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Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>185</strong> Agosto de 2013<br />
A Assunção e o maternal<br />
legado da Virgem Maria
Alma de fogo<br />
S<br />
ão Pedro Julião Eymard<br />
foi um homem de uma<br />
virtude abrasadora, uma espécie<br />
de nova edição do Profeta<br />
Elias, pelo fogo de sua alma.<br />
O católico ideal é um católico<br />
de fogo. E o sacerdote só é<br />
verdadeiramente digno deste<br />
título quando possui uma<br />
alma de fogo. Por isso, os bons<br />
sacerdotes são os que têm almas<br />
de fogo, como São Pedro Julião<br />
Eymard. O sacerdote deve ser<br />
aquele que puxa todos para a<br />
frente, que está na primeira fila.<br />
Timothy Ring<br />
(Extraído de conferências<br />
de 4/4/1993 e 2/8/1995)<br />
São Pedro Julião Eymard - Igreja de<br />
Santa Ifigênia, São Paulo (Brasil)<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>185</strong> Agosto de 2013<br />
Ano XVI - Nº <strong>185</strong> Agosto de 2013<br />
A Assunção e o maternal<br />
legado da Virgem Maria<br />
Na capa, pintura a<br />
óleo representando<br />
a Assunção de<br />
Maria - Galeria<br />
Nacional de Arte,<br />
Washington (EUA).<br />
Foto: Mattes<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 A Assunção e o maternal legado da Virgem Maria<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Uma obra fruto da confiança<br />
Dona Lucilia<br />
6 Dona Lucilia e o mar<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2606-2409<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
10 Solução para todos os problemas - III<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
16 Hierarquia e amor de Deus<br />
Reflexões teológicas<br />
22 Nossa Senhora e a Tradição da Igreja<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Agosto<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 114,00<br />
Colaborador .......... R$ 160,00<br />
Propulsor ............. R$ 370,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 590,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 15,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Hagiografia<br />
28 Santa Joana de Chantal Profundidade e desapego<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
32 Senso do maravilhoso: padrão<br />
para o conhecimento da verdade - I<br />
Última página<br />
36 Rainha da graça<br />
3
Editorial<br />
A Assunção e o maternal<br />
legado da Virgem Maria<br />
Ao concluir seu Evangelho, São João afirma que se fossem narrados todos os feitos do Salvador,<br />
“nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seria preciso escrever” 1 .<br />
Não obstante a beleza e profundidade desta afirmação, quem de nós leu os Evangelhos<br />
sem se lamentar, nesta ou naquela passagem, da ausência de certos detalhes que julgávamos indispensáveis<br />
à nossa piedade?<br />
Se isso ocorre com as narrativas evangélicas, o que dizer, então, dos episódios que, por misteriosos<br />
desígnios de Deus, nem sequer foram mencionados nas páginas sagradas?<br />
Tal se dá com a Assunção da Santíssima Virgem, cujos esplendores ocultam-se misteriosamente<br />
sob o véu do silêncio, rompido apenas pela Tradição e pela elucubração teológica, entretanto suficientemente<br />
eloquentes para fundamentar tão augusta verdade. Com efeito, a força da Tradição, que<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> relaciona intimamente a Maria nesta edição 2 , afirma-se de modo incontestável no dogma<br />
da Assunção de Nossa Senhora ao Céu.<br />
Como os Evangelistas, também a proclamação deste dogma mariano não fornece detalhes... Contudo,<br />
isso favorece a ação do Espírito Santo em nossas almas, permitindo-nos imaginar piedosamente<br />
aquilo que a Revelação e o Magistério não explicitaram.<br />
Para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> 3 , a Assunção começa com a manifestação de todas as glórias que havia em Nossa Senhora,<br />
como ocorrera com seu Divino Filho no Tabor, causando nos presentes exclamações de admiração.<br />
Ao mesmo tempo, no auge dessa “mariofania”, todos devem ter experimentado uma tal intimidade<br />
e união com Ela, vendo-A “tão meiga, tão afagante, tão tonificante, tão reparadora e tão mãe, que<br />
se sentiam como ajoelhados junto a Ela, recebendo suas carícias, ‘embebidos’ d’Ela, como um papel<br />
pode estar impregnado de perfumado azeite”.<br />
Em determinado momento, “começam os ares a se mover, e os ventos como que a tomar forma e<br />
flutuar de modo singular; definem-se figuras angélicas e o céu se revela sucessivamente povoado de<br />
Anjos a cantar. Nossa Senhora, atingindo o auge de esplendor indescritível, torna pálidos os puros<br />
espíritos, entretanto tão majestosos!<br />
“Chega a hora da despedida... A Virgem Maria começa a mover-se, olhando um a um com afeto,<br />
na tentativa de transpor a distância física que aumenta a cada instante. Os Anjos cantam celestialmente<br />
e, por fim, Nossa Senhora desaparece no céu. Os cânticos angélicos fazem-se ouvir por mais<br />
alguns instantes para consolar os homens, mas depois vão desaparecendo também gradualmente.”<br />
Restava à humanidade enlevada, a doce lembrança desse augusto momento, perpetuada ao longo dos<br />
séculos pela Tradição e por um certo imponderável, maternal legado da Santíssima Virgem que permitirá<br />
sempre, a qualquer fiel verdadeiramente sincero, reconstituir e reconhecer a face inteira da Igreja 4 .<br />
1) Jo 21, 24.<br />
2) Ver seção “Reflexões teológicas”, p. 22-25.<br />
3) Citações adaptadas, extraídas de conferência de 15/8/1980.<br />
4) Cf. “Reflexões teológicas”, na presente edição, p. 25.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Uma obra fruto<br />
da confiança<br />
Em agosto de 1995, a pedido de seus discípulos,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> iniciava uma série de<br />
comentários ao seu livro “Revolução e<br />
Contra-Revolução”. Na reunião inaugural 1 , cujo<br />
trecho transcrevemos abaixo, manifestava ele sua<br />
alegria e gratidão pelo interesse de seus filhos espirituais<br />
por esta obra, por eles conhecida como<br />
“RCR”, que de tal maneira reflete a linha mestra<br />
de seu pensamento.<br />
Nossa Senhora queria<br />
para esse livro aquilo<br />
que Ela quer para tudo:<br />
um enorme ato de<br />
confiança.<br />
Aos poucos, as circunstâncias<br />
foram mudando,<br />
nosso Movimento<br />
foi crescendo, o<br />
ambiente geral foi também<br />
se transformando,<br />
e o tema da “RCR” começou<br />
a tomar mais interesse.<br />
Por fim, a “RCR” é<br />
objeto de uma recordação que<br />
eu não hesito em dizer: É a recordação<br />
mais gloriosa e mais própria a encher<br />
meu coração de alegria para com Nossa Senhora<br />
nesta noite.<br />
Porque, um livro escrito por amor a Ela, para<br />
a glória d’Ela, só com a intenção de servi-La,<br />
não poderia ter melhor forma de glorificação do<br />
que os filhos d’Ela, que consagraram toda a sua<br />
vida para servi-La, quisessem, muitos anos depois<br />
de terem lido o livro, ouvir uma série de comentários,<br />
relembrando-o e reaplicando-o às<br />
condições presentes.<br />
Ouvi há pouco, com emoção, ser entoado o<br />
cântico “Quem somos nós?” 2 Por cima da definição<br />
de que somos aqueles que jamais dobramos<br />
os joelhos diante de Satanás, há algo em<br />
que somos mais eminentemente nós mesmos —<br />
e, genuflexo, peço a Nossa Senhora, neste momento,<br />
que nos torne cada vez mais assim:<br />
Na tormenta, na aparente desordem, na aparente<br />
aflição, na quebra aparente de tudo aquilo<br />
que poderia representar para nós a vitória, somos<br />
aqueles que confiaram.<br />
Quem somos nós?<br />
Nós somos aqueles que nunca duvidaram,<br />
que jamais deixaram de confiar, mesmo quando<br />
Satanás parecesse nos ter vencido definitivamente!<br />
1) Em 9/8/1995.<br />
2) Trecho musicado de um artigo publicado em “O<br />
Legionário” de 22/12/1946.<br />
À esquerda, “Mater mea, fiducia mea” -<br />
Seminário Maior de Roma, Itália.<br />
Acima, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em agosto de 1995<br />
5
Dona Lucilia<br />
Dona Lucilia e o mar<br />
Instado por jovens discípulos a relacionar seu encanto<br />
pelo mar com seu filial afeto por Dona Lucilia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
demonstra o quanto a contemplação do olhar de sua bondosa<br />
mãe o incitava a admirar, ainda mais, o mar de perfeições<br />
postas por Deus em Maria Santíssima.<br />
Pensando sobre o mar, múltiplas vezes lembrei-<br />
-me de mamãe. E o por onde ela mais me recordava<br />
o mar, era o olhar. Olhar amplo, profundo,<br />
sereno, mas ao mesmo tempo firme e movimentado como<br />
o dela, poucas vezes em minha vida eu encontrei; se<br />
é que encontrei...<br />
Pensamento que se ”move”<br />
como as ondas do mar<br />
Lembro-me perfeitamente daquela fotografia dela,<br />
sentada sobre um banco de madeira e com a mão no rosto,<br />
numa atitude evidentemente contemplativa. O vaivém<br />
de seus pensamentos me davam a impressão do movimento<br />
nobre e sereno das ondas do mar, quando estão<br />
fora da tempestade, mas o mar não está parado.<br />
O mar é bonito, sobretudo quando não está parado<br />
nem agitado. Mas quando movimentado, ele tem vida e<br />
é belo. E ao contemplar o olhar profundo, escuro, mas<br />
cheio de claridade de mamãe, eu gostava enormemente<br />
de pensar no mar.<br />
6
7
Dona Lucilia<br />
Nossa Senhora<br />
Auxiliadora - Igreja<br />
do Sagrado Coração<br />
de Jesus, São<br />
Paulo (Brasil)<br />
Timothy Ring<br />
8
Na última vez que estive junto ao mar, havia diante de<br />
mim uma linda fotografia de Dona Lucilia, em tamanho<br />
quase natural, representando-a sentada num banco, como<br />
há pouco referi. E eu pensava: “A mente e o coração<br />
dela são grandes como o mar!”<br />
Portanto, considerando o mar, mais de uma vez —<br />
ainda agora — pensei nela. Olhando para ela, quantas<br />
vezes pensei no mar!<br />
Soldados de Maria<br />
Que ela reze por vós, e vos dê também a compreensão<br />
de tudo quanto havia de providencial, de belo, de en-<br />
levado que Nossa Senhora pôs na alma dela, para que sejam<br />
soldados do mar da Contra-Revolução, nesses dias<br />
de agitação. Soldados de Nossa Senhora é o que acima<br />
de tudo queremos ser.<br />
Meus caros, tenho que ir andando. Mas eu vos vi um<br />
pouco, e já me deu satisfação. O mar é assim: quando<br />
passamos por ele e olhamos um pouco, já vimos muito.<br />
Agora, o que me resta é rezar convosco por vós, ante<br />
Maria que é o mar, o oceano incomensurável no qual Nosso<br />
Senhor colocou qualidades perfeitas e magníficas. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 23/10/1993)<br />
9
Solução pa<br />
Gustavo Kralj<br />
10
a todos os problemas - III<br />
Pela razão, uma pessoa pode ter<br />
certezas fragmentárias. Mas a<br />
certeza do conjunto das verdades<br />
que dizem respeito ao homem,<br />
a Deus e ao universo, somente<br />
pela Fé pode ser adquirida.<br />
Desde menino, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
possuía ardente Fé e, quando<br />
tomou conhecimento da<br />
infalibilidade pontifícia, acolheu<br />
essa verdade com fervor e<br />
entusiasmo, compreendendo<br />
que sem ela não poderia haver<br />
ordem humana.<br />
Por que a infalibilidade papal me tocou mais do<br />
que tudo?<br />
Sei que a infalibilidade é um carisma conferido<br />
por Nosso Senhor Jesus Cristo à sua Igreja. Jesus, Deus<br />
e Homem verdadeiro, nosso Criador e Redentor, fundou<br />
a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e, quando<br />
prometeu que as portas do Inferno não prevaleceriam<br />
contra ela, deu-lhe o carisma da infalibilidade. Se a Igreja<br />
caísse em erro, as portas do Inferno teriam prevalecido<br />
contra ela. Eu creio, portanto, que a Igreja tem essa<br />
infalibilidade porque Nosso Senhor Jesus Cristo o afirmou.<br />
Mas por que razão isso de tal maneira me enche a<br />
alma?<br />
11
Gesta marial de um varão católico<br />
Gustavo Kralj<br />
Infalibilidade da Igreja: fechadura<br />
que encerra todos os tesouros<br />
A explicação está no histórico que acabo de fazer. Se<br />
um menino, de passos incertos, que mede as dimensões<br />
daquilo que todo o homem pode atingir, vê como suas dimensões<br />
atuais são menores e não sabe como chegar à<br />
plenitude delas, nem que rumo dar, em que lado procurar<br />
o ponto terminal das suas dimensões, não sabe o que<br />
fazer de si mesmo e encontra a solução na Igreja, ele se<br />
põe normalmente na posição de discipulado, de súdito.<br />
E fica encantado quando ele sabe que este mestre para o<br />
qual a sua alma se volta, este rei que ele deseja ter para<br />
lhe guiar os passos, é um homem na Terra: o Papa. Quer<br />
dizer, está tudo predisposto nele para receber com entusiasmo<br />
esta verdade.<br />
Para mim, pessoalmente, o entusiasmo especial decorre<br />
do seguinte:<br />
Imaginemos que a porta deste auditório estivesse murada,<br />
tal como as outras três paredes, nós estivéssemos<br />
de fora, e uma pessoa me dissesse: “<strong>Plinio</strong>, todo o espaço<br />
São Pedro - Igreja de São Pedro dos Clérigos,<br />
Bahia (Brasil)<br />
contido por essa cubagem está cheio de pedras preciosas,<br />
de barras de ouro e de prata, tudo o que há de mais maravilhoso.<br />
Pertence a seu Movimento, e vocês podem aplicar<br />
esse tesouro para o apostolado, as boas obras, a glória<br />
de Nossa Senhora, como entenderem, mas com uma<br />
condição: vocês têm que descobrir a fechadura. E vou dizer<br />
mais: isso não foi dado só a vocês, mas a milhões de<br />
homens. Quem descobrir a fechadura ficará com o tesouro,<br />
quem não a encontrar, não terá o tesouro.”<br />
E vemos em torno de nós milhões de pessoas, as quais<br />
desistiram de procurar a fechadura. Moram perto do tesouro,<br />
dizem que são donos dele, mas caminham, comem,<br />
bebem, dormem, preocupam-se com outras coisas<br />
porque não têm mais a esperança séria de encontrar o tesouro.<br />
Mais ainda, cada um diz ao outro: “Está vendo? Todos<br />
esses não encontraram a fechadura, não sou eu que vou<br />
achá-la.” E desses milhões de homens que morrem e se<br />
sucedem, quase ninguém procura a fechadura.<br />
Em certo momento, um de nós encontra a fechadura,<br />
e — como todos os homens — tem na mão a chave por<br />
meio da qual aquela se abre. A questão é ter encontrado<br />
a fechadura, que é microscópica, minúscula…<br />
Ora, para mim a fechadura, através da qual tudo se<br />
abre, é a infalibilidade da Igreja.<br />
Não se pode ter inteira certeza<br />
sem a Fé Católica<br />
Com quanta certeza eu falei do bom senso e do raciocínio!<br />
O valor de um e de outro sinto em mim, todos<br />
os outros sentem também. Mas percebo que todas essas<br />
certezas que possuo, eu não teria tido personalidade<br />
nem força para adquiri-las se não fosse a Fé.<br />
Não é uma fé qualquer. A Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana é única, e fora dela nenhuma outra merece<br />
o nome de Fé. Tendo a crença nessa infalibilidade, todos<br />
os tesouros se abrem para mim. Perdendo-a, as minhas<br />
certezas amolecem, meu bom senso se gelatiniza e<br />
eu não sou nada.<br />
Como fica horrível um homem reconhecer que ele<br />
não é nada! Por isso, o indivíduo que não se apoia nessa<br />
infalibilidade começa a mentir para os outros, dizendo<br />
ser alguma coisa, mas ele sabe que não é nada. Então, de<br />
zero ele passou para um valor negativo: um saco de vaidade<br />
e de mentira. É uma pessoa que não tem certeza da<br />
própria certeza e titubeia: “Será que é? Será que não é?”<br />
Um indivíduo assim, eu tenho vontade de pegar pela<br />
gola e dizer-lhe: “Você se diz católico? Você tem ou não<br />
certeza da Fé? Por que não conferiu seus dados com o<br />
Magistério da Igreja? Confira! Aí você terá certeza! Ande,<br />
ponha-se de pé — ou, muito melhor do que se pôr de<br />
12
Gustavo Kralj<br />
Catedral de Notre-Dame - Paris, França<br />
pé, ponha-se de joelhos! Então você saberá o que precisa<br />
fazer, como deve pensar, encontrará o seu próprio rumo.”<br />
Assim, torna-se claro que tudo me predispôs a um<br />
particular fervor, a um particular entusiasmo para com<br />
essa verdade, sem a qual eu não creria em nenhuma ordem<br />
humana, não creria em absolutamente nada.<br />
Alguém dirá: “Mas o senhor então, no fundo, é um relativista.”<br />
Explico: de nenhum modo sou um relativista. Eu acabo<br />
de dizer que o homem, tomando os conhecimentos<br />
que ele tem pela Fé e conjugando-os com os que ele possui<br />
pela razão, pode, no inteiro respeito e no desenvolvimento<br />
do seu bom senso, ter um tesouro magnífico de<br />
certezas. Mas sem a graça de Deus ele não consegue isso.<br />
Ele pode ter certeza num ou noutro ponto, como um<br />
cientista que encontrou uma reação química consegue<br />
ter certezas, mas certezas fragmentárias. Pedaços de certeza<br />
não formam uma certeza, como cacos de vidros não<br />
constituem um vitral. A certeza é do conjunto das verdades<br />
que dizem respeito ao homem, a Deus e ao universo.<br />
Isto é certeza!<br />
É em função disso que as certezas científicas e outras<br />
se encaixam, se ordenam. Mas não se pode ter inteira<br />
nem adequada certeza sem a santa Fé Católica, Apostólica,<br />
Romana.<br />
A Fé alarga os horizontes,<br />
ordena o pensamento<br />
É certo que a razão humana, sem recorrer à Revelação,<br />
encontra por si mesma muitas verdades que Deus<br />
também ensinou. Por exemplo, a unidade de Deus; o homem<br />
pode chegar a essa verdade pela razão. É certo que<br />
os Mandamentos da Lei de Deus o homem alcança por<br />
sua razão; a razão humana, sem recorrer à Revelação,<br />
chega a demonstrar que aqueles preceitos são verdadeiros.<br />
Mas, sem a graça de Deus, o homem não seria capaz<br />
de permanecer muito tempo com uma noção límpida dos<br />
13
Gesta marial de um varão católico<br />
dez Mandamentos. Embora sua razão pudesse conhecê-<br />
-los, ele não seria capaz de praticá-los duravelmente. Isso<br />
só é possível pela graça de Deus.<br />
São Paulo diz que nós somos consortes da natureza divina;<br />
algo da própria vida de Deus vive em nós dessa maneira.<br />
Pela luz, pela força que nos vem da graça, a inteligência<br />
e a vontade podem crer, conhecer e praticar respectivamente<br />
o que devem. Com a graça, a inteligência<br />
se engrandece e passa a conhecer verdades que o homem<br />
jamais conheceria, nem mesmo antes do pecado original,<br />
se não fosse a Revelação.<br />
A fonte da graça é a Igreja Católica, e a cúpula da<br />
Igreja Católica é o Papa, a infalibilidade papal. Aqui temos<br />
a ordenação, o calor de alma com que nós, católicos,<br />
devemos viver.<br />
<strong>Dr</strong>ama pelo qual passam todos os homens<br />
Não quereria terminar a reunião sem mencionar, neste<br />
histórico, algo ao qual já me referi, de passagem, anteriormente.<br />
Para lhes tornar claro o assunto relativo à Fé e à Igreja,<br />
fiz quase uma espécie de narração biográfica do que<br />
eu poderia chamar a minha instalação dentro da Igreja.<br />
E julgaria andar mal se encerrasse sem dizer uma palavra<br />
sobre Nossa Senhora.<br />
Um drama de todos os homens, e que eu senti de um<br />
modo pungente — todos sentimos, a todo momento, de<br />
modo pungente —, é o seguinte: a desproporção e a fraqueza<br />
do homem diante da própria vida, do dever e do<br />
problema da verdade. Como eu me sentia pequeno, insuficiente,<br />
mole, preguiçoso!<br />
Aliás, o interesse do que estou expondo não consiste<br />
em terem sido fornecidos dados de minha biografia, mas<br />
em que essas realidades, de um modo ou de outro, são<br />
vividas por todo mundo.<br />
Quem não exaltou, em que língua não foram glorificadas<br />
as alegrias da inocência? Toda criança, máxime a batizada,<br />
as tem.<br />
Lembro-me dessas alegrias, que às vezes ocorriam nas<br />
minhas horas de reflexão, antes das sestas que, na minha<br />
primeira infância, eu era obrigado a fazer todos os dias.<br />
Evidentemente eu levava algum tempo para dormir,<br />
ficava pensando e, muitas vezes, dizia para mim mesmo:<br />
“Tudo isto é tão bom! Mas como é enorme!” Quando eu<br />
olhava na outra ponta da vida minha avó — que devia<br />
ter naquele tempo uns 60 anos —, pensava: “Idosa como<br />
ela está… eu tenho que chegar até lá. Quanto tempo<br />
para viver!”<br />
Quando eu encontrava velhos na rua, pensava: “Tenho<br />
que percorrer o caminho que chega até lá? Ah, não<br />
tenho fôlego para isso! Como vou viver tudo isso? Que<br />
esforço! Que coisa enorme!”<br />
Depois, veio a obrigação de cumprir o dever, estudar.<br />
E quando começou a batalha pelos Mandamentos,<br />
que dificuldade, que coisa penosa! E quantas e quantas<br />
vezes refleti: “Eu não conseguirei, porque isso importa<br />
em um sofrimento para mim, que não quero suportar.<br />
E não quero por moleza, porque como sou mole,<br />
não gosto de fazer esforço. Eu sofro com o esforço e<br />
não quero, portanto, fazê-lo. Sei que tenho culpa, mas<br />
é assim.”<br />
De outro lado, eu pensava: “Não devo omitir-me. Mas<br />
como?” Impasse sem solução.<br />
Nossa Senhora se debruça sobre o<br />
fraco, dizendo: ”Meu filho”<br />
Entendi bem qual era o elo indispensável para todas<br />
as soluções, a chave de tudo, quando, diante da imagem<br />
de Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja do Coração<br />
de Jesus, atentei melhor para o que queria dizer<br />
“Salve Rainha, Mãe de misericórdia”, etc., e comecei<br />
a ter devoção a Nossa Senhora. Aí compreendi<br />
a misericórdia d’Ela para quem não merece.<br />
14
Eu tinha ideia de que Ela amaria somente quem merecesse.<br />
E a falência de quem não tivesse méritos seria<br />
irremediável, pois Maria Santíssima não o quereria, os<br />
Anjos lhe voltariam as costas, Deus estaria encolerizado<br />
com ele. De outro lado, eu também não queria me esforçar.<br />
Parecia-me, portanto, não haver solução.<br />
Mas depois comecei a entender que Nossa Senhora<br />
ama a quem não merece, protege o ingrato, tem pena de<br />
quem não vale dois caracóis e deveria ser castigado, se<br />
debruça e diz: “Meu filho.” Ela sorri, estimula, perdoa,<br />
arranja um jeito industrioso e cheio de bondade para dissimular<br />
que não viu tal coisa, esquece tal outra, e sempre,<br />
sempre ajuda de novo, põe a pessoa de pé e lhe dá<br />
outro ânimo.<br />
Cada um de nós passa a vida inteira aprendendo isso<br />
e só entende mesmo no momento em que morre. É no<br />
Céu que compreende porque vê, e então pode amar inteiramente.<br />
Sem isto, como o jovem da magnífica metáfora contada<br />
no início da reunião 1 , eu teria visto a montanha, tido<br />
o entusiasmo pelo castelo, mas depois menearia a cabeça<br />
e diria: “Não! Eu nasci para a planície.” Mas saberia<br />
estar mentindo, porque eu teria descido pelo resvaladouro<br />
abaixo.<br />
Tenho a alegria de vos falar a respeito do castelo, ao<br />
cabo de 72 anos de vida, em que procurei não propriamente<br />
me aproximar — se o castelo é a Santa Igreja, graças<br />
a Nossa Senhora estamos todos dentro dela —, mas<br />
penetrar dentro do castelo e tê-lo na minha alma o quanto<br />
possível. E se recebi essa graça é porque, no mais alto<br />
dos Céus, a Mãe de Misericórdia — vida, doçura, esperança<br />
nossa — teve pena de mim.<br />
E se os participantes desta reunião estão aqui, não é<br />
por outra razão.<br />
Correndo o olhar sobre o auditório, eu que gosto de<br />
observar as personalidades, vendo um ou outro, às vezes<br />
me aflora a ideia: “Como há de ter sido este, antes de<br />
pertencer ao nosso Movimento?” E percebo todo o ziguezague<br />
havido antes, e me dou conta do que a Mãe de<br />
Misericórdia dispôs, pediu. E quanto Ela chorou por nós<br />
ao pé da Cruz, quanto suas lágrimas se uniram ao Sangue<br />
redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo para alcançar<br />
a nossa salvação!<br />
Assim, há toda razão para encerrarmos a reunião rezando<br />
a Salve Regina.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 17/10/1981)<br />
1) Cf. <strong>Revista</strong> “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”, n. 183, p. 10.<br />
Timothy Ring<br />
Nossa Senhora das Graças - Palência, Espanha<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Hierarquia<br />
e amor de Deus<br />
O homem com espírito hierárquico se enleva com tudo de superior que<br />
ele vê, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorá-Lo<br />
por toda a eternidade, no Céu. E o indivíduo que, diante das qualidades<br />
dos outros, sente-se espezinhado ou indiferente, está se preparando<br />
para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.<br />
Mais de uma vez tenho exposto a doutrina clássica<br />
da Igreja sobre a desigualdade, mostrando<br />
no que ela dá glória a Deus, por que é necessária,<br />
enfim, tudo quanto São Tomás de Aquino afirma<br />
a esse respeito.<br />
Entretanto, tenho a impressão de que a mera explanação<br />
doutrinária não basta, e seria preciso fazer uma exposição<br />
vivencial do assunto por onde pudéssemos, por<br />
assim dizer, apalpá-lo, para depois aplicarmos mais fa-<br />
cilmente a doutrina. E vou tentar, portanto, tocar o tema<br />
com a mão; vejamos como ele se deixa manusear.<br />
Diante dos pombos,<br />
na Praça de São Marcos...<br />
Estive algumas ocasiões — podem imaginar com que<br />
encanto! — na Praça de São Marcos, em Veneza. Sempre<br />
que vejo a Catedral, é com o mesmo entusiasmo, como se<br />
Gustavo Kralj<br />
Vitor Toniolo<br />
À esquerda, Palácio dos Doges; acima,<br />
fileira de gôndolas - Veneza, Itália<br />
16
Vitor Hugo Toniolo<br />
Praça de São Marcos com a Basílica ao fundo - Veneza, Itália<br />
fosse a primeira vez. A laguna, as gôndolas, as duas colunas<br />
com o leão alado e com São Teodoro e o dragão,<br />
— entre as quais figura o lugar onde eram decapitados os<br />
réus de morte —, a entrada do Palácio Ducal… Oh! Que<br />
palácio! Se ali morasse, não um doge veneziano, mas um<br />
imperador — não das margens do Adriático, mas um imperador<br />
do Oceano Pacífico — aquele palácio ainda estaria<br />
superior ao personagem, de tal maneira é magnífico.<br />
Depois de considerar todas essas maravilhas, o olhar<br />
cai naturalmente para as bagatelas, entre as quais os<br />
pombos que existem em quantidade na Praça de São<br />
Marcos. Os turistas costumam levar saquinhos com miolos<br />
de pão e outros alimentos semelhantes, que eles compram<br />
por ali, os jogam e os pombos vêm comer.<br />
Eu ficava prestando atenção nos turistas — porque é<br />
interessante viajar olhando não só os monumentos, mas os<br />
homens e, no caso, também os pombos e os turistas lidando<br />
com eles. E eu analisava a reação de almas humanas<br />
em relação às aves, e diante do problema da desigualdade.<br />
Quer dizer, eu me transformava de admirador da<br />
Praça de São Marcos em observador de uma criatura<br />
de Deus, a qual vale mais do que qualquer monumento.<br />
Porque qualquer alma humana, enquanto espiritual,<br />
sobretudo enquanto batizada, vale incomparavelmente<br />
mais do que a Catedral de São Marcos, o Palácio Ducal,<br />
e é até mais interessante, quando se sabe analisá-la.<br />
...as atitudes dos turistas<br />
Observando os turistas, eu notava que muitos deles<br />
tomavam uma atitude de superioridade em relação aos<br />
pombos. É natural: criaturas humanas, seres inteligentes<br />
que jogavam no chão a comida e os pombos vinham comer.<br />
De vez em quando, alguns pombos pousavam na mão<br />
de um turista, pois se tornaram aves muito mansas à força<br />
de serem bem tratadas pelos transeuntes. Outras vezes,<br />
os pombos voavam junto ao rosto das pessoas, e estas<br />
queriam pegá-los, iam atrás deles, mas não conseguiam;<br />
as aves esvoaçavam e saiam elegantes, para voltar<br />
de novo.<br />
E eu percebia que aquela sensação de superioridade,<br />
ligeiramente depreciativa, cedia lugar a uma impressão<br />
de encanto. No pombo, aquele movimento da cabeça,<br />
aquelas asas cor de chumbo muito matizado, aquelas<br />
pequenas estrias coloridas no pescoço — verde um pou-<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Por que é natural ao<br />
homem reto, ao ver em<br />
outro algo mais belo ou<br />
melhor do que aquilo que<br />
ele possui, exclamar: “Que<br />
bom! Então isto existe!”?<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em visita a Veneza em 1988<br />
co nacarado —, a graça e, sobretudo, a vitalidade, a variedade,<br />
sua instabilidade ordenada fazem desta pequena<br />
ave uma maravilha criada por Deus.<br />
Tendo passado da sensação de superioridade para a do<br />
fascínio, os turistas querem agarrar o pombo para terem<br />
tempo de observá-lo, mas percebem a instabilidade da ave<br />
que pode levantar voo a qualquer momento. Eles ficam<br />
meio inseguros e, de repente, começam a sentir, por algum<br />
lado, uma certa inferioridade em relação aos pombos.<br />
Porque estes possuem um tipo de vitalidade que, para<br />
dizer pouco, poucos homens têm. Ademais, o pombo é tão<br />
engraçadinho, tão pequenininho, tão vivo, e tem um jeitinho<br />
de olhar, que o observador percebe um mistério que<br />
ele não chega a explicitar, mas lhe vem à mente o problema:<br />
“Como é que um simples bicho tão inferior a mim é,<br />
entretanto, por alguns lados, tão superior a mim?”<br />
Em determinado momento, o pombo que estava na<br />
mão de um turista se destaca e voa. E, no voar, afirma<br />
sua independência e sua alteridade. Há um modo de o<br />
pombo ir embora pelo qual parece dizer: “Não me incomodo<br />
contigo. Estive um pouquinho em tua mão, mas<br />
agora voo.” E o voar dá ao pombo uma certa superioridade<br />
em relação ao homem, pois este não voa, é pesadão,<br />
atraído pela terra, seus passos o cansam. Então,<br />
olhando o pombo que corta o ar, o homem vai se entusiasmando,<br />
até que em determinado momento tem vontade<br />
de se apoderar da ave. Se ele pudesse, prendia-a<br />
numa gaiola e tentaria haurir aquilo de superior que há<br />
dentro dela.<br />
São poucas as almas que manifestam a seguinte reação:<br />
“Como esse pombo, que agora voa, é bonito e superior<br />
a mim, por algum lado! E eu gosto de contemplar essa<br />
superioridade dele!”<br />
O homem deve se alegrar ao contemplar<br />
a superioridade de outro<br />
Penso ter filmado, assim, em câmara muito lenta, o<br />
drama do igualitarismo.<br />
Essas sucessivas atitudes de alma de uma pessoa face<br />
ao pombo são uma espécie de apólogo, de conto, no<br />
18
qual se pode perceber a evolução do homem diante daquilo<br />
que é superior a ele em todas as ordens; não apenas<br />
na sua relação com uma ave, mas, sobretudo, com<br />
outros homens. E aí o problema da igualdade ou desigualdade<br />
entre os seres humanos encontra um meio de<br />
se exprimir.<br />
Por que é natural ao homem reto — ao ver em outro<br />
algo mais belo ou melhor do que aquilo que ele possui —<br />
exclamar: “Que bom! Então isto existe!”?<br />
Sendo bem entendida a ordem profunda das coisas, a<br />
qualidade de cada pessoa é complementar com a da outra,<br />
de maneira que aquele predicado, existindo isoladamente,<br />
não teria razão de ser.<br />
Exemplifico. Alguém tem um grande talento artístico<br />
e pinta um quadro. O pintor, enquanto tal, é muito<br />
superior ao homem que simplesmente admira o quadro.<br />
Entretanto, que sentido teria pintar se não houvesse<br />
outros que admirassem a pintura? Não é verdade<br />
que a capacidade de admirar de quem vai ao museu<br />
para ver o quadro — aptidão mais modesta do que<br />
a do pintor — é um complemento do pintor, e este não<br />
se explica sem o admirador? Mas não é verdade também<br />
que o admirador seria um órfão e um pobre coitado<br />
se, gostando de pinturas, não houvesse pintores que<br />
as realizassem?<br />
Portanto, se o pintor, ao invés de desprezar quem não<br />
sabe pintar — falando-lhe: “Animal! Dou-te um pincel,<br />
borra essa parede, vamos ver o monstro que sai! Olha a<br />
bela figura que eu fiz!” —, dissesse ao homem admirativo:<br />
“Tu és meu irmão ou meu filho, porque tua alma<br />
compreendeu aquilo que eu admirei”, e se unissem, nós<br />
teríamos, então, a harmonia da desigualdade.<br />
Sem dúvida, um belo quadro é uma grande coisa. Mas<br />
imaginem se Deus tivesse criado o mundo só com pintores.<br />
Que pesadelo! É preciso haver o pintor, mas também<br />
o padeiro, o ferreiro, o homem letrado; é necessário<br />
ter de tudo porque todas as qualidades são diferentes,<br />
mas se completam, formam um todo, a sociedade humana,<br />
a qual possui uma perfeição como conjunto, que um<br />
mundo constituído só de pintores ou de padeiros não poderia<br />
ter.<br />
Quer dizer, se considerarmos as coisas retamente, veremos<br />
que toda superioridade de outro homem deve<br />
constituir um gáudio para quem a contempla. Esta é a<br />
ordem reta posta por Deus.<br />
Eu afirmo: Vamos devagar... Ele tem qualidades que<br />
desenvolveu e você não. Você foi o preguiçoso que deixou<br />
as qualidades dormindo dentro de si; ou foi o homem<br />
desatinado que deu a elas um desenvolvimento errado,<br />
fora da trilha da Doutrina Católica e do espírito<br />
da Igreja. Se você se tivesse desenvolvido como deveria,<br />
compreenderia melhor aquele que se desenvolveu como<br />
devia. E essa sensação de inferioridade contundida é a<br />
sua consciência, que geme sob o peso de sua preguiça.<br />
Não é raro encontrarmos em colégios a seguinte reação:<br />
um menino tira uma série de prêmios no fim do ano;<br />
certos colegas dizem: “Esse é pretensioso!” Na realidade,<br />
aqueles são vagabundos, não querem estudar, não<br />
gostam de fazer qualquer esforço. O mínimo que se pode<br />
desejar é que eles batam palmas e declarem: “Graças<br />
a Deus que alguém fez o que não fizemos!” E cada<br />
um precisa pensar: “Se tenho vergonha na cara, ao menos<br />
devo aplaudir o mérito dos outros, já que eu não fui<br />
capaz de conquistar méritos para mim.”<br />
Se o menino que recebeu prêmios dissesse isso para os<br />
colegas que o chamam de pretensioso, o linchariam. Mas<br />
se esse colégio tivesse educadores bons, estes diriam aos<br />
alunos vagabundos, porque é uma coisa que eles precisariam<br />
ouvir.<br />
Hermann Gehrichv<br />
Reação de certos meninos diante de um<br />
colega que obtém prêmios na escola<br />
Alguém dirá: “Mas um homem, vendo um outro muito<br />
superior, pode pensar sempre o seguinte: Ele possui<br />
qualidades que eu não tenho, e que me completam?”<br />
“Tu es meu irmão, porque tua alma<br />
compreendeu aquilo que eu admirei.”<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Muitas vezes, esses sentimentos invejosos de inferioridade<br />
vêm do fato de a consciência dizer à pessoa que ela<br />
deveria ter feito o que não fez, e o remorso dá uma dentada.<br />
A dentada do remorso converte a uns, por exemplo,<br />
São Pedro, e perde a outros, como Judas.<br />
Independente disso, Deus Nosso Senhor criou as pessoas<br />
desiguais, deu a alguns o talento de pintar, a outros<br />
de fabricar pincéis. Podemos estabelecer uma hierarquia:<br />
pintar quadro, o principal; excogitar, misturar e<br />
compor tintas, em segundo lugar. Para imaginar cores e<br />
produzi-las é preciso ser um grande artista; muitas vezes<br />
é o próprio pintor quem o faz, como por exemplo, Fra<br />
Angélico. Mas pode-se conceber como especialidades separadas.<br />
Em terceiro lugar está quem fabrica os pincéis.<br />
A complementaridade<br />
Isso forma uma hierarquia à maneira de graus nobiliárquicos,<br />
numa linha que não é estritamente nobiliárquica,<br />
mas uma escala de valores. E esses valores estão<br />
em relação uns com os outros, como os vários graus de<br />
nobreza, por exemplo, do duque ao plebeu, na medida<br />
em que a arte vai cedendo lugar ao trabalho meramente<br />
manual. Mas é a plebe digna, simpática, necessária dentro<br />
dessa ordenação geral posta por Deus.<br />
Então, esta ordenação, na qual habitualmente se quereria<br />
ver uma nota meramente política, é política apenas<br />
per accidens 1 , pois se trata, fundamentalmente, da ordenação<br />
de todos os valores, inerente a qualquer atividade<br />
humana.<br />
Menciono esta hierarquia para sustentar a tese da<br />
complementaridade. Cada grau existe em função do outro,<br />
o maior deve amar o menor, o menor precisa amar o<br />
maior, cada um deve procurar a perfeição dentro do seu<br />
próprio grau, e assim se complementarem todos. Esta é a<br />
harmonia querida por Deus; as coisas andam bem quando<br />
funcionam assim.<br />
Apliquemos essas verdades à parábola inicial das<br />
pombas. Se um turista, vendo a pomba levantar voo, admira:<br />
“Como é bonito haver seres que voem. Como é belo<br />
voar!” Se ele sente, portanto, essa complementaridade<br />
admirativa, e pensa: “Nós compomos um todo, e neste<br />
todo há algo magnífico, superior e que transcende cada<br />
uma das partes, e me faz pensar em Deus.” Então, ele<br />
acertou e está na boa via.<br />
Mas se, pelo contrário, ele diz: “Ladrão, você tem reações<br />
que eu não teria, e possibilidades que não tenho. O<br />
fato de você estar vivo me machuca e me lesa. Fico com<br />
a impressão de que você me roubou; vou acabar com você.”<br />
Neste caso, ele romperia a obra de Deus.<br />
20
Lorenzo_Monaco<br />
Donde o homem com espírito<br />
hierárquico, que se enleva<br />
com tudo de superior<br />
que ele vê, ama e se encanta,<br />
está voltado para Deus e dispondo<br />
sua alma para adorar<br />
o Criador, quando colocada<br />
durante toda a eternidade à<br />
vista da infinitude de Deus.<br />
Pelo contrário, o indivíduo<br />
que, diante das qualidades<br />
dos outros, sente-se amarfanhado,<br />
espezinhado ou pelo<br />
menos indiferente, está se<br />
preparando para o antro de<br />
todas as revoltas, que é o Inferno.<br />
Doutrina de<br />
São Tomás sobre<br />
a desigualdade<br />
Cenas da vida de São Bento - Galleria degli Uffizi, Florença (Itália)<br />
Essas considerações servem<br />
de esboço para nos lembrarmos,<br />
em duas palavras,<br />
da doutrina de São Tomás<br />
a respeito da desigualdade. Muito elevada e belamente,<br />
ele não considera a questão em termos tão concretos,<br />
mas abstratos. Diz o seguinte 2 :<br />
Deus, sendo infinitamente sábio, poderoso, bom, enfim,<br />
tendo todas as qualidades do Ser perfeito que é Ele,<br />
só poderia criar seres nos quais sua infinita perfeição reluzisse.<br />
Do contrário não Lhe dariam a devida glória.<br />
Mas, se é assim, Deus não poderia criar um único ser.<br />
Porque, sendo Ele infinito, um homem ou um Anjo não<br />
O espelharia adequadamente. Seria mais ou menos como<br />
um espelho tão pequeno que só refletisse uma pequena<br />
parte do rosto; não dá a imagem do indivíduo por<br />
inteiro, e nem sequer de sua fisionomia.<br />
Como afirma São Tomás, Deus não precisaria criar,<br />
mas tendo criado, era obrigado, por sua própria perfeição,<br />
a criar vários seres, e todos diferentes, para exprimir<br />
as diferentes perfeições d’Ele. Ora, acrescenta o Doutor<br />
Angélico, quando há diferença, não pode deixar de haver<br />
hierarquia.<br />
A condição para a sociedade humana espelhar bem a<br />
Deus é ser constituída de desigualdades. Na medida em<br />
que amamos essas desigualdades e, portanto, amamos<br />
um superior pela superioridade que ele tem, estamos, no<br />
fundo, amando a Deus.<br />
O espírito igualitário é frontalmente oposto a isso.<br />
E como ele odeia a Deus, odeia também todas as desigualdades.<br />
Porque cada desigualdade, estabelecendo<br />
uma relação entre superior e inferior, é uma imagem<br />
da relação entre Deus e o homem. Isso em qualquer<br />
terreno: superior de uma Ordem religiosa, general<br />
de um exército, diretor de um observatório ou dono<br />
de uma barbearia. O superior tem funções que lhe<br />
habilitam a olhar o seu inferior como Deus olharia<br />
uma criatura.<br />
Cuidado, superiores! Deus, amando as criaturas,<br />
amou-as de tal maneira que Se encarnou por elas. E o<br />
Verbo de Deus Se fez carne e habitou entre nós. Mais<br />
ainda: padeceu tudo quanto sofreu para nos salvar! Assim<br />
o superior deve amar o inferior. A missão do superior,<br />
como modelo de abnegação, não é deliciosa, mas<br />
terrível! Prestai atenção, ó superiores!<br />
Feita esta ressalva, superior é superior, e para o inferior<br />
ele é a imagem de Deus.<br />
v<br />
1) Do latim: por acidente, por acaso.<br />
2) Cf. Suma Teológica, I, q. 47, a. 1-2.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 9/1/1982)<br />
21
Reflexões teológicas<br />
Nossa Senh<br />
Sergio Hollmann<br />
22
ora e a Tradição da Igreja<br />
Tudo quanto se referia a Nosso Senhor, Maria Santíssima<br />
conservava com enlevo em sua alma. Ela possuía uma memória<br />
perfeita porque foi concebida sem pecado original. Após a<br />
Ascensão, a Mãe do Redentor fez com que os Apóstolos e<br />
discípulos tivessem determinada mentalidade, que depois se<br />
exprimiu nos dogmas e na Liturgia; mais do que tudo, Ela<br />
manteve certo imponderável dentro da Igreja.<br />
Arespeito da Igreja primitiva, parece-me que ela<br />
não pode ser vista, nem conjeturada, nem analisada<br />
a não ser de dentro da Igreja atual.<br />
Por vezes, os livrinhos de História da Igreja apresentam<br />
desenhos que não deixam de estar um pouco impregnados<br />
pela Renascença, porque, na louvável preocupação<br />
de mostrar o primitivismo da Igreja, eles carregam<br />
a nota e pintam o ambiente dos Apóstolos, de Nosso<br />
Senhor, de Nossa Senhora, não só como não tendo explicitado<br />
muitíssima coisa que há na Igreja atual — isso<br />
é legítimo —, mas como não possuindo sequer em gérmen<br />
as maravilhas que viriam depois. E isto eu considero<br />
errado.<br />
Nos albores da Igreja, juntaram-se<br />
todas as maravilhas<br />
Por exemplo, numa obra qualquer de História eclesiástica,<br />
onde todos nós tenhamos aprendido, não se vê<br />
nada em São Pedro e em São Paulo que faça prenunciar<br />
o que depois foi um Papa e um Cardeal. Os fatos teológicos<br />
sim, mas a ambientação não. São livrinhos perfeitos<br />
do ponto de vista apologético, mas insinuam que na ambientação<br />
da Igreja daquele tempo não havia nada que<br />
fizesse pressentir a Igreja de hoje.<br />
Então, por uma concepção errada, a Idade Média<br />
também não estava prevista nem um pouco nas catacumbas.<br />
Ela teria florescido quando eclodiu o gótico e, portanto,<br />
é muito mais filha da barbárie do que da Revelação.<br />
As iluminuras, que pintam com tanta candura e tanto<br />
espírito medieval as cenas, por exemplo, do Natal, não<br />
fazem propriamente aparecer aquilo que eu acho que estava<br />
na gruta de Belém. A meu ver, na noite de Natal,<br />
no Gloria in excelsis Deo 1 , e depois nos vários episódios<br />
que marcaram a História de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
na Terra, os Anjos fizeram com que a graça se tornasse,<br />
nos imponderáveis, intensíssima, algo no qual já reluzia o<br />
Reino de Maria, e que era, portanto, muito superior ao<br />
que veio depois.<br />
Seria ridículo imaginar a gruta de Belém como se fosse<br />
uma Sainte-Chapelle, quando ela não era senão uma<br />
gruta; e que o boi era um animal de raça das cocheiras de<br />
Versailles. É uma coisa completamente cretina, não é disso<br />
que estou falando. Mas, a propósito de um boizinho<br />
ou um burrinho, os mais elementares, os Anjos deviam<br />
fazer aparecer ali algo que a Sainte-Chapelle, por assim<br />
dizer, não faz senão rememorar.<br />
Tenho a impressão de que na aurora, nos albores da<br />
Igreja, juntaram-se todas as maravilhas que foram brilhando<br />
nas várias épocas de sua História, num brilho<br />
germinativo e inicial que nos é difícil compor. Como seria<br />
impossível, por exemplo, um homem que nunca viu<br />
o branco, imaginar esta cor a partir da fusão das demais<br />
cores, sem fazer rodar aquele disco de Newton. Mas ele<br />
poderia entrever e compreender uma síntese. E ali hou-<br />
23
Reflexões teológicas<br />
Timothy Ring<br />
ve uma síntese semelhante. Suponho que Nosso Senhor<br />
e toda a sua vida foram assim.<br />
Majestade de Nosso Senhor<br />
coroado de espinhos<br />
Creio que isso se verificava em todos os episódios,<br />
mesmo da Paixão, como a coroação de espinhos. Nosso<br />
Senhor coroado de espinhos deveria ser visto com uma<br />
forma de majestade, que não seria apenas a majestade<br />
do Profeta, habitualmente representada, mas também a<br />
majestade do Rei. E, portanto, com algo que lembraria<br />
uma invisível coroa de Imperador do Sacro Império, uma<br />
dignidade de Imperador do Sacro Império, injuriada e<br />
questionada ali, mas realmente presente.<br />
Ascensão - Pro Catedral de Hamilton, Ontário (Canadá)<br />
A meu ver, havia em tudo isso uma espécie de ponto<br />
originário, que foi uma categoria de graça mística fenomenal<br />
como não se pode ter ideia, e que se prolongou<br />
durante a vida terrena d’Ele, mas que com a Ascensão<br />
teve uma certa diminuição. E essa diminuição<br />
foi intencionada; parece-me direito, normal, que tenha<br />
sido assim.<br />
Ele não ascendeu ao Céu para castigar a Igreja primitiva<br />
por infidelidades; seria uma hipótese absurda. Ele<br />
subiu ao Céu porque tinha que subir. Mas as graças se<br />
distribuem desigualmente, segundo os períodos históricos.<br />
E há épocas de muita intensidade, às quais devem se<br />
seguir épocas de menor intensidade. E para que a ruptura<br />
não fosse muito grande, Nosso Senhor deixou a Mãe<br />
d’Ele. Temos, então, a Era de Maria, que prepara, continua<br />
a Era de Cristo.<br />
Manter certo imponderável dentro da Igreja<br />
Nesse período, da Ascensão à Assunção, Nossa Senhora<br />
ajudou os Apóstolos em algo que é bem o trabalho<br />
d’Ela, e que Ele não podia fazer: rememorar tudo e,<br />
naquela pletora de impressões, de recordações, de ensinamentos<br />
e de tudo o que eles deviam carregar — podemos<br />
imaginar o que aqueles homens levavam consigo do<br />
convívio com Nosso Senhor...; é indizível! —, ajudá-los a<br />
ver o que não tinham visto, a dar o devido valor a coisas<br />
que haviam banalizado, a pedir perdão pelas infidelidades<br />
cometidas, a render graças pelas virtudes que praticaram.<br />
E Maria Santíssima, poderosamente ajudada pelas<br />
graças do Espírito Santo, retificou o espírito deles a<br />
respeito do que havia se passado na vida de Jesus. Tenho<br />
a impressão de que para Pentecostes houve um trabalho<br />
preparatório d’Ela, e o levou a um certo auge, e depois<br />
Nossa Senhora ainda consolidou. Posteriormente subiu<br />
ao Céu.<br />
Estava, então, constituída uma coisa que considero incomparável<br />
dentro da Igreja: aquilo que eu chamaria a<br />
Tradição. E a alma da Tradição da Igreja era a recordação<br />
viva neles do ambiente criado por Nosso Senhor, de<br />
sua Pessoa, e a repercussão disso, formando uma mentalidade<br />
coletiva de todos eles, ligada à instituição Igreja<br />
como um tesouro dela, brilhando como um sol, o qual já<br />
não era Ele, mas era legado de Nossa Senhora, um trabalho<br />
d’Ela consolidando a obra d‘Ele.<br />
Foi, portanto, com a participação, com o influxo de<br />
Maria Santíssima que essa profusão de graças passou<br />
a ser uma montanha de joias e de recordações ordenadas.<br />
Aliás, o Evangelho fala da memória d’Ela: Nossa Senhora<br />
guardava todas essas coisas e as conferia no seu<br />
Coração 2 . Guardar é memorizar; uma memória contem-<br />
24
Jan Wielki<br />
Assunção da Virgem Maria - Catedral da Assunção de Warta, Polônia<br />
plativa, que Ela devia ter como ninguém, pois não era<br />
concebida no pecado original. Uma memória perfeita,<br />
total. Depois, com a santidade d’Ela, era inimaginável o<br />
que trazia dentro de Si!<br />
Mas, então, o que é a Tradição?<br />
É possuir, por continuidade, uma determinada mentalidade,<br />
que se exprime nos dogmas, na Liturgia; antes de<br />
tudo e mais do que tudo, é um certo imponderável dentro<br />
da Igreja. E esse foi o trabalho de Nossa Senhora.<br />
Com base nisso, qualquer fiel verdadeiramente reto<br />
poderia reconstituir a face da Igreja inteira, se ele quisesse.<br />
Eu compreendo que alguém, semicúmplice do ambiente<br />
de ceticismo ou desinteressado da Religião, não<br />
percebesse isso. Mas se fosse honesto, aplicar-se-ia para<br />
ele aquela frase que está no hino “Pange lingua”: Ad firmandum<br />
cor sincerum, sola fides sufficit 3 .<br />
Essa memória da Igreja, organizada por Nossa Senhora,<br />
não pode desaparecer, porque a Igreja não pode<br />
morrer. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 15/9/1982)<br />
1) Do latim: Glória a Deus nas alturas. Cântico entoado pelos<br />
Anjos aos pastores, na noite de Natal.<br />
2) Lc 2, 51.<br />
3) Do latim: Canta, ó língua: Para convencer um coração sincero,<br />
basta apenas a fé (trecho de um hino eucarístico, de autoria<br />
de São Tomás de Aquino).<br />
25
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. Santo Afonso Maria de Ligório,bispo e Doutor da<br />
Igreja (†1787).<br />
Beato Pedro Fabro,presbítero (†1546). Foi o primeiro<br />
entre os membros da Companhia de Jesus a empreender<br />
árduos trabalhos pastorais em diversas regiões da Europa.<br />
Morreu na cidade de Roma, quando se dirigia ao Concílio<br />
Ecumênico de Trento.<br />
2. São Pedro Julião Eymard,presbítero e fundador<br />
(†1868). Ver página 2.<br />
Beata Joana,leiga († s. XIII). Mãe de São Domingos,<br />
realizou grandes obras de misericórdia em favor dos pobres<br />
e necessitados.<br />
3. Beato Agostinho Kazotic,bispo (†1323). Esteve inicialmente<br />
à frente da Igreja de Zagreb e, mais tarde, devido<br />
à hostilidade do Rei da Dalmácia, assumiu a sede de<br />
Lucera, na Apúlia, onde desenvolveu uma grande obra em<br />
favor dos pobres.<br />
4. XVIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato Federico Janssoone,presbítero (†1916). Pertencia<br />
à Ordem dos Frades Menores, em Montreal, na província<br />
de Quebec, no Canadá. Promoveu as peregrinações à<br />
Terra Santa para o incremento da Fé.<br />
5. Beato Pedro Miguel Noël,presbítero e mártir (†1794).<br />
Durante a Revolução Francesa, por<br />
ser sacerdote, foi encerrado de modo<br />
inumano em um navio de prisioneiros,<br />
onde acabou sua vida contagiado<br />
de peste.<br />
6. Transfiguração do Senhor.<br />
Beata Maria Francisca de Jesus<br />
(Ana Maria) Rubatto,virgem<br />
(†1904). Fundou o Instituto das Irmãs<br />
Terciárias Capuchinhas e, tendo<br />
se trasladado à América Latina,<br />
pôs todo o seu empenho no serviço<br />
aos pobres.<br />
7. Beato Edmundo Bojanowski,<br />
presbítero (†1871). Trabalhou com<br />
afinco na formação dos pobres e<br />
analfabetos, na localidade de Gorka<br />
Duchovna, na Polônia. Fundou a<br />
Congregação das Escravas da Imaculada<br />
Conceição da Mãe de Deus.<br />
Santa Maria da Cruz MacKillop<br />
8. São Domingos de Gusmão,presbítero e fundador<br />
(†1221).<br />
Santa Maria da Cruz (Maria Elena) MacKillop,virgem<br />
(†1909). Fundou a Congregação das Irmãs de São José e<br />
do Sagrado Coração, dirigindo-a em meio a múltiplas fadigas<br />
e vexações.<br />
9. Santa Mariana (Bárbara) Cope,virgem (†1918). Religiosa<br />
exemplar e de um coração extraordinário, dedicou<br />
trinta anos de sua vida ao serviço dos leprosos de Molokai,<br />
entre os quais faleceu aos 80 anos de idade.<br />
10. São Lourenço,diácono e mártir (†258).<br />
São Blano, bispo († s. VI). Faleceu em Dumblan, na Escócia.<br />
11. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato Maurício Tornay,presbítero e mártir (†1949).<br />
Anunciou com empenho o Evangelho na China e no Tibete,<br />
e recebeu a morte por mãos dos inimigos do nome<br />
cristão.<br />
12. Santa Joana Francisca Frémiot de Chantal,religiosa<br />
(†1641). Ver página 28.<br />
13. São Benildo (Pedro) Romançon,religioso<br />
(†1862). Pertencia ao Instituto dos Irmãos das Escolas<br />
Cristãs e dedicou sua vida à formação<br />
dos jovens.<br />
Beata Gertrudis,virgem (†1297).<br />
Abadessa da Ordem Premostratense.<br />
Quando criança, foi oferecida a<br />
Deus por sua mãe, Santa Isabel, Rainha<br />
da Hungria.<br />
santiebeati.it<br />
14. São Maximiliano Maria Kolbe,<br />
presbítero e mártir (†1941).<br />
Santos Domingo Ibáñez de Erquicia,<br />
presbítero e Francisco Shoyemon,<br />
noviço, mártires (†1633). Dominicanos<br />
mortos por ódio à Fé, em<br />
Nagasaki, Japão.<br />
15. Beato Cláudio (Ricardo)<br />
Granzotto, religioso (†1947). Uniu<br />
o exercício de sua profissão religiosa<br />
à arte de escultor, alcançando em<br />
poucos anos a perfeição na imitação<br />
de Cristo.<br />
26
––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />
16. Santa Rosa Fan Hui,virgem e<br />
mártir (†1900). Na perseguição dos<br />
boxers, na China, sofreu inúmeras torturas,<br />
sendo lançada a um rio quando<br />
ainda agonizava.<br />
17. Santa Joana Delanoue,virgem<br />
(†1736). Apoiada totalmente na Divina<br />
Providência, acolheu em sua casa<br />
órfãs, anciãs, mulheres enfermas e<br />
de má vida. Posteriormente, estabeleceu,<br />
com suas companheiras, os fundamentos<br />
do Instituto das Irmãs de Santa<br />
Ana da Divina Providência.<br />
18. Assunção de Nossa Senhora.<br />
Beato Alberto Hurtado Cruchaga,<br />
presbítero (†1952). Fundou uma<br />
obra para amparar os pobres que carecem<br />
de moradia, principalmente<br />
crianças.<br />
19. São Luís,bispo (†1297). Sobrinho<br />
do Rei São Luís, da França, preferiu a pobreza evangélica<br />
às honras do mundo. Ainda jovem, foi elevado à sede<br />
de Tolouse.<br />
20. São Bernardo, abade e Doutor da Igreja (†1153).<br />
Santa Maria de Matias,virgem (†1866). Fundou o Instituto<br />
das Irmãs da Adoração do Preciosíssimo Sangue do<br />
Senhor.<br />
21. São Pio X,Papa (†1914).<br />
Beata Vitória Rasoamanarivo,viúva (†1894). Socorreu<br />
com toda solicitude os cristãos e defendeu a Igreja diante<br />
dos magistrados públicos da ilha de Madagascar.<br />
22. Nossa Senhora Rainha.<br />
Beato Simão Lukac,bispo e mártir (†1964). Durante<br />
um governo hostil à Fé, exerceu clandestinamente seu<br />
ministério em favor da grei de católicos de rito bizantino,<br />
sendo por isso assassinado, na Ucrânia.<br />
23. Santa Rosa de Lima,virgem (†1617). Desde criança<br />
entregou-se à penitência e à oração. Ardendo em zelo<br />
pela salvação dos pecadores e dos indígenas, submetia-se<br />
de bom grado a toda sorte de sofrimentos para conquistá-los<br />
para Cristo. Foi proclamada padroeira da América<br />
Latina.<br />
Beato Maurício Tornay<br />
santiebeati.it<br />
24. São Bartolomeu, Apóstolo († s. I).<br />
Beata Maria da Encarnação (Maria<br />
Vicenta) Rosal,virgem (†1886). Fundou<br />
as Irmãs de Belém, com a finalidade<br />
de reivindicar a dignidade da mulher<br />
e formar as meninas na Fé cristã.<br />
25. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Gregório,abade (†775). Sendo<br />
ainda adolescente, seguiu fielmente a<br />
São Bonifácio quando este tentava a<br />
conversão de Hesse e Turíngia.<br />
26. Beata Maria Beltrame Quattrocchi,<br />
leiga (†1965). Mãe de família,<br />
que viveu exemplarmente sua vida matrimonial<br />
e demonstrou sua comunhão<br />
de Fé e amor para com o próximo.<br />
27. Santa Mônica,viúva (†387).<br />
Beata Maria do Pilar Izquierdo Albero,<br />
virgem (†1945). Muito provada<br />
pela pobreza e por graves enfermidades, serviu a Deus<br />
demonstrando uma caridade singular para com os pobres,<br />
em favor dos quais fundou a Obra Missionária de Jesus e<br />
Maria.<br />
28. Santo Agostinho,bispo e Doutor da Igreja (†430).<br />
Beato Junípero (Miguel) Serra,presbítero (†1784). Catequizou<br />
as tribos ainda pagãs da Califórnia e defendeu<br />
com valentia os direitos dos pobres.<br />
29. Martírio de São João Batista († s. I).<br />
Beato Edmundo Inácio Rice,fundador (†1844). Entregou-se,<br />
com entusiasmo e perseverança, à formação de<br />
crianças e jovens, fundando para isso a Congregação dos<br />
Irmãos Cristãos e a dos Irmãos da Apresentação.<br />
30. Beato Alfredo Ildefonso Schuster,bispo (†1954).<br />
Sendo abade de São Paulo de Roma, foi elevado à sede<br />
episcopal de Milão, onde, com grande diligência e admirável<br />
sabedoria, desempenhou sua função de pastor.<br />
31. Santo Aidano,bispo e abade (†651). Varão de suma<br />
mansidão, piedade e reto governo, que estabeleceu<br />
em Northumberland (Inglaterra) sua sede episcopal e um<br />
mosteiro para dedicar-se com eficácia à evangelização daquele<br />
Reino.<br />
27
Hagiografia<br />
Santa Joana de Chantal<br />
Profundidade e desapego<br />
O que teria levado Santa Joana de Chantal a abandonar seus parentes,<br />
rompendo vínculos afetivos, para fundar uma Congregação<br />
religiosa de contemplativas? Dir-se-ia que da formação recebida do<br />
suave São Francisco de Sales resultariam atitudes bem diversas.<br />
A consideração de algumas características do espírito<br />
desta grande Santa e de seu formador projeta luz sobre o problema<br />
e nos ajuda a compreender os desígnios de Deus.<br />
Santa Joana Francisca Frémiot de Chantal, que viveu<br />
de 1572 a 1641, fundou, com São Francisco de<br />
Sales, a Ordem da Visitação. Era viúva do Barão<br />
de Chantal, com quem tivera seis filhos. Depois do falecimento<br />
de seu marido, ela começou a sentir um atrativo<br />
para percorrer as vias mais altas da vida espiritual e passou,<br />
então, a ser influenciada por São Francisco de Sales.<br />
Objeto de uma ”suave” formação<br />
Este Santo, como sabemos, era famoso pela suavidade.<br />
Ele escreveu livros de vida espiritual que jamais seria<br />
suficiente elogiar, por exemplo, a “Filoteia” e o “Tratado<br />
do Amor de Deus”. Entretanto, sobre a suavidade<br />
dele muita coisa de errado se diz. Temos em Santa Joana<br />
de Chantal um exemplo a respeito do modo pelo qual ele<br />
tratava as senhoras a quem queria influenciar.<br />
Certa ocasião, São Francisco de Sales encontrava-<br />
-se com Madame de Chantal — a futura Santa Joana de<br />
Chantal — em um jantar, e ela estava muito bem vestida.<br />
Então ele perguntou-lhe: “Madame, a senhora pensaria<br />
de novo em casar-se?” E ela, um pouco assustada com<br />
a pergunta, respondeu: “Mas, Monsenhor, não!” Disse<br />
ele: “Numa casa onde não há artigo para vender, não se<br />
põe tabuleta...” Quer dizer, por que a senhora está tão<br />
enfeitada, se não quer se casar? Aí percebemos qual era<br />
a qualidade dessa doçura. O dito não deixava até de ter<br />
uma ironia bem mordiscante e beliscante!<br />
Passou sobre o corpo de seu próprio filho<br />
Sob o bafejo da orientação dele, Joana de Chantal foi<br />
se transformando numa grande santa. Em certo momento,<br />
ela quis adotar o estado religioso. Deu-se, então, este<br />
episódio clássico de sua vida, fruto da direção de São<br />
Francisco de Sales:<br />
Chegado o dia de sua partida, Santa Joana, que era viúva,<br />
devia deixar os seus familiares para ir para o convento<br />
que ela ia fundar. A santa viúva, que morava com seu<br />
sogro, ajoelhou-se pedindo-lhe a bênção e que lhe perdoasse<br />
se lhe desgostara em alguma coisa, e recomendou-lhe<br />
seu filho. O ancião de 86 anos estava inconsolável, abraçou<br />
sua nora e desejou-lhe completa felicidade. Os habitantes<br />
da região de Monteron, sobretudo os pobres, acreditando<br />
que com essa partida tudo perdiam, testemunhavam publicamente<br />
a sua dor. Em Dijon, ela fortificou-se com a Santa<br />
Comunhão contra a fraqueza que ela previa aproximar-<br />
-se quando da separação de seu filho.<br />
Enfim, chegando a hora, disse adeus a todos os seus parentes.<br />
Depois, ajoelhando-se aos pés de seu pai, pediu-<br />
-lhe a bênção e que cuidasse do filho que ela deixava. Mon-<br />
28
Francisco Lecaros<br />
Santa Joana de Chantal - Mosteiro<br />
da Visitação, Madri (Espanha)<br />
sieur Frémiot, o velho presidente do Parlamento de Bourgoin,<br />
sentia-se desfalecer. Abraçou chorando a sua filha e<br />
disse: “Meu Deus, não me compete mudar os vossos desígnios.<br />
Eu vos ofereço esta filha querida, recebei-a e consolai-me.”<br />
Depois, deu-lhe a bênção e ajudou-a a se erguer.<br />
O jovem Chantal, seu filho de 15 anos, correu para ela<br />
e prendeu-se a seu pescoço, esperando comovê-la. Não<br />
tendo êxito, deitou-se ante a porta por onde ela deveria<br />
sair e lhe disse: “Sou muito fraco, senhora, para vos<br />
reter, mas ao menos dirão que passastes sobre o corpo<br />
de vosso filho para abandoná-lo.” A santa chorou<br />
amargamente passando pelo jovem, mas instantes<br />
depois, temendo que pensasse que se arrependia de<br />
sua decisão, voltou para os que a acompanhavam<br />
e com uma face serena disse: “É preciso que perdoeis<br />
a minha fraqueza, pois deixo meu pai e meu<br />
filho para sempre, mas encontrei o meu Deus em<br />
toda parte.” 1<br />
Vemos o trágico da cena! Santa Joana de Chantal<br />
era viúva, uma pessoa boníssima, cumpridora<br />
dos seus deveres de família e capaz de atrair toda a<br />
amizade, todo o afeto de uma família boa. Portanto, era<br />
muitíssimo estimada por todos os seus. Quando ela era<br />
o arrimo — do ponto de vista afetivo e não financeiro —<br />
de seu velho sogro, de seu pai, de seu filho, Deus a tocou<br />
com a graça da vocação e pediu-lhe que estraçalhasse<br />
aqueles vínculos de afeto constituídos em torno dela,<br />
para ser fundadora de uma nova família religiosa. E<br />
fundadora contemplativa, de maneira tal que não mais a<br />
poderiam ver. E ela, cuja bondade tinha criado aqueles<br />
vínculos, era chamada a renunciar a eles e, por assim dizer,<br />
destruí-los. Era uma superação de toda a vida anterior<br />
dela. Santa Joana até então tinha sido ótima, como<br />
membro de família. Deus pedia-lhe que oferecesse algo<br />
a mais do que a bondade que se tem na família, e era a<br />
bondade que se adquire adotando o estado religioso e<br />
rompendo com os laços de família, entretanto, tão santos.<br />
E então, se determina aqui uma situação trágica: ela<br />
vai abandonar seu sogro, seu pai e seu filho.<br />
Uma cena que não se passaria hoje<br />
Atualmente se perdeu o senso de gravidade das coisas.<br />
Se imaginássemos a mesma situação realizada hoje,<br />
teríamos uma diferença muito grande de ambientes<br />
que constituiria no seguinte: tudo se passaria com muito<br />
menos solenidade e gravidade. Não podemos supor<br />
hoje uma senhora viúva, moça, que deixe a casa paterna<br />
para entrar em um convento e que faz todo esse<br />
cerimonial antes de ir embora: ajoelha-se diante do<br />
ancião de 86 anos, pede-lhe perdão por tudo quanto<br />
29
Hagiografia<br />
Evrik<br />
lhe fez, e lhe roga a bênção; e o ancião, quase como uma<br />
figura de tragédia grega, se despede dela com lágrimas e a<br />
entrega a Deus. Depois, a despedida de seu velho pai: nova<br />
genuflexão, novas lágrimas. E por fim o lance dramático<br />
do filho, que se pendurou ao pescoço da mãe, pedindo-<br />
-lhe para não entrar no convento. Ela recusou-se. Ele, então,<br />
deitou-se na soleira da porta e disse: “Já que eu não<br />
tive força para vos reter, ao menos se dirá que a senhora<br />
passou sobre o corpo de seu filho para ir para o convento.”<br />
Quer dizer, “a senhora está me abandonando!” Percebemos<br />
o trágico de todos esses lances.<br />
Por que em nossos dias esta cena não se passaria com<br />
tanto cerimonial? Porque fomos habituados a não entrar<br />
no fundo do significado das coisas, e a nos incomodarmos<br />
somente conosco. Resultado, para o velho sogro o problema<br />
importante é o jornal que chega de manhã, o leitezinho<br />
que ele toma, a televisão, o chinelo, a saúde, os cuidados<br />
pessoais de toda ordem. Lê uma notícia sobre transplante<br />
de coração para ver se seria possível transplantar<br />
um nele, prolongando sua vida por mais 30 anos. Isso é<br />
o importante! A nora, que vai ou não para o convento,<br />
é uma coisa acessória, porque, se ela faltar, ele contrata<br />
uma enfermeira, e a vida continua do mesmo jeito.<br />
São Francisco de Sales pregando para Santa Joana<br />
de Chantal - Catedral de Annecy, França<br />
Ademais, a ideia de ir para o convento não se reveste<br />
daquele aspecto semitrágico de antigamente. O senso<br />
da Cruz, da gravidade das coisas, o senso de toda a renúncia<br />
que significa alguém tornar-se religioso, o senso<br />
de toda a dignidade que a pessoa assume ao abraçar esse<br />
estado, daquele conúbio com Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
com toda a serenidade que traz, os espíritos perderam<br />
a noção disto. O resultado é que os grandes lances não<br />
têm mais essa acuidade, esse caráter dramático; são episódios<br />
banais.<br />
As pessoas assistem, na televisão ou no cinema, a tantos<br />
dramas, romances, tantas despedidas, tantos reencontros,<br />
que todo mundo está saturado. Assim, os atos<br />
da vida cotidiana que teriam grandeza se esvaziam completamente.<br />
Profundidade de espírito e amor a Deus<br />
Então, qual é a grande lição que devemos tirar daí?<br />
Antes de tudo, considerar o espírito profundo de Santa<br />
Joana de Chantal que correspondeu à vocação, compreendeu<br />
que a família é uma instituição tal que, quando<br />
Deus lhe dá tudo, ela se supera e tende a produzir religiosos,<br />
missionários, guerreiros,<br />
apóstolos que são obrigados a se<br />
separar dela. E esta espécie de superação,<br />
por onde ela se entrega<br />
completamente, é a glória da família.<br />
Também a profundidade de espírito<br />
desta Santa — renunciando<br />
a tudo para ser religiosa — e<br />
do ambiente de Civilização Cristã<br />
em que ela vivia, onde tudo se<br />
media, se pesava, e que, por causa<br />
disso, se revestiam de solenidade<br />
e de características próprias todos<br />
os atos da vida.<br />
Essa profundidade de espírito<br />
prepara a alma para amar a Deus.<br />
O Reino dos Céus é dos violentos, 2<br />
, está escrito no Evangelho. O Reino<br />
dos Céus é dos profundos, pois<br />
é a violência dos profundos — tantas<br />
vezes chamados de fanáticos<br />
pela linguagem da impiedade —<br />
que agrada a Deus.<br />
Peçamos a Nossa Senhora que<br />
nos obtenha essa profundidade de<br />
espírito, e que nosso Movimento<br />
procure incutir em seus membros,<br />
de todos os modos, essa profundida-<br />
30
Deus pedia a Santa<br />
Joana que oferecesse<br />
algo a mais do que a<br />
bondade que se tem na<br />
família, e era a bondade<br />
adquirida ao adotar o<br />
estado religioso, rompendo<br />
os laços familiares,<br />
entretanto, tão santos.<br />
Rvalette<br />
São Francisco de Sales entrega a Santa Joana<br />
de Chantal a regra da Ordem da Visitação -<br />
Catedral de São Silfredo, Carpentras (França)<br />
de, que é a seriedade, a abnegação, e o contrário do egoísmo,<br />
de modo a termos almas capazes de encher-se da graça<br />
de Deus, nosso Senhor, concedida pelas mãos de Maria.<br />
Suavidade e exigência<br />
Santa Joana de Chantal fundou a Ordem da Visitação<br />
cujas freiras são estritamente contemplativas. Encontramos<br />
nessa Ordem outro traço do espírito dela e de São<br />
Francisco de Sales: o sentido de não ter propriedade particular<br />
é levado tão longe nessa Ordem, que as religiosas<br />
se consagram a serviços comuns, por exemplo, bordados,<br />
vendidos para a manutenção delas. São Francisco de Sales,<br />
que fez essa regra com Santa Joana de Chantal, determinou<br />
o seguinte: nunca uma freira faça um bordado<br />
inteiro; os bordados são rotativos dentro da casa, para<br />
ninguém ter apego ao trabalho que fez.<br />
Vemos como, nos últimos pormenores, foi levada longe<br />
a noção de propriedade comum para produzir o desapego<br />
completo. De tal maneira o direito de propriedade<br />
é de acordo com a natureza humana, que quando um indivíduo<br />
é chamado a um estado de vida no qual não deve<br />
possuir, é necessário um grande zelo para não se apegar<br />
à propriedade. Por isso os grandes fundadores de Ordens<br />
tomam muito cuidado para evitar qualquer forma<br />
de apego, de apropriação.<br />
Dois aspectos dignos de nota são, em primeiro lugar,<br />
a importância das Ordens contemplativas. Numa época<br />
cheia dessas Ordens e em que havia muitas vocações para<br />
elas, São Francisco de Sales funda, com Santa Joana,<br />
mais uma Ordem contemplativa. Vemos, assim, o quanto<br />
isso é um tesouro que nunca haverá na Igreja em quantidade<br />
suficiente. Não há o que baste, desde que a Ordem<br />
seja realmente fervorosa.<br />
Outra consideração interessante é a necessidade dessas<br />
Ordens contemplativas constituírem famílias de almas<br />
na Igreja, cada uma com seu espírito próprio, formando<br />
uma espécie de mosaico onde se vê um tom diverso<br />
em cada Ordem. Na Visitação, a suavidade, mas,<br />
de outro lado, a extrema exigência em tudo aquilo que se<br />
refere à verdadeira virtude.<br />
Temos, assim, alguns dados que podem servir para uma<br />
meditação sobre a vida de Santa Joana de Chantal. v<br />
(Extraído de conferências<br />
de 21/8/1965 e 20/8/1968)<br />
1) Não possuímos os dados bibliográficos da ficha lida por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> nesta conferência.<br />
2) Cf. Mt 11, 12.<br />
31
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, apóstolo do pulchrum<br />
Senso do maravilhoso: padrão<br />
para o conhecimento da verdade - I<br />
Gustavo Kralj<br />
Desde criança, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tinha encantos pela Europa;<br />
e, sendo moço, quando conheceu a Baía de Guanabara ficou<br />
maravilhado e se perguntava se poderia haver algo mais<br />
belo. Possuía ele em sua alma um padrão de maravilhoso,<br />
pelo qual avaliava todas as coisas.<br />
T<br />
oda criança tem uma tendência para o maravilhoso.<br />
De maneira tal que, colocando vários brinquedos<br />
diante de uma criança, normalmente ela se inclina<br />
para o mais colorido, que chama mais a atenção e dá<br />
mais a ideia do maravilhoso. E o espírito dela também tende<br />
a fixar-se de preferência nas coisas maravilhosas que vê.<br />
O mais alto padrão de civilização<br />
a que chegou o mundo<br />
Lembro-me de mim mesmo, em pequeno, em várias circunstâncias,<br />
vendo coisas maravilhosas e fixando minha atenção.<br />
Isso ia preparando o meu espírito para dar o primado da<br />
preferência e da atenção para certas coisas lindíssimas, mais<br />
do que outras. Com o fundo da ideia de que era possível haver<br />
uma ordem de coisas muito mais bonita do que aquela<br />
que eu tinha diante dos meus olhos. E, por causa disso, eu deveria<br />
tender a conhecer e admirar essas coisas mais bonitas.<br />
Então, desde muito pequeno, tive admiração pela Europa.<br />
Porque é o mais alto padrão de civilização a que tenha<br />
chegado o Ocidente, ou o mundo. E quando eu observava<br />
ilustrações da Europa em revistas, lembrava-me<br />
de coisas que tinha visto em menino e dizia: “Tudo isso<br />
é de todo teto superior ao que eu tenho aqui. Portanto<br />
deve haver um mundo assim, e a alma humana foi feita<br />
para considerá-lo, estimá-lo, amá-lo, respeitá-lo. E, não<br />
32
André Morisson<br />
Sérgio Hollmann<br />
Eric Pouhier<br />
Berth Lieu Song<br />
podendo estar lá, pode-se ver em fotografias — é a única<br />
missão verdadeira da fotografia! — as maravilhas que<br />
não se tem, e se encantando com elas!”<br />
E em certas ocasiões eu pensava: “Isto é maravilhoso!”<br />
E, levado por esse desejo do maravilhoso, cogitava a respeito<br />
de qualquer coisa: “Poderia ser ainda mais maravilhosa!<br />
Deus não é obrigado a criar o mundo mais bonito possível<br />
para os homens, nem há um mais bonito possível para o Altíssimo,<br />
porque, sendo Deus infinito, Ele pode sempre fazer<br />
o mais belo, que não tem limite. Por mais maravilhoso que<br />
Ele faça, nunca tocará n’Ele. Não há um limite do máximo.<br />
Vai até onde minha imaginação puder ir, até onde a sabedoria<br />
e a bondade do Criador quiserem que vá.”<br />
Um episódio tão conhecido entre nós: eu, em menino,<br />
querendo comprar Versailles com uma libra esterlina... Isso<br />
porque, na minha inteligência infantil, aquilo rompia<br />
todos os padrões de maravilhoso que eu tinha concebido<br />
até então. Lembro-me de vir-me à mente a seguinte<br />
ideia: “Nunca imaginei que pudesse haver uma coisa tão<br />
maravilhosa!”<br />
Assistindo a um filme sobre os<br />
funerais de Francisco José<br />
Mais tarde, fiquei encantado assistindo a uma fita de cinema<br />
que representava os funerais do Imperador Francis-<br />
33
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, apóstolo do pulchrum<br />
Austrian National Library<br />
Para que as almas almejem<br />
grandes ideais, precisam<br />
habituar-se a terem uma<br />
plataforma em função<br />
da qual calculem as<br />
maravilhas das coisas.<br />
Funerais do Imperador Francisco José<br />
co José 1 — executados com precisão, uma coisa estupenda!<br />
—, e a Fräulein 2 , que era uma senhora da nobreza e conhecia<br />
bem os personagens, ia indicando: “Agora o funeral<br />
vai passar em frente à igreja tal, e é a hora do Conde tal<br />
fazer uma saudação para a Duquesa tal...” Acontecia exatamente<br />
como ela dizia, e o funeral continuava.<br />
Aquilo me encantava! Por quê? Por causa de uma medida<br />
vaga de perfeição em matéria de funeral, muito incompleta,<br />
que eu concebera vendo os enterros, tão mais modestos,<br />
em São Paulo. E de repente me esbarrar com aquela<br />
cerimônia, que ultrapassava tudo quanto eu tinha imaginado,<br />
o meu senso do maravilhoso se abria e se escancarava!<br />
Daí uma espécie de respeito e entusiasmo por aquelas coisas,<br />
que a crítica da idade madura não fez senão confirmar.<br />
Baía de Guanabara<br />
Indo em moço para o Rio de Janeiro, analisei várias<br />
vezes as três enseadas clássicas: Flamengo, Botafogo,<br />
Copacabana. Depois um trecho de mar mais adiante,<br />
que creio chamar-se Leblon — uma maravilha também!<br />
Em todas, perguntei-me, subconscientemente, se<br />
era possível imaginar uma coisa mais bela. E cheguei à<br />
conclusão de que, mar por mar, eu não conseguiria imaginar<br />
mais bonito. Não quero dizer que não haja, mas minha<br />
inteligência não chegou a imaginar algo mais belo.<br />
E porque não chegou, vem meu assentimento inteiro de<br />
que aquela Baía é realmente uma maravilha.<br />
De onde vinha minha inteira adesão à Baía de Guanabara?<br />
Do fato de haver uma coincidência entre o que<br />
eu via e aquilo que, mais ou menos subconscientemente,<br />
representava a ideia que eu podia ter do maravilhoso<br />
de uma baía.<br />
Padrão de maravilhoso<br />
a respeito de todas as coisas<br />
Uma das perfeições do espírito humano é ter uma noção<br />
do que seria o ideal de todos os seres. Quer dizer, um<br />
conceito de maravilhoso a respeito de todas as coisas, e<br />
Wolfhardt<br />
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USA Library of Congress<br />
o hábito de confrontá-las com esse padrão maravilhoso<br />
que se deveria formar a respeito de tudo quanto se vê.<br />
Quando se diz, habitualmente, que alguém conheceu<br />
uma coisa inteiramente, afirma-se que a pessoa aprofundou-se<br />
naquele ponto. Ora, a expressão é verdadeira,<br />
porque em algum sentido se aprofunda; mas em outro<br />
sentido deve-se chegar até o píncaro. E a cognição inteira<br />
de algo vem da junção do mais profundo com o mais<br />
elevado, o mais admirável daquilo.<br />
Portanto, nós entendemos algo não apenas quando<br />
percebemos suas qualidades e defeitos, mas quando temos<br />
também um padrão mais ou menos instintivo do maravilhoso<br />
correspondente àquilo.<br />
Para que as almas almejem grandes ideais, grandes<br />
realizações, elas precisam habituar-se a terem uma plataforma<br />
em função da qual calculem as maravilhas das<br />
coisas. E saibam, portanto, aquilatar, avaliá-las pelos<br />
seus mais altos aspectos.<br />
Quando li os comentários de Cornélio a Lápide 3<br />
sobre o Céu empíreo, tive uma explosão de entusiasmo:<br />
“Chegará uma ocasião em que conhecerei esse<br />
maravilhoso e me deleitarei com ele. E enquanto minha<br />
alma estiver vendo Deus face a face, que é a maravilha<br />
das maravilhas, meu corpo estará ao mesmo<br />
tempo — porque, com minha alma, forma uma só<br />
pessoa — em contato com maravilhas físicas, que facilitarão<br />
o meu corpo a acompanhar o élan de minha<br />
alma rumo a Deus!” <br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 9/8/1988)<br />
1) Imperador da Áustria-Hungria, falecido em 1916.<br />
2) Do alemão: senhorita. Aqui <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> refere-se à sua preceptora<br />
alemã, Srta. Mathilde Heldmann.<br />
3) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 - † 1637).<br />
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Sérgio Hollmann<br />
Coroação da Virgem -<br />
Catedral de Reims, França<br />
Rainha da graça<br />
M<br />
aria é o receptáculo no qual<br />
se encontram todas as graças<br />
criadas por Deus. Ela é tão imensa na<br />
ordem da virtude e da santidade, que<br />
corresponde de modo superexcelente a<br />
essa torrente de graças, que A faz grande<br />
como ninguém.<br />
Proclamada a Rainha da graça, é a<br />
Rainha da ordem sobrenatural e, portanto,<br />
Rainha por plenitude.<br />
Eu gostaria de ver uma catedral dedicada<br />
a Ela, onde se unissem num só<br />
olhar, estes dois aspectos: Rainha intangível,<br />
mas curvada, com um sorriso, sobre<br />
os mais indignos e miseráveis, a dizer-lhes:<br />
“Continuo sendo vossa Mãe, e<br />
por isso me curvo até vós, por mais que<br />
estejam baixo. Até lá chega minha misericórdia<br />
e vos salva!”<br />
Essa harmonia que reúne os dois extremos<br />
da Criação é mais um título da<br />
grandeza d’Ela.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 25/9/1990)