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O futuro da escola do passado

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O <strong>futuro</strong> <strong>da</strong> <strong>escola</strong> <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>Carlos Nogueira FinoProf. associa<strong>do</strong> com agregação1. IntroduçãoTo<strong>da</strong> a gente já reparou que os sistemas educativos estão desnortea<strong>do</strong>s. No nosso país,os sintomas <strong>do</strong> desnorte são por demais evidentes: muito insucesso, muitas intervençõespolíticas sucessivas imagina<strong>da</strong>s com o propósito de catapultar os seus autores para aimortali<strong>da</strong>de e terminan<strong>do</strong> em novo impasse. E, tu<strong>do</strong> isto, enquanto os indica<strong>do</strong>resinternacionais continuam a colocar sistematicamente os nossos alunos no final <strong>do</strong>srankings <strong>da</strong> literacia e <strong>da</strong> numeracia. E perante as críticas de intelectuais respeita<strong>do</strong>s nasrespectivas áreas científicas, irmana<strong>do</strong>s no mesmo tom e nos mesmos argumentos, quereclamam um ensino menos contamina<strong>do</strong> por aquilo que intitulam de “pe<strong>da</strong>gogiamoderna”, que é, segun<strong>do</strong> proclamam, uma espécie de elogio <strong>do</strong> menor esforço e asubstituição <strong>da</strong>s coisas penosas, como o trabalho e o estu<strong>do</strong>, por activi<strong>da</strong>des mais oumenos lúdicas. Sugerin<strong>do</strong>, portanto, o regresso a uma <strong>escola</strong> mais próxima <strong>da</strong> queexistiria quan<strong>do</strong> eles a conheceram, mas numa época em que o número <strong>do</strong>s “cientistas<strong>da</strong> educação”, para aproveitar um designação genérica sugeri<strong>da</strong> pelos referi<strong>do</strong>sintelectuais, não pára de aumentar, facilitan<strong>do</strong> a conclusão de que a crise <strong>da</strong> educação édirectamente proporcional à proliferação desses “cientistas”.No entanto, apraz-me desconfiar que não serão os “cientistas <strong>da</strong> educação”, nem, talvez,o atabalhoamento <strong>do</strong>s políticos, os grandes responsáveis pelas dificul<strong>da</strong>des <strong>do</strong> sistemaeducativo, a não ser, provavelmente, por não verem o que os comenta<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s jornaisde referência também não são capazes. De facto, não serão os “filhos de Rousseau”,nem a pe<strong>da</strong>gogia <strong>do</strong> menor esforço, os detona<strong>do</strong>res <strong>da</strong> erosão de que vêm a sofrer to<strong>do</strong>sos sistemas educativos há mais de cinco déca<strong>da</strong>s.2. O fenómeno ENIAC e o mito <strong>do</strong> regresso à i<strong>da</strong>de de ouro1


Como to<strong>da</strong> a gente sabe, a crise <strong>da</strong> <strong>escola</strong> não começou recentemente. Algunsestudiosos <strong>do</strong> currículo (por exemplo, Kelly, 1980) referem o episódio Sputnik comoum marco na toma<strong>da</strong> de consciência de uma crise que se havia apossa<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>escola</strong>,ten<strong>do</strong> consisti<strong>do</strong> esse episódio na reacção <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des norte-americanas aolançamento <strong>do</strong> foguetão Sputnik I soviético, em 1957. A esse propósito, afirmaramDavis & Botkin (1994: 19), que o lançamento <strong>do</strong> Sputnik em 1957 marcou o fim <strong>da</strong> eraindustrial e o começo <strong>da</strong> economia <strong>da</strong> informação.Essa prova surpreendente de superiori<strong>da</strong>de tecnológica <strong>da</strong> União Soviética, na altura emque se presumia a liderança científica <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, não só colocou em causa ospressupostos de avaliação <strong>do</strong>s jovens estu<strong>da</strong>ntes americanos, como culminou com areformulação completa <strong>do</strong>s currículos nacionais de matemática e ciências. E, de entãopara cá, nunca mais a questão <strong>do</strong> controlo (<strong>da</strong> aprendizagem) deixou de serabsolutamente central no debate em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s sistemas <strong>escola</strong>res, poden<strong>do</strong> admitir-seque os rankings <strong>do</strong>s nossos dias são herdeiros em linha directa desse acontecimento.No entanto, o lançamento <strong>do</strong> Sputnik não significa muito mais, segun<strong>do</strong> creio, <strong>do</strong> queoutro acontecimento, bastante mais silencioso, que ocorreu no Outono de 1945, e queconsistiu na montagem <strong>do</strong> primeiro ENIAC (electronic numerical integrator andcomputer), como corolário de um processo inicia<strong>do</strong> em 1939 e relaciona<strong>do</strong> com acomputação <strong>da</strong>s tabelas de tiro balístico <strong>da</strong> II Grande Guerra (Weik, 1961). NesseOutono, <strong>do</strong>ze anos antes <strong>do</strong> lançamento <strong>do</strong> Sputnik, nasceu a tecnologia fun<strong>da</strong><strong>do</strong>ra <strong>da</strong>pós-moderni<strong>da</strong>de, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que a máquina a vapor de Watt, regista<strong>da</strong> em 1769 eexplora<strong>da</strong> a partir de 1786, tinha si<strong>do</strong> fun<strong>da</strong><strong>do</strong>ra <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Comparan<strong>do</strong> oimpacte posterior <strong>do</strong> ENIAC com o <strong>do</strong> Sputnik, facilmente compreenderemos qualdeles teve, de facto, maior importância, e porquê.Desde o Outono de 1945 até aos nossos dias, as tecnologias basea<strong>da</strong>s no processamento<strong>da</strong> informação invadiram literalmente as nossas vi<strong>da</strong>s a uma veloci<strong>da</strong>de vertiginosa,especialmente quan<strong>do</strong> compara<strong>da</strong> com o ritmo de mu<strong>da</strong>nça provoca<strong>do</strong> pelo primeirogrande choque tecnológico <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XVIII.Recorde-se que, nos finais <strong>do</strong> século XVIII, a ordem industrial emergente <strong>da</strong> introdução<strong>da</strong> máquina a vapor precisava de um novo tipo de homem, equipa<strong>do</strong> com aptidões que2


nem a família nem a igreja eram capazes, só por si, de facultar. Precisava de criançaspré-a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s a um “trabalho repetitivo, portas adentro, a um mun<strong>do</strong> de fumo, barulho,máquinas, vi<strong>da</strong> em ambientes superpovoa<strong>do</strong>s e disciplina colectiva, a um mun<strong>do</strong> emque o tempo, em vez de regula<strong>do</strong> pelo ciclo sol-lua, seria regi<strong>do</strong> pelo apito <strong>da</strong> fábrica epelo relógio” (Toffler, s/d). Essa socie<strong>da</strong>de industrial, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre a sincronização <strong>do</strong>trabalho, precisava, portanto, de indivíduos que pouco tinham que ver com um passa<strong>do</strong>rural e bucólico, em que os ritmos naturais prevaleciam. Atente-se a que, por exemplo,na segun<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>do</strong> século dezanove, se exceptuarmos a Inglaterra, três quartos <strong>da</strong>população europeia ain<strong>da</strong> vivia nas zonas rurais e mais de metade <strong>do</strong>s activos trabalhavana agricultura (Mialaret e Vial, 1981).E foi para <strong>da</strong>r resposta às necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de industrial, forman<strong>do</strong> pessoasa<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s às exigências <strong>do</strong> novo modelo de produção e, sen<strong>do</strong> tão barata quedesarmasse os argumentos <strong>do</strong>s que se opunham à simples ideia de educação para to<strong>do</strong>s,que foi imagina<strong>da</strong> a <strong>escola</strong> pública. O ensino em massa foi a máquina genial cria<strong>da</strong> pelacivilização industrial para conseguir o tipo de adultos de que precisava. Como diziaToffler, (s/d: 393) “A solução só podia ser um sistema educacional que, na sua própriaestrutura, simulasse esse mun<strong>do</strong> novo”.É claro que a <strong>escola</strong> pública não se ficou a dever apenas às necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>industrialização, ain<strong>da</strong> que quem pagasse os custos <strong>da</strong> sua implantação tivessem si<strong>do</strong> osproprietários, nomea<strong>da</strong>mente <strong>da</strong>s fábricas, através <strong>do</strong>s impostos. Com efeito, não épossível contornar o papel fun<strong>da</strong>mental <strong>do</strong>s Iluministas, que, ao longo de grande parte<strong>do</strong> século XVIII fizeram <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> instrução pública uma bandeira política.Com a vitória <strong>da</strong> Revolução Francesa, ficavam completas as condições políticas para acriação <strong>da</strong> primeira instituição educativa de carácter universal, cria<strong>da</strong> proposita<strong>da</strong>mentepara garantir um vínculo estável com o desenvolvimento económico e social.Recorde-se, a este propósito, a intervenção de Con<strong>do</strong>rcet na Assembleia Nacionalfrancesa, a 20 e 21 de Abril de 1792, três anos depois <strong>da</strong> Revolução Francesa e quatrodepois <strong>da</strong>s primeiras aplicações práticas <strong>da</strong> máquina de Watt, quan<strong>do</strong> apresentou oRelatório sobre a organização geral <strong>da</strong> instrução pública, reclaman<strong>do</strong> a <strong>escola</strong> públicapara to<strong>do</strong>s nestes termos:3


Terá fica<strong>do</strong> na memória colectiva uma impressão idílica dessa <strong>escola</strong> para<strong>da</strong> no tempo ede um tempo também para<strong>do</strong>, em que os professores eram figuras austeras e respeita<strong>da</strong>s,tinham autori<strong>da</strong>de e ensinavam mesmo, e os alunos aprendiam. Sau<strong>da</strong>de de quan<strong>do</strong>ain<strong>da</strong> nem sequer se falava de “ciências <strong>da</strong> educação”, nem havia ideias complica<strong>da</strong>ssobre pe<strong>da</strong>gogia, em que o que se aprendia era consequência <strong>do</strong> que se ensinava, e a<strong>escola</strong> era um assunto para ser leva<strong>do</strong> muito a sério. E também <strong>do</strong> tempo em que osdiplomas, que as <strong>escola</strong>s conferiam, serviam para abrir as portas <strong>do</strong> sucesso no mun<strong>do</strong>exterior, onde estavam os empregos à espera, em vez de só servirem, como agora, paragarantirem um acesso à <strong>escola</strong>ri<strong>da</strong>de seguinte. Sau<strong>da</strong>de, no fun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> antes detu<strong>do</strong> começar a acelerar e a tornar-se complica<strong>do</strong>, e <strong>da</strong> velha ordem industrial, mina<strong>da</strong>nos seus fun<strong>da</strong>mentos, começar a desagregar-se à nossa volta.A ironia é que continua a existir, creio, um consenso muitíssimo alarga<strong>do</strong> sobre anecessi<strong>da</strong>de de a <strong>escola</strong> (continuar a) formar para o <strong>futuro</strong>, ain<strong>da</strong> que retoman<strong>do</strong> ospressupostos e a estrutura que a fazia ver<strong>da</strong>deiramente útil, no passa<strong>do</strong>. E o <strong>futuro</strong>, já opodemos intuir, passará ca<strong>da</strong> vez menos pela velha ordem industrial em refluxo, que seimplantou a partir <strong>da</strong> aplicação prática <strong>da</strong> máquina de Watt e <strong>da</strong>s evoluções mecânicasque lhe seguiram, e ca<strong>da</strong> vez mais pela omnipresença <strong>da</strong>s novas máquinas resultantes <strong>da</strong>evolução <strong>do</strong> ENIAC. Como é que é possível não reparar que a <strong>escola</strong> modela<strong>da</strong> nafábrica <strong>do</strong> século XIX, por muitos e relevantes serviços que tenha presta<strong>do</strong> àHumani<strong>da</strong>de nesse século e no seguinte, precisa de uma reorientação paradigmática, eque essa reorientação terá que ser o inverso <strong>da</strong> visão sau<strong>do</strong>sista de uma instituiçãoimóvel a boiar, estagna<strong>da</strong>, no tempo?3. O segun<strong>do</strong> mito: a tecnologia redentoraEntretanto, duas escassas déca<strong>da</strong>s depois <strong>da</strong> construção <strong>do</strong> ENIAC, as TIC começaram abater à porta <strong>da</strong>s <strong>escola</strong>s, cujo desenho organizacional tinha ti<strong>do</strong> como referênciapreparar para a socie<strong>da</strong>de industrial.Convém referir, no entanto, que, para além <strong>da</strong> modelação fabril, a <strong>escola</strong> nunca deixoude incorporar boa parte <strong>da</strong>s tecnologias <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, e não apenas as relaciona<strong>da</strong>sdirectamente com a escrita, dependen<strong>do</strong> esse grau de incorporação apenas <strong>do</strong>s limites5


orçamentais e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de ou vontade <strong>do</strong>s professores na exploração <strong>da</strong> que estariadisponível. Também é óbvio que a <strong>escola</strong> pública <strong>do</strong> século XIX tinha menos tecnologiaincorpora<strong>da</strong> que a <strong>do</strong> século XX, e que, no espaço de um século e meio, muitas foram asinovações introduzi<strong>da</strong>s na sequência <strong>do</strong> desenvolvimento tecnológico, o que nãosignificou que a incorporação de mais tecnologia redun<strong>da</strong>sse em alteração substancialno mo<strong>do</strong> de funcionamento <strong>da</strong>s <strong>escola</strong>s, que mantiveram inalterável o essencial <strong>do</strong>s seuspressupostos organizacionais.Mesmo quan<strong>do</strong>, ao longo <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de sessenta e setenta, os meios audiovisuais secomeçaram a vulgarizar no interior <strong>do</strong>s estabelecimentos, eles nunca passaram de meros“auxiliares <strong>do</strong> ensino”, apesar de alguns entusiastas terem anuncia<strong>do</strong> a transformação <strong>da</strong><strong>escola</strong> pelo seu uso. E isso deve-se ao facto de a tecnologia subjacente aos meiosaudiovisuais continuar ancora<strong>da</strong> na mesma galáxia <strong>da</strong> máquina de Watt, de mo<strong>do</strong> que asua incorporação na <strong>escola</strong> não traria na<strong>da</strong> de ver<strong>da</strong>deiramente revolucionário ao pontode colocar em xeque processos de funcionamento torna<strong>do</strong>s estáveis ao longo de muitasdéca<strong>da</strong>s. Nem mesmo a tel<strong>escola</strong>, como meio de “ensino à distância”, de que Portugalfoi pioneiro nos anos setenta, alterou o essencial <strong>do</strong>s procedimentos de transmissão deconteú<strong>do</strong>s: nem o professor foi substituí<strong>do</strong> pela máquina, nem o receptor de TV teveoutro papel além de o de exibir conteú<strong>do</strong>s pré elabora<strong>do</strong>s.Os principais meios audiovisuais (cinema, televisão), por servirem para veicularconteú<strong>do</strong>s destina<strong>do</strong>s a ser consumi<strong>do</strong>s em simultâneo por massas de especta<strong>do</strong>res,partilhavam algo de comum com as <strong>escola</strong>s, que também pretendem atingir, de ca<strong>da</strong> veze em simultâneo, turmas inteiras de alunos. Por essa razão, a sua exploração emambiente <strong>escola</strong>r não alteraria na<strong>da</strong> de essencial, sen<strong>do</strong> os pressupostos <strong>da</strong> sua utilizaçãobasicamente os mesmos que presidem à emissão <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> professor, quan<strong>do</strong> esteutiliza suportes mais tradicionais como a voz, com apoio ou não <strong>do</strong> livro de texto ou <strong>do</strong>quadro negro. Nenhum desses meios, audiovisuais incluí<strong>do</strong>s, deslocalizava o curso <strong>do</strong>sacontecimentos para fora <strong>da</strong> <strong>escola</strong>, nenhum impunha a a<strong>do</strong>pção de atitudesradicalmente diferentes pela parte <strong>do</strong>s professores. Nenhum conferia novos poderes aosalunos (Fino & Sousa, 2005).Foi precisamente o que se passou com a tentativa de incorporação de computa<strong>do</strong>rescomo máquinas de ensinar a partir <strong>do</strong>s anos sessenta <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, corren<strong>do</strong>6


programas de ensino assisti<strong>do</strong> por computa<strong>do</strong>r. E é precisamente o que se passa agoracom a utilização <strong>da</strong>s novíssimas gerações <strong>do</strong> ENIAC, servin<strong>do</strong> como máquinas dedistribuição de conteú<strong>do</strong>s, mas funcionan<strong>do</strong> sobre uma designação genérica engana<strong>do</strong>rae capciosa.Refiro-me às plataformas de e-learning, puras ou em formato blended, isto é, comensino presencial à mistura, que são sistemas de distribuição de conteú<strong>do</strong>s préprepara<strong>do</strong>s,a que se acede à distância e que, de uma maneira geral, não passam deprolongamentos electrónicos, ou semi-electrónicos no caso <strong>do</strong> blended, <strong>da</strong> <strong>escola</strong>tradicional. Ou seja, a <strong>escola</strong> fabril por outros meios, a <strong>escola</strong> <strong>do</strong> tempo de Watt, masapoia<strong>da</strong> em tecnologias <strong>da</strong> era <strong>do</strong> ENIAC.Sobre essas plataformas, de há muito que me causa perplexi<strong>da</strong>de a utilização, que meparece abusiva, <strong>da</strong> palavra learning (aprendizagem) e por duas razões. Em primeirolugar, porque a palavra certa seria teaching, uma vez que é essa palavra que significa oque propõem, de facto, essas plataformas de ensino à distância. A segun<strong>da</strong> razão éporque a palavra learning tem que ver com o universo <strong>do</strong> aprendiz e, para ser adequa<strong>da</strong>,deve centrar-se na sua activi<strong>da</strong>de, ao passo que teaching remeteria para o professor, acujo universo compete, tradicionalmente, o que as plataformas de e-learning fazemver<strong>da</strong>deiramente, ou seja, distribuir conteú<strong>do</strong>s pré elabora<strong>do</strong>s.É por essas e por outras razões que estou convenci<strong>do</strong> de que os sistemas de e-learning,ain<strong>da</strong> não são o <strong>futuro</strong> <strong>da</strong> <strong>escola</strong> <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Como to<strong>da</strong> a gente compreenderá, ainovação não reside na tecnologia propriamente dita, mas no que ela nos permite fazercom o seu auxílio. A tecnologia só será ferramenta de inovação pe<strong>da</strong>gógica a partir <strong>do</strong>momento em que permita fazer coisas diferentes, quan<strong>do</strong> abrir portas para territóriosinespera<strong>do</strong>s, que podem muito bem não ter na<strong>da</strong> que ver, sequer, com o currículo oucom a <strong>escola</strong>. E, sobretu<strong>do</strong>, noutras mãos que não nas <strong>do</strong>s técnicos que se escondem pordetrás <strong>da</strong>s plataformas de e-learning. Por outras palavras, inovação implica rupturaparadigmática e não a proposta de “mais <strong>do</strong> mesmo”, implícita naquelas plataformas,ain<strong>da</strong> que a coberto de um marketing particularmente agressivo, que explora, aberta epara<strong>do</strong>xalmente, uma concepção tradicionalista de <strong>escola</strong> e a crença de que as novastecnologias são, mais que a chave <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>, já o próprio <strong>futuro</strong>.7


Enquanto continua<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> <strong>escola</strong> tradicional por meios contemporâneos <strong>do</strong> ENIAC, asplataformas de e-learning, espécies de e-<strong>escola</strong>s ou <strong>escola</strong>s.com, apenas conseguemprovar que até as tecnologias mais recentes e actualiza<strong>da</strong>s podem ser facilmenterecupera<strong>da</strong>s pelo velho paradigma industrial, perden<strong>do</strong>, por causa disso, to<strong>do</strong> opotencial inova<strong>do</strong>r de que sejam, eventualmente, porta<strong>do</strong>ras.Por outro la<strong>do</strong>, apesar <strong>do</strong> seu custo, que admito ser eleva<strong>do</strong>, a criação e manutençãodessas plataformas de ensino à distância não passará de uma fracção <strong>do</strong> que os Esta<strong>do</strong>stêm que suportar com os sistemas <strong>escola</strong>res tradicionais presenciais, não sen<strong>do</strong>descartável que venham a constituir (mais) uma forma de emagrecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Social, a cujo amparo se fun<strong>do</strong>u a <strong>escola</strong> pública, agora sob suspeita. Como to<strong>da</strong> a gentecompreenderá, as plataformas de e-learning, uma vez fin<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> útil, não passarãoa ser clientes <strong>da</strong> segurança social, nunca progridem na carreira retributiva, nãocostumam faltar às aulas, a menos que estejam offline e, provavelmente, também nãofalarão eduques, esse dialecto que tanto perturba alguns comenta<strong>do</strong>res com nostalgia <strong>da</strong><strong>escola</strong> <strong>do</strong>s seus verdes anos4. Então e o <strong>futuro</strong>?Em muitos senti<strong>do</strong>s, as <strong>escola</strong>s continuam a ser instituições modernas (e, em certoscasos, até pré-modernas), que se vêem obriga<strong>da</strong>s a operar num mun<strong>do</strong> pós-modernocomplexo. À medi<strong>da</strong> que o tempo passa, o hiato entre o mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>escola</strong> e o que existepara além dela está a tornar-se ca<strong>da</strong> vez mais óbvio, sen<strong>do</strong> a natureza anacrónica <strong>da</strong><strong>escola</strong> ca<strong>da</strong> vez mais evidente (Hargreaves, 1998).Afirmava Seymour Papert (1993: vii) que “not very long ago, and in many parts of theworld even to<strong>da</strong>y, young people would learn skills they could use in their workthroughout life. To<strong>da</strong>y, in industrial countries, most people are <strong>do</strong>ing jobs that did notexist when they were born. The most important skill determining a person’s life patternhas already become the ability to learn new skills, to take in new concepts, to assessnew situations, to deal with the unexpected. This will be increasingly true in the future:The competitive ability is the ability to learn”.8


Desde o início <strong>do</strong>s anos 80 que este autor considera as salas de aula como ambientes deaprendizagem artificial e ineficiente, que a socie<strong>da</strong>de foi força<strong>da</strong> a inventar porque osseus ambientes informais de aprendizagem se mostravam inadequa<strong>do</strong>s para aquisiçõesem <strong>do</strong>mínios considera<strong>do</strong>s importantes <strong>do</strong> conhecimento, como a escrita, a gramática oua matemática. E manifesta a convicção de que a utilização <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r permitirámu<strong>da</strong>r o ambiente de aprendizagem fora <strong>da</strong>s salas de aula, de tal forma que to<strong>do</strong> ocurrículo que as <strong>escola</strong>s tentam actualmente ensinar com grandes dificul<strong>da</strong>des, custoseleva<strong>do</strong>s e sucesso limita<strong>do</strong>, seja aprendi<strong>do</strong> como se aprende a falar, menospenosamente, com maior êxito e sem instrução organiza<strong>da</strong> (Papert, 1980). Nãoperspectiva, portanto, a incorporação <strong>da</strong>s TIC como meio de salvar ou reformar a<strong>escola</strong>, mas antevê a sua utilização como meio de a contornar, posta directamente aoserviço <strong>do</strong>s aprendizes nos seus ambientes naturais.Este ponto de vista traz consigo a ideia de que as TIC de pouco podem valer ainstituições cujas raízes mergulham na moderni<strong>da</strong>de (ou ain<strong>da</strong> antes), e que seorganizaram em re<strong>do</strong>r <strong>da</strong> utilização de tecnologias <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de para executaremtarefas (educativas) exigi<strong>da</strong>s pelas socie<strong>da</strong>des industriais. A não ser que sejam utiliza<strong>da</strong>scom um senti<strong>do</strong> meramente aditivo para alcançar os mesmíssimos objectivos,eventualmente com rentabili<strong>da</strong>de maior, que já vinham a ser alcança<strong>do</strong>s através <strong>da</strong>utilização de outros meios. É por isso que o papel <strong>da</strong> tecnologia, posta directamente aoserviço <strong>do</strong> aprendiz, não é o de substituir a <strong>escola</strong>, proporcionan<strong>do</strong> o que ela jáproporciona, mas, ao contrário, abrir portas que a <strong>escola</strong> nem imagina.Assim, ao manifestar a convicção de que a utilização <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r permitiria mu<strong>da</strong>r oambiente de aprendizagem fora <strong>da</strong>s salas de aula, Papert foi <strong>do</strong>s primeiros a reparar que,muito mais que poder vir a servir para relançar a <strong>escola</strong> por outros meios, como atravésde plataformas de e-learning, os computa<strong>do</strong>res podem ser, pelo contrário, porta<strong>do</strong>res depotenciali<strong>da</strong>des capazes de precipitarem a obsolescência <strong>da</strong> <strong>escola</strong>, propon<strong>do</strong>, ao mesmotempo, formas de obviar a sua falta.• Em primeiro lugar, porque, uma vez entregues ao aprendizes como ferramentade aprendizagem, podem aju<strong>da</strong>r a criar contextos de aprendizagem semprecedentes na história <strong>da</strong> educação.9


• Em segun<strong>do</strong> lugar, porque os computa<strong>do</strong>res são capazes de ultrapassar aobsessiva taylorização <strong>da</strong> <strong>escola</strong>, poden<strong>do</strong> abor<strong>da</strong>r assuntos complexos de formatransdisciplinar.• Em terceiro lugar, porque os computa<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong> entregues aos aprendizes,anulam quaisquer intuitos de massificação: não é possível trabalhar comcomputa<strong>do</strong>res em classe, a não ser em redes de computa<strong>do</strong>res controla<strong>da</strong>s pelocomputa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> professor, mas, nesse caso, os computa<strong>do</strong>res não estão realmenteentregues aos aprendizes, funcionan<strong>do</strong> como meras consolas ao arbítrio <strong>do</strong>professor ou <strong>do</strong>s seus eventuais substitutos electrónicos, como é o caso <strong>da</strong>splataformas de e-learning.• Em quarto lugar, porque os computa<strong>do</strong>res, podem ligar directamente a fontes deinformação colossais, acessíveis quase instantaneamente, e com as quais a <strong>escola</strong><strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de não pode competir. Isto significa que os computa<strong>do</strong>res e astecnologias afins retiram definitivamente às <strong>escola</strong>s a presunção de que sãolocais onde o conhecimento reside, uma vez que a informação mais actualiza<strong>da</strong> emais relevante está disponível fora <strong>do</strong>s seus muros e o acesso a ela não depende<strong>do</strong> acesso à <strong>escola</strong>.• Em quinto lugar, porque os computa<strong>do</strong>res podem <strong>da</strong>r acesso à plurali<strong>da</strong>decultural <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> microcosmo individual <strong>do</strong> aprendiz e, com isso,nenhuma <strong>escola</strong> culturalmente monolítica, como é, na essência, a <strong>escola</strong> <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de, pode competir.• Finalmente, porque as <strong>escola</strong>s, perdi<strong>do</strong> o monopólio <strong>do</strong> conhecimento, e ten<strong>do</strong>adquiri<strong>do</strong> funções não relaciona<strong>da</strong>s directamente com a aprendizagem, como ade câmara de descompressão entre o final <strong>da</strong> a<strong>do</strong>lescência e a pressão sobre omerca<strong>do</strong> de trabalho, estão a perder agili<strong>da</strong>de e credibili<strong>da</strong>de como instituiçõesforma<strong>do</strong>ras.5. Conclusão: o <strong>futuro</strong> <strong>da</strong> <strong>escola</strong> <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>10


Se eu soubesse quantos séculos tem a humani<strong>da</strong>de, seria capaz de calcular comexactidão o tempo <strong>da</strong> sua história em que não precisámos de <strong>escola</strong> pública para coisanenhuma e, muito menos, de <strong>escola</strong>ri<strong>da</strong>de compulsiva. Compara<strong>do</strong> com esse tempo, quenão sou capaz de precisar, é óbvio que a vigência <strong>do</strong> modelo de <strong>escola</strong> (e de<strong>escola</strong>ri<strong>da</strong>de), que cristalizou ao longo <strong>do</strong> século XIX e se tem manti<strong>do</strong>, comdificul<strong>da</strong>des ca<strong>da</strong> vez mais notórias, até aos nossos dias, é tão fugaz como umrelâmpago.Até à confluência de interesses entre os Iluministas e a burguesia, triunfantes <strong>da</strong>Revolução Francesa e <strong>da</strong> Revolução Industrial, nunca a humani<strong>da</strong>de tinha precisa<strong>do</strong> denenhum tipo de <strong>escola</strong>ri<strong>da</strong>de universal, nem experimenta<strong>do</strong> um modelo de <strong>escola</strong>basea<strong>do</strong> em pressupostos tão evidentemente relaciona<strong>do</strong>s com um mo<strong>do</strong> de produção.Digo isto para reforçar a ideia de que, nem a <strong>escola</strong> é eterna, nem será única a maneirade ser concebi<strong>da</strong> ou organiza<strong>da</strong>. A <strong>escola</strong> é uma instituição social, não faz parte denenhum código genético, nem nos chegou já pronta como uma espécie de ver<strong>da</strong>derevela<strong>da</strong>. Também significa que, apesar de ser eventualmente difícil imaginar comoseria uma <strong>escola</strong> se não fosse como a conhecemos, hoje em dia, ou mesmo uma não<strong>escola</strong>,esse problema é um problema apenas <strong>da</strong> nossa imaginação. Do mesmo mo<strong>do</strong>que, há duzentos anos, as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> civilização industrial impuseram a <strong>escola</strong>pública e sugeriram o mo<strong>do</strong> como se organizaria, por que razão não acreditar que acivilização pós-industrial se encarregará de sugestão equivalente?Levamos, em relação aos que nos precederam no século XVIII, uma grande vantagem,para já, no que se refere à capaci<strong>da</strong>de de responder à necessi<strong>da</strong>de de avançar com umaproposta, quan<strong>do</strong> ela se colocar. No final <strong>do</strong> século XVIII, mesmo depois <strong>do</strong> triunfo <strong>da</strong>Revolução Francesa, a ideia de <strong>escola</strong> como um direito de to<strong>do</strong>s era uma ideia quasesubversiva. Uma vez assumi<strong>da</strong> como uma necessi<strong>da</strong>de pelas classes <strong>do</strong>minantes,faltavam as <strong>escola</strong>s e os professores. O nosso tempo, no entanto, é o tempo <strong>do</strong>sprofessores e, por ironia, um tempo em que, no nosso país, se fecham as <strong>escola</strong>s ondenão se pode fazer um ensino em massa por falta de alunos em número suficiente paraisso. Mas nunca, como hoje, houve tanta gente a pensar sobre educação. Nem nuncatanta gente fez <strong>da</strong> educação um local para estar no mun<strong>do</strong>.11


De mo<strong>do</strong> que, compreendi<strong>da</strong>s as razões <strong>da</strong> senili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>escola</strong> que nasceu há duzentosanos, e imagina<strong>da</strong>s as competências que devem ter as gerações que her<strong>da</strong>rão o <strong>futuro</strong>,tarefas que nos cabem a to<strong>do</strong>s nós, terminaria com uma passagem <strong>do</strong> livro de StanDavis e Jim Botkin, The Monster Under the Bed:“With the move from an agrarian to an industrial economy, the small rural schoolhousewas supplanted by the big brick urban schoolhouse. Four decades ago, in the early1950s, we began to move to another economy but we have yet to develop a neweducational paradigm, let alone create the ‘schoolhouse’ of the future, which may beneither school nor house”.ReferênciasCon<strong>do</strong>rcet, A. (1792). Rapport sur l'organisation générale de l'Instruction publique:présenté à l'Assemblée nationale législative au nom du Comité d'Instruction publique,les 20 et 21 avril 1792. Inhttp://gallica.bnf.fr/scripts/ConsultationTout.exe?E=0&O=N087996 (consulta<strong>do</strong> em28/11/2005).Davis, S. & Botkin, J. (1994). The Monster Under the Bed. New York: Touchstone.Hargreaves, A. (1998). Os professores em tempos de mu<strong>da</strong>nça. O trabalho e a cultura<strong>do</strong>s professores na i<strong>da</strong>de pós-moderna. Alfragide: McGraw-Hill de Portugal.Kelly, A. (1980). O currículo: teoria e prática. S. Paulo: Harbra.Mialaret, G. e Vial, J. (1981). Histoire Mondiale de l’Éducation. Paris: P. U. F..Papert, S. (1980). Mindstorms - Children, Computers and Powerful Ideas. New York:Basic Books.Papert, S. (1993). The children’s machine: Rethinking schools in the age of computer.New York: Basic Books.Toffler, A. (s/d). Choque <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>. Lisboa: Livros <strong>do</strong> Brasil.Weik, M. H. (1961). The ENIAC Story. In http://ftp.arl.mil/~mike/comphist/eniacstory.html(consulta<strong>do</strong> em 28/11/2005).12

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