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Publicação Mensal Ano XVII - Nº <strong>198</strong> Setembro de 2014<br />
O nascimento do<br />
Reino de Maria
Sério,<br />
altaneiro e<br />
intrépido<br />
P<br />
regador da Boa Nova, São<br />
Mateus é o modelo de varão<br />
sério, altaneiro, intrépido, corajoso,<br />
que fala em nome de uma<br />
verdade eterna e, por isso, não se<br />
sente acanhado nem diminuído<br />
diante de ninguém.<br />
Eis a graça que devemos pedir<br />
a São Mateus para difundirmos<br />
a verdadeira Boa Nova da Religião<br />
Católica, Apostólica, Romana,<br />
nesta época de tanta decadência<br />
religiosa.<br />
(Extraído de conferência de<br />
21/9/1965)<br />
François Boulay - Gustavo Kralj<br />
2<br />
São Mateus Evangelista<br />
Igreja do Sagrado Coração de<br />
Jesus, Montreal (Canadá)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVII - Nº <strong>198</strong> Setembro de 2014<br />
Ano XVII - Nº <strong>198</strong> Setembro de 2014<br />
O nascimento do<br />
Reino de Maria<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />
década de 1990<br />
Foto: Sérgio Miyazaki<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 No Reino de Maria, a sociedade perfeita<br />
Dona Lucilia<br />
6 Dignidade e senhorio<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
8 Rei e centro de todas as coisas<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
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Tel: (11) 2606-2409<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
12 A beleza da<br />
hierarquia angélica<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
16 Peregrinando dentro<br />
de uma oração cantada<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
22 Corpo humano e sistema<br />
feudal<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Setembro<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 122,00<br />
Colaborador .......... R$ 170,00<br />
Propulsor ............. R$ 395,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 620,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 17,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Hagiografia<br />
28 Uma santa imperatriz virgem abala<br />
duas heresias<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Distinção e suavidade<br />
Última página<br />
36 A maior fonte de bênçãos de todos os tempos<br />
3
Editorial<br />
No Reino de Maria,<br />
a sociedade perfeita<br />
“C<br />
omo o senhor imagina o Reino de Maria?” Eis uma pergunta frequentemente dirigida a<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> por seus discípulos. Ao longo de sua vasta obra, inúmeras foram as pistas de<br />
pensamento traçadas por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para oferecer elementos que permitissem ao menos<br />
vislumbrar as maravilhas desse tão desejado período da História predito por Nossa Senhora em Fátima.<br />
Do ponto de vista sociológico, suas originais e profundas explicitações a respeito da sociedade orgânica<br />
constituem valioso contributo, não apenas para imaginar, mas para preparar a sociedade perfeita<br />
que deve existir no Reino de Maria.<br />
A este propósito, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> explicava ser preciso considerar que em todas as operações nas quais<br />
entram a graça divina, os desígnios da Providência e a colaboração humana, ocorrem fenômenos, de<br />
si, inesperados. Podemos, assim, preparar as condições para o advento de algo, mas não planejá-lo.<br />
Nesse sentido, Carlos Magno não previu o gótico, nem os edifícios construídos neste estilo, e, talvez,<br />
nem o compreendesse devidamente, à primeira vista. Mas ele, como pai da Europa, está na raiz<br />
do gótico. Num certo sentido, ele colaborou mais para a edificação das catedrais do que os arquitetos,<br />
engenheiros e artistas que as elaboraram. Ele preparou as condições mais profundas para o aparecimento<br />
dos homens com aquelas tendências artísticas, e todas as demais circunstâncias que tornaram<br />
possível a eclosão de uma catedral como a de Notre-Dame de Paris, por exemplo.<br />
Sob este ponto de vista, podemos analisar o surgimento da sociedade hierárquica medieval, inspirada<br />
pela Igreja Católica. Por certo, não houve um planejamento, um cronograma, mas as instituições<br />
foram aparecendo organicamente.<br />
Remontando aos patriarcas, fundadores de clãs e seus descendentes, notamos estar na origem um<br />
casal primeiro que, como um novo Adão e uma nova Eva, gera uma família numerosa que ocupa determinada<br />
região. E, com o passar das gerações, vai expandindo a sua área de influência. Dessa maneira,<br />
depois de certo tempo, os proprietários das terras nesse local são todos meio aparentados, descendentes<br />
do patriarca, reconhecido e venerado por todos. E o chefe do clã é o primogênito da linhagem<br />
de primogênitos, acatado por todos.<br />
Assim se compõem, aos poucos, verdadeiras monarquias familiares, tendo um sistema de hereditariedade<br />
conservado, depois, nas monarquias constituídas mais ou menos por toda parte. E os que<br />
fundaram ramos colaterais da família são, em ponto menor, o que o patriarca é em ponto maior, formando<br />
assim uma rede de autonomias imbricadas. O fundador do clã, o “Adão” daquele mundo, representa<br />
para todos, ao mesmo tempo, um pai e uma semente de rei.<br />
Com o passar das gerações, as cidades se estabelecem organicamente naqueles territórios, em função<br />
de fatores propícios ao desenvolvimento como, por exemplo, terreno fértil e água acessível para<br />
a atividade agrícola ou pastoril, ou a facilidade de comunicação, devido à abertura de estradas, construções<br />
de pontes e outras benfeitorias.<br />
4
Está de acordo com a ordem natural<br />
que a família seja a célula fundamental<br />
da sociedade. Portanto, deve existir<br />
uma tendência a proteger a continuidade<br />
da família contra o anonimato das cidades<br />
onde o tecido familiar pode desaparecer.<br />
Desse modo, seria conveniente<br />
que esses clãs frequentassem as cidades,<br />
sem abandonar as suas fazendas.<br />
Isso implicaria num tamanho ideal de<br />
uma cidade, por onde a vida urbana fosse<br />
meio dominada pela vida de campo,<br />
a ponto de penetrar nela algo da tranquilidade<br />
e da continuidade campestre.<br />
Dos clãs originários surgem, assim,<br />
as cidades. Nestas, os proprietários de<br />
terras constituirão, naturalmente, a<br />
aristocracia. E os forasteiros que vão se<br />
agregando, à procura de trabalho e de<br />
proteção, formam o povo.<br />
Por processo análogo, nascem também<br />
as monarquias, sendo o rei um descendente<br />
do patriarca e, consequentemente,<br />
o pai daquela nação.<br />
A ordem nessa hierarquia social orgânica adviria de ela procurar o bem comum, o qual é, antes<br />
de tudo, o bem da Santa Igreja, o bem moral. Isso propicia o aparecimento na classe popular, por<br />
efeito da pregação da Igreja, de almas nobres, com grandes ideais, grandes dedicações, grande espírito<br />
de sacrifício, dignas de ascender à nobreza. Porque a verdadeira aristocracia é o fruto da fermentação<br />
da palavra de Deus e da graça na sociedade, fazendo com que do povo brotem as plantas<br />
de ouro da nobreza.<br />
Por sua vez, da nobreza igualmente levedada pelo ensinamento da Igreja de Cristo, pela graça<br />
que Ele nos mereceu do alto da Cruz, nasce a planta de ouro de uma dinastia, assim como do povo<br />
nasceu a nobreza.<br />
Ao contemplar a nobreza, o povo teria a melhor imagem de si mesmo. A nobreza, por sua vez,<br />
encontraria sua melhor imagem na dinastia. Ao final desse processo, desabrocharia o monarca, como<br />
a flor da nação.<br />
Em última análise, temos de contar com a graça de Deus, com um povo que corresponda a essa<br />
graça e, por fim, com a Providência Divina que Se utiliza desse povo. É de floração assim, com pouca<br />
planificação e muito valor, que pode nascer a sociedade perfeita do Reino de Maria.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Dignidade e senhorio<br />
Movidas pelo espírito revolucionário, muitas pessoas se<br />
tratam de modo igualitário, favorecendo assim a perda<br />
da dignidade e da autoridade. Dona Lucilia velava pela<br />
hierarquia, possuía muito senhorio e grande dignidade<br />
materna; honrava todos aqueles que se aproximavam dela,<br />
e sabia tratar a todos incomparavelmente bem.<br />
Q<br />
uando minha irmã e eu fizemos, mais ou menos,<br />
entre dez e treze anos, mamãe começou a nos<br />
contar histórias extraídas da literatura francesa,<br />
que ela lia e nos transmitia, suprimindo o que havia de<br />
ruim. Por exemplo, “Os três mosqueteiros” Dona Lucilia<br />
narrava muito bem. Então, os filhos e sobrinhos formavam<br />
um bolo para ouvi-la.<br />
As crianças tinham<br />
intenso desejo de<br />
ouvir as histórias<br />
A parentela toda ia jantar<br />
em casa, e os mais velhos comiam<br />
na sala de jantar principal.<br />
Havia também uma sala<br />
de jantar só para as crianças,<br />
e ali nos servíamos. Nossa<br />
sala de jantar era bagunça,<br />
fala-fala. É preciso dizer<br />
que eu era grande bagunceiro<br />
nessa sala; falava muito, pois<br />
sou muito expansivo. Mamãe,<br />
evidentemente, ceava com os<br />
mais velhos.<br />
Mas nós jantávamos com<br />
uma pressa louca para ouvir<br />
a história que ela ia contar<br />
depois. O jantar dela demorava<br />
muito mais do que o<br />
nosso, porque os mais velhos<br />
comiam devagar, ela mesma<br />
o fazia lentamente; então, nós começávamos a bater na<br />
porta para entrar na sala de jantar e levá-la embora, antes<br />
de seu jantar terminar.<br />
Mamãe cortou esse procedimento muito amavelmente,<br />
dizendo que deveríamos respeitar os mais velhos, não<br />
entrar na sala de jantar deles, e não podíamos apressar<br />
o jantar dela. Era uma pessoa doente, estava se tratando,<br />
precisava jantar devagar,<br />
e que nós esperássemos, pois<br />
havia tempo para tudo.<br />
Ficávamos na porta do corredor,<br />
esperando. Mas, de vez<br />
em quando, mandávamos uma<br />
menina — porque com a menina<br />
se é menos severo do que<br />
com o menino — abrir a porta.<br />
E uma sobrinha dela fazia<br />
isso, porque se era mais amável<br />
com os sobrinhos; entrava,<br />
olhava... E mamãe, com<br />
calma, fingia não perceber e,<br />
após terminar de jantar, conversava<br />
mais um pouquinho<br />
com os mais velhos para nos<br />
domesticar.<br />
Quando se levantava, abríamos<br />
a porta e caminhávamos<br />
com ela para o escritório de<br />
meu pai. Ali a cercávamos, todos<br />
procuravam pegar em sua<br />
mão. Ela ficava recostada no<br />
sofá e começava a contar his-<br />
6
tórias. E nós espichávamos a narração, querendo saber<br />
os pormenores. Eram nomes franceses e ingleses e,<br />
quando os pronunciávamos de modo errado, ela parava e<br />
nos obrigava a pronunciar direito.<br />
Com uma paciência sem fim, ela ensinava desse modo<br />
a adquirirmos calma, e nos entretinha muito agradavelmente;<br />
era o melhor entretenimento da semana. E,<br />
ao mesmo tempo, ela nos ia ensinando a boa pronúncia<br />
francesa e inglesa, e uma porção de outras coisas.<br />
A nobre condição da família de Dona Lucilia<br />
Ao chegarmos a certa idade, ela começou a nos contar<br />
histórias antigas da sua família, os homens importantes<br />
que nela houve, o que fizeram, como viviam, como<br />
adquiriram as propriedades, enfim, todo o passado da família.<br />
Falava bastante também a respeito da família de meu<br />
pai, que pertencia a uma estirpe de muito destaque em<br />
Pernambuco. Quando se casaram, ela foi visitar a família<br />
de meu pai naquele Estado. Então, nos contava como<br />
eram, que papel desempenhavam, etc., explicando tudo<br />
muito comprazida.<br />
Mamãe narrava essas recordações, sobretudo, para<br />
deduzir delas lições de ordem moral, mas, em paralelo,<br />
vinha a condição da família.<br />
O Brasil nunca teve uma aristocracia propriamente<br />
organizada, como na Europa, quer dizer, com títulos de<br />
nobreza hereditários. Durante o Império houve títulos<br />
de nobreza, mas não eram hereditários. Então no Brasil<br />
não se constituiu propriamente uma nobreza, como há<br />
na Europa.<br />
Mas havia uma coisa que equivalia a isso e era o seguinte:<br />
as famílias com muitas gerações na condição de<br />
fazendeiros tinham mais ou menos a situação de famílias<br />
nobres, e constituíam uma verdadeira nobreza no País.<br />
Dona Lucilia era de uma dessas famílias e gostava disso,<br />
mas não por razões mundanas, como quem dissesse:<br />
“Olhe como, por ser nobre, sou mais do que você que<br />
não o é.” Mas era como alguém que ama os dons de<br />
Deus. Assim ela amava sua situação, pois se tratava de<br />
um dom conexo a ela por seu nascimento.<br />
Nunca notei que mamãe desejasse ser mais do que<br />
era, mas certamente ela recusaria ser menos do que era.<br />
Sem dúvida, defenderia sua posição com muita firmeza e<br />
não abriria mão.<br />
Se ela, por exemplo, perdesse todo dinheiro e ficasse<br />
reduzida a uma condição de mendiga, mesma nessa<br />
situa ção portar-se-ia como uma senhora nobre, sem dúvida<br />
nenhuma, cônscia daquilo que ela era.<br />
Mamãe tinha muito empenho em que os filhos dela<br />
estivessem bem conscientes disso, e prestava muita atenção<br />
em ver com quem minha irmã e eu nos relacionávamos;<br />
e quando queria designar uma pessoa cuja amizade<br />
não nos convinha, ela usava uma palavra muito expressiva<br />
da língua portuguesa: chinfrim.<br />
Amor à hierarquia<br />
Ela velava muito pela hierarquia, e era muito respeitosa<br />
com quem possuísse categoria superior à dela. Por<br />
exemplo, respeitava muito a Família Imperial, tratando-<br />
-a com toda consideração, com toda atenção, como se a<br />
monarquia estivesse vigente no Brasil.<br />
Respeitava muito o episcopado, o que se notava no<br />
modo atencioso de ela tratar dois bispos que frequentavam<br />
minha casa.<br />
Para Dona Lucilia não era tão importante ocupar esse<br />
ou aquele lugar na escala hierárquica. Ela amava propriamente<br />
a hierarquia, e o que lhe importava era que<br />
esta existisse. Isso me parece muito direito.<br />
Embora totalmente sem amor-próprio, mamãe era<br />
uma pessoa de uma grande dignidade, e possuía muito<br />
senhorio. Vê-se no Quadrinho 1 que Dona Lucilia sabia<br />
quem ela era. Quer dizer, não era nem um pouco uma<br />
senhora boba. Porém, possuía uma dignidade tão materna,<br />
que ela honrava aquele que se aproximava dela, não<br />
o rebaixava; ela sabia tratar incomparavelmente bem.<br />
Aconteceu-me de vê-la fazer o que nenhuma patroa,<br />
no tempo dela, fazia: parada na rua, conversando com<br />
uma antiga criada de quarto que estava doente, a qual tinha<br />
saído de nossa casa por necessitar tratar-se de sua<br />
enfermidade. Mamãe encontrou-se com a antiga criada<br />
na rua, e parou para conversar com ela. Os automóveis e<br />
as pessoas conhecidas passando, e ela conversando com<br />
tanta distinção que a criada estava encantada. Não eram<br />
duas amigas, mas a patroa católica que ama a criada católica.<br />
Era uma coisa diferente.<br />
Assim, em tudo ela punha medidas, mas sabia tornar<br />
essas medidas amáveis, agradáveis.<br />
Por vezes, há pessoas que têm amor-próprio e ficam<br />
amarguradas: “Não me reconhecem, não me amam, vou<br />
mostrar quem eu sou!” E ela amansava, diluía, derramava<br />
um unguento em cima do amor-próprio: “Eu estou<br />
tão aberta a ver, e tão disposta a reconhecer com alegria<br />
o que você é… venha falar comigo!”<br />
v<br />
(Extraído de conferências de<br />
2/8/<strong>198</strong>2 e 21/1/<strong>198</strong>3)<br />
1) Quadro a óleo, que muito agradou a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por<br />
um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de<br />
Dona Lucilia. Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
7
Sagrado Coração de Jesus<br />
Rei e centro<br />
de todas as coisas<br />
Quem se dedica ao apostolado, ou qualquer outra atividade em<br />
prol da Igreja e da civilização cristã, deve compenetrar-se de<br />
que Nosso Senhor é o centro de todas as coisas e jamais poderá<br />
ser derrotado. Se tivermos sempre em vista essa verdade,<br />
compreenderemos como são pequenos os fatos que às vezes<br />
nos angustiam e nos fecham o horizonte.<br />
Segundo fotografias que vi de desenhos e pinturas<br />
nas catacumbas, não há nada que indique terem<br />
os católicos daquela época uma ideia clara de como<br />
foi a face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seria natural<br />
que, considerada a grande importância d’Ele, houvesse<br />
alguém de seu tempo — ou cem, duzentos anos<br />
depois de sua Morte — que tivesse feito uma representação<br />
de Nosso Senhor, pintada ou de qualquer outra<br />
forma.<br />
Arquetipização da figura de Nosso Senhor<br />
Entretanto, apesar da carência desses documentos,<br />
de repente — não sei bem em que século da História da<br />
Igreja —, começam a aparecer imagens com a fisionomia<br />
que está no Santo Sudário.<br />
Como foi preenchido esse hiato?<br />
Alguém dirá: “Pela tradição.”<br />
Sem dúvida, mas como é que a tradição se exprimiu?<br />
Como se transmite pela tradição a figura de um rosto<br />
que não se pintou, não se esculpiu, e nem sequer documentadamente<br />
se descreveu?<br />
O Evangelho é uma espécie de autorretrato de Nosso<br />
Senhor, não feito por Ele, mas com fatos de sua vida que<br />
dão a ideia de como Ele era, entretanto não são suficientes<br />
para compor o rosto de Jesus. Depois de composta a<br />
face, lendo o Evangelho dizemos: “Não há dúvida, esse<br />
é o rosto d’Ele mesmo!” O Evangelho autentica a face,<br />
mas não dá os elementos para sua composição.<br />
Vê-se que a graça continuou a fazer nas almas uma<br />
arquetipização 1 válida da figura do Redentor, à vista da<br />
iconografia muito insuficiente que havia, e essa arquetipização<br />
floresceu, de repente, no rosto d’Ele o qual conhecemos<br />
e que o Santo Sudário vem documentar.<br />
Isso me parece uma prova criteriológica muito bonita<br />
do valor dessas sublimações movidas pela graça.<br />
O Rei da glória é o vencedor<br />
Tomando Nosso Senhor como Ele foi, com toda aquela<br />
elevação, bondade, calma, distância, intimidade e tudo<br />
o mais, deduz-se que, ou o gênero humano é uma pagodeira<br />
sinistra, uma espécie de sarabanda do Inferno prenunciativa<br />
da que lá existe, ou tem que haver no centro<br />
e no ápice uma figura em torno da qual todos os homens<br />
se ordenem.<br />
Quer dizer, há uma espécie de senso profundo do ser<br />
que, diante da Revelação, exulta e nos leva a exclamar:<br />
“Sem dúvida, esse centro tinha que existir, não pode desaparecer;<br />
é Nosso Senhor. Ele tem que vencer, é o Rei<br />
da glória e as suas derrotas são aparentes, pois, no fundo<br />
delas, Ele é o vencedor, e sempre reaparecerá!”<br />
O senso de que a História deve ter um futuro diferente,<br />
o porvir da ordem contrária à Revolução, vem des-<br />
8
Conheci uma mulher sem nariz, uma beata da Igreja<br />
de Santa Ifigênia 2 , que todos os dias, em qualquer tempo<br />
que fosse, ia lá com o guarda-chuva na mão; não sei por<br />
que ela não segurava no cabo, mas em cima, onde se reúnem<br />
as varetas. Feia, baixa, e com um lenço<br />
sempre limpo e de qualidade ordinária, cobrindo<br />
a cavidade do nariz, amarrado de tal<br />
modo que não atrapalhava a respiração dela.<br />
Ela andava, falava, vestia-se normalmente e<br />
tinha algum trabalho. Vivia no meio das beatas,<br />
porque era assídua em Comunhões na<br />
Igreja de Santa Ifigênia.<br />
Humanamente falando, era uma derrotada,<br />
mas ela ia para a frente com uma firmeza,<br />
um ar de segurança da vitória que destoava<br />
de toda a melúria piedosa que a cercava e<br />
da qual ela não tinha bem noção. Ela possuía<br />
um triunfo, e andava naquelas ruas já neopagãs<br />
da São Paulinho, com ar de vencedora,<br />
pois participava dessa noção de vitória de<br />
que falei há pouco. E, por exemplo, a mim,<br />
essa mulher muitas vezes fez bem porque,<br />
olhando para ela, eu pensava: “Quem suscita<br />
almas assim, está vivo, não pode morrer e isto<br />
vai para a frente!”<br />
Aquela pobre senhora era bem mais velha<br />
do que eu, e certamente terá morrido.<br />
Eu gostaria que no Céu, onde ela se encontra,<br />
essas palavras de saudades, de homenagem<br />
chegassem.<br />
Ela me olhava muito, não sei por quê;<br />
eu também dirigia meus olhos a ela, mas os<br />
formalismos justos daquele tempo levavam<br />
a que, sendo ela uma pessoa de uma classe<br />
muito inferior à minha e de outro sexo, não<br />
nos abordássemos. É muito legítimo. Eu teria<br />
muita alegria de saber que fiz algum bem<br />
à alma dela.<br />
Jesus apresentado ao povo<br />
(“Ecce Homo”) - São Paulo, Brasil<br />
te senso de que Ele é o centro e não pode ser deslocado<br />
deste centro. E, como não pode ser deslocado, a vez<br />
d’Ele chegará. Por isso, quando virmos uma pessoa inteiramente<br />
fiel a Ele — ainda que seja o último ser humano<br />
que se conheça — podemos afirmar com segurança:<br />
“Vai vencer!”<br />
A mulher que não tinha nariz<br />
Fonte perene que nunca deixa<br />
de jorrar a água viva<br />
Uma vez que tivemos a graça e a alegria de<br />
poder expor esse pensamento sobre o Sagrado Coração<br />
de Jesus, creio que se não fizermos remontar todas as nossas<br />
doutrinas a isso, não compreendemos em toda a sua<br />
profundidade, exatidão, força cogente, aquilo que dizemos.<br />
Quer dizer, olhando para Ele, seriamente, compreendemos<br />
que Nosso Senhor é o centro e tem que vencer.<br />
É, por exemplo, o pensamento que animava a Nossa<br />
Senhora na hora do “consummatum est” 3 , em que Ela O<br />
teve sobre o colo, enquanto punham aromas no Corpo<br />
divino, e tudo o mais. E também A confortava durante o<br />
tempo em que Ele esteve sepultado.<br />
Porque os Apóstolos, Santa Maria Madalena e os discípulos<br />
de Emaús tinham isso de um modo incompleto,<br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
Se tivéssemos isto em vista, possuiríamos, por exemplo,<br />
um outro ânimo em tocar o apostolado, porque<br />
compreenderíamos como são pequenas diante dessa<br />
verdade as coisas que às vezes nos angustiam e<br />
nos fecham o horizonte.<br />
Às vezes, vem falar comigo alguém com muito<br />
mais empenho em resolver o casinho de seu<br />
apostolado do que em tratar deste tema. É<br />
porque a pessoa perdeu de vista que a água<br />
viva é outra, o centro é outro, e todas essas<br />
coisinhas devem ser tratadas, pois têm o seu<br />
papel na vida, mas de nenhum modo podem<br />
lotar a nossa atenção.<br />
O chinês que chega à Terra Santa<br />
à procura de um Ser perfeito<br />
Sergio Hollmann<br />
Última ceia e a multiplicação dos pães - Igreja<br />
de São Sulpício, Fougeres (França)<br />
não O reconheceram quando Jesus ressurrecto apareceu,<br />
a não ser em certo momento. Não possuíam a noção<br />
de que Ele não podia ser derrotado. E nisto estava o<br />
ponto fraco deles.<br />
Ora, quando se conhece uma obra que resiste à Revolução<br />
e conserva, contra toda a ordem de coisas, um certo<br />
viço, percebe-se que ali a Fonte perene nunca deixa de<br />
jorrar a água viva, e que isso ninguém vence.<br />
A respeito de Nosso Senhor, pode-se<br />
imaginar uma pessoa do tempo d’Ele que<br />
O conheceu em sua vida terrena e, por<br />
assim dizer, tivesse explodido de adoração<br />
a Jesus, tocada pela sua presença.<br />
Mas seria possível dar-se um outro fato<br />
de pessoas que, levadas pela inocência,<br />
pela retidão, pelo senso do ser, fizessem<br />
um prognóstico mudo, não explicitado,<br />
de que algo como Ele deveria haver.<br />
E que se pusessem a procurá-Lo,<br />
sem saber que era a Nosso Senhor que<br />
estavam procurando. Então, por exemplo,<br />
poder-se-ia imaginar o seguinte caso<br />
irreal, mas daria um lindo conto.<br />
Um chinês que tivesse saído da China,<br />
em linha reta, rumo ao Mediterrâneo, sem<br />
ter noção desse mar, e atravessando os<br />
mais variados povos, levado pela ideia confusa<br />
de que, à força de ver gente, ele encontraria<br />
algo que não sabia o que era, mas<br />
lhe preencheria a alma.<br />
Chegando à Terra Santa, teria ouvido<br />
narrar os acontecimentos passados com<br />
Nosso Senhor, enquanto seu Corpo sagrado<br />
estivesse sepultado. E o chinês, numa<br />
explosão de Fé, houvesse dito: “Esse Homem<br />
não pode ficar na sepultura, Ele tem que aparecer!”<br />
E tivesse cantado o Hosanna, no próprio momento<br />
em que Nossa Senhora estava na soledade.<br />
Essa alma teria feito esse outro caminho para encontrar<br />
a Nosso Senhor: levada por um misterioso sentimento<br />
de que Ele era o Rei e o centro de todas as coisas,<br />
sem saber explicitar, procuraria a Ele. E, encontrando-<br />
-O morto, veria que o caso não poderia se liquidar assim.<br />
10
Não é verdade que essa alma mereceria ter<br />
assistido à Ressurreição?<br />
Movimento metafísico fortíssimo<br />
Em pequeno, tive a felicidade indizível de ser<br />
batizado, conhecer Nosso Senhor, de ser tocado<br />
pela graça da devoção a Ele, especialmente na<br />
atitude de mostrar o seu Coração. Foi como um<br />
encontro pessoal que me fez conhecer coisas as<br />
quais eu não conheceria se não tivesse encontrado<br />
a Ele. Isso é verdade.<br />
Mas também é verdade que Nossa Senhora<br />
obteve que fosse posto em minha alma, pela<br />
inocência, um movimento metafísico fortíssimo<br />
para buscar o centro de todas as coisas, e que<br />
quando encontrou a Ele, de algum modo já estava<br />
aberto para ver isso n’Ele.<br />
Não sei como agradecer à Santíssima Virgem<br />
de ter pedido e obtido isso para mim! Mas vejo<br />
bem que se esta devoção a Ele vingou em mim,<br />
de um modo tão profundo e tão pouco vulgar<br />
para um menino daquela idade, foi porque já<br />
havia em minha alma um movimento para um<br />
maravilhoso, um absoluto, para uma coisa que a<br />
inocência me dava. E houve um encontro.<br />
Seria, portanto, um pouco o homem que encontrou<br />
Nosso Senhor, e um pouco o chinês levado<br />
por aquele movimento metafísico. E, se<br />
não me engano a esse respeito, uma pessoa que queira<br />
me conhecer, deve notar esses dois movimentos na minha<br />
alma.<br />
E daí ela mesma pode, através do conhecer-me, ser estimulada<br />
para uma e outra coisa. Não direta e exclusivamente<br />
para ver isso n’Ele, mas perceber a Contra-Revolução.<br />
No ver a Contra-Revolução, contemplar a Ele; e<br />
no ver a Ele, contemplar a vitória da Contra-Revolução e<br />
concluir: “Isso não pode ser derrotado!”<br />
Contaram-me que no maremoto o mar recua, recua,<br />
e depois a fúria com que ele volta e a força de invasão é<br />
proporcionada ao poder de retração.<br />
Podemos comparar isso à ausência de Deus no panorama<br />
moderno. Também Nossa Senhora faz assim com<br />
seus seguidores perseguidos, chamados à bem-aventurança<br />
de sofrer perseguição por amor à justiça: Ela recua,<br />
recua… Tomem cuidado, porque Ela deixa aqueles<br />
a seco, como um navio parado que ficou fazendo o papel<br />
ridículo de fantasma no meio de uma terra árida; mas<br />
quando o mar voltar, deve chegar onde nunca atingiria<br />
numa época comum!<br />
Consideremos que Nosso Senhor disse o “Eli, Eli, lamá<br />
sabactâni” 4 depois de ter previsto a glorificação d’Ele<br />
Crucifixão de Jesus - Museu Hermitage,<br />
São Petersburgo (Rússia)<br />
ao Bom Ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” 5 Portanto,<br />
no meio daquela dor, Ele sabia que iria para a glória<br />
do Paraíso, e levaria São Dimas.<br />
Ele foi, como Rei do Céu, abrindo as portas, absolvendo,<br />
perdoando o Bom Ladrão. Assim, a primeira canonização<br />
que houve na Igreja foi do alto da Cruz, feita por<br />
Nosso Senhor diretamente. Depois veio a Ressurreição,<br />
e todo o resto.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 14/12/<strong>198</strong>5)<br />
1) Termo cunhado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para significar a procura da<br />
perfeição em todas as coisas.<br />
2) Localizada no bairro de mesmo nome, na região central de<br />
São Paulo.<br />
3) Do latim: “Está consumado” (Jo 19, 30).<br />
4) Mt 27, 46.<br />
5) Lc 23, 43.<br />
Shakko<br />
11
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A beleza da<br />
hierarquia angélica<br />
O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio<br />
é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de<br />
criar vários seres.<br />
São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia<br />
criar um só ser, porque nenhum ser único tem sufiwww.flickr.com<br />
Arcanjo São Rafael<br />
Córdoba, Espanha<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tinha um apreço especial pelo estudo sobre os<br />
Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos<br />
de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a<br />
atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema<br />
aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até<br />
mesmo a épocas históricas.<br />
Dionísio Areopagita, em seu Tratado da hierarquia<br />
celeste, descreve uma concatenação dos<br />
Anjos, apresentada por ele como a ordenação<br />
perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria<br />
necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe<br />
de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais<br />
da ordenação são aqueles.<br />
A multiplicidade das criaturas<br />
cientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições<br />
do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir<br />
a Deus globalmente e não apenas em um de seus<br />
traços.<br />
Então, esquematizando, seria o seguinte:<br />
1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente,<br />
e não apenas em uma de suas perfeições.<br />
2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande,<br />
que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias,<br />
portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto<br />
de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo<br />
global do Criador.<br />
3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas<br />
e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse<br />
a Ele.<br />
12
Não me parece necessário que o número de seres fosse<br />
esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são.<br />
Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição<br />
e o inter-relacionamento entre elas adequadamente<br />
refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos<br />
não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso<br />
equivale a julgar que haveria outros universos possíveis.<br />
Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.<br />
A ordem na sociedade humana deve ser<br />
análoga à existente entre os Anjos<br />
Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos<br />
com essa natureza, não podia deixar de ser que eles<br />
estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram<br />
criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação,<br />
o inter-relacionamento entre eles, uma vez que<br />
são assim, seria necessariamente esse.<br />
E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a<br />
Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas<br />
não podiam existir enclausuradas sem terem contato<br />
umas com as outras. Tinham que se relacionar para<br />
que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem<br />
e representassem um só todo.<br />
Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar<br />
um papel que, esquematicamente, é o papel que<br />
Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do<br />
ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins,<br />
outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele<br />
poder dos Tronos, e assim por diante.<br />
Como nós, homens, estamos no mesmo universo que<br />
os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem<br />
nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser<br />
análoga e consonante com a deles. E,<br />
como tal, o modo de nos relacionarmos<br />
e os traços fundamentais de governo da<br />
sociedade humana, feitos os descontos<br />
da diferença de naturezas, têm que ser<br />
análogos aos do mundo angélico.<br />
A força motora<br />
do governo legítimo<br />
Entretanto, não pode ser que alguns<br />
de nós sejamos apenas cognoscitivos<br />
e volitivos, como os Anjos. Vê-se que<br />
nossa natureza não comporta isso, mas<br />
está menos longe de nossa natureza do<br />
que se pode imaginar à primeira vista.<br />
Em muitos trechos dos seus discursos<br />
à nobreza romana, Pio XII encaixava<br />
o regime democrático, afirmando<br />
que as mais autênticas democracias devem ter instituições<br />
aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto,<br />
a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo,<br />
quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver,<br />
que em face da missão de uma sociedade, do que ela é,<br />
do que deve fazer, há um maior descortínio das classes<br />
mais altas do que das mais baixas. E esse descortínio deve<br />
fazer com que as classes mais altas conheçam melhor<br />
o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no<br />
com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para<br />
as classes mais baixas. E que essa filtração produza,<br />
por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes<br />
mais baixas que é verdadeiramente a força motora do<br />
autêntico governo legítimo.<br />
As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas,<br />
têm uma capacidade de execução muito maior do<br />
que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre,<br />
propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.<br />
Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a<br />
ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as<br />
coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.<br />
Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em<br />
quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente<br />
dotados; mas não correspondem à figura<br />
clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um<br />
“ploc-ploc” 1 . São pessoas muito dotadas de dons naturais<br />
vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se<br />
da aristocracia merecidamente, afinarem-se.<br />
As raízes de uma árvore e a nobreza<br />
As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades,<br />
assimilam-na e a transpõem para o estado de<br />
Arcanjo São Gabriel - Palácio Ducal, Veneza (Itália)<br />
Giovanni Dall’Orto<br />
13
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Campiana<br />
matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da<br />
árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um<br />
pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre<br />
nas raízes de todas as plantas a todo momento.<br />
Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza<br />
suga continuamente da plebe — uma sucção generosa,<br />
bondosa, honorífica para a plebe — os elementos<br />
aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas<br />
vezes, se jogam eles mesmos para baixo.<br />
Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições<br />
que, sob o pretexto de manter longevas as famílias,<br />
amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira<br />
que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm<br />
sentadas ali.<br />
A inalienabilidade de certo bem em determinada família,<br />
enquanto o mundo durar, revela o propósito de<br />
evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma<br />
coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo<br />
para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não<br />
forem mais capazes de agarrar e sustentar.<br />
O Anjo não pode ser promovido para uma categoria<br />
superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode.<br />
Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.<br />
Portanto, é preciso saber entender como se inspirar<br />
nisso.<br />
A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:<br />
Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso<br />
ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural<br />
e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução<br />
Francesa, feitos os descontos da decadência que houve<br />
naquele período. Depois procurar ver no que aquilo,<br />
sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para<br />
Imagem de um Anjo na fachada da Catedral de Reims, França<br />
assim compreender como esta semelhança pode jogar, e<br />
como devemos fazer no Reino de Maria.<br />
A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de<br />
Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de<br />
Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade.<br />
Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso<br />
natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar<br />
interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para<br />
em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o<br />
jardineiro com a planta.<br />
Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser<br />
daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso<br />
da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar<br />
onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma<br />
ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico<br />
dentro dela.<br />
A pulcritude da abstração<br />
Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque,<br />
desde que se compreenda em que sentido aquele<br />
surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência<br />
de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas<br />
estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda<br />
mais forte e toma mais autenticidade.<br />
Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em<br />
virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de<br />
determinado modo, compreendo como aquilo que surge<br />
em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então,<br />
sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de<br />
perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.<br />
O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo<br />
do Sol sobre a planta. Não se<br />
trata tanto de raciocínio, mas é um<br />
“heliotropismo” rumo aos Anjos,<br />
estando Deus acima. O Anjo aqui<br />
é um hífen para Deus.<br />
Seria preciso termos teólogos e<br />
artistas da sociedade que vai nascendo,<br />
capazes, antes de tudo, de<br />
senti-la no seu fluxo providencial,<br />
natural e sobrenatural. E saber<br />
apenas iluminar esse fluxo com o<br />
exemplo dos Anjos, e outras coisas<br />
tiradas da Teologia.<br />
Imaginemos uma sociedade que<br />
tivesse toda a atenção posta sobre<br />
aqueles que são de algum modo os<br />
maiorais dela, os Anjos, e sobre o<br />
fato de que tudo o que existe na<br />
Terra, provavelmente, é reflexo de<br />
algo de angélico para depois tocar<br />
14
algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo<br />
de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do<br />
pensamento humano por vários lados — e depois contemplar<br />
as coisas simbólicas que é também esse píncaro<br />
sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de<br />
perceber na abstração um pulchrum, que é parecido com<br />
o pulchrum das abstrações do Dionísio.<br />
Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer<br />
podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação<br />
com beleza” das coisas espirituais que acabamos<br />
de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos<br />
dele a abstração toca violino.<br />
O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?<br />
Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver<br />
se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar<br />
no que estava essa beleza.<br />
Na pura abstração há certo modo de concatenar as<br />
ideias e de ver o pulchrum delas, bem como um certo senso<br />
do pulchrum que se desperta de vez em quando; isso é,<br />
penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria<br />
se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda<br />
mais se visse Deus,<br />
porque Deus é absoluto<br />
e o absoluto<br />
é a personificação<br />
de muita coisa que conhecemos<br />
como abstrato, visto por<br />
certo lado.<br />
Sentindo o belo<br />
da vida interna de Deus<br />
Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado,<br />
sería mos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical<br />
delas, que daria ao homem uma fome e uma sede<br />
de abstração, que tenho a impressão de que os povos do<br />
Oriente possuíam.<br />
De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem<br />
tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou<br />
aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa<br />
ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje<br />
poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver,<br />
porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz<br />
os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave<br />
muito superior à nossa.<br />
E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim<br />
compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação.<br />
Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente<br />
esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente<br />
como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na<br />
mente do aristocrata, não teremos aristocracia.<br />
Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito,<br />
compreenderíamos muito melhor algo da luz<br />
primordial 3 e até<br />
do senso do ser<br />
de cada um de nós,<br />
que fica preso no porão<br />
de nossa própria personalidade,<br />
como uma mercadoria<br />
no porão do navio, e que levamos<br />
do berço até a sepultura sem nunca<br />
desembalar esse tesouro, para fazê-lo<br />
tomar ar e procurar, enfim, adornar-se<br />
com ele.<br />
v<br />
Outro dia, estávamos numa das nossas<br />
sedes em que se entoou o Credo. Em determinado<br />
momento cantou-se “Deum de Deo,<br />
lumen de lumine, Deum verum de Deo vero,<br />
genitum non factum, consubstantiálem Patri” 2 .<br />
Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no<br />
momento em que foi cantado me pareceu sentir<br />
o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele<br />
toca e não é tocado, e tudo se passa sem que<br />
Ele decaia ao tocar nas coisas.<br />
Não podemos dizer que Deus seja uma<br />
abstração, mas nossa noção sobre Deus tem<br />
algo do abstrato, porque não corresponde a<br />
nenhuma imagem do sensível. Mas foi um<br />
momento em que de repente apareceu a<br />
beleza disso.<br />
São Miguel Arcanjo<br />
Monte Saint-Michel, França<br />
W. Rebel<br />
(Extraído de conferência de 26/4/<strong>198</strong>4)<br />
1) Expressão onomatopeica criada por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para designar o defeito de<br />
certas pessoas que, desprovidas de intuição<br />
e bom senso, querem explicar<br />
tudo por meio de raciocínios desenvolvidos<br />
de modo lento e pesado,<br />
à maneira de um paralelepípedo que,<br />
ao ser girado sobre o solo, emite o ruído<br />
“ploc-ploc”.<br />
2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano:<br />
“Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro<br />
de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial<br />
ao Pai”.<br />
3) Termo cunhado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para significar a aspiração<br />
existente na alma de cada pessoa, ou num povo,<br />
para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo<br />
d’Ele determinada perfeição. Ver <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 54, p. 4.<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta<br />
Peregrinando dentro<br />
de uma oração cantada<br />
No canto gregoriano não há dramaticidade, mas uma<br />
serenidade plena de reflexão. É recitado por pessoas que,<br />
encontrando-se à margem dos acontecimentos, entoam hinos<br />
os quais muitas vezes tratam da vida dos homens e das<br />
nações, sempre elevando nossas mentes até Deus, e tirando<br />
conclusões que são verdadeiros princípios de História.<br />
Andrzej O<br />
16
Andrzej O<br />
OOfício Parvo de Nossa Senhora foi cantado há<br />
pouco magnificamente, segundo os melhores<br />
princípios da música sacra. Princípios estes estudados<br />
pela Igreja, através de especialistas, durante séculos.<br />
Aprimorados, destilados, postos no ponto exato até<br />
chegarem, por exemplo, ao que todos nós ouvimos.<br />
Em nossos dias, o bulício contagiou<br />
todos os ambientes<br />
Nesta matéria, como em todas as outras, há uma porção<br />
de escolas, e a Igreja, sempre sábia, sempre mãe, naquilo<br />
que não está ligado à Revelação deixa uma liberdade<br />
de opinião e de pensamento àqueles que são filhos<br />
dela. Assim, essas várias escolas musicais têm cidadania<br />
dentro da Igreja.<br />
Sempre que ouvia o Ofício bem rezado, tinha uma impressão<br />
curiosa que eu descreveria empregando o título<br />
de um artigo que certa vez escrevi: “Peregrinando dentro<br />
de um olhar” 1 ; eu, então, diria: “Peregrinando dentro de<br />
uma oração cantada.”<br />
Como é minha peregrinação pessoal dentro dessa<br />
oração cantada? Ao responder a esta pergunta tenho<br />
em vista, evidentemente, ajudá-los a explicitarem as suas<br />
próprias impressões; explicitando-as, conhecerem-nas<br />
melhor; conhecendo-as melhor, saborearem melhor o<br />
cantochão, compreenderem melhor o canto da Igreja e<br />
o amarem mais.<br />
O bulício de nossos dias contagiou todos os ambientes<br />
pela imposição das circunstâncias. Se tudo corre, tudo<br />
se agita; ou corremos também ou perdemos o avião, o<br />
trem, o bonde... Então, é preciso absolutamente correr.<br />
Hoje em dia, levo uma vida como antigamente se ouvia<br />
falar, no cinema, que levava um banqueiro riquíssimo:<br />
tomava o elevador com um secretário, com quem<br />
ele despachava alguma coisa; no trajeto entre o elevador<br />
e o automóvel ainda atendia alguma pessoa, sentava-se<br />
dentro do automóvel, tinha ali outro secretário para tomar<br />
nota de diversos assuntos. E assim conduzia a vida<br />
dele, até durante as refeições. De maneira que ele dormia<br />
o menos possível e, quando conciliava o sono, ainda<br />
sonhava com despachos!<br />
Todo o meu temperamento é o contrário disso que<br />
representa para mim um pesadelo. Desse pesadelo,<br />
eu só não tenho duas coisas: o dinheiro do banqueiro<br />
e, graças a Deus, o sonho com negócios. Ainda os<br />
mais sagrados “negócios” de apostolado, não sonho<br />
com eles. Na hora de dormir, tomo um livro para ler,<br />
penso em outras coisas, mas não em despachar assuntos<br />
concretos.<br />
Quando acordo de manhã, já recebo as primeiras notícias<br />
do dia e começa a roldana. De maneira que, contra<br />
a minha vontade, como um prisioneiro que está amarrado<br />
a uma máquina e é obrigado a correr com ela, levo essa<br />
vida que eu não quereria levar.<br />
Calma, tranquilidade, distância psíquica<br />
que defluem do cantochão<br />
Por isso posso medir bem a transição entre essa vida<br />
corrida e o momento em que, de repente, começa-se a<br />
ouvir o canto sacro. No primeiro instante, é uma sensação<br />
subconsciente, nada violenta, nada desagradável, de<br />
defasagem. Quando se está começando a pensar como<br />
fazer para corrigir o que está defasado, a ação do canto<br />
sacro — ainda quando não se entendam as palavras —<br />
vai penetrando na alma e abrindo nela certos “compartimentos”<br />
que estavam fechados.<br />
Vai pondo em evidência e colocando em condições<br />
de vibratilidade certas possibilidades de sentir que estavam<br />
colocadas de lado, e nas quais não se prestava muita<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta<br />
atenção. E começa a emergir, de dentro<br />
da agitação, uma calma, uma tranquilidade,<br />
uma distância psíquica 2 , que<br />
fazem as coisas fluírem como flui o som<br />
do cantochão.<br />
Para quem não tem sensibilidade,<br />
esse canto é uma contínua repetição,<br />
mas na realidade não é. Aquilo, a cada<br />
vez que se repete, diz algo de novo<br />
para a alma capaz de saborear. Depende<br />
da alma.<br />
O sabor de uma inflexão de voz não<br />
é bem o da outra, aquilo diz uma coisa<br />
nova a cada inflexão que, de um lado, é<br />
parecidíssima com a anterior, e de outro<br />
lado fala uma coisa completamente<br />
diferente da anterior.<br />
É preciso que o cantochão tenha<br />
entrado muito nos nossos ouvidos para<br />
nos familiarizarmos com a linguagem<br />
dele. Ele tem todo um timbre de<br />
voz e toda uma linguagem discretíssimos.<br />
Tal linguagem discretíssima supõe<br />
que alguém esteja nos falando numa<br />
certa clave, e que vai nos induzindo<br />
a nos pormos nessa mesma clave para<br />
ouvirmos e respondermos. Dessa forma<br />
é um diálogo que se abre, mas de<br />
um abrir que é um afetuoso impor.<br />
Isso é assim, mesmo quando não se<br />
compreendem as palavras; se estas são<br />
entendidas, tomam um outro sabor.<br />
Compreendendo o<br />
fundo dos acontecimentos,<br />
mas recusando-se a vibrar com eles<br />
Há pouco, por exemplo, foi cantado o Salmo cujos dizeres<br />
eram:<br />
“Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham<br />
os construtores. Se o Senhor não guarda a cidade, em<br />
vão vigiam as sentinelas.” 3<br />
Em arte declamatória, essas palavras poderiam ser recitadas<br />
legitimamente em tom de aviso, contendo uma<br />
ameaça, como quem dissesse: “Enquanto o Senhor não<br />
defender a cidade, inútil vos é defendê-la! Pedi, então, a<br />
Deus que a defenda, e vencereis! Do contrário, cairá sobre<br />
vós a mão do Altíssimo cujo auxílio não pedistes!”<br />
Isso que estou imaginando, dito como uma advertência<br />
de alguém que vê uma cidade defendida por outros<br />
que não rezam por ela, no cantochão não tem essa<br />
dramaticidade. É recitado à maneira de uma reflexão<br />
Cenas da vida de São Bernardo de Claraval<br />
Museu Condé, Chantilly (França)<br />
São reflexões que se sucedem,<br />
feitas por homens que estão no<br />
silêncio, atentos ao que se passa<br />
na Terra, mas com os ouvidos<br />
postos no Céu. Pessoas que<br />
ponderam dentro de um estado<br />
de espírito todo especial, sem as<br />
agitações terrenas, mas às quais<br />
chegam todos os ecos da vida.<br />
Yann<br />
18
feita por quem, encontrando-se à margem dos acontecimentos<br />
— e tendo ouvido falar da ruína de muitas cidades<br />
pelas quais os defensores não oraram —, conclui um<br />
grande princípio geral da História. São desses princípios<br />
em que as torres da História entram pelas nuvens sagradas<br />
da Teologia.<br />
São reflexões que se sucedem, feitas por homens que<br />
estão no silêncio, muito atentos ao que se passa na Terra,<br />
mas já com os ouvidos postos no Céu. Pessoas que<br />
ponderam dentro de um estado de espírito todo especial,<br />
sem as agitações terrenas, mas às quais chegam todos<br />
os ecos da vida. E que, portanto, dentro de um silêncio<br />
sacral e celeste, redestilam toda a Terra e toda a vida,<br />
com muita força de alma, pois compreendem o fundo<br />
dos acontecimentos, tomam-lhes inteiramente o sabor,<br />
recusando-se a vibrar com eles.<br />
Uma batalha entre dois exércitos que<br />
combatem em campo raso<br />
Imaginemos uma batalha travada em terra plana,<br />
cujos exércitos opositores são comandados por dois generais<br />
postados, cada um, no alto de uma colina. Embora<br />
esses generais não se vejam, eles estão atracados inteiramente<br />
um ao outro. Apesar de que estejam retirados e,<br />
aparentemente, não participarem da luta, o suco do combate<br />
se dá ali. Porque, como a direção da batalha vem<br />
desses generais, é ali que tudo repercute. E é essa repercussão<br />
que impede a batalha de se transformar numa brigaria<br />
individual.<br />
A guerra é, portanto, uma realidade que exige estar<br />
um pouco fora dela para se penetrar inteiramente nela.<br />
Suponhamos, agora, que numa colina mais elevada<br />
especialistas de guerra assistem à batalha. Eles não torcem<br />
por nenhum dos dois lados, mas estão estudando a<br />
arte militar pelo modo daqueles dois exércitos combaterem.<br />
O tom no Estado-Maior das duas primeiras colinas<br />
deve ser tranquilo, atuante e rápido. Na colina mais alta,<br />
o tom é ainda mais tranquilo, mais distante dos acontecimentos,<br />
entretanto o suco dos acontecimentos sobe<br />
até lá com maior força. Porque ali não se resolve uma batalha,<br />
mas são os conhecimentos do gênero humano sobre<br />
a arte de guerrear que progridem. Se aquela batalha<br />
Alexandru.demian<br />
Batalha de Hanau - Galeria Nacional, Londres (Inglaterra)<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta<br />
for bem observada, a História da Guerra pode mudar de<br />
direção.<br />
Esses especialistas conversam entre si com uma cordialidade<br />
normal, observam, nunca levantam a voz, dialogam,<br />
concluem. Eles estão muito mais alto, e acima deles<br />
há apenas um “teto” chamado “teoria”. Eles viram e<br />
mexem, sobem ao mirante da teoria, depois voltam para<br />
uma prática observada de longe, chegam a uma alta consideração<br />
sobre a guerra.<br />
Seja qual for o exército vencedor, quem tirou a melhor<br />
lição da guerra foram os que estiveram na clave humana<br />
mais elevada.<br />
Com os olhos voltados para a vida,<br />
mas elevando-se continuamente para Deus<br />
Essas orações do saltério referem-se continuamente a<br />
acontecimentos humanos passados, mas perenes, porque<br />
em algo a História sempre repete aqueles episódios. E os<br />
Salmos nos mostram atitudes dos homens perante esses<br />
acontecimentos, regras gerais de sabedoria sobre o modo<br />
de proceder, a conduta de Deus, para aprendermos como<br />
Ele é, como devemos agir com Ele, e como Deus agirá<br />
conosco. O píncaro é propriamente saber agir com o<br />
Criador na hora da aflição.<br />
Então, o cantochão deve ser visto como homens que<br />
se colocam intencionalmente nesse píncaro do pensamento,<br />
com os olhos voltados para a vida, mas elevando-<br />
-se continuamente para Deus.<br />
Esta posição supõe uma atitude de alma preparatória<br />
para a ação, porque é um estudo da ação. Antes de tudo,<br />
ação de Deus, depois nossa ação com o Criador e com<br />
os homens, e de como o Altíssimo toma esta nossa ação<br />
com os homens.<br />
Ora é alguém que pecou, cometeu tal crime e pede<br />
perdão, mas sente que Deus está demorando em concedê-lo.<br />
Então, invoca de um modo, alega outra coisa...<br />
Ora, pelo contrário, é um hino de ação de graças porque<br />
Deus concedeu um favor qualquer, e sentimos o sabor<br />
do dom quando nele ainda se encontra o calor<br />
da mão divina.<br />
Trata-se, portanto, de uma espécie de oração a<br />
propósito do acontecer interno humano, da vida<br />
interior, da vida externa individual e das nações e,<br />
em face daquilo, a atitude de Deus. O coro sereno<br />
salmodia e, com as próprias palavras da Escritura,<br />
aprende a louvar a Deus.<br />
Exercícios de voo de alma<br />
Qual é o resultado disso na hora da ação?<br />
O espírito sai tranquilizado, serenado e muito<br />
mais capaz de subir. São verdadeiros exercícios<br />
de voo de alma contidos não só no que o texto diz,<br />
mas, além do texto, há algo da posição temperamental<br />
do homem que pensa e reflexivamente sente,<br />
alegra-se, se entristece, chegando às vezes aos<br />
extremos da alegria ou da dor, porém sem sair da-<br />
Saber sentir o perfume<br />
do bouquet da vida é não<br />
torcer. É adquirir essa<br />
serenidade que constitui a<br />
própria clave da existência.<br />
20
Convento das Carmelitas<br />
Descalças - Albarracín,<br />
Teruel (Espanha)<br />
Diego Delso<br />
Amy Evans<br />
quela serenidade da reflexão, de quem está à margem e<br />
acima dos fatos.<br />
Por vezes as pessoas formam a ideia errada de que na<br />
torcida encontra-se o próprio sabor da vida. Na verdade,<br />
encontramos o sabor da vida quando mandamos embora<br />
a torcida e olhamos de cima.<br />
Certa ocasião, vi um homem conhecedor de vinhos<br />
que provava um vinho muito bom oferecido a ele. Ele<br />
disse que o vinho era muito saboroso, mas a análise do<br />
mesmo não se limitava em bebê-lo, era preciso também<br />
saber sentir seu aroma. Ele, então, parava de tomar e<br />
cheirava um pouco o vinho.<br />
No cheirar há uma tomada de distância psíquica em<br />
relação ao beber, porque se analisa um pouco mais do<br />
que quando se tem a bebida meramente sobre a língua.<br />
Na língua se associam outras sensações, e logo depois se<br />
engole. O cheirar é uma análise mais intelectiva.<br />
Saber sentir o perfume do bouquet 4 da vida é não torcer.<br />
É adquirir essa serenidade que constitui a própria<br />
clave da existência.<br />
Temos, assim, algumas ideias gerais sobre o conteúdo<br />
dos Salmos e a clave em que eles nos põem, por meio do<br />
cantochão.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 22/4/<strong>198</strong>3)<br />
1) Publicado na Folha de São Paulo, em 12/11/1976.<br />
2) Expressão utilizada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para significar uma calma<br />
fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade<br />
de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.<br />
3) Sl 126, 1.<br />
4) Do francês: conjunto de elementos.<br />
21
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Corpo humano<br />
e sistema feudal<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não tinha uma mentalidade livresca, mas analisava<br />
detalhada e profundamente a realidade, para depois elevar-se à<br />
teoria. Comentando diversos aspectos de regiões da Espanha,<br />
ele tira luminosas conclusões a respeito da sociedade, a qual,<br />
assim como o corpo humano, deve ser organizada feudalmente.<br />
Para considerarmos os diversos regionalismos<br />
espanhóis, tomemos como exemplo a Galícia.<br />
No meu modo de entender, existe uma forma<br />
de ser, uma espécie de alma galega, distinta da al-<br />
ma espanhola. Nessa espécie de espírito regional de<br />
um órgão da Espanha, chamada Galícia, existe uma<br />
mentalidade, uma peculiaridade própria feita para<br />
se desenvolver de um modo incompleto com vistas a<br />
Alma G.<br />
Castelo de Pambre, Galícia<br />
22
se fundir num todo maior denominado<br />
Espanha.<br />
Galícia, Catalunha, Guipúscoa<br />
Qual o valor, o alcance ontológico da<br />
autonomia dessa região? É uma vida própria<br />
de um povo que deveria, normalmente,<br />
ter chegado a ser independente e<br />
autônomo, e sobre o qual a Espanha pesa<br />
como um manto de chumbo?<br />
Ou, pelo contrário, a Espanha é um rio<br />
do qual a Galícia é um confluente? E esse<br />
confluente é feito para morrer<br />
no rio principal, fundir-<br />
-se com ele? Então<br />
estes regionalismos<br />
não seriam<br />
feitos<br />
para ter<br />
todo o seu<br />
desenvolvimento,<br />
mas para<br />
possuírem<br />
uma vida<br />
meramente<br />
local, fundida<br />
numa vida geral?<br />
Todo o problema das<br />
autonomias na Espanha tem sua<br />
Bernard Gagnon<br />
www.flickr.com<br />
Acima, Aldeia de Cruilles; ao<br />
lado, Abadia Santa Maria de<br />
Montserrat; abaixo, uma praça em<br />
Barcelona - Catalunha, Espanha<br />
raiz nesta questão. E quando isso não é devidamente<br />
considerado, nascem os mal-entendidos.<br />
É possível que alguns desses regionalismos tivessem<br />
se desenvolvido quase a nível nacional, fazendo<br />
de certas regiões quase nações, e outras que realmente<br />
não tendiam a isso. Por exemplo, a Catalunha<br />
tem, mais do que a Galícia, ares de uma nação que<br />
não chegou a se realizar inteiramente.<br />
Há, portanto, regiões da Espanha que dão a impressão<br />
de que talvez, no curso normal da História, deveriam<br />
ter tido um desenvolvimento para se tornarem<br />
quase completamente nações independentes, com cultura,<br />
vida, autonomia quase próprias. Quanto a outras regiões,<br />
entretanto, tem-se a impressão de que dariam para<br />
uma coisa menor, com formas ou graus de vitalidade<br />
diversos.<br />
Por exemplo, Guipúscoa 1 , uma região tão pequena,<br />
mas com autonomias próprias. Quem julgasse que isso<br />
não deve ser assim, faria o papel de alguém que achasse<br />
feio o miosótis. Esta é uma flor naturalmente pequena, o<br />
que é muito diferente de uma flor que por natureza deveria<br />
ser grande, mas nasceu doente. A saúde do miosótis<br />
consiste em ter aquele tamanho, com aquele azul forte<br />
por onde ele afirma sua presença na ordem do real, de<br />
um modo encantador.<br />
Guipúscoa é um miosótis dentro do jardim que é a Espanha.<br />
A alma de uma nação<br />
Essas considerações nos colocam diante do seguinte<br />
problema:<br />
Vincent van Zeijst<br />
23
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Aquilo que nós chamamos a alma de uma<br />
nação, ligada à sua psicologia, constitui um<br />
todo. A língua e a cultura dessa nação são a<br />
expressão da existência real desse todo. Essa<br />
alma não existe no sentido pampsiquista ou<br />
panteísta da palavra, mas também não se trata<br />
de uma mera figura. Há algo próprio a todos<br />
os espanhóis no sentido físico, e até étnico<br />
da palavra, que constitui um traço comum,<br />
orgânico, formando uma psicologia comum.<br />
Essa alma formaria uma cultura, uma civilização,<br />
e tem diante de Deus um quê de<br />
comum pelo qual ela é capaz de pecar ou<br />
praticar virtudes. E isso se deve ao fato, não<br />
de que há uma alma ontologicamente distinta<br />
das outras, mas é porque esse traço comum<br />
existente em toda a nação faz com que<br />
esta, às vezes, pratique solidariamente uma<br />
virtude ou um pecado. E haja então uma punição<br />
ou um prêmio para a nação nesta Terra,<br />
pois esse todo não vai ser premiado nem castigado<br />
na eternidade.<br />
Temos, assim, a ideia de um certo modo de encaixe da<br />
vida. Seria muito útil, debaixo do ponto de vista didático,<br />
se pudéssemos mostrar que algo de análogo se dá entre<br />
as células e os órgãos, e entre estes e o organismo, porque<br />
convenceria muito mais as pessoas da realidade do<br />
quadro que acabo de traçar.<br />
Creio que levaria até mesmo os cientistas a explicarem<br />
melhor as inter-relações existentes entre as células, órgãos<br />
e organismo, e chegaríamos a uma explicação melhor do<br />
feudalismo, e do que teve de errado o Estado unitário<br />
inaugurado pela monarquia absoluta no Ancien Régime 2 .<br />
Duas sinfonias<br />
Existe um principium vitæ 3 próprio a cada célula. Este<br />
princípio corresponde a uma alma, não espiritual, mas<br />
biológica. Assim, um órgão seria uma “sinfonia” de milhões<br />
de princípios de vida menores, autônomos que,<br />
criados por Deus de um modo especial, fazem uma “sinfonia”<br />
correspondente ao tipo de vida próprio do órgão,<br />
que não é inteiramente o mesmo tipo de vida próprio ao<br />
organismo. Este, por sua vez, tem uma espécie de principium<br />
vitæ atuando em cada célula. De maneira que cada<br />
célula seria portadora de seu próprio princípio de vida e<br />
de algo do principium vitæ do organismo.<br />
Aliás, a possibilidade de se fazerem transplantes de<br />
órgãos e de se conservar com vida um membro amputado,<br />
por algum tempo, fora do corpo, depõe a favor da<br />
existência desse outro principium vitæ, além da alma espiritual.<br />
Um princípio de uma qualidade tão inferior que<br />
Monte Samiño e uma família em trajes<br />
típicos - Guipúscoa, Espanha<br />
o membro ou o órgão não resiste muito tempo fora do<br />
organismo, mas este princípio existe.<br />
Isto serve para exemplificar como é o feudalismo e a<br />
sua necessidade, pois sendo a natureza tão bem constituída<br />
por Deus e havendo no corpo humano tantos elementos<br />
análogos à sociedade humana, é compreensível<br />
que esta peça para ser organizada feudalmente, por uma<br />
razão científica semelhante àquela pela qual o corpo humano<br />
constitui um sistema feudal.<br />
Erraria quem visse o feudalismo apenas nobiliarquicamente.<br />
Sem dúvida, ele é um conjunto que possui a<br />
sua parte nobiliárquica como um componente muito importante,<br />
mas contém um mundo de outros corpos, mais<br />
ou menos autônomos, com vida própria. Por exemplo, as<br />
universidades.<br />
Iñaki<br />
Lurdes Azpiazu<br />
24
www.wikipedia.org<br />
Município de Régil - Guipúscoa, Espanha<br />
www.wikipedia.org<br />
René Ancely<br />
Palácio de Emparan - Guipúscoa, Espanha<br />
Ponte sobre o Rio Bidasoa - País Basco, Espanha<br />
A Igreja é a vida dos Estados<br />
O grande organismo que permanece fora, acima e<br />
no fundo dessa estrutura, é a Igreja com sua influência.<br />
Ela é uma entidade tão soberana quanto o Estado, mas<br />
de uma soberania mais augusta, porque sobrenatural,<br />
enquanto a soberania do Estado vem de Deus, mas por<br />
ordem da natureza, e não da graça.<br />
A Igreja vive dentro de todos os Estados ao mesmo<br />
tempo, e o Estado, enquanto tal, não vive dentro da<br />
Igreja, embora possa ser um Estado católico. Por exemplo,<br />
não posso dizer: a Espanha é membro da Santa Igreja<br />
Católica. Enquanto nação, não é. Os espanhóis, sim, são<br />
membros da Santa Igreja Católica.<br />
Então, os Estados não vivem na Igreja, mas esta vive<br />
nos Estados e é a vida dos Estados. E a Igreja, que bem<br />
compreendida é inimiga da República Universal, é,<br />
entretanto, uma sociedade internacional sobrenatural<br />
imensa que realiza a mais radical e perfeita universalidade<br />
que se possa e se deva desejar. Daí o fato de toda a<br />
estrutura hierárquica da Igreja não estar sujeita às leis<br />
penais do Estado.<br />
Contudo, isso é assim em certos pontos, em outros<br />
não. Por exemplo, numa igreja em torno da qual haja um<br />
jardim onde, de vez em quando, se faça uma festa beneficente<br />
e outros atos do gênero, o Estado tem o direito de<br />
exigir da Igreja que mantenha limpo, decoroso e belo esse<br />
jardim. Nesse pormenor, a Igreja não é independente.<br />
É uma das razões pelas quais o clero fazia parte dos Estados<br />
Gerais 4 . É uma complexidade lindíssima, e que é<br />
preciso saber admirar.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 8/8/1991)<br />
1) Província do País Basco, localizada no Norte da Espanha.<br />
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />
3) Do latim: princípio de vida.<br />
4) Órgão político de caráter consultivo e deliberativo constituído<br />
por representantes do clero, da nobreza e do povo.<br />
25
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. São Josué. Filho de Num. Após a morte de Moisés,<br />
do qual era discípulo, introduziu o povo de Israel na Terra<br />
prometida.<br />
2. Santo Antonino, mártir (†séc. IV). Segundo a tradição<br />
era talhador de pedra e foi morto pelos pagãos aos 20<br />
anos de idade por ter destruído seus ídolos, em Apameia,<br />
Síria.<br />
3. São Gregório Magno, Papa e Doutor da Igreja (†604).<br />
Santos João Pak Hu-jae e cinco companheiras, mártires<br />
(†1839). Degolados em Seul, Coreia, após suportarem<br />
cruéis suplícios, por serem cristãos.<br />
4. Beata Catarina Mattei, virgem (†1547). Terciária<br />
das Irmãs da Penitência de São Domingos, que suportou<br />
com admirável caridade uma longa enfermidade, calúnias<br />
e tentações em Caramagna, Itália.<br />
5. Beato João o Bom de Siponto, abade (†séc. XII).<br />
Edificou o mosteiro de São Miguel no litoral da Dalmácia,<br />
atual Croácia.<br />
6. São Canoaldo, bispo (†c. 632). Discípulo de São Columbano,<br />
falecido em Laon, França. Foi seu único auxiliar<br />
no Ermo de Bregenz, junto ao lago Constança.<br />
7. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato Inácio Klopotowski, presbítero (†1931). Sacerdote<br />
da diocese de Lublin, Polônia, e fundador da Congregação<br />
das Irmãs da Bem-aventurada Virgem Maria<br />
de Loreto.<br />
morreu estrangulado, suspenso<br />
de uma cruz, em Wuchang,<br />
China.<br />
12. Santíssimo Nome<br />
de Maria.<br />
Beata Maria Luísa<br />
Prósperi, abadessa<br />
(†1847). Religiosa beneditina<br />
de Trevi, Itália,<br />
à qual Nosso Senhor<br />
concedeu dons<br />
místicos extraordinários,<br />
mas sem poupar-<br />
-lhe longas e dolorosas<br />
provações.<br />
santiebeati.it<br />
santiebeati.it<br />
13. São João Crisóstomo,<br />
bispo e Doutor da Igreja<br />
(†407).<br />
São Maurílio, bispo (†453). Nascido<br />
em Milão, foi discípulo de São Martinho de Tours, por<br />
quem foi ordenado presbítero. Eleito Bispo de Angers,<br />
França, erradicou as superstições pagãs dos povos rurais.<br />
14. XXIV Domingo do Tempo Comum.<br />
Exaltação da Santa Cruz.<br />
São Materno, bispo<br />
(†d. 314). Conduziu à Fé<br />
de Cristo os habitantes de<br />
Tongres, Colônia e Tréveris,<br />
Alemanha.<br />
Beata Bernardina<br />
Jablonska<br />
8. Natividade de Nossa Senhora.<br />
São Sérgio I, Papa (†701). De origem síria, dedicou-se<br />
intensamente à evangelização dos saxões e frísios. Resolveu<br />
sabiamente muitas controvérsias e conflitos, preferindo<br />
morrer a consentir nos erros.<br />
9. São Pedro Claver, presbítero (†1654).<br />
Beata Maria Eutímia, virgem (†1955). Religiosa da<br />
Congregação das Irmãs da Misericórdia, serviu a Deus na<br />
pessoa dos enfermos durante a II Guerra Mundial. Faleceu<br />
em Münster, Alemanha.<br />
10. Santa Pulquéria, imperatriz (†453). Ver página 28.<br />
11. São João Gabriel Perboyre, presbítero e mártir<br />
(†1840). Sacerdote Lazarista sofreu penoso cárcere e<br />
15. Nossa Senhora das<br />
Dores.<br />
Beato Antônio Maria<br />
Schwartz, presbítero (†1929).<br />
Fundou em Viena a Congregação<br />
dos Operários<br />
Cristãos de São José de<br />
Calasanz.<br />
16. São Cornélio, Papa<br />
(†253), e São Cipriano, bispo<br />
(†258), mártires.<br />
São João Macias, religioso<br />
(†1645). Irmão leigo<br />
dominicano, que durante<br />
muito tempo exerceu ofí-<br />
São Francisco de Borja<br />
26
––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />
Santo André Kim<br />
Taegon<br />
cios humildes no convento de<br />
Lima, dedicando-se aos pobres<br />
e enfermos.<br />
santiebeati.it<br />
17. São Roberto Belarmino,<br />
bispo e Doutor<br />
da Igreja (†1621).<br />
São Pedro de Arbués,<br />
presbítero e<br />
már tir (†1485). Cônego<br />
regular da Ordem<br />
de Santo Agostinho<br />
que, combateu<br />
as superstições e heresias<br />
no reino de Aragão<br />
e foi morto por sicários,<br />
aos pés do altar da<br />
catedral de Zaragoza, Espanha.<br />
18. São Domingos Trach, presbítero<br />
e mártir (†1840). Sacerdote dominicano que, no<br />
tempo do imperador Minh Mang, preferiu morrer a ter<br />
que pisar a cruz. Foi degolado em Nam Dinh, Vietnã.<br />
19. São Januário, bispo e mártir (†séc. IV).<br />
Santa Maria Guilhermina<br />
Emília de Rodat, <br />
virgem (†1852). Fundadora<br />
da Congregação das<br />
Irmãs da Sagrada Família<br />
em Villefranche,<br />
França.<br />
São Pedro de Arbués<br />
santiebeati.it<br />
20. Santos André Kim<br />
Taegon, presbítero, Paulo<br />
Chong Hasang e companheiros,<br />
mártires (†1839-<br />
1867).<br />
Beata Maria Teresa de<br />
São José, virgem (†1938).<br />
Fundadora da Congregação<br />
das Irmãs Carmelitas<br />
do Divino Coração de Jesus.<br />
Faleceu em Sittard,<br />
Holanda.<br />
21. XXV Domingo do<br />
Tempo Comum.<br />
São Mateus, Apóstolo e Evangelista. Ver página 2.<br />
22. Santo Emeramo, bispo e mártir (†c. 690). Pregou o<br />
Evangelho nos arredores de Poitiers, França, e depois na<br />
Baviera, Alemanha. Morto por sua Fé em Ratisbona, Alemanha.<br />
23. São Pio de Pietrelcina, presbítero (†1968).<br />
Beata Bernardina Jablonska, virgem (†1940). Fundadora<br />
da Congregação das Irmãs Servas dos Pobres em<br />
Cracóvia, Polônia. Foi filha espiritual de Santo Alberto<br />
Chmielowski.<br />
24. Nossa Senhora das Mercês. Em 1218, São Pedro<br />
Nolasco tem uma visão da Virgem Maria, pedindo-lhe para<br />
fundar a ordem que leva seu nome.<br />
25. São Sérgio de Radonez, abade (†1392). Após levar<br />
uma vida eremítica, fundou nas proximidades de Moscou<br />
o Mosteiro da Santíssima Trindade e propagou a vida cenobítica<br />
na Rússia Setentrional.<br />
26. Santos Cosme e Damião, mártires (†c. séc. III).<br />
Beata Lúcia de Caltagirone, virgem (†1400). Terciária<br />
franciscana falecida em Salerno, Itália. Destacou-se por sua<br />
fidelidade à Regra e sua devoção às Cinco Chagas de Cristo.<br />
27. São Vicente de Paulo, presbítero (†1660).<br />
Beato João Batista Laborier du Vivier, diácono e mártir<br />
(†1794). Durante a Revolução Francesa foi condenado<br />
a cruel cativeiro, em Rochefort, onde morreu de grave enfermidade.<br />
28. XXVI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Venceslau, mártir (†929-935).<br />
São Lourenço Ruiz e companheiros, mártires (†1633-1637).<br />
29. São Miguel, São Gabriel e São Rafael Arcanjos.<br />
Beato Carlos de Blois, leigo (†1364). Sendo Duque<br />
da Bretanha, desejou entrar na Ordem Franciscana, mas<br />
constrangido a reivindicar o principado, suportou com firmeza<br />
de ânimo as tribulações da prisão e foi morto em<br />
combate junto de Auray, França.<br />
30. São Jerônimo, presbítero e Doutor da Igreja (†420).<br />
São Francisco de Borja, presbítero (†1572). Após a morte<br />
da esposa, ingressou na Companhia de Jesus, abdicando<br />
as honras do mundo. Foi eleito o terceiro superior geral da<br />
Ordem, em Roma.<br />
27
Hagiografia<br />
Uma santa<br />
imperatriz virgem<br />
abala duas heresias<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dava grande<br />
importância à sociedade<br />
temporal, a qual deve secundar<br />
a obra da Igreja. Santa<br />
Pulquéria, sendo Imperatriz<br />
do Império Romano do<br />
Oriente, ocupou o mais alto<br />
cargo na esfera temporal e<br />
contribuiu possantemente para<br />
o esmagamento das heresias de<br />
Nestório e de Eutiques.<br />
A<br />
respeito da Imperatriz Santa Pulquéria, virgem,<br />
temos alguns dados biográficos extraídos de diferentes<br />
fontes 1 .<br />
Um dos mais belos episódios da História<br />
Ao lado de São Cirilo de Alexandria em sua luta contra<br />
Nestório, no triunfo da Mulher sobre o antigo inimigo, aparece-nos<br />
a admirável figura de uma mulher, de uma santa<br />
que foi, durante quarenta anos, o terror do inferno, e por<br />
duas vezes, em nome da Rainha do Céu, esmagou a cabeça<br />
da serpente odiosa.<br />
Num século de ruínas, encarregada aos quinze anos da<br />
direção do Império, Pulquéria deteve por sua prudência,<br />
Santa Pulquéria<br />
Santiebeati.it<br />
28
Bastou que<br />
Pulquéria aparecesse na<br />
Corte para acabar com<br />
os abusos, e conseguir<br />
que o Concílio de<br />
Calcedônia condenasse<br />
o eutiqueísmo e<br />
seus adeptos.<br />
Concílio de Calcedônia (por<br />
Vasily Surikov) - Museu de<br />
São Petersburgo, Rússia<br />
Jason.Groen<br />
por sua energia, as convulsões internas, enquanto que, pela<br />
única força dos Salmos divinos — que ela entoava com<br />
suas irmãs, virgens como ela —, continha os bárbaros.<br />
Vejam que coisa linda! Bizâncio, capital deslumbrante,<br />
amável, com as suas suntuosas igrejas, seus palácios,<br />
seus estádios, suas escolas, seu luxo! Ali se encontrava<br />
instalada uma imperatriz que canta os Salmos com suas<br />
irmãs virgens e, por essa forma, rechaça os bárbaros que<br />
invadiam o Império, e protege aquele reduto da Cristandade<br />
contra toda deterioração.<br />
Este coro da Imperatriz com suas irmãs virgens, cantando<br />
Salmos para a proteção do Império, é um dos mais<br />
bonitos episódios que a História possa ter apresentado à<br />
consideração humana.<br />
Grande devota de Nossa Senhora<br />
Enquanto o Ocidente agitava-se nas convulsões da última<br />
agonia, o Oriente encontrava no gênio da sua Imperatriz<br />
a prosperidade dos mais belos dias.<br />
Vendo a neta do grande Teodósio consagrar suas riquezas<br />
privadas para multiplicar, nos seus muros, as igrejas dedicadas<br />
à Mãe de Deus, Bizâncio aprendia com ela o culto<br />
a Maria, que devia ser a sua salvaguarda em tantos dias<br />
maus. E valeria do Senhor, Filho de Maria, mil anos de misericórdia<br />
e de compreensível paciência.<br />
Com efeito, o Império Romano do Ocidente estava caindo,<br />
devido aos bárbaros que o invadiam. Mas, nos quarenta<br />
anos de governo de Santa Pulquéria, aquela torrente<br />
de bárbaros, por razões que os historiadores nem chegam<br />
a afirmar inteiramente, não desceram até Bizâncio, cidade<br />
que era tão ou mais rica do que Milão, ou Ravena, ou Roma,<br />
então meias capitais do Império Romano do Ocidente.<br />
Santa Pulquéria foi saudada pelos Concílios gerais como<br />
a guardiã da Fé e o sustentáculo da unidade.<br />
Segundo São Leão, a parte principal em tudo que neste<br />
tempo se fez contra os adversários da Verdade Divina, foi<br />
Santa Pulquéria. Diz esse grande Papa que duas palmas estão<br />
em suas mãos, duas coroas sobre sua cabeça, porque a<br />
Igreja lhe deve a dupla vitória sobre a impiedade de Nestório<br />
e de Eutiques, que, embora divididos no ataque, visavam<br />
o mesmo fim: a negação da Encarnação e do papel da<br />
Virgem Mãe na salvação do gênero humano.<br />
Num século cheio de santos, ela abalou duas heresias<br />
e foi considerada o principal fator para esmagá-las, apresentando,<br />
portanto, alguns aspectos por onde nos faz<br />
lembrar Nossa Senhora que, sozinha, esmagou as heresias<br />
em todo o mundo.<br />
Grande devota da Mãe de Deus, Santa Pulquéria<br />
construiu numerosas igrejas dedicadas a Ela, em Bizâncio,<br />
o que fez retardar especialmente a queda do Império,<br />
porque a devoção a Maria Santíssima é o meio para<br />
perpetuar a vida e evitar qualquer espécie de morte.<br />
Elogiada pelo Papa São Leão Magno<br />
“É a vós que se deve a supressão dos escândalos suscitados<br />
pelo espírito do mal. Graças ao vosso esforço toda<br />
29
Hagiografia<br />
Sem dúvida, é uma lindíssima vida, toda cheia de ensinamentos<br />
e observações que se prestam a mais alguns<br />
comentários.<br />
Em primeiro lugar, o papel importantíssimo que tem<br />
para os costumes e para a Religião o fato de que as pessoas<br />
altamente colocadas deem um bom exemplo, e que<br />
os detentores do poder público atuem de maneira a impor<br />
a Religião e os bons costumes. Esse elogio feito pelo<br />
Papa São Leão é decisivo a esse respeito.<br />
“É a vós que se deve a supressão dos escândalos suscitados<br />
pelo espírito do mal. Graças ao vosso espírito, toda<br />
a Terra está presentemente unida na mesma confissão de<br />
Fé.”<br />
Uma determinada mulher consagrada a Deus subiu<br />
ao trono imperial, deteve as rédeas do governo e um cargo<br />
que dava uma influência sobre os costumes de todo o<br />
Império, e soube utilizar-se bem desses meios que a Providência<br />
colocou em suas mãos. Por causa disso a Igreja,<br />
tendo no momento um Papa santo e, portanto, capaz das<br />
maiores coisas em beneficio dela, proclamou, pela boca<br />
do Pontífice, todo esse imenso beneficio que a Santa Pulquéria<br />
se deveu.<br />
É verdade que a Religião precisa ser servida, antes de<br />
tudo, por sacerdotes, por Papas santos, mas um Pontífice<br />
santo reconhece que não basta isso; é necessário haver<br />
nos postos importantes da vida civil gente que ame a<br />
Igreja com todo o coração, com a preocupação única de<br />
servi-la e mais nada. A prova disso encontra-se neste fawww.wikipedia.org<br />
“Festa de Átila” (por Mór Than)<br />
Galeria Nacional da Hungria<br />
a Terra está presentemente unida na mesma confissão de<br />
Fé.” Foi com essas palavras que o Papa São Leão prestou<br />
homenagem à Imperatriz Pulquéria, digna neta de Teodósio,<br />
o Grande.<br />
Tinha ela sido batizada por São João Crisóstomo em<br />
Constantinopla e, muito nova ainda, fizera voto de virgindade<br />
juntamente com duas irmãs menores.<br />
Quando morreu Acab, seu pai, foi proclamada Augusta<br />
tendo apenas quinze anos, e passou a governar sob tutela<br />
de Teodósio II, dois anos mais novo do que ela.<br />
Em 414 assumiu todas as responsabilidades do governo,<br />
raras vezes vendo-se tanta prudência aliada à tamanha precocidade.<br />
Quando Teodósio II chegou aos vinte anos, Pulquéria<br />
concorreu para que ele desposasse Atenaís, filha de um filósofo<br />
pagão de Atenas. Batizada com o nome de Eudócia,<br />
esta princesa acabou por perseguir a cunhada porque exercia<br />
influência sobre Teodósio, obrigando-a que se retirasse<br />
da Corte.<br />
Pulquéria manteve-se afastada durante três anos até<br />
que, em 450, São Leão pediu-lhe encarecidamente que<br />
viesse em auxílio da ortodoxia ameaçada.<br />
Condenado pelo Concílio de Éfeso, em 431, o Patriarca<br />
Eutiques tinha, por fim, caído nas boas graças do Imperador,<br />
e a heresia triunfava, então, com a sua pessoa na sede<br />
de Constantinopla.<br />
Bastou que Pulquéria aparecesse na Corte para acabar<br />
com tais abusos, e conseguir que o Concílio de Calcedônia<br />
condenasse o eutiqueísmo e seus adeptos.<br />
Entretanto, deu-se a morte<br />
de Teodósio e o afastamento de<br />
Eudócia, o que tornou Pulquéria<br />
senhora absoluta do Império,<br />
nessa altura ameaçado por<br />
Átila.<br />
A fim de estabilizar sua autoridade,<br />
Pulquéria decidiu casar-se<br />
com o General Marciano,<br />
oito anos mais novo do que<br />
ela. Marciano respeitou seu voto<br />
de virgindade, perseguiu os<br />
partidários de Nestório e de Eutiques,<br />
e obrigou Átila a afastar-<br />
-se das fronteiras.<br />
Santa Pulquéria faleceu em<br />
453.<br />
Santos ocupavam o<br />
mais alto cargo no<br />
campo espiritual e no<br />
campo temporal<br />
30
Joseolgon<br />
to: no mais alto cargo espiritual da Terra havia um Papa<br />
santo, mas a Providência não teria feito todo o bem que<br />
fez se não tivesse existido também uma santa no mais alto<br />
cargo temporal.<br />
Isso mostra como os fiéis, sob a inspiração<br />
e orientação do bom clero, têm um papel<br />
próprio e importantíssimo na obra de estruturação<br />
da Civilização Cristã.<br />
De outro lado, vemos como<br />
Santa Pulquéria, durante sua vida<br />
inteira, só cogitou do serviço<br />
de Deus.<br />
Parece que nesta vida tão<br />
admirável houve um fato desconcertante:<br />
por que razão<br />
Santa Pulquéria quis que Teodósio<br />
II desposasse Ate naís,<br />
filha de um filósofo pagão de<br />
Atenas? Essa narração será<br />
ver dadeira? Em rigor, não é<br />
im possível que houvesse uma<br />
razão justa para isso. O fato<br />
con creto é que o heresiarca Eutiques<br />
obteve várias vitórias por<br />
causa disso.<br />
E mais uma vez se vê o mesmo<br />
princípio: sai do poder uma<br />
imperatriz boa, entra outra má,<br />
tudo se arruína; de tal maneira os cargos da sociedade<br />
temporal são importantes para a realização da obra de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
É interessante notar o que se conta nessa ficha a respeito<br />
de Átila. Quando ele veio da Hungria para invadir<br />
o Império Romano do Ocidente, não se dirigiu imediatamente<br />
a este, mas desceu e ameaçou o Império do<br />
Oriente. Ali ele foi derrotado, e só então se dirigiu para<br />
o Império do Ocidente, onde produziu devastações tremendas<br />
que deixaram esse Império todo abalado, combalido,<br />
para cair debaixo de outros choques que não tardariam<br />
a vir.<br />
Eis o efeito da presença de uma imperatriz santa servindo<br />
de “para-raios” e afastando inimigos terríveis, de<br />
maneira que o Império do Oriente veio a cair mil anos<br />
depois da queda do Império do Ocidente.<br />
Devemos pedir a Santa Pulquéria que obtenha para<br />
nós a graça de compreendermos e fazermos compreender<br />
essas verdades, e de exercermos a nossa tarefa na<br />
sociedade temporal com ardor renovado, porque entendemos<br />
bem como isso está dentro dos planos da Providência.<br />
v<br />
(Extraído de conferências de 10/9/1965 e 10/9/1966)<br />
1) Não dispomos dos dados bibliográficos das obras citadas<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nesta conferência.<br />
Palamede<br />
Concílio de Éfeso - Igreja Nossa Senhora de Fourvières, Lyon (França).<br />
Em destaque, estátua de São Cirilo de Alexandria - Santuário de Nossa Senhora do Sameiro, Portugal<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Distinção e suavidade<br />
Em todas as coisas que passavam pelos seus sentidos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
sempre procurava arquetipizá-las, ou seja, imaginá-las no seu máximo<br />
grau de perfeição. Comentando o minueto de Boccherini, afirma que<br />
o concebe não tanto como uma dança, mas como ondas vaporosas e<br />
perfumadas de pessoas, que avançam numa bela galeria. E chega até a<br />
supor como seria um arquiminueto medieval.<br />
Ominueto de Boccherini 1 — que para mim é o minueto<br />
por excelência — tem qualquer coisa no<br />
sentido de uma revista à tropa, sem o ser propriamente.<br />
32
Charme, esplendor, graça e beleza<br />
Devemos imaginar uma sala de corte, o rei e a rainha<br />
nos seus tronos, os príncipes e as princesas da Casa Real<br />
em poltronas, os duques em tabourets; ou, como se fazia<br />
em Versailles, de um lado e de outro da Galeria dos Espelhos,<br />
arquibancadas onde pessoas da nobreza ou da alta<br />
burguesia de Paris se postavam para verem dançar o minueto.<br />
Vindos do fundo da sala ou de um compartimento ao<br />
lado, entram os pares dançando o minueto, reverenciando-se<br />
mutuamente, fazendo a reverência ao rei, quando<br />
passavam diante dele, e circulando de novo. Era a corte<br />
celebrando um ato lúdico, no qual as pessoas eram passadas<br />
em revista no seu charme, no seu esplendor, na sua<br />
maior graça, na sua maior beleza, para a corte ter a fisionomia<br />
de si mesma, e deleitar-se em ser aquilo. Isso era<br />
propriamente o minueto.<br />
É preciso notar que esses minuetos, muitas vezes,<br />
eram altamente hierarquizados, e a reciprocidade dos<br />
cumprimentos se multiplicava pela sala indicando uma<br />
harmonia hierárquica de relações sociais, juntamente<br />
com a harmonia dos gestos, das atitudes, a beleza dos<br />
trajes, o esplendor das joias, a nobreza das expressões fisionômicas,<br />
dos sorrisos, etc.<br />
Seria um pouco como um exército que precisa organizar<br />
uma grande revista, para ver-se a si próprio. E o “ver-<br />
-se a si próprio”, nesse sentido, não é como o de uma<br />
pessoa faceira que se olha no espelho para ficar vaidosa,<br />
mas é o conhecer a sua própria face para ver que perfeição<br />
o Criador pôs nela, e amar a Deus em si mesma. Isso<br />
constitui um alto grau de tomar consciência de si e tem,<br />
no fundo, um sentido religioso.<br />
Seriedade e sorriso profundamente sério<br />
Na situação cultural do tempo do minueto havia uma<br />
necessidade de fazer as coisas com muita solenidade,<br />
dalbera<br />
Palácio de Versailles, França<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
mas compensar essa solenidade com muita graça, com<br />
muito charme. E o minueto perfeito seria o que reunisse<br />
o esplendor de uma verdadeira cerimônia de corte com<br />
a graça de uma afabilidade, de um sorriso, de uma concepção<br />
amena da vida que fosse o contrapeso do grande<br />
esplendor, porque a vida tinha chegado a um tal brilho<br />
que massacrava o homem se ele não tivesse esse complemento.<br />
Vê-se, então, a coexistência de uma grande seriedade<br />
com um sorriso profundamente sério de quem sabe<br />
quem é, e que do alto daquilo que é, por gentileza<br />
e bondade, sorri como quem diz: “Eu sou tudo<br />
isso, e é tudo isso que sorri para você.” Não é,<br />
portanto, o sorriso do peralvilho que anda pela<br />
rua e, de repente, vê um cachorrinho engraçadinho,<br />
mas é o sorriso de quem possui grandeza e<br />
oscula aquilo para o que sorri, como uma espécie<br />
de comunicação de todos os esplendores que tem<br />
dentro de si.<br />
Saint-Simon 2 , quando queria elogiar alguém<br />
dotado de muito senso de sua própria dignidade,<br />
dizia: “Ele se sentia muito”, quer dizer, sentia muito<br />
em si o que ele era, e a sua respeitabilidade. De onde<br />
o minueto, assim entendido, ser a música do respeito.<br />
O respeito acompanha a grandeza, o afeto, o carinho,<br />
o sorriso. Percorre de ponta a ponta a gama dos possíveis<br />
sentimentos humanos. E isto faz do minueto uma obra-<br />
-prima.<br />
O minueto não é tanto uma dança quanto falanges ou<br />
ondas vaporosas e perfumadas de gente que vai avançando<br />
ao longo de uma galeria vazia.<br />
Para ouvir bem o minueto de Boccherini, devemos<br />
imaginar a Galeria dos Espelhos vazia, e no fundo os primeiros<br />
grupos se formando e avançando, eu quase diria<br />
em “cordão” de oito, dez ou quinze pessoas, fazendo piruetas<br />
umas para as outras e caminhando até o rei. Chegando<br />
diante do monarca, fazem uma profunda reverência<br />
e depois viram, deixando lugar para outros. Quer dizer,<br />
a marcha progressiva está presente no minueto, e<br />
um pouco da atitude do respeito feudal diante do rei,<br />
de quem diz “senhor, vede quem eu sou, sinto-me e sou<br />
uma alta emanação de vós mesmo”, bem como algo de<br />
súdito que faz diante do rei uma profunda reverência. As<br />
duas coisas existem juntas e são um outro traço da graça<br />
do minueto, mais visível em Boccherini do que em todos<br />
os outros minuetos que conheço.<br />
Imaginando um superminueto medieval<br />
Myrabella<br />
Eu não chegaria a dizer que esta teoria é válida para<br />
qualquer minueto. Talvez seja, mas não ouvi com este<br />
senso crítico um número suficiente de minuetos, e nem<br />
tive tempo para pensar bastante sobre a questão, a fim<br />
de fazer uma afirmação genérica quanto aos minuetos.<br />
A meu ver, para interpretar perfeitamente o espírito<br />
do minueto de Boccherini seria preciso sempre conferir<br />
à música uma nota grave e altiva que se desfaz no sorriso,<br />
e não tanto a continuidade realmente muito harmoniosa<br />
e bonita posta em muitas interpretações que, para<br />
quem quer fazer música, representam, no gênero, uma<br />
obra-prima, mas para quem deseja fazer sociologia a coisa<br />
é diferente.<br />
Um minueto precisaria ser tocado num ritmo não tão<br />
corrido, e com um intervalozinho entre cada trecho. E,<br />
ao chegar ao último do harmonioso, retomar o tema inicial.<br />
Tal minueto daria uma interpretação da harmonia,<br />
da cultura daquele tempo, feita exatamente de alta distinção<br />
e grande suavidade. Considero que um minueto<br />
tocado assim interpretaria o tempo e o lugar para os<br />
quais Boccherini o compôs.<br />
Para compreendermos ainda melhor quais são as raízes<br />
psicológicas, morais e culturais de um minueto, deveríamos<br />
imaginar um superminueto medieval.<br />
34
Arianna<br />
Na página anterior, Galeria dos Espelhos - Palácio de Versailles, França.<br />
Acima, gravura representando um baile nessa mesma Galeria. Ao lado,<br />
dama medieval portando o característico chapéu em forma de cone.<br />
O rei católico, no seu trono, olhando firme, e sorrindo<br />
enquanto a coisa se desfaz numa gentileza. Que tanta<br />
gentileza contenha tanta majestade, e tanta majestade<br />
contenha tanta gentileza, aqui está o equilíbrio.<br />
Imaginar, portanto, na Idade Média, uma dança desse<br />
tipo bailada por senhoras que usavam aqueles chapéus<br />
cônicos, altivos, dos quais pendiam véus trazidos do<br />
Oriente, levíssimos, que qualquer brisa punha em movimento;<br />
chapéus que eram mais ou menos como um reflexo,<br />
um símbolo da sabedoria.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 1974)<br />
1) Luigi Boccherini (* 1743 - † 1805): compositor clássico italiano,<br />
famoso por seus minuetos.<br />
2) Duque de Saint-Simon (* 1675 - † 1755), escritor francês<br />
que, em suas “Memórias”, descreveu com penetração, finura<br />
e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís<br />
XIV.<br />
35
Nascimento da Virgem<br />
Maria - Catedral de Santo<br />
Estêvão, Prato (Itália)<br />
A maior fonte de bênçãos<br />
de todos os tempos<br />
C<br />
om o nascimento de Maria Santíssima<br />
abriu-se a maior fonte de bênçãos<br />
de todos os tempos, cuja irradiação pessoal e<br />
ação de presença eram o prenúncio da vinda<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi o início daquilo<br />
que iria derrubar, afinal, as muralhas<br />
do paganismo.<br />
A Natividade de Maria é, pois, uma festa<br />
de altíssimo significado na qual podemos<br />
implorar que, assim como Ela veio à Terra<br />
e imediatamente começou a pedir o advento<br />
do Messias e o fim daquela ordem de coisas<br />
embargada pelo pecado, Nossa Senhora<br />
nos dê um desejo ardente, sapiencial, refletido,<br />
ponderado, sério e profundo do Reino de<br />
Maria, que não deixe em nossas almas apego<br />
a mais nada.<br />
(Extraído de conferência de 8/9/1966)