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O olhar inocente é cego. A construção da cultura visual ... - capes

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O OLHAR INOCENTE É CEGODoris Clara KosminskyO OLHAR INOCENTE É CEGOA <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> modernaTese de DoutoradoTese apresenta<strong>da</strong> como requisito parcial paraobtenção do título de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Design do Departamento de Artes &Design <strong>da</strong> PUC-Rio.Orientador: Prof. Dr. Alberto CipiniukCo-orientadora: Profa. Dra. Glaucia Villas BôasRio de JaneiroAgosto de 2008


Doris Clara KosminskyO <strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong> <strong>é</strong> <strong>cego</strong>A <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> modernaTese apresenta<strong>da</strong> como requisito parcial para obtençãodo título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação emDesign do Departamento de Artes & Design do Centro deTeologia e Ciências Humanas <strong>da</strong> PUC-Rio. Aprova<strong>da</strong>pela Comissão Examinadora abaixo assina<strong>da</strong>.Prof. Dr. Alberto CipiniukPresidente/Orientador – PUC-RioProfa. Dra. Glaucia Villas BôasCo-orientadora – IFCS-UFRJProf. Dr. Washington Dias LessaESDI-UERJProfa. Dra. Lígia Maria de Souza DabulUFFProf. Dr. Jofre SilvaFacul<strong>da</strong>de Anhembi-MorumbiProf. Dr. Luiz Antonio Luzio CoelhoPUC-RioDr. Paulo Fernando Carneiro de AndradeCoordenador Setorial do Centro de Teologiae Ciências Humanas - PUC-RioRio de Janeiro, 15 de agosto de 2008


Gerätturnen Siegerliste22. Breitenturntag von 9.Jun bis 9.Jun 2013Veranstalter: 8 in BRG XIWKARTNRRangVornameNachnameVereinsname Alters Pkte Sprung Boden Reck Balken/Barren MinitrampGP Gesamt GP Gesamt GP Gesamt GP Gesamt GP GesamtGT Jti 5K 11/12 18 Philine Euler-Rolle Grinzing 1112 57,75 3,0 10,50 7,0 14,50 5,0 11,75 7,0 12,50 2,0 8,5019 Suvi KatochMeidling 1112 57,50 5,0 13,25 6,0 13,25 3,0 10,25 6,0 10,25 5,0 10,5020 Livia KrajcsyGrinzing 1112 56,75 5,0 10,25 6,0 12,00 5,0 11,00 5,0 10,00 8,0 13,5021 Sophie Hausmann Jahn-Währing 1112 55,25 5,0 10,75 6,0 12,25 4,0 9,75 7,0 13,25 4,0 9,2522 Chiara PergerLangenzersdorf 1112 54,50 5,0 11,25 7,0 13,00 4,0 10,00 5,5 9,50 4,0 10,7523 Ines KruderGrinzing 1112 53,00 3,0 8,75 6,0 12,00 5,0 11,50 5,5 9,25 4,0 11,5024 Nora De la Chapelle Gersthof 1112 51,50 5,0 9,00 7,0 13,25 5,0 10,00 6,5 11,25 8,0 8,0025 Anna Matzanetz Grinzing 1112 51,00 5,0 8,00 6,0 12,50 4,0 9,75 6,0 10,00 4,0 10,7526 Andrea MorarSimmering 1112 50,75 3,0 8,75 6,0 12,50 3,0 9,00 5,0 9,25 4,0 11,2527 Sarah Kaufmann Kagran 1112 50,50 5,0 9,25 7,0 13,50 3,0 7,75 6,5 12,00 3,0 8,0027 Marlene PolzerPHTV 1112 50,50 3,0 8,00 6,0 12,25 2,0 10,00 6,0 12,50 3,0 7,7529 Leyla BabovicMeidling 1112 48,50 3,0 7,75 7,0 12,75 2,0 7,75 5,0 7,75 5,0 12,5030 Lena Lan<strong>da</strong>uer Langenzersdorf 1112 46,50 5,0 12,50 3,0 8,50 2,0 7,50 6,0 11,25 2,0 6,7531 Melanie Schwarzott PHTV 1112 45,00 3,0 7,00 5,0 12,50 2,0 6,00 6,0 11,75 1,0 7,7532 Julia BlumPHTV 1112 43,00 3,0 7,25 4,0 9,50 2,0 8,00 4,0 9,50 3,0 8,7533 Büsra KocSimmering 1112 32,75 1,0 3,50 3,0 7,25 2,0 8,75 4,0 7,75 3,0 5,5034 Flora BriemAlsergrund 1112 25,25 0,0 0,00 4,0 8,25 0,0 0,00 6,0 10,00 3,0 7,00GT Jti 5K 13/14 1 Nina HaickJedlesee 1314 87,75 9,0 18,00 10,0 19,00 8,0 16,75 8,5 15,50 10,0 18,502 Veronika HammerGersthof 1314 86,00 9,0 17,75 10,0 18,50 8,0 16,50 9,5 15,75 10,0 17,503 Sandra PipalJedlesee 1314 80,25 9,0 18,75 9,0 17,75 6,0 14,50 7,5 13,75 7,0 15,504 Dilara KrebsKagran 1314 77,50 8,0 16,25 10,0 18,50 5,0 11,50 10,0 17,75 7,0 13,505 Macy HotovyKagran 1314 72,75 6,0 14,25 7,0 14,75 4,5 10,75 9,0 15,50 9,0 17,505 Nicola NolzGersthof 1314 72,75 8,0 13,75 9,0 16,75 6,0 13,50 8,0 14,50 7,0 14,257 Tabita MorarSimmering 1314 71,25 7,0 11,00 9,0 17,75 6,0 12,75 8,0 14,75 8,0 15,008 Sylvia BlechaOttakring 1314 67,00 5,0 10,75 8,0 15,75 7,0 14,25 7,0 12,00 8,0 14,259 Jana Lan<strong>da</strong>uer Gersthof 1314 66,25 5,0 12,50 7,0 14,00 6,0 12,75 8,0 14,50 8,0 12,50Montag, 10. Juni 2013 GP = A-Wert abzüglich StürzeSEITE 4 VON 9


AgradecimentosAos orientadores pelo estímulo, disponibili<strong>da</strong>de e generosi<strong>da</strong>de.À FAPERJ pelo auxílio oferecido.Aos funcionários do Departamento de Artes e Design por sua atenção e presteza.À TV Globo, na pessoa do diretor do Departamento de Arte do Jornalismo,Alexandre Arrabal, pela concessão de licença.Às funcionárias do setor cartográfico do Museu do Itamaraty pelo acesso aosoriginais.À amiga Isabella Perrotta pelos papos.À Selma Giorgio pelas inúmeras leituras e sugestões e pela constante participação.


ResumoKosminksky, Doris; Cipiniuk, Alberto; Villas Boas, Glaucia. O <strong>olhar</strong><strong>inocente</strong> <strong>é</strong> <strong>cego</strong>. A <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna. Rio de Janeiro,2008. 306p. Tese de Doutorado - Departamento de Artes, PontifíciaUniversi<strong>da</strong>de Católica do Rio de Janeiro.O momento atual traz em seu bojo uma enorme carga de excessostecnológicos e estímulos sensoriais em uma <strong>construção</strong> simbiônica, algumas vezespercebi<strong>da</strong> como ápice do projeto moderno, outras, compreendi<strong>da</strong> como uma etapaposterior a este empreendimento - o pós-moderno. As novas tecnologias e suasmediações são segui<strong>da</strong>mente aponta<strong>da</strong>s como agentes decisivos nastransformações do modo de <strong>olhar</strong>. Consideramos que apesar <strong>da</strong>s tecnologiasatuarem como agente catalisador de determina<strong>da</strong>s conseqüências, elas não chegama caracterizar condição suficiente de possibili<strong>da</strong>de para que estas transformaçõespossam se realizar em qualquer socie<strong>da</strong>de ou período. A nossa pesquisa sugereque o <strong>olhar</strong> moderno foi construído sobre um trip<strong>é</strong> formado pelas tecnologiasmodeladoras <strong>da</strong>s relações tempo-espaço, pelas convenções que contribuíram paraa sua compreensão e naturalização e por uma pe<strong>da</strong>gogia que inculcou a aberturapara o novo, de modo a garantir a perpetuação do modo de <strong>olhar</strong> resultante. Estetrabalho volta-se para o passado, buscando localizar continui<strong>da</strong>des e contradições<strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> contemporânea, considerando uma <strong>construção</strong> em cama<strong>da</strong>s, isto<strong>é</strong>, os modos de <strong>olhar</strong> anteriores não são simplesmente superados, mas absorvidosnos modos subseqüentes. Neste contexto, examinamos dois momentos ou modosde <strong>olhar</strong>. O <strong>olhar</strong> ciclópico ou clássico, constituído ao longo <strong>da</strong> Renascença,fun<strong>da</strong>mentado com a convenção <strong>da</strong> perspectiva e divulgado pela invenção <strong>da</strong>gravura e, o segundo modo, o <strong>olhar</strong> panorâmico, construído a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>metade do s<strong>é</strong>culo XIX, arquitetado sobre as transformações urbanas, a profusão deobjetos e imagens e a compressão tempo-espaço produzi<strong>da</strong> pelas novastecnologias de transporte e comunicação. Este novo <strong>olhar</strong>, ao mesmo tempo emque criou novas possibili<strong>da</strong>des perceptivas, tamb<strong>é</strong>m necessitou de processos defixação e padronização, o que foi realizado atrav<strong>é</strong>s do desenvolvimento de uma


pe<strong>da</strong>gogia volta<strong>da</strong> para as instituições industriais e para o conceito de progresso.Neste processo, as Exposições Universais, realiza<strong>da</strong>s a partir de 1851, tiveramatuação importante por tratar-se de um fenômeno basicamente <strong>visual</strong> e voltadopara um público amplo. Sob este aspecto, as Exposições Universais sintetizam aexperiência obti<strong>da</strong> posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para amassa e, tamb<strong>é</strong>m, com o que foi conceituado como espetáculo.Palavras-chaveDesign; <strong>olhar</strong>; <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>; moderni<strong>da</strong>de; modernização; tecnologia.


development of a pe<strong>da</strong>gogy directed at industrial institutions and to the concept ofprogress. In this action, the Universal Expositions, which began in 1851, playe<strong>da</strong>n important role as a basically <strong>visual</strong> phenomenon. These exhibitions were aime<strong>da</strong>t a wide audience and also synthesized subsequently acquired experience withother technologies directed at the masses so as to gain the status of a show. Fromthe point of view of a <strong>visual</strong> culture founded on a modern past, our researchidentifies the latest technologies which make distances even shorter, furtheraccelerate our communications and allow new forms of human contact, as part ofan extensive series of other transformations, which are generating a new vision.The overriding issue is in relation to the time at which we will have the precisemeasure of this transformation so as to use it to formulate new structuralpossibilities.Key-wordsDesign, vision, <strong>visual</strong> culture, modernity, modernization, technology.


Lista de figurasFigura 1. William Hogarth. Southwark Fair, 1733. Gravura.Disponível em (22/07/07). 34Figura 2. William Hogarth. Southwark Fair, 1730. Gravura. Detalhe 34Figura 3. Edouard Manet, Le Chemin de fer, 1872.Disponível em: (22/07/07). 35Figura 4. Charge de Alain. Publica<strong>da</strong> em 1955 em The New YorkerMagazine. Retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> reprodução de GOMBRICH, E. H. em Arte e Ilusão. p. 2. 43Figura 5. O jardim de Nebamun, c. 1400 a. C. 45Figura 6. Xilogravura de Albert Dürer. De Underweysung der Messung,1525. 52Figura 7. Croqui <strong>da</strong> janela de Dürer. Livro de Croquis, 1514. Bibliothèque deDresde. Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magieartificielle des effets merveilleux. France: Olivier Perrin, 1969. p. 80 52Figura 8. Dürer: De Unterweisung der Messung, 1525. 54Figura 9. Giulio Parigi. A portinhola de Dürer. Afresco. Florença: Galleriadegli Uffizi, Stanzino delle matematiche. Retirado de Instituto eMuseo di Storia della Scienza, (29/08/06) 54Figura 10. Abraham Bosse, Les Perspecteurs. Gravura <strong>da</strong> Manièreuniverselle de M. Desargues pour traiter la perspective, 1648.Retira<strong>da</strong> de DAMISCH, H. The origin of perspective. p. 37. 55Figura 11. Retirado de A treatise of perspective... 55Figura 12. Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando mulherreclina<strong>da</strong>. De Unterweysung der Messung, Nuremberg, 1538. 56Figura 13. Prospettografo. Ludovico Cardi, conhecido como Cigoli.Prospettiva pratica…, ms., ca. 1613, Firenze, Gabinetto deiDisegni e delle Stampe degli Uffizi, 1660. Retirado de Instituto eMuseo di Storia della Scienza (29/08/06) 57Figura 14. Instrumento prosp<strong>é</strong>tico de Jacopo Barozzi <strong>da</strong> Vignola. Le dueregole della prospettiua prattica / di m. Iacomo Barozzi <strong>da</strong>Vignola ; con i commentari del ... maestro Egnatio Danti .., In


Bologna: per Gioseffo Longhi, 1682. Retirado de Instituto e Museo di Storiadella Scienza, (29/08/06). 57Figura 15. Pespectográfo. Cigoli, Prospettiva pratica, ms., ca. 1613.Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degli Uffizi, Florence.Retirado de CAMEROTA, Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline betweenpainting and topography. Early Science and Medicine 10 (2). 57Figura 16. Andrea Mantegna. Archers Shooting at Saint Christopher(1451-5). Fresco, Ovetari Chapel, Eremitani Church, Padua.Detalhe <strong>da</strong> flecha. Retirado de KUBOVY, M. The Psychology ofPerspective and Renaissance Art. p. 2 e 3. 59Figura 17. Las Meninas de Velazquez. Disponível em: (29/08/06) 62Figura 18. J-F. Niceron: anamorfose de uma cabeça, 1638. Retirado deBALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle deseffets merveilleux. France: Olivier Perrin, 1969. p. 45. 64Figura 19. Os Embaixadores (Hans Holbein - 1533) 65Figura 20. Detalhe <strong>da</strong> caveira 65Figura 21. Waterfalls. M. C. Escher. 66Figura 22. Retirado de A treatise of perspective. Or, the art ofrepresenting all manner of objects' as they appear to the eye inall situations. ... sem referência à autoria de Niceron. 66Figura 23. Eva Byte. Apresentadora virtual do Fantástico. Criação doDepartamento de Arte do Jornalismo, TV Globo, 2005. 68Figura 24. Sistema óptico do olho, Discours de la m<strong>é</strong>thode plus ladioptrique, lês m<strong>é</strong>t<strong>é</strong>ores el la gêom<strong>é</strong>trie, Leiden, 1637. 69Figura 25. Quadro do filme “O triunfo <strong>da</strong> vontade” de Leni Riefenstahl,1936. 75Figura 26. Lênin e Trotsky na celebração do segundo aniversário <strong>da</strong>Revolução Russa. À direita, a mesma foto, sem Trotsky.Imagens obti<strong>da</strong>s no site Newseum, the interactive museum of news. Disponível em: (26/11/06). 76Figura 27. Fotografia de 1940. Stalin, acompanhado do jovem comissárioNikolai Yezhov, removido <strong>da</strong> fotografia à direita. Imagens obti<strong>da</strong>s nosite Newseum, the interactive museum of news. . Disponível em:


(26/11/06). 76Figura 28. Fotos de Evgen Bavcar . . Disponível em: (1/08/06). 77Figura 29. Andreas Vesalius De humani corporis fabrica libri septem.Basileae : Ex officina. Oporini, 1543. 80Figura 30. Página do livro. Andreas Vesalius. De humani corporis fabricalibri septem. Basileae : Ex officina I. Oporini, 1543.Copyright © 2006 University of Leeds Library/ 80Figura 31. Câmera escura de Sir Joshua Reynolds, manufatura<strong>da</strong> naInglaterra entre 1760-1780. Retirado de Science & Society Picture Library, (29/08/06). 85Figura 32. Mesmo modelo <strong>da</strong> figura anterior, fechado. Retirado (29/08/06). 85Figura 33. Figura de Ars Magna Lucis Et Umbrae, por Athanasius Kircherem 1646. Demonstração de utilização de uma lente entre umatela e um espelho com inscrições, que pode ter levado aonascimento <strong>da</strong> lanterna mágica. Retirado de Science & SocietyPicture Library, (29/08/06). 85Figura 34. Camera obscura from the Encyclopedie.Disponível em: (27/0806).87Figura 35. Câmera escura portátil. Istituto e Museo di Storia della Scienza.Retirado de 27/0806). 87Figura 36. Câmera escura 1770-1775. Encyclopedie Raisonnèe desSciences, des Arts et des Metiers. . Disponível em: 27/0806). 87Figura 37. Ilustração do telescópio gráfico e seus principios óticos. DoMagazine of Science, And School of Arts, 1840. WhippleMuseum of the History of Science, University of Cambridge.Disponível em: (29/08/06). 89Figura 38. Diagrama <strong>da</strong> câmera luci<strong>da</strong>, que permitia cópia à luz do dia.Inventado por W. H. Wollaston em 1806. Disponível em: (29/08/06). 89Figura 39. Espelho de Claude. Inglaterra, s<strong>é</strong>culo XVIII. Retirado de Victoria and


Albert Museum: (29/08/06). 89Figura 40. Ilustração do s<strong>é</strong>culo XIX. Duas crianças olham uma imagemprojeta<strong>da</strong> pela câmera escura. De E. Atkinson's, NaturalPhilosophy. Retirado de (29/08/06). 90Figura 41. Claude Lorraine Glass. Em PIKE, Benjamin Jr: Pike's IllustratedDescriptive Catalogue of Optical, Mathematical andPhilosophical Instruments. Gravuras dos aparatos vendidospelo autor, com os preços dos produtos. New York 1856Retirado de (29/08/06). 90Figura 42. Prospecto de anúncio de câmera escura, cerca de 1819.Retirado de (29/08/06). 90Figura 43. Um centenário científico. Fara<strong>da</strong>y (de volta). "Muito bem,Senhorita Ciência! Meus parab<strong>é</strong>ns! Você conseguiu umprogresso maravilhoso desde o meu tempo!" Punch, or TheLondon Charivari. Vol. 100. 27 de junho de 1891. 109Figura 44. Terra à noite. NASA/DMSP. 27 de novembro de 2000. 115Figura 45. Folha de rosto do livro An essay on electricity, 1785. London,1799. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. 116Figura 46. ADAMS, George. An essay on electricity, explaining theprinciples of that useful science; and describing the instruments,... Illustrated with six plates. The fifth edition, with correctionsand additions, by William Jones, ... London, 1799. EighteenthCentury Collections Online. Gale Group. (2/08/06) 116Figura 47. Anúncio do magneto el<strong>é</strong>trico do Dr. Lowder, 1890. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 117Figura 48. Anúncio do periódico Electricity & Electrical Engineering,1888. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain.The British Library. 117Figura 49. Electric breakfast, 1914. Retirado de FORTY, Adrian.Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM.New York: Pantheon Books, 1986. p. 187. 119Figura 50. Anúncio de produtos el<strong>é</strong>tricos Magnet, 1914. Retirado deFORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form


Wedgwood to IBM. New York: Pantheon Books, 1986. p. 186. 119Figura 51. O Farol el<strong>é</strong>trico <strong>da</strong> Torre Eiffel, ilustração <strong>da</strong> capa paraExposition de Paris de 1889. No. 14, 1 o . de junho de 1889. In:CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle ofBeams: Electriciy and the Selling of Modernity. Journal ofDesign History. Summer 2005; 18: 157. 120Figura 52. Liber<strong>da</strong>de faiscando para o mundo. Le Journal Illustr<strong>é</strong> de 10 deoutubro de 1875. In: CORDULACK, S. op. cit. p. 149. 120Figura 53. A estrela <strong>da</strong> esperança: uma nova ode naval. Punch, or theLondon Charivari, Vol. 104, 11 de fevereiro de 1893. 120Figura 54. Recibo de luz, emitido em 1937. Arquivo museu históricoCPFL. In: DIAS, Renato Feliciano (coord.) Panorama do setorde energia el<strong>é</strong>trica no Brasil. Centro <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>deno Brasil. Rio de Janeiro, 1988. p. 97. 121Figura 55. A ci<strong>da</strong>de, 1919. Fernand L<strong>é</strong>ger. Óleo sobre tela. PhiladelphiaMuseum of Art. 126Figura 56. Manufatura com trabalhadoras mulheres na seção depolimento de penas para canetas. Illustrated London News,1851. (4/06/07) 127Figura 57. Imagem ilustrativa de um debate 127Figura 58. Interior de fábrica com tear mecânico.Illustrated London News, 1844. 127Figura 59. “Capital e Trabalho”. “O capitalista vive paparicadoenquanto, abaixo dele, os trabalhadores labutam emterríveis condições”. 127Figura 60. Excursão esperando pelo trem. The Illustrated London News,4 de setembro de 1880. The Illustrated London News PictureLibrary. (17/09/07) 129Figura 61. Movimentação de bagagens na plataforma de trens. TheIllustrated London News, 6 de junho de 1846. The IllustratedLondon News Picture Library. (17/09/07) 129Figura 62. Pai Tamisa (Father Thames) apresenta sua descendência àformosa ci<strong>da</strong>de de Londres. Punch, or The London Charivari, 3de julho de 1858. (8/08/08). 130


Figura 63. E. Hull. Obras de represamento do Tamisa entre a ponteCharing Cross e Westminster, 1865. Museum of London.In: NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People, streets and imagesin nineteenth-century London. New Haven & London: YaleUniversity Press, 2000. p. 54. 132Figura 64. Seção do represamento do Tamisa mostrando (1) o metrô,(2) os esgotos, (3) Ferrovia Metropolitana e (4) FerroviaPneumática. Illustrated London News, 22 de junho de 1867. (8/08/08) 132Figura 65. Mapeamento oficial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Londres e seus arredores(Skeleton Ordnance Survey of London), 1851. Folha 20,metade direita. 66 x 97,5 cm. Sourthampton: Ordnance MapOffice, 1851. NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People, streetsand images in nineteenth-century London. New Haven &London: Yale University Press, 2000. p. 20. 133Figura 66. Londres vista de um balão. John Henry Banks and Co., 1851.Mapa dobrável, 60,8 x 102,4 cm. Guildhall Library. Corporationof London. NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People, streetsand images in nineteenth-century London. New Haven &London: Yale University Press, 2000. p. 21. 134Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Op<strong>é</strong>ra, soleil, matin d’hiver,1898. 138Figura 68. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> máquina Minerva deimpressão, 1879. Evanion Collection of Ephemera. CollectBritain. The British Library. 144Figura 69. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> copiadora Foot Lever, 1886.vanion Collection of Ephemera. Collect Britain.The British Library. 144Figura 70. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> Metropolitan Printing Works,1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library. 145Figura 71. John Parry. Cena de rua em Londres, [1835]. 147Figura 72. Gravura retira<strong>da</strong> do Punch, or the London Charivari, 1887.The Project Gutenberg. . Disponível em: (25/11/07). 147Figura 73. Pã, o cartaz. Pã (em tom de deboche) fala: “Ah, ah, ah!


Quem disse que eu estava morto e que o medo era algo dopassado?”. Punch,or the London Charivari. Vol. 103. 24 desetembro de 1892. 148Figura 74. “O que o nosso artista tem que agüentar.... Ele viajou porto<strong>da</strong> a Inglaterra em busca de um pano de fundo para seuVivian beguiling Merlin in the Forest of Broceliande, "- umabusca desesperança<strong>da</strong>”. Punch,or the London Charivari.Vol. 103. 3 de dezembro de 1892. 148Figura 75. Anúncio de programas <strong>da</strong> rede CBS, carimbado em ovosdistribuídos em todo o país. Retirado de STORY, Louise.Anywhere the Eye Can See, It’s Likely to See an Ad. New YorkTimes, 15 de janeiro de 2007. 149Figura 76. Anúncio em bandeja de revista de bagagem em aeroporto.Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’sLikely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007. 149Figura 77. STORY, Anúncio de Tylenol infantil em sala de examepediátrico. Retirado de Louise. Anywhere the Eye Can See, It’sLikely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007. 149Figura 78. Anúncio de bebi<strong>da</strong> no símbolo de banheiro masculino.Retirado de STORY, Louise. Anywhere the Eye Can See, It’sLikely to See an Ad. New York Times, 15 de janeiro de 2007. 149Figura 79. Folheto de propagan<strong>da</strong> do periódico The Million. EvanionCollection of Ephemera. The British Library. (2/12/07) 151Figura 80. Folheto de propagan<strong>da</strong> do comics Moonshine. EvanionCollection of Ephemera. The British Library. (2/12/07) 151Figura 81. The evening times. Sete edições diárias. Penny Illustrated,29 de outubro de 1910. The British Library. 151Figura 82. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fell & Briant, impressão derótulos, 1889. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain.The British Library. (2/12/07) 152Figura 83. Anúncio de mercado, 1885. Evanion Collection of Ephemera.The British Library. (2/12/07) 152


Figura 84. Anúncio <strong>da</strong> emulsão Scott com “puro óleo de fígado debacalhau”, 1884. Evanion Collection of Ephemera.The British Library. (2/12/07) 154Figura 85. Anúncio de Freeman's Egg Powder, 1885. EvanionCollection of Ephemera. The British Library. 154Figura 86. Anúncio de Bovril, 1890. Evanion Collection of Ephemera.The British Library. 154Figura 87. Mellin’s Food for Infants & Invalids, 1890. EvanionCollection of Ephemera. The British Library. 155Figura 88. Folheto do fermento em pó Soddy, 1887. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 155Figura 89. Anúncio do pó para pudim Freeman, 1884. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. 156Figura 90. Anúncio <strong>da</strong> essência de chocolate Cadbury, 1866. EvanionCollection of Ephemera. The British Library. 156Figura 91. Anúncio do desinfetante Jeyes, 1879. Evanion Collectionof Ephemera. Collect Britain. The British Library. 157Figura 92. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1880. Evanion Collectionof Ephemera. The British Library. 157Figura 93. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1889. Evanion Collectionof Ephemera. The British Library. 157Figura 94. Anúncio do sabão Price, 1880. Evanion Collection ofEphemera. The British Library. 158Figura 95. Anúncio do sabão Brooker, 1889. Evanion Collection ofEphemera. The British Library. 158Figura 96. Anúncio do sabão em pó Glover, 1881. Evanion Collectionof Ephemera. The British Library. 158Figura 97. “Cavalo estraçalha janela de bonde”. New York World,1897. Extraído de SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímuloe o início do sensacionalismo popular... p 123 162Figura 98. “Quando um homem não parece estar no seu melhormomento”- n. 2. Punch, or The London Charivari.Vol. 101. 17 de outubro de 1891. 162


Figura 99. “Broadway – Passado e Presente”. Life, 1900. Extraídode SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímulo e o iníciodo sensacionalismo popular... p 122. 162Figura 100. Au Bon March<strong>é</strong>, 1889. Vitrine de pequenos artefatos. In:Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.Universi<strong>da</strong>d de Barcelona. Vol. X, n. 211, 15 de abril de 2006. 167Figura 101. Ilustração “origin of the bon march<strong>é</strong>”. p. 2. Livreto,c. 1896. In: D. H. Ramsey Library, Special Collections,University of North Carolina at Asheville. 167Figura 102. Cartão postal promocional Au Bon March<strong>é</strong>, sem <strong>da</strong>ta.Disponível em: http://www.cardmine.co.uk 168Figura 103. Estampa promocional Au Bon March<strong>é</strong>, c. 1878.GORBERG, Samuel. Figurinhas: Sucesso de Marketing.Disponível em: (21/07/2007). 168Figura 104. Pablo Picasso. Natureza-morta Au Bon March<strong>é</strong>, 1913.Óleo e papel colorido sobre cartão. Coleção Ludwig, Aachen. 169Figura 105. Rua em manhã de domingo.Illustrated London News, 1856. 170Figura 106. “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso”.Punch, 1886. Extraído de SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de,hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular... p. 120. 171Figura 107. Vestimenta de jardineiro. Larmessin, c. 1695. Les CostumesGrotesques: Habits des m<strong>é</strong>tiers et Professions. 172Figura 108. Vestimenta de músico. Larmessin, c. 1695. Les CostumesGrotesques: Habits des m<strong>é</strong>tiers et Professions. 172Figura 109. Vestimenta de confeiteira. Larmessin, c. 1695. Les CostumesGrotesques: Habits des m<strong>é</strong>tiers et Professions. 172Figura 110. Vendedora de fósforos. BURBY, Thomas Lord, gravador.Costume of the lower orders of the metropolis. London: T.B., 1820. ID: 1168475 NYPL Gallery. (25/11/07) 173Figura 111. Show de rua. Artista ambulante. BURBY, Thomas Lord,gravador. Costume of the lower orders of the metropolis.London: T. L. B., 1820. ID: 1168477. NYPL Gallery.


(25/11/07) 173Figura 112. Paneleiro. BURBY, Thomas Lord, gravador. Costume of thelower orders of the metropolis. London: T. L. B., 1820. ID:1168476. NYPL Gallery. (25/11/07) 173Figura 113. Alfabeto de profissões do primo Favo de Mel (CousinHoneycomb’s). Publicado por Dean & Son, Londres,c. 1856. The John Johnson Collection of Printed Ephemera.Bodleian Library. University of Oxford. 174Figura 114. Nossa aldeia, um jogo de profissões. Jogo impresso emlitografia, produzido por Standring & Co., Londres, 1860.The John Johnson Collection of Printed Ephemera.Bodleian Library. University of Oxford. 175Figura 115. Frente do folheto publicitário do extrato de sabãoHudson, 1890. (14/12/07) 178Figura 116. Verso do folheto publicitário do extrato de sabãoHudson, 1890. 178Figura 117. Medi<strong>da</strong> do cúbito. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, desua participação na World's Columbian Exposition em 1883,Chicago. National Library of Medicine (NLM). Disponível em: (23/09/07) 180Figura 118. Instruções do sistema de sinal<strong>é</strong>tica, desenvolvidopor Alphonse Bertillon, incluindo teoria e prática <strong>da</strong>identificação antropom<strong>é</strong>trica. 180Figura 119. Quadro fotográfico com tipos de orelha. SignaleticInstructions Including the Theory and Practice ofAnthropometric Identification de Bertillon. Retirado deGUNNINGS, op. cit., p. 62. 181Figura 120. Quadro de característica físicas de Bertillon. Mus<strong>é</strong>edes Collections Historiques de la Pr<strong>é</strong>fecture de Police.National Library of Medicine. 181Figura 121. Cartão antropom<strong>é</strong>trico de Alphonse Bertillon, 1892.University College London. 182Figura 122. Ampliação de um fotograma do filme de 1904 <strong>da</strong> Biograph,


A Subject for the Rogue’s Gallery, filmado pelo cinegrafistaA. E. Weed. Retirado de GUNNINGS, op. cit., p.55. 182Figura 123. Sistema de arquivo de Bertillon. Foto do álbum de AlphonseBertillon, de sua participação na World's ColumbianExposition em 1883, Chicago. National Library of Medicine(NLM). . 184Figura 124. Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de sua participaçãona World's Columbian Exposition em 1883, Chicago.National Library of Medicine (NLM). Disponível em: (23/09/07) 184Figura 125. Policial perseguindo um ciclista, "Penny Farthing". TheGraphic, 1880. The Illustrated London News Picture.Library. Disponível em: (05/06/07) 190Figura 126. Anúncio de Bown's "Perfect", processo perfeito parafixação de pneumáticos de bicicletas. Sporting and DramaticNews, 1887. The Illustrated London News Picture Library. (05/06/07) 191Figura 127. Rainha Victoria viajando sobre a ponte Tay, Dundee.The Illustrated London News, 5 de julho de 1879. (17/09/07) 197Figura 128. Viaduto Brighton sobre a rodovia Preston. The IllustratedLondon News, 13 de junho de 1846. The Illustrated LondonNews Picture Library. (17/09/07) 197Figura 129. Viaduto Blatchford em Slade, Devon, meados do s<strong>é</strong>culoXIX. Litografia colori<strong>da</strong> manualmente. Science Museum/Science & Society Picture Library. 197Figura 130. Estra<strong>da</strong> de ferro du Nord. Boulogne sobre o mar.Tempora<strong>da</strong> de 1889. 198Figura 131. Estra<strong>da</strong> de ferro du Nord. Le Tr<strong>é</strong>port-Mers.Tempora<strong>da</strong> de 1889. 198Figura 132. 'Cook's Tours pela Escócia e Irlan<strong>da</strong>. Capa de folhetopublicitário, sem <strong>da</strong>ta. Thomas Cook Archive/The ILNPicture Library. < http://www.ilnpictures.co.uk> (17/09/07) 198


Figura 133. Acidente de trem em Kentish Town, na junção <strong>da</strong> linhaHampstead. The Illustrated London News, 7 desetembro de 1861. ILN Picture Library. 201Figura 134. Acidente de trem na Ferrovia Chester, com estragos naponte Dee. The Illustrated London News, 12 de junho de1847. ILN Picture Library. (17/09/07) 201Figura 135. Anúncio de seguradora. The Sphere, 6 de janeiro de 1912.The ILN Picture Library. (17/09/07) 202Figura 136. Aguar<strong>da</strong>ndo o trem <strong>da</strong> excursão. The Illustrated LondonNews. 4 de setembro de 1880. 202Figura 137. Trem dos correios indo de Folkestone para Londres.The Illustrated London News, 1844. The ILN PictureLibrary. 203Figura 138. Plataforma de observação do panorama com espectadorese detalhe <strong>da</strong> vista panorâmica de Constantinopla, por Jules-Arsène Garnier em exibição em Copenhagen. c. 1882.Gravura em madeira, C. V. Nielsen. Museu <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de,Copenhagen. In: COMMENT, Bernard. The Panorama.London: Reaktion Books, 1999. p. 6. 208Figura 139. As linhas do sistema de horário <strong>da</strong>s ferrovias.The Illustrated London News, 6 de junho de 1908. The ILNPicture Library 215Figura 140. Estandes de máquinas: motores Whitworth e bombacentrifuga Appold. John Johnson Collection. Bodleian Library.University of Oxford. (7/02/08). 223Figura 141. Máquina de envelopes no estande De la Rue’s Stationery.John Johnson Collection. Bodleian Library. University ofOxford. Disponível em: (7/02/08). 223Figura 142. Desenhos originais do Palácio de Cristal por JosephPaxton. 11 June 1850. 230Figura 143. Levantando a viga mestra do corredor central. Construçãodo Palácio de Cristal. The Illustrated London News, 1851.Disponível em


Figura 144. Coluna do transepto. Construção do Palácio de Cristal.The Illustrated London News, 1851. Disponível em The Victorian Web (17/0308). 231Figura 145. Levantando o telhado. Illustrated London News.11 de dezembro de 1850. In: BRIGGS, Asa. Exhibiting theNation. History To<strong>da</strong>y, January 2000. p. 18 231Figura 146. Daguerreótipo do interior do Palácio de Cristal.John J E Mayall, 1851. Disponível em: (2/09/07). 232Figura 147. Vista geral do Palácio de Cristal. Dickinson's comprehensivepictures of the Great Exhibition of 1851: from the originalspainted for H.R.H. Prince Albert / by Messrs Nash, Haghe,and Roberts, R.A. London: Dickinson, Brothers, 1854. 233Figura 148. Exterior do Palácio de Cristal com Kensington Gardens',1851. Litografia de Augustus Butler a partir de desenho original.National Museum of Science & Industry (2/09/07) 233Figura 149. The Great Exhibition. Impressão em óleo por G. Baxter.Disponível em: (17/03/08). 233Figura 150. "Grand Panorama of the Great Exhibition of All Nations".Illustrated London News. 1851. Friends of the Library Fund,Cooper-Hewitt, National Design Museum Library. Disponível em:Smithsonian Institution Libraries. (17/03/08) 234Figura 151. Lenço para souvenir, com impressão de caricaturas deestrangeiros e ingleses, dentre estes o Príncipe Albert eJoseph Paxton. John Johnson Collection. Bodleian Library.University of Oxford. Disponível em: (21/07/07). 235Figura 152. Abridor de envelopes. Lembrança <strong>da</strong> Great Exhibition. JohnJohnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em: (21/07/07). 235Figura 153. Caixa para charutos. Lembrança <strong>da</strong> Great Exhibition. JohnJohnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em: (21/07/07). 235Figura 154. Navalha Sheffield Town. Produzi<strong>da</strong> por Hawcroft & Sons para


a Exposição de 1851, com o propósito de demonstrar ahabili<strong>da</strong>de dos artesãos <strong>da</strong> companhia. O Palácio de Cristalaparece reproduzido na lâmina. The Crystal Palace ExhibitionIllustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão.New York: Dover Publications, 1970. p. 222 235Figura 155. Palácio de Cristal de Nova York para a Exposição <strong>da</strong> Indústriade to<strong>da</strong>s as Nações. Litografia, 1853. Harry T. Peters'America on Stone' Collection, National Museum of AmericanHistory, Smithsonian Institution. Disponível em: (2/09/07) 236Figura 156. Folheto de fabricante de gaiolas. Evanion Collection ofEphemera. Collect Britain. The British Library. Disponível em: (17/03/08) 236Figura 157. Galeria superior. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte,impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: 237Figura 158. Conjunto de es<strong>cultura</strong>s. Palácio de Cristal. Philip HenryDelamotte, imp. fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: (17/03/08) 237Figura 159. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte, impressãofotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: 237Figura 160. Detalhe <strong>da</strong> Figura 159 237Figura 161. O transepto central. Palácio de Cristal. Philip HenryDelamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board.Disponível em: (17/03/08) 238Figura 162. All the World Going to See the Great Exhibition of 1851,George Cruikshank (1792-1878), 1851. Disponível em: (3/06/07). 240Figura 163. Agricultores na Exibição. In: The Illustrated London News(19 July 1851): 101. Disponível em: The Victorian Web (22/03/08) 240Figura 164. Londres em 1851. The Great Exhibition. John JohnsonCollection. Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em: (21/06/07) 241


Figura 165. Manchester em 1851. The Great Exhibition. John JohnsonCollection. Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em: (21/06/07) 241Figura 166. “Quadro feito a bico de agulha...” Recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> ExposiçãoNacional de 1861. Reprodução do álbum de 1861. Rio deJaneiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977. 246Figura 167. O Brasil na Exposição Internacional de Londres. Recor<strong>da</strong>ções<strong>da</strong> Exposição Nacional de 1861. Reprodução do álbum de1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro, 1977. 246Figura 168. Pavilhão do Brasil no Campo de Marte e Torre Eiffel.Exposição Universal de Pariz. 1889. Exposição Brazileira.Álbum <strong>da</strong> Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty,Rio de Janeiro. 248Figura 169. Vitória R<strong>é</strong>gia. Pavilhão do Brasil. Exposição Universal dePariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum <strong>da</strong> ColeçãoIconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. 248Figura 170. Pavilhão de degustação de caf<strong>é</strong>. Exposição Universal dePariz. 1889. Exposição Brazileira. Álbum <strong>da</strong> ColeçãoIconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. 249Figura 171. Estante com compoteiras. Ao fundo, vitrine de mate ecestaria. Exposição Universal de Pariz. 1889... 249Figura 172. Vitrine com itens de perfumaria. À direita, moringas ecerâmicas. Exposição Universal de Pariz... 249Figura 173. Vitrines e estantes com pedras e minerais. À direita,peles de animais e estante com compoteiras. ExposiçãoUniversal de Pariz... 250Figura 174. Estante e vitrines com produtos químicos e farmacêuticos.Exposição Universal de Pariz... 250Figura 175. Detalhe de estante com compoteiras. Exposição.. 250Figura 176. Vista <strong>da</strong> nave leste, Palácio de Cristal, 1851. Aquarela eguache sobre papel por John Absolon (1815-95). A estátuaoriginal em bronze, de autoria de Eugène Simonis, encontraseem frente ao Palácio Real de Bruxelas. Ao p<strong>é</strong> <strong>da</strong> cópia em


gesso, vê-se pequenas es<strong>cultura</strong>s em mármore do mesmoautor. Victoria and Albert Museum, London. 252Figura 177. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume deDickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibition of1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854. Incollection of: Science Museum Library. Disponível em: (2/09/07). 254Figura 178. Pavilhão austríaco. Ilustração do segundo volume deDickinson's comprehensive pictures of the Great Exhibitionof 1851, com trablhados de Nash, Haghe e Roberts RA,1854. In collection of: Science Museum Library 254Figura 179. Ilustração do Dickinson's comprehensive pictures of theGreat Exhibition of 1851, com trablhados de Nash, Haghe eRoberts RA, 1854. Science Museum Library 255Figura 180. Interior do Palácio de Cristal. Fotografia de um par deestereoscópio. Science Museum/Science & Society PictureLibrary. Disponível em: (2/09/07). 255Figura 181. The Great Exhibition, Main Avenue. In: History anddescription of the Crystal Palace, and the Exhibition of the World'sIndustry in 1851. Gravura em metal a partir de desenhosoriginais e <strong>da</strong>guerreótipos. London e New York, John Tallisand Co., 1852. Disponível em: (3/06/07). 255Figura 182. Estante. Carl Keistler, Viena. The Crystal Palace ExhibitionIllustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile,reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. 259Figura 183. Candelabro em bronze. Mr. Pott, Birmingham. The CrystalPalace… 259Figura 184. Espelho para toilette em prata maciça. M. Morel. The CrystalPalace… 259Figura 185. Vaso de porcelana de Sèvres. The Crystal Palace… 260Figura 186. Copo de vidro. Mr. Conne, Londres. The Crystal Palace… 260Figura 187. Ren<strong>da</strong>. Mrs. Treadwin lacer-manufacturer, Exeter. DesignMr. C. P. Slocombe. The Crystal Palace… 260


Figura 188. Cadeira giratória. American Chair Company, Nova York.The Crystal Palace… 260Figura 189. Mesa. Michael Thonet, Viena. The Crystal Palace… 260Figura 190. Carruagem. Mr. Clapp & Son, Boston, Estados Unidos. 261Figura 191. Carruagem “Light Park Phaeton”. Mrs. H. & A. Holmes, Derby,Reino Unido. The Crystal Palace… 261Figura 192. Espelho. Viena, 1825. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 106 264Figura 193. Settee. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H.,op. cit. p. 133. 264Figura 194. Caixas de prata. Áustria, circa 1803. In: OTTOMEYER, H., op.cit. p. 235 264Figura 195. Pintura de Stephanie von Fahnenberg. Living Room deAlexander von Fahnenberg at Wilhelmstrasse 69. In:OTTOMEYER, H., op. cit. p. 155. 265Figura 196. Sofá. Viena, 1825-1830. In: OTTOMEYER, H.,op. cit. p. 136. 265Figura 197. Cadeira. Áustria, cerca de 1820. In: OTTOMEYER, H.,op. cit. p. 128. 265Figura 198. Padrões de cadeiras. Copenhagen, 1826. In:OTTOMEYER, H., op. cit. p. 143 266Figura 199. Cadeiras. Viena, 1825-1835. In: OTTOMEYER, H.,op. cit. p.122 267Figura 200. Cadeira em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente porJosef Danhauser. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien.Foto <strong>da</strong> autora. Arquivo pessoal. 267Figura 201. Conjunto em estilo Biedermeier fabricado, provavelmente porJosef Danhauser. Hofmobiliendepot. Möbel Museum Wien.Foto <strong>da</strong> autora. Arquivo pessoal. 267Figura 202. Facha<strong>da</strong> do pr<strong>é</strong>dio <strong>da</strong> Secessão, projetado em 1898 porJosef Olbrich, com a inscrição Der Zeit ihre Kunst. DerKunst ihre Freiheit (“À <strong>é</strong>poca sua arte, à arte sualiber<strong>da</strong>de”). Foto <strong>da</strong> autora. Arquivo pessoal. 268Figura 203. Escrivaninha.Viena, cerca de 1850. In: OTTOMEYER,


H., op. cit. p. 84. 268Figura 204. Console com mesa e espelho. Gutta-percha Company,Londres. The Crystal Palace Exhibition IllustratedCatalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão.New York: Dover Publications, 1970. p. 222. 272Figura 205. C. Sharps 4 calibre 22, primeira patente <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 1859. Ocabo <strong>é</strong> de gutta-percha. Disponível em: (11/04/08). 272Figura 206. Par de tinteiros em guta-percha. França, 1860-1880.Disponível em: (11/04/08). 272Figura 207. Day Dreamer. Poltrona em papier-mâch<strong>é</strong>. Design H. FitzCook. Manufatura Jennings and Bettridge, Belgrave Squareand Birmingham. The Crystal Palace Exhibition IllustratedCatalogue, London 1851. Fac-símile, 274Figura 208. Detalhe de cadeira em papier-mâch<strong>é</strong> com pintura japonesafeita sobre madeira. Manufatura Jennens & Bettridge,Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria and AlbertMuseum, London. Disponível em: (12/04/08). 274Figura 209. Pote para chá. Tea Caddy. Papier-mâch<strong>é</strong>. ManufaturaJennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. 1851. Victoriaand Albert Museum, London. (12/04/08). 274Figura 210. Caixa para trabalhos manuais. Papier-mâch<strong>é</strong>. ManufaturaJennens & Bettridge, Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850.Victoria and Albert Museum, London. Disponível em: (12/04/08). 274Figura 211. Vista <strong>da</strong> nave oeste, interior do Palácio de Cristal, 1851.Aquarela e guache sobre papel de Henry Clarke Pidgeon(1807-80). Victoria and Albert Museum, London. Disponível em: (12/04/08). 275Figura 212. Figura e molde em barro. Museu Nacional de Antropologia,Arqueologia e História. Lima, Peru. Arquivo Pessoal. 277


The innocent eye is blindW. J. T. Mitchell


O OLHAR INOCENTE É CEGO 311.IntroduçãoHá um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representaum anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encarafixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilata<strong>da</strong>,suas asas abertas. O anjo <strong>da</strong> história deve ter esse aspecto. Seurosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeiade acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumulaincansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos p<strong>é</strong>s.Ele gostaria de deter-se para acor<strong>da</strong>r os mortos e juntar osfragmentos. Mas uma tempestade o impele irresistivelmentepara o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoadode ruínas cresce at<strong>é</strong> o c<strong>é</strong>u. Essa tempestade <strong>é</strong> o que chamamosprogresso.Walter Benjamin, Sobre o conceito <strong>da</strong> história.Para que <strong>olhar</strong> para trás, no momento em que <strong>é</strong> precisoarrombar as portas do impossível.Marinetti, Manifesto Futurista.A presente pesquisa tem origem nos questionamentos surgidos a partir <strong>da</strong>minha dissertação de mestrado. 1 Naquele trabalho, ao investigar a composiçãográfica <strong>da</strong>s notícias do Jornal Nacional entre os anos de 1983 e 2002, observei aocorrência de modificações estruturais na <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de do telejornal, nãonecessariamente vincula<strong>da</strong>s à temática apresenta<strong>da</strong>, ao momento político do paísou à situação planetária. Alterações formais, no encadeamento e na veloci<strong>da</strong>de deveiculação <strong>da</strong>s mat<strong>é</strong>rias e “cabeças” eram evidentes e pareciam relaciona<strong>da</strong>s àstecnologias emprega<strong>da</strong>s. As edições, ca<strong>da</strong> vez mais acelera<strong>da</strong>s e fragmenta<strong>da</strong>s,1 KOSMINSKY, Doris. A imagem <strong>da</strong> notícia: panorama gráfico do telejornal brasileiro. Análise dos selos doJornal Nacional. Orientador: Luiz Antonio Coelho. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2004. Dissertação.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 32resultavam em trechos de imagem sempre mais curtos. Estas observações nadinâmica <strong>da</strong>s imagens gráficas fizeram-me questionar at<strong>é</strong> que ponto astransformações tecnológicas exercem influência sobre o modo que as pessoasassistem a programação e <strong>visual</strong>izam as imagens. Em outras palavras, em quemedi<strong>da</strong> as tecnologias influenciam o sujeito contemporâneo na sua formação dehabitus 2 e conseqüente mu<strong>da</strong>nça no modo de <strong>olhar</strong>? Seria esta influência limita<strong>da</strong>às tecnologias imag<strong>é</strong>ticas?Esta tese investiga a id<strong>é</strong>ia de que algumas características relaciona<strong>da</strong>s aosmodos de <strong>olhar</strong> do sujeito contemporâneo, como a fragmentação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e odescentramento do sujeito ou “reembaralhamento do eu” 3 , encontram suas origensno s<strong>é</strong>culo XIX, na experiência sucessiva de estímulos produzidos pelo ambientecrescentemente povoado por artefatos industriais. A nossa hipótese considera queo modo de <strong>olhar</strong> construído neste período continua exercendo influência sobre amaneira com a qual nos relacionamos com a <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> contemporânea. Estapesquisa tamb<strong>é</strong>m contempla as tecnologias que provocaram mu<strong>da</strong>nças nasdimensões de tempo e espaço, considera<strong>da</strong>s uma influência marcante nesteprocesso. Não se trata de abraçar um posicionamento determinista em relação àatuação <strong>da</strong>s tecnologias sobre as modificações na <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, mas considerá-lascomo elemento atuante em um contexto de diversos outros vetores.Na <strong>é</strong>poca atual, as novas tecnologias digitais e a ciber<strong>cultura</strong> têm sidoaponta<strong>da</strong>s como agentes decisivos de transformações do <strong>olhar</strong>. Em acordo com oimpulso <strong>da</strong>s mediações tecnológicas sobre as mu<strong>da</strong>nças perceptivas e sociais, estetrabalho busca localizar continui<strong>da</strong>des e contradições <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> do s<strong>é</strong>culoXIX.Estudos arqueológicos <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças perceptivas do observador tornaramsemais freqüentes a partir <strong>da</strong> d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1990, com a divulgação <strong>da</strong> pesquisa2 Para Bourdieu, habitus são estruturas mentais de percepção, atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>s quais os agentes apreendem einteriorizam o mundo social. As pessoas não vivem suas vi<strong>da</strong>s de acordo com toma<strong>da</strong>s de decisões livres, masao contrário, se encontram submeti<strong>da</strong>s às limitações do habitus e <strong>da</strong>s condições objetivas do campo social.Assim, o habitus tende a reproduzir o sistema de condições onde <strong>é</strong> produzido. Não se trata simplesmente <strong>da</strong>ação e produção de práticas, mas, tamb<strong>é</strong>m, de um sistema de percepções e apreciações - conscientes einconscientes - dessas práticas. Em outras palavras, as práticas convencionais são construí<strong>da</strong>s socialmente,mas elas não são coerções exteriores aos sujeitos. Ao contrário, elas são desenvolvi<strong>da</strong>s, ensina<strong>da</strong>s,aprendi<strong>da</strong>s, codifica<strong>da</strong>s e decodifica<strong>da</strong>s dentro de um determinado ambiente social. Seus co-autoresobedecem aos seus desígnios coletivamente ao mesmo tempo em que têm o poder de rejeitá-las outransformá-las. Ver BOURDIEU, Pierre. A economia <strong>da</strong>s trocas simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva:2004 e O poder simbólico. São Paulo, Editora Bertrand Brasil: 2005.3 SCHORSKE, C. E. Viena fin-de-siècle. Política e <strong>cultura</strong>. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1998. p. 13.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 33desenvolvi<strong>da</strong> por Jonathan Crary sobre a utilização de aparatos ópticos naprimeira metade do s<strong>é</strong>culo XIX. O autor sugere que o observador moderno e suacompetência perceptiva foram forjados atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> utilização de novosinstrumentos ópticos que requisitavam uma maior participação atentiva e corporaldo sujeito. Deste modo, estabelece uma distinção entre espectador e observador,ressaltando sua ressonância etimológica. Ao contrário de spectare, raiz latina de“espectador”, a origem de “observar” não significa literalmente “<strong>olhar</strong> para”. 4“Espectador” <strong>é</strong> “aquele que vê qualquer ato”, o que lhe impinge passivi<strong>da</strong>de,enquanto o termo “observador” sugere significações mais interliga<strong>da</strong>s ao sentidodo <strong>olhar</strong> (“examinar minuciosamente; <strong>olhar</strong> com atenção; estu<strong>da</strong>r; espiar,espreitar”) como, tamb<strong>é</strong>m, ampliações deste conceito (“cumprir ou respeitar asprescrições ou preceitos; obedecer a; praticar”). A questão <strong>da</strong> atenção <strong>é</strong> alvo deCrary e foi aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> em estudos posteriores. 5 A nossa pesquisa não se prendea esta questão e considera que o sujeito moderno, surgido a partir do s<strong>é</strong>culo XIX,reveza sua condição de observador e espectador, na medi<strong>da</strong> em que vive adificul<strong>da</strong>de crescente de fixar o <strong>olhar</strong> sobre apenas um elemento, imagem ouobjeto. Este trabalho sustenta a alternância permanente entre o <strong>olhar</strong> atento doobservador e sua capaci<strong>da</strong>de de compartilhar diversas experiências em umamesma situação perceptiva, deixando-se levar por elas. É como se flâneur eba<strong>da</strong>ud coexistissem nos habitantes <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des, apesar <strong>da</strong> diferençaaponta<strong>da</strong> por Benjamin:Não vamos, to<strong>da</strong>via, confundir o flanador com o ba<strong>da</strong>ud: há uma nuance... osimples flanador está sempre em plena posse de sua individuali<strong>da</strong>de; a do ba<strong>da</strong>ud,ao contrário, desaparece absorvi<strong>da</strong> pelo mundo exterior... que o impressiona at<strong>é</strong> aembriaguez e o êxtase. Sob a influência do espetáculo que se oferece a ele, oba<strong>da</strong>ud se torna um ser impessoal; já não <strong>é</strong> um ser humano; <strong>é</strong> o público, <strong>é</strong> amultidão. 6O presente trabalho considera, ain<strong>da</strong>, que a <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong> <strong>é</strong> realiza<strong>da</strong>em cama<strong>da</strong>s, isto <strong>é</strong>, os modos de <strong>olhar</strong> anteriores não são simplesmente superados,mas absorvidos nos modos subseqüentes. Não se trata, no entanto de umaseqüência linear e natural. Muito pelo contrário. A <strong>construção</strong> de um modo de4 Ibid., p.5.5 CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Massachusetts: TheMIT Press, 2000.6 Victor Fournel, Ce qu’on voit <strong>da</strong>ns les rues de Paris (O Que se Vê nas Ruas de Paris), Paris, 1858, p. 263,(L’odyss<strong>é</strong>e d’um flâneur <strong>da</strong>ns les rues de Paris)”. In: BENJAMIN, Walter. O flâneur. Obras escolhi<strong>da</strong>s III.Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 3 ª edição. 2 ª reimpressão.p. 202.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 34<strong>olhar</strong> <strong>é</strong> submeti<strong>da</strong> a inúmeras contradições al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> alternância de modos de visãoem um mesmo individuo.A possibili<strong>da</strong>de de coexistência de diversos modos de <strong>olhar</strong> e suasuperposição na formulação de modos subseqüentes aparece justifica<strong>da</strong> em umtrabalho posterior de Jonathan Crary. 7 O autor apresenta a gravura Southwark Fairde 1733 (Figura 1) para exemplificar a coexistência de formas pr<strong>é</strong>-modernas emodernas em uma mesma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. A figura de Hogarth retrata uma feiracom ares de carnaval. Em uma agita<strong>da</strong> cena de rua vêem-se artistas, passantes,músicos, negociantes e at<strong>é</strong> um funâmbulo. Para o autor a obra sugere uma grandemistura de mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des sensíveis 8 , mas apresenta um diferencial. No cantoinferior direito desta representação, dois sujeitos parecem absorvidos, um de ca<strong>da</strong>lado de uma caixa, onde observam um peep show (Figura 1). Para Crary estasfiguras sugerem o modelo dominante <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> ocidental com evidência <strong>da</strong>relativa separação entre o observador e seu ambiente na observação de umaimagem. Deste modo, o sujeito ‘multifacetado’ <strong>da</strong>s feiras “<strong>é</strong> transformado em umespectador individualizado e auto-regulado”. 9Figura 2. William Hogarth. SouthwarkFair, 1730. Gravura. DetalheFigura 1. William Hogarth. Southwark Fair, 1733.Gravura. Disponível em (22/07/07).Em busca de uma imagem que se aproximasse do tipo de <strong>olhar</strong> que nosinteressa neste estudo, chegamos à moça retrata<strong>da</strong> por Manet em Le Chemin de ferde (Figura 3). A mulher seria a acompanhante <strong>da</strong> menina, a quem vemos decostas, segurando a barra de ferro, atraí<strong>da</strong> pela nuvem de vapor e fumaça que,7 CRARY, Jonathan. G<strong>é</strong>ricault, the Panorama, and Sites of Reality in the Early Nineteenth Century : GreyRoom (New York), v. 9, p. 5-25, Fall 2002.8 Ibid., p. 8.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 35provavelmente, indica o trem, ícone <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> modernização. No seucolo, vemos um cachorrinho que dorme e um livro aberto. A leitura parece se <strong>da</strong>rentre avanços e recuos, já que o indicador <strong>da</strong> mão direita marca um outro ponto deleitura, mais à frente. A pintura retrata um momento efêmero, o segundo em quealgo ou algu<strong>é</strong>m fez com que a leitura do livro fosse interrompi<strong>da</strong>. Para Clark, emsua explicação critica<strong>da</strong> pelas feministas, o <strong>olhar</strong> <strong>da</strong> moça conduz ao “transeuntemasculino”. 10 Não nos importa quem ou o quê tenha motivado o <strong>olhar</strong> queprolonga o quadro para fora <strong>da</strong> tela. O que nos interessa <strong>é</strong> esse momento efêmeroem que a moça faz uma pequena pausa <strong>da</strong> sua leitura para observar algo que lhechama a atenção no ambiente urbano de grandes transformações. Uma pintura <strong>é</strong>,como observa Clark, um trabalho lento e feito sem pressa. 11 Esta aparentecontradição, a representação de um instantâneo do <strong>olhar</strong> produzi<strong>da</strong> por umat<strong>é</strong>cnica que deman<strong>da</strong> um processo lento, ressalta a intensi<strong>da</strong>de efêmera <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>urbana, sua fluidez e as acidentais troca de <strong>olhar</strong>es. É um <strong>olhar</strong> entre o blas<strong>é</strong> e ocurioso, um modo de <strong>olhar</strong> característico <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna, como o queabor<strong>da</strong>remos na nossa pesquisa.Figura 3. Edouard Manet, Le Chemin de fer, 1872. Disponível em: (22/07/07).9 Ibid., p. 11.10 CLARK, T. J. A pintura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2004. p. 22.11 Ibid., p. 19.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 36Nosso trabalho se constitui em uma pesquisa teórica, qualitativa eexploratória, em que foi utilizado um ângulo de abor<strong>da</strong>gem histórico-<strong>cultura</strong>l. Deacordo com este tipo de pesquisa, buscamos elementos do passado de modo adesenvolver uma melhor compreensão dos fenômenos presentes. 12 Em umapesquisa qualitativa, há o pressuposto <strong>da</strong> existência de uma “uma relaçãodinâmica, uma interdependência entre o mundo real, o objeto <strong>da</strong> pesquisa e asubjetivi<strong>da</strong>de do sujeito”. 13 Santaella observa que na medi<strong>da</strong> em que o objetopesquisado deixa de ser tomado como um <strong>da</strong>do inerte e neutro, o sujeito torna-seum elemento integrante do processo de conhecimento, capaz de atribuirsignificados ao que <strong>é</strong> pesquisado 14 . A pesquisa qualitativa, como <strong>é</strong> o caso <strong>da</strong> nossainvestigação, <strong>é</strong> utiliza<strong>da</strong>, de uma maneira geral, quando há uma relação entre otema, a história de vi<strong>da</strong> e de pesquisas anteriores. O enfoque crítico foi sustentadoem acordo com o que Rose apresenta na sua introdução para uma metodologia<strong>visual</strong>, onde considera três aspectos fun<strong>da</strong>mentais a este tipo de abor<strong>da</strong>gem 15 . Emprimeiro lugar, a necessi<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r a devi<strong>da</strong> importância às imagens, analisandoascui<strong>da</strong>dosamente. Depois, avaliar as condições sociais e os efeitos do objeto<strong>visual</strong> e, finalmente, considerar o próprio modo com o qual o pesquisador vê asimagens, na medi<strong>da</strong> em que os modos de ver recebem influências históricas,<strong>cultura</strong>is e sociais. Em concordância com este posicionamento crítico,estabelecemos um diálogo entre, de um lado a nossa “intuição”, formata<strong>da</strong> sobreum conhecimento pr<strong>é</strong>vio e, de outro, o material de investigação.A nossa pesquisa foi realiza<strong>da</strong> sobre diversos tipos de documentos. Comofontes primárias, utilizamos gravuras, textos e fotografias do s<strong>é</strong>culo XIX e dorenascimento, al<strong>é</strong>m de imagens contemporâneas, entremea<strong>da</strong>s com teoria dediversos autores, do s<strong>é</strong>culo XIX at<strong>é</strong> o presente, de modo a contemplar os estudosde <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. Os textos e ilustrações de <strong>é</strong>poca foram sendo descobertos aolongo <strong>da</strong> investigação.A originali<strong>da</strong>de do tema dificultou a limitação rígi<strong>da</strong> do quadro teórico aum pequeno número de autores. Por este motivo, a utilização <strong>da</strong> referênciabibliográfica foi ampla e se estendeu por diversos autores como John Ruskin,12 SANTAELLA, Lucia. Comunicação e Pesquisa. São Paulo: Hacker Editores, 2001. p. 147.13 CHIZZOTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991. p. 9 apudSANTAELLA, L. op. cit., p. 143.14 SANTAELLA, L. op. cit., p. 143.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 37Baudelaire, Panofsky, Nelson Goodman, E. A. Gombrich, Jonathan Crary, DeCertaeau e Walter Benjamin, dentre outros. A utilização <strong>da</strong> teoria foifun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> no diálogo entre a própria teoria e textos jornalísticos ou críticos deautores do s<strong>é</strong>culo XIX.Apesar dos estudos sobre a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de remeterem diretamente àsmu<strong>da</strong>nças observa<strong>da</strong>s nas práticas de representação artísticas, não nos fixamosmetodologicamente à história <strong>da</strong> arte. Salvo por um ou outro exemplo utilizado,não empregamos especificamente autores e exemplos deste campo queconsideramos bastante explorado e distante <strong>da</strong> nossa proposta. Tamb<strong>é</strong>m optamos,no estudo do s<strong>é</strong>culo XIX, a não analisar diretamente nenhuma tecnologiaprodutora de imagens, como o cinema ou a fotografia de modo a determinar suainfluência na <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong>. Em nosso ponto de vista, estas tecnologiasespecíficas foram amplamente estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s e fazem parte de um processo maisamplo de padronização do <strong>olhar</strong> que vemos iniciado antes de sua invenção. Destemodo, os panoramas e a fotografia serão mencionados dentro de contextosparticulares, o primeiro ao ser associado ao modo de <strong>olhar</strong> influenciado pelastecnologias de compressão tempo-espaço e, a segun<strong>da</strong>, na conjuntura de tentativade controle sobre o ambiente urbano.A nossa pesquisa estabelece dois diferentes modelos, ou momentos do<strong>olhar</strong>. Antes de abor<strong>da</strong>rmos diretamente a <strong>construção</strong> destes dois modos, seráinteressante retomar o importante estudo <strong>da</strong> visão moderna de Jonathan Crary.Crary baseia sua hipótese no estudo dos dispositivos ópticos, originalmentedesenvolvidos nos laboratórios de fisiologia <strong>da</strong>s primeiras d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s do s<strong>é</strong>culo XIX,e que migraram para as feiras populares e residências de uma crescente classem<strong>é</strong>dia urbana. Seu estudo compreende o conhecimento sobre um corpo ca<strong>da</strong> vezmais submetido à disciplina, regulação e investigação. A visão moderna ou a<strong>cultura</strong> de uma nova maneira de <strong>olhar</strong> teria sido definitivamente atrela<strong>da</strong> a umcorpo em movimento, rompendo com um modelo representado pela câmeraescura. Este conceito <strong>é</strong> reforçado por uma frase de Maine de Biran, um dosprimeiro filósofos do s<strong>é</strong>culo XIX a pensar sobre a percepção: “a alma <strong>é</strong>15 ROSE, Gillian. Visual Methodologies. London: Sagge Publications, 2001. p. 11-12.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 38necessariamente encarna<strong>da</strong>, não existe psicologia sem biologia”. 16 Craryconsidera que os estudos ópticos abalaram os modelos de representação <strong>da</strong> visãoderivados <strong>da</strong> Renascença. De modo que, para compreender visão e a <strong>cultura</strong>moderna, assim como a nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, segundo este autor, não se deveobservar a pintura modernista <strong>da</strong>s d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s de 1870 e 1880, mas a reconfiguração<strong>da</strong> visão ocorri<strong>da</strong> na d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1840 quando um novo tipo de observador foiconstituído. 17 A expressão est<strong>é</strong>tica moderna <strong>é</strong> conseqüência e não causa <strong>da</strong>smu<strong>da</strong>nças.A nossa compreensão do fenômeno <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de pretende-se maisampla, com a conceituação do <strong>olhar</strong> moderno, consoli<strong>da</strong>do a partir de um novomodo de vi<strong>da</strong> urbana desenvolvido ao longo de um período de transformaçõesfun<strong>da</strong>mentais, a segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX.Esta tese se constitui sobre dois diferentes paradigmas de <strong>construção</strong> <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de: o <strong>olhar</strong> ciclópico ou clássico, relacionado à fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong>convenção <strong>da</strong> perspectiva e construído ao longo <strong>da</strong> Renascença e o <strong>olhar</strong>panorâmico, arquitetado sobre as transformações urbanas, a profusão de objetos eimagens e a compressão tempo-espaço gera<strong>da</strong> pelas novas tecnologias detransporte e comunicação a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX. Estes doismodos de <strong>olhar</strong> são analisados, respectivamente no segundo e terceiro capítulos,enquanto o quarto analisa uma pe<strong>da</strong>gogia de fixação do <strong>olhar</strong> que foi construído.O capítulo dois, voltado para o <strong>olhar</strong> ciclópico, se inicia com umadiscussão sobre a representação e a possibili<strong>da</strong>de de uma imagem transmitir aver<strong>da</strong>de. Em segui<strong>da</strong>, analisa a visão monocular produzi<strong>da</strong> pela perspectiva, seusparadoxos e sua naturalização. Neste contexto, tamb<strong>é</strong>m consideramos acombinação entre a perspectiva e a gravura como fun<strong>da</strong>mental para odesenvolvimento <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong>s tecnologias ocorrido a partir do Renascimento.O final deste segundo capítulo abor<strong>da</strong> a utilização de alguns aparatos do <strong>olhar</strong>desenvolvidos na Renascença sob os pontos de vista do entretenimento, <strong>da</strong> ciênciae <strong>da</strong> metáfora.16 BIRAN, Maine de. Influence de l’habitude sur la facult<strong>é</strong> de penser [1803]. Paris: Ed. P. Tisserand, 1953,pp. 56-60. apud CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenthcentury. Massachusetts: The MIT Press, 1992. p. 73.17 CRARY, J. op. cit., p. 149.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 39O terceiro capítulo, dedicado ao <strong>olhar</strong> panorâmico, que foi construído apartir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX, se apresenta dividido em três partes. Elese inicia com algumas considerações, volta<strong>da</strong>s para a compreensão de termoscomo moderni<strong>da</strong>de e modernização e segue com questionamentos sobre avali<strong>da</strong>de do termo “revolução industrial” em relação aos primeiros tempos <strong>da</strong>industrialização e do emprego de tecnologias resultantes de pesquisas científicas.Prosseguindo com a discussão sobre a influência <strong>da</strong>s tecnologias na <strong>construção</strong> do<strong>olhar</strong>, optamos por analisar a implantação <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de e alguns de seusreflexos. Na segun<strong>da</strong> parte deste mesmo capítulo, dirigimos um <strong>olhar</strong> àsmodificações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de urbana ao longo do s<strong>é</strong>culo XIX e sua influência sobre aprodução de um novo <strong>olhar</strong>. Deste modo, estu<strong>da</strong>mos as reformas urbanas, osurgimento <strong>da</strong> multidão, a profusão de impressos que inun<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de e a própriavisão do morador. Ressaltamos a id<strong>é</strong>ia <strong>da</strong> permanência <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de como formade produção de choques perceptivos destinados a atrair a visão dos homens emulheres saturados por informações. Em segui<strong>da</strong>, abor<strong>da</strong>mos uma tentativa quefoi emprega<strong>da</strong> para o controle deste tamb<strong>é</strong>m novo ambiente urbano, organiza<strong>da</strong>basicamente sobre imagens fotográficas e medi<strong>da</strong>s dos moradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com aintenção de restringir e direcionar o <strong>olhar</strong> que fora aberto a um novo mundo depossibili<strong>da</strong>des. Finalmente, na última parte do terceiro capítulo, analisamos aspercepções produzi<strong>da</strong>s a partir do emprego de tecnologias geradoras <strong>da</strong>compressão tempo-espaço. Em se tratando de s<strong>é</strong>culo XIX e <strong>da</strong> nossa opção pornão utilizar tecnologias produtoras de representações, a tecnologia analisa<strong>da</strong> <strong>é</strong> aferrovia. É sobre ela que traçamos a <strong>construção</strong> do que chamamos de <strong>olhar</strong>panorâmico e que se explicita em um pequeno texto sobre os panoramaspropriamente ditos. Este novo <strong>olhar</strong>, ao mesmo tempo em que criou novaspossibili<strong>da</strong>des perceptivas, tamb<strong>é</strong>m necessitou de processos de padronização,como <strong>é</strong> o caso <strong>da</strong> estan<strong>da</strong>rdização do tempo, que fecha o capítulo.O quarto capítulo trata <strong>da</strong> fixação do <strong>olhar</strong> configurado ao longo do s<strong>é</strong>culoXIX, atrav<strong>é</strong>s de uma pe<strong>da</strong>gogia volta<strong>da</strong> para as instituições industriais e oconceito de progresso. Para esta análise utilizamos as Exposições Universais,sobretudo a primeira delas, realiza<strong>da</strong> na Londres em 1851, por tratar-se de umfenômeno basicamente <strong>visual</strong> e voltado para um público amplo. Sob este aspecto,as Exposições Universais sintetizam a experiência obti<strong>da</strong> posteriormente comoutras tecnologias que se voltaram para a massa e, tamb<strong>é</strong>m, com o que foi


O OLHAR INOCENTE É CEGO 40conceituado como espetáculo. A possibili<strong>da</strong>de de realizar esta análise sobre asExposições e não sobre tecnologias de comunicação e produção de imagens,busca captar o primeiro momento <strong>da</strong> experiência de uma nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>,recentemente desenvolvi<strong>da</strong>. Tamb<strong>é</strong>m consideramos que, al<strong>é</strong>m disso, asExposições Universais têm o m<strong>é</strong>rito de ressaltar a ascensão do campo do design,tanto a partir <strong>da</strong> exibição de produtos desenvolvidos pela indústria quanto pelasdiscussões que parecem mostrar-se, pela primeira vez, relevantes para esta área.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 412.O <strong>olhar</strong> ciclópico e a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagemEste capítulo trata <strong>da</strong> <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong> clássico ou renascente.Apontamos alguns fatores que corroboraram na emergência e predomínio dessemodelo, as conseqüências contemporâneas de sua ascensão e certos efeitosposteriores que evidenciam suas influências. A nossa intenção principal <strong>é</strong> expor,no <strong>olhar</strong> clássico, a formação do habitus <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de ocidental, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>sobre a racionalização. Deste modo, levantamos algumas continui<strong>da</strong>des queserviram de alicerce para desenvolvimentos posteriores, predominantemente apartir <strong>da</strong> aceleração <strong>da</strong> produção de objetos manufaturados. Neste momento nãoserá demais repetir algumas ressalvas. Em primeiro lugar, há que se ter em mentea id<strong>é</strong>ia de “um <strong>olhar</strong> do período”, ou seja, um <strong>olhar</strong> mais ou menos geral, sematribuições de gênero ou de i<strong>da</strong>de, mas principalmente uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> imbuí<strong>da</strong>por características específicas de determina<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca e local. Em segundo lugar, eaqui buscamos apoio em Jonathan Crary e sua descrença quanto à possibili<strong>da</strong>de deuma história do <strong>olhar</strong> 18 : não <strong>é</strong> nossa pretensão construir uma história <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de do <strong>olhar</strong>, mas integrar o <strong>olhar</strong> à história <strong>da</strong>s forças e regras que atuamna <strong>construção</strong> dos campos onde a percepção <strong>visual</strong> acontece. Diga-se a propósitoque, uma história que preten<strong>da</strong> incluir a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de deve ser em parte umanarrativa dos instrumentos visuais, suas construções, tecnologias e registros <strong>da</strong>srepresentações e, de outra parte, suas configurações sociais e as - menos tangíveis- práticas cognitivas influentes na formulação <strong>da</strong>s convenções e habitus.Deste modo, embora a constituição de uma nova forma de <strong>olhar</strong> sejageralmente associa<strong>da</strong> às mu<strong>da</strong>nças observa<strong>da</strong>s nas práticas de representaçãoartísticas, não nos ateremos a esta metodologia, salvo por um ou outro exemploutilizado de forma quase metafórica. Em outras palavras, na abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>18 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century.Massachusetts: The MIT Press, 1992. p. 6.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 42constituição do <strong>olhar</strong> “clássico”, não nos ateremos predominantemente a autores eexemplos <strong>da</strong> história <strong>da</strong> arte, campo que consideramos bastante explorado edistante <strong>da</strong> nossa proposta. Al<strong>é</strong>m do que, como afirma o historiador <strong>da</strong> arte MartinKemp, em relação à problemática utilização <strong>da</strong> pintura como prova de emprego <strong>da</strong>t<strong>é</strong>cnica: os meios são inferidos <strong>da</strong>s pinturas e depois são responsabilizados porseus efeitos, de forma potencialmente circular. 19 Deste modo, a utilização deexemplos <strong>da</strong> história <strong>da</strong> arte apoiará a discussão sobre a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de do período,sem constituírem o eixo <strong>da</strong> discussão.Em nossa opinião, os artefatos não são apenas reflexos de mu<strong>da</strong>nçasocorri<strong>da</strong>s em um determinado período e lugar, mas elementos ativos nastransformações sociais e agentes decisivos na <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong>, principalmentequando se trata de aparatos visuais. Este pensamento encontra suporte em HannaArendt, na sua compreensão <strong>da</strong> invenção do telescópio como fator fun<strong>da</strong>mental deconfiguração <strong>da</strong> Era Moderna. Para Arendt, “não são id<strong>é</strong>ias, mas eventos quemu<strong>da</strong>m o mundo: o sistema heliocêntrico, como id<strong>é</strong>ia, <strong>é</strong> tão velho quanto aespeculação pitagórica e tão persistente em nossa história quanto as tradiçõesneoplatôncias, e nem por isso jamais mudou o mundo ou a mente humana” 20 .Apesar <strong>da</strong> consideração <strong>da</strong> autora de que “em contraposição aos eventos, as id<strong>é</strong>iasnunca são in<strong>é</strong>ditas” 21 , acreditamos que tamb<strong>é</strong>m os eventos não surgem de repente.A história <strong>é</strong> repleta de exemplos de tecnologias que se encontravam pronta háanos, quando finalmente foram implementa<strong>da</strong>s. As tecnologias que mol<strong>da</strong>ram avisão moderna não constituem exceção. Apesar disso, não iremos traçar odesenvolvimento histórico, apontar origens e desdobramentos de ca<strong>da</strong> um destesartefatos, mas chamar a atenção para as conseqüências e influencias <strong>da</strong> utilizaçãodestas invenções e sua participação social sobre a <strong>construção</strong> do modo de <strong>olhar</strong>delineado a partir <strong>da</strong> renascença.A <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong> clássico será abor<strong>da</strong><strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> formulação <strong>da</strong>stecnologias visuais desenvolvi<strong>da</strong>s no período e converti<strong>da</strong>s em atoresfun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s na forma de organização e <strong>construção</strong> do<strong>olhar</strong> clássico. De um lado, analisamos o emprego <strong>da</strong> perspectiva e a utilização de19 KEMP, Martin em carta para o autor. HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo ast<strong>é</strong>cnicas perdi<strong>da</strong>s dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 232.20 ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Forense Universitária, 2005. p.285.21 Ibid., p.271.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 43outros aparatos tecnológicos <strong>da</strong> visão, como por exemplo, os pespectógrafos e acâmera escura, que utilizam princípios ópticos, na sua atuação como auxiliares <strong>da</strong>prática do desenho. Neste contexto, apontamos indícios <strong>da</strong> padronização eracionalização do <strong>olhar</strong> a partir <strong>da</strong> implementação e desenvolvimento de algumasdestas t<strong>é</strong>cnicas e sua posterior “naturalização”. De outro, demonstramos que estesmesmos instrumentos atendiam a funções de entretenimento atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> produçãode “efeitos de mágica”. Deste modo, embora procuremos nos fixar sobre ainfluência destes artefatos na <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca, não podemosdeixar de reconhecer sua ascendência sobre a constituição de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>posterior, onde se insere o campo do design. No entanto, não poderíamos discutiralgumas dessas tecnologias visuais sem discutir tamb<strong>é</strong>m a questão <strong>da</strong>representação e <strong>da</strong> “reali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> imagem representa<strong>da</strong> ou, se preferirem, suacapaci<strong>da</strong>de de transmitir a ver<strong>da</strong>de. Com essas questões abrimos o capítulo.2.1. A representação do que “<strong>é</strong>”Figura 4 - Charge de Alain. Publica<strong>da</strong> em 1955 em The New YorkerMagazine. Retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> reprodução de GOMBRICH, E. H. em Arte e Ilusão. p. 2.Como descrever o <strong>olhar</strong> de homens e mulheres que viveram há cinco ou dezs<strong>é</strong>culos atrás? Mesmo que existissem relatos que descrevessem estes modos devisão, como seria possível “traduzi-los” de acordo com a nossa compreensão do


O OLHAR INOCENTE É CEGO 44<strong>olhar</strong>? Em sua deleitável história <strong>da</strong>s listras, Michel Pastoureau levanta a hipótesede que o caráter depreciativo e pejorativo em relação às listras, identificado emdocumentos a partir do s<strong>é</strong>culo XII, poderia ser justificado por algumaproblemática <strong>visual</strong> 22 . De acordo com esta hipótese, a sensibili<strong>da</strong>de do homem <strong>da</strong>I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia era abala<strong>da</strong> pela aparência de uma estrutura onde figura e fundopareciam indistinguíveis - o que provavelmente acontecia na observação detecidos listrados. Para Pastoureau, o olho medieval era particularmente “atento àleitura por planos”: to<strong>da</strong> imagem lhe parecia como que recorta<strong>da</strong> em cama<strong>da</strong>s,<strong>da</strong>ndo a id<strong>é</strong>ia de uma superposição de planos sucessivos. Assim, uma figura eraobserva<strong>da</strong> pelo homem medieval a partir do plano de fundo; o <strong>olhar</strong> atravessariatodos os planos sucessivos e intermediários para terminar no plano frontal. Estemodo de <strong>olhar</strong> o ambiente provocaria situações de desconforto na <strong>visual</strong>ização defiguras com superfícies listra<strong>da</strong>s ou axadreza<strong>da</strong>s. 23 O incômodo seria causado pelo“diferente”, o fora do padrão. Algo tão valorizado pela arte e pelo design do nossotempo, a varietas no latim medieval, carregava, na I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia, a noção deimpuro, de agressivo ou imoral. Trata-se de uma concepção muito afasta<strong>da</strong> <strong>da</strong>sensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa <strong>é</strong>poca que valoriza a “varie<strong>da</strong>de”, sob a forma <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de- o sempre novo inseparável <strong>da</strong> id<strong>é</strong>ia de juventude. Concepção diametralmenteoposta à encontra<strong>da</strong> na I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia, onde um bom cristão, um homem honestonão poderia ser varius. “A varietas <strong>é</strong> parente do pecado e do inferno”. 24 O temorpela visão do “diferente” aparece de forma bem clara no texto de Erasmo deRotter<strong>da</strong>m, do ano de 1523: Diversoria. Ao descrever as diferenças nas maneirasobserva<strong>da</strong>s em estalagens alemãs e francesas, Erasmo aponta detalhes de umahospe<strong>da</strong>ria alemã. Nesta exposição ficam evidentes as dificul<strong>da</strong>des que um“estranho” encontrava ao chegar ao país. “Os outros olham-no fixamente, comose ele fosse um animal fabuloso vindo <strong>da</strong> África”. 25 Não <strong>é</strong> nossa intenção, comeste exemplo, afirmar que o estranhamento em relação ao diferente seja algoinexistente em nossa socie<strong>da</strong>de. Apenas temos segurança de que as coisas sãomais complexas e menos absolutas em nossa <strong>é</strong>poca. O diferente pode tanto serrejeitado, como aclamado. E estas duas recepções muitas vezes acontecemsimultaneamente ou seqüencialmente. Apesar de pensarmos o diferente como um22 PASTOUREAU, M. O pano do diabo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 15-16.23 Id.24 Ibid., p 38-39.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 45emaranhado contextual extremamente influente nas questões perceptivas, este nãovem a ser o foco dessa pesquisa. Neste momento, <strong>é</strong> importante, apenas, ressaltar aid<strong>é</strong>ia do diferente como histórica e inseparável do modo como as pessoaspercebem seu ambiente.Figura 5 - O jardim de Nebamun, c. 1400 a. C.Retirado de GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. p. 60.A sugestão de que as pessoas de outras <strong>é</strong>pocas percebiam a natureza de ummodo diferente do nosso <strong>é</strong> representa<strong>da</strong> com humor no cartum de Alain (Figura4). O chargista apresenta uma aula de modelo vivo onde estu<strong>da</strong>ntes egípciosretratam uma jovem modelo em pose semelhante à encontra<strong>da</strong> nas pinturasegípcias. Ernst Gombrich discute, a partir deste desenho, o que compreende como“enigma de estilo”, a existência de estilos de representação do mundo visívelrelacionados a diferentes <strong>é</strong>pocas e lugares e dissociado <strong>da</strong> expressão de uma visãopessoal 26 . O desenho de Alain parece sugerir que o modo como vemos o mundoestá implicado diretamente no modo como o reproduzimos. Deste modo, somosatraídos pela id<strong>é</strong>ia cômica de que os egípcios viam um mundo sem profundi<strong>da</strong>de,com as pessoas sempre de perfil, como o posicionamento <strong>da</strong> modelo <strong>da</strong> classe deAlain (Figura 4). Mas, Gombrich não sugere que este era o modo como osegípcios viam o mundo. Segundo este historiador <strong>da</strong> arte, os antigos egípcios nãoprocuravam reproduzir o mundo do modo que viam, mas do modo que, para eles,suas id<strong>é</strong>ias ficassem mais claras ou, ain<strong>da</strong>, do modo em que melhor conheciam oque queriam representar. Desenhavam de memória, de acordo regras estabeleci<strong>da</strong>s25 ELIAS, N. O processo civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 8426 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.3-4.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 46e utilizando o ângulo de observação mais característico do objeto representado. 27Assim, no desenho egípcio de um jardim com árvores e um tanque com peixes eaves, vemos as árvores vistas de lado e o tanque visto de cima, embora peixes eaves estejam representados de lado (Figura 5). W. J. T. Mitchell consideraproblemática a leitura que Gombrich faz do cartum e afirma que nela se encontraimplícita a sugestão de que os egípcios percebiam o mundo de um mododiferente. 28 Este último autor observa, ain<strong>da</strong>, que, no cartum, os antigos egípciossão apresentados como iguais a nós: desenham do mesmo modo que em qualqueraula de modelo vivo <strong>da</strong> nossa <strong>é</strong>poca. Em outras palavras, os alunos egípcios docartum de Alain fazem uso <strong>da</strong>s mesmas convenções de desenho do nosso tempo,embora obtendo um resultado diferente. Apesar <strong>da</strong> discordância sugeri<strong>da</strong>, Mitchellnão pretende estabelecer uma oposição entre duas interpretações, uma ver<strong>da</strong>deirae outra falsa. Mas, entre duas interpretações que, embora opostas e contraditórias,constituem um diálogo.Não nos parece improvável que os egípcios vissem o mundo de uma formadiferente <strong>da</strong> nossa, mas isso não nos parece configurar uma explicação exclusivapara o fato de eles representarem o mundo que viam de forma própria. RudolfArnheim observa que a “inaturali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>s figuras egípcias para um observadormoderno ocorre porque este julga as obras egípcias por padrões diferentes dos queforam utilizados na sua realização 29 . Esse argumento encontra eco em Mitchell: “oestereótipo do ‘mesmo’ que projetamos nos egípcios <strong>é</strong> na ver<strong>da</strong>de o reflexo denossas convenções”. 30 Deste modo, se nos parece fato que os egípcios possuíamum modo próprio de ver o mundo, isso não se passava a partir dos mecanismossugeridos comicamente pelo cartum de Alain. As características de observação eas convenções utiliza<strong>da</strong>s para a reprodução <strong>da</strong> natureza observa<strong>da</strong> por umadetermina<strong>da</strong> <strong>cultura</strong> e <strong>é</strong>poca se encontram intimamente relaciona<strong>da</strong>s ao modocomo esta <strong>cultura</strong> representa a sua visão de mundo. A id<strong>é</strong>ia de representação estádiretamente liga<strong>da</strong> a uma forma de <strong>olhar</strong> – embora o modo como esta relação seestabeleça apresente variações, principalmente a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do27 Ibid., p.60-61.28 MITCHELL, W. J. T. Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation. Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 1995. p.44.29 ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção <strong>visual</strong>: uma psicologia <strong>da</strong> visão criadora. São Paulo: LivrariaPioneira Editora, 1986. p.105.30 MITCHELL, T. op. cit., p.45.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 47s<strong>é</strong>culo XIX. Mas, em que medi<strong>da</strong> a imagem pode ser compreendi<strong>da</strong> como“representação”?Nosso ponto de parti<strong>da</strong> se encontra na compreensão <strong>da</strong> imagem como algoal<strong>é</strong>m <strong>da</strong> representação. A imagem pode não vir a ser uma representação, mas serásempre apresentação. Representações são artefatos e podem ser parcialmentedefinidos a partir do propósito de seus produtores, principalmente em relação aofuncionamento específico do artefato. A representação nos fala de uma identi<strong>da</strong>dee seus signos, mas a vinculação direta com o <strong>olhar</strong> de sua própria <strong>é</strong>poca deve sercui<strong>da</strong>dosa na medi<strong>da</strong> em que sua <strong>construção</strong> material e simbólica pode estar maisrelaciona<strong>da</strong> ao passado do que ao contemporâneo. Indique-se a propósito, aafirmação de Crary em relação à pintura modernista dos anos 1870 e 1880 servista, em seu trabalho, como sintoma tardio ou conseqüência de um processoiniciado por volta de 1820 31 . De outra maneira, a apresentação relaciona-se compresença e, portanto, com o self e o tempo presente. Neste sentido, a id<strong>é</strong>ia deimagem enquanto apresentação aproxima-se do <strong>olhar</strong> de um observadorcorporificado, sujeito e produtor de práticas e artefatos que o fazem ator. 32Outra abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> “representação” 33 pode ser encontra<strong>da</strong> naTeoria dos Símbolos de Nelson Goodman. Para este autor, uma imagemrepresenta alguma coisa na medi<strong>da</strong> em que descreve esta coisa, como umpredicado que lhe pode ser aplicado 34 . Segundo Goodman, a forma mais simplistade se compreender a representação <strong>é</strong> atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> semelhança: algo como “Arepresenta B na medi<strong>da</strong> em que A <strong>é</strong> semelhante a B”. 35 Mas, essa abor<strong>da</strong>gemtraduz um equívoco que pode ser exposto a partir <strong>da</strong> simples premissa de que umobjeto <strong>é</strong> semelhante a si mesmo em grau máximo, mas raramente se representa.Deste modo, como observa Goodman, semelhança não <strong>é</strong> condição necessária nemsuficiente para a representação. A semelhança, ao contrário <strong>da</strong> representação, <strong>é</strong>31 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century.Massachusetts: The MIT Press, 1992.32 Veja a id<strong>é</strong>ia de “fabricação”, a partir do conceito de tática desenvolvido por de Certeau. CERTEAU,Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.33 A língua portuguesa coloca uma grande dificul<strong>da</strong>de na substituição do termo representação. O idiomainglês conta com a palavra representing para simbolizar, descrever, e, claro, representar. O termo picturing secoloca para descrever, mas tamb<strong>é</strong>m para sentidos mais literais como pintar, desenhar e, possivelmente,<strong>visual</strong>izar. Não encontrei nenhuma equivalência no português. Acredito que o termo “desenhar” seja bastanterestritivo, não correspondendo ao “descrever” do picturing. Por este motivo, encontrei dificul<strong>da</strong>des em evitara utilização do termo “representar” em um modo que a Teoria de Goodman repele, ou seja, a partir <strong>da</strong>semelhança.34 GOODMAN, N. Languages of Art. Indianapolis: Hackett Publishing Co, 1976. p. 30.35 Ibid., p.3 et seq.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 48reflexiva e sim<strong>é</strong>trica. B <strong>é</strong> como A, na medi<strong>da</strong> em que A <strong>é</strong> como B, mas umapintura pode representar o Duque de Wellington, enquanto o Duque nãorepresenta a pintura. Um par de sapatos apresenta semelhanças, mas um doselementos do par não representa o outro. Embora a noção de representaçãofigurativa tenha sido pensa<strong>da</strong> a partir do conceito de semelhança desde Platão,Goodman considera que uma imagem representa um objeto na medi<strong>da</strong> em quefunciona como um símbolo para este objeto, está para (stand for), se refere a ele. 36A semelhança <strong>é</strong> descarta<strong>da</strong> como noção de referência na medi<strong>da</strong> em que quasetudo pode se assemelhar a tudo. Um quadro de um castelo será sempre maisparecido com outro quadro do que com o castelo, apesar de representar o castelo enão o outro quadro 37 . De que modo, então, a noção de semelhança pode seraplica<strong>da</strong> a uma imagem que representa algo, sendo semelhante a este algo sobrecertos aspectos? Neste caso, o problema apenas se desloca para a determinação dequais proprie<strong>da</strong>des pictóricas podem ser utiliza<strong>da</strong>s para a comparação atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>semelhança. Diversas características pictóricas podem ser emprega<strong>da</strong>s para estefim como, por exemplo, a forma, o tamanho, a cor, as texturas etc. 38 Goodmanconsidera que não existe uma fórmula que possa ser aplica<strong>da</strong> de modo universal eque ca<strong>da</strong> situação deve ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> individualmente de acordo com os contextosespecíficos de criação <strong>da</strong> obra e de interpretação. Por outro lado, a questão <strong>da</strong>semelhança <strong>é</strong>, de fato, inseparável, <strong>da</strong> id<strong>é</strong>ia de um ponto de vista em determinadotempo e espaço. A percepção de uma semelhança <strong>visual</strong> entre dois objetos serásempre relativa a um ponto de vista: “este objeto, visto deste ponto de vista,parece-se com aquele objeto, visto <strong>da</strong>quele ponto de vista”. 39Como devemos compreender o conceito de que uma imagem se propõe aatender a expectativa de reprodução <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de? A partir <strong>da</strong> formulaçãodesconcertante de que para se obter uma imagem fiel deve-se copiar o objeto “talqual ele <strong>é</strong>”, Nelson Goodman in<strong>da</strong>ga-se sobre o que constitui um objeto tal qualele <strong>é</strong>, “porque o objeto que está diante de mim <strong>é</strong> um homem, um enxame de36 Goodman utiliza o termo “objeto” de forma indiferente para qualquer coisa que a imagem possarepresentar, “seja uma maçã ou uma batalha”. Do mesmo modo, o termo “símbolo” <strong>é</strong> usado em um sentidogeral, incorporando letras, palavras, textos, imagens, diagramas, mapas, modelos etc., sem carregarimplicações de sentidos oblíquos ou ocultos.37 Ibid., p. 5.38 RAMME, Noeli. Arte e <strong>construção</strong> de mundos. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado em Filosofia) -PUC-Rio. p. 32.39 SEARLE, Joh R. Las Meninas and the paradoxes of pictorial representation. In: MITCHELL, W. J.Thomas (ed.). The Language of images. Chicago: The University of Chicago Press, c1980. p. 251.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 49átomos, um complexo de c<strong>é</strong>lulas, um violonista, um amigo, um louco, e muitasoutras coisas mais” 40 . Se nenhum desses modos constitui o objeto, então o que oconstitui? E, ao contrário, se todos eles são modos de ser do objeto, então nenhumdeles será o modo de ser do objeto. Todos estes modos não podem ser copiados aomesmo tempo e, nesta tentativa, mais nos distanciamos de uma imagem realista. Acópia, então, <strong>é</strong> feita sobre um determinado aspecto, sobre um dos modos do objetoque nos parece mais significativo ou mais neutro. De certa forma, a compreensãodos aspectos significativos e seu contexto, pode nos levar a uma maiorcompreensão do modo como os homens de outras <strong>é</strong>pocas viam o seu mundo e estacompreensão talvez possa nos apontar a possibili<strong>da</strong>de de um <strong>olhar</strong> autônomo.Deste modo, podemos compreender como a busca de significação levava osegípcios a representarem os olhos de frente mesmo quando os personagens seencontravam de perfil. Mas, qual seria o modo de representação mais neutro à luzdo <strong>olhar</strong> contemporâneo? Por exemplo, como o objeto pode ser visto por um olhonormal, a partir de um ângulo favorável e com uma boa iluminação, sem ainterferência de afeições, animosi<strong>da</strong>des, interesses ou preconceitos, e despojadode interpretações? Goodman pergunta-se, apenas para apontar a impossibili<strong>da</strong>de<strong>da</strong> resposta mais simples: o objeto deve ser copiado do modo como <strong>é</strong> visto emcondições ass<strong>é</strong>pticas por um olho livre e neutro. Mas, não existe um grau zero do<strong>olhar</strong>. A procura de uma optici<strong>da</strong>de primária <strong>é</strong> freqüentemente cita<strong>da</strong> na obra deJohn Ruskin como uma solução t<strong>é</strong>cnica para o problema <strong>da</strong> pintura no s<strong>é</strong>culo XIX– a transposição do mundo tridimensional para uma tela plana. Na obra TheElements of Drawing, Ruskin se propõe não apenas a ensinar a desenhar, mastamb<strong>é</strong>m a capaci<strong>da</strong>de de julgar trabalhos de outras pessoas. Em uma granderessalva, conti<strong>da</strong> em uma nota de ro<strong>da</strong>p<strong>é</strong> dirigi<strong>da</strong> para leitores mais “incr<strong>é</strong>dulos ecuriosos” 41 , o autor coloca que uma vez que a nossa percepção de formas <strong>é</strong>relaciona<strong>da</strong> à experiência, o poder <strong>da</strong> pintura depende <strong>da</strong> recuperação do “<strong>olhar</strong><strong>inocente</strong>” (innocence of the eye) 42 , que significa uma percepção infantil, semconsciência pr<strong>é</strong>via dos significados <strong>da</strong>s formas. Uma visão imaginável apenas emuma pessoa cega que repentinamente pudesse enxergar. Mas, como afirma40 GOODMAN, N. op. cit. p.6.41 RUSKIN, John. The elements of drawing. London: The Waverley Book Co., [1920?]. p. 4.42 Ibid. p. 4.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 50Gombrich, “nunca podemos ver nossa própria retina”. 43 A impossibili<strong>da</strong>de do<strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong> <strong>é</strong> uma unanimi<strong>da</strong>de entre diversos autores, como Gombrich,Mitchell e Goodman. Segundo este último:O olho se antecipa ao seu trabalho de <strong>olhar</strong>, obcecado pelo seu próprio passado,atento às insinuações do ouvido, do nariz, <strong>da</strong> língua, dos dedos, do coração e doc<strong>é</strong>rebro. O olho não <strong>é</strong> instrumento que funciona sozinho, mas <strong>é</strong> membro obedientede um organismo complexo e imprevisível. Não somente o como, mas tamb<strong>é</strong>m oque ele vê <strong>é</strong> regulado pela necessi<strong>da</strong>de e pelo preconceito. O olho seleciona, rejeita,organiza, discrimina, associa, classifica, analisa, constrói. O olho não atua comoum espelho que capta e reflete itens sem atributo, mas registra coisas, comi<strong>da</strong>,pessoas, inimigos, estrelas e armas. Na<strong>da</strong> <strong>é</strong> visto desnu<strong>da</strong>do. 44Com colocações semelhantes, Arnheim antes de Goodman: “To<strong>da</strong>experiência <strong>visual</strong> <strong>é</strong> inseri<strong>da</strong> num contexto de espaço e tempo. Da mesma maneiraque a aparência dos objetos sofre influência dos objetos vizinhos no espaço, assimtamb<strong>é</strong>m recebe influência do que viu antes”. 45 Arnheim <strong>é</strong> cauteloso em relação àsinfluências do passado do observador e adverte que a interação entre aconfiguração do objeto presente e as coisas vistas no passado não <strong>é</strong> automática eubíqua.Para Goodman o mito do <strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong> <strong>é</strong> cúmplice do “absolutamente<strong>da</strong>do”. Ambos derivam e encorajam a id<strong>é</strong>ia de que o conhecimento <strong>é</strong> umprocessamento do material bruto recebido pelos sentidos. Acontece que arecepção <strong>é</strong> sempre inseparável <strong>da</strong> interpretação. Não <strong>é</strong> possível distinguir entre oque foi recebido e o que foi feito com isso. Por outro lado, Goodman reconheceque a busca pelo <strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong> pode produzir resultados positivos para os artistas,na medi<strong>da</strong> em que os pode conduzir ao rompimento de padrões e,conseqüentemente, a novos encontros expressivos. Neste sentido, a id<strong>é</strong>ia do <strong>olhar</strong><strong>inocente</strong> segue sendo emprega<strong>da</strong> como uma orientação para o desenho artístico, apartir <strong>da</strong> cópia. 46A questão que permanece problemática <strong>é</strong> a possibili<strong>da</strong>de conti<strong>da</strong> noconceito do <strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong> <strong>da</strong> existência de uma ver<strong>da</strong>de neutra e comum a todosos seres humanos: uma consciência <strong>visual</strong> plausível de ser expressa de forma43 Ibid. p. 272.44 GOODMAN, N. Languages… p.8-9. Destaque nosso.45 ARNHEIM, R. op. cit. p. 41.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 51unifica<strong>da</strong>. O conceito do “<strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong>” manteve-se de forma discreta sob aspesquisas que visavam a determinação de causas e efeitos, na medi<strong>da</strong> em queconsideram que determina<strong>da</strong> imagem ou meio <strong>é</strong> capaz de produzir determinadosresultados. Os primeiros estudos de “análise de efeitos” na área de comunicação<strong>da</strong>tam <strong>da</strong> Primeira Guerra e foram voltados para o impacto <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong>.Segundo o modelo <strong>da</strong> “agulha-hipod<strong>é</strong>rmica” de Harold Lasswell, a audiência <strong>é</strong>como uma massa amorfa que obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta.Nesta hipótese, a propagan<strong>da</strong> <strong>é</strong> um mero instrumento, nem mais moral nem maisimoral que “a manivela <strong>da</strong> bomba d’água”, podendo ser utiliza<strong>da</strong> tanto para bonscomo para maus fins. 47 A id<strong>é</strong>ia de um receptor “esvaziado” e que recebeinfluências diretas <strong>da</strong> mídia <strong>é</strong> um pensamento que encontra coerência em teorias<strong>da</strong> psicologia em voga na <strong>é</strong>poca. 48 Neste contexto, torna-se importante acompreensão <strong>da</strong> t<strong>é</strong>cnica <strong>da</strong> perspectiva, que analisaremos em segui<strong>da</strong>, como umfator determinante de uma <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de “universalizante”, fun<strong>da</strong>mental para odesenvolvimento do habitus.2.2. A visão monocularSe nos fosse <strong>da</strong>do um número limitado de palavras – ou imagens - paradescrever o <strong>olhar</strong> do início <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna, este <strong>olhar</strong> seria representado porum olho – um único olho - imóvel, em posição fixa em relação ao seu ângulo deobservação, ao seu posicionamento espacial e à sua distância em relação ao objetoobservado. “O olho <strong>da</strong> Renascença chama-se perspectiva”. 49 Perspectiva: umaconcepção de espaço que compreende a captação de um material bruto, existentena reali<strong>da</strong>de física, pelo sentido do <strong>olhar</strong> e sua modificação a partir de umaorganização sistemática, com a finali<strong>da</strong>de de reconstituir este material sobre uma46 Veja por exemplo NICOLAÏDES, Kimon. The natural way to draw. London: Andr<strong>é</strong> Deutsch Limited,1979., publicado originalmente em 1941 e, mais recentemente, EDWARDS, Betty. Drawing on the right sideof the brain. Los Angeles: J. P. Tarcher, Inc., 1979. Neste último, a autora sugere exercícios como, porexemplo, virar a imagem a ser copia<strong>da</strong> de ponta cabeça para “enganar” o lado esquerdo do c<strong>é</strong>rebro,responsável pela “tradução” <strong>da</strong>s formas observa<strong>da</strong>s em signos verbais.47 MATTELART, Armand e Mich<strong>é</strong>le. História <strong>da</strong>s teorias <strong>da</strong> comunicação. São Paulo: Edições Loylola,2001. p. 37.48 Considere-se, por exemplo, a psicologia <strong>da</strong>s massas de Le Bon, o behaviorismo surgido por volta de 1914,as teorias do russo Pavlov sobre o condicionamento e ain<strong>da</strong> os primeiros estudos <strong>da</strong> psicologia social, quesustentavam que somente certos impulsos primitivos, ou instintos, poderiam explicar os atos dos homens edos animais, vinculando o comportamento às forças biológicas.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 52superfície bidimensional. O <strong>olhar</strong> <strong>da</strong> perspectiva <strong>é</strong> instituído como um pontoúnico e fixo. No conceito de aplicação <strong>da</strong> t<strong>é</strong>cnica <strong>da</strong> perspectiva há a implicaçãode que o mundo exterior aos sentidos pode ser captado tal como <strong>é</strong> ou, em outraspalavras, que <strong>é</strong> possível construir uma exata simulação do que o olho físico vê. Namedi<strong>da</strong> em que o olho físico <strong>é</strong> valorizado, tamb<strong>é</strong>m o corpo humano seriavalorizado. No entanto, esta questão coloca-se de forma ambígua, uma vez que o“olho que vê” pode ser separado do corpo ao assumir pontos de vista que odistinguem do olho físico. De qualquer forma, essa alusão encontra suporte nohumanismo atribuído à Renascença.Figura 6. Xilogravura de Albert Dürer. DeUnderweysung der Messung, 1525.Disponível em:(31/07/06)Figura 7. Croqui <strong>da</strong> janela de Dürer. Livrode Croquis, 1514. Bibliothèque de Dresde.Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis.Anamorphoses ou magie artificielle deseffets merveilleux. France: Olivier Perrin,1969. p. 80A palavra perspectiva tem sua origem etimológica no latim, perspicere,significando ver de forma clara, encontrando semelhança no termo grego optik<strong>é</strong> 50 .A língua portuguesa sugere afini<strong>da</strong>de a esta tradução na palavra perspicaz, dolatim perspicace, que vê bem, que observa, penetrante. No entanto, a origem maisadota<strong>da</strong> <strong>é</strong> a que se encontra descrita em Albrecht Dürer “Perspectiva <strong>é</strong> umapalavra latina que significa ver atrav<strong>é</strong>s de”. 51 A id<strong>é</strong>ia do ver atrav<strong>é</strong>s tem origemprovável no texto de 1435 de Leon Batista Alberti. Em De Pictura, primeiro49 BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, A<strong>da</strong>uto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>sLetras, 2003. p. 74.50 PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. New York: Zone Books, 1997. nota na p. 75.51 Ibid., p. 27.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 53tratado sobre pintura que sobreviveu e que parece ter circulado amplamente entreos humanistas 52 , Alberti escreve: “desenho um retângulo que para mim <strong>é</strong> umajanela aberta, atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> qual vejo o que será pintado” 53 . O conceito <strong>da</strong> janela deAlberti pode ser observado em gravuras <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca – ou posteriores – sendo as maisconheci<strong>da</strong>s as de Albrecht Dürer. (Figura 6 e Figura 7), onde o que “será pintado”<strong>é</strong> observado atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> moldura.As gravuras de Dürer (Figura 6 e Figura 12) e de Vignola (Figura 14)apresentam aparatos que demarcam a posição exata do olho do pintor. O conceitode pirâmide <strong>visual</strong> pode ser observado naFigura 8, onde vemos uma linha reta, que atravessa a janela em direção aoobjeto, estabelecendo uma ligação entre o olho e um ponto específico no objeto.Uma cor<strong>da</strong> <strong>é</strong> estica<strong>da</strong> entre o alaúde e a parede. Este último ponto marca o pontode vista do pintor. O cruzamento de outras duas cor<strong>da</strong>s, presas à moldura, registrao ponto do alaúde que será transferido para a tela. A operação <strong>é</strong> repeti<strong>da</strong> ponto aponto at<strong>é</strong> que as formas sejam defini<strong>da</strong>s em um processo trabalhoso que requer aparticipação de duas pessoas. Estas gravuras apontam tentativas de mecanizaçãono processo de <strong>construção</strong> de imagens. No entanto, não <strong>é</strong> possível estabelecer, deforma absoluta, se essa tecnologia <strong>visual</strong> era de fato emprega<strong>da</strong> ou se a gravuraapenas ilustra uma metáfora do conceito descrito por Alberti. Os noventa anosentre as publicações de Alberti e Dürer parecem ampliar esta dúvi<strong>da</strong> e existemquestionamentos em relação aos conhecimentos teóricos de Dürer em relação àperspectiva. Kemp aponta que uma análise mais detalha<strong>da</strong> <strong>é</strong> capaz de mostraralgumas limitações no controle <strong>da</strong> perspectiva 54 . William Ivins considera queDürer, apesar de possuir conhecimento do m<strong>é</strong>todo, não tinha domínio total de suacompreensão 55 . Para Ivins, foi apenas em 1630, quando o matemático GirardDesargues desenvolveu a geometria descritiva a partir <strong>da</strong> perspectiva, <strong>é</strong> que estaúltima, de fato, desenvolveu-se. De qualquer forma, não deixa de ser uma notáveldemonstração de uma tentativa - ou aspiração - de produção de artefatos visando amecanização de um processo. Esse conceito reforça a aproximação entre arte e“cientifici<strong>da</strong>de”, a partir <strong>da</strong> sugestão de uma doutrina de conhecimento do mundo52 BAXANDALL, Michael. O <strong>olhar</strong> renascente: pintura e experiência social na Itália <strong>da</strong> Renascença. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1991. p. 191-192.53 IVINS, William M. On the rationalization of sight. New York: Da Capo Press, 1975. p.22.54 KEMP, Martin. The science of art. Optical themes in westerna art from Brunelleschi to Seurat. New Haven:Yale, 1990. p.54


O OLHAR INOCENTE É CEGO 54relaciona<strong>da</strong> à automação, inseparável <strong>da</strong> perspectiva. A propósito, talvez não sejademais ter em mente a imbricação entre arte e ciência na ativi<strong>da</strong>de dos próprios“artistas-cientistas”. Quem não reconhece isso em Leonardo <strong>da</strong> Vinci? Alberti,por exemplo, era considerado um grande cientista à sua <strong>é</strong>poca. E como umcientista renascentista era, ao mesmo tempo, um profundo conhecedor <strong>da</strong>smatemáticas, m<strong>é</strong>dico, especialista em perspectiva, pintura e arquitetura e tamb<strong>é</strong>mum prático destas disciplinas. 56Figura 8. Dürer: De Unterweisung der Messung, 1525.Figura 9. Giulio Parigi. Aportinhola de Dürer.Afresco. Florença: Galleriadegli Uffizi, Stanzino dellematematiche. Retirado deInstituto e Museo di Storiadella Scienza,(29/08/06)O termo perspectiva <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m empregado como sinônimo de óptica 57 e deponto de vista, em um sentido que cria uma esp<strong>é</strong>cie de metáfora a partir do pontode observação escolhido para a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> imagem bidimensional. Panofskysugere dois significados para a palavra. Na primeira definição, mais ampla,perspectiva seria a “ciência <strong>da</strong> representação de objetos em uma superfície domodo como eles aparecem ao nosso olho a uma certa distância”. 58 Por estaacepção, a perspectiva teria sido utiliza<strong>da</strong> antes do s<strong>é</strong>culo XV. No significadomais restrito, ela <strong>é</strong> considera<strong>da</strong> uma t<strong>é</strong>cnica de representação de objetostridimensionais sobre um plano bidimensional, a partir de algumas regras. Deacordo com o esquema descrito por Alberti, na construzione legittima, termo55 IVINS, W. op. cit.,. p.10.56 Texto de Cristofaro Landino, citado por BAXANDALL, M. op. cit.. p. 191.57 JAY, Martin. Downcast Eyes. The denigration of vision in twentieth-century french thought. Berkeley:University of California Press, 1994. p. 53.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 55utilizado pelos artistas do Renascimento, a imagem observa<strong>da</strong> <strong>é</strong> uma seção planarde uma pirâmide <strong>visual</strong> imaginária cujo v<strong>é</strong>rtice <strong>é</strong> o olho do observador (Figura 10e Figura 11). Os raios visuais partem deste ponto e se conectam a outros pontosdentro do espaço que será representado. O que <strong>é</strong> visto atrav<strong>é</strong>s deste traçado <strong>é</strong>reinterpretado sobre uma superfície plana. Isso, em poucas palavras, descreve a“perspectiva central” ou perspectiva artificialis. 59 Deste modo, segundo Panofsky,não nos cabe falar de uma visão perspectiva do espaço se apenas considerarmosobjetos isolados, como casas ou móveis, e sua representação obedecendo àredução de dimensões, mas quando to<strong>da</strong> a figura <strong>é</strong> transforma<strong>da</strong> em uma “janela”e quando acreditamos <strong>olhar</strong> para o espaço atrav<strong>é</strong>s desta janela. 60Figura 10. Abraham Bosse, Les Perspecteurs. Gravura<strong>da</strong> Manière universelle de M. Desargues pour traiter laperspective, 1648. Retira<strong>da</strong> de DAMISCH, H. Theorigin of perspective. p. 37.Figura 11. Retirado de A treatise ofperspective...Ain<strong>da</strong> em relação à origem <strong>da</strong> perspectiva, como observa Panofsky nãobasta perguntarmos se a arte de um determinado período ou região fazia uso dessat<strong>é</strong>cnica, mas qual tipo de perspectiva era utiliza<strong>da</strong>. Não há sentido em questionarse os antigos tinham conhecimento <strong>da</strong> nossa perspectiva, na medi<strong>da</strong> em que elesutilizavam diferentes concepções de espaço 61 . Do mesmo modo Rudolf Arnheim,ao diferenciar a perspectiva isom<strong>é</strong>trica <strong>da</strong> central, considera que esta última foi58 PANOFSKY, E. op. cit., nota <strong>da</strong> p. 76.59 De artificiali perspectiva, livro de Viator, publicado em 1505. cf. IVINS, W. op. cit., p.14.60 PANOFSKY, E. op. cit., p.27.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 56descoberta em uma <strong>é</strong>poca e lugar específico 62 : no sul <strong>da</strong> Europa, maisprecisamente na Itália 63 , no s<strong>é</strong>culo XV. Arnheim admira a perspectiva isom<strong>é</strong>tricaque não trabalha sobre uma fiel imitação <strong>da</strong> natureza: “os objetos do mundo físiconão são esmagados no quadro como uma abelha no pára-brisa” 64 O psicólogorepele a distorção de tamanhos, configurações, distâncias e ângulos, quecaracteriza como manipulação de objetos realiza<strong>da</strong> para criar a ilusão deprofundi<strong>da</strong>de na obtenção de uma figura mais realista. Deste modo, afirmacompreender a crítico de Andr<strong>é</strong> Bazin que chamou a perspectiva de “o pecadooriginal <strong>da</strong> pintura ocidental”. 65Figura 12. Dürer, Il velo, rete o graticola. Homem desenhando uma mulher reclina<strong>da</strong>.De Unterweysung der Messung, Nuremberg, 1538.Como forma de garantir a racionalização de um espaço infinito, imutável ehomogêneo, a “perspectiva central” adota duas premissas: a instituição <strong>da</strong> visão apartir de um olho único e imóvel e o reconhecimento <strong>da</strong> seção planar <strong>da</strong> pirâmide<strong>visual</strong> como capaz de funcionar como uma reprodução de nossa imagem óptica 66 .Goodman considera ain<strong>da</strong> outras condições indispensáveis à obtenção <strong>da</strong>fideli<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s imagens no uso <strong>da</strong> perspectiva: as limitações de ângulo e distânciana observação atrav<strong>é</strong>s de um orifício 67 . Em sua opinião estas condições estranhase anormais são uma prova de que o que <strong>é</strong> reproduzido deste modo não pode serconsiderado como “reali<strong>da</strong>de”. 68 Em relação, por exemplo, ao olho único e61 Ibid., p. 41-43.62 ARNHEIM, R. op. cit., p.271.63 Alpers observa que a arte italiana determinou, em grande parte, o estudo <strong>da</strong> arte e de sua história eestabelece como um contraponto para a “arte do norte”, a “arte do sul”, ou seja a arte holandesa. Ela utiliza otermo albertiano para designar um modelo que criou uma tradição. Ver ALPERS, Svetlana. A arte dedescrever. A arte holandesa no s<strong>é</strong>culo XVII. São Paulo: Edusp, 1999.64 ARNHEIM, R. op. cit., p. 252.65 Ibid., p.247.66 PANOFSKY, E. op. cit., nota na p. 29.67 GOODMAN, N. Languages… p.13.68 Id., p.19.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 57imóvel, Goodman afirma que o olho fixo <strong>é</strong> quase tão <strong>cego</strong> quanto o olho <strong>inocente</strong>e menciona a realização de experimentos que demonstram o movimento dos olhosna observação do que <strong>é</strong> visto 69 . Deste modo, a varredura do <strong>olhar</strong> seria ummovimento inerente ao olho, necessária à visão normal. Estes movimentosmínimos dos olhos são conhecidos como sacádicos (microsaccades). Pesquisasrecentes indicam que eles constituem a base de nossa capaci<strong>da</strong>de de visão epodem at<strong>é</strong> revelar atrações e interesses inconscientes. 70Figura 13. Prospettografo. Ludovico Cardi,conhecido como Cigoli. Prospettivapratica…, ms., ca. 1613, Firenze, Gabinettodei Disegni e delle Stampe degli Uffizi,1660. Retirado de Instituto e Museo di Storia dellaScienza (29/08/06)Figura 15. Pespectográfo. Cigoli,Prospettiva pratica, ms., ca. 1613.Gabinetto dei Disegni e delle Stampe degliUffizi, Florence. Retirado de CAMEROTA,Filippo. Looking for an artificial eye: on theborderline between painting and topography. EarlyScience and Medicine 10 (2).Figura 14. Instrumento prosp<strong>é</strong>tico de Jacopo Barozzi<strong>da</strong> Vignola. Le due regole della prospettiua prattica /di m. Iacomo Barozzi <strong>da</strong> Vignola ; con i commentaridel ... maestro Egnatio Danti .., In Bologna : perGioseffo Longhi, 1682. Retirado de Instituto e Museo diStoria della Scienza, (29/08/06).Apesar <strong>da</strong>s questões levanta<strong>da</strong>s em relação à compreensão <strong>da</strong>s id<strong>é</strong>ias deAlberti pelos artistas <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca, há evidências de que elas não eram totalmentedesconheci<strong>da</strong>s. O conceito dos raios que partem do olho do observador naformação <strong>da</strong> pirâmide <strong>da</strong> visão, por exemplo, pode encontrar afini<strong>da</strong>de com a69 Id., p.12.70 MARTINEZ-CONDE, Susana. MACKNIK, Stephen L. Windows on the mind. Scientific American. Vol.297, Issue 2, p56-63, Aug. 2007.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 58representação de fachos, flechas ou “raios projetantes”. Em relação a esse tema,Michael Kubovy apresenta uma imagem no mínimo desconcertante: o afresco deAndrea Mantega que mostra um homem atingido no olho por uma flecha (Figura16). A primeira fotografia colori<strong>da</strong> deste afresco <strong>da</strong> igreja Eremitani de Pádua foifeita durante a Segun<strong>da</strong> Guerra, quando partes do desenho já se encontravam emp<strong>é</strong>ssimo estado. Ain<strong>da</strong> durante a guerra, a capela onde o afresco se encontrava, foicompletamente destruí<strong>da</strong> por um bombardeio. Para Kubovy, apesar <strong>da</strong> existênciade relatos que contam o martírio de São Cristóvão atingido no olho por umaflecha, nesta obra a flecha funciona como uma metáfora <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> perspectiva 71 .Em sua hipótese, o psicólogo <strong>da</strong> percepção se apóia na id<strong>é</strong>ia de que durante aRenascença, a perspectiva era um conceito fun<strong>da</strong>mental para os artistas eintelectuais e, tamb<strong>é</strong>m, no fato de que a maior parte <strong>da</strong>s imagens de São Cristóvãofeitas no período não reproduz a cena <strong>da</strong> flecha<strong>da</strong>, inclusive outros afrescos dopróprio Mantegna. Kubovy igualmente se apóia em textos contemporâneos –inclusive de Leonardo <strong>da</strong> Vinci - que utilizam a metáfora <strong>da</strong> flecha para descrevero caminho <strong>da</strong> imagem capta<strong>da</strong> na direção do olho e na suposição de que esta partedo afresco seria uma homenagem a Alberti e sua janela. Mas, acima de tudo, oautor enfatiza a id<strong>é</strong>ia <strong>da</strong> perspectiva como portadora de uma sugestão espiritualcapaz de, à <strong>é</strong>poca, permitir uma experiência próxima à transcendência. Embora aid<strong>é</strong>ia de transcendência nos pareça excessiva <strong>é</strong> possível imaginar que, para o <strong>olhar</strong>de um admirador contemporâneo <strong>da</strong>s pinturas do inicio <strong>da</strong> Renascença, a visão<strong>da</strong>s imagens construí<strong>da</strong>s com a utilização <strong>da</strong> perspectiva devia parecerextraordinária, algo “equivalente à visão <strong>da</strong> alma” 72 , mais do que podemos hojeconceber como uma “reprodução do mundo visível”. O homem deste períodoain<strong>da</strong> estava muito carregado do misticismo <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia e não <strong>é</strong> de estranharque esse misticismo produzisse influências sobre a sua forma de <strong>olhar</strong>.71 KUBOVY, Michael. The Psychology of Perspective and Renaissance Art. Cambridge University Press,1986. p. 1-14.72 SNYDER, Joel. Picturing Vision. In: MITCHELL, W. J. Thomas (ed.). The Language of images. Chicago:The University of Chicago Press, 1980. p. 246.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 59Figura 16. Andrea Mantegna. Archers Shooting at Saint Christopher (1451-5). Fresco, OvetariChapel, Eremitani Church, Padua. Detalhe <strong>da</strong> flecha. Retirado de KUBOVY, M. The Psychology ofPerspective and Renaissance Art. p. 2 e 3.Mas, quem era este homem renascentista admirador de pinturas realiza<strong>da</strong>s apartir de uma t<strong>é</strong>cnica tão recentemente implementa<strong>da</strong>? Em primeiro lugardevemos excluir dos apreciadores <strong>da</strong>s obras de arte do s<strong>é</strong>culo XV uma grandeparcela <strong>da</strong> população, como os camponeses e os ci<strong>da</strong>dãos pobres, para nosconcentrar nas pessoas cuja reação às pinturas era de importância para o artista, ouseja, a classe dos comitentes. Dentre estes encontramos “os comerciantes e osprofissionais que operavam na quali<strong>da</strong>de de membros de confrarias ouindividualmente, os príncipes e seus cortesãos, os membros superiores de ordensreligiosas”. 73 No entanto, mesmo na classe dos comitentes encontram-se variaçõesque suplantam a individuali<strong>da</strong>de, mas variações relativas a grupos ou profissões,cujo pertencimento torna-se fator influente na formulação de um determinado<strong>olhar</strong>. Um m<strong>é</strong>dico, por exemplo, poderia dispensar uma atenção particular àsrelações existentes entre os membros do corpo humano, na medi<strong>da</strong> em que estetipo de observação fazia parte de suas ações de diagnóstico. 74 De forma menosespecífica, to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des desempenha<strong>da</strong>s pelo homem do s<strong>é</strong>culo XV, ocapacitavam à observação de uma pintura. Este homem tratava de negócios,freqüentava a igreja e tinha uma vi<strong>da</strong> social, onde respeitava uma hierarquia e,embora pudesse ser mais ou menos brilhante nos negócios ou mais ou menosligado à religião, to<strong>da</strong>s essas ativi<strong>da</strong>des lhe eram influentes no sentido em queconstituíam a base <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca.73BAXANDALL, M. op.cit., p. 47.74 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 60Por outro lado, dentre essas pessoas havia poucas que, sendo ou nãopintores tinham a capaci<strong>da</strong>de de desenvolver o que hoje poderíamos chamar deobservação crítica. Provavelmente devido ao raro acesso à pouca literaturadisponível sobre arte à <strong>é</strong>poca, a maior parte <strong>da</strong>s pessoas para quem o pintortrabalhava possuía algumas poucas categorias para qualificar os quadros:“escorço”, ultramarino a dois florins a onça, a “roupagem” 75 e, talvez, uma ououtra expressão sobre as figuras religiosas representa<strong>da</strong>s. Lembrando ain<strong>da</strong> que amaior parte desses termos freqüentava a “literatura” dos contratos que precediama execução <strong>da</strong> obras.Um outro fator importante <strong>da</strong> <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> renascentista era aeducação comercial que constituía a base <strong>da</strong> formação escolar laica do s<strong>é</strong>culo XV.A formação educacional secundária <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca era volta<strong>da</strong> para práticas úteis nocom<strong>é</strong>rcio, valorizando t<strong>é</strong>cnicas matemáticas, como m<strong>é</strong>todos de medição e a regrade três. 76 At<strong>é</strong> o s<strong>é</strong>culo XIX, as mercadorias não eram transporta<strong>da</strong>s nemcomercializa<strong>da</strong>s em recipientes padronizados. Deste modo, um barril, saco oufardo era único e seu volume deveria poder ser calculado com relativa rapidez.Aparentemente, ca<strong>da</strong> região tinha os seus próprios m<strong>é</strong>todos para li<strong>da</strong>r com estaquestão. De qualquer forma, esta prática aponta para um tipo determinado decapaci<strong>da</strong>des e para a existência de hábitos analíticos 77 que, de certa forma, deveter exercido algum tipo de influência na forma como as pessoas avaliavam aproporcionali<strong>da</strong>de pictórica de uma obra. Parece lógico que isso tenha sidocompreendido – e utilizado - pelos realizadores de imagens. De fato, em uma<strong>é</strong>poca onde não existiam considerações sobre “criativi<strong>da</strong>de” ou “novi<strong>da</strong>de”, aexibição de habili<strong>da</strong>des e o emprego de t<strong>é</strong>cnicas eram extremamente valorizados.No entanto, to<strong>da</strong>s essas evidencias de valoração “tecnicista” não podem nosofuscar a força <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> religiosa sobre a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de do período.Apesar <strong>da</strong> permanência <strong>da</strong> ligação do homem renascentista aos dogmas <strong>da</strong>Igreja e <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia, a invenção <strong>da</strong> perspectiva se insere de formacomplementar à estrutura de mundo do início <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna. O universo eraconcebido de acordo com os mesmos padrões hierárquicos de socie<strong>da</strong>de feu<strong>da</strong>l. Apirâmide feu<strong>da</strong>l se encontrava centra<strong>da</strong> no imperador. O universo se situava sobre75 Ibid., p.45.76 Ibid., p.177.77 Ibid., p.168.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 61o trono de Deus. Este padrão repetia-se em to<strong>da</strong>s as esferas: humana, divina enatural 78 . Do mesmo modo, a perspectiva tamb<strong>é</strong>m estabelecia um ponto focalúnico: “a perspectiva torna o olho como sendo ele o ponto de fuga do infinito. Omundo visível <strong>é</strong> organizado para o espectador assim como o Universo já foi antesorganizado para Deus”. 79 Por outro lado, a perspectiva tamb<strong>é</strong>m pode sugerir umdeslocamento do <strong>olhar</strong> divino, ou pelo menos, algo próximo de umcompartilhamento. Se antes era Deus quem tudo via, agora ao homem <strong>é</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> apossibili<strong>da</strong>de de estabelecer o ponto de vista <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e assumir para si próprioessa <strong>construção</strong>. Deste modo, a perspectiva <strong>é</strong> a t<strong>é</strong>cnica que estabelece asistematização do espaço, criando um mundo mensurável. Não obstante, a id<strong>é</strong>ia deextensão do espaço “interminável” (interminatum) 80 parece encaminhar para orompimento, de um lado, com o espaço Aristot<strong>é</strong>lico, onde não havia lugar para oinfinito e, de outro, com a atribuição escolástica do conceito de infinito como algo<strong>da</strong> ordem do divino. Assim, a perspectiva parece fazer a translação do espaçopsicológico para o espaço matemático, constituído por três dimensões físicas 81 .Hanna Arendt traduz muito bem este contexto ao afirmar que “na<strong>da</strong> que possa sermedido pode permanecer imenso”. 82 A perspectiva se estabelece, então, comoprática reguladora desta visão que começa a se apartar <strong>da</strong> teologia.A existência de uma s<strong>é</strong>rie de procedimentos capazes de reproduzir areali<strong>da</strong>de “tal como ela <strong>é</strong>” implica na experiência de “um modo correto de ver” ena existência – ou na crença de existência – de uma reali<strong>da</strong>de que pode serreproduzi<strong>da</strong>. Neste sentido, a capaci<strong>da</strong>de dos órgãos do sentido e, principalmentedo <strong>olhar</strong>, de captar o mundo “real” irá se apoiar em um sistema de “procedimentoscientíficos”. A perspectiva garante a adequação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de observação, ouseja, a possibili<strong>da</strong>de de estabelecer uma relação com a ver<strong>da</strong>de do que <strong>é</strong>observado - desde que certos princípios sejam adotados.Atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> implementação de regras de controle, a t<strong>é</strong>cnica <strong>da</strong> perspectivaestabeleceu um elo entre arte e ciência – que, na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> era Moderna,começam a se constituir como tais. Ao pintor-cientista cabe o aprimoramento do78 HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo: Ed. Perspectiva / Ed. Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, 1976. p. 4379 BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.18.80 Como forma de evitar o confronto com a Igreja, os filósofos,que já supunham o mundo infinito, evitavamusar este termo. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Editora ForenseUniversitária, 2006.81 PANOFSKY, E., op. cit., p.66.82 ARENDT, H., op. cit., p.262.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 62ato de <strong>olhar</strong>, <strong>da</strong>s t<strong>é</strong>cnicas de representação e a compreensão <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des deutilização do seu ponto de vista. A livre escolha de ponto de vista aponta para umaliber<strong>da</strong>de de ação, sugerindo tamb<strong>é</strong>m uma subjetivação, a possibili<strong>da</strong>de de umindividualismo e, conseqüentemente, de uma decisão autônoma. Em relação a estapossibili<strong>da</strong>de, cabem duas colocações. Em primeiro lugar, há que se compreendera id<strong>é</strong>ia de ascensão do sujeito. É claro que, como afirma Hauser, sempre houveindivíduos que se distinguiam uns dos outros, mas foi a partir <strong>da</strong> Renascença quecomeçaram a existir indivíduos cônscios do valor de sua individuali<strong>da</strong>de 83 . Emsegundo lugar, <strong>é</strong> importante aprofun<strong>da</strong>r a própria questão do ponto de vista, nosentido que este compreende uma visão corporifica<strong>da</strong> sob um determinado tempoe espaço e em relação ao objeto percebido. O aspecto do objeto sofre alterações deacordo com o ponto de vista. Deste modo, <strong>é</strong> certo que a escolha do ponto de vistaaparece como fun<strong>da</strong>mental para a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> imagem. Como compreender,então, uma obra que cria um jogo pleno de paradoxos como <strong>é</strong> o caso de LasMeninas? 84Figura 17. Las Meninas de Velazquez. Disponível em: (29/08/06)83 HAUSER, A. op. cit., p.3684 cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 19-. p. 17-33, SEARLE, J.op. cit., p. 247-258 e DAMISCH, Hubert. The origin of perspective. Cambridge, London: The MIT Press,1995. p. 425-432.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 63Las Meninas (Figura 17) utiliza rigorosamente a perspectiva, mas a aparenteprecisão <strong>da</strong> sua <strong>construção</strong> esconde uma armadilha que viola as própriasconvenções <strong>da</strong> perspectiva. A utilização <strong>da</strong> perspectiva implica na identi<strong>da</strong>deentre o ponto de vista do pintor e do observador <strong>da</strong> obra. Em Las Meninas estaregra <strong>é</strong> demoli<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r lugar a um jogo de apostas pela descoberta do“ver<strong>da</strong>deiro” ponto de vista do pintor. Ou seria o ponto de vista <strong>da</strong> obra? O pintor<strong>é</strong> representado no próprio quadro e olha para fora dele, na direção do observador,“nosso lugar” em relação à obra. Por outro lado, o ponto de vista do observadormostra-se ocupado: no reflexo do espelho, ao fundo <strong>da</strong> sala, vemos as duas figurasreais que parecem ser o alvo do estudo do pintor. Ao observador, seria <strong>da</strong>do oponto de vista do casal real? Mas, se <strong>é</strong> de fato o pintor quem produziu a obra, nãose encontraria ele neste ponto de vista?Al<strong>é</strong>m disso, em que medi<strong>da</strong> a liber<strong>da</strong>de de escolha de um ponto de vistapode ser mais significativa do que as regras que formalizam a atitude do <strong>olhar</strong>? Aperspectiva pode ser uma faca de dois gumes 85 , porque impõe ao fenômenoartístico as regras estáveis <strong>da</strong> matemática, ao mesmo tempo em que torna estefenômeno contingente ao indivíduo. Assim, se por um lado, as regras referem-seàs condições psicológicas e físicas <strong>da</strong> impressão <strong>visual</strong>, de outro lado, a utilizaçãodessas regras se submete à livre escolha de posicionamento do “ponto de vista” dosujeito, assinalando uma subjetivação e um jogo de paradoxos.85 cf. PANOFSKY, E. op. cit., p. 67.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 642.2.1. O jogo do real e do ilusório ou uma filosofia <strong>da</strong> falsa reali<strong>da</strong>deFigura 18. J-F. Niceron: anamorfose de uma cabeça, 1638.Retirado de BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magieartificielle des effets merveilleux. France: Olivier Perrin, 1969.p. 45.Os paradoxos <strong>da</strong> perspectiva tornam-se evidentes, com a utilização de seuspróprios preceitos, na anamorfose (do grego: ana, de novo e morphe, forma,transformação). Nova transformação? A mesma fórmula, a partir <strong>da</strong> qual aperspectiva se esforça por normatizar e racionalizar o visível, <strong>é</strong> utiliza<strong>da</strong> pelaanamorfose para sistematizar sua distorção. Os mesmos pontos que garantem a“cópia perfeita”, a partir <strong>da</strong> consideração de semelhança, permitem a ilusão. Aanamorfose estabeleceu- se como uma curiosi<strong>da</strong>de t<strong>é</strong>cnica, um jogo ótico, e fez-seinseparável de uma po<strong>é</strong>tica <strong>da</strong> abstração, constituindo-se em um mecanismoefetivo de produção de ilusões ópticas e uma filosofia <strong>da</strong> falsa reali<strong>da</strong>de. 86 Noauge de sua populari<strong>da</strong>de, a “parte bela e secreta <strong>da</strong> perspectiva” 87 era,geralmente, emprega<strong>da</strong> como forma de sugerir o valor simbólico a uma obra.86 BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses ou magie artificielle des effets merveilleux. France: OlivierPerrin, 1969. p. 5.87 Citado por Daniel Barbaro, em sua Pratica della Perspettiva, 1559 apud BALTRUSAITIS, J.op. cit., p.34.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 65Figura 19 - Os Embaixadores (Hans Holbein - 1533)Figura 20 – detalhe<strong>da</strong> caveiraA primeira utilização <strong>da</strong> anamorfose <strong>é</strong> atribuí<strong>da</strong> a Leonardo <strong>da</strong> Vinci 88 noano de 1485, embora a palavra tenha aparecido apenas no s<strong>é</strong>culo XVII. 89 A maiscomenta<strong>da</strong> utilização desta t<strong>é</strong>cnica se encontra no quadro Os Embaixadores, deHans Holbein do ano 1533 (Figura 19). O quadro <strong>é</strong> repleto de símbolosrelacionados ao quadrivium <strong>da</strong>s artes liberais (aritm<strong>é</strong>tica, geometria, astronomia emúsica). A justaposição dos vários objetos conotativos de relações entre ciência earte (dois globos, um astrolábio, tecidos com padrões geom<strong>é</strong>tricos, um alaúde elivros - possivelmente, dentre eles, algum tratado com o tema <strong>da</strong> perspectiva)compõe a cena. A própria forma de representação tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> eloqüente, incluindoo mais surpreendente símbolo: o de uma imagem alonga<strong>da</strong> e distorci<strong>da</strong> ao p<strong>é</strong> dosdois homens vestidos de forma suntuosa. Esta figura, quando observa<strong>da</strong> sobdeterminado ângulo, apresenta um crânio (Figura 20). Existem várias hipótesessobre o emprego <strong>da</strong> anamorfose nesta obra. Acredita-se que seu uso procuraevidenciar a inconstância <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, e a certeza <strong>da</strong> morte. Esse tipo depintura alegórica recebia a denominação de memento mori ou vanitas, quando não88 No desenho de um olho, incluído no Codex Atlanticus. Ver JAY, M. op. cit., p.48 e BALTRUSAITIS, J.op. cit. p.3689 BALTRUSAITIS, J. op. cit., p.5.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 66apresentava figuras humanas. Tamb<strong>é</strong>m existem relatos que sugerem o quadro tersido executado visando um posicionamento específico de onde – em determinadoponto – se poderia ver o crânio em perspectiva correta. 90 Baltrusaitis observa queo tratamento anamórfico <strong>da</strong>do ao crânio funciona sugerindo não uma, mas duascomposições, ca<strong>da</strong> uma com seu próprio ponto de vista, justapostas sobre omesmo quadro 91 . A utilização de uma mesma t<strong>é</strong>cnica produzindo duas e diferentesordens visuais sobre um único plano parece expressar de modo diferente a ordemespiritual e a material. Mas, por outro lado, se a caveira tivesse sido pinta<strong>da</strong> domesmo modo que os outros elementos do quadro, “sua conotação metafísica teriadesaparecido: se tornaria um objeto como os demais, uma simples parte de ummero esqueleto, pertencente a um homem que por acaso já teria morrido”. 92Figura 21. Waterfalls. M. C. Escher.Figura 22. Retirado de A treatise ofperspective. Or, the art of representing allmanner of objects' as they appear to the eye inall situations. ... sem referência à autoria deNiceron90 Veja BALTRUSAITIS, J. op. cit.. p.104-105. para a narrativa <strong>da</strong> instalação <strong>da</strong> pintura no palácio de Polisye sua mise em scène: “Em lugar do esplendor humano, ele [espectador, visitante] vê o crânio. Os personagense todo seus apetrechos científicos se desvanecem e em seu lugar surge o signo do Fim. A peça estátermina<strong>da</strong>”.91 Ibid. p.10492 BERGER, J. op. cit. p.93.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 67Embora a anamorfose, como descrita acima, tenha perdido sua populari<strong>da</strong>deno s<strong>é</strong>culo XVIII 93 , a produção de uma falsa reali<strong>da</strong>de utilizando precisão t<strong>é</strong>cnica <strong>é</strong>segui<strong>da</strong>mente observa<strong>da</strong> em outras obras que manipulam o jogo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>ilusão. M. C. Escher ficou conhecido por suas estruturas impossíveis: esca<strong>da</strong>s quesobem ou descem – dependendo de como são vistas – a água <strong>da</strong> cachoeira que fazo caminho de volta, realimentando o próprio fluxo (Figura 21). Gombrichconsidera que os artistas e cenógrafos do s<strong>é</strong>culo XX passaram a rejeitar os truquesde ilusão, o que raramente nos coloca em situações onde, de fato, o olho <strong>é</strong>enganado. 94 Provavelmente, Gombrich não chegou a ter contato com as ilusõescria<strong>da</strong>s pela computação gráfica, igualmente capaz de gerar reali<strong>da</strong>desperfeitamente inexistentes. Um usuário <strong>da</strong> computação gráfica, que não possuaconhecimentos de história <strong>da</strong> arte irá associar a visão anamórfica do crânio às suasferramentas de trabalho, surpreendendo-se com a sua observação em uma obra decinco s<strong>é</strong>culos. Por outro lado, em que medi<strong>da</strong> um <strong>olhar</strong> leigo em relação aodesenvolvimento <strong>da</strong> computação gráfica poderá reconhecer a origem num<strong>é</strong>rica deEva Byte (Figura 23)? Não obstante, uma outra questão se coloca: por que criaruma apresentadora virtual tão pareci<strong>da</strong> às apresentadoras de carne e osso? Talvezporque este seja o jogo <strong>da</strong> representação do real e do ilusório – com o qualbrincamos desde o s<strong>é</strong>culo XV - e ele só se coloca quando mantemos as regras e asreferências do “real”. Deste modo, a anamorfose parece expressar o outro lado do<strong>olhar</strong>, desenvolvido a partir <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de moderna, na medi<strong>da</strong> em queevidencia a possibili<strong>da</strong>de de uma interferência subjetiva capaz de subverter aspróprias regras <strong>da</strong>s quais se utiliza.93 JAY, M. op. cit. p.4894 GOMBRICH, E. H. op.cit. p.260.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 68Figura 23. Eva Byte. Apresentadoravirtual do Fantástico. Criação doDepartamento de Arte do Jornalismo,TV Globo, 2005.A partir de estudos sobre pintura e geometria dos s<strong>é</strong>culos XV e XVI, quecitam a anamorfose, Jurgis Bartrusaitis compreende a perspectiva anamórficacomo uma contraparti<strong>da</strong> <strong>visual</strong> <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> de Descartes. 95 Bartrusaitis comenta queDescartes freqüentava o convento dos Minimes de Paris - uma esp<strong>é</strong>cie de centrointelectual <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. Neste ambiente, Descartes encontrou alguns interlocutoresnas questões <strong>da</strong> óptica e <strong>da</strong> geometria como o padre Jean-François Niceron, quenunca chegou a conhecer pessoalmente. A Figura 18 <strong>é</strong> de uma <strong>da</strong>s obras deNiceron sobre a perspectiva. Bartrusaitis observa que por uma curiosacoincidência, no grupo dos Minimes, todos se acharam envolvidos em“perspectivas insólitas” e, de certa forma, todos tiveram algum tipo deaproximação com Descartes. As publicações contemporâneas de Descartes e dosreligiosos refletem um mesmo espírito e, de certa forma, uma mesma novafilosofia. Bartrusaitis sugere que dentre as id<strong>é</strong>ias comuns a esses autores,encontra-se a obsessão por mecanismos e cálculos que domina a perspectiva. 96Para Bartrusaitis <strong>é</strong> a perspectiva que sugere a Descartes a prova final <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s aparências do mundo físico: “ela não <strong>é</strong> um sistema de representação exata,mas uma mentira”. 97 To<strong>da</strong>s as demonstrações de Descartes que ratificam oembuste dos órgãos de percepção são atravessa<strong>da</strong>s pela mesma inquietude que seencontram formula<strong>da</strong>s nas Meditações: uma doutrina do conhecimento ondeintervêm as considerações sobre a visão <strong>da</strong>s coisas.95 BALTRUSAITIS, J. op. cit. p.61-70.96 Ibid. p.62.97 Ibid. p.69.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 69Figura 24. Sistema óptico doolho, Discours de la m<strong>é</strong>thodeplus la diptrique, lêsm<strong>é</strong>t<strong>é</strong>ores el la gêom<strong>é</strong>trie,Leiden, 1637.Em suas obras, Descartes discute a geração e manipulação de ilusõesópticas, evidenciando sua fascinação pela projeção de sombras e manipulação deefeitos perspectivos. 98 Na busca pela certeza ou pelo conhecimento direto,Descartes estabelece o m<strong>é</strong>todo <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> radical, de onde se fun<strong>da</strong> o argumentodo cogito. O filósofo observa que <strong>é</strong> possível duvi<strong>da</strong>r de tudo o que há no mundosensível. Os nossos sentidos podem nos enganar e nos conduzir a to<strong>da</strong> sorte dementiras e erros. Mesmo quando sonhamos, os sonhos podem parecer tão reaisquanto as nossas vivências quando acor<strong>da</strong>dos, de modo a não ser possívelencontrar garantias de que nossos pensamentos sejam ou não reais. Em outraspalavras, mesmo os nossos pensamentos podem nos conduzir a enganos. A únicacoisa <strong>da</strong> qual não podemos duvi<strong>da</strong>r <strong>é</strong> <strong>da</strong> própria dúvi<strong>da</strong>. A dúvi<strong>da</strong> garante aexistência do homem na medi<strong>da</strong> em que, para Descartes, a dúvi<strong>da</strong> <strong>é</strong> uma forma depensar. Deste modo, Descartes coloca-se como uma coisa pensante, ou rescogitans:[...] do fato mesmo de pensar em duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s outras coisas seguia-semuito evidentemente e certamente que eu existia; ao passo que, se tivesse paradode pensar, ain<strong>da</strong> que o resto do que imaginara fosse ver<strong>da</strong>deiro, eu não teria razãode crer que tivesse existido; compreendi assim que eu era uma substância cujaessência ou natureza consiste apenas em pensar, e que, para ser, não temnecessi<strong>da</strong>de de nenhum lugar nem depende de coisa material alguma. 9998 JUDOVITZ, Dalia. Vision, representation and technology in Descartes. p.65.99 DESCARTES, Ren<strong>é</strong>. Discurso do m<strong>é</strong>todo. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 70.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 70Os dois atributos essenciais do mundo, pensamento e extensão 100 , o queconhece e o que <strong>é</strong> conhecido, parecem aludir a uma relação entre o que observa eo que <strong>é</strong> observado. Massey reconhece como tentadora a criação de uma analogiaentre a perspectiva e o cartesianismo. 101 A noção de um sujeito que tudo vê e quetudo sabe, capaz de compreender racionalmente, e que se encontra situado nocentro <strong>da</strong> mat<strong>é</strong>ria quantifica<strong>da</strong>, sugere uma afini<strong>da</strong>de com a perspectiva,principalmente, se considerarmos os crit<strong>é</strong>rios visuais estabelecidos por Descartes,ou seja, a aceitação de id<strong>é</strong>ias que apareçam de forma clara e distinta. 102 Noentanto, a formulação de um “perspectivismo cartesiano” torna-se problemática namedi<strong>da</strong> em que Descartes rejeita a visão, assim como outras formas de apreensãodo mundo a partir dos sentidos. Para Descartes o sentido <strong>da</strong> visão não <strong>é</strong> capaz deassegurar a reali<strong>da</strong>de dos objetos, do mesmo modo que nem a imaginação nem ossentidos podem nos trazer nenhuma certeza sem a intervenção <strong>da</strong> razão. Por estesconceitos, paradoxalmente, a visão parece colocar-se não ao lado <strong>da</strong> clareza, masao lado <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>.O conceito de “perspectivismo cartesiano” <strong>é</strong> apresentado por Martin Jaycomo uma característica do regime escópico <strong>da</strong> era moderna. 103 Jay consideraDescartes como fun<strong>da</strong>dor do moderno paradigma <strong>visual</strong> e comenta seu tratado LaDioptrique. A invenção do telescópio atribuí<strong>da</strong> a Jacques M<strong>é</strong>tius - hoje sabemos,erroneamente – teria sido a pedra de toque <strong>da</strong> escritura de La Dioptrique, ondeDescartes procura demonstrar que a visão pode ser compreendi<strong>da</strong> a partir dom<strong>é</strong>todo dedutivo, baseado na existência de id<strong>é</strong>ias pr<strong>é</strong>-existentes na mente. Nestetexto, Descartes descreve com precisão a <strong>construção</strong> de aparatos ópticosdestinados à observação de objetos distantes. Se por um lado Descartes pareceapenas preocupar-se com o olho <strong>da</strong> mente, por outro ele se at<strong>é</strong>m ao estudo doórgão <strong>da</strong> visão a partir <strong>da</strong> dissecação de olhos de animais e do questionamento deseu funcionamento. Jay afirma que pode ser fácil <strong>olhar</strong> para trás e apontar100 Vale observar que, como caráter essencial dos corpos físicos, estes são dotados de três dimensões: altura,largura e profundi<strong>da</strong>de.101 MASSEY, Lyle. "Anamorphosis through Descartes or perspective gone awry.”Renaissance Quarterly 50.n4 (Winter 1997): 1148(42). InfoTrac OneFile. Thomson Gale. CAPES. 2 Aug.2006. .102 DESCARTES, R. op.cit. p.54.103 JAY, M. op. cit., p.69 et seq.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 71contradições nos conceitos de visão de Descartes, principalmente se foremconsiderados a partir de algumas conclusões equivoca<strong>da</strong>s do filósofo, como asobservações a respeito <strong>da</strong> luz ou do funcionamento <strong>da</strong> glândula pineal. Noentanto, para Jay, a contribuição cartesiana à dominância oculacentrista <strong>da</strong> eramoderna foi profun<strong>da</strong> e a maior fonte de influência encontra-se na própriaambigüi<strong>da</strong>de argumentativa de Descartes. Assim, se por um lado Descartes <strong>é</strong>aclamado pela filosofia racionalista, por outro, ele tamb<strong>é</strong>m encorajou conceitos devisão especulativos e empíricos. A própria exigência de uma visão “clara edistinta” pelo olho <strong>da</strong> mente não deixa de ser uma contradição na medi<strong>da</strong> em que,ao mesmo tempo, desqualifica a visão física e utiliza suas metáforas para abor<strong>da</strong>ra racionali<strong>da</strong>de. A tentadora ligação entre Descartes e a perspectiva se encontralonge de estabelecer conclusões definitivas. Para Bosi, por exemplo, Descartes“recortou <strong>da</strong> visão renascentista apenas o olho central e imóvel <strong>da</strong> perspectivageom<strong>é</strong>trica” de modo a estabelecer uma “visão ver<strong>da</strong>deira” . 104Para Panofsky, a pontuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> visão persp<strong>é</strong>ctica antecipa a concepçãoracional de extensão infinita de espaço encontra<strong>da</strong> em Descartes. 105 Mas Masseydiscor<strong>da</strong>, considerando que a associação entre o ponto de vista <strong>da</strong> perspectiva e osujeito cartesiano não se configura a partir de uma leitura acura<strong>da</strong> de Descartes. 106A autora não encontra sentido na utilização <strong>da</strong> perspectiva como metáfora para arelação entre a res cogitans e a res extensa. Segundo ela, mesmo que a rescogitans tenha se associado metaforicamente ao conceito perspectivo de sujeitocomo “ponto de vista”, Descartes nunca postulou a res cogitans em termos de umponto perspectivo fixo e tamb<strong>é</strong>m nunca subscreveu à noção de que a perspectivaapresenta a “semelhança” do mundo. A apreensão mental do mundo não deveriase basear no conceito de correspondência ou “semelhança” entre as imagens domundo e a compreensão do mundo pela mente. Nos Escritos Filosóficos,Descartes afirma que a mente pode compreender certos aspectos do mundoatrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> linguagem e de signos de caráter arbitrário:Devemos observar que em nenhum caso uma imagem deve assemelhar-se aoobjeto que representa em todos os aspectos, do contrário, não haveria distinçãoentre o objeto e sua imagem. É suficiente que uma imagem se assemelhe ao objetoem alguns poucos aspectos. [...] Deste modo, de acordo com as leis <strong>da</strong> perspectiva,104 BOSI, A. op. cit., p.76.105 PANOFSKY, E. op.cit., p.31-36.106 MASSEY, L. op.cit., p.3.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 72os gravadores representam círculos por ovais de forma melhor do que seutilizassem outros círculos. 107Em nosso ponto de vista, para al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de sincrônica, opensamento cartesiano e a perspectiva se encontram baseados sobre as mesmasinfluências sociais, atuando de forma semelhante sobre sujeitos - produtos <strong>da</strong>história. Al<strong>é</strong>m do que, as discussões que alternam a perspectiva ao longo dobinômio t<strong>é</strong>cnico-filosófico apresentam a i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua origem. De acordo comCristoforo Landino, no s<strong>é</strong>culo XV, a perspectiva era “parte filosofia e partegeometria”. 108 Analogamente, James Elkins considera que a perspectiva semprefoi “hermafrodita, parte convenção e parte invenção” 109 e deve ser pensa<strong>da</strong> comoum campo entre a matemática, o texto e a imagem. 1102.2.2. A convenção do “natural”A discussão pelo reconhecimento <strong>da</strong> perspectiva como uma convenção não<strong>é</strong> nova e em alguns casos se contrapõe em posicionamentos pouco claros de certosautores. Arnheim, por exemplo, reconhece que a perspectiva central surge comouma tendência do espírito europeu pela procura de uma base objetiva para arepresentação dos objetos visuais, “um m<strong>é</strong>todo independente <strong>da</strong>s idiossincrasiasdos olhos e <strong>da</strong> mão do desenhista” 111 . Mas, por outro lado, afirma que existemdiferentes soluções para o problema <strong>da</strong> representação de objetos tridimensionaisnum plano bidimensional: “ca<strong>da</strong> m<strong>é</strong>todo tem suas virtudes e suas desvantagens, eo que se prefere depende <strong>da</strong>s exigências visuais e filosóficas de uma <strong>é</strong>poca e lugarem particular”. 112 Contudo, a posição menos clara e mais polemica <strong>é</strong> a deGombrich. Este autor se opõe à id<strong>é</strong>ia de que a “perspectiva <strong>é</strong> mera convenção enão representa o mundo tal como parece”. 113 Afirma que “o que <strong>é</strong> convenção,107 Id.108 Landino, 1529 apud ELKINS, James. The Poetics of Perspective. Ithaca and London: Cornell UniversityPress, 1994. p. 263.109 ELKINS, J. op. cit., p. 263.110 Ibid. p. 265.111 ARNHEIM, R. op. cit. p. 271.112 Ibid. p. 105.113 GOMBRICH, E. H. op.cit. p. 269.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 73embora convenção útil, cômo<strong>da</strong>, <strong>é</strong> que gostamos de pintar em superfíciesplanas” 114 e quenunca será demais insistir em que a arte <strong>da</strong> perspectiva visa a uma equação correta:pretende que a imagem pareça com o objeto e o objeto com a imagem. Tendoalcançado esse objetivo, ela faz a mesura de praxe e se retira. 115De forma menos objetiva, não abor<strong>da</strong>ndo diretamente a questão doconvencionalismo <strong>da</strong> perspectiva, Gombrich sugere que o artista não podetranscrever o que vê. “Pode apenas traduzi-lo para os termos do meio queutiliza”. 116 Mitchell considera que Gombrich está comprometido com a distinçãonatureza-convenção, mas aponta algumas insinuações de mu<strong>da</strong>nça de pensamentoa partir <strong>da</strong> influência de trabalhos de outros estudiosos 117 . Segundo Mitchelll, emtrabalhos posteriores à Arte e Ilusão, Gombrich afirmaria a concordância comalguns historiadores <strong>da</strong> arte com a id<strong>é</strong>ia de que, no passado, certos estilosimag<strong>é</strong>ticos eram freqüentemente construídos com a aju<strong>da</strong> de convenções quedeviam ser aprendi<strong>da</strong>s. Mitchell conclui que to<strong>da</strong>s as imagens se encontram nocampo <strong>da</strong> convenção, embora a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> convenção possa variar (“realismo”e inspiração religiosa, por exemplo). Natureza e convenção não seriam antit<strong>é</strong>ticas,mas “natureza” pode ser um <strong>da</strong>do em relação a um certo tipo de convenção. Oproblema, apontado por Mitchell, <strong>é</strong> que Gombrich considera a “naturali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>representação ilusionista, a partir <strong>da</strong> invenção <strong>da</strong> perspectiva, como uma ver<strong>da</strong>deliteral 118 .Um pouco antes de Gombrich, Erwin Panofsky procurava situar aperspectiva na formalização de um código de representação do espaço próprio deca<strong>da</strong> período histórico. Na sua compreensão, a perspectiva descrita por Albertiseria uma convenção, uma solução possível 119 . Em se tratando de convenção, aimagem em perspectiva, como qualquer outra, deve ser interpreta<strong>da</strong>; e ahabili<strong>da</strong>de para fazê-lo deve ser adquiri<strong>da</strong>. Afinal, não se pode ter a expectativa deque o <strong>olhar</strong> acostumado à pintura oriental possa entender imediatamente umapintura em perspectiva 120 . Em outras palavras, falamos de uma prática, atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>114 Ibid. p. 268.115 Ibid. p. 272.116 Ibid. p. 39.117 MITCHELL, W. J. T. Iconology… p.80. et. seq.118 Ibid. p.83.119 PANOFSKY, E. op. cit. passim.120 GOODMAN, N. Languages… p. 14.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 74qual pode-se mesmo “acostumar” o <strong>olhar</strong> a imagens distorci<strong>da</strong>s ou projeta<strong>da</strong>ssobre superfícies irregulares. Deste modo, pode-se concluir que a representaçãorealística não depende de imitação, ilusão ou informação, mas do que foiinculcado. Ou, como afirma Goodman, se a representação <strong>é</strong> uma questão deescolha e a precisão uma questão de informação, então realismo <strong>é</strong> uma questão dehábito 121 . No entanto, temos to<strong>da</strong> sorte de hábitos, alguns facilmente dispensáveis,enquanto outros funcionam como uma “segun<strong>da</strong> natureza” 122 , mas não <strong>é</strong> isso quejustifica a hegemonia do conceito de reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> representação que <strong>é</strong> indicadopela perspectiva. Um dos maiores defensores <strong>da</strong> id<strong>é</strong>ia de convencionalismo <strong>da</strong>perspectiva, John Berger, afirma:A convenção <strong>da</strong> perspectiva, que só se aplica à arte europ<strong>é</strong>ia e que se estabeleceupela primeira vez no início <strong>da</strong> Renascença, centraliza tudo no olho de quem vê. Écomo um facho de luz de um farol – só que ao inv<strong>é</strong>s de a luz se mover para fora,são as aparências que se movem para dentro. As convenções denominaram aquelasaparências de reali<strong>da</strong>de. 123A perspectiva pode ser considera<strong>da</strong> um procedimento estabelecido porconvenção para a representação do mundo visível, mas não <strong>é</strong> simplesmente umprocedimento, ela ocupa uma posição privilegia<strong>da</strong>. Mitchell considera que oconceito de imagem como “signo natural” <strong>é</strong> como se fosse um ídolo <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>ocidental e, como tal, deve certificar sua própria eficácia a partir do contraste comfalsos ídolos de outras tribos 124 . A idolatria ocidental do signo natural disfarça suaprópria natureza sob uma capa de iconoclasmo ritual, uma exigência de quenossas imagens, ao contrário “<strong>da</strong>s deles”, seja constituí<strong>da</strong> por um racionalismodesmistificado.No entanto, para nossa análise, mais importante do que discutir a capaci<strong>da</strong>de<strong>da</strong> perspectiva reproduzir a reali<strong>da</strong>de - que para Goodman <strong>é</strong> nenhuma (“afirmarque uma pintura parece com a natureza, apenas significa que ela parece com omodo em que a natureza <strong>é</strong> geralmente pinta<strong>da</strong>” 125 ) <strong>é</strong> compreender o efeito destainvenção, ou seja, de que modo a id<strong>é</strong>ia <strong>da</strong> perspectiva pôde convencer umacivilização inteira <strong>da</strong> sua infabili<strong>da</strong>de enquanto m<strong>é</strong>todo de representação. Paraal<strong>é</strong>m de um sistema de representação, a perspectiva assumiu-se como um sistema121 Ibid. p. 38.122 SNYDER, J. op. cit. p. 223.123 BERGER, J. op. cit. p.18.124 MITCHELL, T. Iconology… p.90.125 GOODMAN, N. Languages… p.39


O OLHAR INOCENTE É CEGO 75de produção automática e mecânica <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des do mundo material e mental. 126Para Mitchell, o maior índice <strong>da</strong> hegemonia <strong>da</strong> perspectiva se encontra no modocomo sua artificiali<strong>da</strong>de <strong>é</strong> nega<strong>da</strong> em prol de uma aclamação pela sua naturali<strong>da</strong>deem representar a “forma como as coisas parecem”, “o modo como vemos” ou “ascoisas como realmente são”. 127 Associa<strong>da</strong> e estimula<strong>da</strong> pela ascendênciaeconômica e política <strong>da</strong> Europa ocidental, a perspectiva conquistou o mundo <strong>da</strong>representação sob o rótulo <strong>da</strong> razão, <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de e, segundoMitchell, nunca mais foi possível demonstrar a existência de outros modos derepresentar o que “realmente vemos” e de abalar a convenção de que esse tipo deimagem estabelece uma esp<strong>é</strong>cie de identi<strong>da</strong>de entre a visão humana e o espaçoexterior 128 .Figura 25. Quadro do filme “O triunfo <strong>da</strong>vontade” de Leni Riefenstahl, 1936.Parece que a invenção <strong>da</strong> fotografia reforçou a convicção <strong>da</strong> existência deum modo de representação natural. É interessante observar o modo como aimagem fotográfica acolhe o epíteto de imagem realística embora nem to<strong>da</strong>fotografia o seja. Esta convicção <strong>é</strong> grandemente reforça<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> conexãorelacional ou indicial, de acordo com a abor<strong>da</strong>gem semiótica. Em outras palavras,a câmera captura “traços” do objeto que se encontra fora dela, a partir de umarelação presencial que os une. Deste modo, “a imagem copia a reali<strong>da</strong>de”.Contudo, há a questão <strong>da</strong> manipulação <strong>da</strong> imagem. Questão que, aliás, sedesdobra em duas. De um lado, o que poderíamos tratar como uma manipulaçãonão necessariamente forja<strong>da</strong>, em outras palavras, sem intenção de falsificação.Neste aspecto encontramos, na fotografia, as escolhas de ponto de vista, do ângulo<strong>da</strong> lente, <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de e tipo de impressão – se for este o caso. Por outro lado, há amanipulação que modifica ou distorce e a que subtrai ou acrescenta elementos126 MITCHELL, T. op. cit.. p. 37.127 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 76onde eles nunca estiveram. É claro que a manipulação <strong>da</strong>s imagens não <strong>é</strong>exatamente uma novi<strong>da</strong>de. No primeiro grupo de “manipulações”, encontramospor exemplo a fotografia de Hitler no Triunfo <strong>da</strong> vontade (Figura 25), tira<strong>da</strong>debaixo, mostrando o c<strong>é</strong>u acima <strong>da</strong> cabeça de um líder que, deste modo, pareciamais alto e heróico 129 . Do outro lado, encontram-se os exemplos anedóticos <strong>da</strong>retira<strong>da</strong> <strong>da</strong>s imagens de “inimigos do comunismo” de fotos tira<strong>da</strong>s em <strong>é</strong>pocas emque estes ain<strong>da</strong> não eram considerados inimigos, como foi o caso de Trotsky,dentre outros (Figura 26 e Figura 27).Figura 26. Lênin e Trotsky na celebração do segundo aniversário <strong>da</strong> Revolução Russa. À direita, amesma foto, sem Trotsky. Imagens obti<strong>da</strong>s no site Newseum, the interactive museum of news. Disponível em: (26/11/06).Figura 27. Fotografia de 1940. Stalin, acompanhado do jovem comissário Nikolai Yezhov, removido<strong>da</strong> fotografia à direita. Imagens obti<strong>da</strong>s no site Newseum, the interactive museum of news. . Disponível em: (26/11/06).Apesar <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> manipulação <strong>da</strong>s imagens, que pode ser umaexpressão nova, mas não <strong>é</strong> uma nova id<strong>é</strong>ia, continua-se a fotografar porque seacredita que a fotografia funcione como um testemunho <strong>visual</strong> de algum evento.Diga-se a propósito que, na <strong>é</strong>poca atual, a possibili<strong>da</strong>de de manipulação de128 Id.129 BURKE, Peter. Eyewitnessing: the uses of images as historial evidence. New York: Cornell UniversityPress, 2001. p.73.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 77imagem fotográfica deve funcionar como lembrete <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de de <strong>construção</strong><strong>da</strong> imagem e, conseqüentemente, <strong>da</strong> existência de uma gama de possibili<strong>da</strong>des de“leitura” de qualquer imagem. Deste modo, a id<strong>é</strong>ia que reforça a “perfeitaanalogia” entre objeto e sua imagem indicial pode nos levar à compreensão <strong>da</strong>capaci<strong>da</strong>de expressiva de um fotógrafo <strong>cego</strong> (Figura 28), mas jamais admitir aexistência de um pintor realista <strong>cego</strong>.Figura 28. Fotos de Evgen Bavcar . . Disponível em: (1/08/06).No entanto, não seria, do mesmo modo, a fotografia uma convenção <strong>visual</strong>?Evidências encontra<strong>da</strong>s no registro de alguns antropólogos que reportam a nãofamiliari<strong>da</strong>de de grupos pesquisados em relação à fotografia, e sua conseqüentedificul<strong>da</strong>de em identificar as figuras representa<strong>da</strong>s 130 , corroboram a nossaconvicção de que a maior parte <strong>da</strong>s relações trava<strong>da</strong>s com as imagens <strong>é</strong> ancora<strong>da</strong>em algum tipo de convenção. O problema não nos parece ser a convenção em si,mas o privil<strong>é</strong>gio assumido por uma convenção que esconde a sua origem, como <strong>é</strong>o caso <strong>da</strong> perspectiva ou, atualmente, a fotografia e as imagens jornalísticas, porexemplo.A questão <strong>da</strong> convenção <strong>da</strong> perspectiva <strong>é</strong> suplanta<strong>da</strong> por William Ivins emsua obra seminal On the rationalizadion of sight. Sem ater-se propriamente àsdiscussões sobre a questão convencional evidencia<strong>da</strong> por essa t<strong>é</strong>cnica, Ivinsapresenta argumentos originais que não deixam dúvi<strong>da</strong> em relação a este tema. Oautor, que foi o primeiro curador de gravuras do Metropolitan Museum of Art,compõe suas observações, não exatamente do ponto de vista <strong>da</strong> história <strong>da</strong> artemas, como sugere Manovitch, <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> 131 , que se preocupa com osaspectos <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de ligados à <strong>construção</strong>, simbolização e imaginação <strong>da</strong>s130 ARNHEIM, R. op. cit. p.37.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 78diversas formas de representação imag<strong>é</strong>tica 132 . Para Ivins, o mais importanteevento ocorrido durante a Renascença foi a emergência <strong>da</strong>s id<strong>é</strong>ias que conduziramà racionalização do <strong>olhar</strong> 133 . De acordo com o autor, o esforço na direção <strong>da</strong>racionalização, traduzido pela normatização atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> perspectiva em suasprimeira expressões na Itália, França e Alemanha, pode ser considerado nãoapenas mais importante do que a que<strong>da</strong> de Constantinopla, a invenção do tipomóvel na imprensa, a descoberta <strong>da</strong> Am<strong>é</strong>rica, a Reforma ou a Contra Reforma,mas como um fator capaz de influenciar os demais eventos aos quais se atribui osurgimento <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna.Ivins desenvolve seus conceitos a partir <strong>da</strong> demonstração <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de deexistência de um sistema de símbolos capaz de externar o que <strong>é</strong> apreendido peloscinco sentidos, e que contasse com regras e gramática próprias, queestabelecessem as relações entre eles. Deste modo, a ausência desses símbolos oude sua gramática dificultaria a evolução do pensamento. Analogamente, umsímbolo que não pudesse ser exatamente duplicado ou que sofresse modificaçõesde sentido ao longo de sua repetição tamb<strong>é</strong>m seria de pouca utili<strong>da</strong>de. Comotamb<strong>é</strong>m acabam sendo de uso limitado e de pouco valor para a racionalização,certos sistemas de símbolos incapazes de seguir esquemas lógicos, seja na suainter-relação e combinação, seja na sua correspondência com fatores externos.Ain<strong>da</strong>, segundo Ivins, no início <strong>da</strong> história humana, os homens já haviamdescoberto, na sua habili<strong>da</strong>de de produzir imagens, um m<strong>é</strong>todo de simbolizaçãode sua consciência <strong>visual</strong>. Diferentemente dos símbolos puramente convencionais,os símbolos pictóricos deveriam ser capazes de produzir enunciados acurados eprecisos mesmo que – a eles próprios – faltassem definições. Mas, em lugar disso,a imagem pictórica permaneceu por muito tempo como a mais ineficiente classede símbolos. Ivins aponta duas grandes razões para essa situação: em primeirolugar, a duplicação exata de uma imagem era algo muito difícil e, em segundolugar, não havia nenhuma regra ou esquema combinatório que garantisse a relaçãológica dentro do sistema de símbolos pictóricos ou, ain<strong>da</strong>, uma lógica recíproca de131 Veja a associação entre Ivins e <strong>visual</strong> culture em MANOVITCH, Lev. The Mapping of Space: Perspective,Ra<strong>da</strong>r, and 3-D Computer Graphics. http://www.manovich.net/TEXT/mapping.html. Acesso em 2 de agostode 2006 às 10:19h.132 Manovitch utiliza o termo <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> aos se referir às preocupações com as t<strong>é</strong>cnicas e tecnologias derepresentação <strong>visual</strong> disponíveis em uma socie<strong>da</strong>de em determinado período, e o papel que desempenham naformulação de diversos aspectos desta socie<strong>da</strong>de. Id.133 IVINS, W. M. op. cit., p.7 et seq.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 79correspondência entre a representação pictórica <strong>da</strong>s formas dos objetos e alocalização desses objetos no espaço. Ao final do s<strong>é</strong>culo XIV, assim se encontravaa capaci<strong>da</strong>de do homem para simbolizar sua visão <strong>da</strong> natureza. A esta situaçãopode ser atribuí<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ciência natural clássica e medieval. Nofinal do s<strong>é</strong>culo XIV ou no início do XV, “algu<strong>é</strong>m em algum lugar <strong>da</strong> Europacomeçou a fazer gravados de madeira”. 134 Inicialmente, a gravura em madeira erautiliza<strong>da</strong> apenas para poupar trabalho na produção de imagens sagra<strong>da</strong>s. No finaldo s<strong>é</strong>culo XV, as gravuras passaram tamb<strong>é</strong>m a ser produzi<strong>da</strong>s a partir do entalheem metal. A impressão de figuras permitiu, pela primeira vez, a duplicação exatade símbolos pictóricos.A invenção <strong>da</strong> gravação de figuras <strong>é</strong> considera<strong>da</strong> por Ivins como um dosmais importantes eventos <strong>da</strong> história do pensamento ocidental. 135 Fez-seacompanhar por um outro evento sem precedentes que, na opinião deste autor,precisou de um certo tempo para ter suas implicações reconheci<strong>da</strong>s: a descobertado esquema de perspectiva de Alberti. Para Ivins, a perspectiva pode ser vistacomo um meio prático de garantir uma relação m<strong>é</strong>trica recíproca entre as formasdos objetos, como definidos a partir de sua localização no espaço e suarepresentação pictórica. Se isso parece importante para a produção de imagens, <strong>é</strong>ain<strong>da</strong> mais importante para o pensamento em geral. De acordo com Ivins, oesquema <strong>da</strong> perspectiva estabeleceu uma relação lógica dentro do sistema desímbolos empregado e a correspondência recíproca entre a representação pictóricados objetos e suas formas localiza<strong>da</strong>s no espaço. Deste modo, as característicasmais marcantes <strong>da</strong> representação pictórica ocidental desde o s<strong>é</strong>culo XIV têm sido,de um lado, seu crescente naturalismo e, de outro, sua extensão lógica ematemática. Ain<strong>da</strong> segundo Ivins, o grande desenvolvimento na ciência e nastecnologias ocorridos a partir do Renascimento deve-se à combinação destas duast<strong>é</strong>cnicas: a perspectiva e a gravura em madeira. Como exemplo, ele apresenta asdificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s pelos antigos gregos em seus estudos de botânica namedi<strong>da</strong> em que não contavam com um sistema eficiente para duplicação do queera <strong>visual</strong>mente observado, apenas o emprego <strong>da</strong>s palavras 136 . Deste modo, oscampos onde os gregos obtiveram grandes avanços foram a geometria e a134 Ibid., p.9.135 Id.136 IVINS Jr., William M. Prints and Visual Communication. Cambridge: The MIT Press, 1973. p.1-20.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 80astronomia, na medi<strong>da</strong> em que, para o primeiro as palavras são suficientes e parao segundo, qualquer noite clara oferece uma imagem invariante que pode sercompartilha<strong>da</strong>.Figura 29. AndreasVesalius De humanicorporis fabrica libriseptem. Basileae : Exofficina. Oporini, 1543.Figura 30. Página do livro. Andreas Vesalius. De humani corporisfabrica libri septem. Basileae : Ex officina I. Oporini, 1543.Copyright © 2006 University of Leeds Library/Em 1543, Vesalius e John of Calcar produziram o primeiro estudocompletamente ilustrado de anatomia, ou seja, a primeira “gramática” <strong>da</strong> figurahumana com definições exatas de ossos, músculos e órgãos, atrav<strong>é</strong>s de imagensque permaneceram idênticas ao longo de to<strong>da</strong> a edição. Neste momento, graças àutilização de m<strong>é</strong>todos que permitiram a duplicação exata de símbolos pictóricoslogicamente organizados, a descrição cientifica inicia uma grande aceleração,propiciando condições para que a classificação cientifica se desenvolvesse. Aextensão dos campos de uso dos símbolos pictóricos, que podem ser precisamenteduplicados e seu conjunto de regras, produziram um efeito não apenas sobre oconhecimento, mas tamb<strong>é</strong>m sobre o pensamento. Em outras palavras, para Ivins, aimplementação desses princípios e dessa t<strong>é</strong>cnica possibilitou o início <strong>da</strong>racionalização do <strong>olhar</strong> - que pode ser considerado como o mais importanteevento <strong>da</strong> Renascença.As considerações de Ivins são de valor inestimável. Em primeiro lugar, noschama a atenção o seu enfoque a partir <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, que valoriza a<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de, contextualizando-a no mundo ocidental. Se hoje <strong>é</strong> lugar comum falarsobre uma socie<strong>da</strong>de <strong>visual</strong>, esquece-se de dizer que ela foi estrutura<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>influência <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de sobre o pensamento. A nossa historici<strong>da</strong>de logocentrica


O OLHAR INOCENTE É CEGO 81manteve ofusca<strong>da</strong>, durante anos, as evidências de acontecimentos de extremaimportância para a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de, como o desenvolvimento <strong>da</strong> perspectiva e seusdesdobramentos na constituição do pensamento ocidental.O caráter mecânico <strong>da</strong> perspectiva atrav<strong>é</strong>s de sua capaci<strong>da</strong>de de organizar omundo e sua intenção de representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de permitiu a emergência deuma consciência instrumental, desejosa de medir e enquadrar tudo e de traduzir asreali<strong>da</strong>des por quanti<strong>da</strong>des num<strong>é</strong>ricas. A perspectiva apresenta o mundo prontopara ser dominado, consumido, colonizado – o mundo originado no olho doespectador 137 . Al<strong>é</strong>m do que, o rápido e influente avanço <strong>da</strong> perspectiva deve-se,principalmente, à sua própria natureza. Apesar de caracteristicamente pertencenteao universo <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> ocidental ela foi velozmente dissemina<strong>da</strong> por todo oplaneta por duas razões principais. Uma vez que se aprende a “ver” com aperspectiva, esta forma de <strong>olhar</strong> torna-se inerente ao sujeito (<strong>da</strong>í o sentimento detrata-se de algo “natural”). Em segundo lugar, uma vez assimila<strong>da</strong>s e segui<strong>da</strong>s assuas instruções, os efeitos prometidos são obtidos. Com aponta Andrew, autilização desse aparato e sua disseminação são comparáveis ao emprego dotelescópio ou <strong>da</strong> arma de fogo. 138 No entanto, não <strong>é</strong> nossa intenção contestar aimportância dos diversos eventos <strong>da</strong> aurora <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna, muito menosretirar <strong>da</strong> invenção <strong>da</strong> imprensa a sua influência nas mu<strong>da</strong>nças subseqüentes.Desejamos ampliar a visão sobre a extensão dos diversos eventos e inventos doperíodo, de modo a incluir as modificações gera<strong>da</strong>s pelos aparatos <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>dedesenvolvidos no renascimento e suas conseqüências evidentes, mas nem semprediscuti<strong>da</strong>s, sobre o desenvolvimento posterior do campo do design.Mais do que necessária, as convenções têm-se mostrado fun<strong>da</strong>mentais parao campo do design. Do contrário, como poderíamos esperar que os mapaspossibilitassem a orientação espacial <strong>da</strong>s pessoas ou, ain<strong>da</strong>, como seria possívelanalisar obras artísticas e arquitetônicas ou estilos pictóricos a partir de imagens?A convenção nos permite tratar uma imagem como signo de um objeto, comosubstituto do objeto que se encontra representado.Não obstante, se a aceitação de uma convenção como convicção, como <strong>é</strong> ocaso <strong>da</strong> perspectiva, pode ter limitado outros desenvolvimentos expressivos, soboutros aspectos essa instituição convencional mostrou-se fun<strong>da</strong>mental para o137 MANOVITCH, L. op. cit.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 82posterior surgimento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des liga<strong>da</strong>s à produção de artefatos, dentre elas opróprio design. Arnheim já havia identificado esta ligação, mas de formaassustadora:Desde a Renascença o engodo <strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de mecânica tem sempre tentado a arteeurop<strong>é</strong>ia, especialmente na produção do padrão medíocre para consumo de massa.A velha noção de ‘ilusão’ como ideal artístico tornou-se uma ameaça ao gostopopular com o advento <strong>da</strong> revolução industrial. 139Na <strong>é</strong>poca atual, as questões <strong>da</strong> “fideli<strong>da</strong>de mecânica” ou do engodo realistapermanecem presentes. Um exemplo que em tudo se aproxima <strong>da</strong> citação deArnheim pode ser apontado nos filmes de ação “realistas” de Hollywood e seusefeitos especiais. Distancia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> arte moderna, mas próximas do design, muitascaracterísticas <strong>da</strong> perspectiva, praticamente como aparecem na descrição deAlberti, seguem sendo utiliza<strong>da</strong>s em nossos dias, seja em sua forma pura – emdesenhos à mão e ilustrações – ou em aplicações fotográficas como cinema,televisão e computação gráfica. Em outras palavras, não há dúvi<strong>da</strong> que o modo“racional” de ver a imagem “objetiva” e “ver<strong>da</strong>deira” estendeu-se <strong>da</strong> Renascençaat<strong>é</strong> a <strong>é</strong>poca atual com um deslocamento no s<strong>é</strong>culo XIX, quando sua soberania <strong>é</strong>transferi<strong>da</strong> primeiramente para a fotografia, depois para o cinema, a TV e,finalmente, a computação gráfica.2.3. A óptica entre o entretenimento, a ciência e a metáforaUma breve consulta a Encylopaedia Britannica or a dictionary of arts,sciences, &c. On a plan entirely new, segun<strong>da</strong> edição, publica<strong>da</strong> em 10 volumesem Edinburgh entre os anos 1778-1783, nos permite traçar algumas consideraçõesem relação aos aparatos do <strong>olhar</strong>, desenvolvidos na Renascença. Neste dicionário,a câmera escura aparece liga<strong>da</strong> à dióptrica enquanto a perspectiva se acha nocampo <strong>da</strong> óptica. Se, de certa forma, a câmera escura estabelece uma relação coma luz, onde os raios do sol são “<strong>visual</strong>izados”, encaminhando as imagens para oolho do observador, a perspectiva se encontra envolvi<strong>da</strong> em uma operação onde os“raios” saem do olho do observador, ou seja, de dentro para fora, para “encontrar”pontos no objeto observado. Diga-se a propósito, que a câmera escura138 ANDREW, J. Dudley. Concepts in film theory. Oxford: Oxford University Press, 1984. p. 30-31.139 ARNHEIM, R. op. cit., p.273.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 83permaneceu por muito tempo, at<strong>é</strong> o s<strong>é</strong>culo XIX, como modelo do funcionamento<strong>da</strong> visão, de acordo com este texto do s<strong>é</strong>culo XVIII:Os raios de luz que partem dos objetos exteriores, após entrarem na pupila eatravessarem o humor cristalino [...] prosseguem para a retina que se encontra nofinal do olho [...]. A conseqüência disso <strong>é</strong> que, a alma, por meios at<strong>é</strong> agora para nósdesconhecidos, recebe a imediata inteligência dos raios e passa a ver os objetos.Mas, esta grande operação <strong>da</strong> natureza, a descoberta que foi reserva<strong>da</strong> para o nossotempo, poderia ter permanecido como uma curiosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> física se não tivesse sidocoloca<strong>da</strong> a serviço do pintor. A máquina construí<strong>da</strong> para este propósito <strong>é</strong>constituí<strong>da</strong> por lentes e um espelho dispostos [...] de tal modo que a imagem possaser contempla<strong>da</strong> sobre uma folha limpa de papel. Este olho artificial, chamado decâmera óptica ou escura [...] apresenta uma imagem de inexplicável força e brilho.Para não falar na exatidão de sua perspectiva e do claro-escuro. 140No entanto, apesar do afastamento no campo <strong>da</strong> física, as t<strong>é</strong>cnicas sugeri<strong>da</strong>spela perspectiva e, tamb<strong>é</strong>m, pela câmera escura aparecem relaciona<strong>da</strong>s, de formasemelhante, na ativi<strong>da</strong>de artística, como <strong>é</strong> o caso do verbete pintura na mesmaenciclop<strong>é</strong>dia <strong>da</strong> citação acima. Apesar disso, a relação com a produção deimagens não se encontra na origem do aparato <strong>da</strong> câmera escura.O princípio pelo qual a luz direta ou refleti<strong>da</strong> por um objeto se insereatrav<strong>é</strong>s de uma pequena abertura em uma caixa ou quarto escuro produzindo umaimagem inverti<strong>da</strong> era conhecido desde a antigui<strong>da</strong>de e foi muito utilizado para aobservação de eclipses solares. Entre o s<strong>é</strong>culo X e o final do s<strong>é</strong>culo XV aformação de imagens por este processo foi estu<strong>da</strong><strong>da</strong> pela filosofia natural árabe elatina e colaborou para a <strong>construção</strong> de uma teoria <strong>da</strong> visão que serviu de basepara a invenção <strong>da</strong> perspectiva nos termos em que ela <strong>é</strong> descrita por Alberti em DePictura. No entanto, não se encontram evidências de que os estudos deste períodoapontassem para a utilização do fenômeno na produção de imagens. 141 Naver<strong>da</strong>de, os filósofos naturalistas nem mesmo se referiam à “imagem”, mas aosraios de luz que passavam atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> abertura, incidindo sobre a superfícieposterior a ela. 142 O nosso <strong>olhar</strong> contemporâneo, com o conhecimento que temosdo funcionamento do olho e <strong>da</strong> câmera fotográfica, considera uma ligaçãoautomática entre estes “efeitos visuais” e a produção pictórica. Mas, essa relaçãonão seria estabeleci<strong>da</strong> pela mente medieval e assim, devemos situar uma distinção140 Encyclopædia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new: ... The secondedition; greatly improved and enlarged. Illustrated with above two hundred copperplates. ... Vol. 8.Edinburgh, 1778-83. 10 vols. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group.http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO141 SNYDER, J. op. cit., p.231.142 Ibid., p.232.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 84entre a observação do fenômeno empírico realiza<strong>da</strong> ao longo de vários s<strong>é</strong>culos e a<strong>construção</strong> de um aparato relacionado à produção de imagens. É possível quetenha sido necessário que o conceito de perspectiva, com sua proposição de<strong>construção</strong> de imagem realística, estivesse firmemente estabelecido para que essefenômeno (pinhole image) pudesse ser associado a um artefato. Al<strong>é</strong>m disso, acriação de aparatos (como apresentados na gravura de Dürer, Figura 6) para fixaro ponto de observação tamb<strong>é</strong>m pode ter tido alguma influência na concepção <strong>da</strong>câmera escura. Estes fatores podem ter “preparado” o olho renascentista paraampliar a sua relação com as imagens. Os princípios <strong>da</strong> perspectiva na <strong>construção</strong><strong>da</strong> figura realística, sua delineação acura<strong>da</strong> dos objetos e seu uso coerente de luz esombra precisariam estar profun<strong>da</strong>mente ancorados no <strong>olhar</strong> moderno para que acâmera escura pudesse surgir como aparato. Todos esses aparatos do <strong>olhar</strong>parecem sugerir uma mecanização do sentido. Ou como afirma Snyder, “oproblema dos pintores pós-renascentistas era obter uma máquina que produzisseuma imagem como a de suas pinturas”. 143A distância temporal entre os eventos <strong>da</strong> perspectiva e <strong>da</strong> câmera escurapode ser autentica<strong>da</strong> pela observação <strong>da</strong>s <strong>da</strong>tas onde eles aparecem citados. Defato, o tratado de Alberti <strong>é</strong> de 1435, mas a primeira publicação que faz menção àcâmera escura <strong>é</strong> de 1521. 144 A utilização de uma lente na abertura do aparato sóaparece descrita em texto de 1550, embora a invenção <strong>da</strong> câmera escura tenhasido atribuí<strong>da</strong>, posteriormente, ao napolitano Giovanni Battista della Porta. É noseu livro, Magia Naturalis de 1558, onde pela primeira vez aparece a descrição <strong>da</strong>câmera escura com finali<strong>da</strong>des pictóricas. 145 Entre os trabalhos de Alberti e o dedella Porta passaram-se mais de um s<strong>é</strong>culo.143 Id.144 Hockney sugere o seu uso a partir de 1430. Confira HOCKNEY, David. O conhecimento secreto –redescobrindo as t<strong>é</strong>cnicas perdi<strong>da</strong>s dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 13.145 Aparentemente, Della Porta não visava às finali<strong>da</strong>des artísticas, na medi<strong>da</strong> em que sua obra <strong>é</strong> dirigi<strong>da</strong> aamadores, que não sabiam desenhar. Veja SNYDER, J. op. cit., p. 233.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 85Figura 31. Câmera escura de SirJoshua Reynolds, manufatura<strong>da</strong> naInglaterra entre 1760-1780. Retiradode Science & Society Picture Library,(29/08/06).Figura 32. Mesmo modelo <strong>da</strong>figura anterior, fechado. Retirado(29/08/06).Figura 33. Figura de Ars Magna Lucis Et Umbrae, porAthanasius Kircher em 1646. Demonstração de utilizaçãode uma lente entre uma tela e um espelho com inscrições,que pode ter levado ao nascimento <strong>da</strong> lanterna mágica.Retirado de Science & Society Picture Library, (29/08/06).A câmera escura foi segui<strong>da</strong>mente emprega<strong>da</strong> como modelo para a visãohumana por diversos autores, pelo menos at<strong>é</strong> o s<strong>é</strong>culo XVIII, mas foi Keplerquem explicou a inversão <strong>da</strong> imagem na retina 146 . Este instrumento tamb<strong>é</strong>m foiutilizado para representar a relação entre um observador e um objeto no ambienteexterno, em outras palavras, uma operação de individuação, a partir de umobservador que <strong>é</strong> isolado em um quarto escuro 147 . Em certa medi<strong>da</strong>, a separaçãoentre observador e observado segue sendo um modelo at<strong>é</strong> os nossos dias, mesmocom a invenção <strong>da</strong> imagem digital.No entanto, no final do s<strong>é</strong>culo XIX, a câmera escura modifica-sevigorosamente com a introdução <strong>da</strong> química na fixação <strong>da</strong> imagem refleti<strong>da</strong>.Segundo Crary, este aparato já havia entrado em decadência antes do surgimento146 CAMEROTA, Filippo. Looking for an artificial eye: on the borderline between painting and topography.Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. p. 265.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 86<strong>da</strong> fotografia e, enquanto modelo, tinha entrado em colapso entre as d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s de1820 e 1830 148 . Jonathan Crary considera que a câmera escura era mais do que uminstrumento ótico na medi<strong>da</strong> em que, por mais de duzentos anos, subsistiusimultaneamente como metáfora filosófica, modelo <strong>da</strong> física óptica e, tamb<strong>é</strong>m,como aparato t<strong>é</strong>cnico utilizado em uma ampla gama de ativi<strong>da</strong>des <strong>cultura</strong>is –amadoras e artísticas 149 . Segundo Crary, a utilização <strong>da</strong> câmera escura para aobtenção de desenhos a partir <strong>da</strong>s imagens projeta<strong>da</strong>s, era apenas uma <strong>da</strong>s funções<strong>da</strong> câmera, mas não a mais importante. Atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> descrição do artigo “cameraobscura” na Encyclop<strong>é</strong>die, ele nos lista seus usos:Ela destaca a natureza <strong>da</strong> visão; provê um divertido espetáculo na medi<strong>da</strong> em queapresenta imagens perfeitamente semelhantes aos seus objetos; representa as corese movimentos dos objetos melhor do que qualquer outra forma de representação;com este instrumento, algu<strong>é</strong>m que não sabe desenhar pode fazê-lo com extremaacurácia. 150Apesar <strong>da</strong> observação de Crary de que o destaque para o desenho seencontra em último lugar, vale lembrar a existência de diversas obras dirigi<strong>da</strong>spara artistas, onde este processo era destacado.147 CRARY, J. op. cit., p. 27 e p. 39.148 Ibid., p.27.149 Verbete retirado <strong>da</strong> Encyclop<strong>é</strong>die ou dictionnaire des sciences, des arts et des m<strong>é</strong>tiers, Paris, 1753. apudCRARY, J. op. cit., p. 28-29.150 Ibid. p. 33.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 87Figura 35. Câmera escura portátil. Istituto e Museodi Storia della Scienza. Retirado de27/0806).Figura 34. Camera obscura from theEncyclopedie. . Disponível em: (27/0806).Figura 36. Câmera escura 1770-1775. EncyclopedieRaisonnèe des Sciences, des Arts et des Metiers. .Disponível em: 27/0806).Os efeitos ilusórios obtidos atrav<strong>é</strong>s de experimentos com a câmera escura ou<strong>da</strong>rk chamber são descritos na Encyclopaedia Britannica de 1778-1783. Nestetexto, assim como em outros do mesmo período, descreve-se primeiramente a<strong>construção</strong> do aparato: “Faça um furo circular em uma persiana de uma janela deonde se tenha uma vista de campos ou de qualquer outro objeto não tãopróximo”. 151 A descrição detalha<strong>da</strong> do experimento (entertaining experiments)compreende a utilização de lentes, espelhos e pap<strong>é</strong>is cortados em aspecto circular,mas a sua maior finali<strong>da</strong>de <strong>é</strong> a de servir de “modelo para pintores”. Algumasvariações são sugeri<strong>da</strong>s, como a Lanterna Mágica, uma invenção posterior queutiliza a projeção de pequenos objetos, pintados em cores transparentes sobrelâminas de vidro, sobre uma peça de tecido presa à parede. Outros textosapresentam experiências ópticas mais próximas do que hoje consideramos efeitosde mágica como, por exemplo, criar a ilusão de um homem com quatro pernas esem cabeça ou fazer uma pessoa aparecer em um quarto e desaparecer151 Encyclopædia Britannica; or, a dictionary of arts, sciences, &c. On a plan entirely new: ...The second edition; greatly improved and enlarged. Illustrated with above two hundred copperplates. ...Vol. 4. Edinburgh, 1778-83. 10 vols. Based on information from English Short Title Catalogue. EighteenthCentury Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. p. 2477 et seq,


O OLHAR INOCENTE É CEGO 88rapi<strong>da</strong>mente ou, ain<strong>da</strong>, ter a sensação de que uma pessoa está “afun<strong>da</strong>ndo” nopiso. 152 Apesar do sistema de operação <strong>da</strong> câmera escura ter permanecido constante,sua forma variou consideravelmente ao longo dos s<strong>é</strong>culos. Em relação àsvariações formais, Snyder enfatiza a função de ca<strong>da</strong> peça a ser produzi<strong>da</strong>. Oartesão ou fabricante tinha que ser informado <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des específicas doartista antes de projetar a câmera para seu uso. O mecanismo estava longe de serpadronizado na medi<strong>da</strong> em que as lentes deveriam ser exclusivas para ca<strong>da</strong> tipo deuso, sejam paisagens ou retratos. Mais ain<strong>da</strong>, uma lente própria para retratosutiliza<strong>da</strong> em uma câmera pequena – e câmeras portáteis eram comuns a partir dos<strong>é</strong>culo XVII – não poderia ser utiliza<strong>da</strong> em câmeras maiores. No s<strong>é</strong>culo XVIII,al<strong>é</strong>m de câmeras e lentes especialmente manufatura<strong>da</strong>s, produziam-se tamb<strong>é</strong>mmanuais com instruções artísticas e de orientação para o emprego <strong>da</strong>s lentes. 153152 SMITH, Godfrey. The laboratory; or, school of arts: containing a large collection of valuable secrets,experiments, and manual operations in arts and manufactures, ... Compiled originally by G. Smith. Sixthedition, with a great number of additional receipts, corrections, and amendments; . Vol. 2. London, 1799. 2vols. Eighteenth Century Collections Online. Gale Group. http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. p. 168153 SNYDER, J. op. cit., p.233.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 89Figura 38. Diagrama <strong>da</strong> câmera luci<strong>da</strong>,que permitia cópia à luz do dia.Inventado por W. H. Wollaston em1806. Retirado de(29/08/06).Figura 37. Ilustração do telescópio gráfico e seusprincipios óticos. Do Magazine of Science, And Schoolof Arts, 1840. Whipple Museum of the History ofScience, University of Cambridge. Disponível em: (29/08/06).Figura 39. Espelho de Claude.Inglaterra, s<strong>é</strong>culo XVIII. Disponível em:Victoria and Albert Museum: (29/08/06).De certa forma, a insistência de Crary em isolar a câmera escura de suaparticipação na produção de obras de arte <strong>é</strong> abala<strong>da</strong> pela evidência dodesenvolvimento do próprio artefato (diversos tipos de lente, modelos portáteis),que nos parece justificado para uma finali<strong>da</strong>de específica, ou seja, para finsartísticos – mesmo que artisticamente amadores. Em uma exposição realiza<strong>da</strong> naPinacoteca do Estado de São Paulo entre os anos 2003 e 2004, encontramos aevidência de que, ain<strong>da</strong> no s<strong>é</strong>culo XIX, provavelmente depois <strong>da</strong> invenção do<strong>da</strong>guerreótipo, artistas, profissionais ou não, contavam com o auxílio de umacâmera escura portátil na composição de elementos de paisagens, em viagens pelo


O OLHAR INOCENTE É CEGO 90Brasil 154 . Estes desenhos de campo formavam em conjunto uma esp<strong>é</strong>cie decatálogo que era consultado posteriormente no ateliê, como um repertório deimagens que o artista combinava para compor a obra final.Figura 40. Ilustração do s<strong>é</strong>culo XIX. Duascrianças olham uma imagem projeta<strong>da</strong> pelacâmera escura. De E. Atkinson's, NaturalPhilosophy. Retirado de (29/08/06).Figura 41. Claude Lorraine Glass. Em PIKE,Benjamin Jr: Pike's Illustrated DescriptiveCatalogue of Optical, Mathematical andPhilosophical Instruments. 750 gravuras dosaparatos vendidos pelo autor, com os preçosdos produtos. New York 1856, p. 193. Retiradode (29/08/06).Figura 42. Prospecto de anúncio de câmeraescura, cerca de 1819. Retirado de (29/08/06).Al<strong>é</strong>m do mais, a câmera escura não foi o único aparato de organização <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. Diversos instrumentos, desenvolvidos ao longo do s<strong>é</strong>culo XVIII eXIX, eram destinados a auxiliar o desenho, enquanto outros se dispunham a outrasfunções relaciona<strong>da</strong>s à arte. Dentre esses aparatos, podemos citar, por exemplo, oespelho de Claude (Figura 39) que era constituído por um espelho convexo,coberto por tinta preta. Recebeu este nome não porque se saiba que o pintorClaude Lorrain o tenha empregado, mas porque era capaz de produzir umaimagem com o mesmo estilo de sombreado e tons dourados observado nas154 COLEÇÃO BRASILIANA FUNDAÇÃO ESTUDAR NA PINACOTECA DO ESTADO. Vistas doBrasil. São Paulo, 2003-2004. Catálogo de exposição. 1 CD-ROM


O OLHAR INOCENTE É CEGO 91pinturas de Lorrain. 155 No auge do seu uso, entre o final do s<strong>é</strong>culo XVIII e o iniciodo XIX, o espelho de Claude era encontrado em gabinetes de curiosi<strong>da</strong>de, lojas deóptica e círculos artísticos. Era utilizado porque produzia uma visão pitoresca ediferencia<strong>da</strong>. Ao contrário deste aparato, que se apoiava sobre espelhos, o vidro deClaude (Claude Lorraine Glass - Figura 41) era um conjunto de lâminas colori<strong>da</strong>stransparentes, utiliza<strong>da</strong>s para a observação de eclipses, nuvens e paisagens. Ovidro de Claude reforça o conceito de mono-visão surgido com a perspectiva. Emconjunto, com o espelho de Claude, parece sugerir a delimitação do campo devisão, a área que deve ser de fato observa<strong>da</strong>, como na proposta <strong>da</strong> janela deAlberti. Neste sentido, ambos são colaboradores <strong>da</strong> <strong>construção</strong> de um <strong>olhar</strong> emum movimento de enquadramento, metafórico e literal, onde o campo de visão doobservador <strong>é</strong> limitado a partir <strong>da</strong> intermediação entre o observador e o que <strong>é</strong>observado. Outros aparatos visuais ain<strong>da</strong> podem ser diretamente relacionados àreprodução de objetos e paisagens. Neste último grupo encontramos a câmeralúci<strong>da</strong> (Figura 38) e sua variante, o telescópio gráfico (Figura 37), patenteado em1811 por Cornelius Varley.Talvez não seja desnecessário lembrar que a câmera escura constituiu-se emuma ferramenta de trabalho e, analogamente ao que acontece hoje com acomputação gráfica, o seu uso, por si só, nunca pode ter sido garantia de quali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> obra produzi<strong>da</strong>. Um desenhista medíocre não conseguiria extrair <strong>da</strong> câmeraescura, ou de nenhum outro aparato óptico, uma operação miraculosa. Mas, apesardisso, o seu emprego como auxiliar na produção de imagens ou pinturas não eraalgo de que o artista pudesse vangloriar-se. De maneira geral, os artistascostumam ser reticentes em relação aos seus m<strong>é</strong>todos, e não devem ter sido muitodiferentes no passado. Esse <strong>é</strong> um dos argumentos utilizados por David Hockneyna sua proposição de que os artistas “escondiam” o uso de auxílios óticos ou deseu domínio secreto, como sugere o título de seu livro: O conhecimento secreto 156 .Nesse livro, Hockney defende a tese de que a partir do s<strong>é</strong>culo XV, muitos artistasusaram a óptica, ou seja, espelhos e lentes ou uma combinação de ambos, paracriar projeções sobre as quais pudessem reproduzir imagens fi<strong>é</strong>is.155 DUPRÉ, Sven. The Claude Glass: Use and meaning of the black mirror in Western Art by Arnaud Maillet.Institute for Research in Classical Philosophy and Science. Resenha.156 HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as t<strong>é</strong>cnicas perdi<strong>da</strong>s dos grandes mestres.São Paulo: Cosac & Naify, 2001.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 92A partir de uma visita a uma exposição de Ingres, em 1999 na NationalGallery de Londres, Hockney começou a questionar se Ingres teria “usado de vezem quando esse pequeno dispositivo óptico, então rec<strong>é</strong>m-inventado”. 157 Essepintor trabalhou nas primeiras d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s do s<strong>é</strong>culo XIX, realizando desenhos depequeno formato, mas misteriosamente “precisos”. Hockney começou arealização de experimentos práticos, a princípio com uma câmara lúci<strong>da</strong> e, depois,com uma câmara escura, ao mesmo tempo em que passou a “ver com outrosolhos” as obras de artistas do passado. Para ele “a óptica não faz marcas - elaproduz apenas uma imagem, uma aparência, um meio de medi<strong>da</strong>. O artista ain<strong>da</strong> <strong>é</strong>o responsável pela concepção, e <strong>é</strong> necessária grande habili<strong>da</strong>de para superar osproblemas t<strong>é</strong>cnicos e reproduzir a imagem em tinta. No entanto, tão logo sepercebe a influência profun<strong>da</strong> que a óptica exercia na pintura, e o modo como eraemprega<strong>da</strong> pelos artistas, começa-se a observar as pinturas de um novo modo”. 158Hockney, então, montou, em seu estúdio, um “Grande Mural” onde justapôsreproduções de quinhentos anos de trabalhos de diversos artistas, de forma ainvestigar a utilização dos aparatos ópticos. Durante a sua pesquisa, ele travoucontato com historiadores <strong>da</strong> arte e com um opticista, Charles Falco, que lheofereceu apoio t<strong>é</strong>cnico. O problema com a hipótese Hockney-Falco, como aquestão passou a ser conheci<strong>da</strong> na história <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong>s ciências, <strong>é</strong> que a utilizaçãodos instrumentos óticos se encontra sugeri<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> primeira metade do s<strong>é</strong>culoXV.Hockney aponta que entre o fim dos anos 1420 e o começo dos anos 1430.ocorreu uma súbita mu<strong>da</strong>nça nas pinturas, rumo a um maior naturalismo. Estatransformação, evidencia<strong>da</strong> nas obras de Robert Campin e Jan van Eyck, <strong>é</strong>atribuí<strong>da</strong> por Hockney ao auxílio óptico de lentes ou espelhos metálicos. 159Apesar dos tratados medievais sobre óptica demonstrarem o interesse dosestudiosos pela luz, visão, espelhos e reflexão, não existem evidências de que essapreocupação pudesse ir al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> geometria dos pontos ou <strong>da</strong> utilização de espelhoscilíndricos, cônicos, côncavos e convexos para reflexão, mas não para projeção. 160De fato, não existem provas documentais <strong>da</strong> utilização de espelhos para projeção157 HOCKNEY, D. op. cit., p.12.158 Ibid. p. 131.159 Ibid. p. 71-72.160 SCHECHNER, Sara J. Between knowing and doing: mirrors and their imperfections in the renaissance.Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 93antes do s<strong>é</strong>culo XVI. Al<strong>é</strong>m disso, há uma grande distância entre o saber e o fazer.O conhecimento de princípios físicos não <strong>é</strong> e nunca foi garantia de existência deum sistema que se utilize dele e, como vimos anteriormente, os conhecimentosque levaram à invenção <strong>da</strong> câmera escura lhe precederam em muitos s<strong>é</strong>culos.Al<strong>é</strong>m disso, assim como Leonardo <strong>da</strong> Vinci chegou a desenhar um helicóptero,mas nunca se pensou que ele poderia ter sobrevoado a Toscana, existia umagrande distância entre os textos sobre ótica e a produção artesanal de espelhos elentes do final <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia. 161Deste modo, embora os artistas possam ter utilizado espelhos para ajudá-losa fazer auto-retratos, na produção de desenhos em perspectiva ou, ain<strong>da</strong>, naobservação de outras obras, <strong>é</strong> improvável que os tenham utilizado comoequipamentos de projeção antes <strong>da</strong> invenção <strong>da</strong> câmera escura. Não existemevidências t<strong>é</strong>cnicas neste sentido, tanto em relação às peças sobreviventes, quantode acordo com as condições materiais e t<strong>é</strong>cnicas <strong>da</strong> produção de espelhos noperíodo - impensáveis para a obtenção de uma imagem clara e realística. 162É claro que os artistas dos primeiros tempos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna tirarampartido do desenvolvimento dos apetrechos ópticos e do conseqüenteaprimoramento <strong>da</strong> câmera escura. Mas, de fato, o aperfeiçoamento de espelhos elentes ain<strong>da</strong> iria demorar alguns s<strong>é</strong>culos, embora tenha começado a tomar impulsoa partir de Galileu Galilei em sua busca por melhores imagens <strong>da</strong> lua. 163 Apesar deter seu nome associado a esse instrumento, Galileu não foi o inventor dotelescópio. Antes dele, um tubo, com duas ou mais lentes, era já utilizado paradivisar o inimigo à distância – com um único olho. Mas o termo telescópio foicunhado apenas em 1611 - a partir <strong>da</strong>s palavras gregas tēle, longe e scopeo, euvejo 164 - dois anos depois <strong>da</strong> “descoberta” de Galileu.O telescópio <strong>é</strong> considerado, por Hanna Arendt, como o primeiro“instrumento científico” 165 , apesar do termo ter surgido apenas no s<strong>é</strong>culo XIX. 166De fato, o telescópio <strong>é</strong> um instrumento ótico que se inscreve em um sistemaepistemológico substancialmente diferente dos outros aparatos do universo <strong>da</strong>161 Id.162 Ibid. p. 162.163 KEMP, Martin em carta para o autor. HOCKNEY, D. op. cit., p. 246.164 http://brunelleschi.imss.fi.it/museum/esim.asp?c=200601165 ARENDT, H. op. cit.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 94Renascença. Arendt o listou entre os três eventos fun<strong>da</strong>mentais que determinaramo caráter <strong>da</strong> era moderna, ao lado <strong>da</strong> descoberta <strong>da</strong> Am<strong>é</strong>rica, e subseqüenteexploração de to<strong>da</strong> a Terra, e <strong>da</strong> Reforma. 167 Para a teórica alemã, a invenção dotelescópio ensejou o desenvolvimento de uma nova ciência que considerava anatureza <strong>da</strong> Terra do ponto de vista do universo. Observou, ain<strong>da</strong>, que os nomesligados a estes eventos, incluindo o de Galileu, pertenciam a um mundo pr<strong>é</strong>moderno,na medi<strong>da</strong> em que não se encontrava entre eles aestranha sensação de novi<strong>da</strong>de, a veemência com que quase todos os grandesautores, cientistas e filósofos, desde o s<strong>é</strong>culo XVII, declaravam ver coisas quenenhum homem jamais vira antes e ter pensamentos que jamais haviam ocorrido aningu<strong>é</strong>m. 168Neste sentido, Galileu não pode ser considerado um revolucionário. Mas, foiapenas com a “visão” <strong>da</strong> imensidão do espaço que teve início uma nova ciência.Assim, se a invenção do telescópio <strong>é</strong> fun<strong>da</strong>dora <strong>da</strong> ciência moderna e at<strong>é</strong>cnica <strong>da</strong> perspectiva pode ser considera<strong>da</strong> como um elemento fun<strong>da</strong>mental naconstituição do <strong>olhar</strong> moderno, a câmera escura poderia ser considera<strong>da</strong> como umaparato multifuncional, ligado à concepção que temos hoje de entretenimento. Separa Jonathan Crary, a câmera escura deve ser analisa<strong>da</strong> de forma distancia<strong>da</strong> <strong>da</strong>lógica evolucionária do determinismo tecnológico que a posiciona comopercussora de uma genealogia que leva ao nascimento <strong>da</strong> fotografia, por outrolado, este aparato <strong>é</strong> um amálgama social “onde sua existência como figura textuale discursiva <strong>é</strong> inseparável do seu uso t<strong>é</strong>cnico”. 169 Citando Gilles Deleuze“máquinas são sociais antes de serem t<strong>é</strong>cnicas”, Crary afirma que a câmera escurae a câmera fotográfica são objetos sociais que pertencem a duas organizações, derepresentação e de relação entre o observador e o visível, fun<strong>da</strong>mentalmentediferentes. Apesar de considerar a semelhança entre os princípios estruturais deambas, Crary observa que no inicio do XIX, a câmera escura já não era sinônimode produção de ver<strong>da</strong>de. No entanto, em sua opinião, as distinções podem serobserva<strong>da</strong>s a partir de uma diferente rede de enunciados e práticas. Sem quererestabelecer uma visão teleológica do desenvolvimento dos aparatos <strong>da</strong> visão, nos166 D. J. Warner, “What Is a Scientific Instrument, When Did it Become One, and Why?” British Journal forthe History of Science, 23 (1990), 83-93. Apud MALET, Antoni. Early conceptualizations of the telescope asan optical instrument. Early Science and Medicine 10 (2). Leiden: Brill Academic Publishers, 2005. p. 244.167 ARENDT, H. op. cit., p.260.168 Ibid. p. 261.169 CRARY, J. op. cit., p. 30 et seq.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 95permitimos discor<strong>da</strong>r desta abor<strong>da</strong>gem do autor que, em nossa opinião se presta aenfatizar a sua análise dos aparatos de visão utilizados no inicio do s<strong>é</strong>culo XIX.Em nosso ponto de vista, a câmera escura não <strong>é</strong> simplesmente inseparável<strong>da</strong> pr<strong>é</strong>-história fotografia, mas tamb<strong>é</strong>m dos desdobramentos subseqüentes quelevaram à imagem em movimento. Apesar disso, devemos reconhecer que ascondições temporais e epistemológicas <strong>da</strong> câmera escura e <strong>da</strong> fotografia sãosubstancialmente diferentes e suas conseqüências não devem ser estabeleci<strong>da</strong>s emum sentido teleológico.De certa forma, as alusões filosóficas <strong>da</strong> câmera escura remetem à id<strong>é</strong>ia <strong>da</strong>ssombras na caverna de Platão. Marx a utilizou como metáfora de um modelo deforças que mascara, inverte e mistifica a ver<strong>da</strong>de. 170 Em Freud ela <strong>é</strong> uma metáforafotográfica para o funcionamento do inconsciente. 171 Nietzsche utiliza múltiplasmetáforas, fazendo uma analogia entre a câmera escura e olho do pintor. 172A partir de considerações sobre o emprego <strong>da</strong> câmera escura em meados dos<strong>é</strong>culo XIX, Mitchell critica a metáfora de ideologia desenvolvi<strong>da</strong> por Marx sobreeste aparato. 173 Segundo Mitchell, Marx emprega esta imagem para ridicularizaras ilusões <strong>da</strong> filosofia idealista no momento em que o <strong>da</strong>guerreótipo surge parapreservar as “imagens perfeitas <strong>da</strong> natureza”. A câmera escura, anteriormenteemprega<strong>da</strong> como sinônimo de empirismo, de observação racional e de reproduçãodireta <strong>da</strong> visão natural, <strong>é</strong> utiliza<strong>da</strong> por Marx como um mecanismo para a criaçãode ilusões, de “fantasmas”, “quimeras” e “sombras <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de” que ele atribuiaos seguidores <strong>da</strong> ideologia alemã. Deixando de lado a possibili<strong>da</strong>de de esteemprego tratar-se de um “erro de juventude”, Mitchell at<strong>é</strong>m-se ao fato de que, à<strong>é</strong>poca de Marx, a câmera escura e a fotografia, como seu desenvolvimento, nãoeram celebra<strong>da</strong>s apenas por encarnar o modo natural, científico e realístico derepresentação do mundo visível. Ao lado <strong>da</strong> reputação de instrumento científico, acâmera escura mantinha a reputação de “lanterna mágica” e produtora de “ilusõesópticas”, como descrito acima. O fato <strong>é</strong> que Marx, provavelmente, via a invenção<strong>da</strong> fotografia como mais uma falsa “revolução” burguesa, um brinquedo para aclasse abasta<strong>da</strong>. Deste modo, Marx procurou ilustrar a id<strong>é</strong>ia de ideologia como um170 Ibid. p. 29.171 KOFMAN, Sarah. Camera obscura de l’idelogie. France: Éditions Galil<strong>é</strong>e, 1973. p. 37.172 Ibid. p. 47-49.173 MITCHELL, W. J. Thomas. Iconology… p. 168-172.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 96paradoxo a partir <strong>da</strong> inversão óptica. Em certo ponto, a inversão não produznenhuma diferença, na medi<strong>da</strong> em que a ilusão <strong>é</strong> perfeita. Mas, na ver<strong>da</strong>de, omundo aparece de cabeça para baixo, em caos, em contradições autodestrutivas.2.4. A herança ciclópicaNeste capítulo discutimos a constituição do <strong>olhar</strong> clássico, a partir <strong>da</strong>relação com os aparatos <strong>da</strong> visão criados sob a luz do Renascimento. A relaçãoentre o <strong>olhar</strong> e as diversas tecnologias de <strong>visual</strong>ização <strong>é</strong> inseparável de alguns dosmarcos principais <strong>da</strong> constituição deste período. De certa forma, o olho, a partir <strong>da</strong>era moderna, transforma-se – ele próprio – em instrumento. O olho – que emcombinação com as funções racionais <strong>da</strong> mente poderia garantir o “conhecimentover<strong>da</strong>deiro” – torna-se uma ferramenta em constante aperfeiçoamento atrav<strong>é</strong>s doemprego de aparatos tecnológicos que melhoram o seu desempenho, na ampliaçãode seu alcance ou na criação de novas possibili<strong>da</strong>des. Mas, as mesmas ferramentas– provedoras <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de – tamb<strong>é</strong>m podem oferecer ilusões. Neste jogo, o homemganha o domínio dos códigos: pela primeira vez na história <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sensívelhá um conjunto de disposições sistemáticas que pode ser empregado parafavorecer a dominação de um dos sentidos. Deste modo, não parece haver dúvi<strong>da</strong>de que a perspectiva iniciou a racionalização do <strong>olhar</strong>. A compreensão destainfluência unicamente sobre o campo <strong>da</strong> arte <strong>é</strong> restritiva. Praticamente, todos oscampos do conhecimento foram influenciados por esta ferramenta e estaascendência de algum modo acabou refratando sobre o próprio campo <strong>da</strong> arte. 174A instrumentalização do <strong>olhar</strong> talvez aponte o primeiro sonho mecanicista.Não importa se, em um primeiro momento, esta mecanização foi de fatomaterializa<strong>da</strong> ou se restringiu apenas às imagens, como nas gravuras de Dürer.Estas são evidências suficientes <strong>da</strong> intenção de mecanização na produção deimagens. A partir dos aparatos tecnológicos do <strong>olhar</strong>, surgidos com oRenascimento, podemos apontar para o primeiro relacionamento homem-máquina- hoje tão evidente com a onipresença do computador. Mas, já em seusprimórdios, as máquinas do <strong>olhar</strong> buscavam superar o homem, iludindo-o com asua “naturali<strong>da</strong>de”.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 97A abor<strong>da</strong>gem do “olho” no singular não nos parece isenta de significado.Diga-se a propósito que a utilização de grande parte dos aparatos <strong>da</strong> primeira<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de foi pensa<strong>da</strong> em função de um único olho. Identificamos estaobservação na perspectiva nos textos e gravuras <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. Para a utilização dotelescópio, e mesmo dos primeiros óculos, ou monóculos, um olho deveria estarsempre ausente ou fechado. Na câmera escura esta observação <strong>é</strong> menos tangível,mas, o próprio aparato, possui um único olho: o pequeno orifício por onde entra aluz. Sabe-se que a visão humana precisa dos dois olhos para ver em profundi<strong>da</strong>de,mas ao primeiro <strong>olhar</strong> moderno só lhe era <strong>da</strong>do um ponto estático.É <strong>da</strong><strong>da</strong> a parti<strong>da</strong> para a individuação do sujeito: a câmera escura, porexemplo, era volta<strong>da</strong> para a visão de um único observador, inserido em seuespaço, isolado <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de externa e que enxergava apenas atrav<strong>é</strong>s dos raios deluz que entravam pela abertura <strong>da</strong> câmera. Igualmente, a perspectiva, com seuponto de vista unidimensional, demarca uma posição determina<strong>da</strong> tamb<strong>é</strong>m para oobservador <strong>da</strong> obra. O indivíduo do <strong>olhar</strong> torna-se o sujeito humanista. Mas, se háuma sugestão de autonomia a partir <strong>da</strong> emergência do sujeito nascido com oRenascimento, esta, de fato, encontra limitações. O novo sujeito <strong>é</strong> confrontadopelas novas regras, como os preceitos <strong>da</strong> perspectiva, os novos limites do universo– que acaba de descobrir-se infinito – e por uma nova socie<strong>da</strong>de. Neste contexto,discor<strong>da</strong>mos do posicionamento de Crary que desvincula a câmera escura dosdesenvolvimentos posteriores. Em nosso ponto de vista, ela apresenta-se comofun<strong>da</strong>mental na sua oferta de entretenimento a partir <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de.Deste modo, apesar <strong>da</strong> implicação de subjetivi<strong>da</strong>de sugeri<strong>da</strong> pelo ponto devista, o <strong>olhar</strong> ciclópico mostra-se imbricado por regras e convenções. Apadronização ou racionalização do <strong>olhar</strong> que tem início com a perspectiva e oemprego <strong>da</strong> gravura irá, posteriormente, com a industrialização, incluir os objetos.Não há dúvi<strong>da</strong> que o <strong>olhar</strong> que começou a ser construído no período clássico foifun<strong>da</strong>mental para a procura pela eficiência, um dos fatores que posteriormenteconduziu ao desenvolvimento do design. O <strong>olhar</strong> clássico conheceu as primeirasconvenções na <strong>construção</strong> <strong>da</strong> arte – e posteriormente no design – e passou adesenvolver-se a partir do convencionado.174 Este argumento <strong>é</strong> bem desenvolvido por KEMP, Martin. The science of art. Optical themes in western artfrom Brunelleschi to Seurat. New Haven: Yale, 1990. p.53


O OLHAR INOCENTE É CEGO 98Parece significativo que o termo “convenção”, criado a partir do latim,conventionem ou conventione, surja por volta de 1440 como sinônimo para“acordo”. “Convenção” no sentido de “seguir a tradição” surge apenas em1831 175 , o que nos abre um outro leque de questões que serão discuti<strong>da</strong>s nopróximo capítulo. A esta dupla acepção <strong>da</strong> palavra, estabelecem-se suasoposições. De um lado, o convencional em oposição ao que <strong>é</strong> original e, de outro,ao que <strong>é</strong> arbitrário, ou seja, o que não foi acor<strong>da</strong>do ou estabelecido dentro de umacomuni<strong>da</strong>de interpretativa em determina<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. Greenberg observa que o termo“convenção” ou “convencional” aplicado à arte adquiriu uma conotaçãopejorativa, significando uma expressão pouco criativa e monótona. 176 Por outrolado, para este autor, as convenções em arte não são permanentes nem imutáveis.Elas “extinguem-se e perecem, mas não simplesmente porque algu<strong>é</strong>m resolveuque deveria ser assim” 177 , mas como um resultado de um processo no tecidosocial.É importante observar que embora as convenções estejam presentes nos doislados <strong>da</strong> fruição <strong>da</strong> arte e do design – produção e recepção – elas funcionam demaneira diferencia<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> pólo <strong>da</strong> comunicação e chegam mesmo acaracterizar diferentemente grupos em ca<strong>da</strong> um dos lados. Na produção,especialmente de um tipo de arte, a arte de vanguar<strong>da</strong>, há a necessi<strong>da</strong>de dedemarcar uma “nova convenção”, como assinalado acima, a partir do rompimentocom a convenção anterior. Por outro lado, o produtor <strong>visual</strong> não pode abrir mãodestas mesmas convenções sob pena de não se comunicar. No design, a influência<strong>da</strong>s convenções <strong>é</strong> mais atuante e recíproca. Como observa Gui Bonsiepe, há umarelação de mútua influência entre o designer e a <strong>cultura</strong> material 178 , onde odesigner atua simultaneamente, como sujeito e objeto <strong>da</strong> dinâmica <strong>cultura</strong>l.Em relação à recepção <strong>da</strong>s convenções, <strong>é</strong> importante destacar que as últimasconstituem conjuntos de conhecimentos compartilhados por um determinadogrupo ou socie<strong>da</strong>de. Deste modo, a inserção de um receptor eventual <strong>é</strong> facilita<strong>da</strong>175 Chicago Manual Style (CMS): convention. Dictionary.com. Online Etymology Dictionary. DouglasHarper, Historian. Acessado em 29 de maio de 2007.176 GREENBERG, Clement. Convenção e inovação. In: ___. Est<strong>é</strong>tica Dom<strong>é</strong>stica. São Paulo: Cosac & Naify,2002. p. 98177 Ibid., p. 100.178Este conceito de Bonsiepe foi extraído <strong>da</strong> apresentação de Maristela Mitsuko Ono e Maria CecíliaLoschiavo dos Santos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, na 5 th European Academy of Design Conference emBarcelona entre os dias 28 e 30 de abril de 2003. As autoras não informam a procedência <strong>da</strong> citação.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 99pelo domínio <strong>da</strong>s convenções de domínio público, muitas vezes pensa<strong>da</strong>s comopercepções humanas naturais. Por outro lado, a utilização de uma convenção não <strong>é</strong>garantia de compreensão do receptor, detentor de uma subjetivi<strong>da</strong>de própria.Al<strong>é</strong>m do mais, o conhecimento <strong>da</strong>s convenções necessárias para determina<strong>da</strong>fruição artística, simbólica ou est<strong>é</strong>tica, pode se alterar com o passar o tempo. Ofun<strong>da</strong>mental na avaliação deste estudo <strong>é</strong> o papel que as tecnologias acabamcumprindo na estruturação de convenções relaciona<strong>da</strong>s à <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de e como estarelação foi crescentemente sendo estrutura<strong>da</strong> sobre o conceito de formas deespetáculo. Discutiremos estas questões no próximo capítulo, a partir dos eventosocorridos na segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 1003.O <strong>olhar</strong> panorâmico e “mil coisas para ver”Este capítulo abor<strong>da</strong> algumas <strong>da</strong>s modificações ocorri<strong>da</strong>s no contexto <strong>da</strong>snovas vivências <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX que influenciaram a <strong>construção</strong>de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna. Esta se apresenta como parte de um amploconjunto de transformações artísticas, científicas, tecnológicas, econômicas esociais, inclusive com o surgimento do que passamos a conhecer como design.Cabe aqui como uma ressalva que a utilização do termo “moderno” não se nosapresenta como uma escolha simples e confortável, principalmente nestes temposque apontam para uma socie<strong>da</strong>de pós-industrial, <strong>da</strong> informação, uma altamoderni<strong>da</strong>de ou, ain<strong>da</strong>, uma pós-moderni<strong>da</strong>de. 179 Iniciamos este capítulo comuma discussão de cunho metodológico sobre o emprego de termos como moderno,moderni<strong>da</strong>de, modernização, e revolução industrial para, em segui<strong>da</strong>, abor<strong>da</strong>r ainfluência <strong>da</strong>s tecnologias sobre a <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong>, a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>implantação <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de e alguns de seus reflexos. Neste contexto, há umafrase esclarecedora de David Harvey. Segundo este autor “o modernismo <strong>é</strong> umaperturba<strong>da</strong> e fugidia resposta est<strong>é</strong>tica a condições de moderni<strong>da</strong>de produzi<strong>da</strong>s porum processo particular de modernização”. 180 Em nosso ponto de vista, <strong>é</strong> a partir<strong>da</strong> articulação destas condições que se constrói o <strong>olhar</strong> moderno.Deste ponto em diante, o presente capítulo se desenvolve em duas direçõesou eixos. O primeiro eixo <strong>é</strong> construído sobre as transformações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana a179 O momento atual tem sido analisado segundo diferentes perspectivas. Há o reconhecimento de umdeslocamento de processos institucionais em direção a uma centrali<strong>da</strong>de na informação que parece abalar osistema moderno, baseado na manufatura de bens materiais. Muitos autores, a partir do <strong>da</strong> id<strong>é</strong>ia do fim <strong>da</strong>grande narrativa apresenta<strong>da</strong> por Jean-François Lyotard em 1979, se apóiam sobre o termo “pósmoderni<strong>da</strong>de”para sugerir um estado de coisas em finalização. Embora considerando que a utilização derótulos possa ser reducionista e limitar algumas análises a partir <strong>da</strong> demarcação rígi<strong>da</strong> de limites, a nossatendência <strong>é</strong> adotar a expressão “pós-moderni<strong>da</strong>de” como indicadora de um momento seqüencialmenteposterior e não um momento “após” uma moderni<strong>da</strong>de que, em nosso ponto de vista, não foi concluí<strong>da</strong>. Nestesentido encontramos apoio na afirmação de Giddens, para quem, vivemos em um “período em que asconseqüências <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de estão se tornando mais radicaliza<strong>da</strong>s e universaliza<strong>da</strong>s do que antes”. ParaGiddens a percepção dos contornos de uma nova ordem “pós-moderna” <strong>é</strong> algo distinto do que <strong>é</strong> chamado pormuitos de “pós-moderni<strong>da</strong>de”. GIDDENS, Anthony. As conseqüências <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. São Paulo: EditoraUNESP, 1991. p. 13.180 HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 97.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 101partir do avanço <strong>da</strong> industrialização e do surgimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de moderna. Osegundo eixo segue as percepções produzi<strong>da</strong>s a partir do emprego de tecnologiasgeradoras <strong>da</strong> compressão tempo-espaço.Embora ressaltando que as tecnologias não devem ser considera<strong>da</strong>s agentesmodificadores autônomos, verificamos que nos últimos vinte e cinco anos dos<strong>é</strong>culo XIX, a área que constituiu a comunicação de massa viu surgir cincoinvenções fun<strong>da</strong>mentais: telefone, fonógrafo, luz el<strong>é</strong>trica, comunicação sem fio ecinema. 181 Neste sentido, as tecnologias que atuam nas modificações <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de podem constituir ponto de parti<strong>da</strong> privilegiado para uma investigaçãono campo <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. Neste contexto, embora a ascensão de novastecnologias de produção, transporte e comunicação possam insinuar-se como umfator determinante, <strong>é</strong> importante destacar que as mu<strong>da</strong>nças tecnológicas ocorremem estreita ligação com as instituições sociais, políticas e econômicas dedetermina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e em um período específico. Deste modo, embora odesenvolvimento tecnológico ocorrido ao longo do s<strong>é</strong>culo XIX, mostre-se umelemento fun<strong>da</strong>mental nas modificações ocorri<strong>da</strong>s na <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> do período,seria restritivo considerar a tecnologia como único crit<strong>é</strong>rio de análise. Aimplementação de novas tecnologias esteve diretamente relaciona<strong>da</strong> à emergênciade um sistema de mercado atrelado aos princípios <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, àexistência de governos fortes e imperialistas e ao desenvolvimento <strong>da</strong>s ciências,dentre outros fatores. 182 As tecnologias de ca<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca devem ser articula<strong>da</strong>s àspráticas de recepção e discurso e aos regimes de poder, de forma a seremcompreendi<strong>da</strong>s dentro do sistema em que foram construí<strong>da</strong>s e se desenvolveram.Na medi<strong>da</strong> em que as tecnologias, considerando-se fun<strong>da</strong>mentalmente astecnologias produtoras de imagens, se encontram entrelaça<strong>da</strong>s aos interesseseconômicos de determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> indústria de informação,sua força será maior sobre os modelos dominantes de <strong>visual</strong>ização. Deste modo,as <strong>cultura</strong>s do <strong>olhar</strong> permanecem atrela<strong>da</strong>s às revoluções t<strong>é</strong>cnicas que, em ca<strong>da</strong><strong>é</strong>poca, modificam os formatos, materiais e a quanti<strong>da</strong>de de imagens que uma181 Segundo Marvin, estes produtos são proto-mass media. MARVIN, Carolyn. When old technologies werenew. New York: Oxford University Press, 1990. p.3.182 HEILBRONER, Robert L. Do Machines Make History? Technology and Culture, Vol. 8, No. 3. (Jul.,1967), pp. 335-345.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 102socie<strong>da</strong>de pode absorver 183 . Da mesma maneira que um livro de horas do s<strong>é</strong>culoXIII, enorme, raro e pesado, não se lia como um livro de bolso dos nossos dias,uma tela de TV ou de computador exige um <strong>olhar</strong> diferente do que durantes<strong>é</strong>culos foi dirigido ao retábulo de uma igreja gótica. Este enlace entretecnologias, socie<strong>da</strong>de e poder estabelece que imagens e mídias não podem sercompreendi<strong>da</strong>s como enti<strong>da</strong>des fixas, mas como organismos em mu<strong>da</strong>nça 184 .Al<strong>é</strong>m disso, a atuação de uma tecnologia produtora de <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de em umdeterminado período, dentro de uma socie<strong>da</strong>de específica, pode não encontrarcorrespondência em outra socie<strong>da</strong>de ou outra <strong>é</strong>poca.Esta visão colabora com a id<strong>é</strong>ia de que as tecnologias, assim como as mídiase os modos de <strong>olhar</strong>, coexistem com modos anteriores de expressão; não deixamde existir nem são abandona<strong>da</strong>s quando surge um outro modo. Diversastecnologias, mídias e modos de <strong>olhar</strong> coexistem e interagem em um mesmoperíodo histórico. No entanto, a busca por uma determinação de causas e efeitosobjetivos <strong>é</strong> hoje considera<strong>da</strong> um ranço de pesquisas ultrapassa<strong>da</strong>s. Os primeirosestudos de “análise de efeitos” na área de comunicação <strong>da</strong>tam <strong>da</strong> Primeira Guerrae foram voltados para o impacto <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong>. Segundo o modelo <strong>da</strong> “agulhahipod<strong>é</strong>rmica”de Harold Lasswell, a audiência <strong>é</strong> como uma massa amorfa queobedece cegamente ao esquema estímulo-resposta. Nesta hipótese, a propagan<strong>da</strong> <strong>é</strong>um mero instrumento, nem mais moral nem mais imoral que “a manivela <strong>da</strong>bomba d’água”, podendo ser utiliza<strong>da</strong> tanto para bons como para maus fins. 185 Aid<strong>é</strong>ia de um receptor “esvaziado” e que recebe influências diretas <strong>da</strong> mídia <strong>é</strong> umpensamento que encontra coerência em teorias <strong>da</strong> psicologia em voga na <strong>é</strong>poca 186 ,mas que hoje são questiona<strong>da</strong>s.Neste momento, <strong>é</strong> importante retomar como ressalva, a reflexão de que a<strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> de um determinado período não se desenvolve simplesmente como183 DEBRAY, R<strong>é</strong>gis. Vi<strong>da</strong> y muerte de la imagen. Historia de la mira<strong>da</strong> en Occidente. Buenos Aires:Editorial Paidós, 1994. p. 38.184 Pesquisas recentes mostraram que jovens bretões, entre 15 e 24 anos têm dispensado 30% menos de tempopara a leitura de jornais desde o surgimento <strong>da</strong> internet. Anunciantes e tiragens parecem minguar e há quemarrisque o ano de 2043 como <strong>da</strong>ta para o último suspiro do jornal impresso. Dados extraídos de Theeconomist. Este mesmo periódico cita a <strong>da</strong>ta acima a partir do livro de Philip Meyer, The VanishingNewspaper. THE ECONOMIST. Who killed the newspaper? United Kingdom: The economist group, August26th 2006.185 MATTELART, Armand e Mich<strong>é</strong>le. História <strong>da</strong>s teorias <strong>da</strong> comunicação. São Paulo: Edições Loylola,2001. p. 37.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 103substituição a uma constituição anterior. Ao contrário, uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> serásempre fruto <strong>da</strong> sedimentação de vários modos de <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de que vão sesobrepondo. Deste modo, retomando o que já afirmamos anteriormente, a nossaanálise sobre a <strong>construção</strong> de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> considera não apenas asmodificações ocorri<strong>da</strong>s ao longo de um período histórico e por ele determina<strong>da</strong>s,mas tamb<strong>é</strong>m as formulações visuais anteriores sobre a qual se sedimenta. A<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de moderna não seria uma exceção justamente na medi<strong>da</strong> em que ela sealicerça sobre a racionali<strong>da</strong>de do <strong>olhar</strong> ciclópico, construído sobre a invenção <strong>da</strong>perspectiva e disseminado pela gravura impressa.As novas formas e imagens que se tornaram presentes na vi<strong>da</strong> cotidiana dosmoradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de passaram a influir diretamente na formulação de umrepertório característico, mas, tamb<strong>é</strong>m na formulação de um <strong>olhar</strong> urbano. Emnosso ponto de vista, estes estímulos visuais passaram a permitir que o ci<strong>da</strong>dãourbano do s<strong>é</strong>culo XIX constituísse um novo imaginário, sobre o qual pôde“fabricar” uma nova <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong>s imagens que vivenciou. 187 Assim, aprodução de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> de ca<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca, com a qual o receptor de imagensestabelece contato, irá influenciar diretamente nas suas “escolhas” posteriores –nas relações com o que será observado e como. A interação dinâmica entre umaforma de <strong>olhar</strong> o mundo e a própria constituição deste mundo atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>organização de convenções e percepções relaciona<strong>da</strong>s à <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>.3.1. Tempos modernosA palavra modernit<strong>é</strong>, cria<strong>da</strong> por Th<strong>é</strong>ophile Gautier 188 , foi difundi<strong>da</strong> porBaudelaire em seu texto O Pintor <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Moderna. A frase fun<strong>da</strong>mental destaobra encontra-se transcrita em quase to<strong>da</strong>s as abor<strong>da</strong>gens do tema: “Amoderni<strong>da</strong>de <strong>é</strong> o transitório, o efêmero, o contingente, <strong>é</strong> a metade <strong>da</strong> arte, sendo a186 Considere-se, por exemplo, a psicologia <strong>da</strong>s massas de Le Bon, o behaviorismo surgido por volta de 1914,as teorias do russo Pavlov sobre o condicionamento e ain<strong>da</strong> os primeiros estudos <strong>da</strong> psicologia social, quesustentavam que somente certos impulsos primitivos, ou instintos, poderiam explicar os atos dos homens edos animais, vinculando o comportamento às forças biológicas.187 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p.93.188 PEREIRA, Margareth Campos <strong>da</strong> Silva. A participação do Brasil nas exposições universais. Projeto:Revista brasileira de arquitetura, planejamento, desenho industrial, <strong>construção</strong>, n. 139, pp. 83-90, mar. 1991.p. 83.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 104outra metade o eterno e o imutável”. 189 A dial<strong>é</strong>tica conti<strong>da</strong> neste conceitoevidencia as dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s nas tentativas de compreensão e definiçãodo conceito de moderni<strong>da</strong>de. Este sentido <strong>é</strong> reforçado por Berman em suaafirmação de que ser moderno <strong>é</strong> viver em uma <strong>é</strong>poca que promete aventura, novosprazeres, autotransformação e transformação <strong>da</strong>s coisas em redor, mas, ao mesmotempo, ameaça destruir tudo o que somos. 190 A experiência moderna <strong>é</strong> perpassa<strong>da</strong>por uma sensação de insegurança e a crescente per<strong>da</strong> de valores, que Bermanressalta em Marx:To<strong>da</strong>s as relações fixas, enrijeci<strong>da</strong>s, com seu travo de Antigüi<strong>da</strong>de e veneráveispreconceitos e opiniões, foram bani<strong>da</strong>s; to<strong>da</strong>s as novas relações se tornamantiqua<strong>da</strong>s antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que <strong>é</strong> sólido desmancha noar. 191Segundo Berman, o mundo moderno que nos envolve como um turbilhãotem sido parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de um número crescente de pessoas ao longo dos últimosquinhentos anos - embora ca<strong>da</strong> uma delas possa sentir-se como as primeiras, etalvez as últimas, a passar por isso. 192 O turbilhão que <strong>é</strong>, de fato, uma figura paradefinir a “modernização” 193 , tem sido alimentado pelas inúmeras descobertas nasciências, pela industrialização e sua transformação de conhecimento científico emtecnologia e pela aceleração do crescimento urbano e do ritmo de vi<strong>da</strong>, dentreoutros fatores. O termo “modernização” <strong>é</strong> encontrado a partir do s<strong>é</strong>culo XVIIIrelacionado a modificações na habitação, na ortografia, no modo de vestir e nocomportamento. A partir do s<strong>é</strong>culo XIX seu emprego se generaliza 194 .A sensação de efemeri<strong>da</strong>de e fragmentação produzi<strong>da</strong> pelas mu<strong>da</strong>nçascaóticas e muitas vezes abruptas, mas que se insinuavam – ain<strong>da</strong> quemomentaneamente – com a certeza e a racionali<strong>da</strong>de ofereci<strong>da</strong>s pelo Iluminismo,passou a expressar-se est<strong>é</strong>tica e <strong>cultura</strong>lmente a partir do s<strong>é</strong>culo XIX. Se apaisagem <strong>da</strong> modernização <strong>é</strong> algo que conseguimos identificar, a sua relação coma moderni<strong>da</strong>de nem sempre <strong>é</strong> algo facilmente defini<strong>da</strong>. De fato, moderno emoderni<strong>da</strong>de não remetem a conceitos claros e fechados, nem a periodici<strong>da</strong>desdefini<strong>da</strong>s, como ain<strong>da</strong> parecem apresentar variações de sentido conforme o idioma189 BAUDELAIRE, Charles. O pintor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. In: ______. Poesia e prosa: volume único. Rio deJaneiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 859. O texto original foi publicado em 1863.190 BERMAN, Marshall. Tudo que <strong>é</strong> sólido desmancha no ar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. p. 15.191 The Marx-Engels Reader. Norton, 1978. p. 475-6. apud Ibid., p. 20.192 Ibid., p. 15-16.193 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 105utilizado ou o campo em que <strong>é</strong> empregado 195 . Segundo Schorske, a palavra“moderno” era emprega<strong>da</strong> at<strong>é</strong> o fim do s<strong>é</strong>culo XVIII com “certa ressonância degrito de guerra”, mas apenas como antítese ao “antigo”. A partir de meados dos<strong>é</strong>culo XIX, ain<strong>da</strong> segundo este autor, o “moderno serve-nos para diferenciarnossas vi<strong>da</strong>s e nossos tempos de tudo o que o precedeu”. 196 A oposição aopassado <strong>é</strong> deixa<strong>da</strong> de lado ante a prevalência de independência em relação aopassado. Esta formulação <strong>é</strong> sintetiza<strong>da</strong> por Bayly com uma frase que, emboratautológica, parece levar clareza ao conceito: “ser moderno <strong>é</strong> pensar-semoderno”. 197 Moderni<strong>da</strong>de <strong>é</strong> a aspiração de estar de acordo com o seu tempo (tobe up with the times). 198 Segundo este autor, entre 1780 e 1914, um crescentenúmero de pessoas qualificava-se como “modernos” ou consideravam sua própriaexistência em um “mundo moderno”, mesmo que esta id<strong>é</strong>ia não lhes agra<strong>da</strong>sse. 199Bayly considera que, em certo sentido, o s<strong>é</strong>culo XIX pode ser creditado como aera <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de precisamente porque assim pensava um considerável númerode pensadores, governantes e cientistas influentes. Este sentimento foi enfatizado,na segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX, pela avalanche de ícones <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>deindustrial e tecnológica - trens, carros, aviões, telegrafo, rádio e telefone. Baylyconsidera ain<strong>da</strong> o surgimento de um diferencial na quali<strong>da</strong>de de percepção <strong>da</strong>smu<strong>da</strong>nças deste período. Antes do s<strong>é</strong>culo XIX, as mu<strong>da</strong>nças passa<strong>da</strong>s seriampercebi<strong>da</strong>s de modo diferente, mais próxima de “renovação”, com implicações derepetição e não de substituição, como pode ser observado no Renascimentoatrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> retoma<strong>da</strong> dos conhecimentos <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de clássica. 200A demarcação de <strong>da</strong>tas precisas na formulação do conceito de moderni<strong>da</strong>de<strong>é</strong> dificulta<strong>da</strong> pelo fato de que os diversos eventos, agentes modificadores de umadetermina<strong>da</strong> situação, dificilmente ocorrem de forma sincrônica. Al<strong>é</strong>m disso, umaanálise de uma determina<strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> não pode ater-se apenas aos eventos,mas deve abraçar tamb<strong>é</strong>m os discursos produzidos e as evidências registra<strong>da</strong>s. Asmu<strong>da</strong>nças capazes de promover uma nova reali<strong>da</strong>de social podem acontecer de194 WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. Um vocabulário de <strong>cultura</strong> e socie<strong>da</strong>de. São Paulo: BoitempoEditorial, 2007. p. 282.195 COMPAGNON, Anton. Os cinco paradoxos <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 15.196 SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle. São Paulo: Ed. <strong>da</strong> Unicamp e Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1988. p. 13.197 BAYLY, Christopher Alan. The birth of the modern world 1780-1914: global connections andcomparisons. USA, UK and Australia: Blachwell Publishing, 2004. p. 10.198 Id.199 Datas estabeleci<strong>da</strong>s pelo estudo autor em seu estudo. Id.200 Ibid., p. 11.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 106forma errática, em diferentes regiões do planeta, com influências diferencia<strong>da</strong>s emca<strong>da</strong> uma delas. Bayly chega a mencionar a existência de “múltiplasmoderni<strong>da</strong>des” 201 para acentuar as diferenças entre a moderni<strong>da</strong>de ocidental e amoderni<strong>da</strong>de de países asiáticos ou africanos. Embora a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> experiênciamoderna apresente uma relação estreita com a dinâmica capitalista do mundoindustrial ocidental (Europa e Estados Unidos), a desigual<strong>da</strong>de entre a experiênciamoderna dos “avançados” e a que <strong>é</strong> observa<strong>da</strong> nos habitantes de países“perif<strong>é</strong>ricos” nos <strong>é</strong> útil para ressaltar as descontinui<strong>da</strong>des observa<strong>da</strong>s naconstituição <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna, de acordo com o conceito de sua<strong>construção</strong> se fazer em cama<strong>da</strong>s. Neste contexto, a moderni<strong>da</strong>de brasileira, porexemplo, não se mostra simplesmente como um reflexo do que <strong>é</strong> ditado pelospaíses desenvolvidos, mas constitui uma articulação particular dentro de uma nova<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de.Em relação às demarcações temporais, consideramos que estas acabamsendo convenciona<strong>da</strong>s de acordo com o enfoque pretendido pelo autor, embora operíodo compreendido, aproxima<strong>da</strong>mente, <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX at<strong>é</strong> oinício <strong>da</strong> Primeira Guerra Mundial seja amplamente reconhecido pela ocorrênciade transformações sem precedentes na história mundial. Neste contexto, asconvenções em relação à demarcação temporal não apresentam variaçõesextremas entre os diversos autores estu<strong>da</strong>dos. Kern 202 , Smil 203 , Hobsbawm 204 eBayly 205 parecem concor<strong>da</strong>r com o início <strong>da</strong> Primeira Guerra como o momento deconclusão de um período de grandes inovações, embora apresentem diferentespremissas para a determinação do marco inicial. Kern 206 considera que asmu<strong>da</strong>nças na tecnologia e na <strong>cultura</strong> ocorri<strong>da</strong>s no período que vai de 1880 at<strong>é</strong> aerupção <strong>da</strong> Primeira Guerra criaram novos modos de pensar as experiências detempo e espaço. No entanto, seu estudo estende-se at<strong>é</strong> 1918, de forma acontemplar o que nomeia de “guerra cubista”. Smil destaca o período de 1867 a201 Ibid., p. 10.202 KERN, Stephen. The culture of time and space. 1880-1918. Cambridge, Massachusetts: HarvardUniversity Press, 1994. Seventh Printing.203 SMIL, Vaclav. Creating the Twentieth Century. Technical Innovations of 1867-1914 and their LastingImpact. New York: Oxford University Press, 2005.204 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve s<strong>é</strong>culo XX: 1914-1991. São Paulo: Editora Schwarcz,2003.205 BAYLY, C. A. op. cit.206 KERN, S. op. cit., p. 1.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 1071914 207 como um período único na história, não apenas pelo âmbito extensivo <strong>da</strong>sinovações, mas tamb<strong>é</strong>m pela rapidez dos avanços obtidos no período. Bayly 208inicia o mundo moderno mais cedo, em 1780, empreendendo um longo s<strong>é</strong>culoXIX, com destaque para sua fase final entre 1890 e 1914, quando tem lugar o queele denomina “a grande aceleração” <strong>da</strong>s transformações, uma definição querelacionamos perfeitamente ao nosso estudo sobre as mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s na<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. Embora apoiando o pensamento de Tom Gunning, para quem a“moderni<strong>da</strong>de” <strong>é</strong> menos um período histórico do que uma mu<strong>da</strong>nça naexperiência 209 , nós compreendemos a moderni<strong>da</strong>de como uma temporali<strong>da</strong>dehistórica que ecoa at<strong>é</strong> o presente. 210 Deste modo estabelecemos como marcoinicial do nosso estudo sobre as mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s na <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna, oano de 1851, quando se realizou a primeira Exposição Universal em Londres.Como detalharemos adiante, existem fatores que apontam para certahomogenei<strong>da</strong>de no período que se encerra com o início <strong>da</strong> primeira GuerraMundial. Deste modo, este período, que de fato se encerra na segun<strong>da</strong> d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> dos<strong>é</strong>culo XX, encontra-se ain<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong> formulação <strong>cultura</strong>l e epistemológica <strong>da</strong>segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX.3.1.1. (R)evolução industrialOs estudos históricos consideram que a expansão industrial compreendepelo menos duas etapas marca<strong>da</strong>s por tecnologias específicas. De uma maneirageral, distingue-se uma “revolução do carvão e do ferro”, de 1780 a 1850, e uma“revolução do aço e <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de”, de 1850 at<strong>é</strong> 1914. 211 No entanto, não háconsenso em relação à utilização do termo “revolução” e nem mesmo na suaefetiva existência. Em alguns círculos, por exemplo, evita-se a expressão“revolução industrial” por sugerir, acredita-se, erroneamente, a id<strong>é</strong>ia de uma207 A <strong>da</strong>ta de 1867 foi escolhi<strong>da</strong> por Smil por ser o ano <strong>da</strong> formulação <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> lei <strong>da</strong> termodinâmica, <strong>da</strong>criação <strong>da</strong> dinamite por Alfred Nobel - como um sinal de grande contradição - a invenção <strong>da</strong> máquina deescrever e <strong>da</strong> publicação do Capital por Karl Marx, dentre outros eventos. SMIL, V. Creating…p 10.208 BAYLY, C. A. op. cit.209 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. InCHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. São Paulo: Cosac& Naify, 2001. p 39.210 BAYLY, C. A. op. cit., p. 11.211 Esta divisão <strong>é</strong> apresenta<strong>da</strong> por HENDERSON, W. O. A Revolução Industrial 1780-1914. São Paulo:Editora Verbo, Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, 1979. p. 7-8.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 108ruptura com o quadro anterior, quando, de fato, observa-se que as etapas deindustrialização são processos lentos e gra<strong>da</strong>tivos 212 , surgidos mais a partir deuma evolução do que de uma ou mais revoluções. Castells considera que aintrodução de um novo paradigma tecnológico <strong>é</strong> capaz de instituir, com granderapidez, uma descontinui<strong>da</strong>de nas bases materiais <strong>da</strong> economia, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><strong>cultura</strong>, apesar de acreditar que os novos paradigmas tecnológicos funcionamcomo pontuações em meio a períodos mais ou menos estáveis. 213 Talvez por estemotivo, este autor não se oponha à utilização do termo “revolução” paracaracterizar a penetrabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s novas tecnologias que alteram processos nosdiversos domínios <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de humana, al<strong>é</strong>m de gerar novos produtos.A importância <strong>da</strong> Revolução Industrial no s<strong>é</strong>culo XVIII vem sendorelativiza<strong>da</strong> em estudos recentes e a literatura acadêmica aponta duas diferentesvisões em relação a este processo. 214 A narrativa mais tradicional vê a RevoluçãoIndustrial como produtora de uma grande mu<strong>da</strong>nça na economia e socie<strong>da</strong>deBritânica. Outros autores consideram que a “Revolução Industrial” foi umfenômeno localizado e restrito que trouxe mu<strong>da</strong>nças significativas para umaspoucas indústrias (têxteis com utilização do algodão e do ferro), enquanto aeconomia Britânica permanecia tradicionalmente manufatureira. 215Há ain<strong>da</strong> questionamentos sobre a presença de embasamento científico nosavanços tecnológicos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia e dos primeiros anos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna. Deacordo com Smil, apesar de serem baseados em observação e experimentos, estesprocessos não proviam conhecimento que explicasse o porquê de alguns artefatose processos funcionarem enquanto outros simplesmente falhavam. 216 Este quadroteria permanecido at<strong>é</strong> as primeiras d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Revolução Industrial, mas apenasna segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX <strong>é</strong> que se presenciaram avanços tecnológicosbaseados em conhecimentos científicos sofisticados e – pela primeira vez nahistória – a ligação freqüente e ágil entre pesquisa, produção e comercialização foicapaz de produzir novos conhecimentos e, conseqüentemente, novos produtos. Adiscussão sobre a relação entre pesquisa cientifica e o desenvolvimento de novas212 Cf. “industrialização” e “revolução” em OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom. Dicionário doPensamento Social do S<strong>é</strong>culo XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996.213 CASTELLS, Manuel. A Socie<strong>da</strong>de em Rede. A era <strong>da</strong> informação: economia, socie<strong>da</strong>de e <strong>cultura</strong>. Vol. 1.São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000.214 TEMIN, Peter. Two views of the British Industrial Revolution. The Journal of Economic History, vol. 47,No. 1 (Mar, 1997).215 SMIL, V. Creating…, p. 43.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 109tecnologias parece ter acompanhado o desdobramento dos fatos. Um exemplointeressante deste questionamento pode ser observado na Figura 43, retira<strong>da</strong> doperiódico londrino Punch <strong>da</strong> última d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> do s<strong>é</strong>culo XIX. A figura mostra ocientista Michael Fara<strong>da</strong>y, conhecido por suas pesquisas com o eletromagnetismo.A charge que sugere uma homenagem ao centenário do cientista, deixa claro quenesta <strong>é</strong>poca Fara<strong>da</strong>y já não se encontrava vivo. Mas na figura, ele aparecerepresentado em meio a diversos instrumentos científicos, utilizando o fonógrafode Edison. Ao fundo vemos um aparelho telefônico e um cartaz com indicaçãodos cabos telegráficos que correm ao redor do mundo. Assim, cercado porinvenções modernas, Fara<strong>da</strong>y tem ao seu lado uma figura feminina, a Ciência,para quem se dirige, em congratulação pelos “maravilhosos progressos realizadosdesde a minha <strong>é</strong>poca”. É interessante observar que no período de vinte e cincoanos, entre a morte de Fara<strong>da</strong>y e o desenho do Punch, tenham surgido tantosobjetos e tecnologias relacionados, de alguma forma, à pesquisa cientifica.Figura 43. Um centenário científico. Fara<strong>da</strong>y (de volta)."Muito bem, Senhorita Ciência! Meus parab<strong>é</strong>ns!Vocêconseguiu um progresso maravilhoso desde o meutempo!" Punch, or The London Charivari. Vol. 100. 27de junho de 1891.The Project Gutenberg (21/11/07).Apesar disso, <strong>é</strong> importante destacar que a relação entre ciência e adescoberta de novas tecnologias não pode simplesmente assinalar uma ruptura naprodução de artefatos e modos de vi<strong>da</strong>, uma vez que muitas <strong>da</strong>s invenções doperíodo ain<strong>da</strong> poderiam ser remeti<strong>da</strong>s a descobertas casuais. Bayly acentua este216 Ibid., p. 13.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 110ponto na medi<strong>da</strong> em que muitos dos efeitos e transformações ocorridos a partir <strong>da</strong>industrialização tornaram-se claros apenas em meados do s<strong>é</strong>culo XIX. 217De fato, embora estas colocações pareçam conduzir à avaliação de que asegun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX constituiu um momento de amadurecimento <strong>da</strong>industrialização, <strong>é</strong> importante ter presente que as invenções nem sempre sucedemde imediato os desenvolvimentos tecnológicos que lhe deram origem. Na maioria<strong>da</strong>s vezes, o momento <strong>da</strong> invenção e o período de ação <strong>da</strong> tecnologia como agentemodificador, encontram-se distanciados no tempo. É este o caso, por exemplo, <strong>da</strong>televisão cuja tecnologia encontrava-se pronta antes <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra, queinterrompeu o seu desenvolvimento e adiou a institucionalização do invento em<strong>cultura</strong>. Mais importante ain<strong>da</strong> <strong>é</strong> a compreensão de diversas descobertas ao longodo tempo atuando na formulação de uma nova tecnologia promotora de <strong>cultura</strong>,como <strong>é</strong> o caso <strong>da</strong> informática. Embora os grandes avanços nesta área tenhamocorrido a partir <strong>da</strong> invenção dos semicondutores e microprocessadores, autilização de uma fonte segura de eletrici<strong>da</strong>de foi fun<strong>da</strong>mental, assim como osempreendimentos ocorridos no final do s<strong>é</strong>culo XIX voltados para a manipulaçãode <strong>da</strong>dos estatísticos e instrumentos de cálculo 218 .O fato <strong>é</strong> que, onde quer que se demarquem os primeiros momentos <strong>da</strong>industrialização, eles se encontrarão diretamente relacionados ao surgimento denovas tecnologias de produção de bens e de comunicação. Diversas característicasmostraram-se fun<strong>da</strong>mentais para a instituição deste processo, como a substituição<strong>da</strong>s ferramentas manuais pelas máquinas, o início <strong>da</strong> indústria mecânica e autilização <strong>da</strong> energia a vapor nos transportes. Tamb<strong>é</strong>m o desenvolvimento deprodutos químicos em bases científicas e o início <strong>da</strong>s tecnologias de comunicação,com o telefone e o tel<strong>é</strong>grafo, al<strong>é</strong>m do aprimoramento <strong>da</strong> fotografia e o avanço denovas tecnologias de impressão que, ao lado <strong>da</strong> introdução <strong>da</strong> litografia, foramcapazes de disseminar informação atrav<strong>é</strong>s de textos e imagens. Estampas, cartazese rótulos passaram a ser impressos com uma freqüência nunca vista, enquantogravuras e impressos ilustrados eram vendidos a preços populares, <strong>da</strong>ndo parti<strong>da</strong>ao que veio a ser chamado de indústria <strong>cultura</strong>l. Uma nova organização dotrabalho se sedimentou, a partir <strong>da</strong> divisão de tarefas com a inserção de diversasetapas na fabricação de um único objeto. A uni<strong>da</strong>de entre trabalho criativo e217 BAYLY, C. A. op. cit. p. 170.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 111trabalho produtivo foi rompi<strong>da</strong>, gerando a especialização do “projeto”, evento quecontribuiu para a formação do design moderno 219 . A mecanização <strong>é</strong> intensifica<strong>da</strong>,trazendo como conseqüência imediata uma menor variação individual entre osprodutos. Observa-se um aumento nas escalas de produção com a ampliação demercados, muitas vezes distantes do centro fabril. Para atender a estes novosmercados, dentro de uma economia de escala, as oficinas e fabricas tiveram que seexpandir, recebendo maiores investimentos de capital em instalações eequipamentos.Embora a Inglaterra seja considera<strong>da</strong> o berço <strong>da</strong>s primeiras indústrias, elafoi gra<strong>da</strong>tivamente perdendo espaço com o passar do tempo. A maior parte <strong>da</strong>stransformações de caráter industrial <strong>da</strong>s últimas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s do s<strong>é</strong>culo XIX concentraseprincipalmente nos Estados Unidos e na Alemanha. Às v<strong>é</strong>speras <strong>da</strong> PrimeiraGuerra, a produção industrial <strong>da</strong> Grã-Bretanha havia diminuído em quanti<strong>da</strong>de eseguia, em sua maioria, sendo manti<strong>da</strong> pelas indústrias de trabalho intensivo e nãopelas indústrias de capital intensivo, características do que pode ser chama<strong>da</strong> desegun<strong>da</strong> revolução industrial. A explicação para esta mu<strong>da</strong>nça, que veio abeneficiar os Estados Unidos e a Alemanha, pode ser encontra<strong>da</strong> nascaracterísticas do novo tipo de indústria voltado para as vantagens <strong>da</strong>s economiasde escopo e escala 220 . Esta nova indústria basea<strong>da</strong> na existência de um grandevolume de produção, necessitava de um sistema integrado de transporte ecomunicação que permitisse o deslocamento de grande quanti<strong>da</strong>de de produtospor diferentes locali<strong>da</strong>des. Isto significava que as ferrovias necessariamentedeveriam estar integra<strong>da</strong>s não apenas por bitolas e equipamentos estan<strong>da</strong>rdizados,mas tamb<strong>é</strong>m por procedimentos padrões. O retar<strong>da</strong>mento destes processoscontribuiu para que um sistema ferroviário consistente tenha demorado a seconfigurar. Assim, embora a ferrovia seja, muitas vezes, aponta<strong>da</strong> como aprincipal responsável pela transformação do trabalho e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no s<strong>é</strong>culo XIX 221 ,observa-se que este acontecimento constitui parte de um processo mais amplo.A importância <strong>da</strong> padronização para a produção de massa foi assinala<strong>da</strong> pelaevolução do chamado “sistema americano”, apresentado na Exposição Universal218 A este respeito cf. SMIL, V. op. cit., p 261 et. seq.219 BOMFIM, Gustavo Amarante e ROSSI, Lia Mônica. Moderno e pós-moderno, a controv<strong>é</strong>rsia. Design &Interiores. Ano 3, no. 19. São Paulo: Projeto Editores Associados Lt<strong>da</strong>., 1990.220 CHANDLER Jr., Alfred D., Fin de siècle: industrial transformation. In: TEICH, M. and PORTER, R. Finde Siècle and its Legacy. Cambridge Univ. Press. P. 28-41.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 112de 1851, em Londres e que consistia na produção em larga escala de produtospadronizados, com partes intercambiáveis, utilizando máquinas-ferramentas,numa seqüência de operações mecânicas simplifica<strong>da</strong>s. Este sistema, que haviasurgido simultaneamente e de forma independente na França e na Inglaterra,mostrou-se bem sucedido posteriormente na indústria de armamentos dos EstadosUnidos, provavelmente graças ao apoio governamental em uma socie<strong>da</strong>de semtradição de corporações artesanais. 222 Este processo e a existência de uma extensavarie<strong>da</strong>de de partes e acessórios fabricados, inclusive porcas e parafusos, apontoupara a necessi<strong>da</strong>de de uma padronização no sistema de medi<strong>da</strong>s.No decorrer <strong>da</strong> guerra com a França entre 1870 e 1871, o imp<strong>é</strong>rio prussianoobservou as dificul<strong>da</strong>des de mobilização e utilização <strong>da</strong>s ferrovias para finsmilitares. Deste modo, atentou para a importância <strong>da</strong> padronização do sistemaferroviário e estatizou as ferrovias do seu território, visando a unificação. A partirde 1877, começou a produzir locomotivas padroniza<strong>da</strong>s. 223 Na Grã-Bretanha, arede ferroviária, desenvolvi<strong>da</strong> pela iniciativa priva<strong>da</strong>, nunca se concluiu como umtodo unificado, permanecendo como a soma de linhas regionais operando deforma independente e competitivamente. As dificul<strong>da</strong>des deste sistema erambastante claras: embora houvesse linhas ligando as diversas locali<strong>da</strong>des, o seupercurso envolvia mu<strong>da</strong>nça de trens e transferência de carga entre linhas,onerando os custos de transporte de mercadoria. Deste modo, a adoção <strong>da</strong>padronização do sistema ferroviário estabelece-se como um elemento deinfluência direta sobre o desenvolvimento do país. No decorrer deste capítuloveremos como a ferrovia atuou de forma revolucionária na produção do <strong>olhar</strong>moderno, a partir <strong>da</strong> compressão sobre as dimensões de tempo e espaço. Nestemomento, desejamos apenas acentuar, de um lado, a proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>stransformações tecnológicas e estruturais na reformulação do <strong>olhar</strong> e, de outro, ofato de que ambas caminham de forma não teleológica sofrendo influências,muitas vezes não previsíveis, como políticas e econômica.221 HESKETT, John. Desenho Industrial. Rio de Janeiro: Jos<strong>é</strong> Olympio, 1998. p. 29.222 HEILBRONER, Robert L. Do Machines Make History? Technology and Culture, Vol. 8, No. 3. (Jul.,1967), p. 343.223 HESKETT, J. op. cit., p. 70-71.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 1133.1.2. A tecnologia e o novo <strong>olhar</strong> <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>deUma análise que busque compreender as transformações <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>em um período tão pleno de inovações tecnológicas, como <strong>é</strong> o caso <strong>da</strong> últimametade do s<strong>é</strong>culo XIX, terá que necessariamente considerar questões liga<strong>da</strong>s àstecnologias de comunicações <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. Ao longo de to<strong>da</strong> a moderni<strong>da</strong>de, astecnologias parecem ter despertado paixões e aversões. As instâncias teóricas queabor<strong>da</strong>m o grau de influência <strong>da</strong>s tecnologias e a existência de um valor intrínsecoa elas constituem um vasto campo de disputa entre diferentes perspectivas. Destemodo, questiona-se em que medi<strong>da</strong> uma tecnologia de comunicação trata-se <strong>da</strong>uma força determinante em uma mu<strong>da</strong>nça social e, em que medi<strong>da</strong> ela pode serneutra, ou seja, pode ser tão boa ou má quanto o uso que dela <strong>é</strong> feito. Apesar deconsiderarmos a segun<strong>da</strong> questão como um desdobramento <strong>da</strong> primeira, <strong>é</strong> delaque partiremos.Marshall McLuhan, que foi muito influente na d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1960, consideravaesta dúvi<strong>da</strong> como fora de questão. Para ele seria equivalente a questionar se ovírus <strong>da</strong> varíola ou as armas de fogo seriam, em si mesmos, bons ou maus - seuvalor dependendo <strong>da</strong> forma como seriam utilizados. 224 De acordo com McLuhanto<strong>da</strong>s as tecnologias de comunicação atuam diretamente na <strong>construção</strong> do nossopensamento e de nossa percepção, independente do conteúdo e do contexto social.Em nosso ponto de vista, as conclusões de McLuhan parecem excessivamentedeterministas (a mensagem seria apenas encontra<strong>da</strong> nos meios?). Sua rejeição àsanálises de conteúdo e às questões de recepção enfraquece e limita o seuposicionamento. Al<strong>é</strong>m do quê, nos perguntamos, como ficaria a sua análise sobreos meios frios e quentes a partir <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças, fusões e alterações quefreqüentemente sofri<strong>da</strong>s pelos próprios meios. A HDTV, televisão de altadefinição, por exemplo, continuaria a ser considera<strong>da</strong> um meio frio como a antigatelevisão em preto e branco?Apesar <strong>da</strong>s nossas críticas em relação ao posicionamento de McLuhan,consideramos que o determinismo tecnológico não chega a constituir umproblema na medi<strong>da</strong> em que ele <strong>é</strong> matizado. Deste modo, consideramos que apresença ou implantação de uma determina<strong>da</strong> tecnologia de comunicação pode ser224 McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Ed. Cultrix,1969. 15 a . reimpressão. p. 25.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 114um agente catalisador ou facilitador de determina<strong>da</strong>s conseqüências - que podemou não se realizar em socie<strong>da</strong>de ou períodos específicos. 225 Para nós, odeterminismo torna-se problemático quanto assume o enfoque evolucionista epassa a considerar as mu<strong>da</strong>nças sócio-<strong>cultura</strong>is de acordo com uma linhaevolucionária sempre em direção ao “progresso” material e, tamb<strong>é</strong>m, muitasvezes, moral – obtido a partir dos sucessivos estágios de desenvolvimentotecnológico, considerados ver<strong>da</strong>deiras revoluções. Deste modo, ao se acatar avocação evolucionista, algumas vezes de forma inconsciente, os períodoscaracterizados por uma determina<strong>da</strong> tecnologia passam a ser chamados como “era<strong>da</strong> informação” ou “<strong>da</strong> imprensa”. Não <strong>é</strong> preciso dizer que esta abor<strong>da</strong>gem, al<strong>é</strong>mde relegar a influência social a um segundo plano, tende a considerar asubstituição de uma tecnologia por outra mais moderna, quando na ver<strong>da</strong>de elasmuitas vezes se sobrepõem: a televisão não destruiu o cinema nem pareceameaça<strong>da</strong> pela internet. As diversas tecnologias não se encontram simplesmenteajusta<strong>da</strong>s em linhas sucessivas em direção ao “progresso”.Em nosso ponto de vista, mais do que um agente modificador, ca<strong>da</strong>tecnologia <strong>é</strong> um processo que atua na <strong>construção</strong> do ambiente e <strong>da</strong>s relaçõessociais, econômicas, políticas e <strong>cultura</strong>is, mas, tamb<strong>é</strong>m sofrendo influênciasdestas. O conceito de tecnologia como processo procura não fixá-la como umevento detido no tempo, quando na ver<strong>da</strong>de sua implantação ocorre em diversasetapas a partir <strong>da</strong> sua invenção 226 , passando pela sua formalização,institucionalização e absorção e, algumas vezes, descontinui<strong>da</strong>des. Deste modo,faremos algumas colocações relaciona<strong>da</strong>s ao desenvolvimento <strong>da</strong> energia el<strong>é</strong>trica,uma “nova tecnologia” surgi<strong>da</strong> no s<strong>é</strong>culo XIX, com o intuito de observar o quechamamos de processo.A imagem do planisf<strong>é</strong>rio que vemos aqui (Figura 44) <strong>é</strong> uma montagem defotos tira<strong>da</strong>s por sat<strong>é</strong>lites. 227 Ela cria um desenho do nosso planeta a partir <strong>da</strong>utilização <strong>da</strong> iluminação noturna em áreas urbanas. Se uma montagem como estapudesse ter sido produzi<strong>da</strong> há duzentos anos atrás, o desenho resultante teria sido225 FINNEGAN, Ruth. Literacy and Orality: Studies in the Technology of Communication. Oxford: BasilBlackwell, 1988. apud CHANDLER, Daniel (1995): Technological or Media Determinismhttp://www.aber.ac.uk/media/Documents/tecdet/tecdet.html Acesso em 12 de fevereiro de 2008 às 16:07.226 Embora reconheçamos grandes valores a quem são atribuí<strong>da</strong>s importantes “invenções”, em nosso ponto devista, uma tecnologia surge mais como o resultado de um longo processo de estudos científicos anteriores.Seria algo como a pessoa certa estar corretamente prepara<strong>da</strong>, no lugar e na hora certos.227 A sugestão desta imagem foi obti<strong>da</strong> a partir de SMIL, V. op. cit..


O OLHAR INOCENTE É CEGO 115muito diferente. De modo que, o resultado que temos em mãos nos sugere umamu<strong>da</strong>nça impactante gera<strong>da</strong> pelo desenvolvimento de uma tecnologia específica -a eletrici<strong>da</strong>de - capaz de “imprimir” alterações na própria face <strong>da</strong> Terra.Figura 44. Terra à noite. NASA/DMSP. 27 de novembro de 2000.Retirado de (5/06/07).A “montagem” realiza<strong>da</strong> duzentos anos atrás talvez nos mostrasse um brilhopálido em alguns pontos <strong>da</strong> Europa e dos Estados Unidos. A comparação com aimagem atual geraria admiração pelo desenvolvimento proporcionado peloemprego desta tecnologia, chegando a sugerir uma ver<strong>da</strong>deira revolução. Nãoresta dúvi<strong>da</strong> que o emprego <strong>da</strong> energia el<strong>é</strong>trica atuou de forma revolucionária naconstituição do <strong>olhar</strong> moderno, minimamente, por interferir na influência naturaldos tempos diurnos e noturnos, al<strong>é</strong>m de possibilitar energia para a utilização dediversos aparatos como o projetor de cinema. No entanto, a provisão deiluminação noturna que mudou de forma direta a vi<strong>da</strong> cotidiana nas ruas e nascasas, foi inicia<strong>da</strong> com a iluminação a gás na primeira metade do s<strong>é</strong>culo XIX.Sobre a luz a gás, Guy de Maupassant chegou a afirmar que “as noitesresplandecentes são mais alegres que os grandes dias de sol”. 228A partir do final do s<strong>é</strong>culo XIX, a eletrici<strong>da</strong>de foi um fator predominantepara o desenvolvimento tecnológico, não somente por promover iluminação pararesidências e empresas, apartando o tempo <strong>da</strong> influência direta <strong>da</strong> natureza, mastamb<strong>é</strong>m por transformar inúmeros processos de produção, particularmente nasindústrias químicas e de metalúrgicas.228 MAUPASSANT, Guy de. Clair de Lune, Paris, 1909, p. 222. apud BENJAMIN, Walter. A fotografia.Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 613. [T 5,1].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 116A eletrici<strong>da</strong>de era conheci<strong>da</strong> desde a antigui<strong>da</strong>de, mas estudos comcaracterísticas científicas foram observados apenas a partir dos s<strong>é</strong>culos XVII eXVIII. No entanto, como sugerem as figuras <strong>da</strong> publicação do s<strong>é</strong>culo XVIII(Figura 45; Figura 46), apesar de estu<strong>da</strong><strong>da</strong> em laboratórios, ain<strong>da</strong> não existia umaid<strong>é</strong>ia concreta do que poderia ser a sua utilização. Os experimentos se prendiam àcompreensão de seus princípios enquanto sua finali<strong>da</strong>de sugeria uma proximi<strong>da</strong>decom a área m<strong>é</strong>dica.Figura 45. Folha de rosto do livroAn essay on electricity, 1785.London, 1799. Eighteenth CenturyCollections Online. Gale Group.(2/08/06)Figura 46. ADAMS, George. An essay on electricity,explaining the principles of that useful science; anddescribing the instruments, ... Illustrated with six plates. Thefifth edition, with corrections and additions, by WilliamJones, ... London, 1799. Eighteenth Century CollectionsOnline. Gale Group. (2/08/06)Esta id<strong>é</strong>ia ain<strong>da</strong> acompanhou o desenvolvimento <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de por algumtempo. No folheto de 1890, vemos o anúncio de um magneto baseado no “poderde cura <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de” e que afirmava poder sanar problemas de pele, dores dedente, ciática e at<strong>é</strong> paralisias (Figura 47). Este tipo de anúncio não se trata de umcaso isolado. Relatos de experimentos m<strong>é</strong>dicos utilizando eletrici<strong>da</strong>de eramcomuns em publicações especializa<strong>da</strong>s 229 , como o Electricity and ElectricalEngineering, cujo anúncio reproduzimos aqui (Figura 48). É claro que estaspublicações, existentes em grande número, não eram dedica<strong>da</strong>s apenas aexperimentos ou aplicações m<strong>é</strong>dicas, mas eram volta<strong>da</strong>s para a grande deman<strong>da</strong>de trabalhadores qualificados no setor el<strong>é</strong>trico.229 MARVIN, Carolyn. When old technologies were new. New York: Oxford University Press, 1990. p. 129.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 117Figura 48. Anúncio do periódico Electricity & Electrical Engineering,1888. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. The BritishLibrary. (2/12/07)Figura 47. Anúncio do magneto el<strong>é</strong>trico do Dr.Lowder, 1890. Evanion Collection ofEphemera. Collect Britain. The British Library. (19/01/08)A nova fonte de energia foi apresenta<strong>da</strong> na Exposição de Paris de 1855.Segundo L’Illustration Française, a eletrici<strong>da</strong>de “dá uma luz que parece umaemanação do sol; ela produziu no tratamento físico de corpos simples, efeitos queviriam deslocar todos os conhecimentos teóricos sobre a mat<strong>é</strong>ria”. 230 Mas, foiapenas na Exposição de 1867 que a eletrici<strong>da</strong>de recebeu maior atenção graças àinauguração do primeiro cabo telegráfico submarino um ano antes. JacquesFabien, em 1863, a propósito de considerações sobre a veloci<strong>da</strong>de de notíciastrazi<strong>da</strong>s pelo tel<strong>é</strong>grafo como agente de insani<strong>da</strong>de, faz um pequeno relato dopercurso de aplicação <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de:A luz jorrando <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de serviu primeiro para iluminar as galeriassubterrâneas <strong>da</strong>s minas: no dia seguinte, as praças públicas e as ruas; depois, asfábricas, as oficinas, as lojas, os espetáculos, os quart<strong>é</strong>is; e finalmente, as casas defamília. Os olhos, em presença desse inimigo radiante, comportaram-se bem, maspouco a pouco veio o deslumbramento, efêmero no início, depois periódico, e nofim, persistente. Eis o primeiro resultado. 231Na sua chega<strong>da</strong> à Inglaterra, em 1881 - para distribuição e ven<strong>da</strong> - aeletrici<strong>da</strong>de era utiliza<strong>da</strong> exclusivamente para iluminação, o que gerou uma s<strong>é</strong>rie230 L’Illustration Française . Paris: 17 nov. 1855. p. 335. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposiçõesuniversais. Espetáculos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de do s<strong>é</strong>culo XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. p. 90231 FABIEN, Jacques. Paris em Songe. Paris: 1863, pp. 96-98. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 610. [T3,1].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 118de problemas. 232 Por um lado, este tipo de utilização mostrou-se vantajosa emrelação ao gás, graças a sua limpeza e brilho. No entanto, como a deman<strong>da</strong>exclusiva para iluminação era limita<strong>da</strong> às horas de escuridão, o fator de carganecessário à produção de energia permanecia inativo ao longo do dia. Em outraspalavras, os custos de capaci<strong>da</strong>de de geração de energia para o pico <strong>da</strong> carga,localizado principalmente à noitinha e no começo <strong>da</strong> manhã, faziam com que aeletrici<strong>da</strong>de atingisse um alto custo, dificultando o seu consumo. A solução paraeste problema deixava evidente a necessi<strong>da</strong>de de se criarem outros usos para aolongo do dia. Em 1895, o engenheiro <strong>da</strong> estação de força Kensington Courtpublicou um pronunciamento no Journal of the Institutuion of ElectricalEngineers, onde afirmava a importância de se encorajar à população a fazer uso<strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de para o aquecimento e o preparo de alimentos; para tanto, devia-setornar evidentes as vantagens de seu uso, desenvolvendo-se dispositivos para estefim. 233 Ou seja, clamava-se pela criação de artefatos que pudessem utilizar a <strong>da</strong>eletrici<strong>da</strong>de. Como qualquer outro produto industrial, a energia el<strong>é</strong>trica precisavaser consumi<strong>da</strong> em quanti<strong>da</strong>de e por um público amplo para obter as vantagens <strong>da</strong>produção em escala.Por volta de 1900, o uso <strong>da</strong> energia el<strong>é</strong>trica era mais freqüente na indústria etração, mas a deman<strong>da</strong> permanecia baixa à noite e nos finais de semana. At<strong>é</strong> oinício <strong>da</strong> Primeira Guerra Mundial seu uso dom<strong>é</strong>stico era ínfimo 234 e, ao final doconflito, as mesmas dificul<strong>da</strong>des continuavam presentes. A maior parte dosprodutos dom<strong>é</strong>sticos que conhecemos hoje foi inventa<strong>da</strong> naquela <strong>é</strong>poca, ao ladode vários outros aparatos que devem ter se mostrado menos úteis, como chaleirasel<strong>é</strong>tricas e esterilizadores de leite (Figura 49; Figura 50). Mas, o principalobstáculo para a utilização <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de continuava sendo o seu alto custo.Havia um círculo vicioso: a energia el<strong>é</strong>trica era cara e por isso pouco utiliza<strong>da</strong>;por ser pouco consumi<strong>da</strong>, continuava cara. Al<strong>é</strong>m disso, havia outras dificul<strong>da</strong>des:era necessário levar cabos el<strong>é</strong>tricos para dentro de casa e pelos diversos aposentos.A eletrici<strong>da</strong>de encontrava terreno f<strong>é</strong>rtil para superstições: seus pressupostos erampouco compreendidos, e ain<strong>da</strong> podia ser fatal em caso de mau uso. Finalmente, ogás continuava sendo mais eficiente e barato.232 FORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design & society form Wedgwood to IBM. New York: PantheonBooks, 1986. p. 183.233 Ibid., p. 184


O OLHAR INOCENTE É CEGO 119Figura 49. Electric breakfast, 1914. Retirado deFORTY, Adrian. Objetcts of Desire. Design &society form Wedgwood to IBM. New York:Pantheon Books, 1986. p. 187.Figura 50. Anúncio de produtos el<strong>é</strong>tricosMagnet, 1914. Retirado de FORTY, Adrian.Objetcts of Desire. Design & society formWedgwood to IBM. New York: PantheonBooks, 1986. p. 186.Dois recursos foram considerados para mu<strong>da</strong>r este quadro: a eficiência dosartefatos, ressaltando a importância do design, e a utilização de propagan<strong>da</strong>. Nestecontexto, a eletrici<strong>da</strong>de chegou a ser trata<strong>da</strong> como “o maior presente <strong>da</strong> ciênciapara o mundo” e o “combustível do futuro”. Neste sentido, o texto de Condulack,mostra, a partir <strong>da</strong> análise de representações <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de (e seus raiosluminosos) em impressos <strong>da</strong>s últimas duas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s do s<strong>é</strong>culo XIX, como estatecnologia associou-se à divulgação de uma vi<strong>da</strong> urbana moderna. 235 Éinteressante observar em exemplos contemporâneos a continui<strong>da</strong>de de umasolução gráfica vincula<strong>da</strong> à glorificação de uma tecnologia, então, recente.234 Ibid., p. 185235 CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle of Beams: Electriciy and the Selling ofModernity. Journal of Design History. Summer 2005; 18: 147-166.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 120Figura 52. Liber<strong>da</strong>de faiscando para omundo. Le Journal Illustr<strong>é</strong> de 10 de outubrode 1875. In: CORDULACK, S. op. cit. p.149.Figura 51. O Farol el<strong>é</strong>trico <strong>da</strong> Torre Eiffel,ilustração <strong>da</strong> capa para Exposition de Paris de1889. No. 14, 1 o . de junho de 1889. In:CORDULACK, Shelley Wood. A Franco-American Battle of Beams: Electriciy and theSelling of Modernity. Journal of Design History.Summer 2005; 18: 157.Figura 53. A estrela <strong>da</strong> esperança: uma novaode naval. Punch, or the London Charivari,Vol. 104, 11 de fevereiro de 1893.The Project Gutenberg. (21/11/07).As noções de moderni<strong>da</strong>de e progresso, sugeri<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> aliança comnovas descobertas científicas, passaram a ser aplica<strong>da</strong>s ostensivamente no designde produtos el<strong>é</strong>tricos, após a Segun<strong>da</strong> Guerra, utilizando-se referências explícitasa carros e aviões. Deste modo, embora a sua utilização tenha sido praticamente“empurra<strong>da</strong>”, a energia el<strong>é</strong>trica <strong>é</strong> hoje fun<strong>da</strong>mental na vi<strong>da</strong> cotidiana e nodesenvolvimento de qualquer país, participando ativamente na <strong>construção</strong> do<strong>olhar</strong> moderno.No Brasil, a introdução <strong>da</strong> energia el<strong>é</strong>trica encontrou as mesmasdificul<strong>da</strong>des iniciais, mas a principal diferença pode ser observa<strong>da</strong> na totalinexistência de artigos el<strong>é</strong>tricos, que durante muitos anos, eram importados. Asprimeiras experimentações aconteceram no período imperial embora adisseminação tenha ocorrido apenas nos últimos anos do s<strong>é</strong>culo XIX, sob o


O OLHAR INOCENTE É CEGO 121regime republicano. No entanto, poucas companhias de eletrici<strong>da</strong>de demonstraraminvestimentos no sentido de tentar ampliar o consumo. A Central El<strong>é</strong>trica RioClaro, localiza<strong>da</strong> no interior de São Paulo <strong>é</strong> um destes exemplos. Esta empresaincluía em seus negócios a reven<strong>da</strong> de lâmpa<strong>da</strong>s, ventiladores, fusíveis, lustres emotores. Em 1910 passou a vender campainhas de porta e ferros el<strong>é</strong>tricos deengomar e, em 1920, geladeiras. A AMFORP, Companhia Central Brasileira deForça El<strong>é</strong>trica, localiza<strong>da</strong> no Espírito Santo no final <strong>da</strong> d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1920, vendia acr<strong>é</strong>dito nas dependências de seus escritórios, produtos el<strong>é</strong>tricos importados.Assim, at<strong>é</strong> 1930 embora se observasse um crescimento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de instala<strong>da</strong>, aprodução de equipamentos el<strong>é</strong>tricos era virtualmente inexistente. A conta de luzde 1937 <strong>da</strong> “Companhia Douradense de Electrici<strong>da</strong>de” apresenta um pequeno boxcom propagan<strong>da</strong> do rádio: “Encha o seu lar de alegria com o rádio GeneralElectric” (Figura 54). Deste modo, embora o desenvolvimento <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>detenha encontrado no Brasil os mesmos obstáculos <strong>da</strong> Inglaterra, não se tem notíciade nenhum investimento específico na criação de produtos que pudessem expandiro consumo, muito menos de sinais do papel que o design teria a desempenharnesse processo.Figura 54. Recibo de luz, emitido em 1937. Arquivo museu históricoCPFL. In: DIAS, Renato Feliciano (coord.) Panorama do setor deenergia el<strong>é</strong>trica no Brasil. Centro <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de noBrasil. Rio de Janeiro, 1988. p. 97.Este quadro nos permite destacar a urgência ao estímulo do consumo e oprocesso de criação de uma necessi<strong>da</strong>de. A eletrici<strong>da</strong>de, isto <strong>é</strong>, uma novatecnologia, que hoje nos parece essencial à vi<strong>da</strong> moderna, necessitou de“estímulos” ao seu consumo atrav<strong>é</strong>s do desenvolvimento de objetos quefuncionassem baseados neste tipo de energia. Alguns destes artefatos, em um


O OLHAR INOCENTE É CEGO 122primeiro momento, funcionavam melhor com outra energia ou eram mesmocompletamente desnecessários.De volta à montagem <strong>da</strong>s fotos noturnas retira<strong>da</strong>s por sat<strong>é</strong>lites (Figura 44)temos ain<strong>da</strong> algumas observações, desta vez unicamente em relação à imagemcontemporânea. Nesta figura, observamos que os pontos claros que marcam amaior incidência de utilização de eletrici<strong>da</strong>de parecem concentrar-se maisfortemente na Europa, Am<strong>é</strong>rica do Norte (com predomínio em sua costa leste) eJapão. Com menos intensi<strong>da</strong>de, as luzes situam-se ain<strong>da</strong> na Índia e regiõescosteiras <strong>da</strong> Am<strong>é</strong>rica do Sul, Ásia e Austrália. As regiões centrais <strong>da</strong> Ásia e <strong>da</strong>África parecem às escuras. Se ao pensarmos nesta mesma imagem ao longo dotempo tivemos a certeza do poder de influência desta tecnologia, o contrasteluminoso entre as diversas regiões nos sugere que esta influência esteve sensível aoutras questões, predominantemente econômicas e sociais.Em nosso ponto de vista, a <strong>construção</strong> social <strong>da</strong> tecnologia compreendenegociação e <strong>construção</strong> de significados por parte de produtores e consumidores.Considerando os estudos de comunicação, este enfoque aproxima-se <strong>da</strong>decodificação “negocia<strong>da</strong>” aponta<strong>da</strong> por Stuart Hall 236 . O modelo de Hall apontapara uma cadeia comunicativa que não opera de forma unilateral. Ele mostra queuma mensagem <strong>visual</strong>, por exemplo, <strong>é</strong> uma estrutura complexa, com váriascama<strong>da</strong>s de sentido e que sua recepção não <strong>é</strong> algo perfeitamente transparente.Esta visão, que apresenta a “negociação” <strong>da</strong> recepção e a existência demúltiplos vetores de influência, pode ser utiliza<strong>da</strong> para explicar, em parte, porque,em alguns casos, a tecnologia que acabou tornando-se propulsora <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças,encontrava-se disponível d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s antes do início de seu uso e do conseqüenteprocesso de reconfiguração <strong>da</strong>s condições sociais existentes. Em ver<strong>da</strong>de, asalterações desencadea<strong>da</strong>s por uma nova tecnologia deman<strong>da</strong>m, dentre outrascoisas: um determinado estágio de conhecimento; um ambiente institucional eindustrial específico; disponibili<strong>da</strong>de de talentos; certa mentali<strong>da</strong>de econômica egrupos sociais capazes de absorver a produção gera<strong>da</strong>. Em resumo, “a inovação236 HALL, Stuart. Reflexões sobre o modelo de codificação/decodificação: uma entrevista com Stuart Hall.In: Da Diáspora: identi<strong>da</strong>des e mediações <strong>cultura</strong>is. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a.p. 357.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 123tecnológica não <strong>é</strong> uma ocorrência isola<strong>da</strong>” 237 , mas tamb<strong>é</strong>m não <strong>é</strong> “umatempestade que nos impele irresistivelmente para o futuro”, ao qual viramos ascostas. 238 Ou por outro, tecnologia não <strong>é</strong> sinônimo de progresso. As tecnologiasde comunicação e <strong>visual</strong>ização, que fun<strong>da</strong>m a <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, como qualquer outratecnologia, surgem e se modificam de acordo com os movimentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de,ampara<strong>da</strong>s pelos desejos <strong>da</strong>s classes dominantes, sem dúvi<strong>da</strong>, mas tamb<strong>é</strong>mapoia<strong>da</strong>s ou rejeita<strong>da</strong>s pela socie<strong>da</strong>de como um todo.3.2. A ci<strong>da</strong>de moderna e a vi<strong>da</strong> cotidianaO estudo <strong>da</strong>s formações urbanas surgi<strong>da</strong>s e modifica<strong>da</strong>s com aindustrialização ao longo do s<strong>é</strong>culo XIX mostra-se fun<strong>da</strong>mental para acompreensão <strong>da</strong> <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong> moderno. O <strong>olhar</strong> deste período sofreuinfluência <strong>da</strong> nova constituição espacial e do grande número de estímulos visuaisque acompanharam este processo. No entanto, a ci<strong>da</strong>de moderna não pode sersimplesmente compreendi<strong>da</strong> como uma aldeia que cresceu. Ela <strong>é</strong> composta poruma enti<strong>da</strong>de complexa e sujeita a influência de diversos fatores. Max Weberobserva que a dimensão do aglomerado urbano não constitui atributo suficientepara analisar o conceito de ci<strong>da</strong>de. 239 Al<strong>é</strong>m disso, prossegue o autor, ascaracterísticas econômicas, de produção ou consumo tamb<strong>é</strong>m não facilitam acompreensão, na medi<strong>da</strong> em que as ci<strong>da</strong>des são normalmente constituí<strong>da</strong>s por ummisto de ativi<strong>da</strong>des e que, portanto, “não podem ser classifica<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong> casosenão tendo-se em conta seus componentes predominantes”. 240 Uma ci<strong>da</strong>de nãopode ser simplesmente considera<strong>da</strong> como um conjunto de casas e nem mesmocomo uma associação econômica com proprie<strong>da</strong>de territorial própria. Para Weber,a ci<strong>da</strong>de “tem que se apresentar como uma associação autônoma em algum nível,como um aglomerado de instituições políticas e administrativas especiais”. 241 Demaneira semelhante, Castells, ao abor<strong>da</strong>r a socie<strong>da</strong>de urbana, observa que não setrata de uma questão de forma espacial, mas de um “certo sistema de valores,237 CASTELLS, Manuel. op. cit. p. 55.238 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito <strong>da</strong> história. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s. Magia e t<strong>é</strong>cnica, arte e política.São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226.239 WEBER, Max. Conceito e Categorias <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. In: VELHO, Otavio Guilherme. (org.) O fenômenourbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 69.240 Ibid., p. 73.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 124normas e relações sociais” que possuem uma especifici<strong>da</strong>de histórica e uma lógicaprópria de organização e transformação. 242 Embora considerando a extensão <strong>da</strong>dimensão espacial na <strong>construção</strong> de um novo modelo de <strong>olhar</strong>, a nossa análise <strong>da</strong>influência <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de moderna mostra-se inseparável de um conjunto amplo demu<strong>da</strong>nças filosóficas, sociais e ocorri<strong>da</strong>s na organização do trabalho.A partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XVIII, a que<strong>da</strong> do índice demortali<strong>da</strong>de alia<strong>da</strong> à mu<strong>da</strong>nça na estrutura de produção, conduziu camponeses eartesãos em direção aos empreendimentos industriais. Estes estabelecimentosconcentravam-se nas proximi<strong>da</strong>des dos cursos de águas e, posteriormente, com ainvenção <strong>da</strong> máquina a vapor, perto <strong>da</strong>s jazi<strong>da</strong>s de carvão, mas, sobretudo, aoredor <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des que passaram a crescer mais rapi<strong>da</strong>mente do que outrasregiões. 243 Se a energia mecânica para a produção necessitava de água e carvão, oprocesso industrial requisitava ain<strong>da</strong> de uma concentração de mão de obradisponível e renovável e um mercado consumidor e a ci<strong>da</strong>de poderia fornecerestas condições.Embora considerando a vinculação entre a aceleração industrial e a ci<strong>da</strong>demoderna, temos a convicção de que esta relação não deva ser simplifica<strong>da</strong> nosentido de tentar compreender as ci<strong>da</strong>des europ<strong>é</strong>ias sendo alça<strong>da</strong>s do seu torporpela industrialização. De fato, o desenvolvimento industrial encontrou suporte emuma rede urbana construí<strong>da</strong> a partir do início <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna e que conectavadiversas ci<strong>da</strong>des em um sistema de interação comercial. 244 Tamb<strong>é</strong>m existemreferências ao emprego <strong>da</strong> palavra “ci<strong>da</strong>de” na língua inglesa para distinguir asáreas urbanas <strong>da</strong>s rurais a partir do s<strong>é</strong>culo XVI 245 , embora tenha sido apenas nos<strong>é</strong>culo XIX que este termo passou a ser empregado com a conotação moderna queconhecemos hoje. Por outro lado, foi apenas em meados do s<strong>é</strong>culo XIX que acrescente industrialização, o desenvolvimento correspondente e a expansão <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> urbana fizeram <strong>da</strong> capital, Londres, o primeiro centro a fazer jus à utilização<strong>da</strong> palavra “ci<strong>da</strong>de”, conduzindo a Inglaterra à primeira socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> históriamundial a ter a maior parte de sua população vivendo em centros urbanos.241 Ibid., p. 76.242 CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 127243 BENEVOLO, Leonardo. História <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 551.244 DE VRIES, Jan. The industrial revolution and the industrious revolution. Journal of Economic History.Vol. 54, No. 2, (1994), p. 252.245 WILLIAMS, R. op. cit., p. 76.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 125No prazo de aproxima<strong>da</strong>mente cem anos to<strong>da</strong> a estrutura de produção deartefatos foi modifica<strong>da</strong> com a conseqüente mu<strong>da</strong>nça dos artesãos para asfábricas. Manchester, que em 1760 tinha 12.000 habitantes, alcançou 40.000 nametade do s<strong>é</strong>culo XIX. 246 Londres e Paris expandiram-se como grandes ci<strong>da</strong>desmanufatureiras. Durante a primeira metade do s<strong>é</strong>culo XIX a população de Londrestriplicou e a de Paris dobrou. 247 Nos Estados Unidos, a população urbana mais doque quadruplicou entre 1870 e 1910, de menos de 10 milhões para mais de 42milhões. 248 Ao lado <strong>da</strong> expansão populacional, uma gama de novas tecnologias eprodutos passou a exercer influência sobre o modo de vi<strong>da</strong> dos homens e mulheresque moravam nas ci<strong>da</strong>des. A partir do s<strong>é</strong>culo XIX, o aumento na produção debens de consumo e aumento exponencial na quanti<strong>da</strong>de de informações visuaisproduziu marcas permanentes sobre as formas de relacionamento com o ambientee a formação de um novo modo de ver. A ci<strong>da</strong>de moderna que surge no s<strong>é</strong>culoXIX apresenta o avanço <strong>da</strong> máquina, <strong>da</strong> indústria, do excesso de estímulos e deuma nova experiência de vi<strong>da</strong>, mas, tamb<strong>é</strong>m, mostra-se como personagemprincipal deste novo momento. Neste contexto, impõe uma certa autonomia queaos poucos vai sendo exposta em diversos tipos de representação, como <strong>é</strong> o caso<strong>da</strong> obra The City, de 1919, onde a face <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de <strong>é</strong> retrata<strong>da</strong> como uma mistura defragmentos de elementos urbanos, passantes, máquinas, textos, formas planas,ângulos, curvas, áreas escuras e luminosas (Figura 55). Embora a obra de L<strong>é</strong>gerapresente influência de tecnologias que ain<strong>da</strong> não se encontravam disponíveis emmeados do s<strong>é</strong>culo anterior, sua síntese pictórica pode ser utiliza<strong>da</strong> para explicitar omovimento urbano que já se mostrava evidente neste período.246 BENEVOLO, Leonardo. História <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 551.247LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 36.248 U. S. Bureau of the Census, 1980 Census of the Population, Washington, D. C..: Government PrintingOffice, 1980, tabela 3. apud SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímulo e o início do sensacionalismopopular. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. SãoPaulo: Cosac & Naify, 2001. p 142.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 126Figura 55. A ci<strong>da</strong>de, 1919. Fernand L<strong>é</strong>ger. Óleo sobre tela.Philadelphia Museum of Art.Apesar de representar a fragmentação e a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, a pinturade L<strong>é</strong>ger não evidencia a influência direta <strong>da</strong> indústria sobre a metrópole. Noentanto, esta questão aparece bem representa<strong>da</strong> em imagens produzi<strong>da</strong>s emmeados do s<strong>é</strong>culo XIX nos tons de cinza <strong>da</strong>s gravuras <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca que podem serrelacionados às cinzas que exalavam <strong>da</strong>s chamin<strong>é</strong>s <strong>da</strong>s fabricas. Neste contexto,retratou-se insistentemente a vi<strong>da</strong> miserável e insalubre dos trabalhadores <strong>da</strong>smanufaturas e suas jorna<strong>da</strong>s de trabalho de mais de quatorze horas diárias,extensivas a mulheres e crianças. Diversas ilustrações do s<strong>é</strong>culo XIX mostram auniformi<strong>da</strong>de do trabalho atomizado e incessante em ambientes com perspectivasacentua<strong>da</strong>s e pontos de fuga longínquos onde a figura <strong>da</strong> mulher trabalhadora esua ferramenta de trabalho parecem repetir-se ao infinito (Figura 56; Figura 58) AFigura 57 mostra uma “pobre jovem comerciária” que após a fadiga <strong>da</strong> semanaquer apenas descansar no domingo, que ao contrário dos demais dias, “passa tãorápido”. Era ain<strong>da</strong> a <strong>é</strong>poca em que se formulava a legislação trabalhista e aspausas do trabalho. Se discussões como estas se encontravam no escopo dotrabalho desenvolvido por Marx e Engels nesta mesma <strong>é</strong>poca, elas tamb<strong>é</strong>m semostravam sob os traços dos cartunistas. Deste modo, as condições terríveis dostrabalhadores, confinados no porão, apresentam-se em contraste com a vi<strong>da</strong> docapitalista sendo servido no an<strong>da</strong>r de cima (Figura 59).


O OLHAR INOCENTE É CEGO 127Figura 56. Manufatura com trabalhadorasmulheres na seção de polimento de penas paracanetas. Illustrated London News, 1851. (4/06/07)Figura 57. Imagem ilustrativa de um debatesobre o fechamento <strong>da</strong>s lojas aos domingos.Punch, or The London Charivari.Vol. 104, 8de abril de 1893. (4/06/07)Figura 58. Interior de fábrica com tearmecânico. Illustrated London News, 1844. (4/06/07)Figura 59. “Capital e Trabalho”. “O capitalista vive paparicado enquanto, abaixo dele, ostrabalhadores labutam em terríveis condições”.Punch Magazine, 1843. (4/06/07)Um grande número de pessoas vivendo em um ambiente urbano comp<strong>é</strong>ssimas condições de habitação formulava o quadro <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des na metade do


O OLHAR INOCENTE É CEGO 128s<strong>é</strong>culo XIX. A partir deste período, tiveram início algumas interferências diretassobre este ambiente. Neste contexto observa-se o aumento no suprimento de águapotável e <strong>da</strong> rede de esgoto, a popularização dos conceitos de higiene, aindustrialização dos modos de circulação de pessoas e bens a partir do emprego detrens, bondes e bicicletas e o desenvolvimento <strong>da</strong>s comunicações. Este processode modernização aconteceu de diferentes formas e em momentos específicos emdiversas ci<strong>da</strong>des ocidentais como Paris, Londres, Viena e, mais tarde, no Rio deJaneiro. Para analisar como a ci<strong>da</strong>de moderna e a vi<strong>da</strong> cotidiana contribuíram naformulação de uma nova maneira de <strong>olhar</strong> ateremo-nos a alguns processos que sedesenrolaram em Londres e em Paris. Esta última pode ser compreendi<strong>da</strong> comoparadigma de um novo modelo urbano, tendo sido defini<strong>da</strong> como a capital dos<strong>é</strong>culo XIX por Walter Benjamin.3.2.1. Um <strong>olhar</strong> sobre a ci<strong>da</strong>de modernaMichel de Certeau estabelece um paralelo relevante para o estudo do <strong>olhar</strong> e<strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, a partir <strong>da</strong> relação entre a percepção e o <strong>olhar</strong> do indivíduo emseu caminhar cotidiano pela ci<strong>da</strong>de e o ponto de vista a<strong>é</strong>reo, panóptico, dos mapase dos planejadores. 249 A ci<strong>da</strong>de vista de cima mostra-se organiza<strong>da</strong> e legívelenquanto ao nível <strong>da</strong> rua constrói-se “uma história múltipla, sem autor nemespectador, formado em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaço”. 250No espaço cotidiano traçam-se itinerários pessoais. O espaço urbano <strong>é</strong> apreendidoa partir de uma “retórica <strong>da</strong> caminha<strong>da</strong>”, construí<strong>da</strong> tamb<strong>é</strong>m pelos mecanismossimbólicos dos sonhos e memórias. Este espaço po<strong>é</strong>tico coloca-se, para deCerteau, como um espaço de resistência às cartografias do poder.Embora a oposição estabeleci<strong>da</strong> por de Certeau sugira um romancear doindividuo urbano a partir <strong>da</strong> sua possibili<strong>da</strong>de de transformação do ambiente, estademarcação levanta um importante questionamento. Em que medi<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>demapea<strong>da</strong> e legível, organiza<strong>da</strong>, recorta<strong>da</strong> e reconstruí<strong>da</strong> para tornar-se o espaçourbano moderno por excelência passa a atuar como um vetor de configuração <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de moderna? Como o <strong>olhar</strong> do sujeito urbano <strong>é</strong> multiplicado e ampliado249 CERTEAU, Michel de. Práticas do espaço. In: _______. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer.Petrópolis: Editora Vozes, 2005.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 129ao mesmo tempo em que se submete às convenções impostas pela racionalização<strong>da</strong>s construções modernas?Iniciaremos esta discussão com a observação de duas ilustrações publica<strong>da</strong>sem periódicos londrinos <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX. A Figura 60publica<strong>da</strong> em 1880 em The Illustrated London News mostra uma plataforma detrem do subúrbio. Segundo a legen<strong>da</strong>, quinhentos londrinos acotovelavam-se paraentrar nos vagões de segun<strong>da</strong> e terceira classe, aproveitando os feriados bancáriospara uma excursão. As pessoas formam um emaranhado único. Adultosconversam entre si e tentam, em vão, conter as crianças. Os cartazes no muro <strong>da</strong>estação apresentam um bom sumário do que se anunciava à <strong>é</strong>poca: fragmentos deanúncios de chás, rem<strong>é</strong>dios, eventos musicais, passeios e fait-divers: “acidentes detodos os tipos”. A Figura 61 tamb<strong>é</strong>m mostra uma plataforma de embarque detrens. Mas, nesta outra imagem, vêem-se menos passageiros. A aglomeração <strong>é</strong>constituí<strong>da</strong> pelas bagagens e seus carregadores. Malas e embrulhos misturam-se aum cachorro no lado esquerdo <strong>da</strong> imagem, enquanto do lado oposto, umfuncionário parece orientar uma mulher.Figura 60. Excursão esperando pelo trem.The Illustrated London News, 4 de setembro de1880. The Illustrated London News PictureLibrary. (17/09/07)Figura 61. Movimentação de bagagens naplataforma de trens. The Illustrated LondonNews, 6 de junho de 1846. The IllustratedLondon News Picture Library. (17/09/07)Estas duas imagens sugerem o aglomerado humano e seu movimentocontínuo como o signo <strong>da</strong> nova ci<strong>da</strong>de moderna. A multidão, como veremos maisadiante neste capítulo, <strong>é</strong> um dos elementos fun<strong>da</strong>mentais de constituição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>demoderna e de uma nova formulação do <strong>olhar</strong>. Ela se oferece ao <strong>olhar</strong> de formaameaçadora, ao mesmo tempo, fornecendo abrigo para o <strong>olhar</strong> indiscreto.Diversas outras ilustrações de periódicos do s<strong>é</strong>culo XIX apontam parasituações ambientais problemáticas surgi<strong>da</strong>s a partir do crescimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de250 Ibid., p. 171.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 130moderna. O tecido esgaçado <strong>da</strong> Londres urbana <strong>é</strong> mostra<strong>da</strong> na Figura 62 atrav<strong>é</strong>sde uma característica comum às representações <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca: a personificação deenti<strong>da</strong>des. No exemplo apontado, o rio Tamisa <strong>é</strong> concebido como um homemvelho e sujo que apresenta os seus filhos a uma bela mulher que, por sua vez,personifica a ci<strong>da</strong>de. Suas crianças - entre assusta<strong>da</strong>s, doentias e ameaçadoras –têm os nomes listados abaixo de ca<strong>da</strong> figura, nomes que correspondem a doençasinfecciosas. Este cartum foi publicado pelo periódico Punch no período que ficouconhecido como “o grande fedor” (the great stink), que marcou um verãoespecialmente quente. Neste período, os dejetos lançados ao rio criaram um climatão inóspito na ci<strong>da</strong>de que as seções do parlamento tiveram que ser suspensas. Apoluição do principal rio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de era o resultado de um sistema administrativocaótico e desregulado e seu maior problema era a coincidência entre os pontos delançamento de detritos e de recolhimento de água potável. É desnecessáriosalientar que o rio Tamisa era, em meados do s<strong>é</strong>culo XIX, uma <strong>da</strong>s principaisfontes <strong>da</strong> problemática urbana <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, ao lado <strong>da</strong>s ruas estreitas e obstruí<strong>da</strong>sque dificultavam a circulação e melhores condições de higiene.Figura 62. Pai Tamisa (Father Thames) apresenta sua descendência àformosa ci<strong>da</strong>de de Londres. Punch, or The London Charivari, 3 de julhode 1858. (8/08/08).A modernização de Londres ocorreu ao longo de um contínuo processo dedemolições e reconstruções em que a destruição <strong>da</strong> velha ci<strong>da</strong>de caminhava demãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s aos novos projetos. A implantação de um novo sistema ferroviário foiresponsável por boa parte destas mu<strong>da</strong>nças, mas o represamento do rio Tamisa


O OLHAR INOCENTE É CEGO 131significou uma obra de grandes proporções, estendendo-se por to<strong>da</strong> a d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de1860, entre projeto e <strong>construção</strong>. Dentre os requisitos principais doempreendimento encontrava-se a <strong>construção</strong> de um novo sistema de esgoto e deuma larga calça<strong>da</strong> ao longo do rio. De suas margens lamacentas surgiramaveni<strong>da</strong>s, calça<strong>da</strong>s, estra<strong>da</strong>s de ferro e túneis subterrâneos.Embora o Tamisa há muito figurasse entre os principais temas <strong>da</strong> pinturainglesa, as obras que mu<strong>da</strong>ram seu curso e sua relação com a ci<strong>da</strong>de ofereceramnovas possibili<strong>da</strong>des de representação. A representação antropomórfica do rioTamisa parece ter sido relega<strong>da</strong> ao passado na medi<strong>da</strong> em que a modernização <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de passou a receber um tratamento gráfico digno <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Nestecontexto, a pintura de Hull (Figura 63), apesar de utilizar uma t<strong>é</strong>cnica derepresentação tradicional para ilustrar a intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> modernização quetransformava a ci<strong>da</strong>de, apresenta uma nova possibili<strong>da</strong>de de compreensão doambiente urbano em transformação. No trabalho de Hull, a dimensão <strong>da</strong> obrareduz a proporção <strong>da</strong> figura humana a um mero conjunto de pontos integrados aterra e à madeira. A velha Londres permanece ao fundo, parcialmente oculta pelabruma, assistindo ao surgimento <strong>da</strong> nova Londres. Já a ilustração publica<strong>da</strong> noIllustrated London News (Figura 64) utiliza uma nova t<strong>é</strong>cnica de representaçãopara expressar as mu<strong>da</strong>nças produzi<strong>da</strong>s tanto acima como abaixo <strong>da</strong> superfície <strong>da</strong>terra e <strong>da</strong> água. Nela, as obras de represamento do rio Tamisa mostram-se atrav<strong>é</strong>sde um corte de seção transversal do terreno que permite a <strong>visual</strong>ização de to<strong>da</strong>s asbenfeitorias realiza<strong>da</strong>s no período: esgotos, transportes e melhoramento est<strong>é</strong>tico –tudo em constante movimento. Uma locomotiva cruza a ponte Waterloo enquantouma barca a vapor navega o Tamisa. Os cortes dos túneis desven<strong>da</strong>m o metrô emcirculação. Nos tubos embaixo <strong>da</strong> terra circulam água, gás e detritos. A ci<strong>da</strong>demoderna apresenta-se como um mundo devotado ao movimento constante,“habitado pelo novo ci<strong>da</strong>dão ideal, o homem-locomotiva”. 251 Novas tecnologias eseu emprego na vi<strong>da</strong> urbana cotidiana começam a traçar as mu<strong>da</strong>nças perceptivasdo homem urbano.251 NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven& London: Yale University Press, 2000. p. 54.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 132Figura 63. E. Hull. Obras de represamentodo Tamisa entre a ponte Charing Cross eWestminster, 1865. Museum of London. In:NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People,streets and images in nineteenth-centuryLondon. New Haven & London: YaleUniversity Press, 2000. p. 54.Figura 64. Seção do represamento do Tamisamostrando (1) o metrô, (2) os esgotos, (3) FerroviaMetropolitana e (4) Ferrovia Pneumática.Illustrated London News, 22 de junho de 1867. (8/08/08)As mu<strong>da</strong>nças urbanas que tiveram lugar em Londres a partir <strong>da</strong> d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de1860 foram precedi<strong>da</strong>s por profun<strong>da</strong>s discussões políticas lidera<strong>da</strong>s pelo periódicoIllustrated London News 252 que desde a d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> anterior exercia pressão sobre aunificação <strong>da</strong> administração municipal e a necessi<strong>da</strong>de de obras de drenagem eesgotos, al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> <strong>construção</strong> de pontes sobre o rio Tamisa e a abertura de grandesaveni<strong>da</strong>s. Mas, foi apenas após a eclosão de duas grandes epidemias de cólera emmeados do s<strong>é</strong>culo XIX que uma mu<strong>da</strong>nça administrativa começou a tomar forma.Neste contexto, a execução de um mapa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que indicasse com precisãoapenas as ruas principais e os cursos de água, mostrou-se imprescindível. Umamu<strong>da</strong>nça nas feições urbanas só parecia se mostrar viável a partir de umplanejamento efetivo, desenhado sobre um esquema preciso e detalhado. Foramnecessários três anos para que em 1851, ano <strong>da</strong> primeira Exposição Universalrealiza<strong>da</strong> em Londres, o mapeamento oficial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de (Skeleton Ordnance Surveyof London and Its Evirons) fosse disponibilizado, inclusive para o grande público.252 Esta questão foi analisa<strong>da</strong> por NEAD, L. op. cit., p. 15-56.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 133Figura 65. Mapeamento oficial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Londres e seus arredores (Skeleton Ordnance Surveyof London), 1851. Folha 20, metade direita. 66 x 97,5 cm. Sourthampton: Ordnance Map Office,1851. NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-centuryLondon. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 20.O mapa oficial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Londres apontava para uma nova cartografiaque deixava de lado a ornamentação e os elementos decorativos característicosdos mapas produzidos por particulares e distribuídos em grande escala. Este outromapa apresentava com a precisão de uma ferramenta e enfatizava as conexõesestruturais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em detrimento de seus monumentos est<strong>é</strong>ticos ou históricos.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 134A espessura precisa do seu traçado permitia a compreensão de uma ci<strong>da</strong>de que seexpandia e avançava na modernização a passos largos. O mapa desenvolvido pelaOrdnance Survey marca a transição de uma ci<strong>da</strong>de compreendi<strong>da</strong> como umaglomerado estático para uma ci<strong>da</strong>de concebi<strong>da</strong> em contínuo movimento,possibilitando o planejamento de mu<strong>da</strong>nças modernizadoras como a <strong>construção</strong> deesgotos e de novas linhas ferroviárias. 253 A decisão do que deveria ser mostrado edo merecia ser exibido revelam algumas <strong>da</strong>s priori<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Londres oficial demeados do s<strong>é</strong>culo XIX. Deste modo, a indicação dos caminhos de uma ci<strong>da</strong>dedinâmica mostra-se mais importante do que a revelação do movimento <strong>da</strong>s águasdo Tamisa, que no mapa oficial aparece como uma grande área plana edesobstruí<strong>da</strong>.Figura 66. Londres vista de um balão. John Henry Banks and Co., 1851. Mapa dobrável, 60,8 x102,4 cm. Guildhall Library. Corporation of London. NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People,streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press,2000. p. 21.Neste sentido, a comparação com o mapa de John Banks, produzido nomesmo ano, e que mostrava a ci<strong>da</strong>de vista de um balão (Figura 66), estabelece adiferença entre dois modelos de visão contemporâneos, paralelos, mas muitodiferentes. A visão panorâmica do mapa de Banks <strong>é</strong> menos um mapa funcional doque uma forma de entretenimento <strong>visual</strong> e está mais próxima <strong>da</strong> cartografiatradicional, inspira<strong>da</strong> nas vedutas, que ain<strong>da</strong> imperava no período. Ele apresenta253 NEAD, L. op. cit., p. 21-22.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 135ruas e casas de forma individual, sem garantir a manutenção <strong>da</strong> escala, de modoque nenhum projeto de engenharia poderia ser construído sobre dele. Sua força <strong>é</strong>est<strong>é</strong>tica e narrativa ao contrário do pragmatismo e <strong>da</strong> precisão geom<strong>é</strong>trica domapa <strong>da</strong> Ordnance Survey. 254 Embora sem seguir diretamente as regras <strong>da</strong>perspectiva, o mapa de Banks encontra-se relacionado à racionali<strong>da</strong>dedesenvolvi<strong>da</strong> com o <strong>olhar</strong> ciclópico porque estabelece um ponto de vista único apartir do qual a ci<strong>da</strong>de pode ser observa<strong>da</strong>. Um ponto de vista que planifica aci<strong>da</strong>de garantindo a manutenção de suas proporções e medi<strong>da</strong>s. O mapa <strong>da</strong>Ordnance Survey divide a ci<strong>da</strong>de de forma geom<strong>é</strong>trica entre espaços livres eespaços construídos. A ci<strong>da</strong>de perde sua dimensão tridimensional e transforma-seem uma superfície plana codifica<strong>da</strong>. Não há um ponto de vista específico namedi<strong>da</strong> em que ela pode ser vista, ao mesmo tempo, a partir de todos os pontos ede lugar nenhum. 255 A narrativa que se desprende do mapa <strong>da</strong> Ordnance Survey <strong>é</strong>muito diferente <strong>da</strong>s pequenas narrativas detalha<strong>da</strong>s pelo mapa de Banks. Trata-se<strong>da</strong> grande narrativa do progresso e do desenvolvimento pretendido com amodernização, do compromisso com a serie<strong>da</strong>de desenvolvimentista. Sua acuráciaelimina as convenções representativas por semelhança para requerer um modo de<strong>olhar</strong> mais abstrato e concentrado. Um <strong>olhar</strong> racional e convencional a sercompartilhado por uma população que começava a sentir-se moderna.3.2.2. Um <strong>olhar</strong> sobre as reformas urbanasAs reformas urbanas podem ser compreendi<strong>da</strong>s como o grande signo <strong>da</strong>modernização, principalmente quando se considera a remodelação de Paris naúltima metade do s<strong>é</strong>culo XIX. A nova feição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de moderna foi conduzi<strong>da</strong>,em um processo muitas vezes criticado, pelo Barão Haussmann, indicado prefeitode Paris (1852-1870) pelo imperador Napoleão III. No entanto, as vozes queapontavam para o desaparecimento <strong>da</strong> antiga Paris, já podiam ser ouvi<strong>da</strong>s desde ad<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1830, muito antes do início <strong>da</strong>s obras de Haussmann. Esta situaçãopode ser compreendi<strong>da</strong> de diversos modos. Se a percepção <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça talvezindicasse um desejo oculto por esta renovação, os sinais concretos desta254 Ibid., p. 22.255 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 136transformação traziam em si o temor <strong>da</strong> per<strong>da</strong> do antigo, do conhecido e doseguro: “A velha Paris está indo embora” escrevia Balzac ao final <strong>da</strong> primeirametade do s<strong>é</strong>culo XIX. Por outro lado, independente de uma ampla reformaconduzi<strong>da</strong> por um governo autoritário, a ci<strong>da</strong>de, empurra<strong>da</strong> pelas modificações deordem econômica e produtiva, vinha apresentando mu<strong>da</strong>nças.Nos anos 1840, Paris estava se deslocando para o oeste com umcorrespondente esvaziamento do centro. Uma mania de construir “reinava comouma epidemia” 256 , “com os velhos bairros pobres <strong>da</strong>ndo lugar a pr<strong>é</strong>dios deapartamentos, grandes lojas e oficinas” forçando a população trabalhadora amu<strong>da</strong>r-se para as extremi<strong>da</strong>des de Paris. 257 A regulari<strong>da</strong>de dos novos pr<strong>é</strong>dios eruas foi considera<strong>da</strong> apropria<strong>da</strong> à capital “por trinta anos ou mais antes de o barãochegar ao poder”. 258 Se havia um senso est<strong>é</strong>tico antecipando a moderni<strong>da</strong>de, elemuitas vezes era acompanhado pelo desejo de reformular uma ci<strong>da</strong>de medievalque já não refletia as necessi<strong>da</strong>des modernas. É sobre este ponto de vista que DuCamp tece seus comentários após 1848:Paris estava ameaça<strong>da</strong> de se tornar inabitável. A constante expansão <strong>da</strong> redeferroviária... acelerava o trânsito e o crescimento populacional <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Aspessoas sufocavam nas antigas ruelas estreitas, sujas e tortuosas, nas quais ficavamencurrala<strong>da</strong>s, pois não viam saí<strong>da</strong>. 259Tendo em vista as transformações urbanas, Baudelaire escreve “Paris mu<strong>da</strong>!Mas na<strong>da</strong> em minha nostalgia mudou! Novos palácios, an<strong>da</strong>imes, lajedos, velhossubúrbios. Tudo em mim <strong>é</strong> alegoria. E essas lembranças pesam mais do querochedos”. 260 A visão de uma ci<strong>da</strong>de romântica com ruas estreitas quedesapareciam não apenas materialmente como tamb<strong>é</strong>m moralmente 261 deve serconsidera<strong>da</strong> com cautela. Louis Chevalier, um dos mais importantes historiadoresde Paris, comenta as dificul<strong>da</strong>des dos quartiers, os velhos bairros centrais, nasd<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s anteriores à obra de Haussmann. Uma explosão demográfica se fazia256 TEXIER, Edmond. Tableau de Pairs, 1:75, citado em Haussmann: “Pr<strong>é</strong>fet de Paris”, de G.-N. Lameyreapud CLARK, T. J. A pintura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2004. p. 71.257 L. Marie, De la d<strong>é</strong>centralisation des Halles, citado em Histoire de l’urbanisme, de Lave<strong>da</strong>n, p. 403. apudCLARK, T. J. op. cit., p. 69.258 Id.259 DU CAMP, Maxime. Paris, ses organes, ses fonctions et as vie <strong>da</strong>ns la seconde meti<strong>é</strong> du XIXe siècle.Paris, 1869, vol. 6, p. 253. apud. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. Obras escolhi<strong>da</strong>sIII. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 85.260 BAUDELAIRE, Charles. O cisne. As flores do mal. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: EditoraNova Aguilar, 1995. p. 173.261 CLARK, T. J. op. cit., p. 74.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 137acompanhar por poucas moradias, apesar <strong>da</strong> <strong>construção</strong> de mansões de luxo e depr<strong>é</strong>dios públicos. O nível de desemprego era crescente e havia alto índice demorte por desnutrição e pelas freqüentes epidemias de tifo e cólera. 262Apesar <strong>da</strong> modernização de Paris apresentar-se como uma interferêncianecessária e deseja<strong>da</strong>, o termo “Haussmanização”, em referência ao prefeito deParis a partir de 1859 sugere a brutali<strong>da</strong>de e a eficácia germânica com que aci<strong>da</strong>de foi transforma<strong>da</strong>. 263 As estatísticas indicam a feroci<strong>da</strong>de doempreendimento. Ao longo dos dezessete anos de reformas, 350 mil pessoasforam desaloja<strong>da</strong>s. Em 1870, um quinto <strong>da</strong>s ruas <strong>da</strong> zona central de Paris haviasido criado por Haussmann e no auge <strong>da</strong> re<strong>construção</strong>, um em ca<strong>da</strong> cincotrabalhadores parisienses estava empregado na obra 264 . Os bulevaresencontravam-se no centro <strong>da</strong> re<strong>construção</strong> na medi<strong>da</strong> em que rasgavam a ci<strong>da</strong>deem seu caminho para a criação de novas art<strong>é</strong>rias. Mas, a Haussmanizaçãocompreendia muito mais do que a abertura de novas ruas. Havia a instalação deaquedutos, a duplicação <strong>da</strong> área <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, a colocação <strong>da</strong> iluminação a gás, oaumento <strong>da</strong> arborização, a criação de uma rede de esgotos e ferrovias, al<strong>é</strong>m <strong>da</strong><strong>construção</strong> <strong>da</strong> nova Ópera e do novo necrot<strong>é</strong>rio.A remodelação abriu espaço para inúmeras críticas e debates. A velha Parisqueixa-se <strong>da</strong> monotonia <strong>da</strong>s novas ruas; a nova Paris retruca:De que você as censura?... Graças à linha reta, circula-se à vontade, evita-se ochoque com mais de um veículo, ao mesmo tempo, quem tem bons olhos desvia-sedos tolos, dos que pedem empr<strong>é</strong>stimo, dos cobradores, dos chatos. Enfim, ca<strong>da</strong>transeunte, agora, na rua, já de longe, ou foge ou cumprimenta seus iguais. 265O fato concreto <strong>é</strong> que a forma dos novos bulevares parecia surpreender eincomo<strong>da</strong>r: “sem curvas, sem aventuras de perspectiva, implacáveis em suaslinhas retas”. 266 A comparação com o que se perdia permanecia constante:“Nenhuma de suas grandes vias retas tem o encanto <strong>da</strong> curva magnífica <strong>da</strong> RueSaint-Antoine”. 267 Clark sugere uma ressonância nostálgica no debate em torno <strong>da</strong>262 CHEVALIER, Louis. Laboring Classes and Dangerous Classes: Paris in the First Half of the NineteenthCentury. New York: Howard Fertig, 1973. apud BERMAN, Marshall. Tudo que <strong>é</strong> sólido desmancha no ar.São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. p. 146.263 CLARK, T. J. op. cit., p. 69.264 Ibid., p. 77.265 BARTHÉLEMY, M. Le Vieux Paris et le Nouveau Paris. Paris, 1861. p. 8. apud BENJAMIN, Walter.Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 185. [E 12a,1].266 CLARK, T. J. op. cit., p. 74.267 Dubech / D’Espezel. Histoire de Paris. Paris, 1926. p. 416-425. apud BENJAMIN, W. Passagens... p.172. [E 5,6].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 138est<strong>é</strong>tica de Haussmann: “Então o barão ansiava por longas linhas retas e ‘pontosde vista’ impressionantes, e seus críticos, por aventuras em perspectiva!”. 268 Aobservação de Clark nos chama a atenção para a discussão em torno <strong>da</strong>perspectiva. Não parece haver dúvi<strong>da</strong> que as aveni<strong>da</strong>s parisienses trouxeramnovos pontos de vista e novas perspectivas e uma grande profundi<strong>da</strong>de de campo.No entanto, isso não parecia ser compreendido pelos contemporâneos forçados aver a ci<strong>da</strong>de e o mundo de outro modo. Havia perspectiva, claro, mas o morador<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que havia sido sujeitado a morar em um grande canteiro de obras,parecia sentir falta <strong>da</strong>s pequenas perspectivas, <strong>da</strong>s narrativas encontra<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong>dobrar de esquina. Talvez por isso, as vistas amplas e as perspectivasmonumentais tenham demorado a mostrar-se na pintura, o que aconteceu apenasna d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1890, ano em que Pisarro exibiu “um ponto de vista plenamentehaussmaniano de uma ponta a outra <strong>da</strong> Avenue de l’Op<strong>é</strong>ra” 269 (Figura 67).Figura 67. Camille Pissarro, Avenue de l’Op<strong>é</strong>ra, soleil, matin d’hiver, 1898.Consideramos que a rejeição às novas perspectivas encontra<strong>da</strong>s na ci<strong>da</strong>deaponta para uma inabili<strong>da</strong>de em li<strong>da</strong>r com novos e surpreendentes pontos de vistaou, ain<strong>da</strong>, com uma nova forma de <strong>olhar</strong> ain<strong>da</strong> não completamente estrutura<strong>da</strong>.Neste processo, as pia<strong>da</strong>s sobre as formas retas podem ter funcionado comoauxiliares pe<strong>da</strong>gógicos <strong>da</strong> formulação de uma nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. Em uma destas268 CLARK, T. J. op. cit., p. 75.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 139pia<strong>da</strong>s, o personagem de um velho militar que acompanhava as mu<strong>da</strong>nças deParis, sonhava com o dia em que o próprio rio Sena teria o seu curso corrigido,“porque suas curvas irregulares são realmente revoltantes”. 270 Outra anedotasugeria que o alargamento <strong>da</strong>s ruas teria sido realizado devido a crinolina. 271 Asugestão de que a palavra “bulevar” seria etimologicamente liga<strong>da</strong> abouleversement, que significa mu<strong>da</strong>nça e perturbação, tamb<strong>é</strong>m era cita<strong>da</strong> comironia. 272A haussmanização foi acompanha<strong>da</strong> de perto pela crítica social querelaciona diretamente o empreendimento ao deslocamento <strong>da</strong>s classes operárias,que teriam sido empurra<strong>da</strong>s (pelo aumento dos custos de moradia) para a periferiaparisiense, rompendo o laço de vizinhança as “ligava ao burguês”. 273 Esteprocesso não <strong>é</strong> compreendido como casual, ao contrário, <strong>é</strong> relacionado à tentativade impedir o surgimento de revoltas entre as classes mais pobres. A abertura deart<strong>é</strong>rias sobre o tecido urbano seria um impedimento para a montagem debarrica<strong>da</strong>s, al<strong>é</strong>m de facilitar o deslocamento do ex<strong>é</strong>rcito em caso de necessi<strong>da</strong>de.A ampliação no número de empregos com a própria obra de remodelação tamb<strong>é</strong>mteria contribuído para desestimular o pensamento revolucionário. Estes motivostalvez tenham levado Le Corbusier a considerar os traçados de Haussmann comointeiramente arbitrários: “não eram soluções rigorosas de urbanismo, mas medi<strong>da</strong>sde ordem financeira e militar”. 274 Apesar disso, o mesmo Le Corbusier afirmoualgum tempo depois: “Parecia que Paris não suportaria a cirurgia de Haussmann.Ora, Paris não vive hoje do que fez esse homem temerário e corajoso? ... Éver<strong>da</strong>deiramente admirável o que soube fazer Haussmann”. 275Esta ambigüi<strong>da</strong>de aponta para o fato, descrito por Clark, de que ospropósitos de Haussmann “eram muitos e contraditórios”. 276 A contra-revoluçãoera um deles, assim como a certeza nos benefícios gerados pelas obras públicas ea urgência em modernizar a ci<strong>da</strong>de. Não se deve desconsiderar tamb<strong>é</strong>m o desejode abrilhantar uma ci<strong>da</strong>de imperial para ser exibi<strong>da</strong> aos estrangeiros. Walter269 CLARK, T. J. op. cit., p. 60.270 ABOUT, Edmond. L’Homme à l’oreille cass<strong>é</strong>e. p. 196. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 74.271 BENJAMIN, W. Passagens... p. 174. [E 5a,8].272 FOURNIER, Édouard. Chroniques et L<strong>é</strong>gendes des Rues de Paris. Paris, 1864. p. 16. apud BENJAMIN,W. Passagens... p. 179. [E 9,1].273 LEVASSEUR, Histoire des Classes Ouvrières et de l’Industrie en France, II. Paris: 1904, p. 775.BENJAMIN, W. Passagens... p. 164. [E 2,1].274 LE CORBUSIER, Urbanisme. Paris, 1925. p. 250. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 166. [E 2a,1].275 Ibid., p. 149. apud Ibid., p. 173. [E 5a,6].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 140Benjamin considera ain<strong>da</strong> a intenção do Estado em se autopromover na medi<strong>da</strong>em que associava o novo urbanismo parisiense ao progresso: “Como um exemploclássico <strong>da</strong> coisificação, os projetos de ‘renovação’ urbana tentavam criar umautopia social mu<strong>da</strong>ndo a disposição de edifícios e ruas – objetos no espaço –deixando intactas as relações sociais”. 277 Apesar do desejo autêntico deHaussmann por ampliar o alcance <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, a obtenção de lucro tamb<strong>é</strong>m seencontrava entre suas intenções e parecem explicar alguns favorecimentos nacondução do processo.Por trás <strong>da</strong>s críticas à est<strong>é</strong>tica de Haussmann havia a necessi<strong>da</strong>de decompreender a nova ci<strong>da</strong>de, “a ci<strong>da</strong>de neutra <strong>da</strong>s pessoas civiliza<strong>da</strong>s” 278 que viradesaparecer os “grupos, vizinhos, bairros e tradições”. 279 A uniformi<strong>da</strong>de dotraçado <strong>da</strong>s ruas e dos pr<strong>é</strong>dios retirara a surpresa oculta nos pequenos detalhes <strong>da</strong>velha ci<strong>da</strong>de. Não existia mais a Paris desconheci<strong>da</strong> 280 . “A linha reta matou opitoresco, o inesperado”. 281 Por outro lado, a ci<strong>da</strong>de mostrava uma nova face queassustava os antigos moradores: “A centralização, a megalomania criaram umaci<strong>da</strong>de artificial onde o parisiense não se sente mais em casa”. 282 Pode parecerparadoxal que a nova compleição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de tenha destituído o inesperado aomesmo tempo em que se apresenta como desconfortável e estranha. A ci<strong>da</strong>de quese constrói com a divisão <strong>da</strong>s classes entre os bairros residenciais e os subúrbiosindustriais e ordena e hierarquiza o trabalho e o tempo livre <strong>é</strong> a mesma queconfunde o observador com o ilegível. Esta ambigüi<strong>da</strong>de sugere a ascensão deuma nova ordem de significados que não se deixa decifrar facilmente. Para Clark,“a metrópole se transformou em um campo livre de signos e objetos expostos” 283 ,onde uma enorme massa de imagens expõe-se à negociação enquanto as velhasdemarcações ruíram para sempre.O flâneur <strong>é</strong> a figura paradigmática <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na metrópole em seu exercíciocotidiano de decifrar as novas imagens. Sua localização na Paris do s<strong>é</strong>culo XIXemerge a partir do ensaio de Charles Baudelaire, O Pintor <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Moderna.276 CLARK, T. J. op. cit., p. 76.277 BUCK-MORSS, Susan. Dial<strong>é</strong>tica do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto <strong>da</strong>s Passagens. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2002. p. 120.278 Daly, “Etude g<strong>é</strong>n<strong>é</strong>rale”, p. 33. apud CLARK, T. J. op. cit., p. 84.279 Ferry. Les Comptes fantastiques apud Id.280 CLARK, T. J. op. cit., p. 85.281 Charles Yriarte, “Les Types parisiens – les clubs”, em Paris-Guide 2 (1867): 929. apud Id.282 Dubech / D’Espezel. Histoire de Paris. Paris, 1926. p. 427-428. apud BENJAMIN, W. Passagens... p.169. [E 3a,6].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 141Neste texto, Baudelaire exalta – evitando citar seu nome – o desenhista,aquarelista e gravador Constantin Guys, artista “enamorado pela multidão e peloincógnito”. 284 De fato, como afirma Baudelaire, C. G. 285 <strong>é</strong> mais do que um artista,<strong>é</strong> um homem do mundo, “homem que compreende o mundo e as razõesmisteriosas e legítimas de todos os seus costumes” e não simplesmente um artistasubordinado à sua palheta, “como o servo à gleba”. 286 Baudelaire escreve:Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, <strong>é</strong> um imenso júbilo fixarresidência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito.Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver omundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo. 287O flâneur caminha pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e observa incógnito o movimento <strong>da</strong>multidão, imerso na dimensão est<strong>é</strong>tica deste contato. Seu universo <strong>é</strong> a multidão,“como o ar <strong>é</strong> dos pássaros, como a água, o dos peixes”. 288 Ele <strong>é</strong> o homem <strong>da</strong>multidão e dela retira sua energia e vigor. Sua anonimi<strong>da</strong>de garante a liber<strong>da</strong>de e afluidez do seu <strong>olhar</strong>. Há uma ligação intrínseca entre o flâneur e a multidão de umlado, e o interior <strong>da</strong>s casas e as ruas de outro. Neste contexto, o flâneur se tornaparte <strong>da</strong> multidão: “O coletivo <strong>é</strong> um ser eternamente inquieto, eternamenteagitado, que, entre os muros dos pr<strong>é</strong>dios, vive, experimenta, reconhece e inventatanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes”. 289Em O homem <strong>da</strong> multidão de Edgar Allan Poe, a inquietação e o incógnitotêm origem no crescimento urbano iniciado no s<strong>é</strong>culo XIX. No conto, transcorridona Londres do s<strong>é</strong>culo XIX, o narrador convalescente, na sua volta às ruas, viveuma excitação que <strong>é</strong> exatamente o oposto do t<strong>é</strong>dio. Sente-se atraído por tudo o quelhe passa à frente, “ora os anúncios, ora observando a promíscua companhiareuni<strong>da</strong> no salão, ora espreitando a rua atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>s vidraças enfumaça<strong>da</strong>s”. Comouma criança, nos lembra Baudelaire, que vê tudo como novi<strong>da</strong>de 290 , o narradorpermanece sentado à janela de um caf<strong>é</strong> londrino, primeiro observando a multidãoque flui compacta, depois passa a prestar atenção às figuras, trajes, portes e283 CLARK, T. J. op. cit., p. 91.284 BAUDELAIRE, Charles. O Pintor <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Moderna. In: Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro:Editora Nova Aguilar, 1995. p. 854.285 A pedido do próprio Constantin Guys, Bauldeire tem a intenção de manter-lhe o anonimato, de forma quepassa a descreve-lo como C. G.286 BAUDELAIRE, C. op. cit., p. 855.287 Ibid., p. 857.288 Ibid., p. 857.289 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charle Baudelaire: um lírico no auge docapitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 194.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 142expressões. Em um jogo fisionômico, examina as faces dos passantes, a partir deum breve <strong>olhar</strong> lendo-lhes a vi<strong>da</strong>, “a história de longos anos”. Em determinadomomento, divisa a figura de um homem de aproxima<strong>da</strong>mente sessenta e cinco asetenta anos. Um impulso o move. Agarra o chap<strong>é</strong>u e a bengala e põe-se a seguir afigura decr<strong>é</strong>pita e em trajes puídos. Em um caminhar que não parece ter propósito,o homem não cessa de misturar-se em meio à turba de compradores e vendedores.Na tentativa de desven<strong>da</strong>r os segredos por trás do homem em contínuomovimento, o narrador o segue ao longo de to<strong>da</strong> à noite e tamb<strong>é</strong>m do dia seguinte.Walter Benjamin hesita em reconhecer neste desconhecido o flâneur, algu<strong>é</strong>m quepor não se sentir seguro em sua própria socie<strong>da</strong>de, busca a multidão paraesconder-se 291 . Ele sugere no homem <strong>da</strong> multidão a substituição docomportamento tranqüilo pelo maníaco 292 . O flâneur do conto de Poe refugia-senos bazares, nas feiras e saí<strong>da</strong>s de teatro. O movimento sem fim que atrai onarrador transfigura-o em flâneur tentando desven<strong>da</strong>r o mist<strong>é</strong>rio por trás dosuspeito, como <strong>é</strong> caracterizado o homem <strong>da</strong> multidão em sua busca por torna-seinvisível. Assim, o narrador, misturado à multidão que lhe serve de cenário móveltorna-se ele, tamb<strong>é</strong>m suspeito. O início e o final do conto de Poe trazem uma frasede um “certo livro germânico”: es lässt sich nicht lesen (não se deixa ler). Hásegredos que não se permite revelar, não se pode ler. Muitos destes segredosencontram-se escondidos na multidão. Benjamin reafirma este ponto ao associar oconto de Poe à observação de Goethe, “segundo a qual todo ser humano, domelhor ao mais miserável, carrega consigo um segredo que despertaria o ódio detodos os outros se fosse descoberto”. 293 A ci<strong>da</strong>de moderna que se desnu<strong>da</strong> ao<strong>olhar</strong> <strong>é</strong> um ambiente que oculta muitos segredos. Segredos que o flâneur buscavaentender com a sua observação ao mesmo tempo atenta e relaxa<strong>da</strong>.Neste sentido deve-se compreender o flâneur não como um transeuntequalquer, mas como um observador em plena posse de sua individuali<strong>da</strong>de. Suafantasmagoria, “a partir dos rostos fazer a leitura <strong>da</strong> profissão, <strong>da</strong> origem e docaráter”. 294 O flâneur caminha pela ci<strong>da</strong>de concentrado na observação como umdetetive amador. Mas, se ao contrário, ele “se estagnar na estupefação – nesse290 BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Imp<strong>é</strong>rio. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charle Baudelaire... p. 18.291 Ibid. p. 45.292 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s III... p. 121.293 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Passagens... [M 12a,2], p. 484.294 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s III... p. 202.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 143caso o flâneur se torna um basbaque”. 295 O basbaque, ou ba<strong>da</strong>ud, tem suaindividuali<strong>da</strong>de absorvi<strong>da</strong> pelo mundo exterior. “Sob influência do espetáculo quese oferece a ele, o ba<strong>da</strong>ud se torna um ser impessoal”. 296 Para Benjamin, o flâneurresiste ao consumismo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de capitalista e de suas mercadorias e o seumovimento aparentemente errático pela constituição <strong>visual</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de aumenta suapotência: “sempre menor se torna a sedução <strong>da</strong>s lojas, dos bistrôs, <strong>da</strong>s mulheressorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo <strong>da</strong> próxima esquina, de umamassa de folhas distantes, de um nome de rua”. 297 Este homem urbano que nãoconsegue garantir a sua individuali<strong>da</strong>de paralisa-se, flutuando ao movimento <strong>da</strong>multidão. Misturando-se a ela, torna-se parte <strong>da</strong> própria imagem que observa.Com o desaparecimento <strong>da</strong>s esquinas, a partir <strong>da</strong> remodelação empreendi<strong>da</strong> porHaussmann, <strong>é</strong> possível compreender o esgotamento <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> flânerie.Resta saber em que medi<strong>da</strong>, com isso, o observador tenha-se transformado em umsimples ba<strong>da</strong>ud, fixando o <strong>olhar</strong> sobre a imagem observa<strong>da</strong>, fundindo-se com elaem um conjunto de contornos neutros e suaves que já não despertam sensaçõesambíguas de desconforto ou paixão. O ambiente externo não deixa de sercompreendido pelo movimento do seu fluxo, mas <strong>é</strong> racionalizado e recortadodentro de um sistema de convenções visuais que facilitam a sua digestão. A<strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> passa a se reestruturar a ca<strong>da</strong> nova invenção tecnológica com oobjetivo de refrescar o que deve sempre ser visto como novo.3.2.3. Muralhas de impressosA experiência vivi<strong>da</strong> na metrópole, desde muito cedo, apresentou vínculosprofundos com a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. A influência dos impressos na produção <strong>da</strong> <strong>cultura</strong><strong>visual</strong> moderna expande-se para al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> relação direta com as formas gráficas eos novos modos de representação. Ela encontra-se ancora<strong>da</strong> nos melhoramentost<strong>é</strong>cnicos obtidos no gravado e na impressão, como a cromolitografia, al<strong>é</strong>m dobarateamento <strong>da</strong> própria imagem e do seu suporte, o papel. Cronistas e gravuristasforam elevados à posição de artistas: “Eles falam para o olho e sua linguagem <strong>é</strong>fascinante e impressiva. Os acontecimentos do dia ou <strong>da</strong> semana são ilustrados ou295 Ibid., p. 69.296 Ibid., p. 202.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 144descritos atrav<strong>é</strong>s do lápis”. 298 Neste aspecto, a publici<strong>da</strong>de que dá os seusprimeiros passos com cartazes, folhetos e nas placas carrega<strong>da</strong>s pelos homenssanduíchescontempla uma nova quali<strong>da</strong>de de experiência na relação do sujeitocom seus deslocamentos no espaço urbano e tamb<strong>é</strong>m com o seu vestir-se ealimentar-se. São centenas de novas formas ao alcance <strong>da</strong> vista que ditam novaspráticas ao mesmo tempo em que atuam na <strong>construção</strong> de um novo <strong>olhar</strong>.A produção em massa de peças impressas foi grandemente favoreci<strong>da</strong> pordiversos fatores tecnológicos como a produção de papel em bobinas ao final dos<strong>é</strong>culo XVIII, que barateou o custo do papel, e o desenvolvimento <strong>da</strong> litografia noinício do s<strong>é</strong>culo XIX, al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> produção de máquinas de impressão de manejomais simples como a Minerva, anuncia<strong>da</strong> no folheto publicitário de 1879 (Figura68), e a copiadora com ares de escrivaninha (Figura 69), muito popular empequenas indústrias.Figura 68. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> máquinaMinerva de impressão, 1879. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. TheBritish Library. (2/12/07)Figura 69. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong>copiadora Foot Lever, 1886. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. TheBritish Library. (2/12/07)Segundo Walter Benjamin, com o desenvolvimento <strong>da</strong> litografia no s<strong>é</strong>culoXIX a reprodução t<strong>é</strong>cnica atinge uma etapa essencialmente nova. Com esteprocedimento, que permitia uma maior precisão, as produções passaram a297 Ibid., p. 186.298 Speaking to the Eye. Illustrated London News, 24 de maio de 1851. pp. 451-2. apud NEAD, Lyn<strong>da</strong>.Victorian Babylon. People, streets and images in nineteenth-century London. New Haven & London: YaleUniversity Press, 2000. p. 57.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 145alcançar o mercado “não somente em massa, como já acontecia antes, mastamb<strong>é</strong>m sob a forma de criações sempre novas. Desta forma, as artes gráficasadquiriram os meios de ilustrar a vi<strong>da</strong> cotidiana” 299 , integrando-se nela erealimentando-se em uma <strong>construção</strong> recíproca. Embora a fotografia ain<strong>da</strong>demorasse a ser emprega<strong>da</strong> diretamente na reprodução de impressos, a suautilização como referência para o desenho litográfico acelerou ain<strong>da</strong> mais oprocesso que inundou de imagens a percepção cotidiana. Assim, as imagens quepassaram a ilustrar o imaginário dos homens e mulheres <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade dos<strong>é</strong>culo XIX, por sua quanti<strong>da</strong>de e varie<strong>da</strong>de, exibiam detalhes que não erampropriamente comuns em figuras <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. Em nossa opinião, al<strong>é</strong>m de ampliar orepertório <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna, elas atuaram diretamente na formulação dohabitus coletivo que deu origem a essa <strong>cultura</strong>, modificando e ampliando apercepção.A impressão tornou-se acessível e passou a fazer parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do ci<strong>da</strong>dãourbano. Cartazes e folhetos aju<strong>da</strong>ram a concretizar a moderni<strong>da</strong>de em um artefato<strong>visual</strong>. Na Figura 70 vemos o folheto de propagan<strong>da</strong> de uma gráfica -Metropolitan Printing Works. Na frente, lê-se: “Quase todo mundo em algummomento precisa de impressão” e “Guarde no seu bolso” e no verso: “Todos ostipos de impressos”, “Orçamentos gratuitos”. Neste contexto, os impressos nãoapenas aju<strong>da</strong>ram a construir o novo ambiente <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, mas tamb<strong>é</strong>mpermitiam a participação do homem comum, que em algum momento <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>poderia precisar de alguma impressão.Figura 70. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> Metropolitan Printing Works,1890. Evanion Collection of Ephemera. The British Library. (2/12/07)299 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibili<strong>da</strong>de t<strong>é</strong>cnica. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s. Magiae t<strong>é</strong>cnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 166-167.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 146Na efervescência <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, a publici<strong>da</strong>de começava a ocupar espaço com adivulgação de diversos produtos. Folhetos e cartazes eram impressos edistribuídos nas ruas ou colados nos muros <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des. As paredes <strong>da</strong>metrópole, cobertas por cartazes passaram a atuar, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade dos<strong>é</strong>culo XIX, como um grande sistema de comunicação de massa. A propósito <strong>da</strong>srevoluções que marcaram o ano de 1848, Walter Benjamin transcreve:Todos os muros estavam cobertos com cartazes revolucionários, que Alfred Delvaureproduziu alguns anos mais tarde em dois grossos volumes com o título MuraillesR<strong>é</strong>volutionnaires, de modo que ain<strong>da</strong> agora se pode ter uma id<strong>é</strong>ia dessa singularliteratura mural. Não havia palácio ou igreja em que não estivessem afixados essescartazes. Nunca antes se viu tal quanti<strong>da</strong>de de cartazes em qualquer outra ci<strong>da</strong>de.Mesmo o governo usava esse meio para publicar seus decretos e proclamações,enquanto milhares de indivíduos recorriam aos cartazes para comunicar a seusconci<strong>da</strong>dãos suas opiniões pessoais sobre to<strong>da</strong> a sorte de questões. Quanto mais seaproximava a inauguração <strong>da</strong> Assembl<strong>é</strong>ia Nacional, tanto mais apaixona<strong>da</strong> eagressiva se tornava a linguagem dos cartazes... O número dos apregoadorespúblicos aumentava a ca<strong>da</strong> dia. Centenas e milhares de pessoas que não tinhamoutra ocupação tornaram-se vendedores de jornais, que eles anunciavam aosgritos. 300Em outro trecho, Benjamin afirma que Les Murailles R<strong>é</strong>volutionnaires tratasede uma “Obra coletiva que tem como autor o senhor Todo o Mundo” 301 e que afúria <strong>da</strong> informação fazia com que os muros fossem disputados pelos coladores decartazes, sobrepondo cartazes “uns aos outros pelo menos dez vezes por dia”. 302 Ailustração de John Parry (Figura 71) mostra a efervescência deste movimento nasruas de Londres, apoiado sobre o maior desenvolvimento <strong>da</strong> indústria deimpressão, mas empurrado pela necessi<strong>da</strong>de de divulgação de produtos deconsumo e entretenimento dirigidos a um consumo mais amplo. Na imagem deParry, onde tamb<strong>é</strong>m vemos outros personagens urbanos como o sol<strong>da</strong>do e oambulante, o protagonista <strong>é</strong> a informação. Nos cartazes, as chama<strong>da</strong>s de“Pomp<strong>é</strong>ia”, “Paris” e <strong>da</strong>s “pulgas laboriosas” disputam os fragmentos <strong>da</strong> atençãodo morador <strong>da</strong> metrópole e tamb<strong>é</strong>m o seu dinheiro.O periódico londrino Punch apresenta algumas gravuras que dialogam comos muros repletos de cartazes que aju<strong>da</strong>m a construir uma nova paisagem urbana.A ilustração de 1887 do Punch (Figura 72) <strong>é</strong> muito pareci<strong>da</strong> com a de John Parry300 Sigmund Engländer, Geschichte der französischen Arbeiter-Associationen, Hamburgo, 1864, vol. II, pp.279-280. In: BENJAMIN, W. Passagens... p. 213. [G 3,1].301 BENJAMIN, W. Passagens... p. 215. [G 4,1].302 Eduard Kroloff, Schilderungen aus Paris, Hamburgo, 1839, vol II, p. 57 apud BENJAMIN, W.Passagens... p. 214. [G 3,3].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 147(Figura 71). Em ambas vemos a movimentação <strong>da</strong>s figuras urbanas: algunspassantes, um sol<strong>da</strong>do, etc. A de Parry <strong>é</strong> mais elabora<strong>da</strong> e nos permite ver uma<strong>construção</strong> em segundo plano (ao lado esquerdo) enquanto a do Punch <strong>é</strong> to<strong>da</strong>foca<strong>da</strong> no plano <strong>da</strong> muralha de cartazes. Duas outras ilustrações publica<strong>da</strong>s peloPunch tamb<strong>é</strong>m nos proporcionam reflexões.Figura 71. John Parry. Cena de rua em Londres, [1835]. (3/06/07)Figura 72. Gravura retira<strong>da</strong> do Punch, or the London Charivari, 1887.The Project Gutenberg. . Disponível em: (25/11/07).Na imagem de 1892 vemos a personificação do medo na figura de umcolador de cartazes que tem os p<strong>é</strong>s animalescos <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de do pânico, Pã (Figura73). Os cartazes que Pã cola têm mensagens alarmantes: “corri<strong>da</strong> aos bancos”,“ameaça de cólera”, “alarme de incêndio em um teatro <strong>é</strong> ameaça à vi<strong>da</strong>”, “morte


O OLHAR INOCENTE É CEGO 148por afogamento e covardia dos espectadores”. Na legen<strong>da</strong> <strong>da</strong> ilustração, Pan sevangloria por estar vivo espalhando o medo. O “cartaz-pã” acende o medo urbanode acidentes e trag<strong>é</strong>dias e nos faz recor<strong>da</strong>r os jornais sensacionalistas, ou como secostumava dizer, jornais que “pingam sangue”. Deste modo, os cartazes que Pãdivulga criam um vínculo com as manchetes que reluzem nas bancas de revistas.Em uma outra figura do mesmo ano vemos um artista com a sua maleta de tintas ecavalete olhando uma “floresta de cartazes” (Figura 74). Neste caso as mensagensapresenta<strong>da</strong>s são publicitárias e, embora nos falte mais informação paracompreender o que está representado, <strong>é</strong> possível apreender o artista paralisado emseu contato com a “floresta” de anúncios. Onde ele esperava encontrar algumaoutra coisa, deu de cara um mundo de mensagens publicitárias. É interessanteobservar que se hoje apontamos para uma socie<strong>da</strong>de afoga<strong>da</strong> em imagens, no finaldo s<strong>é</strong>culo XIX, as ci<strong>da</strong>des já se encontravam encharca<strong>da</strong>s por slogans e impressospublicitários. Neste contexto, a crítica repetitiva que acompanha a id<strong>é</strong>ia <strong>da</strong>“socie<strong>da</strong>de de imagens” merece ser redimensiona<strong>da</strong>.Figura 73. Pã, o cartaz. Pã (em tom dedeboche) fala: “Ah, ah, ah! Quem disseque eu estava morto e que o medo eraalgo do passado?”. Punch,or theLondon Charivari.Vol. 103. 24 desetembro de 1892.The Project Gutenberg (25/11/07).Figura 74. “O que o nosso artista tem que agüentar....Ele viajou por to<strong>da</strong> a Inglaterra em busca de um panode fundo para seu Vivian beguiling Merlin in theForest of Broceliande,"- uma busca desesperança<strong>da</strong>”.Punch,or the London Charivari.Vol. 103. 3 dedezembro de 1892.The Project Gutenberg (24/11/07).Nos dias atuais, o excesso de informação e publici<strong>da</strong>de <strong>visual</strong> se ampliou detal modo que tem levado publicitários a exercitarem ao máximo sua criativi<strong>da</strong>dede modo a encontrar espaços em branco, leia-se isentos de publici<strong>da</strong>de, ondepossam aplicar a identi<strong>da</strong>de <strong>visual</strong> do seu cliente – em formato publicitáriopatrocinado. O resultado pode ser visto em ovos carimbados com o logo de umprograma de televisão <strong>da</strong> CBS (Figura 75) ou na bandeja onde o passageiro coloca


O OLHAR INOCENTE É CEGO 149seus objetos no momento <strong>da</strong> revista para o embarque nos aeroportos (Figura 76)ou, ain<strong>da</strong>, ao ser examinado no consultório m<strong>é</strong>dico (Figura 77).Figura 75. Anúncio de programas <strong>da</strong> rede CBS,carimbado em ovos distribuídos em todo o país.Retirado de STORY, Louise. Anywhere the EyeCan See, It’s Likely to See an Ad. New YorkTimes, 15 de janeiro de 2007.Figura 76. Anúncio em bandeja de revista debagagem em aeroporto. Retirado de STORY,Louise. Anywhere the Eye Can See, It’s Likely toSee an Ad. New York Times, 15 de janeiro de2007.Figura 77. STORY, Anúncio de Tylenol infantil em salade exame pediátrico. Retirado de Louise. Anywhere theEye Can See, It’s Likely to See an Ad. New York Times,15 de janeiro de 2007.Figura 78. Anúncio de bebi<strong>da</strong> nosímbolo de banheiro masculino.Retirado de STORY, Louise.Anywhere the Eye Can See, It’sLikely to See an Ad. New YorkTimes, 15 de janeiro de 2007.Se os olhos dos moradores <strong>da</strong> metrópole vêm sendo disputados há mais deum s<strong>é</strong>culo e este tema questão já não constitui novi<strong>da</strong>de, cabe lançar duasquestões em direções opostas. De um lado, há um questionamento sobre apróxima fronteira a ser ultrapassa<strong>da</strong> pela imagem emprega<strong>da</strong> com finspublicitários. Neste caso, a mídia eletrônica e a rede mundial de computadoressinalizam a existência de novos espaços a serem preenchidos. Na outra direção,retornamos para o s<strong>é</strong>culo XIX na tentativa de compreender o modo como o <strong>olhar</strong>contemporâneo, ain<strong>da</strong> relativamente fresco e disponível para o novo, eradisputado. Seria possível deduzir o que mais atraía os <strong>olhar</strong>es metropolitanos nadireção dos impressos distribuídos ou colados nos muros? A que eram instigados?Que novas necessi<strong>da</strong>des eram evidencia<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> divulgação de


O OLHAR INOCENTE É CEGO 150determinados produtos? Em busca de algumas destas respostas, realizamos umlevantamento na coleção British Library procurando localizar impressos <strong>da</strong>segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX: peças efêmeras, de divulgação ou materialjornalístico. O resultado obtido indicou um amplo e surpreendente cardápio deobjetos e temas oferecidos ao <strong>olhar</strong> e ao desejo do consumidor moderno.Em primeiro lugar, destacou-se na nossa investigação, a grande quanti<strong>da</strong>dede impressos jornalísticos, alguns ilustrados. As novas invenções relaciona<strong>da</strong>s àreprografia e à impressão ao longo do s<strong>é</strong>culo XIX fizeram nascer a imprensamoderna ilustra<strong>da</strong>. Ao menos vinte revistas ilustra<strong>da</strong>s surgiram na Europa. NovaYork tinha seis, enquanto M<strong>é</strong>xico, Brasil, Uruguai, Canadá, Austrália e África doSul tamb<strong>é</strong>m possuíam ca<strong>da</strong> um sua publicação. Havia tamb<strong>é</strong>m os jornais satíricoscomo o Le Charivari de 1832 e o Punch de 1841, al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> revista científica TheScientific American que começou a circular em 1845. Em Londres os periódicosse dirigiam a diversos segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Algumas publicações dedica<strong>da</strong>s àclasse trabalhadora eram vendi<strong>da</strong>s a um penny (Figura 79; Figura 80) ou mesmomeio penny (Figura 81). O grande número de títulos evidencia a populari<strong>da</strong>dedeste material voltado tanto para a informação quanto para o entretenimento. Nasfiguras aqui reproduzi<strong>da</strong>s, vemos a reprodução de um folheto do periódicoMoonshine (Figura 80) que incluía ilustrações e comentários políticos organizadosde uma maneira próxima ao que hoje classificamos como comics. O anúnciopublicado no Penny Illustrated (Figura 81) divulga o lançamento de um jornalcom sete edições diárias ao custo de meio penny. O texto do anúncio destaca aenorme pretensão do novo jornal londrino em ser o jornal “<strong>da</strong> casa”, “dostrabalhadores”, “dos políticos”, “dos amantes do esporte”, “dos que procuramdiversão”, “dos que procuram negócios”, enfim, dos que se ocupam e dos queprocuram lazer.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 151Figura 79. Folheto depropagan<strong>da</strong> do periódicoThe Million. EvanionCollection of Ephemera.The British Library.(2/12/07)Figura 80. Folheto depropagan<strong>da</strong> do comicsMoonshine. EvanionCollection of Ephemera.The British Library.(2/12/07)Figura 81. The evening times. Sete ediçõesdiárias. Penny Illustrated, 29 de outubro de1910. The British Library. (2/12/07)O avanço de peças impressas em ritmo industrial sistemático e contínuo emdireção ao infinito <strong>é</strong> compartilhado em diversos outros campos do cotidianotransitório do homem urbano, o que pode ser evidenciado atrav<strong>é</strong>s do exame defolhetos publicitários. Nesta parte do trabalho iremos analisar exemplosdiretamente relacionados ao cotidiano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos moradores urbanos e que tratam<strong>da</strong> sua alimentação e higiene. Um exemplo relevante <strong>é</strong> encontrado em um anúnciode rótulos para embalagens (Figura 82) de diversos tipos de alimentos. Os rótulospassaram a ser utilizados na embalagem de produtos <strong>da</strong>s grandes manufaturas, apartir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX. At<strong>é</strong> esta <strong>da</strong>ta, as mercearias e lojas dealimentos realizavam o empacotamento de seus produtos em jarras ou pacotes depapel na própria loja. No mostruário reproduzido no folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong>Fell & Briant, apesar <strong>da</strong> ausência de imagens, os rótulos de produtos diversoscomo pastilhas para a tosse, balas de gengibre e confeitos utilizam at<strong>é</strong> três coresde impressão e uma ampla varie<strong>da</strong>de de fontes tipográficas. É interessanteobservar que os produtos alimentícios ao deixarem de mostrar-se diretamente aopúblico antes de serem embalados, acabaram tendo que buscar valor no nome <strong>da</strong>marca.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 152Figura 82. Folheto de propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fell & Briant, impressão derótulos, 1889. Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain.The British Library. (2/12/07)Figura 83. Anúncio demercado, 1885. EvanionCollection of Ephemera. TheBritish Library.(2/12/07)Anúncios e cartazes tipográficos eram bastante comuns à <strong>é</strong>poca:empregavam uma grande quanti<strong>da</strong>de de fontes, mistura<strong>da</strong>s e no maior tamanhopossível. Apesar <strong>da</strong> diversificação do emprego <strong>da</strong>s fontes, que em alguns casosparecem mesmo exóticas, o resultado obtido era “estático e convencional” 303como um muro que paralisa o <strong>olhar</strong> do observador. Na Figura 83 vemos umexemplo de folheto tipográfico de uma loja de alimentos que se apresenta como de“primeira classe”. Provavelmente, devia tratar-se de um pequeno mercado dirigidoa um público mais abastado, na medi<strong>da</strong> em que poucos moradores <strong>da</strong>s regiõesurbanas tinham condições de consumir produtos frescos como os anunciados.A tipografia <strong>da</strong> era industrial teve ain<strong>da</strong> que esperar quase meio s<strong>é</strong>culo paradesenvolver certo requinte na utilização de tipos. No entanto, o aprimoramento <strong>da</strong>litografia permitiu a impressão de figuras colori<strong>da</strong>s como os exemplos queapresentaremos em anúncios e folhetos de alimentos. A nossa opção por analisarimpressos relacionados à alimentação <strong>é</strong> basea<strong>da</strong> na constatação <strong>da</strong> influência <strong>da</strong>industrialização neste setor, que <strong>é</strong> diretamente relacionado à vi<strong>da</strong> cotidiana domorador urbano.Apesar <strong>da</strong> presença constante de ilustrações românticas, alguns anúnciosutilizam termos mais relacionados às novas descobertas científicas como“hypophosphites”, supostamente presente no óleo de fígado de bacalhau (Figura303 LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 23.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 15384). O óleo de fígado de bacalhau era empregado há anos pelas comuni<strong>da</strong>despesqueiras para proteção do frio e passou a ser utilizado por crianças comdesnutrição ou raquitismo a partir <strong>da</strong> d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1890. No entanto, a relação entreo óleo de fígado de bacalhau e a vitamina D só foi comprova<strong>da</strong> em 1922, muitodepois de ter sido recomen<strong>da</strong>do como alívio para reumatismo e dores musculares.A comprovação de valor nutricional em alimentos de alto custo abriu caminhopara o desenvolvimento de soluções industriais no setor alimentício. Os ovos, porexemplo, eram reconhecidos no s<strong>é</strong>culo XIX como fonte de ferro e proteína, mas otransporte do campo para os centros urbanos fazia seu custo tornar-se proibitivo.Assim, aqueles que não tinham condições de comprar ovos frescos, podiamadquirir “pó de ovos” industrializado para usar na massa de bolo, no preparo depudins ou ain<strong>da</strong> misturado ao leite ou à água. O anúncio do “pó de ovos” Freeman(Figura 85), alerta o consumidor para “insistir” na marca Freeman, quando for“pedir pó de ovos”, o que nos permite concluir que esta não seria a única marca noramo.Um exemplo particularmente curioso de produto para “gerar força e vigor”aparece no anúncio de Bovril, um extrato de carne criado por um açougueiro deEdinburgh. O nome foi obtido a partir <strong>da</strong> combinação de “bos”, palavra latina paraboi e “vril”, termo criado por Bulwer Lytton no seu livro de ficção científica ThePower of the Coming Race. A obra, publica<strong>da</strong> em 1871, tratava de uma socie<strong>da</strong>deutópica que habitava as profundezas <strong>da</strong> Terra e dominava uma misteriosa forçavital. O anúncio aqui reproduzido (Figura 86) apresenta um grupo de figurashumanóides erguendo o globo terrestre. Eles têm braços e pernas, mas no lugar dotronco e <strong>da</strong> cabeça têm um frasco de Bovril. A relação com a ficção científicaparece estreitar-se nas figuras dos Homens-Bovril e demonstra uma aproximaçãoestreita entre a <strong>cultura</strong> popular e a produção industrial de alimentos. Outro <strong>da</strong>dointeressante nesta peça gráfica <strong>é</strong> a utilização de letras soltas e embaralha<strong>da</strong>s noslogan do produto: “supports the world” – uma utilização tipográfica com tons deousadia.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 154Figura 84. Anúncio <strong>da</strong>emulsão Scott com “puroóleo de fígado de bacalhau”,1884. Evanion Collection ofEphemera. The BritishLibrary.(2/12/07)Figura 85. Anúncio deFreeman's Egg Powder, 1885.Evanion Collection ofEphemera. The BritishLibrary.(2/12/07)Figura 86. Anúncio de Bovril,1890. Evanion Collection ofEphemera. The British Library.(2/12/07)Anúncios como o de Bovril apresentam-se como exceções em um ambienteonde a maior parte dos anúncios encontra-se relacionado à concepção românticacontemporânea, inclusive utilizando figuras infantis ou angelicais. O emprego deilustrações de caráter romântico, na maioria <strong>da</strong>s vezes, aparece sem relação com ovalor do alimento ou as características de seu preparo. Esta consideração seevidencia no anúncio litográfico do alimento artificial Mellin “para crianças einválidos” (Figura 87). No anúncio do alimento ambiente Mellin vê-se umambiente campestre com duas crianças de bochechas rosa<strong>da</strong>s. Uma delas tem umaestrela de várias pontas brilhando sobre sua cabeça e está assenta<strong>da</strong> sobre um tubodo alimento que flutua no espaço. A boca do tubo de Mellin aparece decora<strong>da</strong> porramos de folhas. A outra criança aparece senta<strong>da</strong> entre ramos de trigo, na únicaalusão à composição do alimento, com os braços estendidos para receber oalimento. No canto inferior direito <strong>da</strong> imagem, um pássaro leva um pequeno ramode folhas no bico. O pássaro em movimento forma uma esp<strong>é</strong>cie de assinatura comum quadro de moldura arredon<strong>da</strong><strong>da</strong> onde se vêem três pequenos pássaros de bicoaberto como se esperasse o alimento. Abaixo do conjunto um toco de árvore levao dístico beneditino “Ora et labora”, reza e trabalha.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 155Figura 87. Mellin’s Food forInfants & Invalids, 1890. EvanionCollection of Ephemera. TheBritish Library. (2/12/07)Figura 88. Folheto do fermento em pó Soddy, 1887. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. (13/12/07)É interessante observar a oposição entre o utilitarismo dos alimentosindustriais e a pureza, doçura ou benigni<strong>da</strong>de sugeri<strong>da</strong> pelas ilustraçõesromânticas de crianças rosa<strong>da</strong>s. Em alguns casos, a presença de crianças noimpresso reforça a simplici<strong>da</strong>de de preparo do produto, como no calendário dofermento em pó Soddy (Figura 88). Nesta figura, uma criança prepara o alimento ea outra apresenta o resultado para o orgulho dos pais. O fato se tratarem decrianças pequenas <strong>é</strong> ressaltado em ambas as imagens. Na primeira, a criançapouco mais alta do que uma mesa carrega um bolo desproporcional para o seutamanho. Na segun<strong>da</strong>, a jovem cozinheira faz uso de uma banqueta para alcançara mesa onde prepara o bolo. No anúncio do pó Freeman para pudim (Figura 89),que pode ser feito em “cinco minutos”, bastando “acrescentar leite e açúcar”,vemos a figura de uma jovem com um cartaz onde se lê: “uma criança pode fazêlo”.Sobre a mesa diversos pudins, representando os sabores citados abaixo. Opudim era uma parte importante <strong>da</strong> alimentação vitoriana. Embora as classes maisbaixas não tivessem acesso freqüente às sobremesas, estas não eram exatamenteum luxo dos mais ricos. O pó de pudim facilitava o preparo a um preço acessívelpara as classes m<strong>é</strong>dias, onde era muito popular.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 156Figura 89. Anúncio do pó para pudim Freeman, 1884. EvanionCollection of Ephemera. Collect Britain. The British Library. (2/12/07)Figura 90. Anúncio <strong>da</strong>essência de chocolateCadbury, 1866. EvanionCollection of Ephemera. TheBritish Library.(2/12/07)Estes exemplos apontam para a evidencia de que as publicações e suasimagens passaram a ocupar espaço na <strong>construção</strong> do imaginário do morador <strong>da</strong>urbe a partir de sua atuação nos diversos campos de sua vi<strong>da</strong>, como no ambientedom<strong>é</strong>stico, no vestuário e na alimentação, na formulação de uma ver<strong>da</strong>deira<strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. Se, por um lado, alguns exemplos são de anúncios bastanteobjetivos, de outro existe sutileza na existência de marcas ou ilustrações que nãoapresentam uma conexão direta com o produto. Este enfoque pode ser claramenteobservado em anúncios de sabão que, apesar de manufaturado há centenas deanos, tiveram seu consumo ampliado a partir de 1853, com a isenção de taxas. Deum lado, vemos o produto em ação, seja na limpeza realiza<strong>da</strong> por empregados(Figura 91; Figura 92) ou no destaque <strong>da</strong>do às características funcionais doproduto (Figura 93). O anúncio <strong>da</strong> marca de sabão em pó Hudson (Figura 92) <strong>é</strong> aomesmo tempo característico do espírito romântico que ain<strong>da</strong> paira sobre o s<strong>é</strong>culoXIX e <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de de atuação do produto. Na sua ilustração há uma criançabem vesti<strong>da</strong> que escreve na porta as informações do sabão: “lava, limpa e politudo”. Pela porta entreaberta vemos a dom<strong>é</strong>stica lavando roupa em uma <strong>da</strong>smáquinas contemporâneas.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 157Figura 91. Anúncio do desinfetante Jeyes, 1879.Evanion Collection of Ephemera. Collect Britain. TheBritish Library. (2/12/07)Figura 92. Anúncio do sabão em pó Hudson, 1880.Evanion Collection of Ephemera. *The British Library. (14/12/07)Figura 93. Anúncio do sabão em póHudson, 1889. Evanion Collection ofEphemera. The British Library. (15/12/07)Outra s<strong>é</strong>rie de anúncios e folhetos publicitários de sabão utiliza figuras nãodiretamente relaciona<strong>da</strong>s às características do produto ou à higiene e limpeza,simplesmente elementos ilustrativos. É o caso do anúncio <strong>da</strong> manufatura Price(Figura 94), onde o anunciante aproveita a ilustração de um barco para divulgartamb<strong>é</strong>m a sua produção de velas para alumiar. No caso do fabricante de sabãoBrooker, um macaco foi adotado para representar sua marca (Figura 95), enquantoo sabão em pó Glover, premiado na Exposição de Paris de 1878, utiliza a imagemde um galo (Figura 96).


O OLHAR INOCENTE É CEGO 158Figura 94. Anúncio do sabãoPrice, 1880. EvanionCollection of Ephemera. TheBritish Library.(2/12/07)Figura 95. Anúncio do sabãoBrooker, 1889. EvanionCollection of Ephemera. TheBritish Library.(2/12/07)Figura 96. Anúncio do sabãoem pó Glover, 1881. EvanionCollection of Ephemera. TheBritish Library.(2/12/07)Os impressos publicitários apresentados evidenciam o destaque vitoriano<strong>da</strong>do ao ambiente dom<strong>é</strong>stico em um ambiente onde o trabalho industrial passa aditar o ritmo urbano <strong>da</strong> metrópole, inclusive com a falta de tempo que faz comque os habitantes procurem simplificar os seus modos de alimentação, moradia ehigiene.A produção de impressos em grande escala ao lado <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de dosprodutos desenvolvidos especificamente para os moradores urbanos confirmam oenorme fluxo de informações visuais sugerido pelas representações de muroscobertos por impressos e apontam, tamb<strong>é</strong>m, para o avanço <strong>da</strong> industrialização emsetores tão diversos como editoração, produtos de limpeza e alimentos pr<strong>é</strong>prontos.As ci<strong>da</strong>des satura<strong>da</strong>s de imagens colocam-se ao mesmo tempo como um“complexo de representações e um lugar de circulação de representações”; oefeito de ca<strong>da</strong> um destes processos <strong>é</strong> articulado e retrabalhado sobre o outro. 304Em um mundo onde tudo e todos se movimentam surge um novo tipo de <strong>olhar</strong> apartir <strong>da</strong> dinâmica surgi<strong>da</strong> entre os espaços urbanos, as novas tecnologias e suainfluência sobre o aparecimento <strong>da</strong> profusão de imagens. A visão abandona apostura contemplativa e o ponto de vista único <strong>da</strong> perspectiva para tornar-se304 TAGG, John. The Discontinuous City: Picturing and the Discursive Field. In: BRYSON, Norman,HOLLY and MOXEY (eds.). Visual Culture: Images and Interpretations. Hanover and London: WesleyanUniversity Press, 1994. p. 85. apud apud NEAD, Lyn<strong>da</strong>. Victorian Babylon. People, streets and images innineteenth-century London. New Haven & London: Yale University Press, 2000. p. 57.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 159múltipla e deslizante sobre as formas de ca<strong>da</strong> objeto ou imagem. Com tantospontos de vista possíveis, o novo observador vê-se disputado pelo excesso deestímulos e <strong>é</strong> forçado a a<strong>da</strong>ptar sua forma de <strong>olhar</strong> a estas condições: com o menoresforço possível deve ser capaz de registrar o maior número de estímulos visuais.De um único relance poderá registrar um grande número de elementosindividuais. Estão aponta<strong>da</strong>s algumas bases <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> contemporânea.3.2.4. O <strong>olhar</strong> para o novo / o choque do novoO excesso de estímulos visuais encontra-se relacionado à “concepçãoneurológica <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de” 305 , expressão cria<strong>da</strong> por Ben Singer, basea<strong>da</strong> emestudos de Georg Simmel, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin que apontavampara a compreensão <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de como o registro de uma experiência subjetivacaracteriza<strong>da</strong> por choques físicos e perceptivos no ambiente urbano moderno. “Amoderni<strong>da</strong>de implicou em um mundo fenomenal – especificamente urbano – queera marca<strong>da</strong>mente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que asfases anteriores <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> humana”. 306O movimento do tráfego e <strong>da</strong>s multidões, o barulho <strong>da</strong>s ruas e a crescentecarga de informação <strong>visual</strong> conti<strong>da</strong> nas vitrines, estampas, cartazes e anúnciosencontram paralelo em uma reorganização <strong>da</strong>s respostas sensoriais. O novo ritmotrazido pelo transporte rápido, pelo aumento na quanti<strong>da</strong>de de produtos einformações e pela premência <strong>da</strong> produção em massa acelerou essas repostas. Aveloci<strong>da</strong>de crescente passa a influir diretamente sobre uma mu<strong>da</strong>nça perceptivaconsciente, que Georg Simmel anos depois veio a chamar de “percepção urbana”.No ensaio “A metrópole e a vi<strong>da</strong> mental” de 1902, Simmel analisa a alteraçãobrusca e ininterrupta entre o que chama de estímulos interiores e estímulosexteriores e o modo como esta dinâmica intensifica as respostas nervosas dohomem urbano. 307 Para Simmel “a metrópole extrai do homem, enquanto criaturaque procede a discriminações, uma quanti<strong>da</strong>de de consciência diferente <strong>da</strong> que a305 SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In CHARNEY, Leo eSCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p116.306 Id.307 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vi<strong>da</strong> mental. In: VELHO, Otavio Guilherme.(org.) O fenômeno urbano.Rio de Janeiro : Zahar, 1976. p. 12.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 160vi<strong>da</strong> rural extrai”. 308 Opondo os ritmos de vi<strong>da</strong> urbano e rural, observa que naúltima “o conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modomais habitual e mais uniforme. 309 O ci<strong>da</strong>dão urbano sujeito a estímuloscontrastantes acaba por adotar uma atitude blas<strong>é</strong>. “Uma vi<strong>da</strong> em perseguiçãodesregra<strong>da</strong> ao prazer torna uma pessoa blas<strong>é</strong> porque agita os nervos at<strong>é</strong> seu pontode mais forte reativi<strong>da</strong>de por um tempo tão longo que eles finalmente cessamcompletamente de reagir”. 310 Esta manifestação fisiológica consiste “noembotamento do poder de discriminar”. 311 Os objetos são percebidos como“destituídos de substância” e aparecem à pessoa blas<strong>é</strong> num tom uniformementeplano e fosco, sem grandes relevâncias. “Objeto algum merece preferência sobre ooutro”. 312 O excesso de estímulos faz como que a atitude blas<strong>é</strong> surja como umaforma de autopreservação. O resultado <strong>é</strong> que para que venha a interagir comobjetos ou imagens, o homem moderno irá precisar de estímulos ca<strong>da</strong> vezmaiores. Já em 1910 o termo “hiperestímulo” aparece associado ao novo ambientemetropolitano <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. 313 A teoria de Simmel ain<strong>da</strong> ecoa com bastanteatuali<strong>da</strong>de em nossos dias, inclusive sendo reforça<strong>da</strong> pelas modificações ocorri<strong>da</strong>sna natureza e intensi<strong>da</strong>de dos estímulos surgidos nas últimas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s comoconseqüência do aparecimento de novas de comunicação.Walter Benjamin, influenciado por Simmel, avalia a experiência <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong> transformação de Erfahrung em Erlebnis 314 . Erfahrungtrata <strong>da</strong> “experiência” relaciona<strong>da</strong> à obtenção de um conhecimento semintervenção <strong>da</strong> consciência, mas sedimentado com o tempo. Erlebnis <strong>é</strong> a vivênciaimediata, “do indivíduo privado, isolado <strong>é</strong> a impressão forte, que precisa serassimila<strong>da</strong> às pressas, que produz efeitos imediatos”. 315 É relaciona<strong>da</strong> à impressãodo indivíduo desconsiderando sua inserção na comuni<strong>da</strong>de. Erfahrung pertence aodomínio do artesanal, relaciona-se à continui<strong>da</strong>de, à memória, à narrativa e a umarelação significativa com o passado enquanto Erlebnis <strong>é</strong> própria <strong>da</strong> experiência308 Id.309 SIMMEL, G. op. cit., p. 12.310 Ibid., p. 16.311 Id.312 Id.313 DAVIS, Michel M. The explotation of pleasure. Nova York: Russel Sage Foungation, 1911 p. 33-36,apud SINGER, B. op. cit., p 119.314 A questão <strong>da</strong> experiência aparece em diversos textos de Benjamin. Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre algunstemas em Baudelaire.... p. 104 a 149.315 BARBOSA, Jos<strong>é</strong> Carlos Martin, re<strong>da</strong>tor t<strong>é</strong>cnico, citando KONDER, Leandro. BENJAMIN, W. Sobrealguns temas em Baudelaire... p. 146.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 161descontínua <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>s sensações fragmentárias, <strong>da</strong>s informações contínuase superficiais e <strong>da</strong>s existências momentâneas. “Erfahrung <strong>é</strong> o conhecimentoobtido atrav<strong>é</strong>s de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que sedesdobra, como numa viagem...”. 316 É uma <strong>construção</strong> no tempo e na história.Erlebnis <strong>é</strong> a própria experiência <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> celebração do espetáculo do“agora” e de seu parceiro - o sempre novo, filhos <strong>da</strong> metrópole capitalista surgi<strong>da</strong>na segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX.A ci<strong>da</strong>de moderna abre espaço para a necessi<strong>da</strong>de permanente do novo, oestranho e o sensacional. Ben Singer credita a este desejo o crescente número deilustrações presentes em jornais e revistas <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca que mostram desastres epequenas trag<strong>é</strong>dias urbanas, geralmente representa<strong>da</strong>s no momento imediatamenteanterior ao impacto. Algumas destas imagens enfatizam o choque entre o mundomoderno e o pr<strong>é</strong>-moderno como vemos na figura do New York World de 1897 quemostra um acidente envolvendo um cavalo e um bonde (Figura 97). Na figura <strong>da</strong>Life vemos um adulto e uma criança de origem indígena em dois diferentesmomentos (Figura 99). Representados no s<strong>é</strong>culo XVI, eles passam tranqüili<strong>da</strong>de:o ambiente <strong>é</strong> campestre, o adulto fuma seu cachimbo enquanto a criança parece<strong>olhar</strong> para fora do quadro, ou para o nosso <strong>olhar</strong>. O segundo momento <strong>é</strong> na NovaYork do s<strong>é</strong>culo XIX. Um bonde avança em alta veloci<strong>da</strong>de sobre a mulher queresgata uma criança <strong>da</strong> frente do veículo. O chap<strong>é</strong>u do menino <strong>é</strong> lançado ao chãoenquanto as tranças <strong>da</strong> mulher formam um desenho curvo em contraste com aslinhas retas do bonde. O motorista tem um semblante ameaçador e sarcástico eavança sobre suas vítimas: outra criança e um homem, lançados um de ca<strong>da</strong> ladodo veículo. Ao fundo vemos a nossa já conheci<strong>da</strong> “paisagem” de cartazespublicitários, desta vez, anunciando “imagens em movimento”. Em uma gravurado Punch, um homem <strong>é</strong> retratado no instante em que, ao descer as esca<strong>da</strong>s, <strong>é</strong>surpreendido por uma súbita freia<strong>da</strong> do bonde. De acordo com a legen<strong>da</strong>, ele nãose encontra em um de seus melhores momentos (Figura 98).316 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 162Figura 97. “Cavalo estraçalha janela de bonde”.New York World, 1897. Extraído de SINGER,Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímulo e o início dosensacionalismo popular... p 123Figura 98. “Quando um homem não pareceestar no seu melhor momento”- n. 2. Punch,or The London Charivari. Vol. 101. 17 deoutubro de 1891.The Project Gutenberg (24/11/07).Figura 99. “Broadway – Passado e Presente”. Life, 1900.Extraído de SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímulo e oinício do sensacionalismo popular... p 122.Um ensaio acadêmico publicado em 1912 no American Journal ofSociology enfatiza a conexão entre a experiência moderna e o apetite por“choques intensos” no entretenimento. “Há ‘alguma coisa acontecendo a ca<strong>da</strong>minuto’... Tudo isso tende a estimular uma atenção esgota<strong>da</strong>, por meio de uma


O OLHAR INOCENTE É CEGO 163sucessão de choques curtos e intensos que reavivam o organismo cansado paraativi<strong>da</strong>des renova<strong>da</strong>s”. 317 Estas ativi<strong>da</strong>des consistiam em teatro de varie<strong>da</strong>des,vaudeville, exibição de filmes em movimento, acrobacias a<strong>é</strong>reas, “aparelhos quefazem cócegas”, peep shows, gabinetes de curiosi<strong>da</strong>des dentre outros capazes desuprir a necessi<strong>da</strong>de por novos estímulos. Estes estímulos deveriam produzirsensações ca<strong>da</strong> vez mais intensas de forma a penetrar nos sentidos atenuados paraentão “formar uma impressão e redespertar uma percepção”. 318 Deste modocompreende-se que os entretenimentos se anunciem como algo “jamais visto”,“nunca antes...”, “o maior show do mundo”, etc. É neste contexto que Ben Singer,ao considerar que a moderni<strong>da</strong>de “inaugurou um com<strong>é</strong>rcio de choquessensoriais” 319 , vê o início do cinema reforçando a tendência pela procura <strong>da</strong>ssensações intensas que gravitam em torno de uma “est<strong>é</strong>tica do espanto”. 320É como se o ambiente caótico <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de tivesse sido transfigurado emmonotonia. Há no ar uma ânsia pela novi<strong>da</strong>de, já que a monotonia “se nutre donovo”. 321 Walter Benjamin vê a falsa aparência <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de como o reflexo de umespelho no outro. Para tentar entender o significado <strong>da</strong> nouvet<strong>é</strong>, pergunta-se: “Porque todo o mundo comunica as últimas novi<strong>da</strong>des aos outros? Provavelmente paratriunfar sobre os mortos”. 322 Os mortos são os sem-novi<strong>da</strong>de porque não podem sealiar à veloci<strong>da</strong>de mutante dos novos tempos. E prossegue:Esta temporali<strong>da</strong>de [que] não quer conhecer a morte, por que a mo<strong>da</strong> zomba <strong>da</strong>morte, e como a rapidez do trânsito e a veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> transmissão de notícias – quefaz com que as edições do jornais se suce<strong>da</strong>m rapi<strong>da</strong>mente – visam a eliminar to<strong>da</strong>interrupção, todo fim abrupto, e de que maneira a morte como cesura tem a vercom a linha reta do decurso divino do tempo. 323No fundo trata-se do “mesmo” que <strong>é</strong> buscado incansavelmente com umanova roupagem. Neste contexto, surge a mo<strong>da</strong> como um fenômeno específico <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de capitalista, acentuando o desejo pela mu<strong>da</strong>nça rápi<strong>da</strong>. 324 ParaBenjamin, “a mo<strong>da</strong> <strong>é</strong> o eterno retorno do novo” 325 e se coloca como um rem<strong>é</strong>dio317 WOOLSTON Howard B. The Urban Habit of Mind. American Journal of Sociology. V. 17, n. 5, mar.1912. p. 602 apud SINGER, B. op. cit., p 139.318 Em referência a Woolston cf. SINGER, B. op. cit., p 140.319 SINGER, B. op. cit., p 133.320 Ibid., p 136.321 VAUDAL, Jean, Le Tableau Noir. BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 151. [D 5,6].322 BENJAMIN, W. Passagens... p. 152. [D 5a,5].323 Ibid. p. 89. [A 6,2].324 SIMMEL, Georg. Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 41. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 115.[B 7a,1].325 BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s III... p. 169.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 164para compensar “na escala coletiva os efeitos nefastos do esquecimento. Quantomais efêmera <strong>é</strong> uma <strong>é</strong>poca, tanto mais ela se orienta pela mo<strong>da</strong>”. 326A mo<strong>da</strong> <strong>é</strong> o fun<strong>da</strong>mento sobre o qual as lojas exercem seu poder de atraçãosobre o <strong>olhar</strong> do transeunte. Em um texto de 1822, reproduzido por Benjamin,lemos:Os olhos são conduzidos como que à força, <strong>é</strong> preciso <strong>olhar</strong> para cima e ficar paradoat<strong>é</strong> que o <strong>olhar</strong> seja restituído. O nome do comerciante ou de sua mercadoria estáescrito dez vezes em tabuletas pendura<strong>da</strong>s por to<strong>da</strong> parte, sobre as portas, acima<strong>da</strong>s janelas, o lado externo <strong>da</strong> abóba<strong>da</strong> assemelha-se ao caderno de uma criança deescola, que repete continuamente as poucas palavras a serem copia<strong>da</strong>s. 327At<strong>é</strong> a segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX, as lojas de varejo eramespecializa<strong>da</strong>s. Em geral pertenciam a um indivíduo ou família e disponibilizavamartigos produzidos artesanalmente. Os compradores se dirigiam a estesestabelecimentos em busca de itens específicos e, de uma maneira geral, tinhamem mente o que iriam encontrar.A partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX, os espaços comerciais passarama se organizar em cadeias, como na Inglaterra, ou em lojas de departamento, comoLe Bon March<strong>é</strong>, Le Louvre e La Belle Jardinière 328 , nasci<strong>da</strong>s na França. A novadinâmica comercial foi estabeleci<strong>da</strong>, principalmente, a partir <strong>da</strong> produção deartigos em massa e <strong>da</strong>s transformações urbanas.Le Bon March<strong>é</strong> era uma pequena loja parisiense, quando em 1863,Boucicaut comprou a parte dos sócios e passou a imprimir novas características aoempreendimento que at<strong>é</strong> os dias de hoje se assina como “Maison AristideBoucicaut”. Buscando caracterizar a casa por sua honesti<strong>da</strong>de, qualquer compraque não satisfizesse o consumidor poderia ser troca<strong>da</strong> por outra ou ter restituído ovalor pago. 329 Todos os produtos tinham preço fixo, indicado sobre etiquetas. Estainovação ousa<strong>da</strong> suprimia a pechincha e a ‘ven<strong>da</strong> segundo a cara do freguês’. 330326 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 104-105. [B 2,4].327 Ludwig Börne, Schilderungen aus Paris, 1822 e 1823, VI (“Die Läden”), in: Gesammelte Schriften,Hamburgo / Frankfurt a. M., 1862, III, pp. 46-49. apud, BENJAMIN, W. Passagens... p. 99-100. [A, 12a].328 Benjamin aponta o nascimento <strong>da</strong>s três lojas francesas a partir de 1852. BENJAMIN, W. Passagens.. p.89. [A 6,2].329 Souvenir of the Bon Marche, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue deFleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. In: Acesso em21/07/2007 às 11:00.330 George d’Avenel, “Le m<strong>é</strong>canisme de la vie moderne: Les grands magazins”, Revue de Deux Mondes,Paris, 1894, pp. 335-336; 124 tomos” apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 98. [A 12,1].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 165O grande número de produtos disponíveis permitia uma ampla margem deescolha e tamb<strong>é</strong>m uma eventual substituição, no caso de não se encontrar oproduto desejado originalmente. Finalmente, a diminuição na margem dos lucrospossibilitou uma grande rapidez de reposição de mercadoria. As mercadoriastamb<strong>é</strong>m podiam ser escolhi<strong>da</strong>s atrav<strong>é</strong>s de catálogos e remeti<strong>da</strong>s para qualquerparte do planeta. Itens acima de 25 centavos eram enviados sem custo paradiversos países <strong>da</strong> Europa: “Entregamos tão longe quanto um cavalo possaalcançar em Paris”. 331 Outra grande invenção foi a liqui<strong>da</strong>ção de inverno cria<strong>da</strong>para aju<strong>da</strong>r a “queimar” o estoque de produtos não vendido no natal e na vira<strong>da</strong> doano, reforçando a rotativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mercadoriasDiferentemente do que ocorria em outros empreendimentos relacionados àindústria, Boucicaut e sua esposa eram reconhecidos por se preocuparem com ascondições de trabalho dos empregados. Al<strong>é</strong>m <strong>da</strong>s comissões origina<strong>da</strong>s a partir<strong>da</strong>s ven<strong>da</strong>s, os empregados contavam com assistência m<strong>é</strong>dica e um fundo deprevidência para a aposentadoria. Recebiam refeições no local de trabalho efolgavam aos domingos. Este tratamento paternalista acontecia muito antes dequalquer obrigação trabalhista legal. As obrigações e benefícios dos empregadoseram divulgados em publicações impressas que ressaltavam o papel filantrópicodo empreendimento. 332 Quando iniciou a <strong>construção</strong> do grande edifício <strong>da</strong> loja,em 1869, Boucicaut fez acrescentar uma placa com um pequeno texto ondedeixava claro que desejava fazer <strong>da</strong> instituição uma organização filantrópica comogratidão pelos “seus esforços sempre terem sido recompensados pelaProvidência”. 333Qualquer um podia circular – mesmo que por pura diversão – pelospavimentos dos grands magasins de noveaut<strong>é</strong>. O espaço físico <strong>da</strong>s lojas dedepartamento incorporava outros usos al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> de produtos. Em Paris estesespaços se estabeleceram entre as atrações turísticas mais importantes <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de. 334 Na loja do Bon March<strong>é</strong> havia visitas guia<strong>da</strong>s diárias, comacompanhantes em diversos idiomas, al<strong>é</strong>m de uma galeria para exposição de331 LE BON MARCHÉ RIVE GAUCHE - press release new edition October 2004. p. 6.332 Au Bon March<strong>é</strong>. R<strong>é</strong>sum<strong>é</strong> du r<strong>é</strong>glement g<strong>é</strong>n<strong>é</strong>ral ; en Institutions philanthropiques en faveur du personnel /Au Bon March<strong>é</strong>, nouveaut<strong>é</strong>s, Maison Aristide Boucicault,... Publication: Paris: Maison A. Boucicaut, 1894.In: Acesso em 25/07/2007 às 20:15.333 History of Le Bon March<strong>é</strong>. Acesso em 25/07/2007.334 TIERSTEN, Lisa. Marianne in the market: envisionig consumer society in fin-de-siècle France. LosAngeles: University of California Press, 2001. p. 26.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 166pinturas e es<strong>cultura</strong>s, onde não se aceitavam cópias. 335 No s<strong>é</strong>culo XIX, a loja dedepartamentos já associava compras a entretenimento, oferecendo para antes oudepois <strong>da</strong>s compras uma i<strong>da</strong> ao restaurante ou ao Tea Lounge para um encontrocom Orquestra Vocal. Todo este arsenal procurava fazer com que a mercadoria semostrasse ain<strong>da</strong> mais sedutora. Para T. J. Clark os magasins se abriam como umaesp<strong>é</strong>cie de palco onde o comprador devia estabelecer uma nova postura: “nãopechinchar, mas procurar as pechinchas, não obter uma roupa corta<strong>da</strong> sobremedi<strong>da</strong>, mas escolher uma que, de algum modo, coubesse perfeitamente dentre as54 saias-balão em exposição. 336A nova dinâmica comercial produziu um grande impacto sobre as pequenaslojas, mas, principalmente, sobre os artesãos que, na França, já atravessavam umperíodo de mu<strong>da</strong>nças intensas na sua ativi<strong>da</strong>de com alterações na forma detrabalhar, graças ao desenvolvimento industrial, mas tamb<strong>é</strong>m com modificaçõesno seu espaço de atuação, como resultado <strong>da</strong>s reformas de Haussmann quepromoveram a reestruturação <strong>da</strong> antiga comuni<strong>da</strong>de com a conseqüente mu<strong>da</strong>nçados trabalhadores para bairros mais distantes. Mas, acima de tudo, os artesãosforam profun<strong>da</strong>mente afrontados pelo sistema de ven<strong>da</strong>s que se propunha umlucro pequeno para uma quali<strong>da</strong>de plenamente aceitável. 337 A estrutura comerciale de produção foi completamente reformula<strong>da</strong>. Os representantes <strong>da</strong>s grandeslojas se dirigiam aos ateliês com pedidos de centenas ou milhares de uni<strong>da</strong>des. Nabusca pelo melhor preço, negociavam o serviço ou, se necessário, iam procurá-lomais longe. As condições eram ofensivas não apenas pelas exigências de preço,mas tamb<strong>é</strong>m de veloci<strong>da</strong>de. Deste modo, os artesãos foram aprendendo a usar oferro mais barato e o papel mais fino e a preocupar-se menos com a quali<strong>da</strong>depermanente do resultado 338 . Passaram a trabalhar por mais tempo com o mestre,atuando como um guardião <strong>da</strong> disciplina <strong>da</strong> oficina, zelando pelos prazos. Astarefas de produção foram segmenta<strong>da</strong>s e ca<strong>da</strong> trabalhador executava a sua335 Souvenir of the Bon March<strong>é</strong>, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue deFleures, a Paris. Lipinsky Family Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. p. 4.In: http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm. Acesso em21/07/2007 às 11:00.336 CLARK, T. J. op. cit., p. 101. O número citado <strong>é</strong> o de saias disponíveis no Bon March<strong>é</strong>.337 “The system of selling everything at a small profit and of a perfectly reliable quality”. Souvenir of the BonMarche, Paris. Impresso por The Bon Marche by Imprimerie Lahure, 9, rue de Fleures, a Paris. LipinskyFamily Collection, D.H. Ramsey Library Special Collections, UNCA, USA. p. 3. In:http://toto.lib.unca.edu/findingaids/books/booklets/bon_marche/default_bon_marche.htm. Acesso em21/07/2007 às 11:00.338 CLARK, T. J. op. cit., p. 102.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 167especiali<strong>da</strong>de, muitas vezes na própria casa sob o comando representante <strong>da</strong>cadeia de lojas.Figura 100. Au Bon March<strong>é</strong>, 1889. Vitrine depequenos artefatos. In: Revista Electrónica deGeografía y Ciencias Sociales. Universi<strong>da</strong>d deBarcelona. Vol. X, n. 211, 15 de abril de 2006. (21/07/07)Figura 101. Ilustração “origin of the bonmarch<strong>é</strong>”. p. 2. Livreto, c. 1896. In: D. H.Ramsey Library, Special Collections,University of North Carolina at Asheville. (21/07/07)As novas formas de exibir os produtos visavam vender mais do que aspessoas haviam originalmente planejado comprar e a publici<strong>da</strong>de impressareforçava esta id<strong>é</strong>ia. A influência do Le Bon March<strong>é</strong> na <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>demoderna não se restringe apenas às novi<strong>da</strong>des na exposição e ven<strong>da</strong> de produtos(Figura 100), mas pode ser observa<strong>da</strong> na produção de produtos impressos comofolhetos e estampas colecionáveis e nas artes plásticas. Por ser a primeira loja dedepartamento, o Bon March<strong>é</strong> servia de referência para a criação de lojassemelhantes. A Figura 101 reproduz a primeira página de uma publicação volta<strong>da</strong>para as práticas administrativas deste modelo de loja e que foi utilizado pelafamília Lipinsky, proprietária <strong>da</strong> loja de departamentos Asheville, N.C. BonMarch<strong>é</strong> nos Estados Unidos. É importante observar que, apesar desta lojaamericana não estar diretamente liga<strong>da</strong> à matriz francesa, o seu processo dedesenvolvimento e modernização <strong>é</strong> destacado na ilustração (Figura 101). Asestampas litográficas promocionais foram utiliza<strong>da</strong>s como publici<strong>da</strong>de do BonMarch<strong>é</strong> a partir de 1878, com ilustrações diferentes, de forma a estimular ocolecionamento (Figura 102; Figura 103).


O OLHAR INOCENTE É CEGO 168Figura 102. Cartão postal promocional Au BonMarch<strong>é</strong>, sem <strong>da</strong>ta. Disponível em:(28/06/08)Figura 103. Estampa promocional Au BonMarch<strong>é</strong>, c. 1878. GORBERG, Samuel.Figurinhas: Sucesso de Marketing. . Disponívelem:(21/07/2007).Uma interessante referência às lojas Au Bon March<strong>é</strong> <strong>é</strong> encontra<strong>da</strong> nanatureza-morta cubista de Pablo Picasso que compartilha seu nome com a loja(Figura 104). O rótulo <strong>da</strong> loja de departamentos ocupa o centro <strong>da</strong> obra, masencontra-se posicionado de forma ilusionística sugerindo uma caixa ou uma mesaem um plano perpendicular ao fundo <strong>da</strong> imagem. À esquer<strong>da</strong> há a forma de umagarrafa e à direita, um copo. Ao fundo, a figura de uma mulher <strong>é</strong> destaca<strong>da</strong> de umanúncio de jornal de outra cadeia de lojas, a Samaritane. 339 A pintura deixaevidente apenas partes do anúncio. Há na obra de Picasso uma referência direta aoconsumo com a bebi<strong>da</strong> e a mulher articulando-se neste contexto. A mulheraparece, de fato, com uma função dupla de consumidora de bens, mas tamb<strong>é</strong>m,envolvi<strong>da</strong> no mundo <strong>da</strong>s mercadorias, como objeto de consumo. 340 Estasconsiderações ampliam a noção de consumo, situando-o de maneira fun<strong>da</strong>mentaldentro de um modo de vi<strong>da</strong> construído pela modernização, onde os própriosconsumidores tamb<strong>é</strong>m podem ser consumidos.339 Esta análise <strong>da</strong> obra de Picasso foi sugeri<strong>da</strong> em HARRISON, Charles et alli. Primitivismo, Cubismo,Abstração. Começo do s<strong>é</strong>culo XX. São Paulo: Cosac & Naify E., 1998. p. 95-98.340 POGGI, Christine. Mallarm<strong>é</strong>, Picasso and the newspaper as commodity. P. 150 apud HARRISON,Charles et alli. Primitivismo, Cubismo, Abstração. Começo do s<strong>é</strong>culo XX. São Paulo: Cosac & Naify E.,1998. p. 97.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 169Figura 104. Pablo Picasso. Natureza-morta Au Bon March<strong>é</strong>,1913. Óleo e papel colorido sobre cartão. Coleção Ludwig,Aachen. O consumo entra em cena no momento em que se abre mão <strong>da</strong> permanênciaem favor do momento para o momento. Alexis de Tocqueville identificou o“consumo imediato dos produtos e igual<strong>da</strong>de, sem classes, dos consumidores”como característica do espírito <strong>da</strong> indústria norte-americana. 341 A obsolescênciaparecia afirmar-se atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> busca pela perfeição. Tocqueville ao perguntar a ummarinheiro norte-americano porque os navios de seu país se construíam de formaa não durarem muito, responde sem hesitar que “a arte <strong>da</strong> navegação faz progressodiários tão grandes, que o navio mais formoso viria a ser inútil dentro muitopouco tempo, se durasse mais que alguns anos”. 342A necessi<strong>da</strong>de do novo avança at<strong>é</strong> os nossos dias lado a lado com oconsumo. No s<strong>é</strong>culo XIX, o <strong>olhar</strong> iniciou um diálogo com o novo, respondendo aca<strong>da</strong> estímulo, buscando o resto de inocência em ca<strong>da</strong> mira<strong>da</strong>. O <strong>olhar</strong> e o novointeragem em respostas cíclicas ca<strong>da</strong> vez mais acelera<strong>da</strong>s, em uma disputa queparece longe do fim.3.2.5. O controle sobre os corposA multidão sintetiza a imagem do “turbilhão” advindo com amodernização, um dos agentes geradores <strong>da</strong> sensação de efemeri<strong>da</strong>de efragmentação que acompanha a moderni<strong>da</strong>de. Duas gravuras de periódicos341 PLUM, Werner. Exposições mundiais no s<strong>é</strong>culo XIX: espetáculos <strong>da</strong> transformação sócio-<strong>cultura</strong>l. Bonn :Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. p. 125.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 170londrinos do s<strong>é</strong>culo XIX expressam este estranhamento com algumas semelhanças- apesar do distanciamento de trinta anos entre elas. Ambas retratam trabalhadoresem manhãs de domingo. Na primeira, de 1856 (Figura 105), vemos umaglomerado de adultos e crianças em frente à porta fecha<strong>da</strong> de uma loja debebi<strong>da</strong>s. O ambiente <strong>é</strong> de na<strong>da</strong> fazer, de vagabun<strong>da</strong>gem. Um homem fumaencostado em um poste, outro boceja. Uma criança carrega outra menor. Seria umambiente de tranqüili<strong>da</strong>de embora paire no ar uma tensão sutil dissemina<strong>da</strong> peloaglomerado de trabalhadores. A segun<strong>da</strong> gravura publica<strong>da</strong> em 1886 (Figura 106)utiliza a ironia ao estilo <strong>da</strong> publicação Punch, para contrastar o título “Umdomingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso” à imagem <strong>da</strong> balbúrdia.To<strong>da</strong>s as pessoas estão agita<strong>da</strong>s. Uns carregam faixas ou cartazes como seestivessem em um piquete. Chove. Animais se misturam à turba e algunspassantes, mulheres com crianças, parecem assustados. Não sendo nossapretensão abor<strong>da</strong>r fun<strong>da</strong>mentalmente o aspecto socioeconômico sugerido por estasduas imagens, nos atemos à diferenciação do ambiente urbano nos dois exemplos.No primeiro, to<strong>da</strong>s as pessoas parecem se conhecer e não se percebem ameaças noambiente. No segundo a multidão <strong>é</strong> a ameaça. A algazarra faz a rua do segundoquadro parecer pequena para tantas pessoas e a multidão parece esconder diversas“cama<strong>da</strong>s” de figuras.Figura 105. Rua em manhã de domingo. Illustrated London News, 1856. (4/07/07)342 TOCQUEVILLE, Al<strong>é</strong>xis de. De la d<strong>é</strong>mocratie en Am<strong>é</strong>rique. apud PLUM, W. op. cit., p. 126.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 171Figura 106. “Um domingo tranqüilo em Londres; ou o Dia do Descanso”. Punch,1886. Extraído de SINGER, Ben. Moderni<strong>da</strong>de, hiperestímulo e o início dosensacionalismo popular... p. 120.A ameaça desprendi<strong>da</strong> do aglomerado urbano parece ter sempre estadorelaciona<strong>da</strong> à impossibili<strong>da</strong>de de controle e à entropia 343 . De Baudelaire,Benjamin destaca: “O que são os perigos <strong>da</strong> floresta e <strong>da</strong> pra<strong>da</strong>ria comparadoscom os choques e conflitos diários do mundo civilizado? Enlace sua vítima nobulevar ou traspasse sua presa em florestas desconheci<strong>da</strong>s, não continua sendo ohomem, aqui e lá, o mais perfeito de todos os pre<strong>da</strong>dores?”. 344 A sensação demedo no final do s<strong>é</strong>culo XIX, aparentemente, foi reforça<strong>da</strong> com o surgimento dospartidos trabalhistas, iniciado na d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1870, pelo Partido Social DemocráticoAlemão que relacionou o conceito marxista de massas ao proletariado industrial.Nestas condições, a classe alta passou a sentir-se ameaça<strong>da</strong> em sua hegemoniacom a id<strong>é</strong>ia de revolução. Mas, a concepção de uma multidão anônimaindiscrimina<strong>da</strong> e sem rosto impõe-se como uma ameaça que independe <strong>da</strong> classesocial. Novas configurações espaciais e o tráfego incessante de pessoas e veículosresultaram na incompetência do <strong>olhar</strong> para decifrar a avalanche de signos quesurgia.343 BRANTLINGER, Patrick. Mass Media and Culture in Fin-de-Siècle Europe. In Fin de Siècle and itsLegacy. Ed. TEICH, M. and PORTER, R. Cambridge Univ. Press, 1990. p. 98-124.344 Baudelaire apud BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Imp<strong>é</strong>rio. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. CharlesBaudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 37.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 172As mu<strong>da</strong>nças vivi<strong>da</strong>s com a ascensão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de industrial confundiramalgumas referências estabeleci<strong>da</strong>s anteriormente, relaciona<strong>da</strong>s à hierarquia social.É neste contexto que alguns signos característicos de ativi<strong>da</strong>de profissional secolocaram como possível demarcador de identificação dos indivíduos dentro <strong>da</strong>multidão. De fato, referências a utensílios e vestimentas já são encontra<strong>da</strong>s narepresentação de profissões no final do s<strong>é</strong>culo XVII. É este o caso do l<strong>é</strong>xicoindumentário retratado nos Costumes grotesques de Larmessin (Figura 107,Figura 108 e Figura 109). O desenhista criou, para ca<strong>da</strong> profissão, um uniformecomposto por elementos extraídos oniricamente dos instrumentos utilizados naprática de ca<strong>da</strong> ofício em uma harmonização que, como observa Roland Barthes,se aproxima <strong>da</strong>s pinturas de Arcimboldo. “Trata-se de um pansimbolismodesbragado. [...] Nessa fantasia, o vestuário acaba por absorver completamente ohomem; o trabalhador <strong>é</strong> anatomicamente assimilado a seus instrumentos”, comose fosse um “robô avant la lettre”. 345Figura 107. Vestimenta dejardineiro. Larmessin, c. 1695.Les Costumes Grotesques:Habits des m<strong>é</strong>tiers etProfessions.Figura 108. Vestimenta demúsico. Larmessin, c. 1695.Les Costumes Grotesques:Habits des m<strong>é</strong>tiers etProfessions.Figura 109. Vestimenta deconfeiteira. Larmessin, c. 1695.Les Costumes Grotesques:Habits des m<strong>é</strong>tiers etProfessions.A representação fantasiosa encontra<strong>da</strong> em Larmessin dá lugar, na primeirametade do s<strong>é</strong>culo XIX, a uma classificação dos tipos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, exposta emcartões, estampas e jogos, normalmente, restrita às profissões pr<strong>é</strong>-industriais. Amaior parte destas gravuras (Figura 110; Figura 111; Figura 112), como aspublica<strong>da</strong>s em 1820 com o título “O traje <strong>da</strong>s classes mais baixas <strong>da</strong> metrópole”,345 BARTHES, Roland. Linguagem e vestuário. In: In<strong>é</strong>ditos, vol 3: imagem e mo<strong>da</strong>. São Paulo: MartinsFontes, 2005. p. 284-5.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 173busca traduzir as ativi<strong>da</strong>des dos pequenos comerciantes, ambulantes ouprestadores de serviço, e não propriamente, o figurino dos ci<strong>da</strong>dãos. Nas imagensaqui reproduzi<strong>da</strong>s vemos a vendedora de fósforos com seu traje esfarrapado, oartista ambulante e o “paneleiro” que an<strong>da</strong>va pela ci<strong>da</strong>de para remen<strong>da</strong>r potes epanelas. Estas profissões, comuns na primeira metade do s<strong>é</strong>culo XIX, sãorepresenta<strong>da</strong>s com clareza e simplici<strong>da</strong>de, obtendo a evidência <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de apartir dos objetos utilizados na prática – os fósforos e uma cesta, um pequenocenário que o artista leva nas costas, o martelo e duas panelas. Mas, como seriaretratar as profissões relaciona<strong>da</strong>s à indústria alguns anos depois, quando osobjetos utilizados nem sempre pertencem àquele que os emprega? Neste novocontexto, as ferramentas permanecem no espaço de trabalho e já não servem para“identificar” os seus usuários.Figura 110. Vendedora defósforos. BURBY, ThomasLord, gravador. Costume of thelower orders of the metropolis.London: T. L. B., 1820. ID:1168475 NYPL Gallery. (25/11/07)Figura 111. Show de rua.Artista ambulante. BURBY,Thomas Lord, gravador.Costume of the lower orders ofthe metropolis. London: T. L.B., 1820. ID: 1168477. NYPLGallery. (25/11/07)Figura 112. Paneleiro.BURBY, Thomas Lord,gravador. Costume of the lowerorders of the metropolis.London: T. L. B., 1820. ID:1168476. NYPL Gallery. (25/11/07)Neste sentido, devemos observar uma página de um livreto ilustrado <strong>da</strong>segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX que relaciona as profissões às letras do alfabeto(Figura 113). Na mesma página aparecem profissões tão diversas quanto oleiteiro, o gravador e o engenheiro projetista, em sua prancheta, “projetando amáquina a vapor”. Se a modernização fazia nascer novas profissões maisrelaciona<strong>da</strong>s à tecnologia, a vi<strong>da</strong> tradicional <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de persistia frente aos avançosurbanos na manutenção <strong>da</strong>s antigas profissões pr<strong>é</strong>-industriais, como o alfaiate, ofarmacêutico, a costureira, o sapateiro, dentre outros representados no jogo de1860 (Figura 114). Nestes exemplos, as pessoas não se encontram simplesmente


O OLHAR INOCENTE É CEGO 174retrata<strong>da</strong>s, mas se mostram no exercício <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong>de – o engenheiroprojetando, o gravurista gravando e assim por diante. Eles não estão na rua comoo artista ambulante, mas à exceção do leiteiro, dentro de sua oficina ou loja.Figura 113. Alfabeto de profissões do primo Favo de Mel (CousinHoneycomb’s). Publicado por Dean & Son, Londres, c. 1856. TheJohn Johnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library.University of Oxford. (21/07/07)


O OLHAR INOCENTE É CEGO 175Figura 114. Nossa aldeia, um jogo de profissões. Jogo impresso emlitografia, produzido por Standring & Co., Londres, 1860. The JohnJohnson Collection of Printed Ephemera. Bodleian Library.University of Oxford. (21/07/07)Estas imagens nos permitem constatar que, na medi<strong>da</strong> em que as profissõescomeçam a se mostrar apenas no exercício <strong>da</strong> própria ativi<strong>da</strong>de, os profissionaistornam-se indiferenciados nas ruas. É neste contexto que a dificul<strong>da</strong>de dedeterminação <strong>visual</strong> do sujeito urbano começa a se configurar em ameaça. WalterBenjamin destaca um trecho de um relatório policial parisiense do ano de 1798:“É quase impossível manter boa conduta numa população densamentemassifica<strong>da</strong>, onde ca<strong>da</strong> um <strong>é</strong>, por assim dizer, desconhecido de todos os demais, e


O OLHAR INOCENTE É CEGO 176não precisa enrubescer diante de ningu<strong>é</strong>m”. 346 Como destaca Benjamin, por outrolado, a massa atua protegendo o anti-social contra seus perseguidores, escondendoquem deseja esconder-se. 347Para Ben Singer, apesar de ter-se passado um s<strong>é</strong>culo, a população ain<strong>da</strong> nãose encontrava plenamente a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> à moderni<strong>da</strong>de urbana e a metrópole “ain<strong>da</strong>era percebi<strong>da</strong> como opressiva, estranha e traumática”. 348 A assimilação docomportamento urbano não se realizou de forma natural e alguns gênerosliterários se propuseram a abrir este caminho. Em meados do s<strong>é</strong>culo XIX,surgiram as “fisiologias” que compunham um gênero literário específico, emformato de bolso, onde os tipos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> parisiense apareciam retratados. Estesfascículos descreviam de forma simplista “desde o vendedor ambulante dobulevar, at<strong>é</strong> o elegante no foyer <strong>da</strong> ópera” 349 , tipos urbanos que eram apresentadoscomo seres amistosos, cônscios do seu papel na socie<strong>da</strong>de. O texto sobre otrabalhador <strong>da</strong> indústria, por exemplo, imputa-lhe uma alegria ao trabalho,dificilmente observável, mas que – nas palavras de Benjamin – teria feito oempresário que lesse essa descrição ir descansar mais tranqüilo do quehabitualmente: “A fumaça <strong>da</strong>s altas chamin<strong>é</strong>s <strong>da</strong> fábrica, os golpes retumbantes <strong>da</strong>bigorna o fazem vibrar de alegria. Lembra os dias felizes de trabalho guiado pelogênio do inventor”. 350 As fisiologias asseguravam que “qualquer um, mesmoaquele não influenciado pelo conhecimento do assunto, seria capaz de adivinharprofissão, caráter, origem e modo de vi<strong>da</strong> dos transeuntes”. 351 O interesse porestas descrições encontrava lugar nas novas circunstâncias, características <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de moderna, repletas de situações ameaçadoras nunca antes experimenta<strong>da</strong>s, enas fantasias e desejos de seus habitantes por decifrá-las. As fisiologias estãodiretamente relaciona<strong>da</strong>s a um mundo de informações visuais não classifica<strong>da</strong>s e àpossibili<strong>da</strong>de de compreendê-las e organizá-las. As fisiologias tranqüilizadoraslogo entraram em decadência, mas o avanço científico que acompanhava oprocesso de modernização pôde acenar com algumas possibili<strong>da</strong>des de controlesobre os componentes <strong>da</strong> massa urbana.346 SCHMIDT, Adolphe. Tableaux de la r<strong>é</strong>volution française. Leipzing, 1870. p. 337. apud BENJAMIN,Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charle Baudelaire... p. 38.347 BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charle Baudelaire... p. 38.348 SINGER, B. op. cit., p 133.349 BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire... p. 34.350 In: Fisiologia <strong>da</strong> Indústria Francesa, de Foucauld, apud BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s III.Charle Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 37.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 177É neste contexto que as descrições fisiognomônicas, desenvolvi<strong>da</strong>s sobre ateoria de Cesare Lombroso, foram populares at<strong>é</strong> o início do s<strong>é</strong>culo XX. Afisiognomonia <strong>é</strong> basea<strong>da</strong> no determinismo biológico e considera possível conhecero caráter <strong>da</strong>s pessoas pelos traços fisionômicos do seu rosto. Desta forma,pretende destacar os tipos potencialmente criminosos, a partir <strong>da</strong> identificação ereconhecimento de determinados traços hereditários. Em outras palavras,considerava que o que era observado no corpo de uma pessoa exercia algum tipode influência sobre suas atitudes. Com a análise dos traços de diversos indivíduospretendeu-se construir um l<strong>é</strong>xico para a determinação de inclinações depersonali<strong>da</strong>de. A partir destes estudos, Lombroso se destacou como um pioneiro<strong>da</strong> criminologia científica, fun<strong>da</strong>mentando o movimento <strong>da</strong> eugenia que iriaeclodir no início do s<strong>é</strong>culo XX.No mesmo contexto <strong>da</strong> fisiognomonia pode ser lista<strong>da</strong> a pseudociência <strong>da</strong>frenologia que se propunha estu<strong>da</strong>r o caráter e as funções intelectuais humanas apartir <strong>da</strong> conformação do crânio. O anúncio do sabão Hudson (Figura 115; Figura116) utiliza uma ilustração do mapeamento <strong>da</strong> cabeça na publici<strong>da</strong>de do produto,em uma evidência <strong>da</strong> interpenetração entre ciência popular e consumo. Nailustração, para ca<strong>da</strong> região do c<strong>é</strong>rebro responsável por alguma capaci<strong>da</strong>de(refinamento, realização, rapidez), há uma descrição <strong>da</strong>s características do sabão.Para Allan Sekula, a frenologia pode ser vista como um precursor bastante rude<strong>da</strong>s tentativas <strong>da</strong> moderna neurologia de mapear as funções cerebrais. 352 Ambas –fisiognomonia e frenologia - corroboraram na fun<strong>da</strong>mentação de um conceito deprogresso como um m<strong>é</strong>todo que permitia o rápido acesso ao caráter de pessoasdesconheci<strong>da</strong>s no congestionado e perigoso espaço urbano do s<strong>é</strong>culo XIX. Apenetração destes estudos levava os anunciantes de emprego a requisitaremanálises frenológicas dos seus candi<strong>da</strong>tos 353 , antecipando, nos Estados Unidos <strong>da</strong>d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1840, testes que hoje são realizados na área de seleção e recrutamento.351 Ibid., p. 36.352 SEKULA, Allan. The Body and the Archive. In: BOLTON, Richard (ed). The Contest of Meaning CriticalHistories of Photography, MIT Press, Cambridge Mass., 1992. p. 347.353 Ibid., p. 348.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 178Figura 115. Frente do folheto publicitário doextrato de sabão Hudson, 1890. (14/12/07)Figura 116. Verso do folheto publicitário doextrato de sabão Hudson, 1890. (14/12/07)Frenologia e fisiognomonia empregavam a fotografia na <strong>construção</strong> de umcódigo <strong>visual</strong> que buscava decifrar o corpo do criminoso – um aparato de caça à“ver<strong>da</strong>de”, que compunha um sistema burocrático com a organização em arquivo.A imagem deveria ser reduzi<strong>da</strong> a sua instância representativa, transformando ocircunstancial e o idiossincrático no típico e no emblemático, na sua “essênciageom<strong>é</strong>trica”. 354 A imagem do corpo era organiza<strong>da</strong> para funcionar como umalinguagem. O objetivo científico era identificar o “tipo criminoso” e destacá-lo <strong>da</strong>multidão que o encobria. Com estes fun<strong>da</strong>mentos, os “t<strong>é</strong>cnicos do crime” teriamferramentas para localizar o indivíduo criminoso. É neste ponto que se coloca umadivisão de trabalho e uma distinção terminológica entre “criminologia” e“criminalística”. A criminologia busca o corpo criminoso enquanto acriminalística caça “este” ou “aquele” corpo criminoso. No aspecto <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>dehá uma importante diferenciação neste quadro. Na busca pelo corpo do criminosoque atende a padrões de comportamento estabelecidos de acordo com suascaracterísticas físicas, há uma informação <strong>visual</strong> que foi anteriormenteconvenciona<strong>da</strong> e disponibiliza<strong>da</strong>. Neste contexto, frenologia e fisiognomonia354 SEKULA, A. op. cit., p. 352.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 179buscavam abarcar to<strong>da</strong> a diversi<strong>da</strong>de humana, servindo como instrumento dearquivo para o controle social. Na localização de um criminoso específico não háuma convenção particular a ser segui<strong>da</strong>, mas as próprias marcas corporais dosuspeito servirão para comprovação de sua identi<strong>da</strong>de. O corpo do criminoso nãotem, por si próprio, na<strong>da</strong> a expressar. Marcas, cicatrizes e deformações <strong>da</strong> pelenão demonstram apenas inclinação para o crime, mas a história de um corpo, suasvivências, sofrimentos e escolhas. Um indivíduo existe como indivíduo a partir domomento em que <strong>é</strong> identificado. 355 Esta identi<strong>da</strong>de <strong>é</strong> diretamente <strong>visual</strong> e nãocarrega nenhum significado intrínseco. Seu significado só pode ser construídodentro de um contexto mais amplo que localiza as marcas deste sujeito específicoa referências anteriores.É nesta conjuntura que se coloca a diferença entre o sistema desenvolvidopor Alphonse Bertillon dos m<strong>é</strong>todos utilizados na frenologia e na fisiognomonia.Bertillon, que era estatístico <strong>da</strong> polícia francesa, desenvolveu em 1879, umm<strong>é</strong>todo de identificação e recuperação de imagens, estruturado sobre arepresentação <strong>visual</strong> predominantemente fotográfica e o sistema de arquivo. Suat<strong>é</strong>cnica combinava a obtenção de medi<strong>da</strong>s detalha<strong>da</strong>s (Figura 117 e Figura 118) ea classificação de detalhes únicos medidos ou fotografados (Figura 119 e Figura120) com um par de fotografias - frontal e perfil - do suspeito, retira<strong>da</strong>s de acordocom determina<strong>da</strong>s especificações de lentes e distância. As informações eramorganiza<strong>da</strong>s em cartões padronizados e arquiva<strong>da</strong>s. Na Figura 121 vê-se o cartãoantropom<strong>é</strong>trico, base do sistema, com a identificação do próprio Bertillon. Om<strong>é</strong>todo recebeu o nome de sinal<strong>é</strong>tica e era organizado a partir <strong>da</strong> redução departes do corpo humano a formas mínimas articula<strong>da</strong>s, de modo a compor umsigno humano. Seu funcionamento requeria que o corpo fosse dividido em partesespecíficas que pudessem ser compara<strong>da</strong>s como, por exemplo, orelhas (Figura119) ou olhos. Com o sistema de Bertillon, o corpo passa a ser analisado segundooutros aspectos. Ele <strong>é</strong> dividido em partes, atomizado e transformado em umartefato demonstrável o que, de certa forma, nos remete ao “sistema americano”desenvolvido neste mesmo período. 356 Com a sinal<strong>é</strong>tica o corpo <strong>é</strong> preparado paraser observado e para entregar-se ao <strong>olhar</strong> regulador <strong>da</strong> lei e a uma vi<strong>da</strong> moderna,355 SEKULA, Allan. Op. cit., p. 362.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 180fortemente influencia<strong>da</strong> pela <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de, que precisava de novas regras econvenções.Figura 117. Medi<strong>da</strong> do cúbito. Foto doálbum de Alphonse Bertillon, de suaparticipação na World's ColumbianExposition em 1883, Chicago. NationalLibrary of Medicine (NLM). Disponível em: (23/09/07)Figura 118. Instruções do sistema de sinal<strong>é</strong>tica,desenvolvido por Alphonse Bertillon, incluindoteoria e prática <strong>da</strong> identificação antropom<strong>é</strong>trica.National Library of Medicine. Disponívelem: (23/09/07)356 O “sistema americano” de fabricação, apresentado na Exposição Universal de Londres em 1851, foidesenvolvido na indústria de armamentos americana e consistia na produção em larga escala de produtospadronizados, com partes intercambiáveis.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 181Figura 119. Quadro fotográfico comtipos de orelha. SignaleticInstructions Including the Theoryand Practice of AnthropometricIdentification de Bertillon. Retiradode GUNNINGS, op. cit., p. 62.Figura 120. Quadro de característica físicas de Bertillon.Mus<strong>é</strong>e des Collections Historiques de la Pr<strong>é</strong>fecture dePolice. National Library of Medicine. . Disponível em: (23/09/07)Na sinal<strong>é</strong>tica, a fotografia <strong>é</strong> emprega<strong>da</strong> de forma a traçar uma referênciadireta com o corpo do criminoso. Isso não chegava a constituir uma novi<strong>da</strong>de,mas, at<strong>é</strong> então, havia sempre implicado em violência. A supressão <strong>da</strong>identificação do criminoso atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> marca aplica<strong>da</strong> com ferro em brasa pelasautori<strong>da</strong>des legais havia sido aboli<strong>da</strong> na França em 1832 e na Inglaterra em 1824,embora alguns suplícios já viessem sendo evitados publicamente a partir <strong>da</strong>d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1820. 357 De certa forma, após este período, o conceito de uma relaçãoindicial entre culpa e acusado passou a ser repetido na fotografia. Foucaultdescreve a transformação <strong>da</strong> pena em um processo mais velado, a partir do fim <strong>da</strong>punição como espetáculo público, em um período anterior, entre o fim do s<strong>é</strong>culoXVIII e o início do XIX. 358Embora a utilização <strong>da</strong> fotografia tenha estado intimamente liga<strong>da</strong> àcriminalística desde muito cedo 359 , esta associação não se estabeleceu comfacili<strong>da</strong>de e os estudos <strong>da</strong> fotografia documental não costumam levar em conta357 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. pp. 14.358 Ibid., pp. 16-17.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 182seu emprego pela polícia. Esta dificul<strong>da</strong>de teve origem nas próprias característicasdos primeiros momentos <strong>da</strong> fotografia. As baixas veloci<strong>da</strong>des de exposiçãorequeriam que o fotografado permanecesse imóvel pelo tempo necessário para agravação de sua imagem. Alguns acusados procuravam aproveitar estaespecifici<strong>da</strong>de para distorcer o próprio rosto de forma a garantir seu anonimato(Figura 122). Embora este problema, algumas vezes considerado com um arcaricatural, não tenha se prolongado por muito tempo, chama a atenção para aimpossibili<strong>da</strong>de do corpo rejeitar sua entrega à captura <strong>da</strong> lente. Outro fator dedificul<strong>da</strong>de para o emprego <strong>da</strong> fotografia como agente regulador pode serapontado no seu próprio sucesso e no desejo moderno de fazê-la arte. A fotografiapassou a atuar diretamente no processo administrativo de controle. Para acriminalística foi uma invenção tão importante quanto à imprensa para aliteratura 360 . Vestígios duradouros e inequívocos dos seres humanos puderam a serregistrados em uma tentativa de demolir a incognoscibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> multidão nasci<strong>da</strong>des, onde “ningu<strong>é</strong>m <strong>é</strong> para o outro nem totalmente nítido nem totalmenteopaco”. 361Figura 121. Cartão antropom<strong>é</strong>trico de AlphonseBertillon, 1892. University College London.http://www.eugenicsarchive.org/html/eugenics/static/images/2005.html(23/09/07)Figura 122. Ampliação de umfotograma do filme de 1904 <strong>da</strong>Biograph, A Subject for the Rogue’sGallery, filmado pelo cinegrafista A.E. Weed. Retirado de GUNNINGS,op. cit., p.55.359 A fotografia foi inventa<strong>da</strong> em 1839.360 BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Imp<strong>é</strong>rio. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charles Baudelaire. Um lírico noauge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 45.361 BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Imp<strong>é</strong>rio... p. 46.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 183As primeiras evidências do emprego <strong>da</strong> fotografia na investigação policialaparecem em 1843. 362 Em meados do s<strong>é</strong>culo XIX, as delegacias de polícia jámantinham rogue’s gallerie, coleções desorganiza<strong>da</strong>s de fotografias de suspeitos econfessos, que eram muitas vezes exibi<strong>da</strong>s ao público com grande sucesso. Mas, ogrande volume de fotografias mostrava-se inútil na medi<strong>da</strong> em que o seumanuseio não seguia nenhum m<strong>é</strong>todo ordenado. É neste quadro que o arquivocomplementa o m<strong>é</strong>todo, impondo-se como fator de controle <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de.O sistema de imagem e arquivo criado por Bertillon foi empregado ao longodo s<strong>é</strong>culo XIX, inclusive na logística <strong>da</strong>s diversas Exposições Universais como naWorld’s Columbian Exposition, realiza<strong>da</strong> na Chicago de 1893. Neste evento <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de, calça<strong>da</strong>s rolantes conduziam os visitantes a partir <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> e umpequeno trem el<strong>é</strong>trico fazia a circulação do público por to<strong>da</strong> a feira. Os espaços<strong>da</strong> feira eram completamente higienizados ao final de ca<strong>da</strong> dia e amplamentepoliciados numa tentativa de deixar evidente apenas os melhores legados <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>moderna. A preocupação com a proteção dos visitantes aparece em um artigopublicado na North American Review por R. W. M’Claughry, superintendentegeral <strong>da</strong> polícia de Chicago e John Bonfield, chefe do serviço secreto <strong>da</strong> World’sColumbian Exposition. No texto, o superintendente comenta que as experiênciaspassa<strong>da</strong>s demonstram que eventos como as exposições universais atraem “classesperigosas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de”. 363 Apesar disso, consegue ser tranqüilizador quandoafirma que as “classes criminosas” estão sendo observa<strong>da</strong>s atentamente 364 atrav<strong>é</strong>s<strong>da</strong> utilização de determinados m<strong>é</strong>todos. Parece claro que as “classes perigosas”eram constituí<strong>da</strong>s por proletários desempregados, potencialmente consideradosvagabundos e criadores de problemas. Uma <strong>da</strong>s ferramentas utiliza<strong>da</strong>s pela políciae pelo serviço secreto, com o objetivo de prevenir a ação dos fora-<strong>da</strong>-lei, foi oemprego do “sistema de identificação antropom<strong>é</strong>trica e classificação decriminosos” desenvolvido por “M. Alphonse Bertillon, de Paris”. 365 Ain<strong>da</strong>segundo o texto, em Chicago, este sistema começou a ser aplicadoaproxima<strong>da</strong>mente três anos antes <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> exposição. Diversas fotografias362 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. InCHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. São Paulo: Cosac& Naify, 2001. p 51-52.363 M’CLAUGHRY, R. W. Police Protection at the World's Fair. The North American review. Vol. 156, Issue439. p. 714. http://cdl.library.cornell.edu/cgi-bin/moa/moa-cgi?notisid=ABQ7578-0156-88364 Id., p. 711.365 Id., p. 712.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 184sugerem que o próprio Bertillon possa ter estado presente à exposição (Figura123, Figura 124). De qualquer forma, não há dúvi<strong>da</strong> que seu sistema tenha sidoapresentado como uma ênfase do progresso obtido graças à ciência e às novast<strong>é</strong>cnicas, no caso exemplificado pela fotografia e sua organização sistemática.Figura 123. Sistema de arquivo de Bertillon.Foto do álbum de Alphonse Bertillon, de suaparticipação na World's ColumbianExposition em 1883, Chicago. NationalLibrary of Medicine (NLM). . Disponível em: (23/09/07)Figura 124. Foto do álbum de Alphonse Bertillon,de sua participação na World's ColumbianExposition em 1883, Chicago. National Library ofMedicine (NLM). . Disponível em: (23/09/07)Apesar do grande sucesso obtido, o m<strong>é</strong>todo desenvolvido por Bertillon foiperdendo espaço para um outro sistema baseado na impressão digital. Durantealguns anos um modelo híbrido imperou, de modo que muitos documentos deidentificação ain<strong>da</strong> mantinham, na primeira metade do s<strong>é</strong>culo XX, o par deimagens fotográficas idealizado para a ficha de Bertillon, ao lado <strong>da</strong> impressãodigital.Na sinal<strong>é</strong>tica, a fotografia, inventa<strong>da</strong> há aproxima<strong>da</strong>mente quarenta anos,coloca-se como uma aplicação prática <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do emprego <strong>da</strong>reprodução mecânica com pouca intervenção humana e muita precisão. Umconceito adequado à utilização deseja<strong>da</strong> por Baudelaire que deplora a fotografiacomo arte, mas clama pelo cumprimento do seu ver<strong>da</strong>deiro dever: atender às artese às ciências, servindo, por exemplo, “de secretária e bloco de notas de quem querque necessite de uma absoluta exatidão material em sua profissão”. 366 A fotografiacomo ferramenta ideal para a identificação de foras-<strong>da</strong>-lei se estabelece em razãode três aspectos que, segundo Gunning, encontram-se entrelaçados: sua condição366 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora NovaAguilar, 1995. p. 803.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 185de índice que aponta para o resultado de uma exposição a uma enti<strong>da</strong>depreexistente, seu aspecto icônico que remete à semelhança direta com o objetopermitindo o reconhecimento imediato e, finalmente, sua natureza destacável quelhe permite referenciar-se a um objeto ausente, distante em tempo e espaço. 367Neste contexto, a fotografia compartilha uma esp<strong>é</strong>cie de poder. Algo queBenjamin, sem associar diretamente à fotografia, sugere ao comparar rastro eaura: “O rastro <strong>é</strong> a aparição de uma proximi<strong>da</strong>de, por mais longínquo esteja aquiloque o deixou. A aura <strong>é</strong> a aparição de algo longínquo, por mais próximo estejaaquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos <strong>da</strong> coisa; na aura, ela se apodera denós”. 368 A evidência revela<strong>da</strong> na fotografia assume, como um testemunhotecnológico, uma correspondência com a ver<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> em que “o aparelhonão pode mentir” 369 e traz consigo o rastro do corpo que <strong>é</strong> examinado. É nestecontexto que, na sinal<strong>é</strong>tica, a fotografia <strong>é</strong> emprega<strong>da</strong> visando à instrumentação dorealismo e a racionalização <strong>da</strong> visão sobre fun<strong>da</strong>mentos científicos. A fotografiapolicial permitiu o reconhecimento do referente do mesmo modo que, comovimos anteriormente, a perspectiva e a gravura impressa haviam atuado,ampliando as possibili<strong>da</strong>des de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> padronização e <strong>da</strong>estruturação <strong>da</strong>s convenções visuais.A análise <strong>da</strong>s configurações visuais do s<strong>é</strong>culo XIX a partir do emprego denovas tecnologias e de uma nova configuração urbana aponta para uma aparentecontradição. De um lado, possibilitando um novo modo de <strong>olhar</strong>, a rec<strong>é</strong>m cria<strong>da</strong>configuração urbana que abre novos espaços, modifica o ambiente e as relaçõessociais al<strong>é</strong>m <strong>da</strong>s novas tecnologias que interferem na compreensão do tempo e doespaço. O <strong>olhar</strong> se torna panorâmico e lhe <strong>é</strong> arbitrado o poder de absorver milcoisas. No entanto, esta abertura que o <strong>olhar</strong> obt<strong>é</strong>m a partir <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de,tamb<strong>é</strong>m clama por limites que o organize. Surge, em paralelo uma tendência àpadronização e à criação de convenções que tente estruturar, organizar e controlaro que já não tem controle. As influências do <strong>olhar</strong> são “naturaliza<strong>da</strong>s”, apadronização precisa ser realimenta<strong>da</strong> e o novo acena como alimento permanentepara este <strong>olhar</strong>.367 GUNNING, T. op. cit., p 45-46.368 BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Passagens... [M 16a 4], p. 490.369 GUNNING, T. op. cit., p 66.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 1863.3. Novas percepções no tempo e no espaçoA partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX pode-se observar uma crescentealteração dos conceitos de tempo e espaço em paralelo ao desenvolvimento denovas tecnologias de transporte e comunicação. A concepção temporal iluminista,recentemente formula<strong>da</strong>, começa a se desfazer 370 , tornando relativas as percepçõesde tempo e de espaço. Uma nova compreensão <strong>da</strong>s distâncias passa a se constituir,inclusive em relação aos eventos ocorridos em outros lugares e países. O tempo <strong>é</strong>capturado, reorganizado e disponibilizado, produzindo transformações sobre osmodos de <strong>olhar</strong>.A compressão tempo-espaço, observa<strong>da</strong> a partir do s<strong>é</strong>culo XIX, passou aexercer influência sobre diversos campos <strong>da</strong> atuação humana como, por exemplo,o trabalho industrial. Em 1913, mas ain<strong>da</strong> no “espírito do s<strong>é</strong>culo XIX”, HenryFord instituiu uma outra forma de organização <strong>da</strong> produção – relacionando aaceleração do tempo à fragmentação <strong>da</strong>s tarefas - na sua linha de montagem.Neste contexto, as ferrovias colocam-se como signo paradigmático <strong>da</strong>modernização do período. Neste segmento do trabalho, iremos analisar como estanova tecnologia, apesar de não se tratar de um processo diretamente relacionado à<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de, atuou na <strong>construção</strong> de um novo <strong>olhar</strong> – que se encontra na raiz donosso contemporâneo modo de ver. Nossa intenção com esta passagem <strong>é</strong> acentuaro modo como as tecnologias modificadoras <strong>da</strong> relação tempo-espaço atuam sobrea <strong>construção</strong> do <strong>olhar</strong> moderno, ampliando e multiplicando suas possibili<strong>da</strong>des, aomesmo tempo em que fixam padrões e convenções que a delimitam e organizam.3.3.1. As ferroviasNenhuma tecnologia exerceu maior influência sobre as percepções de tempoe espaço do que a ferrovia, ao mesmo tempo produzindo mu<strong>da</strong>nças na forma de<strong>olhar</strong>. A expansão <strong>da</strong>s ferrovias pode ser considera<strong>da</strong> emblemática <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nçasperceptivas que definem a experiência <strong>cultura</strong>l <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e o trem, seu signopor excelência.370 HARVEY, D. op. cit., p. 238.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 187Apesar do trilho de madeira ser usado há s<strong>é</strong>culos em minas de carvão, foi atecnologia a vapor que possibilitou aos trens ultrapassarem a veloci<strong>da</strong>de doscavalos. Como afirmou Na<strong>da</strong>r, em transcrição de Walter Benjamin: “como sefosse de um mágico ou de um diretor de teatro, o primeiro apito <strong>da</strong> primeiralocomotiva deu o sinal de despertar, o sinal de decolagem para to<strong>da</strong>s as coisas”. 371As conseqüências imediatas <strong>da</strong> nova tecnologia foram rapi<strong>da</strong>mente observa<strong>da</strong>s nafacilitação do transporte de bens e pessoas. Se, de um lado, as ferroviasfavoreceram o surgimento de grandes indústrias e o aumento <strong>da</strong> produção demat<strong>é</strong>rias-primas e mercadorias acaba<strong>da</strong>s, de outro, tamb<strong>é</strong>m ampliou a circulaçãode pessoas e id<strong>é</strong>ias, participando <strong>da</strong> criação de um novo estilo de vi<strong>da</strong> baseado nacompressão tempo-espaço que alicerçou a moderni<strong>da</strong>de. Em 1780 uma diligênciagastava de quatro a cinco dias para cobrir a distância entre Londres e Manchesterenquanto, um s<strong>é</strong>culo depois, um trem cobria o mesmo trecho em quatro ou cincohoras 372 .Textos <strong>da</strong> primeira metade do s<strong>é</strong>culo XIX expressavam as alteraçõestemporais em termos de encolhimento do espaço 373 , relativizando os conceitos deci<strong>da</strong>de e país. Em 1850, Lardner escrevia que “as distâncias praticamentediminuem na exata proporção <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de de locomoção”. 374 Em um artigo noQuartely Review de 1839, um autor contemporâneo considera que as nações quepareciam situar-se aparta<strong>da</strong>s no espaço de maneira inalterável, iam aos poucossendo aproxima<strong>da</strong>s pela redução gradual do espaço e <strong>da</strong> distância que as haviaseparado. Na medi<strong>da</strong> em que as distâncias iam sendo aniquila<strong>da</strong>s, a superfície dopaís encolhia, tornando-se não maior do que uma imensa ci<strong>da</strong>de. 375 De fato, comoconsidera Wolfgang Schivelbusch, a sensação de diminuição <strong>da</strong>s distânciasproduzi<strong>da</strong> pelos meios de transporte parece ter criado uma nova geografia que,para al<strong>é</strong>m de uma simples contração do espaço, sugere um processo dual onde oespaço <strong>é</strong> ao mesmo tempo reduzido e expandido. Esta dial<strong>é</strong>tica <strong>é</strong> observa<strong>da</strong>, deum lado, pela relação entre a diminuição do espaço atrav<strong>é</strong>s do encolhimento dotempo de deslocamento e, de outro, pela expansão do espaço atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>incorporação de novas áreas territoriais à rede de transportes. Deste modo, a nação371 Na<strong>da</strong>r, Quand J’<strong>é</strong>tais Photographe, Paris, p. 281, apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 129. [C 3a,4].372 LOWE, Donald. History of bourgeois perception. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. p. 38.373 SCHIVELBUSCH, Wolfgang. The Railway Journey: the Industrialization of Time and Space in theNineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 34.374 LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 188que se contrai em uma imensa ci<strong>da</strong>de, de acordo com a descrição do QuartelyReview, tamb<strong>é</strong>m pode ser compreendi<strong>da</strong> como uma ci<strong>da</strong>de em expansão.A incorporação dos subúrbios e do campo tamb<strong>é</strong>m aparece comoconseqüência <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong>s ferrovias. Em 1851, Lardner observa o fenômeno<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça dos citadinos para áreas distantes do centro sem que isso altere acontinui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas ativi<strong>da</strong>des produtivas. 376A possibili<strong>da</strong>de de alcançar veloci<strong>da</strong>des maiores e a conseqüente redução<strong>da</strong>s distancias a frações do tempo anteriormente necessário para cobrir o mesmotrecho produziu novas avaliações para conceitos como “perto” e “longe”,incluindo a discussão sobre a compressão tempo-espaço. Para C. H. Greenhow,autor inglês do s<strong>é</strong>culo XIX, as viagens de trem produziram praticamente a“aniquilação do espaço e do tempo” atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> facili<strong>da</strong>de com que passaram apermitir a circulação. 377 “Podemos agora passar de um extremo a outro <strong>da</strong> nossailha, em menos tempo do que os nossos avôs levavam para preparar acaminha<strong>da</strong>”. 378 Embora o ponto de vista de Greenhow possa parecer restrito, namedi<strong>da</strong> em que se encontra apoiado na questão do deslocamento, a suaconceituação antecipa debates posteriores que chegam at<strong>é</strong> os dias atuais. Nestecontexto, a discussão sobre a compressão tempo-espaço ultrapassa os efeitos <strong>da</strong>sferrovias para englobar as considerações sobre as novas tecnologias decomunicação nas transformações de um mundo pós-moderno. Se o tel<strong>é</strong>grafo e otelefone já foram responsabilizados pelas alterações <strong>da</strong> dinâmica tempo-espaço,hoje a internet <strong>é</strong> o grande centro de debates que vão sendo ampliados com ainclusão de conceitos como fragmentação, redes e desmaterialização.Stuart Hall, ao pensar o impacto <strong>da</strong> “última fase <strong>da</strong> globalização” sobre asidenti<strong>da</strong>des nacionais, aponta a “compressão espaço-tempo” como uma de suasprincipais características. Há o reconhecimento de “que o mundo <strong>é</strong> menor e asdistâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impactoimediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância”. 379 Esseprocesso de “aproximação” e aceleração parece – à vista do nosso <strong>olhar</strong>contemporâneo – ter atingido o seu extremo na <strong>é</strong>poca atual. Os conceitos375 Quarterly Review, vol. 63, 1839. p. 22., apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 33.376 LARDNER, D. Railway Economy. London, 1850 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 36.377 GREENHOW, C. H. An exposition of the <strong>da</strong>nger and deficiences of the present mode of railwayconstruction with suggestion of its improvement. London: George Woodfall and son, 1846. p. 2.378 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 189apontados por Hall mostram-se pertinentes à experiência do homem urbano dos<strong>é</strong>culo XIX, o que nos permite imaginar este processo de aceleração como umaespiral, sobre a qual o homem vem sendo movido aos solavancos. Neste contexto,cabe antecipar uma curta reflexão sobre os efeitos <strong>da</strong> “aniquilação do espaço e dotempo” na <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna. Na medi<strong>da</strong> em quecompreendemos o <strong>olhar</strong> como uma atitude perceptiva atuante em conjunturaespecífica de tempo e espaço, que efeitos podem ser observados com amodificação deste contexto?Criamos uma metáfora <strong>visual</strong> para explicar como compreendemos os efeitos<strong>da</strong> modernização do tempo e do espaço sobre a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. Imaginamos umambiente, uma sala, por exemplo, com paredes móveis. Neste ambiente, foramdispostas algumas figuras. Para travar contato com estas imagens, o observadordisporia de um tempo determinado, ao fim do qual uma campainha soaria. Emcerto ponto do nosso experimento, passamos a deslocar as paredes, aproximandoas,de forma a reduzir o espaço interno <strong>da</strong> exposição. Ao mesmo tempo, ointervalo disponível para a observação foi sendo diminuído de alguns segundos,enquanto o número de imagens permaneceu constante. Em um primeiro momento,a nossa tendência seria acreditar, na medi<strong>da</strong> em que o tempo e o espaço fossemsendo restringidos, na ocorrência de uma diminuição <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de perceptiva.No entanto, devemos considerar que este processo não acontece de formarepentina e sim paulatina. Analogamente, as observações dos autorescontemporâneos às mu<strong>da</strong>nças provoca<strong>da</strong>s pelas ferrovias evidenciam um processoanterior à a<strong>da</strong>ptação a essas novas condições. Na medi<strong>da</strong> em que estas mu<strong>da</strong>nçasvão sendo incorpora<strong>da</strong>s como uma segun<strong>da</strong> natureza elas vão ser absorvi<strong>da</strong>sdentro <strong>da</strong> nova capaci<strong>da</strong>de perceptiva. No contexto criado pela metáfora acima,cremos que mais importante do que assinalar uma per<strong>da</strong> na percepção (em relaçãoà compressão do tempo e do espaço), <strong>é</strong> considerar a <strong>construção</strong> de um novoesquema perceptivo.379 HALL, Stuart. A identi<strong>da</strong>de <strong>cultura</strong>l na pós-moderni<strong>da</strong>de. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. p. 69.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 190Novas percepções no ambiente dos deslocamentosDiversos meios de transporte e comunicação tiveram influência nasmodificações ocorri<strong>da</strong>s no tempo e no espaço ao longo do s<strong>é</strong>culo XIX e napercepção do ambiente como, por exemplo, as viagens em balões, que permitiu àfotografia a<strong>é</strong>rea mu<strong>da</strong>r as percepções <strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> terra. 380 A bicicleta,redesenha<strong>da</strong> em 1886, quando passou a contar com ro<strong>da</strong>s de mesmo tamanho, eem 1890 quando ganhou pneus (pneumatic tires) favoreceu uma nova percepção apartir <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de obti<strong>da</strong>, quatro vezes maior do que ao se caminhar. Na gravurado periódico The Graphic vemos um policial perseguindo um ciclista em suaPenny Farthing (Figura 125), por an<strong>da</strong>r pelas ruas sem o emprego de um cinto [?]ou apito. Os passantes parecem mobilizados pelo deslocamento de um veículo quenão parece ser de simples utilização, como podemos observar no anúncio depneumáticos de borracha para bicicleta (Figura 126). Uma curiosi<strong>da</strong>deinteressante sobre este anúncio <strong>é</strong> que, nele, o texto encontra-se em um balão deestórias em quadrinhos. Ao companheiro que caía <strong>da</strong> bicicleta, o outro homemdisse: “Você deveria ter utilizado o processo Bown's ‘Perfect”.Figura 125. Policial perseguindo um ciclista, "PennyFarthing". The Graphic, 1880. The Illustrated London NewsPicture Library. (05/06/07)380 HARVEY, D. op. cit., p. 240.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 191Figura 126. Anúncio de Bown's "Perfect", processo perfeitopara fixação de pneumáticos de bicicletas. Sporting andDramatic News, 1887. The Illustrated London News PictureLibrary. (05/06/07)Em 1892, Sylvester Baxter observava que a bicicleta “acelerou asfacul<strong>da</strong>des perceptivas dos jovens, tornando-as mais alertas”. 381 Um tipo deobservação que, nos dias atuais, <strong>é</strong> dirigi<strong>da</strong> aos jovens que utilizam jogoseletrônicos.As questões relativas à percepção na metrópole não se limitavam ao fato deacostumar-se a dividir as ruas com veículos “velozes” ou perigosos. Napublicação científica Revue Scientifique, publica<strong>da</strong> em Paris no ano de 1896, umcerto Du Pasquier apresenta um artigo investigativo, na área de psicologia, sobreas razões <strong>da</strong> obtenção de prazer ao utilizar a bicicleta 382 . Para o autor a razão desteprazer encontra-se no movimento, na sensação de liber<strong>da</strong>de do seu gesto à custade um baixo custo de energia necessária para a obtenção <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. Citandotrabalhos anteriores, Du Pasquier rejeita a id<strong>é</strong>ia de que o prazer de an<strong>da</strong>r debicicleta possa estar relacionado à busca e alcance do equilíbrio necessário a essafunção.As observações dos contemporâneos em relação ao uso <strong>da</strong> bicicleta mostramque a preocupação com o novo não ser reduzia apenas às ferrovias, mas trata-se deum embate mais amplo entre o novo e o moderno. Os críticos dos novos meios detransporte gostavam de fazer crer que as tecnologias antigas e pr<strong>é</strong>-industriais381 BAXTER, Sylvester, Economic and Social Influences of the Bicycle, The Arena, Outubro de 1982, apudKERN, Stephen. The culture of time and space : 1880-1918. Cambridge: Harvard Univ., 1983. p. 111.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 192tinham mais “alma” do que as mais recentes que pareciam, muitas vezes,desenvolver vi<strong>da</strong> própria tal o modo com que produziam influência sobre apercepção humana.Em relação ao ambiente físico, as ferrovias transcendem a possibili<strong>da</strong>de deaproximação a novos lugares. Se, de um lado, elas incorporam novos espaços,antes inacessíveis pela distância e o tempo necessário para alcançá-los, de outro,elas suprimem os espaços entre os pontos de parti<strong>da</strong> e o de chega<strong>da</strong>. A viagemtorna-se uma travessia por um espaço intocado. A eliminação do espaço entre osdois pontos <strong>é</strong> observa<strong>da</strong> significativamente por John Ruskin. Em um texto de1849, Ruskin comenta que a ferrovia transforma o viajante em um “pacotevivo” 383 , na medi<strong>da</strong> em que <strong>é</strong> levado de um lugar ao outro sem que desempenhealguma participação neste processo. No pensamento de Ruskin, a viagem de tremdeixa de acrescentar experiência ao viajante. Sua crítica encontra algumasustentação na medi<strong>da</strong> em que a ferrovia pode ser coloca<strong>da</strong> em relação às viagensdo mesmo modo que a indústria está para os objetos manufaturados.John Ruskin considerava que, indiferente ao fato <strong>da</strong> viagem de trem ser feitaou não de olhos abertos, tudo o que se podia saber sobre o lugar por onde se passa<strong>é</strong>, “na melhor hipótese, sua estrutura geológica e uma visão geral sobre os modosde vestir”. 384 Ao contrário de que pensava Ruskin, muitos contemporâneosconsideravam que as viagens de trem produziam novas sensações mesmoavaliando uma eventual per<strong>da</strong> de controle sobre os próprios sentidos. Greenhow,por exemplo, escreveu em 1846 que “quando um corpo se move em altaveloci<strong>da</strong>de ele se torna um proj<strong>é</strong>til, sujeito às leis que coman<strong>da</strong>m os proj<strong>é</strong>teis”. 385Esta metáfora explicita o poder e a força <strong>da</strong> tecnologia ferroviária, mas, tamb<strong>é</strong>m, aausência de controle e <strong>da</strong> participação do passageiro, al<strong>é</strong>m de modificações no seurelacionamento com a paisagem. De acordo com Schivelbusch, o passageiro detrem perdeu a percepção sinest<strong>é</strong>sica, que incluía aromas e sons e passa a tercontato apenas com as quali<strong>da</strong>des que para Newton eram as que poderiam ser382 DU PASQUIER, Ch. Le Plaisir d’aller à bicyclette, Revue Scientifique, ser. 4, vol. 6., Paris, 1896, p. 144-145. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k215125w, acesso em 5/6/2007 às 16:10 hs.383 RUSKIN, John. The seven lamps of architecture. London: A<strong>da</strong>mant Media Corporation, 2005. p. 210.384 RUSKIN, John. The works of John Ruskin. Vol 36. Longmans, Green, and co., 1909. p. 62.385 GREENHOW, C. H. An exposition of the <strong>da</strong>nger and deficiences of the present mode of railwayconstruction with suggestion of its improvement. London: George Woodfall and son, 1846. p. 6.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 193percebi<strong>da</strong>s objetivamente no mundo físico: tamanho, forma, quanti<strong>da</strong>de emovimento. 386No pensamento pr<strong>é</strong>-industrial de John Ruskin, isto <strong>é</strong>, dentro de uma <strong>cultura</strong>pr<strong>é</strong>-moderna, encontramos o que Schivelbusch 387 considera próximo à umacorrelação matemática negativa entre o número de objetos percebidos emdeterminado período de tempo e a quali<strong>da</strong>de desta percepção. De certa formaseguindo o tema do <strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong>, Ruskin escreve sobre a superiori<strong>da</strong>de do <strong>olhar</strong><strong>da</strong> criança diante do frescor <strong>da</strong>s coisas frente aos seus olhos rec<strong>é</strong>m abertos. 388Entre os conselhos práticos <strong>da</strong>dos por Ruskin encontra-se a sugestão de contentarsecom o menor número de novi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> vez e preservar, tanto quantopossível, as fontes de novi<strong>da</strong>de. 389 Em relação ao “menor número possível denovi<strong>da</strong>des”, Ruskin observa que em um passeio no campo, atentar para umacabana que nunca tínhamos visto antes, seria o suficiente para recuperar o frescordo novo. Observar duas cabanas já seria excessivo. Em linguagem atual, dir-se-iatratar-se de “muita informação”. Ruskin conclui que uma caminha<strong>da</strong> tranqüila denão mais do que 10 ou 12 milhas 390 por dia seria o bastante para uma viagemrecreativa. “To<strong>da</strong> viagem torna-se enfadonha na exata proporção de suaveloci<strong>da</strong>de”. 391 Deste modo, para Ruskin os deslocamentos de trem não poderiamser chamados de viagens.As críticas de Ruskin pertencem a um momento de ambivalência, onde aspossibili<strong>da</strong>des de uma nova tecnologia mostram-se, ao mesmo tempo, aprecia<strong>da</strong>se temi<strong>da</strong>s. Deste modo, trata-se de um excesso de simplificação taxar as opiniõesde Ruskin como meramente conservadoras ou contrárias ao desenvolvimento. Emum contexto semelhante, Walter Benjamin observa que “o mesmo Arago, autor dofamoso parecer favorável à fotografia, tenha submetido – no mesmo ano (?), em1838 – um parecer desfavorável à <strong>construção</strong> <strong>da</strong>s ferrovias planeja<strong>da</strong>s pelogoverno”. 392 O parecer de Arago, ao qual somaram-se outras 160 vozes, contra 90favoráveis, argumentava, dentre outras coisas que a diferença de temperatura naentra<strong>da</strong> e na saí<strong>da</strong> dos túneis provocaria calores e friagens mortais.386 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 55.387 Ibid., p. 57.388 RUSKIN, John. Modern Painters. Vol. 3. Of many things. A<strong>da</strong>manta Media Corp. 2000. p. 310.389 Ibid., p. 311.390 Entre 16 e 19 km.391 RUSKIN, J. Modern Painters… p. 311.392 BENJAMIN, Walter. A fotografia. Passagens... p. 715. [Y 1a,5].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 194As questões perceptivas discuti<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong>s primeirasviagens de trem originam-se fun<strong>da</strong>mentalmente no tema <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. Em 1841,George Stephenson, engenheiro a quem <strong>é</strong> atribuí<strong>da</strong> à responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> primeiraviagem de trem entre Manchester e Liverpool 393 , foi questionado pelo parlamentoinglês sobre a capaci<strong>da</strong>de do condutor de identificar obstáculos. SegundoStephenson, se a atenção do condutor se dirigir a um objeto que se encontra à suafrente, ele poderá ter uma visão correta do obstáculo. Mas, se apenas virar-se parao objeto enquanto passa por ele, sua visão será imperfeita. 394 A visão do condutornão era apenas motivo de preocupação, mas seu ponto de vista tamb<strong>é</strong>m servia àinspiração e à fantasia. As imagens dos primeiros filmes que apresentavamsimulacros de “passeios fantasmas” - toma<strong>da</strong>s realiza<strong>da</strong>s na parte dianteira detrens ou <strong>da</strong> proa de barcos, 395 almejando reproduzir a sensação de movimento -colocam-se como evidência <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de por este ponto de vista.As possibili<strong>da</strong>des de <strong>visual</strong>ização a partir <strong>da</strong> janela do trem tamb<strong>é</strong>m forammuito discuti<strong>da</strong>s nos primórdios <strong>da</strong>s ferrovias. Jacob Burckhardt escreveu em1840 que já não era possível distinguir os objetos próximos – árvores, cabanas eoutros: tão logo nos viramos para observá-los, eles se foram. 396 Anos depois, em1885, o autor de uma filosofia <strong>da</strong> mente humana escrevia que numa cabine detrem em veloci<strong>da</strong>de, podemos não identificar o rosto dos passantes, apenasperceber que se trata de seres humanos. 397 O jornal m<strong>é</strong>dico The Lancet,considerava, em 1862, que o movimento constante na alternância de observaçãoentre formas próximas e distantes resultava em fadiga para os olhos e o c<strong>é</strong>rebro. 398Estas análises contemporâneas chamam a atenção para uma nova forma de<strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de sendo produzi<strong>da</strong> no ambiente veloz <strong>da</strong>s ferrovias. Cabia ao viajantea<strong>da</strong>ptar-se a esta forma de percepção <strong>visual</strong>: compreender que os objetos maispróximos do veículo em movimento não mais se deixavam observardetalha<strong>da</strong>mente. O segundo plano se oferecia nítido em parte graças à maior393 Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 3.394 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 55.395 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. InCHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs). O cinema e a invenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. São Paulo: Cosac& Naify, 2001. p 41.396 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 56.397 BAILEY, Samuel. Letters on the philosophy of the human mind. London: Longman, Brown, Green andLongmas, 1855.398 The Influence of Railway Travelling on Health reprinted from The Lancet. Hardwick, London. In:BIDWELL, W. H. (editor and proprietor). Eclectic Magazine for foreign literature, science, and art. vol. LX.New York: September to December, 1863. p. 424-426.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 195estabili<strong>da</strong>de forneci<strong>da</strong> pelos trilhos. Por outro lado, a maior veloci<strong>da</strong>de permitia odesfrute de um grande número de paisagens, mesmo em uma viagem curta. Opróprio cansaço <strong>da</strong> alternância do movimento dos olhos entre os dois planos semostrou, com o tempo, algo que poderia ser aprendido e gerenciado. O fatoinequívoco <strong>é</strong> que uma nova percepção <strong>visual</strong> se formava. As viagens de trem têmalguma responsabili<strong>da</strong>de nesta mu<strong>da</strong>nça na medi<strong>da</strong> em que os “passos” deobservação anteriores não mais se prestavam à apreensão panorâmica do quepodia ser visto pela janela do trem.O espaço para passageiros nos trens baseou-se no modelo <strong>da</strong>s carruagens,com a diferença que, nestas últimas, os passageiros acomo<strong>da</strong>vam-se nos acentosdistribuídos em forma de “U”. Esta disposição facilitava o contato entre osviajantes, sem abrir mão <strong>da</strong> relação com o ambiente externo. Alguns romances dos<strong>é</strong>culo XVIII e do início do XIX retratam o companheirismo que surgia nestasviagens que se estendiam por muitos dias. Neste contexto, a expectativa <strong>da</strong> longaconvivência com outras pessoas, estimulava a criação de laços entre elas. Com otrem, esta relação foi completamente altera<strong>da</strong>. Em primeiro lugar o trem era maisdemocrático. Em lugar de um único compartimento, haviam diversos, al<strong>é</strong>m deuma grande área para a terceira classe. Os passageiros dos trens trocaram aconversa pelo embaraço. Al<strong>é</strong>m disso, as inúmeras para<strong>da</strong>s traziam uma sucessãode novas faces, o que tamb<strong>é</strong>m não estimulava contatos interpessoais. A conversa,praticamente, fluía apenas quando se encontravam conhecidos. A leitura nestesveículos parece ter surgido mais como uma forma de superar o desconforto <strong>da</strong>situação de estar frente a frente com desconhecidos do que uma forma de passar otempo. George Simmel, no começo do s<strong>é</strong>culo XX, considerou que asconseqüências <strong>da</strong> introdução de novas tecnologias de comunicação e transporteforam senti<strong>da</strong>s diretamente no surgimento de novas formas de relacionamento.Segundo Simmel, “as relações recíprocas dos seres humanos nas ci<strong>da</strong>des sedistinguem por uma notória preponderância <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de <strong>visual</strong> sobre a auditiva.Suas causas principais são os meios públicos de transporte. Antes dodesenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes do s<strong>é</strong>culo XIX, as pessoas não


O OLHAR INOCENTE É CEGO 196conheciam a situação de terem de se <strong>olhar</strong> reciprocamente por minutos, ou mesmopor horas a fio, sem dirigir a palavra umas às outras”. 399O triunfo <strong>da</strong> regulari<strong>da</strong>de mecânica sobre a irregulari<strong>da</strong>de do terreno trouxediversas conseqüências, dentre estas a alienação <strong>da</strong> natureza, na medi<strong>da</strong> em que oviajante perdeu o contato direto com o ambiente externo. Esta relação <strong>é</strong> ain<strong>da</strong>mais exacerba<strong>da</strong> na passagem por túneis e viadutos capazes de proporcionar, deum lado, a sensação de imersão dentro de uma montanha e, de outro, pontos devista in<strong>é</strong>ditos e assustadores. Na Figura 127, temos um exemplo de um destespontos de vista. Na gravura do Illustrated London News, vemos a rainha Vitóriadebruça<strong>da</strong> para fora <strong>da</strong> janela do trem que atravessa a ponte Tay, observando o rioembaixo. A sua acompanhante parece mais temerosa e procura um modo deobservar a paisagem sem expor-se para fora do trem. No mesmo ano <strong>da</strong>publicação desta gravura, a ponte Tay ruiu durante a travessia de um trem,resultando em 75 mortes.As Figura 128 e Figura 129 ilustram um tipo de viaduto construído emmeados do s<strong>é</strong>culo XIX. De uma maneira geral sua estrutura era feita com madeira,o que fazia com que a <strong>construção</strong> fosse barata, por<strong>é</strong>m frágil e de vi<strong>da</strong> curta. Oviaduto de Slade (Figura 129) foi construído em 1849 e reformado em 1893,quando ganhou estrutura de pedra e tijolo. Os detalhes decorativos presentes nosarcos apontam para uma preocupação com o ornamento em um contexto ondefuncionali<strong>da</strong>de e precisão são essenciais. Al<strong>é</strong>m disso, as enormes construções quepermitem a passagem do trem parecem rasgar as paisagens, abrindo espaço para apassagem do progresso. No entanto, o mais significativo <strong>é</strong> imaginar a sensação deencontrar-se em movimento, a 31 metros de altura, sobre uma paisagem ampla eaberta, em outras palavras, sem o limite <strong>visual</strong> proporcionado pelas margens <strong>da</strong>estra<strong>da</strong>: suas árvores e casas. Neste contexto, estas ilustrações valorizam agrandeza e a precisão do espaço percorrido pela máquina.399 BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charles Baudelaire... p. 36.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 197Figura 127. Rainha Victoriaviajando sobre a ponte Tay,Dundee. The IllustratedLondon News, 5 de julho de1879.(17/09/07)Figura 128. Viaduto Brighton sobre a rodoviaPreston. The Illustrated London News, 13 dejunho de 1846. The Illustrated London NewsPicture Library. (17/09/07)Figura 129. Viaduto Blatchford em Slade,Devon, meados do s<strong>é</strong>culo XIX. Litografiacolori<strong>da</strong> manualmente. ScienceMuseum/Science & Society Picture Library. (17/09/07)Abor<strong>da</strong>mos anteriormente como o desenvolvimento <strong>da</strong> ferrovia mostrou-sefun<strong>da</strong>mental para o surgimento do que pode ser considerado como a segun<strong>da</strong>revolução industrial. Ao mesmo tempo em que as estra<strong>da</strong>s de ferro podem serexplica<strong>da</strong>s como uma resposta à industrialização e à urbanização, elas tamb<strong>é</strong>matuaram como estímulo para o crescimento <strong>da</strong>s duas últimas. At<strong>é</strong> o início efetivo<strong>da</strong>s linhas ferroviárias, a produção e o consumo de bens permaneciam integradosem um quadro regional, constituindo parte <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de local. Com o transportemoderno, o lugar <strong>da</strong> produção <strong>é</strong> separado do espaço de consumo. Neste momento,


O OLHAR INOCENTE É CEGO 198de acordo com Marx, o produto se transforma em mercadoria. 400 WolfgangSchivelbusch relaciona a observação de Marx com o conceito de “per<strong>da</strong> <strong>da</strong> aura”,desenvolvido por Walter Benjamin. Para Benjamin, a aura <strong>é</strong> uma presença“singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de umacoisa distante, por mais perto que ela esteja” 401 e este valor genuíno seriadestruído pela reprodução. Segundo Schivelbusch, a ferrovia – e depois asrodovias – participam de um movimento semelhante de destruição <strong>da</strong> aura namedi<strong>da</strong> em que favorecem que regiões outrora inexplora<strong>da</strong>s se abram para oturismo. “Quando a distância espacial não <strong>é</strong> mais experimenta<strong>da</strong>, as diferençasentre o original e a reprodução diminuem”. 402 Embora a associação apresenta<strong>da</strong>por Schivelbusch possa ser questiona<strong>da</strong>, ela assinala o surgimento do turismoindustrial como mais uma conseqüência <strong>da</strong>s ferrovias. Nos dois cartazes do ano de1889, aqui reproduzidos, (Figura 130; Figura 131) vemos exemplos de como odistante era trazido para o alcance do <strong>olhar</strong> do turista: “o mar do Canal <strong>da</strong>Mancha, via trem rápido, em apenas três horas e meia”, “trem expresso quatrovezes ao dia”. Ambos os cartazes trazem imagens <strong>da</strong>s paisagens importantes deca<strong>da</strong> local.Figura 130. Estra<strong>da</strong> de ferro duNord. Boulogne sobre o mar.Tempora<strong>da</strong> de 1889. (25/09/07)Figura 131. Estra<strong>da</strong> de ferro duNord. Le Tr<strong>é</strong>port-Mers.Tempora<strong>da</strong> de 1889. (25/09/07)Figura 132. 'Cook's Tourspela Escócia e Irlan<strong>da</strong>. Capade folheto publicitário, sem<strong>da</strong>ta. Thomas CookArchive/The ILN PictureLibrary. (17/09/07)400 MARX, Karl. Grundisse. Apud SCHIVELBUSCH, W. The Railway Journey: the Industrialization ofTime and Space in the Nineteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 40.401 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era ... p. 170.402 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 42.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 199Neste contexto surge o turismo em grande escala desvinculado <strong>da</strong>experiência única e romântica <strong>da</strong>s viagens. O crítico francês Jean Cassou discute odeslocamento do sentido de “viagem” para “turismo” ocorrido a partir do final dos<strong>é</strong>culo XIX, quando o desenvolvimento do sistema de transportes e <strong>da</strong>s agênciasde viagem possibilitou ao grande público viajar. 403 As viagens de ricos eaventureiros aparentemente surgiram a partir do s<strong>é</strong>culo XVIII com o intuito deconhecer monumentos históricos ou entrar em contato com os costumes de outrospovos e nações. Muitas obras do romantismo francês têm origem na experiênciade viajantes que partiram em busca de amor, aventura, exotismo ou tudo isso aomesmo tempo. Para Cassou, a agência de viagens desnaturalizou a experiência <strong>da</strong>viagem ao eliminar as possibili<strong>da</strong>des de novas descobertas.Na Figura 132 vemos um cartaz do primeiro agente de viagens do mundo,Thomas Cook. Embora sem <strong>da</strong>ta, o cartaz indica os primeiros roteiros criados pelaagência na d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1840. Cook, ao constatar as dificul<strong>da</strong>des trazi<strong>da</strong>s pelaausência de integração entre as vias f<strong>é</strong>rreas, alugou um trem para um determinadoevento, vendendo diretamente. Deste modo, teve início o turismo <strong>da</strong> era industrial.O turismo de massa oferecia ao ci<strong>da</strong>dão urbano um cardápio de aventuras e novasexperiências. Mas, ao mesmo tempo em que fazia uso de um passeio padronizado,o usuário tamb<strong>é</strong>m buscava uma experiência única, o que podia tornarproblemática uma visita às “novíssimas descobertas de Pomp<strong>é</strong>ia” e a aquisição de“autênticos souvenirs”. Os espaços dignos de serem visitados foram rapi<strong>da</strong>mentemapeados, padronizados e disponibilizados à degustação do <strong>olhar</strong> moderno emescala industrial. Apesar <strong>da</strong> padronização dos roteiros e <strong>da</strong> gra<strong>da</strong>ção de interessesdo que deve ou não ser visitado, não se pode deixar de considerar como as visitasa outros países e <strong>cultura</strong>s acrescentaram elementos à formação <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>moderna, minimamente pela oferta de novas possibili<strong>da</strong>des a serem observa<strong>da</strong>s.Mesmo considerando que uma viagem sempre resulta em “novas vistas”,parece evidente que o turista moderno vive uma experiência mais passiva a partir<strong>da</strong> era industrial. Na maioria <strong>da</strong>s vezes, viaja de acordo com um roteiropreconcebido pelo agente de viagens e que exclui a possibili<strong>da</strong>de do erro e <strong>da</strong>aventura. Ele vive as experiências que lhe são indica<strong>da</strong>s e observa o que deve serobservado. Neste sentido, sua prática encontra-se distancia<strong>da</strong> do perambular do403 CASSOU, Jean.Du Voyage au tourisme. Communications,10(1967):25-34. apud KERN, S. op. cit., p. 352.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 200flâneur e de sua observação anônima. No entanto, diversos autores consideram asemelhança entre o flâneur e o turista. Para Hall, o turista seria a contraparti<strong>da</strong> doflâneur na moderni<strong>da</strong>de tardia 404 . Segundo Urry, o flâneur foi um precursor doturista do s<strong>é</strong>culo XX e, particularmente, de sua ativi<strong>da</strong>de emblemática: a toma<strong>da</strong>de fotografias 405 . Antes dele, Susan Sontag, reconhecia a fotografia como “umaextensão do olho do flâneur de classe m<strong>é</strong>dia”. 406 O fotógrafo seria uma versãoarma<strong>da</strong> do caminhante solitário que faz o reconhecimento do inferno urbano,observando o mundo “pitoresco”. Apesar destas aproximações, a autora finalizacom uma frase que acaba por apartar definitivamente o flâneur do turista demassa:O flâneur não se sente atraído pelas reali<strong>da</strong>des oficiais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, mas por suasesquinas escuras e remen<strong>da</strong><strong>da</strong>s, por seus habitantes esquecidos – pela reali<strong>da</strong>denão-oficial que está por detrás <strong>da</strong> facha<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> burguesa e que o fotógrafo“apreende”, tal como o detetive captura o criminoso. 407Neste contexto, a aproximação entre o modo de <strong>olhar</strong> do flâneur e o doturista só parece fazer sentido quando deixamos de considerar o turismo de massae suas limitações de tempo em visitas pr<strong>é</strong>-estabeleci<strong>da</strong>s pelos agentes de viagem.Por outro lado, o olho aberto ao “pitoresco” segue sendo um resquício <strong>da</strong>experiência do flâneur na prática de qualquer turista, mesmo dos que respeitam oroteiro do “que deve ser observado”.Alguns posicionamentos ambivalentes aparecem em relação aos primeirostempos do transporte ferroviário. De um lado, admirava-se a facili<strong>da</strong>de, suavi<strong>da</strong>dee segurança de um meio que sugeria a sensação de “estar voando”. Ao mesmotempo, a ferrovia carregava o medo <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong> destruição potencial. Apossibili<strong>da</strong>de de acidentes e a impossibili<strong>da</strong>de de interferência no controle doveículo colaboravam com esta ansie<strong>da</strong>de. Segundo Schivelbusch, <strong>é</strong> possívelestabelecer uma relação entre o grau de eficiência e desenvolvimento de umatecnologia e sua capaci<strong>da</strong>de de catástrofe e destruição em caso de colapso.Haveria uma relação direta entre a capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tecnologia controlar a natureza ea gravi<strong>da</strong>de dos acidentes. 408 O autor justifica esta observação apontando para ofato de que na Enciclop<strong>é</strong>dia de Diderot, a palavra “acidente” encontrava-se404 HALL, Stuart. A identi<strong>da</strong>de <strong>cultura</strong>l na pós-moderni<strong>da</strong>de. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. p. 33.405 URRY, John. The tourist gaze. London: Sage Publications, 2002. p. 127.406 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Ed. Arbor, 1981. p. 55.407 Ibid. p. 56.408 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 131.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 201relaciona<strong>da</strong> a conceitos gramaticais e filosóficos. As catástrofes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de pr<strong>é</strong>industriaiseram predominantemente relaciona<strong>da</strong>s a desastres naturais, ou seja,liga<strong>da</strong>s a fatos exteriores à socie<strong>da</strong>de. Com o desenvolvimento <strong>da</strong>industrialização, as catástrofes começaram a vir de dentro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Adestruição produzi<strong>da</strong> pelo aparato tecnológico <strong>é</strong> parte do seu poder e leva àdestruição o próprio veículo no caso de um acidente. A quebra do eixo de umacarruagem no s<strong>é</strong>culo XVIII interrompia e atrasava uma viagem enquanto a quebrade eixo de uma locomotiva que em 1842 viajava de Paris para Versalhes produziua primeira catástrofe <strong>da</strong>s ferrovias, espalhando pânico pela Europa. Dois anosapós este acidente, o artigo “acidentes” na Encyclop<strong>é</strong>die des chemins de fer et desmachines à vapeur tinha nove páginas. 409O fato <strong>é</strong> que a segurança do transporte ferroviário era bastante precária nosprimeiros tempos e acidentes aconteciam freqüentemente por colisões entreveículos, com objetos sobre os trilhos, descarrilamentos ou rompimento de pontes.Gravuras detalha<strong>da</strong>s de acidentes envolvendo trens passaram a ilustrar aspublicações <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. A Figura 133 mostra uma colisão. Segundo a legen<strong>da</strong> emThe Illustrated London News, o condutor do trem de passageiros tentou, em vão,alertar o outro trem com a luz vermelha. Na Figura 134, o peso do próprio tremfez ceder a viga mestra. Aos poucos, a segurança ferroviária passou a ser umapreocupação.Figura 133. Acidente de trem em Kentish Town, najunção <strong>da</strong> linha Hampstead. The Illustrated LondonNews, 7 de setembro de 1861. ILN Picture Library. (17/09/07)Figura 134. Acidente de trem na FerroviaChester, com estragos na ponte Dee.The Illustrated London News, 12 de junhode 1847. ILN Picture Library. (17/09/07)409 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 131.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 202Os acidentes eram exaustivamente divulgados na mídia impressa do s<strong>é</strong>culoXIX. Os freqüentes descarrilhamentos e choques de trens eram publicados emgrande estilo, apresentados como um importante efeito colateral do progresso.A Figura 60 publica<strong>da</strong> em 1880 em The Illustrated London News mostrauma plataforma de trem do subúrbio. Segundo a legen<strong>da</strong>, quinhentos londrinosacotovelavam-se para entrar nos vagões de segun<strong>da</strong> e terceira classe, aproveitandoos feriados bancários para uma excursão. Os cartazes no muro <strong>da</strong> estaçãoapresentam um bom sumário do que se anunciava à <strong>é</strong>poca: chás, rem<strong>é</strong>dios,eventos musicais, passeios e fait-divers: “acidentes de todos os tipos”. Outraindústria se desenvolveu em função dos acidentes de trem: a indústria de seguros.O anúncio <strong>da</strong> Figura 135 apresenta uma mistura de boas vin<strong>da</strong>s ao ano novo eameaças em relação à possibili<strong>da</strong>de de acidentes. Apresentando seis fotografias deacidentes com diversos veículos acidentados, pergunta: “Você já esteve envolvidoem um acidente? Não? Mas, qualquer dia destes, poderá. Você está protegido para1912?”.Figura 135. Anúncio de seguradora.The Sphere, 6 de janeiro de 1912.The ILN Picture Library. (17/09/07)Figura 136. Aguar<strong>da</strong>ndo o trem <strong>da</strong> excursão. TheIllustrated London News. 4 de setembro de 1880.The Illustrated London News Picture Library (17/09/07)Um aparato tecnológico que se tornou complementar as ferrovias, inclusiveatuando diretamente sobre a segurança foi o sistema de tel<strong>é</strong>grafo el<strong>é</strong>trico. Emborao tel<strong>é</strong>grafo tenha se aperfeiçoado a partir do início do s<strong>é</strong>culo XIX, foi apenas como avanço <strong>da</strong>s ferrovias que ele encontrou uma aplicação prática. Ao longo do seudesenvolvimento, as ferrovias muitas vezes eram percebi<strong>da</strong>s como um conjunto


O OLHAR INOCENTE É CEGO 203mecânico que incluía não apenas a locomotivas, mas os seus carros e, tamb<strong>é</strong>m, asestra<strong>da</strong>s f<strong>é</strong>rreas. Neste contexto, com o fim de evitar acidentes e choques, muitasvezes, uma ou mais pessoas tinham a tarefa de observar à frente a linha do trempara divisar obstáculos no caminho. No trem <strong>da</strong> Figura 137 vemos alguns homensimediatamente atrás <strong>da</strong> locomotiva, provavelmente cumprindo esta função. Namesma figura do trem dos correios, vemos à direita um homem com umsinalizador luminoso. As três luzes na parte <strong>da</strong> frente indicam tratar-se de um tremexpresso. Como se pode perceber a partir <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de deste sistema de sinais,a sinalização ferroviária não se mostrava satisfatória. Os primeiros sistemas óticose acústicos que foram projetados para este fim, provavam-se pouco efetivos noescuro, na neblina, em condições de ruído excessivo e, ain<strong>da</strong>, na passagem portúneis. 410 Foi justamente nas passagens por túneis que o telegrafo apresentou a suaprimeira aplicação prática. O sistema, primeiramente constituído para túneis edepois expandido ao longo de to<strong>da</strong> a linha, consistia na divisão <strong>da</strong> linha em“blocos”, ca<strong>da</strong> um deles atendido por um transmissor telegráfico. Este transmissorsinalizava para o bloco seguinte quando a linha encontrava-se libera<strong>da</strong>. Destemodo, o condutor e seus auxiliares deixaram de ser responsáveis pela avaliação <strong>da</strong>linha, que passou a ser sinaliza<strong>da</strong> por um centro telegráfico distante.Figura 137. Trem dos correios indo de Folkestone paraLondres. The Illustrated London News, 1844. The ILNPicture Library. (17/09/07)Não nos interessa o aspecto funcional <strong>da</strong> aplicação do tel<strong>é</strong>grafo às ferrovias,mas o seu efeito sobre a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. Explicando melhor: com a instituição destesistema de sinais, os postes telegráficos passaram a acompanhar as ferrovias. Os410 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 30.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 204postes e fios do tel<strong>é</strong>grafo integraram-se como parte do conjunto mecânico <strong>da</strong>sferrovias, ocupando um campo à frente <strong>da</strong> paisagem descortina<strong>da</strong> pela janela dotrem, mediando esta visão. A “passagem” acelera<strong>da</strong> dos postes pela janela do trempassou a criar um ritmo <strong>visual</strong>, atrav<strong>é</strong>s do qual era possível supor a veloci<strong>da</strong>deempreendi<strong>da</strong> pelo equipamento.3.3.2. Vista e visão panorâmicasApesar <strong>da</strong>s inúmeras críticas que acompanharam a implementação <strong>da</strong>sferrovias, não havia unanimi<strong>da</strong>de em relação às mu<strong>da</strong>nças perceptivas resultantes<strong>da</strong>s transformações gera<strong>da</strong>s por este meio de transporte. Nem todos viam asferrovias como ruína e prejuízo, nem com enfado. O escritor Christian Andersen,por exemplo, afirmou com veemência, em meados do s<strong>é</strong>culo XIX, uma opiniãobastante positiva. Para ele a poesia sucumbia à estreiteza <strong>da</strong>s viagens dediligência. O calor e a poeira incomo<strong>da</strong>vam no verão, enquanto o invernoproporcionava p<strong>é</strong>ssimas estra<strong>da</strong>s. O trem era um cavalo mágico que voava comoas nuvens em uma tempestade, fazendo o espaço desaparecer. 411 Para Andersen, aver<strong>da</strong>deira oportuni<strong>da</strong>de de observar a paisagem se encontrava sobre os trilhos.Esta outra interpretação ao mesmo tempo em que nos conduz a uma novacapaci<strong>da</strong>de de observação tamb<strong>é</strong>m apresenta uma nova paisagem cria<strong>da</strong> pelaferrovia. Os objetos modificam-se a partir do apelo <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. O movimentocria novas associações entre objetos que se encontram separados no espaço. Oselementos que foram apontados por alguns com o significado de per<strong>da</strong> oudetrimento passam a ser assumidos como enriquecedores. A veloci<strong>da</strong>de <strong>é</strong>transforma<strong>da</strong> em estímulo para a nova percepção e dá nova vi<strong>da</strong> à antigapaisagem.Neste contexto, Wolfgang Schivelbusch apresenta um excelente apanhadode depoimentos e textos de autores contemporâneos atrav<strong>é</strong>s dos quais <strong>é</strong> possívelconstatar as respostas à experiência <strong>visual</strong> trazi<strong>da</strong> pelo movimento <strong>da</strong>s ferroviasno s<strong>é</strong>culo XIX. Um viajante americano, por exemplo, escreveu em 1853 que as411 Railway Readings. Oxford: J. Vincent, 1848. p. 8.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 205belezas <strong>da</strong> Inglaterra nunca apareceram tão charmosas do que quando seprecipitam sobre uma locomotiva a 40 milhas por hora . 412Na<strong>da</strong> pelo caminho requer uma observação atenta, e apesar dos objetos maispróximos parecerem rasgar-se em descontrole, os campos distantes e suas árvoresdispersas não parecem determinados a iludir a observação; eles permanecem otempo necessário sob o <strong>olhar</strong> para [que possam] deixar uma impressão eterna.Tudo <strong>é</strong> tão tranquilo, tão fresco, tão pleno e destituído de objetos proeminentescapazes de aprisionar o olho ou distrair a atenção do charme do todo, que me fazamar o sonho de navegar no ar, rapi<strong>da</strong>mente, como se estivesse montado em umtornado. 413Um certo Benjamin Gastineau, cujos ensaios publicados em diversos jornaisforam reunidos no ano de 1861 em um livro chamado La Vie en chemin de fer 414 ,considera que o movimento do trem atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> paisagem transfigura-se nomovimento <strong>da</strong> própria paisagem. A ferrovia coreografa a paisagem. “Antes <strong>da</strong>criação <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s de ferro, a natureza não criava mais; era uma BelaAdormeci<strong>da</strong> no bosque...; at<strong>é</strong> os c<strong>é</strong>us pareciam imutáveis. A estra<strong>da</strong> de ferroanimou tudo...”. 415 O movimento do trem encolhe o espaço e, deste modo, exibeuma sucessão de objetos e elementos cênicos que originalmente pertenciam adiversos domínios espaciais. O viajante que observa o mundo a partir <strong>da</strong> janela dotrem adquire uma nova habili<strong>da</strong>de que Gastineau chama de “filosofia sint<strong>é</strong>tica dorelance” (la philosophie synth<strong>é</strong>tique du coup d’oeil) e que consiste em perceberelementos descontínuos indiscrimina<strong>da</strong>mente à medi<strong>da</strong> que estes se sucedem soba janela. Embora Gastineau não utilize a palavra “panorama”, o cenário que eledescreve corresponde a esta forma de <strong>visual</strong>ização: a partir <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça contínuade ponto de vista vêem-se, em rápi<strong>da</strong> sucessão, cenas diversas - alegres ou tristes,burlescas ou brilhantes, de vi<strong>da</strong> ou de morte. To<strong>da</strong>s as imagens desaparecem tãologo sejam vistas.Em outro texto contemporâneo de 1865, Jules Clar<strong>é</strong>tie, jornalista epublicitário parisiense, utiliza o termo panorama para caracterizar a vista <strong>da</strong> janelado trem: uma paisagem evanescente, capaz de ser capta<strong>da</strong> em sua totali<strong>da</strong>degraças à veloci<strong>da</strong>de do movimento. Clar<strong>é</strong>tie escreve que em poucas horas a412 WARD, Matthew E. English Items or, Microcosmic Views of England and Englishmen. Liverpool, 1830.pp. 47-8 apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 60.413 Id.414 GASTINEAU, Benjamin. La Vie en chemin de fer. Paris, 1861. p. 31. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit.,p. 60.415 Ibid., pp. 37-38. apud BENJAMIN, W. Passagens... p. 631 [U 10a,1].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 206ferrovia pode expor à vista to<strong>da</strong> a França, desenrolando diante dos nossos olhos“um panorama infinito, uma vasta sucessão de quadros charmosos, de novassurpresas”. 416 De uma paisagem podemos ver uma vista geral: “não perguntesobre os detalhes, mas por um todo vivo. Depois de termos nos encantado comsuas habili<strong>da</strong>des pictóricas, ele [o trem] repentinamente pára e, simplesmente,deixa-nos descer aonde queremos chegar”. 417Um outro autor, Dolf Sternberger, utiliza o conceito de panorama paradescrever a tendência de <strong>olhar</strong> os elementos individuais e descontínuos de formaindiscrimina<strong>da</strong>, um modo de percepção ocidental, predominantemente europ<strong>é</strong>ia,surgi<strong>da</strong> no s<strong>é</strong>culo XIX. “A paisagem profun<strong>da</strong>mente transforma<strong>da</strong> do s<strong>é</strong>culo XIXpermanece visível at<strong>é</strong> hoje, pelo menos em seus rastros. Ela foi forma<strong>da</strong> pelaestra<strong>da</strong> de ferro”. 418 Para Sternberger, a vista <strong>da</strong>s janelas <strong>da</strong> Europa haviamperdido sua profundi<strong>da</strong>de e os objetos transfiguraram-se em meras partículas deum único mundo panorâmico que nos envolve como uma superfície pinta<strong>da</strong> 419 .Esta visão do autor <strong>é</strong> credita<strong>da</strong> às ferrovias que “transformam o mundo de terras emares em um panorama que pode ser experienciado”. 420Em nosso ponto de vista, a visão panorâmica não destrói de maneira algumaa experiência <strong>da</strong> tridimensionali<strong>da</strong>de. A crença nesta id<strong>é</strong>ia baseia-se no fato deque as figuras que se encontram em primeiro plano, mais próximas <strong>da</strong> janela, sãovistas borra<strong>da</strong>s, nubla<strong>da</strong>s. Embora não se possa negar este fato, há um outro fatorque garante a tridimensionali<strong>da</strong>de. Trata-se <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. Uma paisagem <strong>é</strong>constituí<strong>da</strong> por muitos planos: árvores dispersas, casas, outros veículos, pessoasespalha<strong>da</strong>s por diversos pontos <strong>da</strong> paisagem. O movimento do trem faz com queestes diversos pontos do plano pareçam se modificar a ca<strong>da</strong> momento. Destemodo, uma grande árvore que parecia ocultar uma casa, em determinado momentoaparece reduzi<strong>da</strong> de tamanho como a figura de um escorço, enquanto a casaavança para mostrar-se.Neste contexto, não se trata de uma paisagem apreendi<strong>da</strong> como se projeta<strong>da</strong>sobre um plano bidimensional o que garante a id<strong>é</strong>ia <strong>da</strong> visão panorâmica, mas aseparação entre o espaço de percepção e o espaço dos objetos percebidos. Na416 CLARÉTIE, Jules. Vouages d’un parisien. Paris, 1865. p. 4. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 61.417 Id.418 STERNBERGER, Dolf. Panorama, oder Ansichten vom 19. Jahrundert, 3rd. ed. Hamburgo, 1938. pp. 34-35. apud BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 520. [N 12a,2].419 Ibid,. p. 50. apud SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 62-63.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 207percepção “tradicional” os espaços são compartilhados, não há separação entreeles. Na percepção “moderna”, “o viajante de trem vê os objetos e a paisagensatrav<strong>é</strong>s do aparato que o movimenta mundo afora. O veículo e o movimentocriado por ele integram-se à sua percepção <strong>visual</strong>”. 421 A mobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> visão, quepara os sentidos tradicionais de algu<strong>é</strong>m como Ruskin, era vista como um agentede dissolução <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de – torna-se pr<strong>é</strong>-requisito dentro <strong>da</strong> “normali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>visão panorâmica. “A visão não mais experiência o movimento fluido dos objetos.A fluidez tornou-se parte <strong>da</strong> nova reali<strong>da</strong>de <strong>visual</strong>”. 422A visão panorâmica, ofereci<strong>da</strong> pelas janelas dos trens, já havia sidoofereci<strong>da</strong> como uma ilusão nas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s anteriores pelos panoramas e dioramas.Schivelbusch associa a vivência real nas estra<strong>da</strong>s de ferro à experiência “virtual”nos panoramas e credita o desaparecimento <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> dos dioramas (por volta de1840) ao surgimento <strong>da</strong>s ferrovias 423 . Em nossa opinião, esta simultanei<strong>da</strong>de não <strong>é</strong>o bastante para configurar a decadência <strong>da</strong> experiência panorâmica dissocia<strong>da</strong> <strong>da</strong>vivência real. Considere-se a este propósito, a fase final dos panoramas, na vira<strong>da</strong>do s<strong>é</strong>culo XIX para o XX, em um momento em que a visão panorâmica já podiaser considera<strong>da</strong> completamente naturaliza<strong>da</strong>.3.3.3. Panoramas e espetáculos visuaisOs panoramas e sua instituição como espetáculo contribuíramfun<strong>da</strong>mentalmente para o desenvolvimento de novas características do <strong>olhar</strong>,avançando sobre a fronteira <strong>da</strong> representação ilusionística e antecipando em ums<strong>é</strong>culo o debate em relação ao valor artístico <strong>da</strong> fotografia e, posteriormente, docinema, vídeo e <strong>da</strong> mídia eletrônica. 424 A palavra “panorama” tem origem nalíngua grega e significa “tudo ver”. O neologismo surgido em uma mat<strong>é</strong>ria do TheTimes, no ano de 1792, anunciava um novo espetáculo: uma pintura circular eabsolutamente realista coloca<strong>da</strong> sobre a parede de uma rotun<strong>da</strong> construí<strong>da</strong>especialmente para este fim. O público, após subir uma esca<strong>da</strong> no interior do420 Id. Ibid., p. 62.421 SCHIVELBUSCH, W. op. cit., p. 64.422 Id.423 As linhas de Paris para Orl<strong>é</strong>ans e Rouen passaram a operar a partir de 1843. SCHIVELBUSCH, W. op.cit., p. 62.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 208panorama, atingia uma plataforma de onde se podia observar a representação,guar<strong>da</strong>ndo uma distância que garantia a ilusão (Figura 138). A luz naturalemanava do teto <strong>da</strong> <strong>construção</strong> e era suaviza<strong>da</strong> por v<strong>é</strong>us ou por um telhado, demodo a encobrir as bor<strong>da</strong>s <strong>da</strong> pintura. As representações às vezes seguiam temasmilitares (batalhas) ou podiam retratar a própria ci<strong>da</strong>de e, ain<strong>da</strong>, ci<strong>da</strong>des distantesou exóticas. As grandes dimensões e a necessi<strong>da</strong>de de compensar o grandeformato e a circulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tela encontravam-se entre as grandes dificul<strong>da</strong>des domeio. O trabalho de <strong>construção</strong> de um panorama era organizado como uma linhade montagem, onde especialistas assumiam partes específicas <strong>da</strong> pintura como oc<strong>é</strong>u, paisagem de fundo, os figurinos e as armas.Figura 138. Plataforma de observação do panorama com espectadores e detalhe <strong>da</strong>vista panorâmica de Constantinopla, por Jules-Arsène Garnier em exibição emCopenhagen. c. 1882. Gravura em madeira, C. V. Nielsen. Museu <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de,Copenhagen. In: COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books,1999. p. 6.No panorama, marcando a transição <strong>da</strong> representação para a ilusão 425 , tudoera arranjado de modo a criar um jogo óptico e uma atmosfera ilusionista. Aimagem não procurava simplesmente apresentar a natureza de forma idealiza<strong>da</strong>,mas buscava substituir a reali<strong>da</strong>de ao proporcionar uma experiência pessoal.O panorama era um empreendimento de custos elevados. De modo aampliar os lucros muitas vezes uma tela, após ter sido exposta em Londres por424 MILLER, Angela. The Panorama, the Cinema, and the Emergence of the Spectacular. Wide Angle.Summer, 1996. p. 43.425 COMMENT, Bernard. The Panorama. London: Reaktion Books, 1999. p. 19.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 209alguns anos, era vendi<strong>da</strong> para outras rotun<strong>da</strong>s em outras ci<strong>da</strong>des inglesas, naAlemanha, França ou Holan<strong>da</strong>. Não poucas vezes, pintava-se o novo tema sobre aantiga tela. At<strong>é</strong> desaparecer em 1861, o Panorama de Londres punha emexposição uma ou duas novas mostras a ca<strong>da</strong> ano, tendo exibido não menos deque 126 obras. 426Os panoramas fizeram um grande sucesso em dois períodos distintos. Oprimeiro período durou de sua invenção, na vira<strong>da</strong> dos s<strong>é</strong>culos, at<strong>é</strong> 1820 e contoucom uma audiência estima<strong>da</strong> entre trinta mil e cinqüenta mil visitantes por ano. Apartir <strong>da</strong> d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1820 o número de visitantes diminuiu para 15 mil por ano. 427Embora não tenhamos <strong>da</strong>dos que corroborem a nossa hipótese, verificamos queeste período correspon<strong>da</strong> à invenção dos aparelhos de <strong>visual</strong>ização, de usoindividual, que mereceram um estudo detalhado de Crary em relação àsmodificações ocorri<strong>da</strong>s na <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. 428 Ao longo <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> geração depanoramas, no último quarto do s<strong>é</strong>culo XIX, a m<strong>é</strong>dia de espectadores aumentousubstancialmente, para noventa mil espectadores entre os anos de 1860 e 1865,alcançando duzentos mil entre 1872 e 1885. 429 Este número, que pode nos parecerexcessivo, cont<strong>é</strong>m uma estimativa que inclui não apenas os países <strong>da</strong> Europa, masde outras partes do mundo. Os panoramas tamb<strong>é</strong>m fizeram sucesso em diversosoutros países, como o Brasil e os Estados Unidos, onde versões itinerantespercorriam várias ci<strong>da</strong>des. A sua decadência sofreu influência não apenas <strong>da</strong>sviagens, mas tamb<strong>é</strong>m <strong>da</strong>s revistas e <strong>da</strong> ampla gama de publicações e espetáculos.O cinema realizou o golpe final.Os panoramas e suas diversas variantes surgi<strong>da</strong>s ao longo do s<strong>é</strong>culo XIXparecem resumir uma necessi<strong>da</strong>de de expansão <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de nos sentidos físico,geográfico e histórico 430 . Como narra Benjamin:Havia panoramas, dioramas, cosmoramas, diafanoramas, navaloramas, pleoramas,(pleo, “eu navego”, “passeios náuticos”), o fantoscópio, fantasma-parastasias,experiências fantasmagóricas e fantasmaparastáticas, viagens pitorescas peloquarto, georamas; vistas pitorescas, cineoramas, fanoramas, estereoramas,426 Ibid., p. 25.427 Ibid., p. 115.428 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century.Massachusetts: The MIT Press, 1992.429 COMMENT, B. op. cit., p. 115.430 MILLER, A. op. cit., p. 36.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 210cicloramas, um panorama dramático. “Em nossa <strong>é</strong>poca, tão rica em pano-, cosmo-,neo-, mirio-, kigo- e dioramas.” 431Havia ain<strong>da</strong> uma outra variante, o Kaiserpanorama, que surgiu em Breslauem 1880 e chegou a Berlin em 1883. Seu inventor chegou a estabelecer uma redecom algo em torno de 250 pontos atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> Alemanha. O Kaiserpanorama nãoera de fato um panorama, mas um carrossel de estereoscópios que retratavampaisagens e ci<strong>da</strong>des. Os cinqüenta espectadores postavam-se sentados em volta doaparato e ca<strong>da</strong> vez que o carrossel girava tinham a oportuni<strong>da</strong>de de observar umadiferente locali<strong>da</strong>de. Fotógrafos eram contratados para viajar e produzir imagenspara alimentar as duas diferentes seções a ca<strong>da</strong> semana. Aproxima<strong>da</strong>mente125.000 imagens estereoscópicas foram produzi<strong>da</strong>s para este espetáculo. WalterBenjamin em seu texto Infância em Berlin, comenta o seu contato com oKaiserpanorama e o efeito incômodo <strong>da</strong> campainha que soava antes de ca<strong>da</strong>mu<strong>da</strong>nça de imagem. 432O principal rival do panorama era o diorama, surgido em 1822. Consistiaem uma tela plana ou ligeiramente curva que de acordo com as mu<strong>da</strong>nças nailuminação apresentavam a mesma paisagem de dia e à noite. O efeito dependia<strong>da</strong> transparência <strong>da</strong> tela e <strong>da</strong> variação de iluminação – se pela frente ou por trás.As apresentações duravam aproxima<strong>da</strong>mente quinze minutos em salas queacomo<strong>da</strong>vam at<strong>é</strong> 350 espectadores. Apesar de concorrer com o panorama, suaorigem pode ser encontra<strong>da</strong> nas fantasmagorias ou na lanterna mágica, “que nãoconhecia a perspectiva, mas com a qual a magia <strong>da</strong> luz se insinuava de modo bemdiferente nas habitações ain<strong>da</strong> pouco ilumina<strong>da</strong>s”. 433 A aproximação do dioramacom a mágica e o encantamento <strong>é</strong> evidencia<strong>da</strong> no Salão de 1859 onde Baudelaire,após apontar os efeitos mal<strong>é</strong>ficos <strong>da</strong> fotografia, escreve:Gostaria de ser levado de novo para os dioramas cuja magia brutal e imensa sabeme impor uma útil ilusão. Prefiro contemplar alguns cenários teatrais ondeencontro, expressos com arte e concentrados de forma trágica, meus sonhos maiscaros. Essas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de,enquanto a maioria de nossos paisagistas são mentirosos justamente porquenegligenciam mentir. 434431 M. G. Saphir no Berniler Courier, 4 mar. 1829, cit. em Erich Stenger, Daguerres Diorama in Berlin,Berlim, 1925, p. 73. BENJAMIN, Walter. Panorama. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo:Imprensa Oficial, 2006. p. 569. [Q 1,1].432 BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 76.433 BENJAMIN, Walter. Panorama. Passagens... p. 572. [Q 2,3].434 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora NovaAguilar, 1995. p. 840.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 211Enquanto o diorama apresentava afini<strong>da</strong>de com a mágica, o panoramabuscava ampliar a experiência a partir <strong>da</strong> crescente importância <strong>da</strong><strong>da</strong> à percepção<strong>visual</strong> no período. Neste contexto, os panoramas em movimento com suassimulações de viagens por rios ou estra<strong>da</strong>s foram muito atuantes. Nos espetáculosde panoramas em movimento os espectadores eram colocados em barcos oucarruagens com pouca iluminação ladea<strong>da</strong>s por telas que eram movi<strong>da</strong>svagarosamente. Alguns panoramas em movimento bastante sofisticados foramapresentados na Exposição de 1900, apesar de, neste período, o espetáculo já seencontrar em seus últimos estertores. Dentre estes, o Panorama FerroviárioTrans-Siberiano, que simulava a viagem de trem entre Moscou e Beijing, onde ospassageiros eram instalados em três carros luxuosos dos quais podiam vislumbraras paisagens atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> janela. Um sistema mecânico permitia que quatro cama<strong>da</strong>ssucessivas de paisagens se movessem em veloci<strong>da</strong>des diferentes. O Mareoramacombinava a simulação de movimento com a genuína configuração circular dospanoramas. At<strong>é</strong> 700 pessoas eram coloca<strong>da</strong>s em uma enorme plataforma que sefazia passar pelo deque de um transatlântico. As gigantescas telas simulavam omovimento do navio. O vento passando por uma cama<strong>da</strong> de algas marinhassugeria a brisa e o cheiro do mar. Era um show imersivo, uma obra de arte total,sinest<strong>é</strong>sica.O apelo dos panoramas encontrava-se, sobretudo, no seu aspecto desubstituição <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, onde os espectadores poderiam vivenciar a experiênciado estrangeiro e do exótico sem os inconvenientes <strong>da</strong> viagem. 435 A naturezaespetacular do novo meio oferecia a um público em formação, experiênciasnormalmente fora do seu alcance, mas de forma edita<strong>da</strong> e domestica<strong>da</strong>. O espaçoreal (<strong>da</strong> rotun<strong>da</strong>) era transformado em um outro espaço, onde os traços <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de eram ocultados. Arquitetura e pintura atuavam juntas para articular aexperiência. O continuum espaço-temporal dos panoramas rompeu a doutrina UtPictura Poesis que segregava em diferentes dimensões as artes irmãs, pintura epoesia. Com os panoramas, as distinções entre tempo e espaço, <strong>visual</strong> e verbal,foram destituí<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s artes. Apesar disso, o status artístico desta representação foimuito contestado como sucedeu posteriormente com a fotografia, o cinema e a435 MILLER, A. op. cit., p. 41.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 212mídia eletrônica. Como entretenimento popular, o panorama ofereceu um amploacesso à informações visuais, mas, ao contrário de outras formas de arte, ele nãorequeria nenhum conhecimento especializado anterior, assim como nenhumaexpertise est<strong>é</strong>tica. Justamente pela oferta de ilusão pictórica, al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> totalaproximação com a natureza, o panorama era desprestigiado como arte. “A arteencanta porque relembra, não porque engana”. 436 Neste contexto, a imitação <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de constituiu a base do prazer popular <strong>da</strong> classe m<strong>é</strong>dia do s<strong>é</strong>culo XIX – umprazer alicerçado na experiência dos sentidos. 437J. A. Eberhardt em suas críticas aos panoramas, escritas em 1807, descreveo terror, a vertigem e a náusea que os espectadores poderiam padecer:Nem o conhecimento <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de com o ponto de vista, nem a luz do sol, nemo contraste com a vizinhança imediata são capazes de me resgatar deste sonhoterrível, do qual tenho que me forçar contra minha inclinação. Deste modo, algu<strong>é</strong>mpode por um fim à ilusão no momento em que ela se torna desagradável; mas at<strong>é</strong>cnica não se encontra ao alcance de todos os espectadores do panorama. 438Bernard Comment em The Panorama, al<strong>é</strong>m de considerar a <strong>é</strong>tica deste tipode representação, analisa nesta passagem a distinção entre representação eilusão. 439 Em nosso ponto de vista, ela aponta para uma pulsão escópica que emnossos dias <strong>é</strong> mais evidente na dificul<strong>da</strong>de de afastar o <strong>olhar</strong> <strong>da</strong>s telas de TVencontra<strong>da</strong>s em locais públicos. Do mesmo modo, a resistência a este tipo deimpulso, requer um autodomínio que talvez não se encontre ao alcance de todos.Neste sentido, <strong>é</strong> importante destacar a força com que algumas tecnologias sãocapazes de se infiltrar sobre o <strong>olhar</strong>.3.3.4. O tempo padronizadoA compressão tempo-espaço resultante <strong>da</strong> aceleração produzi<strong>da</strong> pelas novastecnologias de transporte e comunicação produziram uma modificação concreta naforma como o tempo <strong>é</strong> compreendido e utilizado de maneira coletiva. Embora orelógio mecânico já existisse desde o s<strong>é</strong>culo XIII e o relógio de pêndulo desde o436 In: RHODE, Eric. A History of the Cinema: From its origins to 1970. New York: Hill and Wang, 1976. p.8. apud MILLER, A. op. cit., p. 44.437 MILLER, A. op. cit., p. 44.438 EBERHARDT, J. A., Handbuch des Aesthetik, 1807. apud COMMENT, B. op. cit., p. 97.439 COMMENT, B. op. cit., p. 97.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 213XVII, foi apenas no s<strong>é</strong>culo XIX que eles passaram a ser produzidos em massa ecom peças intercambiáveis. 440 A utilização ca<strong>da</strong> vez mais utilitária do mecanismo,mais do que uma necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca evidencia a crescente importância de umtempo objetivo e impessoal sobrepondo-se ao tempo pessoal e subjetivo doindivíduo. O historiador alemão Karl Lamprecht observou nas últimas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s dos<strong>é</strong>culo XIX um crescente aumento na produção e importação de relógios de bolso(ele estima 12 milhões de relógios importados para uma população alemã deaproxima<strong>da</strong>mente 52 milhões). Ao mesmo tempo, as pessoas passaram a prestarmaior atenção aos pequenos intervalos de tempo. 441 A crescente utilização derelógios <strong>é</strong> ao mesmo tempo causa e conseqüência do aumento do senso deurgência, de um maior desejo de veloci<strong>da</strong>de atrav<strong>é</strong>s de uma maior compreensão<strong>da</strong> pontuali<strong>da</strong>de. Já em 1900, Simmel afirmava que “pontuali<strong>da</strong>de,calculabili<strong>da</strong>de, exatidão são introduzi<strong>da</strong> à força na vi<strong>da</strong> pela complexi<strong>da</strong>de eextensão <strong>da</strong> existência metropolitana e não estão apenas muito intimamenteliga<strong>da</strong>s à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico”. 442A id<strong>é</strong>ia de um tempo heterogêneo pertence ao terreno <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong>des,aos novelistas, psicólogos e outros estudiosos interessados em examinar asdiferentes formas que os indivíduos se relacionam com o tempo. Em O retrato deDorian Gray, Oscar Wilde aponta para um tempo que passa, ou melhor, que nãopassa para o protagonista, enquanto o seu retrato, escondido no sótão, vairegistrando as mu<strong>da</strong>nças que deveriam estar no corpo e no rosto de Dorian. ParaProust foi um pequeno bolo “curto e rechonchudo", uma ma<strong>da</strong>leine, que o fezviajar no tempo em um processo que o autor passou a chamar de memóriainvoluntária, levando-o a concluir que o passado encontrar-se-ia “em um objetomaterial qualquer, fora do âmbito <strong>da</strong> inteligência e de seu campo de ação”. Emqual objeto, isso não se sabe, e <strong>é</strong> mesmo uma “questão de sorte se nos deparamoscom ele antes de morremos ou se jamais o encontramos”. 443Uma importante conseqüência direta <strong>da</strong> influência <strong>da</strong>s ferrovias foi ainstituição do World Stan<strong>da</strong>rd Time que representou a implantação de um tempohomogêneo, público e unificado. Em outras palavras, a transformação do tempo440 LOWE, D.,op. cit., p. 35.441 KERN, S. op. cit., p 110-111.442 SIMMEL, G. op. cit., p. 15.443 PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol. I: No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Ediouro,1992. p. 55-56. A tradução reproduzi<strong>da</strong> aqui <strong>é</strong> a de BENJAMIN, ibid., p. 106.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 214em uma categoria social. 444 Ao mesmo tempo, a instituição de um tempounificado tem como conseqüência a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de temporal regional. Comum tráfico regional lento, as diferenças temporais não tinham importância alguma.Em 1840, as diversas companhias ferroviárias inglesas fizeram uma primeiratentativa de padronização do tempo, mas não houve um empenho coletivo e a horaera acerta<strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> companhia diariamente. Neste quadro, permaneceram asdispari<strong>da</strong>des de horário.Apesar dos argumentos científicos e militares em prol de um tempouniversal, foram as companhias ferroviárias que finalmente o instituíram 445 emesmo quando estas decidiram adotar em conjunto o tempo indicado peloObservatório Real de Greenwich, foi preciso esperar at<strong>é</strong> que este tempo fosseamplamente incorporado. At<strong>é</strong> 1879, um viajante que partisse de Washington comdestino a São Francisco com a intenção de acertar o seu relógio em ca<strong>da</strong> lugarejoque passasse, deveria fazê-lo mais de duzentas vezes 446 . Algumas regiões <strong>da</strong>França apresentavam quatro horários diferentes. Por outro lado, já em 1890 haviamáquinas que registravam o horário de entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong> dos seus empregados deforma a determinar o tempo trabalhado e o pagamento a receber 447 . Deste modo, aindustrialização tamb<strong>é</strong>m foi fun<strong>da</strong>mental para a necessi<strong>da</strong>de de implantação deum tempo coletivo, com precisão de menores segmentos e que dispensasse areferência do mundo natural. Em 1880, o “tempo ferroviário” foi adotado comopadrão na Inglaterra, seguido pela Alemanha em 1893. Na Exposição Universal deParis, realiza<strong>da</strong> em 1889, um dos congressos internacionais realizados discutiu aunificação do tempo. 448 Neste mesmo ano, os Estados Unidos foram divididos emquatro zonas de tempo liga<strong>da</strong>s às ferrovias, o que já era uma excelentepadronização para quem, trinta anos antes, possuía 80 diferentes horáriosrelacionados às ferrovias. Apenas em 1918, estas zonas passaram a sercompreendi<strong>da</strong>s como faixas de horário segui<strong>da</strong>s at<strong>é</strong> os nossos dias. A fotografiade 1908 <strong>da</strong> Figura 139 ilustra o funcionamento do sistema de horário <strong>da</strong>sferrovias. Ca<strong>da</strong> seção do painel representa uma hora, subdividi<strong>da</strong> em intervalos de444 Um conceito desenvolvido por Durkheim. Ver em KERN, S. op. cit., p. 19.445 KERN, S. op. cit., p. 12.446 KERN, S. op. cit., p. 12.447 Kern descreve um artigo de 1893 na Scientific American que descreve esta máquina. KERN, S. op. cit., p.15.448 SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte et RASMUSSEN, Anne. Les fastes du progrès. Le guide desExpositions universelles 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992. p. 118.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 215cinco minutos. A linha horizontal indica a distância entre as estações. Um fio <strong>é</strong>estendido do ponto de parti<strong>da</strong> at<strong>é</strong> o ponto de chega<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> trem. O importante<strong>é</strong> que nenhum destes fios se cruze para que não haja acidentes. A complexi<strong>da</strong>dedo processo parece oferecer poucas garantias de sucesso deste intento.Figura 139. As linhas do sistema dehorário <strong>da</strong>s ferrovias. The IllustratedLondon News, 6 de junho de 1908. TheILN Picture Library (17/09/07)Neste segmento do trabalho, apresentamos como as modificaçõesresultantes <strong>da</strong>s novas relações tempo-espaço, predominantemente origina<strong>da</strong>s nocontexto de influência de novas tecnologias, produziram influências naformulação de um novo modo de observar o mundo e de uma nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>moderna. Harvey observa, a partir de Bourdieu, “se as experiências espaciais etemporais são veículos primários <strong>da</strong> codificação e reprodução de relações sociais,uma mu<strong>da</strong>nça no modo de representação <strong>da</strong>quelas quase certamente gera algumtipo de modificação nestas”. 449 A natureza <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça gera<strong>da</strong> pelas experiênciasespaciais e temporais assumiu grande evidência com o advento <strong>da</strong> arte modernano final do s<strong>é</strong>culo XIX e início do XX. Hall engrandece esta discussão ao lembrarque tempo e espaço constituem as coordena<strong>da</strong>s básicas de todos os sistemas derepresentação. Apesar de, como assinala o autor, diferentes <strong>é</strong>pocas <strong>cultura</strong>isestabelecerem diferentes formas de combinar estas coordena<strong>da</strong>s 450 , elas449 HARVEY, D. op. cit., p. 225450 HALL, S. op. cit., p. 70.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 216encontram-se traduzi<strong>da</strong>s em todos os meios de representação que envolva imagensestáticas ou em movimento.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 2174.A pe<strong>da</strong>gogia de uma nova <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>deEm nossa investigação sobre as continui<strong>da</strong>des e contradições que mol<strong>da</strong>ram,ao longo do tempo, o <strong>olhar</strong> contemporâneo, identificamos dois diferentes modosde <strong>olhar</strong>. Os dois modelos ou momentos do <strong>olhar</strong> apontados neste trabalho não secolocam um em substituição ao outro, mas como uma base, sobre a qual, modosde <strong>olhar</strong> posteriores são construídos. No capítulo anterior analisamos como asnovas tecnologias e sua influência sobre as dimensões de tempo e de espaço, aolado <strong>da</strong>s condições de um novo ambiente urbano assentado sobre as mu<strong>da</strong>nçasocorri<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> industrialização, mostraram-se fun<strong>da</strong>mentais na <strong>construção</strong>de uma nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. O presente capítulo prossegue com esta análise, destavez, tratando <strong>da</strong> fixação deste processo. O novo modo de <strong>olhar</strong> que tomou forma apartir de meados do s<strong>é</strong>culo XIX dependia de uma ampla participação <strong>da</strong>população. Ou seja, este modo de <strong>olhar</strong> deveria ser fun<strong>da</strong>mentalmentecompartilhado.É neste contexto que, no presente capítulo, utilizaremos como ponto departi<strong>da</strong> as Exposições Universais que se realizaram diretamente vincula<strong>da</strong>s àurbanização, às novas formas de comunicação e, principalmente, às questõesespecíficas <strong>da</strong> industrialização: produção em massa e pr<strong>é</strong>-fabricação. A escolha deuma análise <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong>s Exposições, realiza<strong>da</strong>s na Europa desde1851, em detrimento, por exemplo, de diversas tecnologias relaciona<strong>da</strong>s à imageme que surgiram neste mesmo período deve-se a diversos fatores. Em primeirolugar, as Exposições encontram-se francamente associa<strong>da</strong>s ao processo industrial<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX. Elas constituíram empreendimentos de grandeporte, nos quais governos e empresas investiram imensas somas de dinheiro,atraindo quase todos os países do mundo na busca pela modernização. Al<strong>é</strong>mdisso, trata-se de um fenômeno basicamente <strong>visual</strong> e voltado para um públicoamplo. Deste modo, as Exposições Universais sintetizam a experiência obti<strong>da</strong>posteriormente com outras tecnologias que se voltaram para a massa. A


O OLHAR INOCENTE É CEGO 218possibili<strong>da</strong>de de realizar esta análise sobre as Exposições e não sobre estastecnologias, busca captar o primeiro momento <strong>da</strong> experiência de uma nova <strong>cultura</strong><strong>visual</strong>, recentemente desenvolvi<strong>da</strong>.As Exposições Universais colocam-se como um elemento fun<strong>da</strong>mental naestruturação de uma <strong>cultura</strong> moderna, apoia<strong>da</strong> sobre a modernização <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>metade do s<strong>é</strong>culo XIX. Se por um lado surgem como conseqüência do mesmoconjunto de processos que gerou a nova percepção urbana, por outro, elas tamb<strong>é</strong>mse colocam como um fator atuante no desenvolvimento de uma pe<strong>da</strong>gogia desta<strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>.Al<strong>é</strong>m disso, as Exposições Universais têm o m<strong>é</strong>rito de ressaltar a ascensãodo campo do design, tanto a partir <strong>da</strong> exibição de produtos desenvolvidos pelaindústria quanto pelas discussões que parecem mostrar-se, pela primeira vez,relevantes para esta área. Sobre estas questões, Greenhalgh observa que o ano de1851, <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> primeira Exposição Universal, <strong>é</strong> considerado ponto de parti<strong>da</strong> para ahistória do design, quando, de fato, deveria ser o ponto de parti<strong>da</strong> para umahistória crítica do design na medi<strong>da</strong> em que o que era discutido era maisinteressante e novo do que o que era apresentado. 451 De qualquer forma, a ligaçãoentre as Exposições e o campo do design amplia a consideração de Bürdek de queestas mostras eram capazes de revelar o estágio de desenvolvimento do design à<strong>é</strong>poca. 452 Al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>da</strong> às pessoas comuns de conhecer máquinasem funcionamento e produtos produzidos industrialmente, a primeira Exposiçãopermitiu que designers, artistas, críticos e industriais tivessem acesso ao estado <strong>da</strong>arte do que era produzido em diversos países. Se isto não era traduzido em muitasinovações formais, certamente ressalta discussões capazes de fun<strong>da</strong>mentar umacrítica do ornamento e do design, o que aponta para mu<strong>da</strong>nças na forma de <strong>olhar</strong> oque era produzido.4.1. Exposições e espetáculoAs Exposições, que se realizaram em diversos pontos do planeta, entremeados do s<strong>é</strong>culo XIX e as primeiras d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s do XX, foram mol<strong>da</strong><strong>da</strong>s a partir dos451 GREENHALGH, Paul. Ephemeral Vistas: The Expositions Universelles, Great Exhibitions and World’sFairs, 1851-1939. Manchester: University Press, 1994. p. 143.452 BÜRDEK, Bernhard E. História, Teoria e Prática do Design de Produtos. São Paulo: Ed. Edgard Blücher,2006. p. 21.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 219exemplos <strong>da</strong> Inglaterra, França e Estados Unidos, onde eram chama<strong>da</strong>s,respectivamente de Great Exhibitions, Expositions Universelles e World’s Fairs.No entanto, exibições artesanais e industriais de caráter nacional tinham sidofreqüentes na França e na Inglaterra a partir do s<strong>é</strong>culo XVIII e, mesmo antes, naI<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia, geralmente relaciona<strong>da</strong>s a festivi<strong>da</strong>des religiosas. Com o passar dotempo, elas foram aumentando em importância e em itens exibidos. Uma destas serealizou em 1798, no Campo de Marte em Paris. Na Inglaterra, na d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de1830, diversas exibições liga<strong>da</strong>s a institutos de tecnologia chegaram a atrairpúblicos de at<strong>é</strong> trinta mil pessoas. 453 A primeira Exposição considera<strong>da</strong> de caráteruniversal foi realiza<strong>da</strong> em Londres em 1851. Embora esta palavra não constassedo seu nome, The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, apretensão encontrava-se profun<strong>da</strong>mente arraiga<strong>da</strong>. Para o historiador Asa Briggs,a Exposição de 1851 foi o ponto culminante de uma longa e entrelaça<strong>da</strong> história, enão um evento surpreendente. 454 De forma análoga, consideramos que a história<strong>da</strong>s Exposições Universais encontra-se profun<strong>da</strong>mente relaciona<strong>da</strong> à <strong>construção</strong><strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna.As Exposições Universais atuaram como difusores de valores, mas em umposicionamento mais amplo do que <strong>é</strong> freqüentemente sugerido em estudosrecentes 455 , onde elas aparecem como veículos de propagan<strong>da</strong> de massa. Em nossoponto de vista, os valores modernos transmitidos nas Exposições e suaascendência sobre o sentido <strong>visual</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de burguesa do s<strong>é</strong>culo XIX sãodemarcadores <strong>da</strong> <strong>construção</strong> de um habitus coletivo que definiu a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de noperíodo. As próprias exposições podem ser analisa<strong>da</strong>s como representaçõesvisuais 456 , já que são compreendi<strong>da</strong>s “como modelos de mundo materialmenteconstruídos e <strong>visual</strong>mente apreensíveis”. 457 Para Barbuy, trata-se de um “veículopara instruir (ou industriar) as massas sobre os novos padrões <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>deindustrial (um dever-ser de ordem social)”. 458 De forma semelhante, Reberieux453 KUSAMITSU, Toshio. Great Exhibitions before 1851. History Workshop. n. 9. (Spring 1980): 70-89.apud The Books of the fairs. p. 5. http://microformguides.gale.com/Data/Introductions/10020FM.htm.Acesso em 25 de fevereiro de 2007 às 12:57h.454 BRIGGS, Asa. Exhibiting the Nation. History To<strong>da</strong>y, January 2000. p. 18455 Cf. PLUM, Werner. Exposições mundiais no s<strong>é</strong>culo XIX: espetáculos <strong>da</strong> transformação sócio-<strong>cultura</strong>l.Bonn : Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979. e REBERIOUX, Madeleine. Approches de l’histoire de expositionsuniverselles à Paris du Second Empire a 1900. Bulletin du Centre d’histoire <strong>é</strong>conomique et sociale de lar<strong>é</strong>gion lyonnaise, n. 1, pp. 1-17, 1979.456 BARBUY, Heloisa. A exposição universal de 1889 em Paris. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 24.457 Ibid., p. 17.458 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 220considera que as Exposições são criações do mais alto grau de representaçõesmentais e de imaginários coletivos. 459As grandes feiras privilegiavam a exibição e aquisição de conhecimentossobre tecnologias, lugares e socie<strong>da</strong>des distantes, divulgando um saber compretensões enciclop<strong>é</strong>dicas e ideais evolucionistas. Mas, ao mesmo tempo, atuavamcom propósitos de entretenimento e espetáculo. As Exposições ofereciam odeslumbre que a tecnologia podia proporcionar, de um <strong>olhar</strong> para o passado apartir do ponto de vista privilegiado do homem moderno, senhor de suasuperiori<strong>da</strong>de sobre a natureza, mas tamb<strong>é</strong>m de um <strong>olhar</strong> para o futuro a partir <strong>da</strong>spossibili<strong>da</strong>des sugeri<strong>da</strong>s pelos novos inventos e descobertas. Neste contexto, asExposições amplificaram o mito do novo e o conceito de “socie<strong>da</strong>de doespetáculo” 460 , baseado na indústria moderna, onde o “desenrolar <strong>é</strong> tudo”. 461Apesar de Guy Debord ter demarcado a d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1920 como o início do queconceituou como socie<strong>da</strong>de do espetáculo 462 , em nosso ponto de vista esteprocesso <strong>é</strong> anterior. Iniciou-se no s<strong>é</strong>culo XIX, predominantemente na sua segun<strong>da</strong>metade, com as mu<strong>da</strong>nças urbanas e com o início <strong>da</strong>s Exposições Universais.Nossa convicção encontra apoio em textos de Walter Benjamin e T. J. Clark. ParaBenjamin, foi a partir <strong>da</strong>s exposições universais que o valor de troca <strong>da</strong>smercadorias passou a ser idealizado, relegando o valor de uso para o segundoplano. Neste momento, inaugura-se uma “fantasmagoria a qual o homem seentrega para divertir-se”. 463 Clark, considerando as dificul<strong>da</strong>des de definição dosconceitos de “espetáculo” e “socie<strong>da</strong>de do espetáculo”, aponta as origens dotermo para a d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1960 nos estudos teóricos do grupo InternacionalSituacionista, interessado em “regular ou suplantar a esfera do pessoal, doprivado, do cotidiano”. 464 Para Clark, embora reconhecendo a impossibili<strong>da</strong>de deuma temporali<strong>da</strong>de precisa, a origem do espetáculo coincide com o modernismo.As novas formas de vi<strong>da</strong> e lazer encaminhavam “um movimento em direção aomundo dos grands boulevards e grands magasins, bem como <strong>da</strong>s grandes459 REBERIOUX, M. op. cit. p. 3.460 DEBORD, Guy. A socie<strong>da</strong>de do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004.461 Ibid., p. 17.462 DEBORD, Guy. Comentários sobre a socie<strong>da</strong>de do espetáculo. In: A socie<strong>da</strong>de do espetáculo. Rio deJaneiro: Contraponto Editora, 2004. p. 168-169.463 BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do s<strong>é</strong>culo XIX. . In: Passagens. Belo Horizonte:Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. p. 44.464 CLARK, T. J. A pintura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. São Paulo:Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2004. p. 42-43.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 221indústrias que vinham com eles, do turismo, <strong>da</strong> recreação, <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> e <strong>da</strong>exibição”. 465A questão do fun<strong>da</strong>mento social do espetáculo <strong>é</strong> rechaça<strong>da</strong> por MichelFoucault. O estudo <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de poder <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de moderna leva Foucaulta afirmar que “nossa socie<strong>da</strong>de não <strong>é</strong> de espetáculos, mas de vigilância”. 466 Comoobserva Tony Bennett, Foucault chega a esta conclusão ao analisar o momento emque a punição deixa de ser aplica<strong>da</strong> como um espetáculo de exibição de poder.Para Bennett, este enfoque limita uma visão mais ampla de uma retórica do poderque deveria tamb<strong>é</strong>m se apoiar no complexo exibicionário – um poder que semanifesta em sua habili<strong>da</strong>de de organizar e coordenar “uma ordem <strong>da</strong>s coisas” eum lugar para as pessoas em relação a esta ordem. 467 A combinação entrevigilância e espetáculo, leva Bennett a apresentar, não sem críticas, a sugestão deGraeme Davison de que, se o panóptico <strong>é</strong> a representação arquitetônica do poder,o Palácio de Cristal, palco <strong>da</strong> primeira Exposição Universal, reverte o princípio dopanóptico na medi<strong>da</strong> em que fixa os olhos <strong>da</strong> multidão sobre um fascinanteconjunto de mercadorias. “O Panóptico foi projetado de um modo que todospudessem ser vistos; o Palácio de Cristal foi desenhado de modo que todospossam ver”. 468 Para Bennett, a peculiari<strong>da</strong>de do complexo exibicionário não deveser procura<strong>da</strong> na reversão dos princípios do Panóptico, mas na incorporação decertos aspectos deste princípio (e tamb<strong>é</strong>m do panorama), na formação de umatecnologia <strong>da</strong> visão que sirva não para atomizar ou dispersar a multidão, mas pararegulá-la. Deste modo, a multidão torna-se visível para si própria, constituindoparte do próprio espetáculo. Neste contexto, o autor reproduz uma instrução dotexto “Short Sermon to Sightseers” <strong>da</strong> Exposição Pan-Americana de 1901: “Porfavor, ao passar por estes portões, lembre-se de que você <strong>é</strong> parte deste show”. 469 Ainterativi<strong>da</strong>de antecipa<strong>da</strong> sugere que não há espetáculo sem a mediação do465 Ibid. p. 43-44.466 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. p. 178.467 BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex. In: DIRKS, N. B., ELEY, G. e ORTNER, Sherry B. (ed.)Culture / Power / History. New Jersey: Princeton University Press, 1994. p. 130.468 DAVISON, Graeme. Exhibitions. Australian Cultural History (Canberrra: Australian Academy of theHumanities and the History of Ideas Unit, A. N. U.), no. 2 (1982/3) 7. apud BENNETT, T. op. cit., p. 128.469 Citado por HARRIS, Neil . Museums, merchandising and popular taste: The struggle for influence. InQUIMBY, I. M. G. (ed) Material Culture and the Study of American Life. New York: W. W. Norton, 1978. p.144. apud BENNETT, T. op. cit., p. 132.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 222espectador. 470 O <strong>olhar</strong> torna-se porta de entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência moderna e suaformulação algo que pode ser aprendido.Ampliando as articulações institucionais de poder estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s por Foucault,Bennett observa que há uma ampla gama de outras instituições – museus dehistória e ciências naturais, dioramas e panoramas, exibições nacionais einternacionais, al<strong>é</strong>m de galerias e lojas de departamento – que serviram de espaçopara o desenvolvimento e circulação de novas disciplinas e, tamb<strong>é</strong>m, para odesenvolvimento de novas tecnologias de visão. 471 Deste modo, sugere Bennett,um complexo disciplinar e de relações de poder seria formado a partir <strong>da</strong>sinstituições de exibição, em justaposição ao “arquip<strong>é</strong>lago carcerário”desenvolvido por Foucault. 472 Para Bennett, as instituições que compõem ocomplexo exibicionário atuam na transferência de objetos e corpos de espaçosprivados e fechados para arenas públicas onde se constituem em veículos para ainscrição e divulgação de diferentes mensagens de poder para to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de. 473O <strong>olhar</strong> passa a ser compreendido em sua dimensão participativa. A exposição ao<strong>olhar</strong> garante a participação e a interação do homem moderno. Sob este ponto devista, as Exposições Universais, inicia<strong>da</strong>s na Londres em 1851, teriam atuado naordenação de objetos para a inspeção pública e, simultaneamente, na ordenação dopúblico que os inspeciona. A exibição <strong>da</strong> produção industrial ofereciacontraparti<strong>da</strong> à instrução de uma nova experiência <strong>visual</strong>.Neste contexto, cabe chamar a atenção para o destaque <strong>da</strong>do à questão <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. No espaço <strong>da</strong>s Exposições, as mercadorias e máquinas encontravamseorganiza<strong>da</strong>s de forma a serem vistas, “contempla<strong>da</strong>s como ícones dos novostempos e do poder de criação e inventiva <strong>da</strong> indústria humana e não para seremum mercado de compra ou intercâmbio desses mesmos produtos”. 474 Apesar de setratarem de modelos bastante simples, na Exposição de Londres em 1851 (Figura140), foram expostas praticamente to<strong>da</strong>s as máquinas existentes, muitas emoperação, para a admiração do público. A gravura de C. T. Dolby (Figura 141)mostra a máquina de dobrar envelopes desenvolvi<strong>da</strong> por Edwin Hill and Warren470 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, <strong>cultura</strong> e hegemonia. Rio deJaneiro: Editora UFRJ, 2001.471 BENNETT, T. op. cit., p. 123.472 Id.473 Ibid. p. 124.474 NEVES, Margari<strong>da</strong> de Souza. As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: Centro de Ciências Sociais PUC-Rio, 1986. (<strong>da</strong>tilografado). p. 26.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 223de la Rue e exibi<strong>da</strong> na Exposição de Londres de 1851 para o encantamento dosvisitantes que podiam assistir o processo e ter acesso ao seu resultado: 2700envelopes por hora. At<strong>é</strong> então os envelopes eram dobrados manualmente e umaboa produção garantia apenas 2000 peças por dia.Figura 140. Estandes de máquinas: motores Whitworth ebomba centrifuga Appold. John Johnson Collection. BodleianLibrary. University of Oxford. Disponível em: (7/02/08).Figura 141. Máquina de envelopes no estande De la Rue’sStationery. John Johnson Collection. Bodleian Library.University of Oxford. Disponível em: (7/02/08).No texto original que acompanha a gravura do estande de máquinas lê-se:“quanto mais podemos diminuir o trabalho do homem, que Deus pretendia comoseu castigo, mais próximos estamos de retirar a sua maldição, e mais nosaproximamos <strong>da</strong> nossa perfeição original”. Esta passagem justifica, em parte aadmiração pela máquina, que aqui <strong>é</strong> retrata<strong>da</strong> como salvadora. O deslumbramentofrente às máquinas acompanhou praticamente to<strong>da</strong>s as Exposições realiza<strong>da</strong>s. NaExposição Universal de 1889 em Paris, os <strong>olhar</strong>es foram assombrados pela


O OLHAR INOCENTE É CEGO 224aparente infinita varie<strong>da</strong>de de modelos e aplicações. Nas palavras de um autorcontemporâneo:Há ro<strong>da</strong>s que giram tão rápido que na<strong>da</strong> mais se distingue de sua forma. Obatimento cadenciado <strong>da</strong>s correias de transmissão não cansa os ouvidos, os olhostêm mil coisas para ver; <strong>é</strong> o poema do ferro, desenrolando-se em estrofes fe<strong>é</strong>ricas.E que varie<strong>da</strong>de! 475Benjamin, ao descrever como as multidões passaram a conhecer o prazer apartir do espetáculo com as Exposições Universais, observa como estedeslumbramento era voltado para a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de: “tudo <strong>olhar</strong>, na<strong>da</strong> tocar”. 476 Semdúvi<strong>da</strong>, há nesta id<strong>é</strong>ia a evidência de uma nova constituição perceptiva onde osentido <strong>da</strong> visão <strong>é</strong> privilegiado e reverenciado como porta de entra<strong>da</strong> de uma novaformulação social para a qual se buscava amplo apoio.As Exposições Universais apresentam-se como um campo de formação <strong>da</strong><strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, seja na arquitetura – construí<strong>da</strong> especialmente para o evento oucomo parte de uma exibição específica - na ornamentação e no design dosprodutos expostos, na organização dos produtos exibidos, e, por fim, nasdiscussões contemporâneas que acompanharam estas exibições caracterizando,muitas vezes, a pe<strong>da</strong>gogia de uma nova <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de onde todos os elementosanteriores mesclam-se em uma ampla formulação. Para Siegfried Giedion asExposições Universais aproximavam-se a Gesamtkunstwerke – obras de arte total:To<strong>da</strong>s as regiões, e mesmo, em uma retrospectiva, to<strong>da</strong>s as <strong>é</strong>pocas. Da agri<strong>cultura</strong> emineração, <strong>da</strong> indústria e <strong>da</strong>s máquinas, mostra<strong>da</strong>s em funcionamento, at<strong>é</strong> asmat<strong>é</strong>rias-primas e o material manufaturado, at<strong>é</strong> a arte e o artesanato. Há nisso tudouma necessi<strong>da</strong>de singular de síntese prematura, que <strong>é</strong> própria do s<strong>é</strong>culo XIXtamb<strong>é</strong>m em outros domínios – pensemos na obra de arte total. 477A comparação de Giedion parte <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nova experiência <strong>visual</strong>,onde se combinam as maquinarias tecnológicas com a arte, os artefatos de guerracom os produtos de mo<strong>da</strong> e os negócios com o prazer e o entretenimento. 478 Destemodo, consideramos que as Exposições Universais inicia<strong>da</strong>s no s<strong>é</strong>culo XIX475 DUMAS, F. G. (org.); FOUCARD (red.). Revue de l’Exposition universelle de 1889. Paris: Motteroz/Baschet, 1889. v. 1. p. 222. apud BARBUY, H. op. cit., p. 70. (grifo nosso)476 BENJAMIN, W. Passagens... p. 236. [G 16,6].477 GIEDION, Sigfried. Bauen in Frankreich. Leipzig e Berlim, 1928. p. 37. apud BENJAMIN, W.Passagens... p. 211. [G 2,3].478 BUCK-MORSS, Susan. Dial<strong>é</strong>tica do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto <strong>da</strong>s Passagens. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2002. p. 116.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 225constituem um palco privilegiado para a observação <strong>da</strong> <strong>construção</strong> e pe<strong>da</strong>gogia deuma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> a partir do processo de modernização do ocidente.4.2. Diversão pe<strong>da</strong>gógica ou pe<strong>da</strong>gogia do entretenimentoO fato de compreendermos as Exposições Universais como difusores devalores ou, ain<strong>da</strong>, como inculcadores simbólicos 479 de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>moderna, permite-nos sugerir, em relação à <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, a existência de um“projeto pe<strong>da</strong>gógico”, ou pelo menos, uma intenção instrucional por parte dosexpositores, homens de negócios e poderes públicos. Este pensamento buscareforço na afirmação de Reberioux de que as exposições colocavam-se como umatentativa de fazer admitir a industrialização a uma socie<strong>da</strong>de majoritariamenterural. 480 Em outras palavras, buscava-se “educar” as massas em relação a ummodelo de vi<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentado na socie<strong>da</strong>de industrial e esta intenção encontravasecompletamente basea<strong>da</strong> no estímulo a uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> nascente. Barbuyobserva que os organizadores e cronistas <strong>da</strong>s Exposições Universais, em muitosmomentos, “referem-se a suas funções instrutivas”. 481 As mostras específicassobre história do trabalho, história <strong>da</strong> habitação, t<strong>é</strong>cnicas de higiene e, tamb<strong>é</strong>m,sobre as nações coloniza<strong>da</strong>s, de fato, poderiam referir-se, respectivamente, àhistória <strong>da</strong>s t<strong>é</strong>cnicas de produção industrial e demonstrações <strong>da</strong>s mais recentestecnologias, como o ferro na arquitetura, mas, tamb<strong>é</strong>m, à apresentação de modosde vi<strong>da</strong>s atrasados – dos colonizados, considerados atados à pr<strong>é</strong>-moderni<strong>da</strong>de –como forma de estabelecer contraste e valorizar o homem moderno.O princípio pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong>s exposições era baseado no conceito de “exporid<strong>é</strong>ias para uma audiência ignorante em uma linguagem que ela pudesse entenderde modo a exercer influência sobre este público”. 482 As primeiras Exposiçõesseguiam vários objetivos: aprimorar o gosto <strong>da</strong> classe m<strong>é</strong>dia, apresentar opções demelhoramento às manufaturas, e educar e moralizar a classe operária. 483 Em 1874,479 BOURDIEU, Pierre et PASSERON, J. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 121. Os autores mencionam violência simbólica e inculcação emcontraponto à noção de um aprendizado intuitivo e ingênuo.480 REBERIOUX, M. op. cit., p. 10.481 BARBUY, H. op. cit., p. 54.482 GREENHALGH, P. op. cit., 19.483 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 226por exemplo, o guia oficial <strong>da</strong> Exposição de Londres afirmava que o objetivo <strong>da</strong>sexposições não era simplesmente atrair as massas, mas promover “a instrução dopúblico em arte, ciência e manufatura” atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> exposição de objetosselecionados. 484 A preocupação com a educação, presente em to<strong>da</strong>s as exposições,apontava em diversas direções. De um lado, o caráter didático-pe<strong>da</strong>gógico deformar, instruir, levar ao novo, aproximar <strong>da</strong>s descobertas t<strong>é</strong>cnicas e científicas eincutir ideais de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, trabalho e moderni<strong>da</strong>de. De outro lado, surgia tamb<strong>é</strong>ma preocupação com a habili<strong>da</strong>de t<strong>é</strong>cnica e o aprimoramento do profissional <strong>da</strong>indústria. Em paralelo a este último ponto, buscava-se tamb<strong>é</strong>m o direcionamentodo gosto do público no sentido de um “refinamento”, assim como tamb<strong>é</strong>m dosdesigners e dos demais envolvidos no processo industrial a partir <strong>da</strong> <strong>visual</strong>izaçãoem termos comparativos com o que era produzido em todo o planeta.O elemento educacional que apoiava a realização <strong>da</strong>s Exposições favoreceua ocorrência de diversos congressos e conferências paralelas, algumas acadêmicase outras direciona<strong>da</strong>s para a elaboração de propostas e sugestões de caráterconvencional e regulador. Já nas primeiras Exposições surgiram proposiçõescomo o plano francês de um sistema geral de pesos e medi<strong>da</strong>s, a discussão sobreuma moe<strong>da</strong> universal, as sugestões para um esquema internacional de cores e umanomenclatura científico-tecnológica universal. 485 Estas propostas evidenciamsinais de uma globalização crescente e, de fato, algumas delas surtiram efeito anosdepois como, por exemplo, a implantação de um sistema de medi<strong>da</strong>s, adotado em1875 na Convenção M<strong>é</strong>trica Internacional.A partir <strong>da</strong> Exposição Universal de 1878, realiza<strong>da</strong> em Paris, os congressosinternacionais especializados passaram a ser considerados parte integrante <strong>da</strong>sExposições. Em paralelo ao evento deste ano, realizaram-se 32 congressos quetratavam de assuntos tão diversos como demografia, arquitetura, higiene,homeopatia e proprie<strong>da</strong>de industrial. 486 Alguns anos depois, na ExposiçãoUniversal de 1889 em Paris, os 69 congressos realizados reuniram 20.000pessoas. 487 Dentre estes, chama-nos a atenção a realização do CongressoInternacional de Fotografia. O relatório e as atas deste encontro evidenciam os484 London International Exhibition 1874. Official Guide (Illustrated). London, J. M. Johnsons and Sons,1874. apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 19.485 PLUM, W. op. cit., p. 85.486 SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte et RASMUSSEN, Anne. Les fastes du progrès. Le guide desExpositions universelles 1851-1992. Paris: Flammarion, 1992. p. 100.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 227esforços para aproximar a fotografia de bases cientificas a partir de discussõesrelaciona<strong>da</strong>s aos efeitos <strong>da</strong> luz, às questões relativas à proprie<strong>da</strong>de dos negativos e<strong>da</strong>s reproduções e à uniformização <strong>da</strong> nomenclatura. 488 Decisões toma<strong>da</strong>s nesteencontro levaram à supressão de alguns termos como “gliptografia” e “fototipia” eà determinação do emprego do termo “foto”, por sua associação com a ação <strong>da</strong>luz, alia<strong>da</strong> à terminação “grafia”. Entre estas duas palavras, deveria ser incluído ovocábulo correspondente ao procedimento, o que resultava em nomes como“fotocromatografia”. 489 O esforço pela adoção de convenções em áreas de recentedesenvolvimento tecnológico, como <strong>é</strong> o caso <strong>da</strong> fotografia na Exposição de 1889,sugere, al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> visão de um mundo que se pretende globalizado, a compreensão<strong>da</strong> utilização de novas tecnologias como um elemento fun<strong>da</strong>mental eindispensável na atualização do capital. Mas, acima de tudo, parece demonstrar anecessi<strong>da</strong>de de convenções e acordos simbólicos para o sucesso de implantaçãodesta tecnologia.Apesar <strong>da</strong>s Exposições realiza<strong>da</strong>s a partir de 1851 apresentarem um vi<strong>é</strong>sinstrutivo, este não era pensado de forma dissocia<strong>da</strong> do entretenimento: a propostaera “ensinar divertindo”. 490 Ou seja, o aprendizado deveria ser naturalizado ouestilizado de forma a ocultar as intenções instrutivas, que por sua vezencontravam-se diretamente relaciona<strong>da</strong>s às novas formulações produtivas. Aduali<strong>da</strong>de entre instrutivo e recreativo esteve em grande evidência na Exposiçãode 1889. De acordo com Barbuy, comentava-se que a exposição parisienseanterior, de 1878, havia sido excessivamente s<strong>é</strong>ria, de modo que, na de 1889, oobjetivo era “menos instruir os cientistas do que maravilhar os leigos”. 491 Oaspecto de entretenimento <strong>é</strong> evidenciado por Benjamin, para quem o objetivo <strong>da</strong>sexposições era o divertimento <strong>da</strong>s classes trabalhadoras. 492Ao longo do tempo, o espírito enciclop<strong>é</strong>dico foi cedendo espaço ao lúdico eao espetáculo nas Exposições Universais. Pesavento questiona se estasmodificações refletiam a influência do público sobre os organizadores ou se osempresários, homens de ciência e burocratas rendiam-se, “vencidos nos seuspropósitos pe<strong>da</strong>gógicos e cientificistas, pela força irresistível <strong>da</strong> indústria do lazer,487 Ibid., p. 117.488 BARBUY, H. op. cit., p. 34.489 Id. Cf menção ao relatório do Congresso.490 Ibid., p. 54.491 L’Exposition de Paris, 1889, v. 3/4:98. apud BARBUY, H. op. cit., 54.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 228do lucro fácil <strong>da</strong> opereta e do parque de diversões”. 493 Em nossa opinião,dificilmente se poderá chegar a uma explicação consistente para osdesdobramentos e modificações que foram acontecendo no escopo <strong>da</strong>s ExposiçõesUniversais. Al<strong>é</strong>m do que, o espetáculo parece se encontrar na raiz <strong>da</strong>s Exposições,desde as primeiras mostras, assim como de outros eventos voltados para asmassas. O “lazer eminentemente didático” <strong>da</strong>s Exposições <strong>é</strong> compatível comoutras formas urbanas que surgiram no mesmo período, como os parques públicose de diversões, museus e exposições de curiosi<strong>da</strong>des.Os laços de lazer e entretenimento que envolviam as Exposições não eramisentos de crítica por parte dos contemporâneos que consideravam o principalintuito do espaço a instrução: “este lado divertido e pueril, esta mistura de bazares,de espetáculos e de barracas forâneas que não atraem a turba senão a desviando detodo pensamento de estudo e que lhe dá uma sedução vulgar [...]”. 494 Apesardisso, diversas atrações volta<strong>da</strong>s para a pura diversão eram encontra<strong>da</strong>s emparalelo às finali<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas e de divulgação científica <strong>da</strong>s Exposições. NaExposição Universal de Paris de 1867, havia os caf<strong>é</strong>s-concerto e restaurantes queserviam comi<strong>da</strong>s típicas de várias partes do mundo com jovens garçonetesvesti<strong>da</strong>s com roupas tradicionais. Havia ain<strong>da</strong> uma rede de bateaux-mouches queconduzia a passeios no Sena. 495 O espaço para a diversão era principalmente umespaço social, onde surgiam as oportuni<strong>da</strong>des para ver e ser visto. As caricaturas<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca sugerem que entre os produtos expostos encontrava-se “variado númerode moças casadoiras, devi<strong>da</strong>mente acompanha<strong>da</strong>s por uma conveniente ‘tia’ maisidosa”. 496Embora as Exposições, assim como as vitrines dos grandes magasins,encontrem-se diretamente relaciona<strong>da</strong>s à busca por “novi<strong>da</strong>des”, as primeiras,como observa Buck-Morss, não eram uma meta financeira em si mesma. Assim, ocom<strong>é</strong>rcio de mercadorias era menos significativo do que o negócio deentretenimento de massas 497 , ou, se preferirmos, <strong>da</strong> divulgação pe<strong>da</strong>gógica de uma492 BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do s<strong>é</strong>culo XIX... p. 44.493 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições universais. Espetáculos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de do s<strong>é</strong>culo XIX. SãoPaulo: Editora Hucitec, 1997. p. 178.494 Le Correspon<strong>da</strong>nt. Paris, 25 jul. 1867, p. 621. apud PESAVENTO, S. op.cit., p. 129.495 ALTWOOD, John. The Great Exhibitions. Londres, Studio Vista, s. d., p. 34. apud PESAVENTO, S. op.cit., p. 129.496 L’Illustration Française. Paris, 24 abr. 1867, p. 264. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 129.497 BUCK-MORSS, Susan. Dial<strong>é</strong>tica do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto <strong>da</strong>s Passagens. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2002. p. 118.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 229nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>. Al<strong>é</strong>m disso, abria-se espaço para a diversão como uma novaesp<strong>é</strong>cie de consumo, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. É neste contexto que secompreende porque a organização de exposição de Nova York, de 1853, tenhasido entregue a Phineas Barnum, que havia se tornado conhecido a partir de seusshows de varie<strong>da</strong>de e, principalmente, do circo. 498 De fato, o entretenimento demassas mostrou-se logo um grande negócio. A Torre Eiffel, em menos de umano, já havia pagado os seus custos de <strong>construção</strong> e começava a <strong>da</strong>r lucro. 499 Écom esta moldura, formula<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> contradição entre o educacional e olúdico, que devemos analisar a participação <strong>da</strong>s Exposições Universais na fixaçãode uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna construí<strong>da</strong> ao longo do s<strong>é</strong>culo XIX.4.3. O Palácio de Cristal, uma Exposição para to<strong>da</strong>s as naçõesA primeira Exposição Universal foi realiza<strong>da</strong> em Londres em 1851 embora,segundo Henry Cole, figura chave do empreendimento, esta id<strong>é</strong>ia tivesse sidosugeri<strong>da</strong> por M. Buffet, então ministro do com<strong>é</strong>rcio francês. 500 Cole, que haviaanteriormente trabalhado na organização <strong>da</strong>s exposições nacionais inglesas,obteve o apoio <strong>da</strong> Rainha Vitória e do Príncipe Albert para organizar The GreatExhibition of the Works of Industry of All Nations, uma exposição de “to<strong>da</strong>s asnações”.Uma comissão de <strong>construção</strong> foi constituí<strong>da</strong> para organizar o evento eestabeleceu os princípios que deveriam nortear o projeto do pr<strong>é</strong>dio <strong>da</strong> Exposição.Ele deveria compreender em seu espaço algumas <strong>da</strong>s maiores construçõesexistentes no mundo, ser resistente ao fogo e favorecer a entra<strong>da</strong> de luz a partir doteto. Al<strong>é</strong>m disso, deveria poder ser construído em poucos meses com baixo custopor metro quadrado. Aumentando as dificul<strong>da</strong>des existentes, considerou-se, ain<strong>da</strong>,a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>construção</strong> abrigar quatro grandes olmos existentes no HydePark. Em certo sentido, como afirma Greenhalgh, o escopo <strong>da</strong> proposta498 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 224. [G 9,1].499 Ibid. p. 220. [G 6a,2].500 WAINWRIGHT, Clive. The making of the South Kensington Museum II. Collecting modernmanufactures: 1851 and the Great Exhibition. Journal of the History of Collections. 14. no. I (2002). London:Oxford University Press. p. 26


O OLHAR INOCENTE É CEGO 230praticamente definiu o tipo de pr<strong>é</strong>dio. 501 De modo que não constituiu surpresa ofato <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s propostas apresenta<strong>da</strong>s sugerir o uso de ferro e vidro. Noentanto, nenhuma <strong>da</strong>s soluções foi considera<strong>da</strong> pelo comitê de <strong>construção</strong> que sepôs a trabalhar sobre um projeto que não satisfazia às suas próprias condições.Neste contexto, entra em cena Joseph Paxton. A história usualmenteapresenta Paxton como o jardineiro-chefe do duque de Devonshire, para quemhavia construído uma estufa de ferro e vidro. Embora provavelmente este cargosignificasse a sua sobrevivência, a simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> condição parece destacar umageniali<strong>da</strong>de solta no tempo e no espaço: como um jardineiro, ain<strong>da</strong> que chefe,pode ser capaz de criar uma <strong>da</strong>s mais importantes construções do s<strong>é</strong>culo XIX? Defato, Paxton, al<strong>é</strong>m de seu envolvimento com paisagismo, era um atentoobservador dos avanços obtidos nas construções com ferro e vidro e um grandeconhecedor de estruturas e solucionador de problemas t<strong>é</strong>cnicos de arquitetura. 502Figura 142. Desenhos originais do Palácio de Cristal porJoseph Paxton. 11 June 1850.Disponível em: The Victorian Web (17/03/08)Figura 143. Levantando a viga mestrado corredor central. Construção doPalácio de Cristal. The IllustratedLondon News, 1851. Disponível em (17/03/08)O projeto de Paxton, cujos esboços foram preservados (Figura 142), não seencontrava entre os 233 apresentados à comissão de <strong>construção</strong>, mas obteve apoiopúblico após ser divulgado no Illustrated London News. Sua proposta gerou uma501 GREENHALGH, P. op. cit., p. 150-151.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 231impressão favorável pela segurança contra fogo, clari<strong>da</strong>de, rapidez de montagem ebaixo custo. 503 Como observa Walter Benjamin, “a primeira exposição universal ea primeira <strong>construção</strong> monumental de vidro e ferro!”. 504 De fato, a própria<strong>construção</strong> do Palácio de Cristal representava o modo de produção do s<strong>é</strong>culo XIX.Ele foi pr<strong>é</strong>-fabricado, produzido em partes padroniza<strong>da</strong>s por fornecedores locais emontado em tempo recorde. Embora a comissão de <strong>construção</strong> não tivesseespecificado claramente a existência temporária do pr<strong>é</strong>dio, a possibili<strong>da</strong>de dedesmontagem rápi<strong>da</strong> ao final do evento era bem vista. 505 A <strong>construção</strong> do Paláciode Cristal foi acompanha<strong>da</strong> pelo público, principalmente atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> imprensa. Asetapas eram ilustra<strong>da</strong>s no The Illustrated London News: o levantamento <strong>da</strong> vigamestra puxa<strong>da</strong> por cavalos (Figura 143), o transepto (Figura 144), o telhado(Figura 145), etc.Figura 144. Coluna do transepto. Construção doPalácio de Cristal. The Illustrated London News,1851. Disponível em The Victorian Web(17/0308).Figura 145. Levantando o telhado.Illustrated London News. 11 de dezembrode 1850. In: BRIGGS, Asa. Exhibiting theNation. History To<strong>da</strong>y, January 2000. p. 18Em termos formais e construtivos, pode-se afirmar que o Palácio de Cristalera absolutamente avançado para a sua <strong>é</strong>poca, tendo sido considerado um triunfo<strong>da</strong> lógica principalmente pela sua completa independência de antigas tradições502 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course materialby Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 51-53.503 BENJAMIN, W. Passagens... p. 213. [G 2a,8].504 Ibid. p. 212. [G 2a,7].505 A garantia de retira<strong>da</strong> do pr<strong>é</strong>dio ao final do evento, buscava atender às queixas e petições impetra<strong>da</strong>scontra a localização do evento em uma área exclusivamente residencial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 232arquitetônicas. 506 Na visão <strong>da</strong> imprensa contemporânea, o enorme número deuni<strong>da</strong>des padroniza<strong>da</strong>s 507 deveria funcionar como um “mecanismo perfeito” 508 :tamb<strong>é</strong>m a arquitetura já era vista um pouco como máquina. O princípio <strong>da</strong> pr<strong>é</strong>fabricação,que tornou possível o empreendimento, foi capaz de produzir um novoefeito est<strong>é</strong>tico, a partir <strong>da</strong> associação entre uniformi<strong>da</strong>de e monumentali<strong>da</strong>de.Al<strong>é</strong>m disso, o contraste entre a malha modular de vidro e ferro e a organici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>folhagem <strong>da</strong>s árvores tamb<strong>é</strong>m era impactante. Um <strong>da</strong>guerreótipo realizado à<strong>é</strong>poca <strong>da</strong> Exposição (Figura 146) sugere a dimensão do que poderia serexperienciado pelos contemporâneos: a monumentali<strong>da</strong>de opressiva e contagiante<strong>da</strong>s formas modernas experencia<strong>da</strong>s pela primeira vez.Figura 146. Daguerreótipo do interior do Palácio deCristal. John J E Mayall, 1851. Disponível em: (2/09/07).As novas tecnologias de impressão possibilitaram inúmeras representaçõesdo pavilhão. Diversas aquarelas e reproduções litográficas do Palácio de Cristaleram produzi<strong>da</strong>s para representar a grandeza <strong>da</strong> <strong>construção</strong> (Figura 147 e Figura148). Algumas reproduções, al<strong>é</strong>m de trazerem diferentes pontos de vista, utilizamt<strong>é</strong>cnicas novas ou pouco emprega<strong>da</strong>s anteriormente. É o caso <strong>da</strong> vista do Palácio506 PEVSNER, Nicolaus. High Victorian Design. A study of the Exhibits of 1851. London: ArchitecturalPress, 1951. p. 15.507 Segundo Pevsner, baseado em uma palestra <strong>da</strong><strong>da</strong> por Paxton no inverno de 1850-1851, foram 6.024colunas de 15 p<strong>é</strong>s de comprimento, 3.000 vigas de sustentação <strong>da</strong>s galerias, 1.245 vigas em ferro forjado e1.073.760 p<strong>é</strong>s quadrados de vidro. PEVSNER, N. op. cit., p. 15.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 233de Cristal e seu entorno o Hyde Park (Figura 149). George Baxter, autor dotrabalho, obteve a patente do processo que utilizava tinta a óleo sobre blocos demadeira ou metal em relevo. A seqüência de impressão era realiza<strong>da</strong> sobre umabase pr<strong>é</strong>-grava<strong>da</strong> em metal ou litografia. No exemplo aqui reproduzido, foramutilizados dez blocos de tinta. As reproduções eram vendi<strong>da</strong>s em um estande naprópria Exposição. 509Figura 147. Vista geral do Palácio de Cristal.Dickinson's comprehensive pictures of the GreatExhibition of 1851: from the originals painted forH.R.H. Prince Albert / by Messrs Nash, Haghe,and Roberts, R.A. London: Dickinson, Brothers,1854.Disponível em: National Museum of Science & Industry (2/09/07)Figura 148. Exterior do Palácio de Cristalcom Kensington Gardens', 1851. Litografiade Augustus Butler a partir de desenhooriginal. National Museum of Science & Industry (2/09/07)Figura 149. The Great Exhibition. Impressão em óleo por G. Baxter. Disponível em: (17/03/08).Outro exemplo interessante de material impresso <strong>é</strong> encontrado no rolo dequase nove metros de comprimento, desenvolvido pela equipe do IllustratedLondon News, com diversas cenas <strong>da</strong> Exposição (Figura 150). Ao contrário <strong>da</strong>speças anteriores, as ilustrações do Grand Panorama of the Great Exhibition of All508 Journal of Design and Manufactures, vol. 4, 1850/1851, p. 30 apud PEVSNER, N. op. cit., p. 15.509 Crystal Palace http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/fairy.htm. Acesso em 18 de março de2008 às 10:47h.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 234Nations não se propunham a ser afixa<strong>da</strong>s como um quadro, mas proporcionar umavisão panorâmica do evento para quem se propusesse a desenrolar a peça.Figura 150. "Grand Panorama of the Great Exhibition of All Nations". Illustrated London News.1851. Friends of the Library Fund, Cooper-Hewitt, National Design Museum Library. Disponívelem: Smithsonian Institution Libraries. (17/03/08)Muitas reproduções do Palácio de Cristal eram vendi<strong>da</strong>s como souvenirs,embora o cartão postal viesse a surgir apenas em 1869, na Áustria. 510 Diversosobjetos recebiam estampas ou ilustrações de modo a servir a este mesmo fim,como, por exemplo, lenços ilustrados (Figura 151), abridor de envelope (Figura152) e caixa para charutos com imagem do Palácio de Cristal (Figura 153). Adiversi<strong>da</strong>de e profusão deste tipo de artefato sinalizam dentro de uma moderna<strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> urbana, a reprodução de massa e os tímidos avanços do turismo.Serviam tamb<strong>é</strong>m como comprovar a participação no evento (o que Barthesposteriormente atribuiu à fotografia como um “estive lá”), fazendo esteacontecimento prolongar-se para al<strong>é</strong>m do seu tempo. Al<strong>é</strong>m disso, os souvenirsforneciam evidência para o que Benjamin chama de “compensação pelodesaparecimento de vestígios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de grande” 511 , podendo serinterpretados como “dispositivos para registrar e conservar rastros”. 512 SegundoBenjamin, para romper a anonimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana, buscam-se rastros deindividuali<strong>da</strong>de “entre quatro paredes”:“É como se fosse questão de honra não deixar de se perder nos s<strong>é</strong>culos, se não orastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos seus artigos de consumo e acessórios.Sem descanso, tira o molde de uma multidão de objetos; procura capas e estojospara chinelos e relógios de bolso, para termômetros e porta-ovos, para talheres eguar<strong>da</strong>-chuvas”. 513510ALMEIDA, Cícero Antônio F. de, VASQUEZ, Pedro Karp. Selos postais do Brasil. São Paulo:Metalivros, 2003. p. 30.511 BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charle Baudelaire... p. 43.512 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 261. [I 7,6].513 BENJAMIN, Walter. Obras escolhi<strong>da</strong>s III. Charle Baudelaire... p. 43.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 235Figura 152. Abridor de envelopes. Lembrança <strong>da</strong> GreatExhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library.University of Oxford. Disponível em: (21/07/07).Figura 151. Lenço para souvenir, comimpressão de caricaturas de estrangeiros eingleses, dentre estes o Príncipe Albert eJoseph Paxton. John Johnson Collection.Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em:(21/07/07).Figura 153. Caixa para charutos. Lembrança <strong>da</strong> GreatExhibition. John Johnson Collection. Bodleian Library.University of Oxford. Disponível em: (21/07/07).Figura 154. Navalha Sheffield Town. Produzi<strong>da</strong> por Hawcroft & Sons para a Exposição de1851, com o propósito de demonstrar a habili<strong>da</strong>de dos artesãos <strong>da</strong> companhia. O Palácio deCristal aparece reproduzido na lâmina. The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue,London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. 222O evento <strong>da</strong> Exposição de 1851 produziu forte impacto nos contemporâneose os impressos e souvenirs atuaram de forma simbólica na sua divulgação.Estruturas similares foram construí<strong>da</strong>s em feiras de Dublin, Nova York (Figura155), Munique e Amsterdã e sua forma, durante muito tempo, serviu de inspiraçãopara artefatos de diversos tipos, como a gaiola que vemos reproduzi<strong>da</strong> no folhetopublicitário (Figura 156).


O OLHAR INOCENTE É CEGO 236Figura 155. Palácio de Cristal de Nova York para aExposição <strong>da</strong> Indústria de to<strong>da</strong>s as Nações. Litografia, 1853.Harry T. Peters 'America on Stone' Collection, NationalMuseum of American History, Smithsonian Institution.Disponível em: (2/09/07)Figura 156. Folheto de fabricantede gaiolas. Evanion Collection ofEphemera. Collect Britain. TheBritish Library. Disponível em:(17/03/08)A presença destes objetos e reproduções nas casas contemporâneas irradiavaefeitos bem longe do Palácio de Cristal. Benjamin cita um autor alemãocontemporâneo que apresenta a dimensão do sonho sugerido pelas novaspossibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material:“Eu mesmo me lembro de quando, em minha infância, a notícia do Palácio deCristal chegou at<strong>é</strong> nós na Alemanha, como as reproduções eram prega<strong>da</strong>s nasparedes de salas burguesas em longínquas ci<strong>da</strong>des provincianas. Tudo aquilo queimaginávamos de antigos contos de fa<strong>da</strong>s com suas princesas em caixões de cristal,com suas rainhas e elfos que habitavam casas de cristal, tudo isto se materializou...e estas impressões duraram d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s”. 514Em meio à profusão de imagens produzi<strong>da</strong>s para retratar a moderni<strong>da</strong>de doPalácio de Cristal há poucas evidências fotográficas. Esta tecnologia, cria<strong>da</strong> em1839, ain<strong>da</strong> não encontrava condições favoráveis de reprodução, sendo usa<strong>da</strong>muitas vezes apenas como base para a criação de uma gravura. Apesar disso,apenas quatro anos depois do evento, em 1855, durante a remontagem do Paláciode Cristal em Sydenham ao sul de Londres, o fotógrafo Philip Henry Delamotteproduziu importantes imagens que retratam não apenas a grandiosi<strong>da</strong>de do pr<strong>é</strong>diode Paxton, mas tamb<strong>é</strong>m alguns detalhes surpreendentes. As fotos que acentuam asperspectivas (Figura 157, Figura 158), ressaltam sua magnitude. A delicadeza dos514 Julius Lessing, Das halbe Jahrhundert der Westausstellungen, Berlim, 1900, pp. 6-10 apud BENJAMIN,.Passagens... p. 219-220. [G 6; G 6 a ,1].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 237ornamentos utilizados indica um esmero dentro <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de (Figura 159,Figura 160)As fotografias de Delamotte apresentam uma outra dimensão do Palácio deCristal, inclusive, em sua relação com a figura humana (Figura 159). Parece queao expor a remontagem do edifício, com vigas de ferro espalha<strong>da</strong>s pelo chão e asestátuas ain<strong>da</strong> não posiciona<strong>da</strong>s, as entranhas <strong>da</strong> <strong>construção</strong> moderna se fazemevidentes – longe dos drapeados e dos objetos excessivamente ornamentados queeram vistos na exibição.Figura 157. Galeria superior. Palácio de Cristal.Philip Henry Delamotte, impressão fotográfica,1855. The British Library Board. Disponível em: (17/03/08)Figura 158. Conjunto de es<strong>cultura</strong>s. Palácio deCristal. Philip Henry Delamotte, imp.fotográfica, 1855. The British Library Board.Disponível em: (17/03/08)Figura 160. Detalhe <strong>da</strong> Figura159Figura 159. Palácio de Cristal. Philip Henry Delamotte,impressão fotográfica, 1855. The British Library Board. Disponível em: (17/03/08)


O OLHAR INOCENTE É CEGO 238As fotografias de Delamotte ressaltam a natureza proto-moderna de um dosmais importantes pr<strong>é</strong>dios do s<strong>é</strong>culo XIX (Figura 161), deixando evidente a suainfluência sobre as construções e eventos posteriores. Neste contexto, <strong>é</strong>importante destacar que sua forma foi obti<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>desapresenta<strong>da</strong>s e sem vínculos históricos com estilos anteriores. No entanto, nemtodos consideravam a <strong>construção</strong> uma maravilha do mundo moderno e o pr<strong>é</strong>diofoi muito criticado em sua própria <strong>é</strong>poca. Profecias macabras espalhavamameaças: o vento poria o pr<strong>é</strong>dio abaixo, a vibração do movimento <strong>da</strong>s pessoasdestruiria a <strong>construção</strong> e a expansão do ferro, com o calor do sol, aniquilaria oempreendimento. O arquiteto e teórico Augustus Welby Northmore Pugin chamouo Palácio de Cristal de “monstro de vidro”. Para Carlyle era uma “enorme bolhade sabão” e para Ruskin uma “estrutura de pepino” 515 ou ain<strong>da</strong>, apenas uma“estufa”. 516 A crítica maldosa de Ruskin carregava um elemento de ver<strong>da</strong>de já queJoseph Paxton havia anteriormente construído imensas estufas para o Duque deDevonshire. Entre os arquitetos que escreviam no Journal of Design andManufactures sobre o Palácio de Cristal em 1851, alguns se mostravam chocadoscom o padrão de gosto demonstrado: “a ausência de qualquer princípio de designornamental <strong>é</strong> evidente” e “o gosto dos produtores não <strong>é</strong> educado”. 517Figura 161. O transepto central. Palácio de Cristal. Philip HenryDelamotte, impressão fotográfica, 1855. The British Library Board.Disponível em: (17/03/08)515 Apud PEVSNER, Nicolaus. Origens <strong>da</strong> arquitetura moderna e do design. São Paulo: Martins Fontes,2001. p. 13.516 http://spencer.lib.ku.edu/exhibits/greatexhibition/sydenham.htm. Acesso em 22/7/2002 às 9:45 h.517 Apud PEVSNER, N. Origens... p. 11.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 239O final do evento foi acompanhado por uma grande discussão em relação aoque deveria ser feito com a estrutura em ferro e vidro. Alguns exaltavam apermanência do pr<strong>é</strong>dio no local <strong>da</strong> Exposição. Autori<strong>da</strong>des americanas sugeriamseu translado para os Estados Unidos e um arquiteto apresentou um projeto dereaproveitamento do material em uma torre de mais de 300 metros, a serconstruí<strong>da</strong> com o auxílio de elevadores a vapor. Em 1854, o Palácio de Cristal foireinaugurado em Sydenham como um espaço de eventos e concertos tendo sidodestruído por um incêndio em 1936. Ao tomar conhecimento do processo detransferência do pr<strong>é</strong>dio, John Ruskin escreveu um artigo onde criticou a apoteosedo ferro e do vidro e o excesso de devoção à mecânica <strong>da</strong> <strong>construção</strong>. Para esteautor, embora estas obras mereçam admiração, não se trata do mesmo tipo deadmiração devota<strong>da</strong> à poesia e à arte. 518As críticas não afastaram o público que comparecia em massa garantindo olucro do investimento. Em 1851, atraí<strong>da</strong>s por passagens e acomo<strong>da</strong>çõesacessíveis, pessoas que nunca haviam antes viajado lotaram o Palácio de Cristal.Todo mundo corria para ver a primeira Exposição Universal (Figura 162). Al<strong>é</strong>mdisso, como mencionamos anteriormente, algumas manufaturas estimulavam avisita de seus empregados com o intuito pe<strong>da</strong>gógico de ampliação dosconhecimentos práticos relacionados aos processos e materiais industriais, mas,tamb<strong>é</strong>m de forma sub-reptícia de “convencimento <strong>da</strong>s virtudes do capitalismo”. 519As visitas eram incentiva<strong>da</strong>s para to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população. Para isso, deum lado, se impuseram restrições – bebi<strong>da</strong>s alcoólicas e animais eram proibidos –e dias de preços especiais (shilling <strong>da</strong>ys). Os cartunistas dos jornais <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca sedeliciavam em exibir a admiração de pessoas mais simples e de áreas rurais com omundo novo que se abria à sua frente (Figura 163).518 RUSKIN, John. The opening of the Crystal Palace. In: SCHARF, Aaron et al. (ed.). Industrialisation andCulture. 1830-1914. London: The Open University Press, 1970. p. 298.519 PESAVENTO, S. op. cit., p. 120.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 240Figura 162. All the World Going to See the Great Exhibition of 1851, George Cruikshank(1792-1878), 1851. Disponível em: (3/06/07).Figura 163. Agricultores na Exibição. In: The IllustratedLondon News (19 July 1851): 101. Disponível em: The VictorianWeb (22/03/08)Estima-se que seis milhões de pessoas passaram pela primeira GrandeExposição de Londres ao longo de cinco meses e meio, embora apenas 1% destesteriam vindo de outros países, predominantemente <strong>da</strong> França. 520 As gravurasabaixo ilustram esta enorme movimentação. Enquanto a Figura 164 mostra umarua de Londres apinha<strong>da</strong> de pessoas onde quase na<strong>da</strong> se vê al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> multidão, aFigura 165 apresenta uma Manchester deserta. Todo mundo estava indo ver a


O OLHAR INOCENTE É CEGO 241grande exposição, como na gravura de George Cruikshank (Figura 162) onde umaglomerado de pessoas caminha na direção do Palácio de Cristal. O público afluíaem massa às exposições para se maravilhar com as novi<strong>da</strong>des do mundo dos bens:“A Europa se desloca para ver mercadorias”, afirma Taine em 1855. 521Figura 164. Londres em 1851. The Great Exhibition. JohnJohnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em: (21/06/07)Figura 165. Manchester em 1851. The Great Exhibition. JohnJohnson Collection. Bodleian Library. University of Oxford.Disponível em: (21/06/07)520 Museum of London. World city. Did people visit the Great Exhibition?http://www.museumoflondon.org.uk/archive/exhibits/worldcity/level4.asp?i=sm&shop=5&sub=95&baseqs=i%3Dsm521 Hippolyte Adolphe Taine (1828 - 1893), crítico e historiador francês em citação apresenta<strong>da</strong> porBENJAMIN, Walter. Paris, a capital do s<strong>é</strong>culo XIX... p. 43


O OLHAR INOCENTE É CEGO 242Trinta e oito anos depois, uma outra <strong>construção</strong> em ferro pr<strong>é</strong>-fabricado,desta vez para a Exposição Universal de Paris em 1889, tamb<strong>é</strong>m atraiu a mesmaon<strong>da</strong> de críticas. Tratava-se do projeto <strong>da</strong> Torre Eiffel, um monumento -arquitetônica e simbolicamente voltado para a racionali<strong>da</strong>de e o progressocientífico. Em 14 de fevereiro de 1887, o periódico Le Temps trouxe uma cartaaberta assina<strong>da</strong> por diversos artistas como Charles Gounod, Victorien Sardou,Alexandre Dumas, François Copp<strong>é</strong>e , Leconte de Lisle, Guy de Maupassant, SullyPrudhomme, Eugène Guillaume, dentre outros. 522 Este texto expressava aindignação contra a Torre Eiffel que, segundo seus signatários, ignorava o gosto ea história franceses em nome de uma “inútil e monstruosa Torre Eiffel”, jábatiza<strong>da</strong> de “torre de Babel”. Os artistas procuravam alertar contra a <strong>construção</strong> deuma “gigantesca e negra chamin<strong>é</strong> de usina” que viria a esmagar, com seu volumebárbaro, a Notre-Dame, a Sainte-Chapelle, a Torre Saint-Jacques [...] “todos osnossos monumentos humilhados, to<strong>da</strong>s as nossas arquiteturas diminuí<strong>da</strong>s”. Namesma publicação, Gustave Eiffel apresentou sua defesa. Em primeiro lugar,formalizou sua crença na beleza e harmonia <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> sua <strong>construção</strong> paralevantar a questão de que, na medi<strong>da</strong> em que este era um projeto desenvolvido porengenheiros, acreditava-se que a beleza não seria uma preocupação. Eiffel rebatiaperguntando se “nas nossas construções, ao mesmo tempo em que fazemos osólido e o duradouro, tamb<strong>é</strong>m não nos esforçamos para fazê-las elegantes?”. 523Para Eiffel, o primeiro princípio est<strong>é</strong>tico <strong>da</strong> arquitetura trata <strong>da</strong> determinação desuas linhas essenciais a partir <strong>da</strong> adequação à sua destinação, no caso <strong>da</strong> Torre,sua resistência contra o vento. Eiffel prosseguia afirmando que uma vez pronta, aTorre viria a ser a mais alta estrutura construí<strong>da</strong> pelo homem e que, tamb<strong>é</strong>m porisso, seria motivo de admiração e nunca de vergonha como sugeriam os artistas.Para finalizar, Eiffel considera que era chega<strong>da</strong> a hora de mostrar que a Françanão era apenas o país do divertimento, mas tamb<strong>é</strong>m dos engenheiros econstrutores que edificavam os monumentos <strong>da</strong> indústria moderna. O periódicoquestiona quem tem razão: “artistas ou engenheiros”? Apesar de algunssignatários terem se rendido posteriormente aos encantos <strong>da</strong> Torre, ain<strong>da</strong> pairamalgumas questões sobre esta disputa. A primeira pergunta que fazemos <strong>é</strong> serealmente os artistas encontravam-se dissociados dos “avanços modernos”.522 Le Temps. Paris, 14 f<strong>é</strong>vrier 1887.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 243Haveria uma descontinui<strong>da</strong>de entre a modernização industrial e a <strong>cultura</strong>moderna? Se respondermos afirmativamente a esta primeira questão, em quemedi<strong>da</strong>, isto teria dificultado uma aproximação entre arte e indústria? Seconsiderarmos que cabe aos artistas uma forma de “antecipação” <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>deatrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> arte, esta divergência parece criar uma clivagem definitiva, umaseparação de caminhos entre arte e “arte aplica<strong>da</strong>” onde, mais tarde, alinhou-se odesign. Neste momento, no entanto, a presente questão sugere uma contradição <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de que ressalta a discussão sobre os contrastes que acompanham aformulação do <strong>olhar</strong> moderno, um dos motes <strong>da</strong> nossa tese. De um lado aeficiência <strong>da</strong> máquina, do ferro, <strong>da</strong>s formas limpas e precisas. De outro, a ebuliçãode uma <strong>cultura</strong> fragmenta<strong>da</strong> e efervescente, caótica e entrópica. O <strong>olhar</strong> modernose constrói atrav<strong>é</strong>s dos rápidos movimentos sacádicos entre estas duasformulações.4.3.1. O Brasil nas festas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>deEmbora o Brasil tenha iniciado sua participação oficial nas ExposiçõesUniversais apenas em 1862 na Exposição de Londres 524 , houve uma modestaparticipação já na Primeira Exposição de 1851 com quatro expositores. 525 NaExposição realiza<strong>da</strong> em Paris, em 1855, independente <strong>da</strong> participação oficial, oBrasil, ao lado do Paraguai e <strong>da</strong>s Repúblicas do Prata, exibiu mat<strong>é</strong>rias-primasminerais, vegetais e animais, em uma atuação incipiente onde, segundo ummembro <strong>da</strong> comissão brasileira encarrega<strong>da</strong> de avaliar a exposição parisiense,“teria sido mais acertado e prudente proibir-se que se man<strong>da</strong>sse um só produtoque lembrasse o nome do Brasil; ao menos não teríamos este desprazer e teríamosbrilhado pela ausência”. 526Ao receber uma comunicação <strong>da</strong> exposição de objetos <strong>da</strong> indústria queaconteceria em Londres no ano de 1862, o Brasil iniciou negociações para aparticipação no evento. Ficou decidido que se realizariam exposições regionaispreparatórias de uma exposição nacional, para só então selecionar os produtos que523 Id.524 PEREIRA, M. op. cit., p. 84.525 SCHROEDER-GUDEHUS, B. op. cit., p. 60.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 244representariam a nação brasileira em Londres. 527 A morosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s negociações eos entraves burocráticos adiaram as exposições provinciais para novembro de1861 e a Primeira Exposição Nacional aconteceu no mês seguinte no pr<strong>é</strong>dio <strong>da</strong>Escola Central do Largo de São Francisco. O evento contou com a presença <strong>da</strong>família real e a execução <strong>da</strong> Marcha <strong>da</strong> Indústria, composta especialmente pelomaestro Antonio Carlos Gomes. 528 Apesar disso, lamentou-se a “quase totalausência de inventos” na Exposição Nacional do Rio de Janeiro, a primeira a serrealiza<strong>da</strong> em um país em desenvolvimento.A id<strong>é</strong>ia de levar o Brasil a participar <strong>da</strong>s festas <strong>da</strong> modernização e doprogresso aparecia como uma possibili<strong>da</strong>de de, mesmo correndo o risco de exporsuas fraquezas às nações avança<strong>da</strong>s, atrair a atenção de investidores estrangeiros.De forma contraditória, pairava um desejo de mu<strong>da</strong>nça e inovação, lado a ladocom a manutenção de um regime escravista voltado para a exportação de produtosagrícolas. Pesavento observa que, na medi<strong>da</strong> em que a agri<strong>cultura</strong> era o principalfun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> riqueza do país, era nela que a nação investia. A <strong>cultura</strong> modernapretendi<strong>da</strong> era volta<strong>da</strong> para o desenvolvimento de base agrícola 529 , deste modo, abusca pela renovação tecnológica voltava-se para m<strong>é</strong>todos, fabricação deinstrumentos e máquinas para a agri<strong>cultura</strong>. De fato, empreendimentos como aagri<strong>cultura</strong> e a criação de gado eram considerados indústrias, assim como asativi<strong>da</strong>des extrativas ou de coleta. À <strong>é</strong>poca, o sentido do termo indústria era amploe compreendia “to<strong>da</strong> e qualquer forma de ativi<strong>da</strong>de humana, independente do graude beneficiamento, do emprego de tecnologia ou <strong>da</strong>s relações sociaissubjacentes”. 530 Deste modo, no Brasil, o desejo de melhoramento dos “processosindustriais” desconsiderava questões como a divisão de tarefas e produção emmassa, levando em conta a produção de caf<strong>é</strong> e açúcar. Al<strong>é</strong>m disso, o fato do Brasilcontar com um reduzido mercado de mão-de-obra livre reforçou uma s<strong>é</strong>rie dediferenças em relação às Exposições europ<strong>é</strong>ias como, por exemplo, a preocupaçãoem seduzir a elite local para “os novos caminhos que se abriam com o progressot<strong>é</strong>cnico e que reverteriam em vantagens econômicas concretas”. 531 Em outras526 Auxiliador <strong>da</strong> Indústria Nacional, n. 23, jul. 1855 – jan. 1856, p. 320. Nota 1. apud PESAVENTO, S. op.cit., p. 97.527 PESAVENTO, S. op. cit., p. 99.528 Ibid., p. 100.529 Ibid., p. 102.530 Ibid., p. 105.531 Ibid., p. 107.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 245palavras, a participação do Brasil nas Exposições procurava, em primeiro lugar,dirigir a atenção <strong>da</strong> elite local e, em segundo lugar, atrair a participação <strong>da</strong>economia estrangeira. Das intenções educativas que permeavam as ExposiçõesUniversais, não há sinais. No Brasil, a <strong>cultura</strong> moderna era ministra<strong>da</strong> apenas àselites.A Exposição Nacional do Rio de Janeiro de 1861 não cumpriu com sucessoo seu papel de selecionar produtos para a Exposição londrina do ano seguinte. ORio Grande do Sul, por exemplo, não conseguiu enviar os seus produtos emtempo hábil para a Exposição <strong>da</strong> Corte. 532 Como observa Pesavanto, os nomes dosexpositores <strong>da</strong> Exposição Nacional não remetem à manufaturas, mas às estânciasou fazen<strong>da</strong>s onde se realizavam trabalhos manuais sem fins lucrativos. De umamaneira geral, o beneficiamento destes produtos era “obra do trabalho manual e<strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de t<strong>é</strong>cnica de um artesão, integrado a uma ativi<strong>da</strong>de primáriadominante”. 533 As raras exceções eram encontra<strong>da</strong>s em alguma pequenamanufatura de couro ou no processo de conservação de carne e, definitivamente,não foram estes tímidos esforços que marcaram a participação do Brasil naLondres de 1862. As máquinas descritas foram apresenta<strong>da</strong>s em “estampasphotographicas” porque não havia espaço para acomo<strong>da</strong>r os artefatos no localdestinado aos produtos do Brasil. 534 O país se fez representar por objetos como“um quadro feito a bico de agulha sobre o fundo de um prato de porcelana branca,enfumaçado a luz de um candeeiro, feito e exposto pelo Sr. C. Schlapritz,provincia de Pernambuco” (Figura 166). Uma ilustração do estande do Brasil emLondres apresenta peles de animais, redes, chap<strong>é</strong>us e botas (Figura 167). Destemodo, frente ao avanço t<strong>é</strong>cnico e científico exposto pelas nações europ<strong>é</strong>ias, <strong>é</strong>compreensível que ao Brasil coube a identificação com o “exótico”.532 Ibid., p. 108.533 Ibid., p. 109.534 Catálogo dos productos nacionaes e industriaes remetidos para a Exposição Universal de Londres. In:Recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> Exposição Nacional de 1861. Rio de Janeiro, Confraria dos amigos do livro, 1977. p. 125


O OLHAR INOCENTE É CEGO 246Figura 166. “Quadro feito a bico de agulha...”Recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> Exposição Nacional de 1861.Reprodução do álbum de 1861. Rio de Janeiro:Confraria dos Amigos do Livro, 1977.Figura 167. O Brasil na ExposiçãoInternacional de Londres. Recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong>Exposição Nacional de 1861. Reprodução doálbum de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dosAmigos do Livro, 1977.Em 1873 uma outra exposição nacional foi realiza<strong>da</strong> com o mesmo objetivode selecionar produtos para a Exposição Universal, desta vez a ser realiza<strong>da</strong> nestemesmo ano em Viena. Este evento deixou claro que mesmo a Exposição Nacionalnão refletia a reali<strong>da</strong>de do que era produzido no país. Se, por um lado, a pequenaindústria não encontrava estímulo para participar do evento, de outro lado, a maiorparte dos produtos expostos jamais era encontra<strong>da</strong> no mercado e pareciam serproduzidos unicamente para a exposição. 535 Neste contexto, as ExposiçõesUniversais aparentam vincular-se mais ao imaginário <strong>da</strong> indústria do que à própriaindústria.As excentrici<strong>da</strong>des <strong>da</strong> participação do Brasil nas Exposições Universaisatingem seu ápice em 1889, na Exposição Universal de Paris. A comemoração doscem anos <strong>da</strong> Revolução Francesa e de seus valores de liber<strong>da</strong>de, igual<strong>da</strong>de efraterni<strong>da</strong>de, levou o Imp<strong>é</strong>rio do Brasil, assim como as demais monarquias, àrecusa em uma participação oficial. No entanto, isso não excluiu uma participaçãooficiosa com a iniciativa priva<strong>da</strong> recebendo subsídios financeiros. 536 Mas, isso nãosignifica que a decisão de levar o Brasil à Exposição tenha sido simples. Aocontrário. De um lado, argumentava-se que esta participação seria um luxodesnecessário, envolvendo grandes gastos para um evento que privilegiavamaquinarias, t<strong>é</strong>cnicas e produção fabril, setores incipientes no Brasil. De outro,535 PESAVENTO, S. op. cit., p. 143.536 GOMES, Angela de Castro. O 15 de novembro. In: GOMES, A. C.; PANDOLFI, D. C.; ALBERTI, V. A(coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, CPDOC, 2002. p. 25.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 247argumentos favoráveis defendiam a necessi<strong>da</strong>de de fazer o país conhecido erespeitado internacionalmente, de modo a atrair investimentos estrangeiros.Desde suas primeiras participação nas primeiras Exposições, o parque fabrilbrasileiro havia crescido e aperfeiçoado alguns de seus processos, aproximando opaís do que era considera<strong>da</strong> “civilização ocidental”. 537 A participação do Brasil naExposição Universal de 1889 tinha a pretensão de evidenciar a existência de“produtos niti<strong>da</strong>mente industriais, compatíveis com os fins do encontrointernacional, e que atestassem o desenvolvimento que o país atravessava”. 538 Umconcurso para a escolha do pavilhão do Brasil optou por um edifico “na<strong>da</strong> exóticona sua facha<strong>da</strong> exterior” 539 de inspiração espanhola. O interior era de ferroaparente e sobre ele assentava uma cúpula envidraça<strong>da</strong> com pintura interna emouro. O Brasil instalou-se um pouco depois <strong>da</strong> abertura <strong>da</strong> Exposição no Campode Marte, bem ao lado <strong>da</strong> Torre Eiffel. Esta proximi<strong>da</strong>de, que em um primeiromomento pareceu uma vantagem, acabou por tornar acanhado o pavilhãobrasileiro diante <strong>da</strong> monumentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Torre. 540 Uma observação atenta <strong>da</strong>planta do Campo de Marte incluí<strong>da</strong> no álbum de fotografias <strong>da</strong> participação doBrasil dedicado pela Comissão Geral a sua Alteza Imperial 541 , que hoje faz parte<strong>da</strong> Coleção Iconográfica do Museu do Itamaraty no Rio de Janeiro, nos permitiualgumas considerações. De fato, a área do pavilhão brasileiro encontra-se ao ladodo pilar oeste <strong>da</strong> Torre Eiffel. A área construí<strong>da</strong> e que aparece na maior parte <strong>da</strong>sfotos e ilustrações (Figura 168) parece, na planta, ocupar menos de um terço dotamanho dos pavilhões do M<strong>é</strong>xico e <strong>da</strong> Argentina que se encontram nasproximi<strong>da</strong>des. Mas, há um pequeno detalhe. A área ocupa<strong>da</strong> pelo Brasil expandesepara al<strong>é</strong>m do pr<strong>é</strong>dio principal. Havia ain<strong>da</strong> um quiosque para degustação decaf<strong>é</strong> ao lado de um lago artificial mantido a 30 graus para a exibição <strong>da</strong> exóticavitória-r<strong>é</strong>gia e que acabou sendo o grande destaque <strong>da</strong> participação do Brasil. Nocanto esquerdo <strong>da</strong> foto do lago (Figura 169) vemos alguns utensílios, como louçase bules, provavelmente utilizados na degustação do caf<strong>é</strong>.537 PESAVENTO, S. op. cit., p. 189.538 Ibid., p. 191.539 LES MERVEILLES DE L’EXPOSITON DE 1889. Paris: Librairie Illustr<strong>é</strong>e, 1890. p. 483.540 GOMES, A. op. cit., p. 26.541 As fotografias aqui reproduzi<strong>da</strong>s foram toma<strong>da</strong>s pela autora no Palácio do Itamaraty. As manchas deenvelhecimento <strong>da</strong>s mesmas foram reproduzi<strong>da</strong>s do mesmo modo que foram capta<strong>da</strong>s. A autora optou pornão realizar nenhum tipo de restauro no material, tendo usado apenas um filtro que acentuasse o contraste. Noentanto, algumas fotografias que apresentavam partes muito comprometi<strong>da</strong>s foram corta<strong>da</strong>s em umenquadramento que favorecesse a <strong>visual</strong>ização dos itens expostos.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 248Figura 168. Pavilhão do Brasil no Campo de Marte eTorre Eiffel. Exposição Universal de Pariz. 1889.Exposição Brazileira. Álbum <strong>da</strong> ColeçãoIconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.Figura 169. Vitória R<strong>é</strong>gia. Pavilhão do Brasil. Exposição Universal de Pariz. 1889.Exposição Brazileira. Álbum <strong>da</strong> Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio deJaneiro.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 249Figura 170. Pavilhão de degustação de caf<strong>é</strong>. Exposição Universal de Pariz. 1889.Exposição Brazileira. Álbum <strong>da</strong> Coleção Iconográfica. Palácio do Itamaraty, Rio deJaneiro.Figura 171. Estante com compoteiras. Aofundo, vitrine de mate e cestaria. ExposiçãoUniversal de Pariz. 1889...Figura 172. Vitrine com itens de perfumaria.À direita, moringas e cerâmicas. ExposiçãoUniversal de Pariz...


O OLHAR INOCENTE É CEGO 250Figura 173. Vitrines e estantes com pedras e minerais. À direita, peles deanimais e estante com compoteiras. Exposição Universal de Pariz...Figura 174. Estante e vitrines com produtos químicos efarmacêuticos. Exposição Universal de Pariz...Figura 175. Detalhe de estantecom compoteiras. Exposição..A presença do Brasil foi marca<strong>da</strong> por 838 expositores que receberam 579prêmios. 542 A grandeza territorial era exalta<strong>da</strong> com imponentes estátuas querepresentavam os rios do Imp<strong>é</strong>rio, dispostas em volta do pavilhão. Uma pequenagaleria conduzia a uma coleção de orquídeas. Os três an<strong>da</strong>res do pr<strong>é</strong>dioapresentavam, al<strong>é</strong>m do caf<strong>é</strong>, borracha, cacau, madeiras de <strong>construção</strong> e tintura,pedras minerais, prata e diamante, mate, frutas e cereais. Tamb<strong>é</strong>m se exibiamalgodão, esponjas, produtos farmacêuticos, móveis, quadros e aquarelas depaisagens pitorescas do Brasil. Um enorme bloco de ferro e níquel em forma de542 SCHROEDER-GUDEHUS, B. op. cit., p. 114.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 251tartaruga reproduzia o meteorito Bendengó caído em território baiano no ano de1784.Havia um grande esforço para realçar as manufaturas. O tabaco eraapresentado em sua forma natural, mas tamb<strong>é</strong>m manufaturado. As fotografias(Figura 171 àFigura 175) mostram conservas alimentares, bebi<strong>da</strong>s, perfumarias. Produtosquímicos e farmacêuticos ocupavam fileiras e fileiras de potes e garrafassugerindo uma produção em massa que, de fato, não existia. Algumas vitrinesmostram meias, chap<strong>é</strong>us, livros e artigos de papelaria. Mas, a Exposição brasileiraem 1889 não apresenta sinais de produtos pr<strong>é</strong>-fabricados nem produzidos emmassa, como tamb<strong>é</strong>m não há sinal de algo que poderia receber o nome de“design”. De uma maneira geral, a participação do Brasil aproxima-se mais doexótico, do paradisíaco e do luxuriante do que de uma nação moderna, industrial eprogressista. Por outro lado, reflete uma <strong>cultura</strong> moderna que não se mostrahomogênea, uridi<strong>da</strong> por transformações lentas e indefini<strong>da</strong>s.Neste contexto, a constituição de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna soa distantedo que <strong>é</strong> vivido no Brasil, situando-se de maneira bastante restrita a uma pequenaparcela <strong>da</strong> população. As implicações e conseqüências desta questão mereceriamuma análise específica que foge ao escopo deste trabalho. No entanto, <strong>é</strong>importante ressaltar que, apesar <strong>da</strong> modernização ain<strong>da</strong> desenvolver-se longe doterritório brasileiro, <strong>é</strong> evidente a atração que produzia e que levou o Brasil aparticipar destas Exposições, na busca por adquirir um pouco desta dimensãomoderna.4.4. Arte e indústria – contradiçõesCom o objetivo de valorizar a indústria, a organização <strong>da</strong> Exposição deLondres em 1851, estabeleceu uma s<strong>é</strong>rie de regras em relação à participação <strong>da</strong>arte no evento que aponta para mu<strong>da</strong>nças na própria forma de se pensar a arte.Buscava-se reforçar a ligação entre indústria e progresso e, deste modo, a artedeveria apresentar compatibili<strong>da</strong>de com este ideal. As artes visuais incluí<strong>da</strong>s namostra deveriam necessariamente apresentar um elemento cientifico, tecnológicoou industrial. Havia restrição a produtos que não apresentassem conexão comprocessos mecânicos. No contexto <strong>da</strong> Exposição de 1851, as obras de arte


O OLHAR INOCENTE É CEGO 252deveriam demonstrar uma t<strong>é</strong>cnica particular ou o emprego de um novo materialque justificasse a sua participação. A pintura foi delibera<strong>da</strong>mente excluí<strong>da</strong> <strong>da</strong>mostra por não ser considera<strong>da</strong> “compatível com as preocupações do mundoindustrial” 543 , à exceção de uma ou outra que atendesse a esta restrição como aaerial tinting, que corresponderia a um tipo de pintura realiza<strong>da</strong> com aerógrafo ouspray, e que não apresenta nenhum sinal de ação <strong>da</strong> mão humana. 544Figura 176. Vista <strong>da</strong> nave leste, Palácio de Cristal, 1851. Aquarela e guachesobre papel por John Absolon (1815-95). A estátua original em bronze, deautoria de Eugène Simonis, encontra-se em frente ao Palácio Real deBruxelas. Ao p<strong>é</strong> <strong>da</strong> cópia em gesso, vê-se pequenas es<strong>cultura</strong>s em mármoredo mesmo autor. Victoria and Albert Museum, London.Disponível em: (12/4/08).As seções devota<strong>da</strong>s à impressão e à gravura garantiam sua presença graçasàs inovações t<strong>é</strong>cnicas. As mostras relaciona<strong>da</strong>s à arquitetura eram poucas eencontravam-se liga<strong>da</strong>s a estrat<strong>é</strong>gias de <strong>construção</strong> e ao emprego de materiais,como nas habitações populares. As es<strong>cultura</strong>s eram menos uma categoria própriado que um meio de harmonização e decoração de pr<strong>é</strong>dios, praticamenterestringindo-se as que decoravam o espaço do Palácio de Cristal 545 (Figura 176).Em suma, a questão utilitária era tão proeminente em sua intenção de afastar aschama<strong>da</strong>s “artes não-utilitárias” que o comitê <strong>da</strong> Exposição de Dublin, dois anos543 PEREIRA, Margareth Campos <strong>da</strong> Silva. A participação do Brasil nas exposições universais. Projeto:Revista brasileira de arquitetura, planejamento, desenho industrial, <strong>construção</strong>. n. 139, mar. 1991. p. 86.544 The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York:Dover Publications, 1970. p. 61.545 Para uma visão geral <strong>da</strong>s es<strong>cultura</strong>s como elemento decorativo, ver <strong>da</strong>guerreótipo <strong>da</strong> Figura 146.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 253depois, resolveu rever os crit<strong>é</strong>rios utilizados anteriormente. Considerando adificul<strong>da</strong>de de se negar que as belas artes poderiam ter seu próprio valor utilitárioe o prazer de <strong>olhar</strong> o que <strong>é</strong> “bonito em forma e cor, ain<strong>da</strong> que não essencial à meraexistência”, o comitê resolveu admitir trabalhos não utilitários, “no sentidocomum <strong>da</strong> palavra”. 546Apenas em 1855, na primeira Exposição Universal realiza<strong>da</strong> em Paris <strong>é</strong> queo papel <strong>da</strong>s belas-artes foi modificado. Procurando, ao mesmo tempo, firmar-secomo um proeminente centro artístico e elevar a arte a uma posição de destaque,Paris realizou uma gigantesca exposição de arte que reuniu mais de 5.000 obras dearquitetura, es<strong>cultura</strong>, gravura e pintura. O conceito de uma arte capaz de espelhare estimular os progressos no campo do bom gosto fun<strong>da</strong>mentava-se na “conexãopróxima entre a melhoria do desenvolvimento <strong>da</strong>s manufaturas e as belasartes”. 547 Para Greenhalgh, se a Grande Exibição de 1851 serviu de padrão para oseventos seguintes, a partir de 1867 e at<strong>é</strong> o início <strong>da</strong> Primeira Guerra, o modelo aser seguido <strong>é</strong> parisiense 548 . As feiras americanas poderiam ser monumentais, mas,definitivamente, era Paris quem ditava a mo<strong>da</strong>. Foi a França que demoliu a noçãode um pavilhão gigantesco em favor de numerosos pr<strong>é</strong>dios, incluindo algunsconstruídos pelos países participantes.A <strong>construção</strong> do Palácio de Cristal representou um grande passo na direçãode uma revolução <strong>da</strong>s formas: “o estilo construtivo contraposto ao estilo históricotornou-se a palavra de ordem do movimento moderno”. 549 No entanto, as linhasmodernas observa<strong>da</strong>s nas ilustrações e fotografias do Palácio de Cristal nãoencontravam eco no que era visto em seu interior. O pr<strong>é</strong>dio e o conteúdo <strong>da</strong>exibição parecem ter sido produzidos em períodos diferentes.Em primeiro lugar <strong>é</strong> importante mencionar que, apesar <strong>da</strong> monumentali<strong>da</strong>desugeri<strong>da</strong> pela modulação em ferro, os elementos construtivos, ao nível <strong>da</strong> visão,encontravam-se muitas vezes excessivamente “decorados”, encobertos oudisfarçados, como se buscassem ocultar a nudez <strong>da</strong> estrutura. A propósito de umas<strong>é</strong>rie de aquarelas pinta<strong>da</strong> por Joseph Nash para o Príncipe Albert, comentaWalter Benjamin:546 The Official Catalogue of the Great Industrial Exhibition, Dublin 1853. Dublin, 1853. apudGREENHALGH, P. op. cit., p. 13547 Reports on the Paris Universal Exhibition, 3 Volumes, presented to both Houses of Parliamente, 1856,apud GREENHALGH, P. op. cit., p. 14548 GREENHALGH, P. op. cit., p. 15


O OLHAR INOCENTE É CEGO 254“Descobre-se com espanto nessas aquarelas como se estava empenhado em decoraresse colossal espaço interior à maneira dos contos de fa<strong>da</strong>s orientais, e como, aolado dos depósitos de mercadorias sob as arca<strong>da</strong>s, os gigantescos pavilhões erampreenchidos por grupos monumentais de bronze, estátuas de mármore echafarizes”. 550As aquarelas que integram a publicação de 1854 sobre a Exposição de 1851em Londres ratificam a grandeza e a suntuosi<strong>da</strong>de do evento, mas tamb<strong>é</strong>m o seuexcesso de ornamento. Tomemos como exemplo, os drapeados que adornam oconjunto <strong>da</strong> cama na seção austríaca (Figura 177) ou que criam um ambiente paraa exposição <strong>da</strong>s estátuas (Figura 178). Em ambos os casos aparentam mesmosaídos de contos de fa<strong>da</strong>s. As dobras do tecido parecem servir para ocultar a frieza<strong>da</strong> <strong>construção</strong> em ferro, criando um ambiente mais aconchegante. Na ver<strong>da</strong>de, osem número de objetos seriam mais do que suficiente para constituir um ambienteque se destacasse <strong>da</strong> geometria do ferro, como vemos em outra figura do mesmoálbum que ilustra a principal aveni<strong>da</strong> <strong>da</strong> Exposição. Neste exemplo há umasugestão de contraste entre a regulari<strong>da</strong>de dos elementos construtivos do pr<strong>é</strong>dio(e sua perspectiva) com um grande número de objetos, incluindo uma fonte e umrefletor mecânico (Figura 179). A detalha<strong>da</strong> gravura em metal (Figura 181)reproduz os mesmos artefatos a partir de um outro ângulo e de um ponto de vistamais alto. É muito provável que esta figura tenha sido produzi<strong>da</strong> tomando porbase uma imagem de natureza fotográfica como a destina<strong>da</strong> à <strong>visual</strong>ização atrav<strong>é</strong>sdo estereoscópio (Figura 180).Figura 177. Pavilhão austríaco. Ilustração dosegundo volume de Dickinson'scomprehensive pictures of the GreatExhibition of 1851, com trablhados de Nash,Haghe e Roberts RA, 1854. In collection of:Science Museum Library. Disponível em: (2/09/07).Figura 178. Pavilhão austríaco. Ilustração dosegundo volume de Dickinson's comprehensivepictures of the Great Exhibition of 1851, comtrablhados de Nash, Haghe e Roberts RA, 1854.In collection of: Science Museum LibraryDisponível em: (2/09/07).549 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 219. [G 6; G 6a, 1].550 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 212-213. [G 2a,7].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 255Figura 179. Ilustração do Dickinson'scomprehensive pictures of the Great Exhibitionof 1851, com trablhados de Nash, Haghe eRoberts RA, 1854. Science Museum LibraryDisponível em: (2/09/07).Figura 180. Interior do Palácio de Cristal.Fotografia de um par de estereoscópio. ScienceMuseum/Science & Society Picture Library.Disponível em: (2/09/07).Figura 181. The Great Exhibition, Main Avenue. In: History and descriptionof the Crystal Palace, and the Exhibition of the World's Industry in 1851.Gravura em metal a partir de desenhos originais e <strong>da</strong>guerreótipos. London eNew York, John Tallis and Co., 1852. Disponível em: (3/06/07).A questão <strong>da</strong> dessemelhança <strong>visual</strong>, formal e de estilo entre o Palácio deCristal e os objetos exibidos não <strong>é</strong> algo que possa ser explicado de formaconclusiva principalmente porque, em nosso ponto de vista, uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>não estabelece uma equivalência temporal absoluta. Em se tratando de um períodomarcado por grandes mu<strong>da</strong>nças t<strong>é</strong>cnicas capazes de produzir variações denatureza <strong>visual</strong>, o descompasso coloca-se como uma possibili<strong>da</strong>de concreta. Nestecontexto, Greenhalgh observa que as mu<strong>da</strong>nças produzi<strong>da</strong>s pelo processo de


O OLHAR INOCENTE É CEGO 256modernização <strong>da</strong> indústria atingiram as diversas áreas <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>, com predomínio<strong>da</strong> arquitetura e do design, áreas onde nenhum fator do processo criativopermaneceu constante. Sejam os meios de produção, os materiais utilizados namanufatura, o número de objetos produzidos, a veloci<strong>da</strong>de de produção ou opúblico consumidor, todos estes fatores sofreram algum tipo de modificação nesteperíodo. 551 Segundo este autor, os poetas românticos ingleses podiam questionaros valores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de industrial ou dos avanços científicos utilizando o mesmotipo de prosa e versos que sempre utilizaram. Embora o conteúdo de sua arte tenhase modificado, o mesmo não ocorreu com as premissas de sua criação. A poesiapôde ser crítica sem ter que, ela própria, transformar-se. O designer não contacom esta possibili<strong>da</strong>de. De acordo com Greenhalgh, os produtos industriais nãopodem abarcar uma crítica sem, ao mesmo tempo, questionar o seu própriosentido de existência. 552 Este <strong>é</strong> um paradoxo que acompanha o design desde o seusurgimento no início do processo de industrialização.Al<strong>é</strong>m disso, há uma característica que diferencia enormemente o pr<strong>é</strong>dio dosobjetos. Como vimos, o Palácio de Cristal foi construído visando atender umas<strong>é</strong>rie de requisitos e funções estabeleci<strong>da</strong>s por homens ligados à <strong>cultura</strong> e à arte.Neste sentido, foram utiliza<strong>da</strong>s as mais avança<strong>da</strong>s tecnologias construtivas e acrítica não influiu na sua realização. Em relação aos objetos exibidos, passava-sealgo muito diferente. Havia a expectativa de agra<strong>da</strong>r o maior número deconsumidores, apesar dos objetos não se encontrarem expostos para a ven<strong>da</strong>direta. Neste contexto, podemos colocar, de um lado, os objetos e seu excesso deornamentos - aparentemente, adequado ao gosto do público, ou do que se imaginaou imaginava conhecer dele – e de outro lado, a crítica <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca em textos quediscutem utili<strong>da</strong>de, adequação de materiais, a relação entre design e ornamento e aformação do bom gosto. Alguns destes textos mantêm-se ain<strong>da</strong> muito atuais epodem colaborar no desdobramento contemporâneo de questões significativaspara a <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, ampliando a questão <strong>da</strong> dispari<strong>da</strong>de est<strong>é</strong>tica entre pr<strong>é</strong>dio eExposição.Na Exposição de 1851, os objetos eram expostos em estandes, organizadospelos próprios fabricantes de acordo com quatro categorias que refletiam o ciclode produção: mat<strong>é</strong>ria-prima, maquinaria e invenções mecânicas, manufaturas e,551 GREENHALGH, P. op. cit., p. 142.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 257por último, es<strong>cultura</strong>s, modelos artísticos, mosaicos, esmaltes, etc. Os produtosindustriais eram exibidos tendo em vista a possibili<strong>da</strong>de de virem a influenciar ogosto do público. 553 Mas, de acordo com a opinião contemporânea de RichardRedgrave, membro <strong>da</strong> Academia Real e, posteriormente, diretor do museu deSouth Kensington 554 , os mais de 100.000 itens em exposição nem semprerefletiam exatamente o que era produzido à <strong>é</strong>poca, na medi<strong>da</strong> em que o objetivodos fabricantes era atrair atenção e prêmios. 555 Por este motivo, muitos objetoseram protótipos de demonstração e não se mostravam comercialmente viáveis,enquanto muitos outros se propunham modelos de uma s<strong>é</strong>rie que nem semprechegava a existir. Apesar disso, o conjunto destas peças participa <strong>da</strong> <strong>construção</strong> deuma nova <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>, a partir <strong>da</strong> efervescência produtiva, em meados do s<strong>é</strong>culoXIX, <strong>da</strong>s novas possibili<strong>da</strong>des dos materiais utilizados e <strong>da</strong>s funções utilitárias,est<strong>é</strong>ticas e simbólicas ansia<strong>da</strong>s para estes objetos.Neste contexto efervescente, os visitantes <strong>da</strong> Exposição eram apresentados aitens tão variados 556 quanto um mobiliário de navios (cujas partes, em caso denaufrágio, se converteriam automaticamente em um salva-vi<strong>da</strong>s flutuante),excêntricos como o “manequim expansível” (indicado para alfaiates e constituídopor 7000 peças interliga<strong>da</strong>s que manipula<strong>da</strong>s reproduziriam as medi<strong>da</strong>s exatas docliente ausente) e assustadores (ou vergonhosos) como a enorme seleção degrilhões, algemas e correntes para pernas, geralmente exporta<strong>da</strong> para países <strong>da</strong>Am<strong>é</strong>rica do Sul. 557 Havia tamb<strong>é</strong>m material impresso em grande quanti<strong>da</strong>de, amaior parte composta por livros ligados à religião e à espirituali<strong>da</strong>de, com cópiasem mais de cem idiomas. Acima de tudo, os visitantes eram confrontados comartefatos adornados em ferro, relógios ornamentais, peças de lareira, objetos dedecoração, serviços de chá e de jantar, uma grande varie<strong>da</strong>de de tecidos, peças emcouro e em vidro, móveis, cerâmicas, trenós, carruagens, instrumentos musicais,552 Id.553 REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of RichardRedgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 6.554 O Museu Victoria e Albert (VAM) foi fun<strong>da</strong>do como Museu de South Kensington em 1852, abrigandomuitos dos objetos expostos na Exposição de 1851. É hoje considerado o maior museu de arte decorativa edesign do mundo.555 REDGRAVE, G. op. cit., p. 7.556 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course materialby Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 59-60.557 É interessante observar um aparente contraste entre a indústria e “missão civilizadora” inglesa no seuposicionamento na luta contra a escravatura e pela abolição do com<strong>é</strong>rcio de escravos, demonstrado naExposição com a exibição de es<strong>cultura</strong>s de escravos algemados. Cf. PLUM, W. op. cit., p. 135.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 258jóias e o que mais se possa imaginar. 558 O catálogo oficial ilustrado foi impressoem três grossos volumes.A maioria dos objetos observados no catálogo do Art Journal 559 nos pareceexcessivamente ornamentado e formalmente distante <strong>da</strong> <strong>construção</strong> em vidro eferro do Palácio de Cristal. Em alguns casos, a abundância de ornamentos e oemprego de elementos <strong>da</strong> natureza (animais, flores e plantas) chegam a dificultar anossa apreensão <strong>visual</strong> do objeto, ain<strong>da</strong> mais se considerarmos que esta rápi<strong>da</strong>análise <strong>é</strong> feita a partir de gravuras <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca.O estilo no ornamento seria a expressão de certa individuali<strong>da</strong>de e do gostode ca<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca ou nação, mesmo que sobre influência externa. Sob este ponto devista, o texto de Ralph Nicholson Wornum, “A Exposição como uma lição degosto”, que recebeu a premiação do Art-Journal de melhor ensaio sobre o evento,coloca que, apesar <strong>da</strong>s inúmeras varie<strong>da</strong>des de estilo existentes, as característicasprincipais permitiam estabelecer nove variações que influenciaram a civilizaçãoeurop<strong>é</strong>ia: três antigos (egípcio, grego e romano); três <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de M<strong>é</strong>dia (bizantino,sarraceno e gótico) e três modernos (renascentista, Cinquecento e Luís XIV) 560 .Na visão historicista de Wornum, um posicionamento comum à <strong>é</strong>poca e quepermaneceria praticamente inalterado at<strong>é</strong> o final <strong>da</strong> Primeira Guerra, todos osestilos existentes seriam uma cópia ou combinação destes descritos. Em suaanálise <strong>da</strong> Exposição de Londres de 1851, Wornum considera que não havia na<strong>da</strong>novo em termos de “design ornamental” e estende suas considerações sobre ainferiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s peças inglesas – volta<strong>da</strong>s para a produção em escala –principalmente em relação às francesas – mais luxuosas e, em geral, vistas comoexemplo a ser seguido. A não observância à utili<strong>da</strong>de do produto, o excesso dedetalhes e a irregulari<strong>da</strong>de de execução tamb<strong>é</strong>m são lista<strong>da</strong>s como itensproblemáticos.Não temos a intenção de nos aprofun<strong>da</strong>r sobre as discussões de estilo, noentanto, optamos por reproduzir aqui algumas <strong>da</strong>s peças, dentre as analisa<strong>da</strong>s porWornum que se encontram no catálogo <strong>da</strong> Exposição, como forma de explicitar ocontraste dos objetos expostos às formas proto-modernas do Palácio de Cristal,558 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course materialby Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 61.559 The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York:Dover Publications, 1970.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 259como mencionado anteriormente. Assim, observamos alguns móveis austríacosque atraíram a atenção do público, dentre estes, uma estante em cujo dossel vemosesculpido um grupo de Putti (Figura 182). Tamb<strong>é</strong>m são exemplos pertinentes ocandelabro em bronze (Figura 183), o espelho para toilette em prata maciça(Figura 184), as porcelanas de Sèvres (Figura 185), as peças em vidro (Figura186) e as ren<strong>da</strong>s (Figura 187).Figura 182. Estante. Carl Keistler, Viena. The Crystal PalaceExhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile,reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.Figura 183. Candelabro em bronze.Mr. Pott, Birmingham. The CrystalPalace…Figura 184. Espelho para toilette emprata maciça. M. Morel. The CrystalPalace…560 WORNUM, Ralph Nicholson. The Exhibition as a Lesson in Taste. The Crystal Palace Exhibition ArtJournal Issue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York: Dover Publications, 1970. p. II***.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 260Figura 185. Vaso deporcelana deSèvres. The CrystalPalace…Figura 186. Copode vidro. Mr.Conne, Londres.The CrystalPalace…Figura 187. Ren<strong>da</strong>. Mrs. Treadwin lacermanufacturer,Exeter. Design Mr. C. P.Slocombe. The Crystal Palace…Preocupado com as questões relaciona<strong>da</strong>s ao ornamento e a superiori<strong>da</strong>derelativa de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s nações europ<strong>é</strong>ias, Wornum talvez tenha deixado deobservar alguns itens descritos no catálogo como “novi<strong>da</strong>de”, tais como ascadeiras giratórias produzi<strong>da</strong>s pela American Chair Company de Nova York(Figura 188). Tamb<strong>é</strong>m passou desapercebi<strong>da</strong> a importância <strong>da</strong> mesa com p<strong>é</strong> demadeira verga<strong>da</strong> cria<strong>da</strong> pelo designer austríaco Michael Thonet (Figura 189). Otexto do catálogo do Art Journal detalha o caráter decorativo do tampo <strong>da</strong> mesa eacrescenta que os p<strong>é</strong>s foram dobrados a partir de uma peça sóli<strong>da</strong>. Ningu<strong>é</strong>mpareceu atentar para a estrutura cria<strong>da</strong> por Thonet e que iria revolucionar aindústria de móveis, mantendo-se em evidência por muitas d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s.Figura 188. Cadeiragiratória. AmericanChair Company, NovaYork. The CrystalPalace…Figura 189. Mesa. Michael Thonet, Viena. The Crystal Palace…


O OLHAR INOCENTE É CEGO 261Nenhum dos diversos tipos de carruagens que constam do catálogo <strong>da</strong>Exposição <strong>é</strong> comentado por Wornum, mas a legen<strong>da</strong> <strong>da</strong>s figuras sugere algumasobservações interessantes. Sobre a carruagem americana (Figura 190), o catálogocomenta que apesar de “nossos amigos americanos demonstrarem um aparentedesinteresse por pompa e ostentação, eles não são insensíveis ao luxo e aoconforto.” 561 Sobre um modelo de carruagem, um veículo inglês, que de fato <strong>é</strong>“menos pomposo” que o americano, o catálogo o descreve como possuidor delinhas elegantes, leve e de <strong>construção</strong> simples, livre de ornamentos e entalhesdesnecessários, al<strong>é</strong>m de apresentar manutenção barata e facili<strong>da</strong>de de limpeza.Observados em conjunto, estes dois exemplos nos parecem apontar para a visãoque os europeus tinham sobre os americanos: práticos e, talvez, um poucorústicos.Figura 190. Carruagem. Mr. Clapp & Son, Boston, Estados Unidos.The Crystal Palace…Figura 191. Carruagem “Light Park Phaeton”. Mrs. H. & A.Holmes, Derby, Reino Unido. The Crystal Palace…O que chama a nossa atenção na análise tão elogia<strong>da</strong> de Wornum <strong>é</strong> o fato docrítico, que deveria ter um <strong>olhar</strong> mais “afiado” do que a maioria dos visitantes,não tenha atentado para novi<strong>da</strong>des tão marcantes quanto foram a cadeira giratóriae os p<strong>é</strong>s de mesa em madeira curva<strong>da</strong> de Thonet. Em relação a esta questão561 The Crystal Palace Exhibition Illustrated Catalogue, London 1851. Fac-símile, reimpressão. New York:Dover Publications, 1970. p. 166.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 262devemos primeiramente considerar as diferenças nos modos de <strong>olhar</strong> <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca e onosso modo atual. É possível que hoje os móveis de escritório sejam mais comunsdo que eram no s<strong>é</strong>culo XIX. Ou, há, ain<strong>da</strong>, a possibili<strong>da</strong>de que a grande discussão<strong>da</strong> <strong>é</strong>poca, relaciona<strong>da</strong> à ornamentação, tenha conduzido a observação do crítico,“ocultando” estas peças. Estas possibili<strong>da</strong>des levantam a inexistência do <strong>olhar</strong><strong>inocente</strong>. Em qualquer contexto, o <strong>olhar</strong> se alimenta dos registros do ouvido e <strong>da</strong>mente, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de e dos preconceitos. Na<strong>da</strong> <strong>é</strong> visto em sua estrutura geral, isto<strong>é</strong>, simplesmente moderna, mas sempre coberto por uma cama<strong>da</strong> de seleções,discriminações, análises e interpretações.4.4.1. Gosto e bom gostoHavia à <strong>é</strong>poca <strong>da</strong> Exposição Universal de 1851 uma discussão sobre aquestão do gosto e a possibili<strong>da</strong>de desta quali<strong>da</strong>de, ou pendor, poder seraprendi<strong>da</strong>. Neste contexto, Ralph Nicholson Wornum discute como asmanufaturas, presentes à Exposição, poderiam atuar no desenvolvimento do bomgosto. 562 Partindo <strong>da</strong> questão do ornamento, Wornum estabelece que este secoloca sob o domínio <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de: “o ornamento <strong>é</strong> uma necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> menteque encontra gratificação a partir do <strong>olhar</strong>”.Em 1851, o bom gosto era discutido no seio <strong>da</strong> profusão de formasexuberantemente decora<strong>da</strong>s. Para Greenhalgh, a inobservância a deman<strong>da</strong>s denatureza simbólica levou a equívocos em relação à compreensão <strong>da</strong> nova est<strong>é</strong>ticaindustrial como uma simples questão de gosto, estabelecendo uma correlaçãoentre a produção mecânica e a feiúra <strong>da</strong>s formas. 563 Neste contexto, o bom gostoera uma questão a ser estimula<strong>da</strong>, algo que deveria ser ensinado juntamente com amaestria artesanal. 564 Comentando a tendência observa<strong>da</strong> na Exposição de 1851para a utilização de ornamentos baseados em elementos naturalísticos, RichardRedgrave chega a afirmar a importância de se ensinar o “modo correto de ver e deutilizar as formas <strong>da</strong> natureza em representações”. 565 O “modo correto” de verencontrava-se diretamente relacionado à simetria e à geometria encontra<strong>da</strong>s na562 WORNUM, R. op. cit., p. I***.563 GREENHALGH, P. op. cit., p. 144.564 REDGRAVE, G. op. cit., p. 17.565 Ibid., p. 18.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 263natureza e às restrições ao ornamento, exemplifica<strong>da</strong>s pelos pequenos detalhesobservados na vi<strong>da</strong> natural, como por exemplo, nos pontos salientes que criamcontraste com as folhagens.Deste modo, para Redgrave, o propósito de ca<strong>da</strong> objeto ou edifício deveriaser sempre a primeira coisa a ser considera<strong>da</strong>: “a utili<strong>da</strong>de sempre precedendo oornamento”. 566 Al<strong>é</strong>m disso, considera Redgrave, a sua <strong>é</strong>poca era a dos novosmateriais e processos para os quais tornava-se necessário um novo design – maisconsistente e apropriado para ca<strong>da</strong> material. 567 O crítico inglês procura deixarclaro que design e ornamento são coisas distintas. “Design” inclui <strong>construção</strong> eornamento, sendo que este último deve ser alcançado naturalmente a partir doemprego apropriado de materiais e <strong>da</strong> decoração. “Design” relaciona-se com a<strong>construção</strong> de um objeto para uso ou apreciação est<strong>é</strong>tica, compreendendo, destemodo, tamb<strong>é</strong>m a ornamentação. “Ornamento” implica apenas na decoração de umobjeto construído anteriormente. Assim, o ornamento será sempre secundário. Docontrário, o objeto não seria um trabalho ornamentado, mas um meroornamento. 568 Na compreensão desta diferenciação se encontraria o caminho parao bom gosto. 569A discussão sobre o ornamento na indústria não se restringiu apenas aoperíodo <strong>da</strong> Exposição de 1851, mas estendeu-se at<strong>é</strong> o final do s<strong>é</strong>culo,fun<strong>da</strong>mentando o movimento Arts and Crafts no final do s<strong>é</strong>culo XIX e, depois, jáno início do s<strong>é</strong>culo XX, com o grito de guerra, “ornamento e crime”. 570 Mas, háum importante precedente anterior, geralmente relegado pelos estudos históricos:o esetilo Biedermeier.O Biedermeier floresceu nos países de língua alemã a partir de 1815, ano doCongresso de Viena que pôs fim às guerras napoleônicas at<strong>é</strong> 1848 e o início <strong>da</strong>srevoluções europ<strong>é</strong>ias. Sua est<strong>é</strong>tica, que pode ser observa<strong>da</strong> em móveis construídosa partir 1818 571 , apresenta um ideal de beleza que valoriza a simplici<strong>da</strong>de e aquali<strong>da</strong>de do material utilizado, realçado pela ausência de ornamentos. O566 Ibid., p. 36.567 Ibid., p. 34.568 Ibid., p. 56.569 REDGRAVE, Gilbert R. Manual of design. Compiled from the writings and addresses of RichardRedgrave, R. A. London: Chapman and Hall, 1890. p. 38.570 “Ornamento e crime” <strong>é</strong> um texto de 1908 escrito por Adolf Loos que considera o ornamento incompatívelcom a evolução <strong>cultura</strong>l. LOOS, Adolf. Ornamento e Crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. pp. 223-234.571 OTTOMEYER, H. ; ALBRECHT, K. A.; WINTERS, Laurie. Biedermeyer. The invention of simplicity.Milwaukee, Vienna, Berlin: Hatje Cantz Publishers, 2006. p. 52


O OLHAR INOCENTE É CEGO 264Biedermeier foi desenvolvido at<strong>é</strong> 1848 em diversas outras áreas al<strong>é</strong>m domobiliário: desenho de superfície, pinturas, objetos em vidro, prata, porcelana ecerâmica. Mas, enquanto as pinturas detalha<strong>da</strong>s de paisagens e de personagenscom rostos rosados não causam surpresa, os móveis, utensílios, padrões de tecidoe pap<strong>é</strong>is de parede, parecem muito distante <strong>da</strong> id<strong>é</strong>ia que se tem <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong>primeira metade do s<strong>é</strong>culo XIX, predominantemente do estilo Imp<strong>é</strong>rio e do que seexpôs no Palácio de Cristal. Onde foram parar o rebuscamento e o excesso dedetalhes que escondiam os veios <strong>da</strong> madeira? Como explicar a geometria e asimplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas em objetos diversos como espelhos, cadeiras, sofás, bulese talheres?Figura 193. Settee. Áustria, circa 1820. In:OTTOMEYER, H., op. cit. p. 133.Figura 192. Espelho. Viena, 1825. In:OTTOMEYER, H., op. cit. p. 106Figura 194. Caixas de prata. Áustria, circa1803. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p. 235A primeira utilização do termo aparece em 1855, quando já não seproduziam mais obras neste estilo. O termo “Biedermeier” tem origem em umpersonagem ficcional de uma revista satírica de Munique, Weiland GottliebBiedermaier. A expressão vem a ser uma corruptela do que pode ser traduzidocomo “homem comum”: “Bieder” significa convencional e “Maier” ou “Meyer”se encontram entre os sobrenomes comuns de língua alemã. É interessanteobservar a sugestão depreciativa produzi<strong>da</strong> por esta associação e que podeexplicar, em parte, a aura mítica que ligou este estilo à classe m<strong>é</strong>dia ascendentedurante todo o s<strong>é</strong>culo XX. No entanto, foi apenas no final do s<strong>é</strong>culo XIX que otermo “Biedermeier” passou a ser utilizado para nomear o estilo de d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>spassa<strong>da</strong>s. Somente na d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong> de 1980 <strong>é</strong> que surgiram estudos que contestavam a


O OLHAR INOCENTE É CEGO 265noção de que a arte Biedermeier seria volta<strong>da</strong> para a classe m<strong>é</strong>dia e, por isso,realiza<strong>da</strong> rapi<strong>da</strong>mente e com baixo custo. 572 Ao contrário, suas peças foramencomen<strong>da</strong><strong>da</strong>s por membros <strong>da</strong> corte e <strong>da</strong> aristocracia e apresentam, na sua purezaformal, uma simplici<strong>da</strong>de refina<strong>da</strong>. Segundo Ottomeyer, o culto <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>dedesenvolveu-se à <strong>é</strong>poca como princípio de beleza e em contraste ao estilo luxuosodo s<strong>é</strong>culo XVIII. 573 Este ideal est<strong>é</strong>tico de refinamento marca tamb<strong>é</strong>m o momentode ascensão de uma <strong>cultura</strong> liga<strong>da</strong> à domestici<strong>da</strong>de. Os espaços dom<strong>é</strong>sticoscomeçaram a ser vistos como lugar de refúgio e eixo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pessoal e familiar.“O s<strong>é</strong>culo XIX, como nenhum outro, tinha uma fixação pela moradia”. 574 OBiedermeier <strong>é</strong> um estilo voltado para a casa e o individualismo do lar em oposiçãoaos espaços coletivos ou públicos.Figura 196. Sofá. Viena, 1825-1830. In:OTTOMEYER, H., op. cit. p. 136.Figura 195. Pintura de Stephanie von Fahnenberg.Living Room de Alexander von Fahnenberg atWilhelmstrasse 69. In: OTTOMEYER, H., op. cit.p. 155.Figura 197. Cadeira. Áustria, cerca de1820. In: OTTOMEYER, H., op. cit. p.128.No entanto, a existência de uma classe m<strong>é</strong>dia ascendente, crescentementevolta<strong>da</strong> para o dom<strong>é</strong>stico em oposição aos espaços coletivos ou públicos, nãorepresenta uma prova de que o Biedermeier seja um estilo “<strong>da</strong> burguesia”. O fato<strong>é</strong> que embora a burguesia vienense ganhasse força ao longo <strong>da</strong> primeira metade dos<strong>é</strong>culo XIX, a corte e a aristocracia continuavam a ditar o tom dominante na vi<strong>da</strong><strong>cultura</strong>l e social. 575 A associação entre o estilo Biedermeier e a burguesiaascendente <strong>é</strong> fruto provável <strong>da</strong> visão posterior dos valores burgueses. De fato,572 Estes estudos foram realizados por Christian Witt-Dörring e Hans Ottomeyer, enquanto trabalhavam deforma independente, respectivamente, em Viena e Munique. Cf. OTTOMEYER, H.op. cit. p. 37.573 Ibid. p. 83574 BENJAMIN, Walter. Passagens… p. 225. [I 4,4].575 GODSEY, apud OTTOMEYER, H.op. cit. p. 62.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 266refletem mu<strong>da</strong>nças de valores no mundo aristocrático e sua busca pela separaçãoentre as esferas pública e priva<strong>da</strong>. O estilo decorativo Imp<strong>é</strong>rio abriu espaço para asimplici<strong>da</strong>de do Biedermeier na esfera priva<strong>da</strong>. A evidência desta separação emambientes <strong>da</strong> aristocracia pode ser confirma<strong>da</strong> atrav<strong>é</strong>s de pinturas (Zimmerbilder)que retratam quartos e outros ambientes dom<strong>é</strong>sticos a partir de 1820. A busca <strong>da</strong>aristocracia por espaços dom<strong>é</strong>sticos, pratici<strong>da</strong>de e informali<strong>da</strong>de familiar passa acoincidir, a partir de determinado ponto, com a rec<strong>é</strong>m-enriqueci<strong>da</strong> classe liga<strong>da</strong> aocom<strong>é</strong>rcio. Vale ain<strong>da</strong> lembrar que recentes estudos apresentam provas deencomen<strong>da</strong>s realiza<strong>da</strong>s pela aristocracia vienense, como por exemplo, oArquiduque Charles que por volta de 1822 encomendou ao jovem JosefDanhauser a modernização de seu palácio.Figura 198. Padrões de cadeiras. Copenhagen, 1826. In: OTTOMEYER, H.,op. cit. p. 143Danhauser foi o mais importante designer e produtor de móveis no estiloBiedermeier e sua fábrica, em Viena, chegou a contar com 350 empregados. Aempresa de Josef Danhauser obteve permissão para produzir móveis a partir de1814 e, deste ano at<strong>é</strong> 1830, os seus clientes eram <strong>da</strong>s classes mais altas,predominantemente membros <strong>da</strong> família imperial austríaca. Logo Danhauserpassou a produzir móveis e objetos segundo normas e padrões estan<strong>da</strong>rdizados, enão mais apenas sob encomen<strong>da</strong>, seguindo o conceito de que a decoração <strong>é</strong>geralmente completa<strong>da</strong> ao longo de anos e que, por este motivo, os clientesretornam para comprar peças suplementares. Deste modo, tamb<strong>é</strong>m a burguesiapassou a constituir sua clientela, adquirindo predominantemente móveis no estiloBiedermeier. Ao lado <strong>da</strong> grande varie<strong>da</strong>de de modelos, a fabricação <strong>da</strong>s peças deDanhauser era bem documenta<strong>da</strong>, existindo cerca de 2500 desenhos t<strong>é</strong>cnicos


O OLHAR INOCENTE É CEGO 267preservados, ordenados de acordo com o tipo de móvel, como em um catálogo.Graças a estes desenhos, muitas formas do período puderam ser recupera<strong>da</strong>s.A simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas e a utilização de elementos geom<strong>é</strong>tricos,característicos do Biedermeier praticamente desapareceram do design <strong>da</strong> EuropaCentral após as três primeiras d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>s do s<strong>é</strong>culo XIX, para ressurgir namoderni<strong>da</strong>de de 1900. Mas, ao contrário do espírito dos modernos, o estiloBiedermeier sempre esteve voltado para a sua própria <strong>é</strong>poca. A simplici<strong>da</strong>deformal de sua linguagem dirigia-se à vi<strong>da</strong> cotidiana e não a um modelo utópico demundo melhor, como sonhavam os modernos, e nem para o passado aristocrático,como se colocava o estilo Imp<strong>é</strong>rio, seu predecessor e contemporâneo, consideradocomo o representante do estilo decorativo oficial <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca.Figura 199. Cadeiras. Viena,1825-1835. In:OTTOMEYER, H., op. cit. p.122Figura 200. Cadeira emestilo Biedermeierfabricado, provavelmentepor Josef Danhauser.Hofmobiliendepot. MöbelMuseum Wien. Foto <strong>da</strong>autora. Arquivo pessoal.Figura 201. Conjunto em estiloBiedermeier fabricado,provavelmente por JosefDanhauser. Hofmobiliendepot.Möbel Museum Wien. Foto <strong>da</strong>autora. Arquivo pessoal.Mas, se as formas encontra<strong>da</strong>s no estilo Biedermeier podem serconsidera<strong>da</strong>s proto-modernas, foi somente com a moderni<strong>da</strong>de vienense, na vira<strong>da</strong>do s<strong>é</strong>culo XIX para o XX, que elas foram redescobertas.Apesar de to<strong>da</strong> sua exuberância <strong>cultura</strong>l, Viena recebia influência direta demovimentos que aconteciam em outros pontos <strong>da</strong> Europa. O movimento inglêsArts and Crafts exerceu forte ascendência atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> sua dimensão moralizanteque enfatizava a questão <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de do indivíduo e do trabalho. Assim, sob aexaltação de valores pr<strong>é</strong>-industriais instaurou-se o desejo de eliminar a separaçãode uma arte mais eleva<strong>da</strong> e criativa <strong>da</strong>s artes aplica<strong>da</strong>s, com o conseqüente resgatedos m<strong>é</strong>todos manuais na produção. A Secessão, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por dezenove artistas,


O OLHAR INOCENTE É CEGO 268dentre eles Gustav Klimt, Koloman Moser e o arquiteto Josef Hoffman, encaravacomo prioritária esta união <strong>da</strong>s artes que, em última instância, mantinha a tradiçãoaristocrática e seu desejo por luxuosos objetos artesanais. Deste modo, observa-seuma conexão seqüencial entre a Secessão e a Wiener Werkstätte (Oficinas deViena), fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1903 por Josef Hoffmann e Koloman Moser, entãoprofessores <strong>da</strong> Vienna Kunstgewerbeschule (Escola de Artes Aplica<strong>da</strong>s). Acompanhia estabeleceu o padrão <strong>da</strong> nova arte vienense atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong> produção even<strong>da</strong> de modernos artigos têxteis, móveis e, eventualmente, roupas. 576Figura 202. Facha<strong>da</strong> do pr<strong>é</strong>dio <strong>da</strong> Secessão,projetado em 1898 por Josef Olbrich, com ainscrição Der Zeit ihre Kunst. Der Kunst ihreFreiheit (“À <strong>é</strong>poca sua arte, à arte sua liber<strong>da</strong>de”).Foto <strong>da</strong> autora. Arquivo pessoal.Figura 203. Escrivaninha.Viena,cerca de 1850. In: OTTOMEYER,H., op. cit. p. 84.Na Secessão e na Wiener Werkstätte, a renovação era persegui<strong>da</strong> atrav<strong>é</strong>s <strong>da</strong>forma, e não de seu conteúdo ou função - de maneira diametralmente oposta aoque era praticado pelos modernistas Adolf Loos e Otto Wagner. 577 Para estesarquitetos, o senso est<strong>é</strong>tico era definido pela função. Segundo Wagner, “o que não<strong>é</strong> prático, não pode ser bonito”. 578 Loos, que embora tenha sido atuante naarquitetura vienense, obteve um maior reconhecimento atrav<strong>é</strong>s dos seus textos576HOUZE, Rebecca. From Wiener Kunst im Hause to the Wiener Werkstätte: Marketing Domesticity withFashionable Interior Design. In: Design Issues: Massachusetts Institute of Technology. Volume 18, Number 1Winter 2002. p. 1.577 OTTOMEYER, H. op. cit. p. 63578 A frase completa, de 1894, <strong>é</strong> "O único ponto de parti<strong>da</strong> possível para a criação <strong>é</strong> a vi<strong>da</strong> moderna. To<strong>da</strong>s asformas devem estar em harmonia com as novas exigências do nosso tempo. Na<strong>da</strong> que não seja prático poderáser belo”.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 269reflexivos onde criticava aci<strong>da</strong>mente o excesso de decoração do design vienense eos produtos <strong>da</strong> Secessão. Um dos seus textos mais importantes, Ornamento eCrime publicado em 1908, tornou-se um manifesto <strong>cultura</strong>l do modernismo.Apesar <strong>da</strong> rivali<strong>da</strong>de que apartava a obra destes designers, credita-se a eles aprimeira redescoberta do Biedermeier por volta de 1900, que veio a estabelecernas origens do ideal burguês de funcionali<strong>da</strong>de os princípios est<strong>é</strong>ticos <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de. 579 Otto Wagner e seus alunos de então, dentre estes Josef Hoffmanne Josef Olbrich, faziam uso do estilo Biedermeier por sua simplici<strong>da</strong>de formal elinhas limpas, assim como sua associação com a naturali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dom<strong>é</strong>stica.De qualquer forma, o resgate do Biedemeier atendeu à busca por uma expressãonacional (austríaca) com características próprias que a distanciasse dos Arts andCrafts ingleses, cujos móveis foram ostensivamente apresentados na ExposiçãoJubilar de 1898 em Viena. 580Nesta parte do trabalho observamos as contradições entre as formas protomodernas<strong>da</strong> <strong>construção</strong> do Palácio de Cristal e os objetos excessivamenteornamentados expostos em seu interior. A existência de estilos tão diferentes e avariação na própria compreensão do sentido do “bom gosto” observa<strong>da</strong> no s<strong>é</strong>culoXIX apontam para a coexistência de diversos modos de <strong>olhar</strong> em um mesmoperíodo.4.4.2. Ver<strong>da</strong>des e mentiras do valor e <strong>da</strong> aparênciaA maior parte dos produtos apresentados na Exposição de 1851 carregavaum excesso de ornamento que, na opinião de Richard Redgrave, os faziaassemelhar-se a bolos excessivamente decorados, não para serem consumidos,mas para chamar a atenção dos consumidores. 581 Aparentemente havia umaquestão simbólica que fazia com que a classe m<strong>é</strong>dia e as classes trabalhadorasdessem preferência aos produtos excessivamente decorados e coloridos porconsiderarem serem estes representativos do gosto de uma cama<strong>da</strong> superior. Parahttp://www.museuhistoriconacional.com.br/mh-e-401.htm - acesso em 17/5/2006579 A sugestão de que Loos, Moser e Hoffmann acreditaram ter descoberto o ideal burguês de funcionali<strong>da</strong>dena simplici<strong>da</strong>de do estilo de quase um s<strong>é</strong>culo atrás, <strong>é</strong> encontra<strong>da</strong> no texto introdutório do painel <strong>da</strong> exposição“Biedermeier. The Invention of Simplicity”, realiza<strong>da</strong> no Museu Albertina de Viena em 2007.580 Ver a crítica de Loos à exposição realiza<strong>da</strong> em homenagem aos 50 anos de governo do ImperadorFrancisco Jos<strong>é</strong>. LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004. p. 24-33.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 270a indústria, o excesso de ornamento não era algo problemático, na medi<strong>da</strong> em quenão implicava em aumento de custos. Se um conjunto de cutelaria deman<strong>da</strong>vameses de trabalho de um ourives, aumentando o custo de acordo com acomplexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s peças, o oposto se passava com as peças mol<strong>da</strong><strong>da</strong>s peloprocesso <strong>da</strong> galvanoplastia. 582 Neste caso, o custo não aumentava pelo excesso dedetalhes, ao contrário, poderia ser menor na medi<strong>da</strong> em que os objetos decoradosutilizam menos mat<strong>é</strong>ria prima do que as peças lisas.Esta avaliação em relação ao ornamento nos leva a rever com atenção oconceito desenvolvido por Thorstein Veblen em 1899 no texto Pecuniary Canonsof Taste. 583 Veblen aponta para uma ligação intrínseca entre a est<strong>é</strong>tica e o valor deum objeto: quanto mais ostensivamente caro um produto possa parecer, ain<strong>da</strong> quemenos a<strong>da</strong>ptado ao uso, mais ele teria a preferência dos consumidores. Aoanalisarmos o catálogo <strong>da</strong> Exposição Universal de Londres publicado pelo ArtJournal, observamos que todos os objetos reproduzidos estabelecem umaprofun<strong>da</strong> associação simbólica com a aristocracia europ<strong>é</strong>ia ao mesmo tempo emque correspondem ao retrato <strong>da</strong> produção industrial <strong>da</strong> <strong>é</strong>poca. Em outras palavras,embora a maioria dos objetos produzidos dentro do sistema industrial alcançassecustos menores, o que se vendia era a aparência de produtos caros e rebuscados.At<strong>é</strong> aqui, as evidências parecem ajustar-se ao pensamento de Veblen: as pessoas<strong>da</strong>riam preferência aos objetos excessivamente decorados que em seu imagináriocorresponderiam ao que era utilizado pela aristocracia e, portanto, teriamaparência de produtos caros. É importante destacar que a primazia seria <strong>da</strong><strong>da</strong> pelaaparência de valor, que não necessariamente corresponderia ao valor real. Aquestão complica-se quando Veblen sugere a valorização de pequenasimperfeições como evidência de um objeto produzido artesanalmente. Comovimos, o progresso t<strong>é</strong>cnico à <strong>é</strong>poca <strong>da</strong> Exposição de 1851 já permitia a produçãoem massa de produtos com ornamentos extremamente detalhados, em um nívelque já não seria possível – devido ao alto custo – de forma artesanal. Aconteceque, muitos destes objetos produzidos industrialmente necessitavam de umacabamento manual. 584 Deste modo, o artesão continuava sendo incluído na581 REDGRAVE, G. op. cit., p. 7.582 GREENHALGH, P. op. cit., p. 143.583 VEBLEN, Thorstein. The theory of the leisure class. New York: Penguin Books, [1899] 1994. p. 115-166.584 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course materialby Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 28.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 271produção, embora de outra forma, não mais produzindo o objeto do início ao fim.Neste contexto, as imperfeições do objeto produzido manualmente, de que falaVeblen, al<strong>é</strong>m de não prestar-se como garantia de um produto totalmente artesanal,parece mais corresponder aos desejos de uma <strong>cultura</strong> aristocrática que vinha sendoacua<strong>da</strong> pela ascensão de uma nova <strong>cultura</strong>, a <strong>cultura</strong> moderna. Enten<strong>da</strong>-se aquique as aspirações aristocráticas não se referem exatamente aos desejos de galgaruma determina<strong>da</strong> classe social, mas a uma condição simbólica que relacionagostos, anseios e padrões a um ideal almejado.É no contexto deste jogo simbólico que se colocam questões relaciona<strong>da</strong>s aoemprego de materiais que, apesar de não serem exatamente novos, utilizavam umamecânica de produção capaz de alcançar resultados muito diferenciados. Dentreos materiais identificados nos objetos <strong>da</strong> Exposição de 1851 encontram-se a gutapercha,o papier-mâch<strong>é</strong> e o próprio ferro.A guta-percha <strong>é</strong> uma esp<strong>é</strong>cie de látex assemelhado à borracha, mas sem asua elastici<strong>da</strong>de, obti<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> seiva <strong>da</strong> Isonandra Gutta, árvore nativa doarquip<strong>é</strong>lago malaio. Extremamente versátil, seu emprego se estendeu <strong>da</strong>manufatura de recipientes e barcos a puxadores de porta, encadernação de livros eelementos decorativos. Extremamente moldável com o calor, transforma-se emum objeto rígido com o resfriamento, quando então pode receber diversos tipos deacabamento. Deste modo, <strong>é</strong> capaz de reproduzir peças, simulando diferentesmateriais como madeira entalha<strong>da</strong>, ferro fundido e metal, a partir de moldesobtidos por eletrotipia. Um objeto em guta-percha que simulasse a madeiraentalha<strong>da</strong>, usualmente, era muito mais barato do que a mesma peça em madeira.Na Figura 204 vemos a gravura de um móvel exposto em 1851, um consolecomposto por mesa e espelho. A figura nos permite observar os detalhesornamentais criados com a guta-percha: na moldura uma composição de frutas,flores e folhas, enquanto os pain<strong>é</strong>is <strong>da</strong> mesa apresentam escudos antigos. Noentanto, a gravura não <strong>é</strong> capaz de demonstrar as características do materialutilizado como as fotografias de objetos produzidos no s<strong>é</strong>culo XIX tamb<strong>é</strong>m emguta-percha (Figura 205; Figura 206). Estas peças demonstram a plastici<strong>da</strong>de domaterial, o detalhamento dos elementos decorativos em relevo e sua capaci<strong>da</strong>dede simular outros materiais, como tamb<strong>é</strong>m sua possibili<strong>da</strong>de reprodutiva: a partirde um objeto original, podiam se produzir inúmeras outras cópias. Deste modo, à<strong>é</strong>poca <strong>da</strong> Exposição de 1851, praticamente todos os ramos <strong>da</strong> indústria inglesa


O OLHAR INOCENTE É CEGO 272haviam encontrado alguma utili<strong>da</strong>de para a guta-percha. O uso pre<strong>da</strong>tório e emlarga escala deste recurso natural quase o levou à extinção, inviabilizando autilização comercial em finais do s<strong>é</strong>culo XIX.Figura 205. C. Sharps 4 calibre 22, primeirapatente <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 1859. O cabo <strong>é</strong> de guttapercha.Disponível em: (11/04/08).Figura 204. Console com mesa e espelho. GuttaperchaCompany, Londres. The Crystal PalaceExhibition Illustrated Catalogue, London 1851.Fac-símile, reimpressão. New York: DoverPublications, 1970. p. 222.Figura 206. Par de tinteiros em guta-percha.França, 1860-1880. Disponível em: (11/04/08).Outro material que se mostra com destaque na Exposição de 1851 <strong>é</strong> opapier-mâch<strong>é</strong>, utilizado desde o s<strong>é</strong>culo XVIII, mas que sofreu um grande impulsoa partir do emprego <strong>da</strong>s prensas a vapor. Entre seus atributos, encontram-se arobustez, durabili<strong>da</strong>de, versatili<strong>da</strong>de, extrema leveza e facili<strong>da</strong>de de limpeza. Suaenorme plastici<strong>da</strong>de permitiu o emprego em inúmeros produtos e ornamentosproduzidos em massa com baixo custo. Assim como a guta-percha, era capaz desimular outros materiais. Com o acabamento adequado, uma peça em papiermâch<strong>é</strong>poderia sugerir madeira trabalha<strong>da</strong>, metal ou gesso. Um exemplo dedestaque do papier-mâch<strong>é</strong> na Exposição de 1851 <strong>é</strong> a poltrona com o sugestivonome de Day Dreamer (Figura 207). A descrição <strong>da</strong> peça no catálogo oficialexalta os significados simbólicos dos elementos decorativos: as figuras ala<strong>da</strong>s


O OLHAR INOCENTE É CEGO 273representam sonhos alegres; o duende Puck mostra-se adormecido abaixo dobraço <strong>da</strong> poltrona, enquanto a esperança <strong>é</strong> representa<strong>da</strong> pela figura do sol na partede baixo do assento. 585 Infelizmente, a reprodução em gravura <strong>é</strong> insuficiente paraque possamos imaginar uma peça de mobiliário neste material. Exemploscontemporâneos reproduzidos fotograficamente são mais representativos <strong>da</strong>scaracterísticas do papier-mâch<strong>é</strong>, ilustrando a varie<strong>da</strong>de de emprego e acabamento.Na Figura 208 podemos ver os detalhes de relevo e pintura de uma cadeira que àprimeira vista poderia ser percebi<strong>da</strong> como produzi<strong>da</strong> em madeira, assim como acaixa <strong>da</strong> Figura 210, um exemplo de item utilitário dom<strong>é</strong>stico produzido emgrande escala com este material. Já o pote para folhas de chá (Figura 209)aparenta-se à porcelana pinta<strong>da</strong>. Em todos os exemplos observa-se um grandeapuro no acabamento, no brilho e na pintura. To<strong>da</strong>s as peças foram produzi<strong>da</strong>spela manufatura Jennens & Bettridge de Birmingham que participou <strong>da</strong> Exposiçãode 1851 com outros produtos al<strong>é</strong>m <strong>da</strong> poltrona Day Dreamer. A delicadeza doacabamento <strong>da</strong>s peças nos permite compreender a sua exibição dentro de vitrinesno Palácio de Cristal. Na aquarela de Pidgeon (Figura 211), vemos uma vitrinepoligonal, no canto direito <strong>da</strong> imagem, que guar<strong>da</strong> objetos em papier-mâch<strong>é</strong> <strong>da</strong>manufatura Spiers & Son de Oxford. Esta forma de exibição confirma a id<strong>é</strong>ia deuma mostra “apenas para os olhos” onde o público não tinha a possibili<strong>da</strong>de detocar os objetos de uso diário, exibidos como obras de arte <strong>da</strong> indústria.585 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course materialby Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 28.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 274Figura 207. Day Dreamer. Poltrona em papiermâch<strong>é</strong>.Design H. Fitz Cook. Manufatura Jenningsand Bettridge, Belgrave Square and Birmingham.The Crystal Palace Exhibition IllustratedCatalogue, London 1851. Fac-símile,reimpressão. New York: Dover Publications, 1970.p. xi.Figura 208. Detalhe de cadeira em papiermâch<strong>é</strong>com pintura japonesa feita sobremadeira. Manufatura Jennens & Bettridge,Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850.Victoria and Albert Museum, London.Disponível em: (12/04/08).Figura 209. Pote para chá. Tea Caddy. Papiermâch<strong>é</strong>.Manufatura Jennens & Bettridge,Birmingham, Inglaterra. 1851. Victoria andAlbert Museum, London. Disponível em: (12/04/08).Figura 210. Caixa para trabalhos manuais.Papier-mâch<strong>é</strong>. Manufatura Jennens & Bettridge,Birmingham, Inglaterra. Ca. 1850. Victoria andAlbert Museum, London. Disponível em: (12/04/08).


O OLHAR INOCENTE É CEGO 275Figura 211. Vista <strong>da</strong> nave oeste, interior do Palácio de Cristal, 1851.Aquarela e guache sobre papel de Henry Clarke Pidgeon (1807-80).Victoria and Albert Museum, London. Disponível em: (12/04/08).A possibili<strong>da</strong>de de se obter de forma barata uma duplicata exata de umobjeto esmera<strong>da</strong>mente trabalhado em madeira assume ares de falsificação nopensamento de John Ruskin. Para Ruskin <strong>é</strong> fun<strong>da</strong>mental que qualquer trabalhosaiba extrair as peculiari<strong>da</strong>des do material escolhido. Em um texto de 1859,Ruskin sugere que “quando não se desejam as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> substânciaemprega<strong>da</strong>, deveria se empregar uma outra. [...] Se você não quer massa e solidez,não utilize o mármore. Se você quer leveza, escolha a madeira. Se quiserliber<strong>da</strong>de, use o gesso. Se quiser ductili<strong>da</strong>de, escolha o vidro. Não tente esculpirpenas, árvores, redes ou espuma em mármore. Antes, use-a para esculpir membrosbrancos e peitos largos”. 586 Mas, os tempos de meados do s<strong>é</strong>culo sugeriam outroscaminhos e Ruskin reconhece que estes princípios, por ele apresentados, sãodiretamente contrariados por “nós modernos”. 587 De fato, o que parecia estaracontecendo <strong>é</strong> que, com o surgimento de novos materiais e suas combinações,novos conceitos de utilização de materiais iriam se impor sem limitações para ainventivi<strong>da</strong>de.A questão <strong>da</strong> simulação de um material por outro aparece em um texto deBenjamin como uma característica dos primórdios <strong>da</strong> t<strong>é</strong>cnica:586 RUSKIN, John. A economia política <strong>da</strong> arte. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p. 126-127.587 Id.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 276“Ca<strong>da</strong> industrial imitava o material e a forma do outro, imaginando ter realizadoum milagre de bom gosto se conseguisse fabricar xícaras de porcelana como sefeitas por um toneleiro, copos parecendo porcelana, jóias de ouro lembrandocorreias de couro, mesas de ferro imitando vime etc. Nesta arena lançava-setamb<strong>é</strong>m o confeiteiro, esquecendo totalmente o domínio próprio e os crit<strong>é</strong>rios desua arte, e tentando ascender a escultor e arquiteto”. Jacob Falke, Geschichte desmodernen Geschmacks, p. 380. Essa falta de crit<strong>é</strong>rios advinha, em parte, <strong>da</strong>abundância de procedimentos t<strong>é</strong>cnicos e de novos materiais com os quais fomospresenteados <strong>da</strong> noite para o dia. À medi<strong>da</strong> que se tentava adquirir umafamiliari<strong>da</strong>de mais profun<strong>da</strong> com eles, vieram a ocorrer desacertos e experimentosmalogrados. Por outro lado, essas tentativas são os testemunhos genuínos doquanto a produção t<strong>é</strong>cnica em seus primórdios estava mergulha<strong>da</strong> em sonhos.(Tamb<strong>é</strong>m a t<strong>é</strong>cnica, e não só a arquitetura, <strong>é</strong> em certas fases o testemunho de umsonho coletivo.)”. 588A abundância de novas t<strong>é</strong>cnicas surgi<strong>da</strong>s em um curto espaço de tempopode ter sido, como aponta Benjamin, responsável por alguns “desacertos”. Noentanto, não resta dúvi<strong>da</strong> de que a espiral <strong>da</strong> t<strong>é</strong>cnica alia<strong>da</strong> à id<strong>é</strong>ia de progresso,constituiu-se na mat<strong>é</strong>ria prima dos mais diversos sonhos, principalmente o sonhode uma vi<strong>da</strong> melhor graças às novas possibili<strong>da</strong>des materiais distribuí<strong>da</strong>s de formamais ampla. Em relação à questão específica dos simulacros gerados pelosdiversos materiais não há como precisar a recepção do público, mas <strong>é</strong> possívelimaginar como pode ter sido intrigante o conhecimento de que a aparência de umdeterminado material não correspondia, de fato, à sua ver<strong>da</strong>de. Neste jogo, ohomem coloca-se como senhor, capaz de manipular o mundo e sua própriapercepção dos objetos à sua volta.Algumas <strong>da</strong>s tecnologias que, no s<strong>é</strong>culo XIX, permitiam a simulação de ummaterial por outro, tamb<strong>é</strong>m ressaltam outra questão importante: a <strong>da</strong>reprodutibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra de arte. Cópias de obras de arte e de es<strong>cultura</strong>s eramemprega<strong>da</strong>s pelos incas no Peru, antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> do europeu ao continenteamericano (Figura 212). No entanto, os processos industriais trouxeram novaspossibili<strong>da</strong>des de reprodução de produtos e imagens em quanti<strong>da</strong>des antesimpensa<strong>da</strong>s. Utilizando a eletrotipia ou galvanotipia, modelos <strong>da</strong> natureza podiamser exatamente duplicados em um processo que se colocava para a es<strong>cultura</strong> domesmo modo que a fotografia para a pintura. Trabalhos em madeira entalha<strong>da</strong>podiam ser reproduzidos tornando-se “indistinguíveis” de peças entalha<strong>da</strong>s pelaação humana e, ain<strong>da</strong> que se fizesse necessário o acabamento manual, soava mais588 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 191. [F 1a,2].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 277interessante adquirir uma peça barata com detalhes produzidos industrialmente doque uma peça desinteressante produzi<strong>da</strong> artesanalmente e pelo mesmo valor.Figura 212. Figura e molde em barro. Museu Nacional deAntropologia, Arqueologia e História. Lima, Peru. ArquivoPessoal.Deste modo, observa-se que a invenção <strong>da</strong> fotografia como t<strong>é</strong>cnica dereprodução de imagens não consistiu um caso isolado. Na ver<strong>da</strong>de, a divulgaçãode sua descoberta em 1839 deu-se em um momento onde diversas outrasinvenções eram torna<strong>da</strong>s públicas, algumas para desaparecer, em segui<strong>da</strong>,passando a constituir conhecimento básico para desenvolvimentos posteriores e,deste modo, tornando-se obsoletas.A id<strong>é</strong>ia de que os processos de reprodução gráfica aproximavam a arteutilitária do público <strong>é</strong> amplamente reforça<strong>da</strong> pela crescente tiragem dos jornaisilustrados que no caso do Ilustrated London News alcançou 60.000 exemplares em1850. 589 John Ruskin, ao voltar-se para uma arte que se mostrassse edificante,questionava em que medi<strong>da</strong> a arte barata reproduzi<strong>da</strong> em massa não estariacriando apenas uma arte efêmera e descartável mas, tamb<strong>é</strong>m, uma sensibili<strong>da</strong>deefêmera. 590 Fazendo referência à divulgação de ilustrações em periódicos como oIlustrated London News, Ruskin afirma que um bom gravado em madeira por umshilling vale mais do que doze gravados de má quali<strong>da</strong>de por um penny ca<strong>da</strong>.Al<strong>é</strong>m disso, para Ruskin, a quanti<strong>da</strong>de era por si só uma objeção. Muitas coisas,mesmo boas coisas, já seriam por si só uma forma de corrupção <strong>da</strong> percepção.589 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry, Open University A100 course materialby Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press, 1971. p. 93.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 278Muitas coisas de má quali<strong>da</strong>de seriam tanto pior. Neste sentido, Ruskindiscor<strong>da</strong>va de que uma arte barata deveria ser posta ao alcance de todos 591embora, paradoxalmente, considerava que a arte não deveria ser mais umaprerrogativa dos privilegiados. 592 Para ele a arte não poderá ser excessivamentebarata, na medi<strong>da</strong> em que “a quanti<strong>da</strong>de de prazer que se pode receber de umcerto trabalho, depende <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de de energia mental que se pode depositarsobre ele”. 593 Com isso ele queria dizer que a nossa capaci<strong>da</strong>de de apreciar umaobra de arte diminuía na medi<strong>da</strong> em que este prazer tivesse que ser compartilhadopor muitas obras, “fragmentos partidos de admirações”. 594 Deste modo, at<strong>é</strong>mesmo uma boa obra de arte deixa de ser boa se ela tiver que ser usufruí<strong>da</strong> sempausa, em excesso.O posicionamento de Ruskin assume ares prof<strong>é</strong>ticos do debate sobre aIndústria Cultural desenvolvido quase um s<strong>é</strong>culo depois, quando Adorno eHorkheimer propõem-se a expor a mitificação <strong>da</strong>s massas afirmando que sob opoder do monopólio econômico, to<strong>da</strong> <strong>cultura</strong> de massa <strong>é</strong> idêntica na medi<strong>da</strong> emque se constitui fun<strong>da</strong>mentalmente em um negócio. 595 Deste modo, todo produto<strong>cultura</strong>l seria criado segundo um modo onde as cifras se sobrepõem ao social. A<strong>cultura</strong>, transforma<strong>da</strong> em objeto a ser consumido, acabaria por transformar oconsumidor em objeto – infantilizado, passivo e acrítico - caracterizando umaforma autoritária e vertical de expansão <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>.Tamb<strong>é</strong>m Walter Benjamin abordou esta questão por outro vi<strong>é</strong>s em seuconhecido texto A obra de arte na <strong>é</strong>poca sua reprodutibili<strong>da</strong>de t<strong>é</strong>cnica. Benjaminconsiderava que a reprodução t<strong>é</strong>cnica levantava a possibili<strong>da</strong>de de democratizaçãona medi<strong>da</strong> em que modificava a relação <strong>da</strong> massa com a arte. Discutindo arecepção <strong>da</strong> pintura e do cinema, Benjamin considerava que o senso crítico erafavorecido pela “ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por umlado, e a atitude do especialista, por outro”, 596 desde que respeita<strong>da</strong>s as590 RUSKIN, John. Lecture in Manchester, 1857. Apud The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Artand Industry, Open University A100 course material by Aaron Scharf. Great Britain: Open University Press,1971. p. 93.591 The Crystal Palace and the Great Exhibition, in Art and Industry…p. 93.592 Ibid., p. 106.593 Ibid., p. 93.594 Ibid., p. 93.595 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dial<strong>é</strong>tica do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1985. p. 114.596 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na <strong>é</strong>poca de sua reprodutibili<strong>da</strong>de t<strong>é</strong>cnica. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s.Magia e t<strong>é</strong>cnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 187-188.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 279especifici<strong>da</strong>des t<strong>é</strong>cnicas. Benjamin, às v<strong>é</strong>speras <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra, considerava amassa como a matriz <strong>da</strong> qual emana “to<strong>da</strong> uma atitude nova com relação à obra dearte. A quanti<strong>da</strong>de converteu-se em quali<strong>da</strong>de. O número substancialmente maiorde participantes produziu um novo modo de participação”. 597Outro lado <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> reprodutibili<strong>da</strong>de que era coloca<strong>da</strong> e igualmente,ain<strong>da</strong> hoje se coloca, <strong>é</strong> o tema <strong>da</strong> divisão do trabalho. Os periódicos ilustrados,como o Illustrated London News, eram ver<strong>da</strong>deiras fábricas de imagens. Issotamb<strong>é</strong>m não era exatamente novo, na medi<strong>da</strong> em que Michelangelo na pintura <strong>da</strong>Capela Sistina contou com o trabalho de diversos aju<strong>da</strong>ntes. Mas, no caso <strong>da</strong>sgravuras produzi<strong>da</strong>s no s<strong>é</strong>culo XIX a divisão de trabalho levantava dúvi<strong>da</strong>s emrelação à uniformi<strong>da</strong>de de estilo do gravado. Na Inglaterra, a maioria dosgravadores não assinava o seu trabalho, ao contrário do que acontecia na França, ecomo uma única ilustração era dividi<strong>da</strong> em diversos blocos de madeira, nem todostinham a noção do todo. No entanto, o fato de trabalharem juntos e de formaacelera<strong>da</strong>, compartilhando o mesmo ambiente <strong>cultura</strong>l fazia com que um estilosemelhante fosse mantido.1835-1845: “Não podemos esquecer... que a produção em grande escala, queocorreu naquela <strong>é</strong>poca no setor <strong>da</strong>s gravuras em madeira, conduziu-a muitorapi<strong>da</strong>mente a uma forma de produção industrial. Um dos gravadores de umafábrica se encarregava só <strong>da</strong>s cabeças ou dos corpos; outro, dos menos habilidosos,ou um dos aprendizes, fazia os acessórios, os cenários de fundo etc. Com taldivisão de trabalho, não era possível alcançar uma uniformi<strong>da</strong>de”. Eduard Fuchs,Honor<strong>é</strong> Daumier: Holzschnitte1833-1870, Munique, 1918, p. 16. 598Nesta parte do capítulo em que analisamos como o modo de <strong>olhar</strong> modernoserviu-se de uma pe<strong>da</strong>gogia de divulgação, observamos duas importantes questõesparalelas que influenciaram diretamente a <strong>construção</strong> deste <strong>olhar</strong>: a produção emmassa e o trabalho <strong>visual</strong> de caráter coletivo. A divisão do trabalho, no caso <strong>da</strong>produção de gravuras para a imprensa diária, indica uma forma sinedótica decompreensão <strong>da</strong> execução <strong>da</strong> obra, na medi<strong>da</strong> em que, ao trabalhar sobredetermina<strong>da</strong> parte, não se pode perder a “<strong>visual</strong>ização” do todo. Estendendo esteraciocínio, podemos pensar que a compreensão na participação de um projetomais amplo, mostrava-se condição essencial para que a expressão <strong>visual</strong>individual mantivesse coerência com o estilo particular <strong>da</strong> obra.597 Ibid., p. 192.598 BENJAMIN, Walter. Passagens... p. 824. [i 1,8].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 2804.5. Progresso, uma missão quase sagra<strong>da</strong>Apesar do termo “universal” não constar no nome <strong>da</strong> primeira grandeExposição, realiza<strong>da</strong> em Londres em 1851, este conceito já se encontravapresente. Distante <strong>da</strong> conotação geográfica, “que abarca to<strong>da</strong> a Terra” ou “queadvêm de todos”, a palavra “universal” deve ser compreendi<strong>da</strong> a partir dos valoresque congregam os países portadores e exportadores dos significados de progresso,certificando e consoli<strong>da</strong>ndo a superiori<strong>da</strong>de capitalista frente a outros povos enações. Deste modo, estabelece-se uma correspondência entre o conceito de“progresso” e o termo “universal”. No contexto de uma concepção dogmática,positivista e universalizante do mundo, a indústria e seus efeitos tornam-se chavepara o progresso e o desenvolvimento material. O termo progresso tomadoinicialmente a partir <strong>da</strong> definição de Baudelaire, “dominação progressiva <strong>da</strong>mat<strong>é</strong>ria” 599 , associa-o diretamente à ostentação material evidencia<strong>da</strong> nasExposições. Baudelaire, ao realizar a crítica de arte <strong>da</strong>s obras exibi<strong>da</strong>s naExposição Universal de 1855, considera grotesca a id<strong>é</strong>ia de um progressocrescente e teleológico, um “fanal obscuro”. 600Se uma nação concebe hoje a questão moral num sentido mais complexo do que oentendia no s<strong>é</strong>culo precedente, há progresso, isso <strong>é</strong> evidente. Se um artista produzneste ano uma obra que manifesta mais saber ou força imaginativa do quedemonstrou no ano passado, certamente ele progrediu. Se os víveres hoje são maisbaratos e de melhor quali<strong>da</strong>de do que os de ontem, isso <strong>é</strong> um progressoincontestável na ordem material. Mas, por favor, onde está a garantia de progressopara o futuro? 601No s<strong>é</strong>culo XIX, o progresso material evidencia a sugestão otimista de umfuturo melhor. Benjamin reproduz o pensamento de Wiertz publicado em 1870,“por ocasião de uma Exposição Universal: O que de imediato surpreende não <strong>é</strong> oque os homens fazem hoje, mas o que farão mais tarde”. 602 Embora, comoquestiona Baudelaire, não existam garantias quanto ao futuro, uma sucessão deavanços tecnológicos se mostrava como evidência – inclusive <strong>visual</strong> – dedesenvolvimentos progressivos e sucessivos. Neste contexto, firmou-se uma599 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora NovaAguilar, 1995. p. 801.600 BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal (1855). Belas-Artes. Poesia e prosa: volume único. Rio deJaneiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 775.601 BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal (1855)... p. 775.602 BENJAMIN, W. Passagens... p. 212. [G 2a, 4].


O OLHAR INOCENTE É CEGO 281conexão direta entre o mundo industrial e a civilização ocidental, onde asExposições que apresentavam e divulgavam as novi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> produção industrialeram compreendi<strong>da</strong>s como cartão de visitas desta formulação. O período de 1851a 1915 demarca uma fase em que as Exposições Universais mostram-se comovitrines do binômio progresso-civilização. 603A abrangência dos itens expostos reforçava a pretensão “universal” <strong>da</strong>sexposições de englobar tudo o que se relacionasse à ativi<strong>da</strong>de humana,apresentando “todo o universo, numa extensão do sentido enciclop<strong>é</strong>dico do s<strong>é</strong>culoXVIII”. 604 O cosmopolitismo iluminista articulava-se às ambições enciclop<strong>é</strong>dicaspara estimular a freqüência às exposições. O público que comparecia a esteseventos de culto ao progresso maravilhava-se com as novi<strong>da</strong>des do mundo dosbens. Não obstante, <strong>é</strong> provável que sentimentos conflitantes assomassem osvisitantes na alternância entre sensações de prazer e de fadiga, produzi<strong>da</strong> pelasuperestimulação sensorial. Neste contexto, <strong>é</strong> possível localizar nas Exposiçõesevidências do primeiro grito do excesso de informação e de imagens que hojeassombra a humani<strong>da</strong>de. Para Benjamin, a indústria do entretenimento refina emultiplica as varie<strong>da</strong>des de comportamento reativo <strong>da</strong>s massas, preparando-o parao adestramento <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de. Deste modo, fun<strong>da</strong>menta-se a ligação entre aindústria publicitária e as Exposições. 605Desde a primeira, The Great Exhibition of the Works of Industry of AllNations, as Exposições apresentavam-se revesti<strong>da</strong>s “de uma missão quasesagra<strong>da</strong>: <strong>da</strong>r oportuni<strong>da</strong>de de congraçamento aos povos e estreitar os laços desoli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s nações dentro dos novos tempos de progresso e civilização”. 606Este conceito apareceu no discurso do príncipe Albert que em 1849 anunciou oevento. Albert acreditava que as Exposições poderiam contribuir para a uni<strong>da</strong>dedos povos - a grande finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> história. Na medi<strong>da</strong> em que as distâncias entreas nações estariam rapi<strong>da</strong>mente encolhendo graças às invenções modernas, 607 ascriações <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> indústria não seriam privil<strong>é</strong>gio de uma nação, mas603 NEVES, M. op. cit.604 BARBUY, H. op. cit., p. 18.605 BENJAMIN, Walter. Passagens... op. cit., p. 236. [G 16,7].606 PESAVENTO, S. op. cit., p. 73.607 The Exhibition of 1851. The Speech of H.R.H. The Prince Albert, K.G., F.R.S., at The Lord Mayor'sBanquet, in the City of London, October 1849. The Illustrated London News, 11 October 1849. [1849-10-11]http://pages.zoom.co.uk/leveridge/albert.html acesso em 1 de fevereiro de 2008 às 21:19h.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 282pertenciam ao mundo inteiro. 608 Em seu discurso, o Príncipe tamb<strong>é</strong>m exaltou adivisão do trabalho na produção, como um motor <strong>da</strong> civilização em expansão paraoutros ramos. 609 Ciência, indústria e arte seriam alia<strong>da</strong>s do homem - instrumentodivino - em sua conquista <strong>da</strong> natureza. A ciência descobre as leis que regem opoder, o movimento e a transformação; a indústria as aplica à mat<strong>é</strong>ria prima cruaque a terra cede em abundância, mas que se torna valiosa apenas com oconhecimento; a arte ensina-nos as leis imutáveis <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> simetria, e comelas dá forma às produções do homem. 610 Neste contexto, estabelece-se, segundoWerner Plum, uma <strong>da</strong>s funções cumpri<strong>da</strong>s pelas feiras mundiais, ou seja, suacontribuição no sentido de intensificar a f<strong>é</strong> no aperfeiçoamento do homem e “nameta final de uma civilização mundial unitária”. 611Aparentemente a id<strong>é</strong>ia de união entre os povos apenas mascarava umarivali<strong>da</strong>de crescente, principalmente entre França e Inglaterra. A primeira, emboranão alcançando o mesmo patamar de desenvolvimento industrial, afirmava-sepelos artigos de luxo: “as porcelanas de Sèvres e Limoges, os tapetes deAubusson, as se<strong>da</strong>s de Lião, os perfumes e os trabalhos de ourivesaria”. 612 AInglaterra, dizia-se, “prepara produtos para o consumo popular”. 613 Esta críticatalvez escondesse a morosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> industrialização francesa que teriapermanecido mais relaciona<strong>da</strong> à ativi<strong>da</strong>de manual.Utilizando a noção de campo, cria<strong>da</strong> por Bourdieu 614 , <strong>é</strong> possível analisar asfeiras universais como campos onde <strong>cultura</strong>s artísticas e cientificas <strong>da</strong>s principaisnações e <strong>cultura</strong>s competiam pela vali<strong>da</strong>ção e legitimação do padrão simbólicodominante de progresso e moderni<strong>da</strong>de. De fato, a uni<strong>da</strong>de entre os povosmostrava-se menos evidente do que a ascensão de um capital globalizado. Plumobserva que Marx e Engels consideraram a exposição de 1851 uma “provacontundente do poder concentrado, com o qual a grande indústria moderna rompeas barreiras nacionais e confunde ca<strong>da</strong> vez mais as peculiari<strong>da</strong>des locais <strong>da</strong>608 Le Livre des Expositions Universelles. 1851-1989. Paris, Ed. Des Arts D<strong>é</strong>coratifs/Herscher, 1983(Journal”R<strong>é</strong>cits et T<strong>é</strong>moignages, 1851, p. 17. apud PESAVENTO, S. op. cit., p. 73.609 The Exhibition of 1851. The Speech of H.R.H. The Prince Albert, K.G., F.R.S., at The Lord Mayor'sBanquet, in the City of London, October 1849. The Illustrated London News, 11 October 1849. [1849-10-11]http://pages.zoom.co.uk/leveridge/albert.html acesso em 1 de fevereiro de 2008 às 21:19h.610 Id.611 PLUM, W. op. cit., p. 61.612 PESAVENTO, S. op. cit., p. 82.613 PESAVENTO, S. op. cit., p. 83.614 BOURDIEU, Pierre. Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe. A economia <strong>da</strong>s trocassimbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva: 2004. p. 183-202.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 283produção, as condições sociais, o caráter de ca<strong>da</strong> povo em particular”. 615 ParaHarvey, a organização de uma s<strong>é</strong>rie de Exposições Mundiais celebrou o“globalismo” 616 , ao mesmo tempo em que fornecia um arcabouço no âmbito doqual se poderia entender aquilo que Benjamin denomina “a fantasmagoria” domundo <strong>da</strong>s mercadorias e <strong>da</strong> competição entre nações-Estado e sistemasterritoriais de produção.Não há dúvi<strong>da</strong> de que o maior objetivo <strong>da</strong> Exposição Mundial de Londresera industrial e comercial, mas ela não pode simplesmente ser compreendi<strong>da</strong>como espaço para ven<strong>da</strong> de produtos e intercâmbio de mercadorias. 617 Um <strong>olhar</strong>que se distancie deste posicionamento <strong>é</strong> sugerido pela historiadora MadeleineReberioux, em seu estudo sobre as Exposições, ao propor que se coloquetemporariamente “entre parênteses, a dimensão explicitamente econômica <strong>da</strong>pesquisa” 618 como forma de não perder de vista a dimensão <strong>cultura</strong>l do trabalho.Neste contexto, observamos, por exemplo, a atuação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de gera<strong>da</strong> apartir do sucesso e dos prêmios obtidos. As premiações outorga<strong>da</strong>s por júrisinternacionais conceituados constituíam-se em um incentivo decisivo para aparticipação de empresários nas exposições. Al<strong>é</strong>m de aumentar o prestígio emseus países de origem, tamb<strong>é</strong>m influíam na expansão <strong>da</strong>s ven<strong>da</strong>s. Em algunscasos, a simples presença de produtos e máquinas nas feiras industriais eexposições universais era parâmetro do sucesso destes artefatos. Já em 1862,lemos no Trait<strong>é</strong> theorique et pratique des moteurs à vapeurs que a importância<strong>da</strong>s locomotivas a vapor pode ser julga<strong>da</strong> pelo número de peças encontra<strong>da</strong>s nasexposições industriais e agrícolas. 619 Uma me<strong>da</strong>lha conquista<strong>da</strong> em umaExposição Universal representava, ain<strong>da</strong> no s<strong>é</strong>culo XX, um sinal dereconhecimento à quali<strong>da</strong>de do produto exibido 620 . Um conferencista naExposição parisiense de 1867 considerava que:“Os livros, brochuras que tratam <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> economia social são tirados emmilhões de exemplares e são pouco lidos. As id<strong>é</strong>ias que terão publici<strong>da</strong>de na615 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Werke, vol. 7. Berlim, 1969. p. 431. apud. PLUM, W. op. cit., p. 21.616 HARVEY, D. op. cit., p. 240-241.617 PLUM, W. op. cit., p. 65.618 REBERIOUX, M. op. cit., p. 3.619 AINÉ, Armengaud. Trait<strong>é</strong> theorique et pratique des moteurs a vapeurs. Paris: A. Morel et Ge. Libraires,1862. p. 111.620 PLUM, W. op. cit., p. 91.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 284exposição serão vistas por milhões de olhos, estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s e comenta<strong>da</strong>s por milhõesde inteligências”. 621De fato, mais do que espaço de exposição, as feiras eram santuários de cultoao progresso ou, ain<strong>da</strong>, como concluiu Benjamin “lugares de peregrinação aofetiche <strong>da</strong> mercadoria”. 622 Mais do que objetos, o que se expunha era a id<strong>é</strong>ia deuma socie<strong>da</strong>de industrial, chave do progresso material que podia encaminhargrandes mu<strong>da</strong>nças e o caminho <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. É neste contexto que as Exposiçõescolocam o <strong>olhar</strong> com algo que pode ser aprendido. Elas atuaram diretamente na“naturalização” do <strong>olhar</strong> moderno, na <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna,contribuindo, ao mesmo tempo, para sua padronização e realimentação.As Exposições sucederam-se por diversos países, sempre em busca desuperar a precedente em novi<strong>da</strong>des ou em tamanho. A freqüência <strong>da</strong>s exposiçõeslevava os países participantes a construírem pavilhões sempre mais opulentos comum custo que poderia ser desastroso na ausência de um investimento paralelo empublici<strong>da</strong>de. Após a Primeira Guerra, que abalou a f<strong>é</strong> no progresso <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>dee o próprio sentido <strong>da</strong>s Exposições Universais, encontram-se evidências de abusospolíticos e comerciais e mesmo de boicotes deliberados a alguns eventos. Em1928, um encontro em Paris estabeleceu parâmetros disciplinares relacionados àforma e a freqüência <strong>da</strong>s Exposições. Antes que se pudesse verificar ocumprimento do acordo, o início <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra rompeu definitivamente comas características <strong>da</strong>s Exposições, substituí<strong>da</strong>s por eventos menores, maisespecializados ou com menor projeção.621 LAVOLÉE, C. Les expositions de l’industrie et l’exposition universelle de 1867. Paris, Hachette, 1867(Conferences populaires faites à l’asile imperiale de Vincennes). p. 47. apud PESAVENTO, S. op. cit., p.125.622 BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do s<strong>é</strong>culo XIX. . In: Passagens... p. 43.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 2855.Considerações finaisNeste trabalho buscamos compreender as transformações <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>contemporânea a partir de um <strong>olhar</strong> em direção ao passado, um <strong>olhar</strong> inspirado noanjo <strong>da</strong> história de Walter Benjamin. 623 A visão do Angelus Novus nos conduziuindicando a direção como um ra<strong>da</strong>r, abrindo caminho na tempestade de novi<strong>da</strong>desofereci<strong>da</strong>s pelo progresso – as novas configurações materiais ou apenas as novasembalagens com as quais o mesmo <strong>é</strong> reciclado e oferecido como novo ao <strong>olhar</strong>.Ain<strong>da</strong>, de acordo com a visão que tem <strong>da</strong> história o anjo imaginado por Benjamin,nossa intenção não foi constituir uma cadeia de acontecimentos ou o traçado deuma continui<strong>da</strong>de sobre os modos de <strong>olhar</strong> do início <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna at<strong>é</strong> os diasatuais. O objetivo principal do nosso trabalho consistiu em “puxar um fio” <strong>da</strong>história para com ele constituir o eixo <strong>da</strong> presente discussão. Um fio que nospermitisse conduzir um <strong>olhar</strong> com os p<strong>é</strong>s assentados sobre o presente, uma visãohistórica que nos fornecesse subsídios para avaliar a participação de modelos de<strong>olhar</strong> anteriores. Recolhemos os elementos <strong>da</strong> história e o trouxemos para opresente, como forma de reavivá-los, de fazê-los ocupar o espaço que lhes cabenas transformações do presente e de prepará-los para o diálogo com a <strong>cultura</strong><strong>visual</strong> contemporânea.O momento atual traz em seu bojo uma enorme carga de excessostecnológicos e estímulos sensoriais em uma <strong>construção</strong> simbiônica, algumas vezespercebi<strong>da</strong> como ápice do projeto moderno, outras, compreendi<strong>da</strong> como uma etapaposterior a este empreendimento - o pós-moderno. A <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna, deum modo ou de outro, ain<strong>da</strong> se faz presente, at<strong>é</strong> mesmo, na medi<strong>da</strong> em queprocura apagar os traços de tudo o que veio antes, inclusive as marcas de suaprópria constituição moderna. Suprimir rastros <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m apagar ahistória e colocar-se frente a tudo que <strong>é</strong> novo. É neste contexto que, ao pensar o623 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito <strong>da</strong> História. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s. Magia e t<strong>é</strong>cnica, arte e política.São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 226.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 286passado, o nosso objetivo específico <strong>é</strong> fornecer subsídios para a compreensão decomo a <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> do presente vem sendo construí<strong>da</strong> - suas continui<strong>da</strong>des econtradições. Este objetivo impõe-se de forma inequívoca ante a possibili<strong>da</strong>de dedeixar-se arrastar irresistivelmente para o futuro.A <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> moderna não teria se construído sem que o <strong>olhar</strong> tivessesido precedido por uma racionalização, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na convenção <strong>da</strong>perspectiva e divulga<strong>da</strong> pela invenção <strong>da</strong> gravura, como vimos no primeirocapítulo deste estudo. O olho, a partir <strong>da</strong> Era Moderna, <strong>é</strong> transformado em uminstrumento que, em combinação com as funções racionais <strong>da</strong> mente, promete o“conhecimento ver<strong>da</strong>deiro”. O olho torna-se uma ferramenta que deve serconstantemente aperfeiçoa<strong>da</strong> atrav<strong>é</strong>s do emprego de aparatos ópticos etecnológicos. Este conceito de aprimoramento em bases científicas permaneceatuante na prática <strong>da</strong>s diversas profissões do s<strong>é</strong>culo XXI - <strong>da</strong> medicina ao design.A socie<strong>da</strong>de ocidental, desde a chama<strong>da</strong> “revolução industrial”, vem <strong>da</strong>ndodestaque às mu<strong>da</strong>nças trazi<strong>da</strong>s pelo avanço <strong>da</strong>s novas tecnologias.No segundo capítulo deste trabalho, vimos que a ascensão de um novoparadigma tecnológico trouxe modificações nas dimensões tempo-espaço,comprimindo distâncias, aproximando reali<strong>da</strong>des, acelerando transformações, emresumo, alterando os percursos de uma socie<strong>da</strong>de. Apesar disso, a tecnologia nãopode ser considera<strong>da</strong> como único crit<strong>é</strong>rio de análise, mas como um crit<strong>é</strong>rio deimportância. Embora seja equivocado admitir a influência <strong>da</strong> tecnologia comofator preponderante no ambiente social, não se pode relevar a extensão de suaatuação nas bases materiais <strong>da</strong> economia, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>. A nossaconsideração <strong>é</strong> que tecnologias podem atuar como um agente catalisador dedetermina<strong>da</strong>s conseqüências, mas não chegam a caracterizar condição suficientede possibili<strong>da</strong>de para que estas transformações se realizem em qualquer socie<strong>da</strong>deou período. Al<strong>é</strong>m disso, há que estabelecer diferenças entre as influências diretase as indiretas, gera<strong>da</strong>s pelas tecnologias. Como exemplos de influências diretas,analisamos a ação <strong>da</strong>s novas tecnologias de transporte e comunicação nacompressão tempo-espaço e no aumento exponencial de informações visuais. Aeletrici<strong>da</strong>de tamb<strong>é</strong>m foi examina<strong>da</strong> como uma influência direta, mas de ação maislenta. As transformações urbanas que produziram a ci<strong>da</strong>de moderna podem seraponta<strong>da</strong>s como exemplo de influência indireta <strong>da</strong>s novas tecnologias sobre o


O OLHAR INOCENTE É CEGO 287<strong>olhar</strong> na medi<strong>da</strong> em que podem ser compreendi<strong>da</strong>s, em última instância, comoconseqüência dos novos processos de produção trazidos com a industrialização.Neste trabalho, mostramos que, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culo XIX,diversas tecnologias passaram a atuar na compressão <strong>da</strong>s dimensões tempoespaço,articulando a <strong>construção</strong> de um novo modo de <strong>olhar</strong>. Este novo ambientetempo-espacial, acompanhado de modificações no tecido urbano e <strong>da</strong>multiplicação exponencial de imagens e objetos, influiu na necessi<strong>da</strong>depermanente de produção do novo, do diferente, capaz de obter ressalto sobre aprofusão de fatos visuais. Neste contexto, a impossibili<strong>da</strong>de de existência de um<strong>olhar</strong> <strong>inocente</strong> estabelece sua contraparti<strong>da</strong> na constante observação do novo.Na medi<strong>da</strong> em que, o passado forneceu a estrutura para a padronização e aracionalização de um modo de <strong>olhar</strong> sobre o qual as novas tecnologias puderamatuar na transformação <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de, cabe ao presente a realimentação desteprocesso. Ao longo do terceiro e último capítulo do nosso trabalho, demonstramoseste processo na análise <strong>da</strong>s primeiras Exposições Universais. Estas Exposiçõesforam absolutas expressões <strong>da</strong> <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de. A exibição de novos materiais,tecnologias e produtos produziu um caleidoscópio <strong>visual</strong> capaz de estimularalterações na experiência perceptiva. Atuaram reforçando a ascendência dosentido <strong>visual</strong> na socie<strong>da</strong>de burguesa do s<strong>é</strong>culo XIX, tendo como fun<strong>da</strong>mento ainculcação de um conceito de progresso intimamente relacionado à expansão <strong>da</strong><strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de.A nossa pesquisa sugere que o <strong>olhar</strong> moderno foi construído sobre um trip<strong>é</strong>formado pelas tecnologias modeladoras <strong>da</strong>s relações tempo-espaço, pelasconvenções que contribuíram para a sua compreensão e naturalização e por umape<strong>da</strong>gogia que inculcou a abertura para o novo, de modo a garantir a perpetuaçãodeste modo de <strong>olhar</strong>.O presente trabalho sugere a formulação de dois modelos ou dois momentosconstrutores do <strong>olhar</strong> moderno. Diante desta consideração, ressaltamos que ummodelo, ou momento, não se esgota simplesmente, mas fornece os fun<strong>da</strong>mentossobre os quais o novo modelo se constitui. A compreensão destes modelos emseparado tem a intenção de destacar o que subsiste de ca<strong>da</strong> um no modo de <strong>olhar</strong>contemporâneo. Assim, encontramos, de um lado, a racionali<strong>da</strong>de e a busca <strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de que, por mais que tenha sido revisa<strong>da</strong> e contesta<strong>da</strong> nos ambientesacadêmicos atuais, continua persistindo na manutenção de convenções que


O OLHAR INOCENTE É CEGO 288favorecem a troca signica. De outro, a produção industrial e o mundo depossibili<strong>da</strong>des materiais que <strong>é</strong> oferecido.O primeiro modelo, o <strong>olhar</strong> ciclópico estu<strong>da</strong>do no segundo capítulo,preparou o <strong>olhar</strong> para a socie<strong>da</strong>de industrial, deu-lhe racionali<strong>da</strong>de e o estruturoucom convenções, como a perspectiva, de modo a favorecer um ambiente delinguagem comum onde as representações podiam ser compartilha<strong>da</strong>s ecompreendi<strong>da</strong>s. O segundo modelo, o <strong>olhar</strong> panorâmico, analisado no terceirocapítulo, trata <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação do <strong>olhar</strong> às “mil coisas” para serem vistas, <strong>da</strong> reaçãodo <strong>olhar</strong> à profusão de objetos e imagens produzidos a partir <strong>da</strong> industrialização.A nossa pesquisa sugere que, nesta etapa, o <strong>olhar</strong> teve que se tornar maisabrangente. O relance foi inaugurado e, com ele, tornou-se possível “captar”,ain<strong>da</strong> que de forma superficial, a pletora de formas que se oferecia. Em algunscasos, verificamos tentativas de repartição <strong>da</strong>s formas visuais em elementosmenores que permitissem <strong>visual</strong>ização e interpretação. Neste contexto, o corpo foidividido e arquivado na tentativa de retomar o controle social que existiaanteriormente, quando havia um único foco de visão.O novo modo de <strong>olhar</strong>, construído no s<strong>é</strong>culo XIX, buscou apoio na intenção,nasci<strong>da</strong> no seio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna e patrocina<strong>da</strong> por seus produtores, decompartilhar este modelo de <strong>olhar</strong>. Não por bon<strong>da</strong>de ou altruísmo, mas porqueeste modelo requer um compartilhamento de signos, aspirações e crença noprogresso. Esta intenção pe<strong>da</strong>gógica, que destacamos no capítulo quatro, naanálise <strong>da</strong>s Exposições Universais, segue seu caminho na mídia de hoje, naimprensa, na publici<strong>da</strong>de, nas novelas, no destaque de vi<strong>da</strong> dos famosos, no lazere, mesmo, nas relações interpessoais que tamb<strong>é</strong>m se constroem sobre osfun<strong>da</strong>mentos de uma <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong>.A restrição <strong>da</strong> pesquisa a meados do s<strong>é</strong>culo XIX mostrou-se uma escolhaadequa<strong>da</strong> ao nosso objetivo de evidenciar a fun<strong>da</strong>mentação de uma nova <strong>cultura</strong><strong>visual</strong> nasci<strong>da</strong> sobre a <strong>é</strong>gide do moderno e nos permitiu analisar os primeirosmomentos <strong>da</strong>s transformações vivi<strong>da</strong>s pelo <strong>olhar</strong>. O s<strong>é</strong>culo XIX fundou a ambição<strong>da</strong> totalização t<strong>é</strong>cnica. Não se tratava apenas de uma questão de substituir otrabalho do homem ou de fornecer-lhe melhores possibili<strong>da</strong>des de modificação doseu ambiente: as máquinas alcançaram a condição admirável de semi-deuses,colaborando para a realização de um espetáculo. Para Guy Debord que cunhou aexpressão “socie<strong>da</strong>de do espetáculo”, a socie<strong>da</strong>de basea<strong>da</strong> na indústria moderna <strong>é</strong>


O OLHAR INOCENTE É CEGO 289fun<strong>da</strong>mentalmente espetaculoísta, onde o “desenrolar <strong>é</strong> tudo”. 624 Segundo oautor, o espetáculo serve-se <strong>da</strong> visão como sentido privilegiado <strong>da</strong> pessoa humanae não se trata simplesmente de um conjunto de imagens, “mas uma relação socialentre pessoas, media<strong>da</strong> por imagens”. 625 Apesar de Debord ter estipulado a d<strong>é</strong>ca<strong>da</strong>de 1920 como o início <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de do espetáculo 626 , em nosso ponto de vista esteprocesso <strong>é</strong> anterior. Iniciou-se no s<strong>é</strong>culo XIX, predominantemente na sua segun<strong>da</strong>metade, quando têm início as Exposições Universais. As Exposições que sepretendiam universais, dentre outras coisas, pela amplidão e varie<strong>da</strong>de do quecostumavam mostrar, ofereciam um <strong>olhar</strong> para o futuro, uma visão de progressosobre o deslumbre que a tecnologia tinha a oferecer.A profusão de imagens e objetos que passou a inun<strong>da</strong>r a socie<strong>da</strong>de a partirdo s<strong>é</strong>culo XIX, continua avançando. Vimos como os espaços vêem sendo<strong>visual</strong>mente preenchidos. Ca<strong>da</strong> <strong>olhar</strong> <strong>é</strong> disputado por alguma enti<strong>da</strong>de que desejausar esta porta para imprimir uma marca em algum c<strong>é</strong>rebro. É lugar comumafirmar que a socie<strong>da</strong>de atual <strong>é</strong> “a socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagem” como se a <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>dehá muito não viesse atuando de forma direta em sua <strong>construção</strong>. Com estaafirmação não queremos levantar a bandeira de uma mera continui<strong>da</strong>de.Acreditamos estar vivendo em um momento de transformações tão profun<strong>da</strong>s etão fortemente ancora<strong>da</strong>s na <strong>visual</strong>i<strong>da</strong>de como o foi a segun<strong>da</strong> metade do s<strong>é</strong>culoXIX. No entanto, <strong>é</strong> importante observar como a socie<strong>da</strong>de digital, <strong>da</strong>s redes e dociberespaço freqüentemente pega de empr<strong>é</strong>stimo suas principais características<strong>da</strong>s tecnologias que a modifica. Os instrumentos tecnológicos não são objetosneutros. As tecnologias de comunicação e de produção de imagem trabalham“naturalizando” o <strong>olhar</strong>.Muitos dos estudos acadêmicos atuais partem essencialmente dos aparatostecnológicos do presente para tentar compreender as mu<strong>da</strong>nças sociais que sãoproduzi<strong>da</strong>s. Em nossa opinião, falta à maior parte destas pesquisas, a compreensãode uma ação permanente de naturalização dos processos tecnológicos respal<strong>da</strong>dospor uma ideologia que, apesar <strong>da</strong>s críticas em contrário, continua sendo alça<strong>da</strong>para frente por uma expectativa de progresso.624 DEBORD, Guy. A socie<strong>da</strong>de do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004. p. 17.625 Ibid., p. 14.626 DEBORD, Guy. Comentários sobre a socie<strong>da</strong>de do espetáculo. In: A socie<strong>da</strong>de do espetáculo. Rio deJaneiro: Contraponto Editora, 2004. p. 168-169.


O OLHAR INOCENTE É CEGO 290As projeções <strong>da</strong>s modificações futuras a partir <strong>da</strong>s novas configuraçõesofereci<strong>da</strong>s pelas novas tecnologias vão rapi<strong>da</strong>mente tornando-se tão obsoletasquanto as próprias tecnologias. Estudos que evidenciam as influências <strong>da</strong>stecnologias de comunicação e de produção de imagem sem contextualizá-las,considerando apenas a absoluta novi<strong>da</strong>de e o “nunca antes” experimentadoesgotam-se em si próprios. A veloci<strong>da</strong>de do processo tecnológico ilude a visãocontemporânea do mesmo modo que os primeiros passageiros de trens, sufocadospela sensação de veloci<strong>da</strong>de, não conseguiam fixar o <strong>olhar</strong> no primeiro plano forade sua janela. Do mesmo modo que os nossos antepassados tiveram que aprendera <strong>olhar</strong> para planos mais distantes, tamb<strong>é</strong>m temos que “recalibrar” o nosso ângulode visão para que possamos ter uma dimensão mais concreta <strong>da</strong>s modificaçõesque estão sendo realiza<strong>da</strong>s –de forma ca<strong>da</strong> vez mais acelera<strong>da</strong> – em nossasocie<strong>da</strong>de. A nosso ver, a compreensão <strong>da</strong> constituição dos modos de <strong>olhar</strong>permite a percepção de uma nova reali<strong>da</strong>de em formação e a explicitação <strong>da</strong>scontinui<strong>da</strong>des e contradições <strong>da</strong> experiência moderna em sua fase avança<strong>da</strong>. Nestecontexto, as contradições se mostram ain<strong>da</strong> no escopo <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. De umlado a eficiência <strong>da</strong> máquina, do ferro e <strong>da</strong>s formas limpas, de outro, a ebulição deuma <strong>cultura</strong> fragmenta<strong>da</strong> e efervescente, caótica e entrópica. O <strong>olhar</strong> moderno seconstrói atrav<strong>é</strong>s dos rápidos movimentos sacádicos entre estas formulaçõescontraditórias.Na complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de contemporânea, a <strong>cultura</strong> <strong>visual</strong> apresenta-secomo um instrumento chave para a compreensão <strong>da</strong>s relações entre homem emáquina. As relações entre produtores e consumidores merecem ser revistas.Flanêurs e ba<strong>da</strong>uds confundem-se em seus novos pap<strong>é</strong>is.Não há dúvi<strong>da</strong> de que este trabalho levanta algumas questões que não sepretende resolver em seu escopo. A nossa pesquisa sugere que as novíssimastecnologias que encurtam ain<strong>da</strong> mais as distâncias, aumentam a veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>scomunicações e permitem novas formas de contato humano, dentre uma enormes<strong>é</strong>rie de outras transformações, estão gerando um novo <strong>olhar</strong>, para al<strong>é</strong>m <strong>da</strong>aceleração e de um novo feixe de respostas rápi<strong>da</strong>s. A principal questão que secoloca <strong>é</strong> em relação ao momento em que teremos a exata medi<strong>da</strong> destatransformação de forma a utilizá-la na formulação de novas possibili<strong>da</strong>desestruturais. Um aprofun<strong>da</strong>mento posterior nas continui<strong>da</strong>des e contradições queconstroem o <strong>olhar</strong> contemporâneo mostra-se, mais do que uma sugestão, uma


O OLHAR INOCENTE É CEGO 291urgência para a compreensão <strong>da</strong>s diretrizes de atuação <strong>da</strong>queles que operamdiretamente sobre esta capaci<strong>da</strong>de perceptiva, como <strong>é</strong> o caso dos designers.


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