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Texto de Filosofia

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TEXTO AT FILOSOFIA 1S1/1S2/1S3/1S4PROFESSOR: Alan LealCONVITE À FILOSOFIA: Marilena ChauíINTRODUÇÃO – UNIDADE 1 / CAPÍTULO 1 e 2IntroduçãoPara que <strong>Filosofia</strong>?As evidências do cotidianoEm nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, <strong>de</strong>sejamos, aceitamos ou recusamos coisas,pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é hoje?”. Dizemos frases como“ele está sonhando ”, ou “ela ficou maluca”. Fazemos afirmações como “on<strong>de</strong> há fumaça, há fogo ”, ou“não saia na chuva para não se resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo,“esta casa é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”. Numa disputa, quandoos ânimos estão exaltados, um dos contendores po<strong>de</strong> gritar ao outro: “Mentiroso! Eu estava lá e não foi issoo que aconteceu”, e alguém, querendo acalmar a briga, po<strong>de</strong> dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga oque viu e vamos nos enten<strong>de</strong>r”. Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muitosubjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos umapessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa “é legal ”.Vejamos um pouco mais <strong>de</strong> perto o que dizemos em nosso cotidiano.Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a <strong>de</strong> que alguém,tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta eaceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, po<strong>de</strong> ser medido em horas e dias, que o quejá passou é diferente <strong>de</strong> agora e o que virá também há <strong>de</strong> ser diferente <strong>de</strong>ste momento, que o passado po<strong>de</strong>ser lembrado ou esquecido, e o futuro, <strong>de</strong>sejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém,silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós. Quando digo “ele está sonhando ”, referindo-mea alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitascrenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente <strong>de</strong> estar acordado, que, no sonho, o impossível e oimprovável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal,enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.Acredito, portanto, que a realida<strong>de</strong> existe fora <strong>de</strong> mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é,sei diferenciar realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ilusão. A frase “ela ficou maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a<strong>de</strong> que sabemos diferenciar razão <strong>de</strong> loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realida<strong>de</strong> existente sópara ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão <strong>de</strong> loucura, acredito também que a razão se refere auma realida<strong>de</strong> que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.Quando alguém diz “on<strong>de</strong> há fumaça, há fogo” ou “não saia na chuva para não se resfriar”, afirmasilenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações <strong>de</strong> causa e efeito entre as coisas, que on<strong>de</strong>houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa <strong>de</strong> alguma outra (o fogocausa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realida<strong>de</strong> éfeita <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>s, que as coisas, os fatos, as situações se enca<strong>de</strong>iam em relações causais que po<strong>de</strong>mosconhecer e, até mesmo, controlar para o uso <strong>de</strong> nossa vida.Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem doque Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos po<strong>de</strong>m ser comparados eavaliados, julgados pela qualida<strong>de</strong> (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantida<strong>de</strong> (mais, menos, maior,menor). Julgamos, assim, que a qualida<strong>de</strong> e a quantida<strong>de</strong> existem, que po<strong>de</strong>mos conhecê-las e usá-las emnossa vida.Se, por exemplo, dissermos que “o sol é maior do que o vemos”, também estamos acreditando quenossa percepção alcança as coisas <strong>de</strong> modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nosaparecem, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da distância, <strong>de</strong> nossas condições <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> ou da localização e do movimentodos objetos.Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualida<strong>de</strong>s (perto, longe, alto, baixo) equantida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>ndo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que


acreditamos que nossa visão po<strong>de</strong> ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremosque estamos sonhando ou que ficamos malucos.Na briga, quando alguém chama o outro <strong>de</strong> mentiroso porque não estaria dizendo os fatosexatamente como aconteceram, está presente a nossa crença <strong>de</strong> que há diferença entre verda<strong>de</strong> e mentira. Aprimeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo arealida<strong>de</strong>.No entanto, consi<strong>de</strong>ramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, olouco e o que erra se ilu<strong>de</strong>m involuntariamente, enquanto o mentiroso <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> voluntariamente <strong>de</strong>formar arealida<strong>de</strong> e os fatos.Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsida<strong>de</strong>s, mas diferentes porque somente namentira há a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> falsear.Ao diferenciarmos erro <strong>de</strong> mentira, consi<strong>de</strong>rando o primeiro uma ilusão ou um enganoinvoluntários e a segunda uma <strong>de</strong>cisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença <strong>de</strong> que somosseres dotados <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e que <strong>de</strong>la <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dizer a verda<strong>de</strong> ou a mentira.Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamostanto <strong>de</strong> ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos quequando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira “no duro”, “pravaler”.Quando distinguimos entre verda<strong>de</strong> e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis <strong>de</strong> mentirasaceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou <strong>de</strong>sconhecimento da realida<strong>de</strong>, mastambém ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vonta<strong>de</strong>,po<strong>de</strong>m ser morais ou imorais, pois cremos que a vonta<strong>de</strong> é livre para o bem ou para o mal.Na briga, quando uma terceira pessoa pe<strong>de</strong> às outras duas para que sejam “objetivas” ou quandofalamos dos namorados como sendo “muito subjetivos”, também estamos cheios <strong>de</strong> crenças silenciosas.Acreditamos que quando alguém quer <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r muito intensamente um ponto <strong>de</strong> vista, uma preferência,uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um gran<strong>de</strong> afeto por outra pessoa, esse alguém “per<strong>de</strong>”a objetivida<strong>de</strong>, ficando “muito subjetivo”.Com isso, acreditamos que a objetivida<strong>de</strong> é uma atitu<strong>de</strong> imparcial que alcança as coisas tais comosão verda<strong>de</strong>iramente, enquanto a subjetivida<strong>de</strong> é uma atitu<strong>de</strong> parcial, pessoal, ditada por sentimentosvariados (amor, ódio, medo, <strong>de</strong>sejo).Assim, não só acreditamos que a objetivida<strong>de</strong> e a subjetivida<strong>de</strong> existem, como ainda acreditamosque são diferentes e que a primeira não <strong>de</strong>forma a realida<strong>de</strong>, enquanto a segunda, voluntária ouinvoluntariamente, a <strong>de</strong>forma.Ao dizermos que alguém “é legal ” porque tem os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou<strong>de</strong>spreza as mesmas coisas que nós e tem atitu<strong>de</strong>s, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos,estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho,socieda<strong>de</strong>, política - nos faz semelhantes ou diferentes em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> normas e valores morais,políticos, religiosos e artísticos, regras <strong>de</strong> conduta, finalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vida.Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas <strong>de</strong> conduta, possuem valoresmorais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia <strong>de</strong> seus semelhantes e procuram distanciar-sedos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seressociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalida<strong>de</strong>s só po<strong>de</strong>m ser estabelecidos por seresconscientes e dotados <strong>de</strong> raciocínio.Como se po<strong>de</strong> notar, nossa vida cotidiana é toda feita <strong>de</strong> crenças silenciosas, da aceitação tácita <strong>de</strong>evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, narealida<strong>de</strong>, na qualida<strong>de</strong>, na quantida<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, na diferença entre realida<strong>de</strong> e sonho ou loucura, entreverda<strong>de</strong> e mentira; cremos também na objetivida<strong>de</strong> e na diferença entre ela e a subjetivida<strong>de</strong>, na existênciada vonta<strong>de</strong>, da liberda<strong>de</strong>, do bem e do mal, da moral, da socieda<strong>de</strong>.A atitu<strong>de</strong> filosóficaImaginemos, agora, alguém que tomasse uma <strong>de</strong>cisão muito estranha e começasse a fazerperguntas inesperadas. Em vez <strong>de</strong> “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo?Em vez <strong>de</strong> dizer “está sonhando” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “On<strong>de</strong> háfumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?;“seja objetivo ”, ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetivida<strong>de</strong>? O que é a subjetivida<strong>de</strong>?;“Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo? Em vez<strong>de</strong> gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verda<strong>de</strong>? O que é o falso? O que é o erro? O que é a


mentira? Quando existe verda<strong>de</strong> e por quê? Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez <strong>de</strong> falar nasubjetivida<strong>de</strong> dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o <strong>de</strong>sejo? O que são os sentimentos?Se, em lugar <strong>de</strong> discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesseinvestigar: O que é a quantida<strong>de</strong>? O que é a qualida<strong>de</strong>?E se, em vez <strong>de</strong> afirmar que gosta <strong>de</strong> alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, asmesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral?O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vonta<strong>de</strong>? O que é a liberda<strong>de</strong>?Alguém que tomasse essa <strong>de</strong>cisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e <strong>de</strong> si mesmo, teriapassado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, <strong>de</strong>sejando conhecer por que cremos no quecremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguémestaria começando a adotar o que chamamos <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> filosófica.Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é <strong>Filosofia</strong>?” po<strong>de</strong>ria ser: A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> não aceitarcomo óbvias e evi<strong>de</strong>ntes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos <strong>de</strong> nossaexistência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que <strong>Filosofia</strong>?”. E ele respon<strong>de</strong>u: “Para não darmosnossa aceitação imediata às coisas, sem maiores consi<strong>de</strong>rações”.A atitu<strong>de</strong> críticaA primeira característica da atitu<strong>de</strong> filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aospré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz epensa”, ao estabelecido.A segunda característica da atitu<strong>de</strong> filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que sãoas coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também umainterrogação sobre o porquê disso tudo e <strong>de</strong> nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não <strong>de</strong>outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitu<strong>de</strong> filosófica.A face negativa e a face positiva da atitu<strong>de</strong> filosófica constituem o que chamamos <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>crítica e pensamento crítico.A <strong>Filosofia</strong> começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começadizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da <strong>Filosofia</strong>, o grego Sócrates,afirmava que a primeira e fundamental verda<strong>de</strong> filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo <strong>de</strong>Sócrates, o filósofo grego Platão, a <strong>Filosofia</strong> começa com a admiração; já o discípulo <strong>de</strong> Platão, o filósofoAristóteles, acreditava que a <strong>Filosofia</strong> começa com o espanto.Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através <strong>de</strong> nossopensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família,amigos, professores, livros e outros meios <strong>de</strong> comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como seestivéssemos acabando <strong>de</strong> nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, porque é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.Para que <strong>Filosofia</strong>?Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que <strong>Filosofia</strong>? É uma pergunta interessante.Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para quegeografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para queastronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito naturalperguntar: Para que <strong>Filosofia</strong>?Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes <strong>de</strong><strong>Filosofia</strong>: “A <strong>Filosofia</strong> é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a<strong>Filosofia</strong> não serve para nada. Por isso, se costuma chamar <strong>de</strong> “filósofo” alguém sempre distraído, com acabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém enten<strong>de</strong> e que são perfeitamente inúteis.Essa pergunta, “Para que <strong>Filosofia</strong>?”, tem a sua razão <strong>de</strong> ser.Em nossa cultura e em nossa socieda<strong>de</strong>, costumamos consi<strong>de</strong>rar que alguma coisa só tem o direito<strong>de</strong> existir se tiver alguma finalida<strong>de</strong> prática, muito visível e <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> imediata. Por isso, ninguémpergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilida<strong>de</strong> das ciências nos produtos datécnica, isto é, na aplicação científica à realida<strong>de</strong>.Todo mundo também imagina ver a utilida<strong>de</strong> das artes, tanto por causa da compra e venda dasobras <strong>de</strong> arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para oelogio da humanida<strong>de</strong>. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a <strong>Filosofia</strong>, don<strong>de</strong> dizer-se: nãoserve para coisa alguma.Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. Asciências preten<strong>de</strong>m ser conhecimentos verda<strong>de</strong>iros, obtidos graças a procedimentos rigorosos <strong>de</strong>


pensamento; preten<strong>de</strong>m agir sobre a realida<strong>de</strong>, através <strong>de</strong> instrumentos e objetos técnicos; preten<strong>de</strong>m fazerprogressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verda<strong>de</strong>,<strong>de</strong> procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática <strong>de</strong> teorias, naracionalida<strong>de</strong> dos conhecimentos, porque po<strong>de</strong>m ser corrigidos e aperfeiçoados. Verda<strong>de</strong>, pensamento,procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo <strong>de</strong> saberes:tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte <strong>de</strong>las como questões já respondidas, masé a <strong>Filosofia</strong> quem as formula e busca respostas para elas.Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da <strong>Filosofia</strong>, mesmo que ocientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comumcontinua afirmando que a <strong>Filosofia</strong> não serve para nada.Para dar alguma utilida<strong>de</strong> à <strong>Filosofia</strong>, muitos consi<strong>de</strong>ram que, <strong>de</strong> fato, a <strong>Filosofia</strong> não serviria paranada, se “servir” fosse entendido como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer usos técnicos dos produtos filosóficos oudar-lhes utilida<strong>de</strong> econômica, obtendo lucros com eles; consi<strong>de</strong>ram também que a <strong>Filosofia</strong> nada teria a vercom a ciência e a técnica.Para quem pensa <strong>de</strong>ssa forma, o principal para a <strong>Filosofia</strong> não seriam os conhecimentos (que ficampor conta da ciência), nem as aplicações <strong>de</strong> teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamentomoral ou ético. A <strong>Filosofia</strong> seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, aliberda<strong>de</strong> e a vonta<strong>de</strong>, analisando a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa razão para impor limites aos nossos <strong>de</strong>sejos epaixões, ensinando-nos a viver <strong>de</strong> modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a<strong>Filosofia</strong> teria como finalida<strong>de</strong> ensinarnos a virtu<strong>de</strong>, que é o princípio do bem-viver.Essa <strong>de</strong>finição da <strong>Filosofia</strong>, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moralou ética, ou uma arte do bem-viver, a <strong>Filosofia</strong> continua fazendo suas perguntas <strong>de</strong>sconcertantes eembaraçosas: O que é o homem? O que é a vonta<strong>de</strong>? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício?O que é a virtu<strong>de</strong>? O que é a liberda<strong>de</strong>? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que aliberda<strong>de</strong> e a virtu<strong>de</strong> são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos ossentimentos e as ações humanas?Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da <strong>Filosofia</strong> não é o conhecimento da realida<strong>de</strong>, nem oconhecimento da nossa capacida<strong>de</strong> para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da <strong>Filosofia</strong> éapenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitu<strong>de</strong> filosófica permaneceriam osmesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.Atitu<strong>de</strong> filosófica: indagarSe, portanto, <strong>de</strong>ixarmos <strong>de</strong> lado, por enquanto, os objetos com os quais a <strong>Filosofia</strong> se ocupa,veremos que a atitu<strong>de</strong> filosófica possui algumas características que são as mesmas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente doconteúdo investigado.Essas características são:- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A <strong>Filosofia</strong> pergunta qual é a realida<strong>de</strong> ounatureza e qual é a significação <strong>de</strong> alguma coisa, não importa qual;- perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A <strong>Filosofia</strong> indaga qual é a estrutura e quais são asrelações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor;- perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A <strong>Filosofia</strong> pergunta pela origemou pela causa <strong>de</strong> uma coisa, <strong>de</strong> uma idéia, <strong>de</strong> um valor. A atitu<strong>de</strong> filosófica inicia-se dirigindo essasindagações ao mundo que nos ro<strong>de</strong>ia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, <strong>de</strong>scobreque essas questões se referem, afinal, à nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer, à nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar.Por isso, pouco a pouco, as perguntas da <strong>Filosofia</strong> se dirigem ao próprio pensamento: o que épensar, como é pensar, por que há o pensar? A <strong>Filosofia</strong> torna-se, então, o pensamento interrogando-se a simesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a <strong>Filosofia</strong> se realiza como reflexão.A reflexão filosóficaReflexão significa movimento <strong>de</strong> volta sobre si mesmo ou movimento <strong>de</strong> retorno a si mesmo. Areflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo.A reflexão filosófica é radical porque é um movimento <strong>de</strong> volta do pensamento sobre si mesmo paraconhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, somenteseres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros sereshumanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relaçõestanto por meio da linguagem quanto por meio <strong>de</strong> gestos e ações.A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realida<strong>de</strong>circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosóficaorganiza-se em torno <strong>de</strong> três gran<strong>de</strong>s conjuntos <strong>de</strong> perguntas ou questões:


1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é,quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos,fazermos o que fazemos?2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o quequeremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos oufazemos?3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é,qual é a intenção ou a finalida<strong>de</strong> do que pensamos, dizemos e fazemos?Essas três questões po<strong>de</strong>m ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem aseguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verda<strong>de</strong>iro, um conhecimento? Comovimos, a atitu<strong>de</strong> filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo quenos ro<strong>de</strong>ia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, asignificação ou a estrutura e a origem <strong>de</strong> todas as coisas.Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos sereshumanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacida<strong>de</strong> e a finalida<strong>de</strong> humanas para conhecer eagir.<strong>Filosofia</strong>: um pensamento sistemáticoEssas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões <strong>de</strong> cadaum <strong>de</strong> nós. A <strong>Filosofia</strong> não é um “eu acho que” ou um “eu gosto <strong>de</strong>”. Não é pesquisa <strong>de</strong> opinião à maneirados meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa. Não é pesquisa <strong>de</strong> mercado para conhecer preferências dosconsumidores e montar uma propaganda.As indagações filosóficas se realizam <strong>de</strong> modo sistemático. Que significa isso?Significa que a <strong>Filosofia</strong> trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca enca<strong>de</strong>amentoslógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou i<strong>de</strong>ias obtidos por procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração eprova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosóficapo<strong>de</strong> fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica <strong>de</strong> simesmas. Não se trata <strong>de</strong> dizer “eu acho que ”, mas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r afirmar “eu penso que”. O conhecimentofilosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para asquestões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostassejam verda<strong>de</strong>iras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes<strong>de</strong> idéias e significações, sejam provadas e <strong>de</strong>monstradas racionalmente.Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia <strong>de</strong> fulana ou <strong>de</strong> fulano”,engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuirum conjunto <strong>de</strong> idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto<strong>de</strong> princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia<strong>de</strong> fulano” ficam no plano <strong>de</strong> um “eu acho” coerente.Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muitoconfusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são umafilosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressenteque a <strong>Filosofia</strong> opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a <strong>Filosofia</strong> tem uma vocação paraformar um todo daquilo que aparece <strong>de</strong> modo fragmentado em nossa experiência cotidiana.Em busca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição da <strong>Filosofia</strong>Quando começamos a estudar <strong>Filosofia</strong>, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeirasurpresa surge ao <strong>de</strong>scobrirmos que não há apenas uma <strong>de</strong>finição da <strong>Filosofia</strong>, mas várias. A segundasurpresa vem ao percebermos que, além <strong>de</strong> várias, as <strong>de</strong>finições parecem contradizer-se. Eis porque muitos,cheios <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong>, indagam: afinal, o que é a <strong>Filosofia</strong> que sequer consegue dizer o que ela é?Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro <strong>de</strong>finições gerais do que seria a <strong>Filosofia</strong>:1. Visão <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong> um povo, <strong>de</strong> uma civilização ou <strong>de</strong> uma cultura. <strong>Filosofia</strong> correspon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>modo vago e geral, ao conjunto <strong>de</strong> idéias, valores e práticas pelos quais uma socieda<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong> ecompreen<strong>de</strong> o mundo e a si mesma, <strong>de</strong>finindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e omau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verda<strong>de</strong>iro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e onecessário.Qual o problema <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>finição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo,distinguir a <strong>Filosofia</strong> e religião, <strong>Filosofia</strong> e arte, <strong>Filosofia</strong> e ciência. Na verda<strong>de</strong>, essa <strong>de</strong>finição i<strong>de</strong>ntifica<strong>Filosofia</strong> e Cultura, pois esta é uma visão <strong>de</strong> mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas <strong>de</strong>uma socieda<strong>de</strong>.A <strong>de</strong>finição, portanto, não consegue acercar-se da especificida<strong>de</strong> do trabalho filosófico e por isso nãopo<strong>de</strong>mos aceitá-la.


2. Sabedoria <strong>de</strong> vida. Aqui, a <strong>Filosofia</strong> é i<strong>de</strong>ntificada com a <strong>de</strong>finição e a ação <strong>de</strong> algumas pessoasque pensam sobre a vida moral, <strong>de</strong>dicando-se à contemplação do mundo para apren<strong>de</strong>r com ele a controlare dirigir suas vidas <strong>de</strong> modo ético e sábio.A <strong>Filosofia</strong> seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa,sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, <strong>de</strong>sejos e paixões. Énesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.Esta <strong>de</strong>finição, porém, nos diz, <strong>de</strong> modo vago, o que se espera da <strong>Filosofia</strong> (a sabedoria interior),mas não o que é e o que faz a <strong>Filosofia</strong> e, por isso, também não po<strong>de</strong>mos aceitá-la.3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalida<strong>de</strong> or<strong>de</strong>nada e dotada <strong>de</strong>sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo entre <strong>Filosofia</strong> e religião e até mesmo opondo uma à outra,pois ambas possuem o mesmo objeto (compreen<strong>de</strong>r o Universo), mas a primeira o faz através do esforçoracional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina. Ou seja, a <strong>Filosofia</strong> procuradiscutir até o fim o sentido e o fundamento da realida<strong>de</strong>, enquanto a consciência religiosa se baseia numdado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina in<strong>de</strong>monstrável.Pela fé, a religião aceita princípios in<strong>de</strong>monstráveis e até mesmo aqueles que po<strong>de</strong>m serconsi<strong>de</strong>rados irracionais pelo pensamento, enquanto a <strong>Filosofia</strong> não admite in<strong>de</strong>monstrabilida<strong>de</strong> eirracionalida<strong>de</strong>. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreen<strong>de</strong>r o que parece serirracional e inquestionável.No entanto, esta <strong>de</strong>finição também é problemática, porque dá à <strong>Filosofia</strong> a tarefa <strong>de</strong> oferecer umaexplicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema domundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque aexplicação sobre a realida<strong>de</strong> também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais <strong>de</strong>finindoum aspecto e um campo da realida<strong>de</strong> para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso dasartes), já não sendo pensável uma única disciplina que pu<strong>de</strong>sse abranger sozinha a totalida<strong>de</strong> dosconhecimentos; em segundo lugar, porque a própria <strong>Filosofia</strong> já não admite que seja possível um sistema<strong>de</strong> pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realida<strong>de</strong>. Por isso, esta <strong>de</strong>finiçãotambém não po<strong>de</strong> ser aceita.4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A <strong>Filosofia</strong>, cada vezmais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verda<strong>de</strong>iro;com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensãodas causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformaçõeshistóricas dos conceitos, das idéias e dos valores.A <strong>Filosofia</strong> volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalida<strong>de</strong>s: percepção,imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sejo epaixões, procurando <strong>de</strong>screver as formas e os conteúdos <strong>de</strong>ssas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relação entre o ser humanoe o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a <strong>Filosofia</strong> visa ao estudo e àinterpretação <strong>de</strong> idéias ou significações gerais como: realida<strong>de</strong>, mundo, natureza, cultura, história,subjetivida<strong>de</strong>, objetivida<strong>de</strong>, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, etc.Sem abandonar as questões sobre a essência da realida<strong>de</strong>, a <strong>Filosofia</strong> procura diferenciar-se dasciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) nummomento muito preciso: quando per<strong>de</strong>mos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes aindanão ofereceram outras certezas para substituir as que per<strong>de</strong>mos.Em outras palavras, a <strong>Filosofia</strong> se interessa por aquele instante em que a realida<strong>de</strong> natural (omundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis eenigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda nãosabem o que pensar e dizer.Esta última <strong>de</strong>scrição da ativida<strong>de</strong> filosófica capta a <strong>Filosofia</strong> como análise (das condições daciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma paraconhecer-se enquanto capacida<strong>de</strong> para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusõese dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas trêsativida<strong>de</strong>s (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica <strong>de</strong> significações geraissobre a realida<strong>de</strong> e os seres humanos. Além <strong>de</strong> análise, reflexão e crítica, a <strong>Filosofia</strong> é a busca dofundamento e do sentido da realida<strong>de</strong> em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanênciae qual a necessida<strong>de</strong> interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-<strong>de</strong>saparecer dos seres?A <strong>Filosofia</strong> não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos.Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é umainterpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras <strong>de</strong> arte e do trabalho artístico.


Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos dasociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, anatureza e as formas do po<strong>de</strong>r. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquantoinseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da açãohumanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento damudança das formas do real ou dos seres, a <strong>Filosofia</strong> sabe que está na História e que possui uma história.Inútil? Útil?O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? Oque é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?O senso comum <strong>de</strong> nossa socieda<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra útil o que dá prestígio, po<strong>de</strong>r, fama e riqueza. Julga oútil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, i<strong>de</strong>ntificando utilida<strong>de</strong> e a famosa expressão “levarvantagem em tudo”. Desse ponto <strong>de</strong> vista, a <strong>Filosofia</strong> é inteiramente inútil e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o di reito <strong>de</strong> serinútil.Não po<strong>de</strong>ríamos, porém, <strong>de</strong>finir o útil <strong>de</strong> outra maneira?Platão <strong>de</strong>finia a <strong>Filosofia</strong> como um saber verda<strong>de</strong>iro que <strong>de</strong>ve ser usado em benefício dos sereshumanos. Descartes dizia que a <strong>Filosofia</strong> é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito <strong>de</strong> todas as coisasque os humanos po<strong>de</strong>m alcançar para o uso da vida, a conservação da saú<strong>de</strong> e a invenção das técnicas e dasartes. Kant afirmou que a <strong>Filosofia</strong> é o conhecimento que a razão adquire <strong>de</strong> si mesma para saber o quepo<strong>de</strong> conhecer e o que po<strong>de</strong> fazer, tendo como finalida<strong>de</strong> a felicida<strong>de</strong> humana. Marx <strong>de</strong>clarou que a<strong>Filosofia</strong> havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, <strong>de</strong> conhecê-lopara transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicida<strong>de</strong> para todos. Merleau-Pontyescreveu que a <strong>Filosofia</strong> é um <strong>de</strong>spertar para ver e mudar nosso mundo. Espinosa afirmou que a <strong>Filosofia</strong> éum caminho árduo e difícil, mas que po<strong>de</strong> ser percorrido por todos, se <strong>de</strong>sejarem a liberda<strong>de</strong> e a felicida<strong>de</strong>.Qual seria, então, a utilida<strong>de</strong> da <strong>Filosofia</strong>?Se abandonar a ingenuida<strong>de</strong> e os preconceitos do senso comum for útil; se não se <strong>de</strong>ixar guiar pelasubmissão às idéias dominantes e aos po<strong>de</strong>res estabelecidos for útil; se buscar compreen<strong>de</strong>r a significaçãodo mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nasciências e na política for útil; se dar a cada um <strong>de</strong> nós e à nossa socieda<strong>de</strong> os meios para serem conscientes<strong>de</strong> si e <strong>de</strong> suas ações numa prática que <strong>de</strong>seja a liberda<strong>de</strong> e a felicida<strong>de</strong> para todos for útil, então po<strong>de</strong>mosdizer que a <strong>Filosofia</strong> é o mais útil <strong>de</strong> todos os saberes <strong>de</strong> que os seres humanos são capazes.Capítulo 1A origem da <strong>Filosofia</strong>A palavra filosofiaA palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo <strong>de</strong>riva-se <strong>de</strong> philia, quesignifica amiza<strong>de</strong>, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e <strong>de</strong>la vem a palavrasophos, sábio. <strong>Filosofia</strong> significa, portanto, amiza<strong>de</strong> pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: oque ama a sabedoria, tem amiza<strong>de</strong> pelo saber, <strong>de</strong>seja saber.Assim, filosofia indica um estado <strong>de</strong> espírito, o da pessoa que ama, isto é, <strong>de</strong>seja o conhecimento, oestima, o procura e o respeita. Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras <strong>de</strong> Samos (que viveu no século Vantes <strong>de</strong> Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completapertence aos <strong>de</strong>uses, mas que os homens po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.Dizia Pitágoras que três tipos <strong>de</strong> pessoas compareciam aos jogos olímpicos (a festa mais importanteda Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas para servir aos seus própriosinteresses e sem preocupação com as disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas eartistas (pois, durante os jogos também havia competições artísticas: dança, poesia, música, teatro); e asque iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o <strong>de</strong>sempenho e julgar o valor dos que ali seapresentavam. Esse terceiro tipo <strong>de</strong> pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais - não colocao saber como proprieda<strong>de</strong> sua, como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado; também não émovido pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> competir - não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilida<strong>de</strong> para vencercompetidores ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> observar, contemplar, julgar e avaliaras coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> saber. A verda<strong>de</strong> não pertence a ninguém, ela é o quebuscamos e que está diante <strong>de</strong> nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê -la.A <strong>Filosofia</strong> é grega


A <strong>Filosofia</strong>, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realida<strong>de</strong>natural e humana, da origem e causas do mundo e <strong>de</strong> suas transformações, da origem e causas das açõeshumanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego.Evi<strong>de</strong>ntemente, isso não quer dizer, <strong>de</strong> modo algum, que outros povos, tão antigos quanto osgregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os hebreus, os africanos ou osíndios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todosesses povos não tivessem <strong>de</strong>senvolvido o pensamento e formas <strong>de</strong> conhecimento da Natureza e dos sereshumanos, pois <strong>de</strong>senvolveram e <strong>de</strong>senvolvem.Quando se diz que a <strong>Filosofia</strong> é um fato grego, o que se quer dizer é que ela possui certascaracterísticas, apresenta certas formas <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> exprimir os pensamentos, estabelece certasconcepções sobre o que sejam a realida<strong>de</strong>, o pensamento, a ação, as técnicas, que são completamentediferentes das características <strong>de</strong>senvolvidas por outros povos e outras culturas.Vejamos um exemplo. Os chineses <strong>de</strong>senvolveram um pensamento muito profundo sobre aexistência <strong>de</strong> coisas, seres e ações contrários ou opostos, que formam a realida<strong>de</strong>. Deram às oposições onome <strong>de</strong> dois princípios: Yin e Yang. Yin é o princípio feminino passivo na Natureza, representado pelaescuridão, o frio e a umida<strong>de</strong>; Yang é o princípio masculino ativo na Natureza, representado pela luz, ocalor e o seco. Os dois princípios se combinam e formam todas as coisas, que, por isso, são feitas <strong>de</strong>contrários ou <strong>de</strong> oposições. O mundo, portanto, é feito da ativida<strong>de</strong> masculina e da passivida<strong>de</strong> feminina.Tomemos agora um filósofo grego, por exemplo, o próprio Pitágoras. Que diz ele? Que a Natureza é feita<strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> relações ou <strong>de</strong> proporções matemáticas produzidas a partir da unida<strong>de</strong> (o número 1 e oponto), da oposição entre os números pares e ímpares, e da combinação entre as superfícies e os volumes(as figuras geométricas), <strong>de</strong> tal modo que essas proporções e combinações aparecem para nossos órgãosdos sentidos sob a forma <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s contrárias: quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro,gran<strong>de</strong>-pequeno, doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitágoras, o pensamento alcança a realida<strong>de</strong> em suaestrutura matemática, enquanto nossos sentidos ou nossa percepção alcançam o modo como a estruturamatemática da Natureza aparece para nós, isto é, sob a forma <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s opostas.Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego?O pensamento chinês toma duas características (masculino e feminino) existentes em alguns seres(os animais e os humanos) e consi<strong>de</strong>ra que o Universo inteiro é feito da oposição entre qualida<strong>de</strong>satribuídas a dois sexos diferentes, <strong>de</strong> sorte que o mundo é organizado pelo princípio da sexualida<strong>de</strong> animalou humana.O pensamento <strong>de</strong> Pitágoras apanha a Natureza numa generalida<strong>de</strong> muito mais ampla do que asexualida<strong>de</strong> própria a alguns seres da Natureza, e faz distinção entre as qualida<strong>de</strong>s sensoriais que nosaparecem e a estrutura invisível da Natureza, que, para ele, é <strong>de</strong> tipo matemático e alcançada apenas pelointelecto, ou inteligência.São diferenças <strong>de</strong>sse tipo, além <strong>de</strong> muitas outras, que nos levam a dizer que existe uma sabedoriachinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos índios, mas não há filosofia chinesa, filosofia hindu oufilosofia indígena. Em outras palavras, <strong>Filosofia</strong> é um modo <strong>de</strong> pensar e exprimir os pensamentos quesurgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas, tornou-se, <strong>de</strong>pois, o modo <strong>de</strong>pensar e <strong>de</strong> se exprimir predominante da chamada cultura européia oci<strong>de</strong>ntal da qual, em <strong>de</strong>corrência dacolonização portuguesa do Brasil, nós também participamos.Através da <strong>Filosofia</strong>, os gregos instituíram para o Oci<strong>de</strong>nte europeu as bases e os princípiosfundamentais do que chamamos razão, racionalida<strong>de</strong>, ciência, ética, política, técnica, arte.Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia, anarquia,<strong>de</strong>mocracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia,farmácia, entre muitas outras, são palavras gregas, para percebermos a influência <strong>de</strong>cisiva e predominanteda <strong>Filosofia</strong> grega sobre a formação do pensamento e das instituições das socieda<strong>de</strong>seuropéias oci<strong>de</strong>ntais.É por isso que, em <strong>de</strong>corrência do predomínio da economia capitalista criada pelo Oci<strong>de</strong>nte e queimpõe um certo tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das ciências e das técnicas, falamos, por exemplo, em“oci<strong>de</strong>ntalização dos chineses”, “oci<strong>de</strong>ntalização dos árabes”, etc. Com isso queremos significar que modos<strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> agir, criados no Oci<strong>de</strong>nte pela <strong>Filosofia</strong> grega, foram incorporados até mesmo por culturas esocieda<strong>de</strong>s muito diferentes daquela on<strong>de</strong> nasceu a <strong>Filosofia</strong>.É pelo mesmo motivo que falamos em “orientalismos” e “orientalistas” para indicar pessoas quebuscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang, nos mantras, nas pirâmi<strong>de</strong>s, nas auras, naspedras e cristais maneiras <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> explicar a realida<strong>de</strong>, a Natureza, a vida e as ações humanas quenão são próprias ou específicas do Oci<strong>de</strong>nte, isto é, são diferentes do padrão <strong>de</strong> pensamento e <strong>de</strong> explicaçãoque foram criados pelos gregos a partir do século VII antes <strong>de</strong> Cristo, época em que nasce a <strong>Filosofia</strong>.


O legado da <strong>Filosofia</strong> grega para o Oci<strong>de</strong>nte europeuPor causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte - ainda que <strong>de</strong> modoinferiorizado e colonizado - do Oci<strong>de</strong>nte europeu e assim também somos her<strong>de</strong>iros do legado que a<strong>Filosofia</strong> grega <strong>de</strong>ixou para o pensamento oci<strong>de</strong>ntal europeu.Desse legado, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar como principais contribuições as seguintes:- A idéia <strong>de</strong> que a Natureza opera obe<strong>de</strong>cendo a leis e princípios necessários e universais, isto é, osmesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo, graças aos gregos, no século XVII danossa era, o filósofo inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal <strong>de</strong> todos os corpos daNatureza.A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação <strong>de</strong> um outro, produz uma reaçãoigual e contrária, que po<strong>de</strong> ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado, avelocida<strong>de</strong> e o tempo com que a ação e a reação se <strong>de</strong>ram.Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa <strong>de</strong>la e po<strong>de</strong> funcionar <strong>de</strong> outramaneira que não <strong>de</strong>sta; e esta lei é universal , isto é, válida para todos os corpos em todos os tempos elugares. Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme <strong>de</strong>monstraram osfilósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970,em Lisboa em 1810, em São Paulo em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leisdo triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas.- A idéia <strong>de</strong> que as leis necessárias e universais da Natureza po<strong>de</strong>m ser plenamente conhecidas pelonosso pensamento, isto é, não são conhecimentos misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados pordivinda<strong>de</strong>s, mas são conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacida<strong>de</strong>,po<strong>de</strong> alcançar.- A idéia <strong>de</strong> que nosso pensamento também opera obe<strong>de</strong>cendo a leis, regras e normas universais enecessárias, segundo as quais po<strong>de</strong>mos distinguir o verda<strong>de</strong>iro do falso. Em outras palavras, a idéia <strong>de</strong> queo nosso pensamento é lógico ou segue leis lógicas <strong>de</strong> funcionamento.Nosso pensamento diferencia uma afirmação <strong>de</strong> uma negação porque, na afirmação, atribuímosalguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser humano ”, atribuímos humanida<strong>de</strong> aSócrates) e, na negação, retiramos alguma coisa <strong>de</strong> outra (quando dizemos “este ca<strong>de</strong>rno não é ver<strong>de</strong>”,estamos retirando do ca<strong>de</strong>rno a cor ver<strong>de</strong>).Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verda<strong>de</strong>ira ou falsa. Se alguém apresentar oseguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal ”, diremosque a afirmação “Sócrates é mortal” é verda<strong>de</strong>ira, porque foi concluída <strong>de</strong> outras afirmações que jásabemos serem verda<strong>de</strong>iras.- A idéia <strong>de</strong> que as práticas humanas, isto é, a aç ão moral, a política, as técnicas e as artes<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da vonta<strong>de</strong> livre, da <strong>de</strong>liberação e da discussão, da nossa escolha passional (ou emocional) ouracional, <strong>de</strong> nossas preferências, segundo certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos própriosseres humanos e não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas por forçassecretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis <strong>de</strong> serem conhecidas.- A idéia <strong>de</strong> que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque obe<strong>de</strong>cem a leisnaturais ou da natureza humana, mas também po<strong>de</strong>m ser contingentes ou aci<strong>de</strong>ntais, quando <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m dasescolhas e <strong>de</strong>liberações dos homens, em condições <strong>de</strong>terminadas.Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia natural enecessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e fisiológicas que regem o seu corpofazem com que ele tenha os meios necessários para a locomoção. No entanto, se uma pedra, ao cair, atingira cabeça <strong>de</strong> um passante, esse acontecimento é contingente ou aci<strong>de</strong>ntal. Por quê? Porque, se o passantenão estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Assim, a queda da pedra é necessária eo andar <strong>de</strong> um ser humano é necessário, mas que uma pedra caia sobre minha cabeça quando ando éinteiramente contingente ou aci<strong>de</strong>ntal.Todavia, é muito diferente a situação das ações humanas. É verda<strong>de</strong> que é por uma necessida<strong>de</strong>natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por <strong>de</strong>liberação voluntária que ando para ir à escola emvez <strong>de</strong> andar para ir ao cinema, por exemplo. É verda<strong>de</strong> que é por uma lei necessária da Natureza que oscorpos pesados caem, mas é por uma <strong>de</strong>liberação humana e por uma escolha voluntária que fabrico umabomba, a coloco num avião e a faço <strong>de</strong>spencar sobre Hiroshima.Um dos legados mais importantes da <strong>Filosofia</strong> grega é, portanto, essa diferença entre o necessário eo contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - “tudo é necessário, temos que nos conformar e nosresignar ” -, mas também evitar a ilusão <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos tudo quanto quisermos, se alguma forçaextranatural ou sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias que po<strong>de</strong>mos conhecer enem tudo é possível por mais que o queiramos.


- A idéia <strong>de</strong> que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento verda<strong>de</strong>iro, àfelicida<strong>de</strong>, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem agem cegamente, mas criam valores peloquais dão sentido às suas vidas e às suas ações.A <strong>Filosofia</strong> surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realida<strong>de</strong>,insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes <strong>de</strong>ra, começaram a fazer perguntas e buscar respostaspara elas, <strong>de</strong>monstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, osacontecimentos e as ações humanas po<strong>de</strong>m ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão écapaz <strong>de</strong> conhecer-se a si mesma.Em suma, a <strong>Filosofia</strong> surge quando se <strong>de</strong>scobriu que a verda<strong>de</strong> do mundo e dos humanos não eraalgo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divinda<strong>de</strong>s a alguns escolhidos, mas que, aocontrário, podia ser conhecida por todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se <strong>de</strong>scobriuque tal conhecimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r serconhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos.Capítulo 2O nascimento da <strong>Filosofia</strong>Ouvindo a voz dos poetasEscutemos, por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos <strong>de</strong>“sentimento do mundo ”, o sentimento da velhice e da juventu<strong>de</strong> perene do mundo, da gran<strong>de</strong>za e dapequeneza dos humanos ou dos mortais. Assim, o poeta grego Arquíloco escreveu:E não te esqueças, meu coração, que as coisas humanas apenas mudanças incertas são.Outro poeta grego, Teógnis, cantando sobre a brevida<strong>de</strong> da vida, dizia: Choremos a juventu<strong>de</strong> e avelhice também, pois a primeira foge e a segunda sempre vem.Também o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras:A glória dos mortais num só dia cresce,Mas basta um só dia, contrário e funesto,para que o <strong>de</strong>stino, impiedoso, num gestoa lance por terra e ela, súbito, fenece.Mas não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis. Os poetas também exprimem osentimento <strong>de</strong> que o mundo é tecido por mudanças e repetições intermináveis. A esse respeito, a poetisabrasileira Ori<strong>de</strong>s Fontela escreveu:O vento, a chuva, o sol, o frioTudo vai e vem, tudo vem e vai.E o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:Como a vida muda.Como a vida é muda.Como a vida é nuda.Como a vida é nada.Como a vida é tudo....Como a vida é senha<strong>de</strong> outra vida nova...Como a vida é vidaainda quando morte...Como a vida é forteem suas algemas....Como a vida é bela...Como a vida valemais que a própria vidasempre renascida.


O sentimento <strong>de</strong> renovação e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos é o que transparece nosversos do poeta brasileiro Mário Quintana, nos seguintes versos:Quando abro a cada manhã a janela do meu quartoÉ como se abrisse o mesmo livroNuma página nova...E, por isso, em outros versos seus, lemos:O encantoSobrenatural que hánas coisas da Natureza!...se nela algo te dáencanto ou medo,não me digas que seja feiaou má,é, acaso, singular...Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Oci<strong>de</strong>nte europeu, as Metamorfoses, opoeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança, darenovação e da repetição, do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final <strong>de</strong> suaobra, lemos:Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagempassageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio... O que foi antes já não é, oque não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, eà clarida<strong>de</strong> do dia suce<strong>de</strong>r a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se suce<strong>de</strong>rem, imitando asida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... A planta nova,pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche <strong>de</strong> esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil camporesplan<strong>de</strong>ce com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte evigorosa, o verão: é a robusta mocida<strong>de</strong>, fecunda e ar<strong>de</strong>nte. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervorda mocida<strong>de</strong>, é a quadra da maturida<strong>de</strong>, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem.Vem, <strong>de</strong>pois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores,ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre esem <strong>de</strong>scanso... E também a Natureza não <strong>de</strong>scansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas dascoisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os seres têm suaorigem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome <strong>de</strong> fênix. Não se alimenta <strong>de</strong> grãos ouervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos <strong>de</strong> vida, constróium ninho no alto <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> palmeira, feito <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> canela, do aromático nardo e da mirraavermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix,que viverá outros cinco séculos... Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste.O que perguntavam os primeiros filósofosPor que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, <strong>de</strong> umaárvore nasce outra árvore, <strong>de</strong> um cão nasce outro cão, <strong>de</strong> uma mulher nasce uma criança? Por que osdiferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parecefazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com opassar do tempo? Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e <strong>de</strong>saparece. Apaisagem, cheia <strong>de</strong> flores na primavera, vai per<strong>de</strong>ndo o ver<strong>de</strong> e as cores no outono, até ressecar-se eretorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, <strong>de</strong> céu azul e brisa suave, repentinamente, setorna sombrio, coberto <strong>de</strong> nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempesta<strong>de</strong>, pelos raios etrovões? Por que a doença inva<strong>de</strong> os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes meagradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes meembalava, agora, que estou doente, parece um ruído insuportável? Por que o que parecia uno se multiplicaem tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantosgatinhos nascem!Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e <strong>de</strong> boatemperatura, torna-se uma barra dura e gelada, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser líquida e transparente para tornar-se sólida eacinzentada. O dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio <strong>de</strong> calor.Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De on<strong>de</strong> vêm os seres? Para on<strong>de</strong> vão, quando<strong>de</strong>saparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também, por que tudoparece repetir-se? Depois do dia, a noite; <strong>de</strong>pois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, <strong>de</strong>pois da


primavera, o verão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste, o outono e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste, novamente o inverno. De dia, o sol: à noite, alua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuoso einimigo dos homens. O calor leva as águas para o céu e as traz <strong>de</strong> volta pelas chuvas. Ninguém nasceadulto ou velho, mas sempre criança, que se torna adulto e velho.Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas.Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já nãosatisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da<strong>de</strong>saparição e do ressurgimento <strong>de</strong> todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nemsatisfaziam a quem <strong>de</strong>sejava conhecer a verda<strong>de</strong> sobre o mundo.O nascimento da <strong>Filosofia</strong>Os historiadores da <strong>Filosofia</strong> dizem que ela possui data e local <strong>de</strong> nascimento: final do século VII einício do século VI antes <strong>de</strong> Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavamuma região <strong>de</strong>nominada Jônia), na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales <strong>de</strong> Mileto.Além <strong>de</strong> possuir data e local <strong>de</strong> nascimento e <strong>de</strong> possuir seu primeiro autor, a <strong>Filosofia</strong> também possui umconteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta <strong>de</strong> duas outras: cosmos,que significa mundo or<strong>de</strong>nado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamentoracional, discurso racional, conhecimento. Assim, a <strong>Filosofia</strong> nasce como conhecimento racional da or<strong>de</strong>mdo mundo ou da Natureza, don<strong>de</strong>, cosmologia.Apesar da segurança <strong>de</strong>sses dados, existe um problema que, durante séculos, vem ocupando oshistoriadores da <strong>Filosofia</strong>: o <strong>de</strong> saber se a <strong>Filosofia</strong> - que é um fato especificamente grego - nasceu por simesma ou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u <strong>de</strong> contribuições da sabedoria oriental (egípcios, assírios, persas, cal<strong>de</strong>us, babilônios)e da sabedoria <strong>de</strong> civilizações que antece<strong>de</strong>ram à grega, na região que, antes <strong>de</strong> ser a Grécia ou a Héla<strong>de</strong>,abrigara as civilizações <strong>de</strong> Creta, Minos, Tirento e Micenas.Durante muito tempo, consi<strong>de</strong>rou-se que a <strong>Filosofia</strong> nascera por transformações que os gregosoperaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos como Platão eAristóteles afirmavam a origem oriental da <strong>Filosofia</strong>. Os gregos, diziam eles, povo comerciante enavegante, <strong>de</strong>scobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios (usada para medir as terras, apósas cheias do Nilo), a astrologia dos cal<strong>de</strong>us e dos babilônios (usada para prever gran<strong>de</strong>s guerras, subida equeda <strong>de</strong> reis, catástrofes como peste, fome, furacões), as genealogias dos persas (usadas para darcontinuida<strong>de</strong> às linhagens e dinastias dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aosrituais <strong>de</strong> purificação da alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o <strong>de</strong>scanso eterno), etc.A <strong>Filosofia</strong> teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos.Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a geometria; daastrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia; das genealogias, fizeramsurgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos <strong>de</strong> purificação da alma, fizeram surgir asteorias filosóficas sobre a natureza e o <strong>de</strong>stino da alma humana. Todos esses conhecimentos teriampropiciado o aparecimento da <strong>Filosofia</strong>, isto é, da cosmologia, <strong>de</strong> sorte que a <strong>Filosofia</strong> só teria podidonascer graças as saber oriental.Essa idéia <strong>de</strong> uma filiação oriental da <strong>Filosofia</strong> foi muito <strong>de</strong>fendida oito séculos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seu nascimento(durante os séculos II e III <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cristo), no período do Império Romano. Quem a <strong>de</strong>fendia? Ospensadores judaicos, como Filo <strong>de</strong> Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusébio <strong>de</strong> Cesaréia e Clemente<strong>de</strong> Alexandria.Por que <strong>de</strong>fendiam a origem oriental da <strong>Filosofia</strong> grega? Pelo seguinte motivo: a <strong>Filosofia</strong> gregatornara-se, em toda a Antigüida<strong>de</strong> clássica, e para os po<strong>de</strong>rosos da época, os romanos, a forma superior oumais elevada do pensamento e da moral.Os ju<strong>de</strong>us, para valorizar seu pensamento, <strong>de</strong>sejavam que a <strong>Filosofia</strong> tivesse uma origem oriental,dizendo que o pensamento <strong>de</strong> filósofos importantes, como Platão, tinha surgido no Egito, on<strong>de</strong> se originarao pensamento <strong>de</strong> Moisés, <strong>de</strong> modo que havia uma ligação entre a <strong>Filosofia</strong> grega e a Bíblia. Os Padres daIgreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos <strong>de</strong> Jesus eram elevados e perfeitos, não eramsuperstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados acorrentes <strong>de</strong> pensamento místico e oriental e, <strong>de</strong>ssa maneira, estariam próximos do cristianismo, que é umareligião oriental.No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada “orientalista”, e muitos, sobretudo no século XIXda nossa era, passaram a falar na <strong>Filosofia</strong> como sendo o “milagre grego”.Com a palavra “milagre” queriam dizer várias coisas:- que a <strong>Filosofia</strong> surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que nada anterior a preparasse;


- que a <strong>Filosofia</strong> grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem par, como é próprio <strong>de</strong> ummilagre;- que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a eles, nem antes e nem<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les, e por isso somente eles po<strong>de</strong>riam ter sido capazes <strong>de</strong> criar a <strong>Filosofia</strong>, como foram os únicos acriar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem <strong>de</strong>pois<strong>de</strong>les.Nem oriental, nem milagreDes<strong>de</strong> o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos, arqueológicos,lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a redução da <strong>Filosofia</strong>à sua origem oriental, quanto o “milagre grego ”.Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, <strong>de</strong> fato, a <strong>Filosofia</strong> tem dívidas com asabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentosproduzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios, assírios e cal<strong>de</strong>us), mas tambémporque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nosmitos e nas religiões dos povos orientais, bem como nas culturas que prece<strong>de</strong>ram a grega, os elementospara elaborar a mitologia grega, que, <strong>de</strong>pois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dança,música, poesia, utensílios domésticos e <strong>de</strong> trabalho, formas <strong>de</strong> habitação, formas <strong>de</strong> parentesco e formas <strong>de</strong>organização tribal dos gregos foram resultado <strong>de</strong> contatos profundos com as culturas mais avançadas doOriente e com a herança <strong>de</strong>ixada pelas culturas que antece<strong>de</strong>ram a grega, nas regiões on<strong>de</strong> ela seimplantou.Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da idéia <strong>de</strong> um“milagre grego”, po<strong>de</strong>mos perceber o que havia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro nessa tese. De fato, os gregos imprimirammudanças <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas prece<strong>de</strong>ntes, que atépareceria terem criado sua própria cultura a partir <strong>de</strong> si mesmos. Dessas mudanças, po<strong>de</strong>mos mencionarquatro que nos darão uma idéia da originalida<strong>de</strong> grega:1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos eos que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes emonstruosos dos <strong>de</strong>uses e do início do mundo; humanizaram os <strong>de</strong>uses, divinizaram os homens; <strong>de</strong>ramracionalida<strong>de</strong> a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituições humanas(como o trabalho, as leis, a moral);2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num conhecimentoracional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos <strong>de</strong> uma sabedoria prática para o uso direto navida.Assim, transformaram em matemática (aritmética, geometria, harmonia) o que eram expedientespráticos para medir, contar e calcular; transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza edo movimento dos astros) aquilo que eram práticas <strong>de</strong> adivinhação e previsão do futuro; transformaram emmedicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saú<strong>de</strong> e a doença) aquilo que eram práticas <strong>de</strong>grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a ciência ou a<strong>Filosofia</strong>, mas inventaram também a política. Todas as socieda<strong>de</strong>s anteriores a eles conheciam e praticavama autorida<strong>de</strong> e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente dita?Nas socieda<strong>de</strong>s orientais e não-gregas, o po<strong>de</strong>r e o governo eram exercidos como autorida<strong>de</strong>absoluta da vonta<strong>de</strong> pessoal e arbitrária <strong>de</strong> um só homem ou <strong>de</strong> um pequeno grupo <strong>de</strong> homens que<strong>de</strong>cidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas <strong>de</strong>cisões para ninguém.Os gregos inventaram a política (palavra que vem <strong>de</strong> polis, que, em grego, significa cida<strong>de</strong>organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as <strong>de</strong>cisões eram tomadas a partir<strong>de</strong> discussões e <strong>de</strong>bates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porqueestabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autorida<strong>de</strong> do chefe da famíliae autorida<strong>de</strong> pública, entre autorida<strong>de</strong> políticomilitar e autorida<strong>de</strong> religiosa) e sobretudo porque criaram aidéia da lei e da justiça como expressões da vonta<strong>de</strong> coletiva pública e não como imposição da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>um só ou <strong>de</strong> um grupo, em nome <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>s.Os gregos criaram a política porque separaram o po<strong>de</strong>r político e duas outras formas tradicionais <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong>: a do chefe <strong>de</strong> família e a do sacerdote ou mago;4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a idéia oci<strong>de</strong>ntalda razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis <strong>de</strong> valor universal (isto é,válidas em todos os tempos e lugares.


centelha <strong>de</strong> fogo e a trouxe <strong>de</strong> presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedopara que as aves <strong>de</strong> rapina, eternamente, <strong>de</strong>vorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigodos homens?Os <strong>de</strong>uses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteriacoisas maravilhosas, mas nunca <strong>de</strong>veria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia <strong>de</strong>curiosida<strong>de</strong> e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as <strong>de</strong>sgraças, doenças,pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio <strong>de</strong> lutas, alianças e relaçõessexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o <strong>de</strong>stino dos homens. Como os mitos sobre aorigem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.A palavra gonia vem <strong>de</strong> duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer ecrescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, <strong>de</strong>scendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, querdizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizermundo or<strong>de</strong>nado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização domundo, a partir <strong>de</strong> forças geradoras (pai e mãe) divinas.Teogonia é uma palavra composta <strong>de</strong> gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, osseres divinos, os <strong>de</strong>uses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos <strong>de</strong>uses, a partir <strong>de</strong> seus pais eantepassados.Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A <strong>Filosofia</strong>, ao nascer, é, como já dissemos, umacosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações erepetições das coisas; para isso, ela nasce <strong>de</strong> uma transformação gradual dos mitos ou <strong>de</strong> uma rupturaradical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?Duas foram as respostas dadas.A primeira <strong>de</strong>las foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando reinava umgran<strong>de</strong> otimismo sobre os po<strong>de</strong>res científicos e capacida<strong>de</strong>s técnicas do homem. Dizia-se, então, que a<strong>Filosofia</strong> nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realida<strong>de</strong>produzida pelo Oci<strong>de</strong>nte.A segunda resposta foi dada a partir <strong>de</strong> meados do século XX, quando os estudos dos antropólogose dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das socieda<strong>de</strong>s ecomo os mitos estão profundamente entranhados nos modos <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> sentir <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>.Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a<strong>Filosofia</strong> nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização <strong>de</strong>les.Atualmente consi<strong>de</strong>ram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a<strong>Filosofia</strong>, percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando asnarrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente.Quais são as diferenças entre <strong>Filosofia</strong> e mito? Po<strong>de</strong>mos apontar três como as mais importantes:1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo efabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A <strong>Filosofia</strong>, aocontrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, natotalida<strong>de</strong> do tempo), as coisas são como são;2. O mito narrava a origem através <strong>de</strong> genealogias e rivalida<strong>de</strong>s ou alianças entre forças divinassobrenaturais e personalizadas, enquanto a <strong>Filosofia</strong>, ao contrário, explica a produção natural das coisas porelementos e causas naturais e impessoais.O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a <strong>Filosofia</strong> fala em céu, mar e terra. O mito narra a origemdos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos <strong>de</strong> Gaiacom Urano e Ponto. A <strong>Filosofia</strong> explica o surgimento <strong>de</strong>sses seres por composição, combinação eseparação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porqueesses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinhamda autorida<strong>de</strong> religiosa do narrador. A <strong>Filosofia</strong>, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisasincompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autorida<strong>de</strong> daexplicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.Condições históricas para o surgimento da <strong>Filosofia</strong>Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível o surgimentoda <strong>Filosofia</strong> na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes <strong>de</strong> Cristo? Quais as condiçõesmateriais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da <strong>Filosofia</strong>?Po<strong>de</strong>mos apontar como principais condições históricas para o surgimento da <strong>Filosofia</strong> na Grécia:


-as viagens marítimas, que permitiram aos gregos <strong>de</strong>scobrir que os locais que os mitos diziamhabitados por <strong>de</strong>uses, titãs e heróis eram, na verda<strong>de</strong>, habitados por outros seres humanos; e que as regiõesdos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nemseres fabulosos. As viagens produziram o <strong>de</strong>sencantamento ou a <strong>de</strong>smistificação do mundo, que passou,assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;-a invenção do calendário, que é uma forma <strong>de</strong> calcular o tempo segundo as estações do ano, ashoras do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abstração nova,ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um po<strong>de</strong>r divino incompreensível;-a invenção da moeda, que permitiu uma forma <strong>de</strong> troca que não se realiza através das coisasconcretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelocálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abstração e<strong>de</strong> generalização;-o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando<strong>de</strong>senvolvimento a técnicas <strong>de</strong> fabricação e <strong>de</strong> troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocraciaproprietária <strong>de</strong> terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento <strong>de</strong> umaclasse <strong>de</strong> comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> prestígio para suplantar o velhopo<strong>de</strong>rio da aristocracia <strong>de</strong> terras e <strong>de</strong> sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que seprocurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo umambiente on<strong>de</strong> a <strong>Filosofia</strong> po<strong>de</strong>ria surgir;-a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimentoda capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abstração e <strong>de</strong> generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente<strong>de</strong> outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os i<strong>de</strong>ogramas dos chineses -, supõeque não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia <strong>de</strong>la, o que <strong>de</strong>la se pensa e setranscreve;-a invenção da política, que introduz três aspectos novos e <strong>de</strong>cisivos para o nascimento da<strong>Filosofia</strong>:1. A idéia da lei como expressão da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma coletivida<strong>de</strong> humana que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por si mesmao que é melhor para si e como ela <strong>de</strong>finirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cida<strong>de</strong> -da polis - servirá <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para a <strong>Filosofia</strong> propor o aspecto legislado, regulado e or<strong>de</strong>nado do mundocomo um mundo racional.2. O surgimento <strong>de</strong> um espaço público, que faz aparecer um novo tipo <strong>de</strong> palavra ou <strong>de</strong> discurso,diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poetavi<strong>de</strong>nte, que recebia das <strong>de</strong>usas ligadas àmemória (a <strong>de</strong>usa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou umarevelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as <strong>de</strong>cisões dos <strong>de</strong>uses que eles <strong>de</strong>veriam obe<strong>de</strong>cer.Agora, com a polis, isto é, a cida<strong>de</strong> política, surge a palavra como direito <strong>de</strong> cada cidadão <strong>de</strong> emitirem público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma <strong>de</strong>cisão proposta por ele, <strong>de</strong> talmodo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e<strong>de</strong>liberação humana, isto é, como <strong>de</strong>cisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou nãofazer alguma coisa.A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a <strong>de</strong>cisão racional ,valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitassecretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados,transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia <strong>de</strong> um pensamento que todos po<strong>de</strong>m compreen<strong>de</strong>r ediscutir, que todos po<strong>de</strong>m comunicar e transmitir, é fundamental para a <strong>Filosofia</strong>.Principais características da <strong>Filosofia</strong> nascenteO pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais:-tendência à racionalida<strong>de</strong>, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e regras, é ocritério da explicação <strong>de</strong> alguma coisa;- tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é, colocado um problema, suasolução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à <strong>de</strong>monstração, nunca sendo aceita como umaverda<strong>de</strong>, se não for provado racionalmente que é verda<strong>de</strong>ira;-exigência <strong>de</strong> que o pensamento apresente suas regras <strong>de</strong> funcionamento, isto é, o filósofo é aqueleque justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos, é uma leiuniversal do pensamento que a contradição indica erro ou falsida<strong>de</strong>. Uma contradição acontece quandoafirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: “Pedro é um menino e não ummenino”, “A noite é escura e clara”, “O infinito não tem limites e é limitado”). Assim, quando umacontradição aparecer numa exposição filosófica, ela <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada falsa;


-recusa <strong>de</strong> explicações preestabelecidas e, portanto, exigência <strong>de</strong> que, para cada problema, sejainvestigada e encontrada a solução própria exigida por ele;-tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem valida<strong>de</strong> para muitas coisasdiferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos <strong>de</strong> nossos sentidos, o pensamento <strong>de</strong>scobresemelhanças e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferentedo vapor <strong>de</strong> uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza <strong>de</strong> um rio. No entanto, opensamento mostra que se trata sempre <strong>de</strong> um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados eformas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (con<strong>de</strong>nsação, liquefação, evaporação).Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata <strong>de</strong> uma mesma coisa que aparece paranossos sentidos <strong>de</strong> maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamento generalizaporque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja, realiza uma síntese.E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentescomo se fossem a mesma coisa, e o pensamento <strong>de</strong>monstrará que se trata <strong>de</strong> uma coisa diferente sob aaparência da semelhança.No ano <strong>de</strong> 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da ban<strong>de</strong>ira nacionale saíram às ruas para exigir o impedimento do presi<strong>de</strong>nte da República.Logo <strong>de</strong>pois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisãocom a cara pintada, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para persuadirjovens a servi -las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros eaviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, preten<strong>de</strong>ndo ven<strong>de</strong>r seus produtos aos jovens, contrataramartistas jovens para, <strong>de</strong> cara pintada, fazer a propaganda <strong>de</strong> seus produtos.Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebel<strong>de</strong>s e conscientes, <strong>de</strong> cara pintada,símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento po<strong>de</strong> mostrar que, sob a aparência da semelhançapercebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento político espontâneo,os segundos fizeram propaganda política para um candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaramajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração,estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados, ví<strong>de</strong>os, margarinas, discos, iogurtes) umsímbolo político inteiramente <strong>de</strong>spolitizado e sem nenhuma relação com sua origem.Separando as diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise.

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