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Edmund Mezger e o direito penal de nosso tempo - Escola de ...

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154 : EDMUND MEZGER E O DIREITO PENAL DO NOSSO TEMPO MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADOMuñoz Con<strong>de</strong> relata com algum<strong>de</strong>talhe a trajetória <strong>de</strong> <strong>Mezger</strong> a partir<strong>de</strong> 1933: partidário <strong>de</strong> primeira hora donacional-socialismo, foi nomeado nessemesmo ano membro da Comissão <strong>de</strong>Reforma do Direito Penal, participandoda redação dos textos legais que, <strong>de</strong>ntreoutras coisas, tinham como missão adaptaro Direito Penal aos novos postuladospolíticos. A produção acadêmica <strong>de</strong><strong>Mezger</strong> durante esse período seguiapelo mesmo caminho. No que foi necessário,tratou <strong>de</strong> adaptar sua teoria àsidéias que caracterizavam o DireitoPenal do nacional-socialismo, grossomodo: a vonta<strong>de</strong> do Führer como fontedo Direito Penal; a analogia na criação<strong>de</strong> tipos penais; a substituição doDireito Penal <strong>de</strong> resultado por umDireito Penal <strong>de</strong> perigo e do conceito <strong>de</strong>bem jurídico pelo <strong>de</strong> violação <strong>de</strong> um<strong>de</strong>ver; e a idéia <strong>de</strong> pena como meio paraa eliminação dos elementos daninhos aopovo e à raça.O livro não se <strong>de</strong>tém, entretanto,nos reflexos <strong>de</strong>sse processo na teoriadogmática <strong>de</strong> <strong>Mezger</strong> – o que certamenteteria sido interessante – masvolta a atenção para a sua participação<strong>de</strong>cisiva na redação do Projeto <strong>de</strong> Leisobre o Tratamento dos Estranhos àComunida<strong>de</strong> e aos seus estudos na áreada criminologia, em que <strong>de</strong>senvolveramsuas idéias biologicistas como causa <strong>de</strong>condutas anti-sociais, utilizadas parajustificar as propostas <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong>higiene racial.<strong>Mezger</strong> participou das discussões emtorno da Lei do Delinqüente Perigoso <strong>de</strong>novembro <strong>de</strong> 1933, que introduziu noCódigo Penal alemão a medida <strong>de</strong> custódia<strong>de</strong> segurança, permitindo manter oindivíduo, após cumprida a pena, em umcentro <strong>de</strong> trabalho por <strong>tempo</strong> in<strong>de</strong>teminado.Esse instrumento foi fundamentalpara que se levasse adiante uma das frentes<strong>de</strong> repressão do nacional-socialismoque se fazia por meio dos tribunais civis,permitindo a internação e morte emcampos <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>17.000 pessoas.Um dado notável trazido por Con<strong>de</strong>é o <strong>de</strong> que a custódia <strong>de</strong> segurança talcomo implementada com essa reformaera uma das propostas do Projeto <strong>de</strong>Reforma do Código Penal alemão <strong>de</strong>1922, elaborado pelo então Ministro daJustiça da República <strong>de</strong> Weimar, GustavRadbruch, homem <strong>de</strong> idéias em tudodistintas das que justificavam o autoritarismonazista e que veio a sofrer pessoalmenteperseguição e exílio nesse período.Mais curioso ainda é que essemesmo projeto serviu <strong>de</strong> base a movimentosprogressistas <strong>de</strong> reforma <strong>penal</strong>na Alemanha, que resultaram no ProjetoAlternativo <strong>de</strong> 1966.No último período do regime, faseem que se preten<strong>de</strong>u um endurecimentocontra os “inimigos” externos e tambéminternos, iniciaram-se os trabalhospreparatórios <strong>de</strong> um Projeto <strong>de</strong> Lei quenão chegou a entrar em vigor, que propunhamedidas ainda mais radicais contraos consi<strong>de</strong>rados estranhos à comunida<strong>de</strong>(Gemeinschaftsfrem<strong>de</strong>): além do internamentoem campos <strong>de</strong> concentração,introduzia medidas <strong>de</strong> seleção eugênica(castração e esterilização) não só paraquem cometesse <strong>de</strong>lito, mas já para os


1que apresentassem uma certa “tendênciaà <strong>de</strong>linqüência”. Além disso, outorgava aSS, um dos braços da polícia do Reich,po<strong>de</strong>res para agir diretamente e <strong>de</strong>terminara privação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> por<strong>tempo</strong> in<strong>de</strong>terminado dos “inimigos doregime”, coisa que, pelo menos seguindoa lei anterior, requeria algum controlejudicial.Em última instância, sob o fundamento<strong>de</strong> proteção preventiva da comunida<strong>de</strong>,buscava-se a eliminação física <strong>de</strong>diferentes grupos <strong>de</strong> pessoas, quesegundo o Projeto, em uma classificaçãoque contou com a colaboração <strong>de</strong><strong>Mezger</strong>, dividiam-se entre o grupo dosfracassados ou dos que, por sua personalida<strong>de</strong>e forma <strong>de</strong> vida e especialmentepor seus <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> compreensão ou <strong>de</strong>caráter, eram incapazes <strong>de</strong> cumprir asexigências mínimas da comunida<strong>de</strong>; ogrupo dos refratários ao trabalho e dosque levavam uma vida <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada; e ogrupo dos <strong>de</strong>linqüentes, pessoas que,por sua personalida<strong>de</strong> e forma <strong>de</strong> vida,<strong>de</strong>duziam-se tendências à comissão <strong>de</strong><strong>de</strong>litos. Ou seja, medidas que alcançavam,<strong>de</strong> um modo geral, além dos nãoarianos, os marginalizados sociais, mendigos,vagabundos, “<strong>de</strong>linqüentes”sexuais (incluindo entre estes os homossexuais),ladrões <strong>de</strong> pouca monta etc.Depois <strong>de</strong> expor o Projeto, sem <strong>de</strong>lefazer um estudo exaustivo, MuñozCon<strong>de</strong> chega na parte que mais lhe interessa:mostrar a participação ativa <strong>de</strong><strong>Mezger</strong> na sua elaboração, não só indicandoque muitas das idéias ali consolidadascorrespondiam “ao pé da letra” àsidéias que <strong>Mezger</strong> havia publicado naV. 1 N. 1 | P. 153 - 159 | MAIO 2005 : 155época, mas trazendo a público umadocumentação inédita, os comentários<strong>de</strong> <strong>Mezger</strong> sobre o Projeto e as transcrições(traduzidas para o espanhol) dosinformes que encaminhou ao Ministroda Justiça discutindo-o.Paira ao longo da narrativa a incompreensão(e até mesmo a indignação) doporquê do silêncio por tanto <strong>tempo</strong>sobre o passado nazista nada discreto<strong>de</strong>ste autor, que, três anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> suarápida passagem pela prisão emNuremberg, voltou a ocupar a cátedra<strong>de</strong> Direito Penal na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Munich até sua aposentadoria em 1953e chegou a ser nomeado pelo governo <strong>de</strong>Konrad A<strong>de</strong>nauer membro e vice-presi<strong>de</strong>nteda Gran<strong>de</strong> Comissão <strong>de</strong> Reformado Direito Penal.Muñoz Con<strong>de</strong> tenta algumas explicaçõespara esse silêncio, sem <strong>de</strong>scartara má-fé dos que conheciam a verda<strong>de</strong> ea escon<strong>de</strong>ram.Uma <strong>de</strong>las estaria na pouca importânciadada pelos historiadores aoProjeto que mais explicitamente congregouos esforços <strong>de</strong> <strong>Mezger</strong>, sobre osestranhos à comunida<strong>de</strong> – possivelmentepor ter como objeto uma parte dapopulação que até hoje permanece marginalizadaem muitas socieda<strong>de</strong>s.A outraexplicação aponta para a “versatilida<strong>de</strong>”<strong>de</strong> <strong>Mezger</strong> <strong>de</strong> adaptar sua teoria às circunstâncias– o que, <strong>de</strong>pois do fim daguerra, ele fez sem maiores esforços,retirando <strong>de</strong> seus trabalhos as passagensmais explicitamente racistas, mas mantendoa maior parte <strong>de</strong> seus pressupostosligados à teoria dos “tipos <strong>de</strong> autor” eda culpabilida<strong>de</strong> por conduta <strong>de</strong> vida.


156 : EDMUND MEZGER E O DIREITO PENAL DO NOSSO TEMPO MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADOPor fim, sua hipótese central: a <strong>de</strong>que a publicação da monografia Mo<strong>de</strong>rnasorientações da dogmática jurídico-<strong>penal</strong>(Mo<strong>de</strong>rne Wege <strong>de</strong>r Strafrechtsdogmatik,Munich, 1950), que inaugurou a crítica<strong>de</strong> <strong>Mezger</strong> à teoria final da ação quevinha sendo <strong>de</strong>fendida por Welzel <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1930, teria sido uma manobra para <strong>de</strong>sviara atenção <strong>de</strong> seu passado e subir onível da discussão a conceitos ontológicose abstratos, para ficar em um planoda dogmática que se ocupava apenas daconfiguração das estruturas lógico-objetivasdo conceito <strong>de</strong> ação criminosa eevitava assim qualquer compromissocom a realida<strong>de</strong> política. De fato, apublicação <strong>de</strong>ssa monografia iniciou umadas mais importantes polêmicas da ciência<strong>penal</strong>, entre os partidários da teoriacausal e da teoria final da ação, que,segundo a hipótese <strong>de</strong> Muñoz Con<strong>de</strong>,teria funcionado como uma espécie <strong>de</strong>cortina <strong>de</strong> fumaça para escon<strong>de</strong>r o passadonazista <strong>de</strong>sse <strong>penal</strong>ista.Descontando o discurso por vezesexcessivamente engajado <strong>de</strong> MuñozCon<strong>de</strong>, não é possível avançar paraalém <strong>de</strong>ssas especulações sobre o supostooportunismo <strong>de</strong> <strong>Mezger</strong> em seenvolver nesse <strong>de</strong>bate teórico. Mastemos ao menos que reconhecer que eleencontrou na polêmica causalismo versusfinalismo um disfarce perfeito.Afinal, as idéias do Direito Penal nazista,especialmente as ligadas ao DireitoPenal da vonta<strong>de</strong>, encontravam muitomais apoio nas teses finalistas e na subjetivaçãodo conceito <strong>de</strong> injusto <strong>de</strong>Welzel, que na concepção causal, prepon<strong>de</strong>rantementeobjetiva <strong>de</strong> <strong>Mezger</strong>.Muñoz Con<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> tirar<strong>de</strong>sse episódio uma advertência contraas tentativas <strong>de</strong> afastar o condicionamentopolítico das construções dogmáticase <strong>de</strong>ixar clara sua simpatia pelasteses <strong>de</strong> Claus Roxin, que, em respostaàs abstrações excessivas do finalismo,propõe um programa <strong>de</strong> vinculação dosistema do Direito Penal às valoraçõespolítico-criminais e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> reelaboração das categorias tradicionaisda teoria do <strong>de</strong>lito em funçãodos princípios políticos que a informam.Nesse ponto, Muñoz Con<strong>de</strong> não se <strong>de</strong>ixaintimidar pela narrativa dos capítulosanteriores, que retrata as conseqüênciasnefastas da aproximação da dogmática ài<strong>de</strong>ologia nazista. Ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a reaçãoa isso não <strong>de</strong>ve ser o isolamento <strong>de</strong>ssescampos, mas a reconstrução da dogmática<strong>de</strong> acordo com os princípiospolíticos do Estado Democrático <strong>de</strong>Direito. Entretanto, diante <strong>de</strong> um tematão difícil quanto este, Con<strong>de</strong> não se dispõea discutir a fundo a relação entre adogmática e a política e o que evitaria ainstrumentalização <strong>de</strong> uma pela outra.Instigado a refletir sobre o tema, restaao leitor seguir as indicações dos textos<strong>de</strong> Roxin.De outro lado, Muñoz Con<strong>de</strong> aproveitaessa discussão para voltar os olhospara as questões con<strong>tempo</strong>râneas dadogmática <strong>penal</strong> e dirigir suas críticasàs teses funcionalistas <strong>de</strong> GüntherJakobs. O foco <strong>de</strong> sua crítica à teoria do<strong>de</strong>lito <strong>de</strong> Jakobs vai para o caráterexclusivamente normativo da imputação,que, além <strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong> algunselementos político-criminais que, em


1sua opinião, são essenciais (como oprincípio da proporcionalida<strong>de</strong> e daintervenção mínima), não traz em seuspressupostos nenhuma orientação político-criminal,além da própria autoconservaçãodo sistema, po<strong>de</strong>ndo adaptarsea qualquer mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Estado ou sistemapolítico-social.O <strong>de</strong>bate com Jakobs, entretanto,parece não evoluir, limitando-se à mençãoao caráter anti<strong>de</strong>mocrático do seuDireito <strong>penal</strong> do inimigo. Mas o livro traz atodo momento elementos que estimulamo leitor a tentar construir relações elevantar suas próprias hipóteses sobreesse tema atual do Direito Penal. Euarriscaria a apontar uma <strong>de</strong>las.Em seu texto intitulado Direito<strong>penal</strong> do inimigo (Madri, Civitas, 2003),Jakobs propõe um sistema <strong>penal</strong> à parte,voltado àqueles que, por sua posição,modo <strong>de</strong> vida ou pertencimento a umaorganização, tenham abandonado <strong>de</strong>forma duradoura o <strong>direito</strong>, ampliando,para esses casos, as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> castigarcomportamentos afastados da lesãoao bem jurídico e mantendo um sistema<strong>de</strong> penas elevadas e <strong>de</strong> supressão ou<strong>de</strong>bilitação das garantias processuais.A tese <strong>de</strong> Jakobs surge hoje,momento em que a dogmática <strong>penal</strong>encontra-se sob uma dupla pressão: <strong>de</strong>um lado, pelas <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> expansão eantecipação da intervenção <strong>penal</strong> e, <strong>de</strong>outro, pela <strong>de</strong>fesa da manutenção <strong>de</strong> umsistema <strong>de</strong> garantias. Ele parece tentarresolver essa tensão apostando na dicotomiaentre o Direito <strong>penal</strong> dos cidadãos eo Direito <strong>penal</strong> do inimigo, <strong>de</strong>limitandocampos distintos <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> um eV. 1 N. 1 | P. 153 - 159 | MAIO 2005 : 157<strong>de</strong> outro e traçando um limite rígidoentre o sistema <strong>de</strong> penas, vigente para oscidadãos, e o <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> segurança,para os inimigos.Essa talvez seja uma das chaves possíveispara refletir sobre esse sistema àluz dos dados históricos trazidos porMuñoz Con<strong>de</strong>. De sua narrativa, quevai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Projeto Radbruch <strong>de</strong> 1922,passando pela Lei <strong>de</strong> DelinqüentesPerigosos <strong>de</strong> 1933, chegando aoProjeto <strong>de</strong> Tratamento aos Estranhos àComunida<strong>de</strong>, há um fio condutor quenão nos escapa: a percepção <strong>de</strong> que foida relação entre penas e medidas <strong>de</strong>segurança e do jogo entre esses dois sistemasque se articulou boa parte dastendências autoritárias do DireitoPenal nazista.Chamando a atenção para esse fato,fica difícil continuar discutindo as funçõesda pena e avaliando os sistemaspenais sem olhar para <strong>de</strong>baixo do tapete,on<strong>de</strong> se escon<strong>de</strong>m as medidas <strong>de</strong>segurança e o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição dosperigosos à comunida<strong>de</strong> que lhe é subjacente,elementos presentes nos or<strong>de</strong>namentosjurídicos oci<strong>de</strong>ntais até hoje.Entendida a medida <strong>de</strong> segurançacomo um problema há muito <strong>tempo</strong>presente nos sistemas penais, que,entre avanços e retrocessos, nunca foiverda<strong>de</strong>iramente resolvido, talvez fiquemais fácil compreen<strong>de</strong>r a ambigüida<strong>de</strong>presente no projeto <strong>de</strong> Radbruch <strong>de</strong>1922, que a um só <strong>tempo</strong> influenciouteses progressistas e teve seu mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> custódia <strong>de</strong> segurança utilizado pelonazismo. Essa ambigüida<strong>de</strong>, em maiorou menor medida, talvez seja inerente


158 : EDMUND MEZGER E O DIREITO PENAL DO NOSSO TEMPO MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADOa qualquer sistema <strong>penal</strong> que se construacom base na dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas respostase que persista adotando o critériopericulosida<strong>de</strong>, além da culpabilida<strong>de</strong>,para justificar medidas distintaspara <strong>de</strong>linqüentes “normais” e <strong>de</strong>linqüentes“perigosos”.Para continuar nessa linha <strong>de</strong> reflexãoe tentar compreen<strong>de</strong>r os caminhos que senos apresentam hoje à luz dos que a dogmática<strong>penal</strong> percorreu no passado nazista,vale a pena tratar rapidamente da tendênciado Direito Penal atual <strong>de</strong> ampliaçãoe antecipação da sua intervenção.Ao tomarmos algumas das nossas leisespeciais mais recentes em matéria<strong>penal</strong>, como a lei <strong>de</strong> tóxicos, as que dispõemsobre o porte ilegal <strong>de</strong> armas, oscrimes ambientais, os crimes contra asrelações <strong>de</strong> consumo, os crimes financeiros,os crimes <strong>de</strong> trânsito e os que envolvema manipulação genética, perceberemos,<strong>de</strong> modo geral, duas características:esses diplomas referem-se à proteção <strong>de</strong>bens jurídicos universais ou coletivos, <strong>de</strong>titularida<strong>de</strong> difusa e conteúdos abstratose operacionalizam a tutela <strong>penal</strong> <strong>de</strong>maneira distinta da tradicional, por meiodo uso recorrente das incriminações <strong>de</strong>mera conduta e dos tipos <strong>de</strong> perigo abstrato,que antecipam a intervenção doDireito Penal para momentos muitoanteriores à lesão e ao risco ao bem jurídico,<strong>de</strong>les prescindindo.Ocorre que, ao permitir a antecipaçãoda intervenção <strong>penal</strong> para atingirinclusive ações inofensivas, esse mo<strong>de</strong>lose afasta dos critérios concretos da lesãoou ameaça ao bem jurídico e assim abandonao que até agora servira <strong>de</strong> basematerial para legitimar a punição. Ocrime passa a ser interpretado como simplesviolação do <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> observar uma<strong>de</strong>terminada norma, concentrando-semuito mais no <strong>de</strong>svalor da ação que violaa norma do que no <strong>de</strong>svalor do resultadoda conduta. O problema – correndo orisco <strong>de</strong> simplificá-lo – é que, sem o critérioda lesão ao bem jurídico, fica difícilestabelecer limites às possibilida<strong>de</strong>s quetem o legislador <strong>de</strong> enumerar verbos quepossam se converter em ações típicas.Difícil também diferenciar quando essasações são incriminadas pelo potencial <strong>de</strong>perigo que representam a um bem jurídicoou quando são enumeradas no tipoapenas para <strong>de</strong>screver a forma <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>algumas classes <strong>de</strong> pessoas que se queratingir – como apontam as discussõesacerca dos <strong>de</strong>litos <strong>de</strong> associação, ou seja,da incriminação do simples pertencimentoa <strong>de</strong>terminadas organizações.Se, até agora, as idéias <strong>de</strong> um <strong>direito</strong><strong>penal</strong> preventivo e a renúncia ao critérioda lesivida<strong>de</strong> fizeram com que a tutela<strong>penal</strong> regredisse da verificação do resultadoà simples prática da ação <strong>de</strong>scritano tipo, a partir daí retroce<strong>de</strong>r umpouco mais e voltar-se simplesmentecontra um certo grupo <strong>de</strong> pessoas consi<strong>de</strong>radasperigosas não parece ser umpasso improvável.Ao analisarmos a instrumentalizaçãoque se fez do Direito Penal na época donazismo, parece que um <strong>de</strong> seus percursosse aproxima bastante <strong>de</strong>sse. Antes <strong>de</strong>se chegar ao Direito Penal do autor, voltadoaos inimigos do regime, já havia sidoafastado o referencial material da lesão aobem jurídico. Isso permitiu que o Direito


Penal fosse acionado pela simples violação<strong>de</strong> <strong>de</strong>veres e para a proteção <strong>de</strong> valoresabstratos, arbitrariamente <strong>de</strong>finidos.Em outras palavras, sem o critério dalesivida<strong>de</strong> a bens jurídicos bem <strong>de</strong>finidosou outro critério capaz <strong>de</strong> estabelecerlimites à intervenção <strong>penal</strong>, não temoscomo diferenciar um Direito Penal queprotege a vida e a liberda<strong>de</strong> dos cidadãos<strong>de</strong> um Direito Penal que protege o sãosentimento do povo alemão. Para dizer mais,um Direito Penal que, como propõeJakobs, protege a confiança no or<strong>de</strong>namentojurídico e o respeito às normas,sem nenhum outro referencial que digaquando é legítimo punir, aceita que emseu nome possa ser feito muito mais doque se <strong>de</strong>sejaria em uma <strong>de</strong>mocracia.É verda<strong>de</strong> que na Alemanha nazistaoutras medidas, por exemplo, a utilizaçãoda analogia e o controle dos tribunais,foram também <strong>de</strong>cisivas para articulara repressão pela via do DireitoPenal, mas me parece extremamente1V. 1 N. 1 | P. 153 - 159 | MAIO 2005 : 159relevante retornar a essa questão nomomento atual, em que os <strong>de</strong>bates dogmáticosgiram exatamente em torno darelativização do critério da lesão aobem jurídico como pressuposto daimputação. A idéia aqui não é simplesmenteassociar um dos lados do <strong>de</strong>bateaos <strong>de</strong>sdobramentos do nacional-socialismo,mas chamar a atenção para o fato<strong>de</strong> que, se os critérios atuais <strong>de</strong> legitimaçãoda imputação não respon<strong>de</strong>mmais à realida<strong>de</strong> do Direito Penal e daspolíticas criminais, <strong>de</strong>vemos entãorefletir sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> substituílospor algum outro que estabeleçalimites para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> tendênciasautoritárias.Nessa reflexão, são da maior importânciapesquisas históricas como a <strong>de</strong>Muñoz Con<strong>de</strong>, que, ao tratar <strong>de</strong> umautor como <strong>Edmund</strong> <strong>Mezger</strong> e das circunstânciasdogmáticas e políticas <strong>de</strong> seu<strong>tempo</strong>, revelam tanto sobre o DireitoPenal do <strong>nosso</strong> <strong>tempo</strong>.Marta Rodriguez <strong>de</strong> Assis MachadoDOUTORANDA EM DIREITO PELO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAE TEORIA GERAL DO DIREITO DA USPPESQUISADORA DA ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DAFUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (DIREITO GV) E DONÚCLEODIREITO E DEMOCRACIA - CEBRAP/SP

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