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Presença musical italiana na formação do teatro brasileiro - ArtCultura

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20Ver ALENCASTRO, LuizFelipe, op.cit., especialmentep. 45 a 51.21A configuração, contami<strong>na</strong>dae dançante <strong>do</strong> fa<strong>do</strong>, quesurge <strong>do</strong> confronto da cançãopopular portuguesa com olundu <strong>brasileiro</strong>, é confirmadatambém pelos dicionárioscorrentes, como o Novo dicionárioAurélio: versão eletrônicaPositiva – V. 5.11.70: “2.Canção popular portuguesa,de caráter triste e fatalista, linhamelódica simples, ao somda guitarra ou <strong>do</strong> acordeão, eque provavelmente se origi<strong>na</strong><strong>do</strong> lundu <strong>do</strong> Brasil colônia,introduzi<strong>do</strong> em Lisboa apóso regresso de D. João VI(1821). 3. Bras. No séc. XVIII,dança popular, ao som da viola,com coreografia de rodamovimentada, sapatea<strong>do</strong>s emeneios sensuais”.22Vale a pe<strong>na</strong> notar a implementação<strong>do</strong> caráter “sensível”ao perso<strong>na</strong>gem simplório,realiza<strong>do</strong> por nosso autor,nesse momento, ape<strong>na</strong>spor meio de uma intervençãode ordem vocabular, tão densaquanto precisa: “fadinho”,diminutivo que exprime agra<strong>do</strong>;“rasgadinho”, diminutivode “rasga<strong>do</strong>”, utiliza<strong>do</strong> parao mesmo fim e referin<strong>do</strong>-se ao“acompanhamento peculiar acertos instrumentos populares,como a guitarra, o violão,a viola de arame, e que consisteem passar as unhas, sucessivae rapidamente sobreas cordas, sem as pontear”.“Dança executada ao somdesse acompanhamento”. Novodicionário Aurélio: versão eletrônicaPositiva – V. 5.11.70.Mas, vale a pe<strong>na</strong> notar, sobretu<strong>do</strong>,a corporeidade dançanteimplicada <strong>na</strong> <strong>musical</strong>idade“rasgadinha”, aqui recordadapelo caipira “<strong>do</strong> interior” Marcelo.23PENA, Martins, op. cit., p.217 e 218.24Ver SCHWARZ, Roberto. Asidéias fora <strong>do</strong> lugar. Estu<strong>do</strong>sCebrap 3, São Paulo, Cebrap/Editora Brasileira de Ciências,1973.entre os perso<strong>na</strong>gens, não tivesse nosso autor cria<strong>do</strong> esta exagerada contraposiçãocom caráter exclusivamente formal, <strong>musical</strong>mente contrapontístico,propicia<strong>do</strong>r de intenso ritmo cênico. A confirmar que o empenhomaior é formal, <strong>musical</strong>, e não ape<strong>na</strong>s o de retratar, ou fixar, umquadro real, que não subsistiria frente à qualquer realidade, mesmo quepara fins de crítica feroz, estaria o fato de que, quan<strong>do</strong> se tornou freqüente<strong>na</strong>s casas <strong>do</strong>s aristocratas e da peque<strong>na</strong> burguesia urba<strong>na</strong> daCorte, o piano já era utiliza<strong>do</strong> para tocar músicas mais populares; alémda ópera, a música e as danças afro-brasileiras, a modinha 20 . No entanto,como e quanto Martins Pe<strong>na</strong> tira vantagem <strong>musical</strong> de um argumentoque evidentemente encontra lastro em práticas sociais da época, podesever no trecho que segue:Ce<strong>na</strong> IVMarcelo — [...] Tomara-me já em S. Paulo! (Senta-se no sofá.)José Antônio — Homem, goze primeiro os prazeres da Corte. Não queira enterrar-seem vida no sertão. Vá ao <strong>teatro</strong> ouvir Norma, Belisário, A<strong>na</strong> Bole<strong>na</strong>, Furioso.Marcelo — Não acho graça nenhuma. Umas cantigas que eu não percebo e que não sepode dançar. Não há <strong>na</strong>da como um fa<strong>do</strong>. 21José Antônio — Que horror, preferir um fa<strong>do</strong> à música <strong>italia<strong>na</strong></strong>! (À parte:) O que faza ignorância!Marcelo — É que o senhor ainda não ouviu um fadinho bem rasgadinho e bemchoradinho. 22 (Pega <strong>na</strong> viola e afi<strong>na</strong>, enquanto José Antônio fala)José Antônio — Nem quero ouvir! Não diga isto a ninguém, que desacredita. Amúsica <strong>italia<strong>na</strong></strong>, meu amigo, é o melhor presente que Deus nos fez, é o alimento dasalmas sensíveis.Marcelo — Pois o meu alimento é feijão com toucinho, fubá de milho e lombo deporco.José Antônio — Que blasfêmia! (À parte:) É o que faz a ignorância! 23Certamente, não se trata aqui de fixar um costume, mas sim deprovocar, por meio da exagerada contraposição de caracteres formaistão evidencia<strong>do</strong>s, elabora<strong>do</strong>s artisticamente a partir de matéria local, ahipérbole que deriva desta verdadeira oposição por oxímoro, bem presente<strong>na</strong>quela comicidade popular tradicio<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s entremezes e das farsas,é verdade. Trata-se ao mesmo tempo de uma operação cultural fundamental:não tanto espelhar a realidade, mas colocar o de<strong>do</strong> numa desuas principais feridas, a que deriva da violência <strong>do</strong> escravismo diante<strong>do</strong> qual to<strong>do</strong> sonho liberal, cultiva<strong>do</strong> por intelectuais ou diletantes “espirituosos”,é sempre obriga<strong>do</strong> a reconhecer seu próprio avesso. Quanto àintenção ou capacidade de espelhamento, no máximo, esta espécie decomédia <strong>musical</strong> oferece um retrato inverti<strong>do</strong>, que diverte levan<strong>do</strong> à ce<strong>na</strong>o ponto crucial da mais profunda contradição oitocentista <strong>do</strong> Brasil: sonharuma realidade de inspiração liberal e viver a evidência da escravidão,diante da qual to<strong>do</strong> homem livre vê-se constringi<strong>do</strong> a enga<strong>na</strong>r-secontinuadamente e não pode deixar de reconhecer que se encontra numacondição privilegiada, que se situa, afi<strong>na</strong>l, sempre “fora de lugar”. 24Não deixa de ser uma vida feita <strong>teatro</strong> aquela com que joga cenicamenteMartins Pe<strong>na</strong>, justamente graças à pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte impostação<strong>musical</strong>. A sua tor<strong>na</strong>-se assim metateatralidade trabalhada sobre o ritmo,numa comédia que termi<strong>na</strong> por se confundir com um melodrama,72<strong>ArtCultura</strong>, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 61-81, jul.-dez. 2007

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