacular de nossos melhores autores, como foi o caso de Martins Pe<strong>na</strong>,infiltrou-se em nossas comédias de costume.E como o <strong>teatro</strong> <strong>do</strong> Oitocentos viveu a contradição principal quefundava a sociedade brasileira em formação, e já que da fundamentalpresença <strong>italia<strong>na</strong></strong> neste <strong>teatro</strong>, através da música, se falou, vale a pe<strong>na</strong>recordar, a título de conclusão, que a 27 de setembro de 1889 — um anoe meio depois da Lei Áurea, a lei por meio da qual a mo<strong>na</strong>rquia brasileira,sob forte pressão exter<strong>na</strong>, decretaria o fim da escravidão, e ape<strong>na</strong>s<strong>do</strong>is meses antes da proclamação da República — subiu ao palco <strong>do</strong>Teatro Imperial D. Pedro II (conheci<strong>do</strong> como Teatro Lírico) uma obraespetacular emblemática para o senti<strong>do</strong> de nossa formação teatraloitocentista: a ópera que Carlos Gomes dedicou à princesa Isabel, LoSchiavo, composta <strong>na</strong> Itália um ano antes, com libreto de Paravicini, extraí<strong>do</strong><strong>do</strong> romance <strong>do</strong> Visconde de Tau<strong>na</strong>y, que girava em torno de eixoamoroso que envolvia um casal de índios escravos, Ilara e Iberê, eAmérico, jovem fidalgo.Mas, o estu<strong>do</strong> das relações entre música <strong>italia<strong>na</strong></strong> e formação <strong>do</strong><strong>teatro</strong> <strong>brasileiro</strong> no Oitocentos tem ainda muitos caminhos a percorrer, eacredito que, de mo<strong>do</strong> orgânico, dan<strong>do</strong> cada vez mais atenção à diversi-80<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007


dade de projetos e experiências de <strong>teatro</strong> vivi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> complexa e multifacetadasociedade da época, e menos às sugestões de modelos, gênerosou estilos, possa-se melhor compreender as chamadas influências culturaisou artísticas que atuaram <strong>na</strong>quele processo. Quero dizer que a música<strong>italia<strong>na</strong></strong> no Brasil <strong>do</strong> século XIX foi significativa a ponto de permitirfalar de sua efetiva co-presença no processo de formação de nosso <strong>teatro</strong>.Não ape<strong>na</strong>s porque oficialmente, ou segun<strong>do</strong> determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s modelos,‘influenciou’ o <strong>teatro</strong> lírico <strong>brasileiro</strong> por meio de participações temporáriasde muitas companhias líricas, fi<strong>na</strong>nciadas para que realizassemturnês além-mar. Mas, porque a música <strong>italia<strong>na</strong></strong> contaminoumarcadamente nosso chama<strong>do</strong> <strong>teatro</strong> de prosa e contribuiu de fato parauma insistente interação entre música e <strong>teatro</strong> durante aquele século. Oque pode demonstrar, numa concepção mais ampla de <strong>teatro</strong> musica<strong>do</strong>no Brasil, que seu <strong>na</strong>scimento e sua formação tiveram importantes momentosconstitutivos, decisivos, durante to<strong>do</strong> o decorrer de nossa formaçãoteatral oitocentista.história & <strong>teatro</strong>℘Publicação autorizada pela autora em dezembro de 2007.<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007 81

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