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Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>183</strong> Junho de 2013<br />
Um reflexo do<br />
Sagrado Coração de Jesus
São João Batista -<br />
Catedral de Notre-<br />
Dame, Paris (França)<br />
Gustavo Kralj<br />
Uma das facetas do Imaculado Coração de Maria<br />
U<br />
2<br />
m dos meios bonitos de conhecermos o espírito<br />
e o Imaculado Coração de Maria consiste<br />
em estudar a vida de São João Batista. Por<br />
ter sido ele santificado no seio de Santa Isabel<br />
pela palavra de Nossa Senhora, vê-se que Ela<br />
comunicou-lhe ali, misteriosamente, o espírito<br />
d’Ela. E tudo quanto o Precursor realizou em<br />
sua vida era uma decorrência dessa graça inicial<br />
recebida e constantemente intensificada, pelos<br />
rogos d’Ela.<br />
Podemos, então, ver São João Batista enquanto<br />
asceta austero, pregador do Cordeiro de Deus que<br />
viria, e como herói que enfrenta Herodes e morre<br />
como mártir, sublime de grandeza e de serenidade.<br />
É uma das facetas do espírito de Nossa Senhora.<br />
(Extraído de conferência de 11/7/1967)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>183</strong> Junho de 2013<br />
Ano XVI - Nº <strong>183</strong> Junho de 2013<br />
Um reflexo do<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Na capa, Dona<br />
Lucilia aos 91 anos.<br />
Foto: João S. C. Dias<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Editorial<br />
4 Um reflexo do Sagrado Coração de Jesus<br />
Dona Lucilia<br />
6 A devoção de Dona Lucilia ao<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
10 Solução para todos os problemas - I<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
14 Convívio entre as almas no<br />
Céu empíreo - I<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
20 Inocência e admiração desinteressada - II<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Junho<br />
Hagiografia<br />
26 Santa Clotilde, uma admirável flor-de-lis<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 Fontainebleau - esplendor, riqueza<br />
e simplicidade - II<br />
Última página<br />
36 Nossa Senhora do Sagrado Coração<br />
3
Editorial<br />
Um reflexo do Sagrado<br />
Coração de Jesus<br />
“M<br />
amãe me ensinou a amar Nosso Senhor Jesus Cristo, ensinou-me a amar a Santa<br />
Igreja Católica!”, foi a exclamação proferida por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, talvez no momento mais<br />
pungente de sua longa existência, junto ao corpo de Dona Lucilia que acabava de falecer.<br />
Não há palavras que exprimam a dor da irremediável separação do filho modelar de sua extremosa<br />
mãe, unidos por um laço de afeto cuja profundidade não podemos medir.<br />
Desde a mais tenra infância de seus filhos, procurou Dona Lucilia inculcar nessas inocentes almas<br />
a devoção ao Sagrado Coração, ensinando-lhes a apontarem onde estava a imagem de Jesus antes<br />
mesmo de saberem dizer “papai” e “mamãe”. Transmitiu-lhes a forma de piedade que mais a atraía,<br />
na consideração da infinita e incondicional bondade simbolizada naquele Coração transpassado pela<br />
lança de Longinos, cercado de espinhos e ardendo de amor pelos homens. Na fisionomia triste e no<br />
olhar bondoso das imagens de Nosso Senhor, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discernia uma pergunta: “Será que você levará<br />
a sua torpeza e sua maldade a tal ponto que, vendo-Me nessa doçura e nessa atitude de perdão,<br />
você ainda continua endurecido?”<br />
A inocência de alma de Dona Lucilia, que foi uma autêntica personificação do amor materno,<br />
sentia consonância com essa bondade do Homem-Deus levada a extremos inimagináveis. “Vendo-a<br />
rezar junto à imagem do Sagrado Coração de Jesus — comentou <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — eu notava que<br />
a alma dela se abria de um modo pleno. E a ideia que prevalecia era exatamente a de estar n’Ele<br />
o píncaro das perfeições que havia nela, e ser Ele o auge daquilo para o qual ela estava orientada.<br />
Então a minha facilidade muito maior em compreender o que queria dizer o Sagrado Coração.<br />
Quando atinei que a harmonia existente na alma de mamãe vinha do Sagrado Coração de<br />
Jesus, aí compreendi tudo. Entendi que a Religião era o centro, e Nosso Senhor o ponto de partida<br />
de tudo.”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, desde muito menino, percebia emanar de sua extremosa mãe uma doçura, uma acolhida,<br />
uma retidão, uma firmeza e tantas outras qualidades morais que faziam dela um todo muito harmônico<br />
de virtudes. E essa harmonia acompanhada de sabedoria, de decisão, de maturidade e de<br />
constância, o deslumbrava.<br />
Enfim, contemplando e admirando a alma de Dona Lucilia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mais facilmente<br />
compreendeu e amou Nosso Senhor e a Santa Igreja Católica.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
52<br />
53<br />
104<br />
Capítulo IV<br />
do casamento<br />
98<br />
105<br />
festa.<br />
212<br />
99<br />
128<br />
213<br />
129<br />
Livraria Editrice Vaticana<br />
publica biografia de<br />
Dona Lucilia<br />
A consideração da vida de Dona Lucilia Ribeiro dos Santos<br />
Corrêa de Oliveira, mãe de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, tem sido de grande<br />
proveito espiritual para todas as almas que tomam contato<br />
com sua bondade exímia e envolvente.<br />
N<br />
o maravilhoso caleidoscópio dos bem-aventurados, inúmeras são as vias da Providência<br />
para as almas. Pessoas há cujas virtudes são reconhecidas e aclamadas em vida, recebendo<br />
elas veneração geral. Outras, porém, trilham o caminho do apagamento nesta terra,<br />
sendo pouco compreendidas até pelos mais próximos. É o que aconteceu com Dona Lucilia, cuja benéfica<br />
ação sobre um grande número de almas começou apenas depois de sua morte.<br />
Com a finalidade de divulgar a vida desta dama de qualidades incomuns, a Livraria Editrice Vaticana<br />
acaba de publicar, em quatro línguas — português, italiano, inglês e espanhol —, a biografia escrita<br />
por Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP.<br />
Profusamente ilustrada por fotografias que refletem sua fisionomia transbordante de doçura e de<br />
benquerença incondicional, os inúmeros fatos narrados nas 670 páginas do volume revelam como<br />
é possível executar as tarefas cotidianas com elevação de alma, reportando tudo ao sobrenatural e a<br />
Deus Nosso Senhor. Como diz São João da Cruz, no final da vida seremos julgados segundo o amor<br />
a Deus, e não de acordo com a exterioridade de nossas obras.<br />
as mãos] trata-se de uma autêntica e<br />
lia, que pode equiparar-se às melhores<br />
hoje, no mundo inteiro. Sobretudo tem<br />
ndência epistolar entre ela e seus filhos<br />
Dona Lucilia diz com freqüência coisas<br />
idade tão elevada que o leitor é tomado<br />
roduz a leitura do inimitável epistolário<br />
vo a formular muito concretamente uma<br />
a e espontânea, da leitura desta maraviergunta<br />
concreta é esta: foi Dona Lucilia<br />
a extensão da palavra? Ou, de outra forçaram<br />
o grau heróico que se requer indisreconhecido<br />
pela Igreja com uma beatifiente<br />
históricos que nos oferece com grande<br />
amos apresentando, atrevo-me a responder<br />
enor vacilação.<br />
rreverente pretensão de adiantar-me ao juíme<br />
cabe como próprio é dar uma opinião<br />
te falível. A Igreja nunca erra, nós podemos<br />
à Santa Igreja Católica, Apostólica e Romada<br />
verdade. Mas a nós nos incumbe o doce<br />
pedir humildemente à Divina Providência<br />
entranhada petição, para a glória de Deus e<br />
ertos do prefácio de Fr. Antonio Royo Marín, OP)<br />
cilia é uma publicação<br />
acional em quatro lína<br />
Editrice Vaticana e do<br />
n Sapientiæ dos Arautos<br />
Mons. João<br />
Scognamiglio<br />
Clá Dias, ep<br />
Dona Lucilia<br />
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, ep<br />
Dona Lucilia<br />
Em pé, Lucilia junto aos irmãos<br />
Gabriel, Antônio e Eponina<br />
Capítulo II<br />
Capítulo II<br />
Mons. João Scognamiglio<br />
Clá Dias, EP, é natural de<br />
São Paulo, Brasil. Nasceu a<br />
15 de agosto de 1939, sendo<br />
filho de Antonio Clá Díaz<br />
e de Annitta Scognamiglio<br />
Clá Díaz.<br />
Cursou Direito na Faculdade<br />
do Largo de São Francisco,<br />
aprofundou seus estudos<br />
teológicos com grandes<br />
catedráticos de Salamanca,<br />
da Ordem Dominicana, e<br />
obteve láureas em Filosofia,<br />
Teologia, Psicologia e<br />
Humanidades em diversas<br />
universidades, sendo doutorado<br />
em Direito Canônico<br />
pela Pontifícia Universidade<br />
São Tomás de Aquino (Angelicum)<br />
de Roma e em Teologia<br />
pela Universidad Pontificia<br />
Bolivariana, de Medellín<br />
(Colômbia).<br />
Mons. João Clá é fundador<br />
e atual Superior-Geral<br />
dos Arautos do Evangelho e<br />
Nascimento e primeira infância;<br />
adolescência no então<br />
longínquo interior<br />
E<br />
No sa Senhora foi sua Madrinha<br />
Aos vinte nove dias do mez de junho de mil<br />
oitocentos e setenta e seis, nesta matriz, baptizei<br />
e puz o santos oleos a Lucilia, nascid a vinte<br />
e dois de Abril ultimo, filha legitima do doutor<br />
Antonio Ribeiro dos Sanctos e de dona Gabriela<br />
dos Sanctos Ribeiro: forão padrinhos, a Virgem<br />
Senhora da Penha e doutor Olympio Pinheiro<br />
de Lemos, todos desta Parochia.<br />
O Vigario: Angelo Alves d’Assumpção.<br />
Capítulo IV<br />
sa é a ata do batismo de Dona Lucilia que se encontra no<br />
livro de registros paroquiais da Matriz da cidade de Pirassununga.<br />
Seguindo piedoso costume, seus pais resolveram<br />
fazê-la afilhada da própria Rainha dos Céus. Dona Lucilia conservou,<br />
durante sua longa vida, uma devoção toda de afeto e respeito a sua<br />
Madrinha, e várias vezes peregrinou ao Santuário de No sa Senhora<br />
da Penha, em São Paulo, a fim de Lhe confiar o segredos de seu terno<br />
coração.<br />
Descendente de Senhores de Engenho<br />
Pertencente a ilustre estirpe de Senhores<br />
de Engenho, <strong>Dr</strong>. João Paulo recém<br />
chegara de Pernambuco. Hábil advogado,<br />
dotado de grande inteligência<br />
e cultura, suas finas maneiras e agradável<br />
prosa impressionaram de modo<br />
favorável a <strong>Dr</strong>. Antônio e Dona<br />
Gabriela, que por isso decidiram<br />
conceder-lhe a mão da filha.<br />
Seu tio, o famoso Conselheiro<br />
João Alfredo Corrêa de<br />
Oliveira, fora das mais eminentes<br />
personalidades da última fase do<br />
Império. Após ocupar sucessivamente<br />
os cargos de Presidente das<br />
Províncias 4 do Pará e de São Paulo,<br />
e Ministro da Justiça no gabinete<br />
do Visconde do Rio Branco, chegou a presidir o Conselho de<br />
Ministros do Império. Foi ele quem referendou a Lei Áurea, de libertação<br />
dos escravos. Já no período republicano chefiou, quase sem<br />
interrupções, o Partido Monarquista. Tais circunstâncias indicam que,<br />
assim como os Ribeiro dos Santos, a família do esposo de Dona Lucilia<br />
tinha fortes vínculos com a tradição imperial.<br />
Após um passado de fartura, proporcionada pela exportação de<br />
açúcar, a maior parte das famílias tradicionais de Pernambuco, entre<br />
as quais os Corrêa de Oliveira, viu-se bastant empobrecida. Razão<br />
disso foi a invenção do açúcar de beterraba por técnicos alemães, o<br />
que levou os países europeus, no último quartel do século XIX, a cessarem<br />
quase por completo a importação do produto.<br />
Quando criança, <strong>Dr</strong>. João Paulo aind alcançara o fausto e a<br />
movimentação algo palaciana da casa dos Corrêa de Oliveira. Para<br />
animar os encontros familiares havia até um “bobo da corte”, chamado<br />
Marcelo, o qual tinha fama de ser bem engraçado.<br />
Esse Pernambuco de alguns luzimentos do passado não ficou<br />
sem conhecer a Dona Lucilia .<br />
Conselheiro João Alfredo<br />
4) Título que co responde atualmente ao de Governador de Estado.<br />
Recordações de Pernambuco<br />
Fundação do lar<br />
Desde os remotos tempos coloniais, Pernambuco desempenhara<br />
no Nordeste, ainda que em menores proporções, papel semelhante ao de<br />
São Paulo no Centro-Sul. Mais no que diz respeito ao modo de encarar a<br />
vida do que do ponto de vista econômico. Seus habitantes e em especial<br />
suas elite sobre saíam por notável senso de governo, pela seriedade do<br />
trato, pelo estilo de relações a um tempo senhorial e ameno, no qual se<br />
podia distinguir uma graciosa nota francesa dentro de um contexto profundamente<br />
brasileiro. A energia e vitalidade características dos grandes<br />
feitos pernambucanos ficaram imortalmente consignadas na epopéia de<br />
Guararapes, momento decisivo no qual o Brasil tomou consciência de<br />
seu futuro como nação formada em torno de uma só Fé e uma só língua.<br />
Dona Lucilia, na viagem de lua-de-mel à te ra natal de seu<br />
esposo, terá d enfrentar uma circunstância penosa, visto não estar<br />
acostumad a longos percursos marítimos com o do Rio a Recife.<br />
Entretanto, de acordo com a tendência em extremo benévola de seu<br />
espírito, sua atenção não deixará passar despercebido nada do que encontrar<br />
de atraente ao longo do caminho.<br />
A penúltima etapa do trajeto era Goiana, pitoresca cidade situada<br />
nos confins de Pernambuco com a Paraíba. Não distante do litoral,<br />
Aspectos de Recife, a “Veneza brasileira”<br />
Capítulo IV<br />
Dona Lucilia pouco antes<br />
Fundação do lar<br />
D<br />
Nas mãos de Deus, a escolha da vocação<br />
Capítulo V<br />
elineava-se no interior de Lucilia, com traços cada vez<br />
mais vincados, durante longas horas de contemplação na<br />
quietude, entremeadas de oração vocal, uma aspiração à<br />
vida religiosa. 1 Entretanto, acima de sua virtuosa propensão ao elevado<br />
e ao sublime, estava a robusta determinação de cumprir a vontade<br />
de Deus, ainda que à custa de refrear seus bons movimentos de alma.<br />
Pronta a seguir a qualquer momento, por mais que lhe custa se, a voz<br />
do Espírito Santo, tinha por certo que esta se manifestava muitas vezes<br />
através dos conselhos ou ordens de seu querido pai.<br />
No entardecer de certo dia, <strong>Dr</strong>. Antônio, com sua característica<br />
paternalidade, abordou a filha para tratar do delicado tema do matrimônio.<br />
Ponderou-lhe que os anos iam pa sando e ela co ria o risco de<br />
transformar-se em tia solteirona, em torno da qual os sobrinhos fazem<br />
Claro estava que <strong>Dr</strong>. Antônio, como bom pai, não quereria forçar<br />
uma decisão de Lucilia pelo casamento. Ne sa mesma ocasião,<br />
contou à filha que certo amigo, <strong>Dr</strong>. João Procópio de Carvalho, lhe<br />
apresentara um jovem advogado, <strong>Dr</strong>. João Paulo Corrêa de Oliveira,<br />
descendente de ilustre família de Pernambuco, muito fino e inteligente.<br />
Considerava-o, por tais motivos, o esposo mais conveniente, ressalvando<br />
entretanto caber a última palavra somente a ela.<br />
Com a fisionomia sempre meiga e afetuosa, Dona Lucilia em nada<br />
se alterou diante da sugestão paterna. Era uma nova manifestação<br />
daquela temperança estável que já ia atingindo seu pleno florescer.<br />
1) Lucilia chegou mesmo a cogitar em seu ingre so numa ordem religiosa. Porém a<br />
escolha não incidiu sobre o Mosteiro da Luz, de cuja igreja tanto gostava e onde<br />
havia recebido inúmeras graças. Havia atrás do Palácio dos Campos Elíseos<br />
um convento onde vivia uma freira qu ela conhecia, pertencente à aristocracia<br />
paulista e chegada à família Ribeiro dos Santos. Em sua candura de alma, Lucilia<br />
imaginava a vida religiosa como um requinte da vida de família. Poderia então, às<br />
tardes, cumpridas as obrigações do dia, ficar conversando com aquela irmã sobre<br />
as respectivas famílias e amizad existent entr estas. Assim — como contaria<br />
futuramente a seu filho — tendo optado por e se convento, expôs um dia seus íntimos<br />
anseios a seu venerado pai.<br />
Dona Lucilia<br />
Acima: lembrança oferecida por<br />
<strong>Dr</strong>. Bier a Dona Lucilia; à direita:<br />
Prof. Adolpho Lindenberg, esposo de Dona Yayá<br />
Havendo-s então difundido<br />
pelo mundo a boa nova do êxito<br />
alcançado na Alemanha pelo Prof.<br />
<strong>Dr</strong>. August Karl Bier, médico particular<br />
do Kaiser, numa extração<br />
de vesícula biliar, 3 a grande estima<br />
dos parentes de Dona Lucilia por<br />
ela levou-os a não poupar esforços<br />
para fazê-la chegar até e se<br />
famoso especialista.<br />
Entre os que acompanhariam não figuravam apena seu esposo<br />
e filhos, mas também irmãos, cunhados e sobrinhos, e sobretudo<br />
sua mãe, Dona Gabriela.<br />
Uma penosa viagem<br />
Capítulo VI<br />
No Carnaval, dois pequenos marqueses<br />
Quão recatados eram aqueles festejos ca regados de pitoresco<br />
e de alegria, dos idos de 1915, contrariamente aos de hoje, nos quais<br />
imperam o frenesi e a imoralidade!<br />
Uma das principais distrações eram os famosos corsos, tradicionais<br />
desfiles de ca ros nos quais iam pessoas fantasiadas. Eram três os<br />
corsos: o da Avenida Paulista, o<br />
do Centro — “corso do Triângulo”<br />
— e o do Brás. No primeiro<br />
— mais representativo, por percorre<br />
ruas tidas como mais aristocráticas<br />
na São Paulo de então<br />
— os automóveis subiam a Avenida<br />
Angélica, entravam na Paulista<br />
e desciam pela Brigadeiro Luís<br />
Antônio até o Largo de São Francisco,<br />
retornando em sentido inverso<br />
ao ponto de partida. A sim<br />
se formavam duas filas paralelas<br />
de automóvei se deslocando em<br />
direções opostas, o que dava ocasião<br />
a que os conhecido se cumprimenta<br />
sem no percurso.<br />
Ao longo do trajeto, as residências,<br />
seus parques e jardins<br />
eram enfeitados com lâmpadas<br />
multicolores, e, junto aos muros,<br />
montavam-se pequenos palanques<br />
par as famílias verem passar<br />
o corso.<br />
As fantasias procuravam<br />
manifestar mais o bom gosto do<br />
que o desejo de provocar hilaridade<br />
e fazer pilhérias. Imoralidade,<br />
nem pensar! Enfim, era<br />
um carnaval bem paulista, grave,<br />
familiar e aristocrático, no qual a<br />
mentalidade otimista, difundida<br />
pouco depois pelo cinema americano,<br />
ainda não havia entrado.<br />
Um trem os levaria até Santos, de onde iriam de navio ao porto<br />
do Rio de Janeiro, para ali embarca rumo à Europa num confortável<br />
transatlântico alemão, em 11 de junho de 1912. 4<br />
Por um esmerado desejo de perfeição, Dona Lucilia, prevendo<br />
uma longa estadia no exterior, chamou a si os preparativos de viagem,<br />
apesar de seu estado de saúde.<br />
3) Lendo uma revista alemã, o Prof. Adolpho Lindenberg, cunhado de Dona Lucilia, encontrou<br />
o relato de tão grande sucesso, obtido por <strong>Dr</strong>. Bier. Como constava tratar-se<br />
da primeira tentativa realizada com êxito em matéria tão delicada, o Prof. Lindenberg,<br />
também médico, imediatamente enviou uma carta ao eminente cirurgião germânico,<br />
descrevendo o estado de Dona Lucilia, a fim de encaminhar uma po sível operação.<br />
4) O Hohenstaufen, da companhia Hamburg-Amerika Linie.<br />
Rosée fantasiada de marquesa<br />
Viagem à Europa<br />
Antes mesmo de deixar o lar, no próprio dia da partida, foi tomada<br />
por um ace so de violentas dores, que a obrigaram a permanece<br />
recostada durante boa parte do trajeto de trem até Santos. Embora<br />
sofre se muito, inclusive no percurso até o Rio de Janeiro, não<br />
perdeu, um instante sequer, sua invariável e virtuosa serenidade de<br />
alma, o que lhe proporcionou contemplar o deslumbrante panorama<br />
com o qual Deus brindou aquela cidade.<br />
Hospedaram-se todos no Hotel dos Estrangeiros, um dos primeiros<br />
da então Capital Federal, à espera de partirem para a Alemanha.<br />
Singrand os mares, rumo ao Velho Continente<br />
Chegando ao porto, no dia do embarque, Dona Lucilia sen tiuse<br />
tão mal que, contorcendo-se de dor, teve de subir a bordo do transatlântico<br />
ca regada pelo esposo e por um cunhado, diante dos olhos<br />
penalizados de seus filhos.<br />
O vapor levanta âncoras. Enquanto se vai distanciando da terra<br />
firme, todos os pa sageiro se postam nos bordos do tombadilho ou<br />
se reclinam confortavelmente em chaises longues e assistem ao belo e<br />
emocionante espetáculo da partida.<br />
Dona Lucilia logo começ a sentir, em seu debilitad organismo,<br />
os efeitos de um balouçar marítimo que só poderi agravar seus<br />
males. Deitada em seu camarote, rez ao Sagrado Coração de Jesus,<br />
implorando graças para que, segundo o divino modelo, com paciência<br />
e virtude suporte todos os incômodos de tão longa trave sia.<br />
Quando a embarcação, após rumar em direção à ba ra, está<br />
prestes a ganhar o oceano, alguns parentes descem à cabine de Dona<br />
Educação dos filhos<br />
Para as pessoas daquele tempo,<br />
alegria não era sinônimo de gargalhada,<br />
embora o riso tive se<br />
seu discreto papel na vida.<br />
Dona Lucilia nunca deixava<br />
de mandar fazer fantasias para<br />
os filhos. Ela mesma as planejava,<br />
procurando apresentar personagens<br />
míticos, como os das “Mil e<br />
uma Noites” — marajás, gue reiros<br />
gregos ou romanos, potentados<br />
persas, princesas cobertas de<br />
jóias (falsas é claro) — de preferência<br />
a personagens burlescos,<br />
mas que também não faltavam:<br />
pie rots, arlequins, trovadores e<br />
outros tantos. Às veze se inspirava<br />
em trajes franceses do Ancien<br />
Régime.<br />
Num dos anos ela fantasiou<br />
Rosée e noutro, <strong>Plinio</strong>, de nobres<br />
do século XV I, procurando, nos<br />
mínimos detalhes, aproximar-se<br />
o mais possível da realidade. Não<br />
s empenhav apenas na confecção<br />
das roupas, feitas de tecidos<br />
importados de boa qualidade,<br />
mas sobretudo em que eles tomassem<br />
atitude condizente com<br />
o traje.<br />
O menino, de cabeleira<br />
empoada, chapéu de dois bicos,<br />
rendas nos punhos, tomava o aspecto<br />
distinto e requintado de um<br />
marquês; a menina, de saia toda rendada e toucado de marquesa, fazia<br />
elegantes reverências.<br />
Certamente, enquanto andavam com aqueles belos trajes, as<br />
criança se lembravam mais particularmente dos personagens daquelas<br />
maravilhosas histórias de Dumas contadas por Dona Lucilia .<br />
A família Ribeiro dos Santos embarcou para a Europa no transatlântico Hohenstaufen<br />
<strong>Plinio</strong> fantasiado de marquês<br />
Archivfoto Hapag Loyd (Hamburgo, Alemanha)<br />
L.E.V.<br />
LIBRERIA EDITRICE VATICANA<br />
Uma biografia de Dona Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira,<br />
escrita por Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, e editada pela Libreria Editrice Vaticana.<br />
Pedidos pelo telefone (11) 2971-9040, ou pelo Fax: (11) 2971-9067<br />
5
Dona Lucilia<br />
A devoção de Dona Lucilia<br />
ao Sagrado Cora<br />
As imagens de Nosso Senhor, junto às quais Dona Lucilia rezava<br />
constantemente, tinham como modelo o Santo Sudário de Turim.<br />
Eram profundamente sérias, tristes, plenas de grandeza e, no olhar,<br />
exprimiam a imensidade do amor do Redentor para com os homens. A<br />
piedade dela se exercia em função de Nosso Senhor visto dessa forma.<br />
Atendendo ao pedido que me fizeram, explicarei<br />
qual era a noção, a ideia, que mamãe tinha a<br />
respeito do Sagrado Coração de Jesus, e o que<br />
Este representou para ela.<br />
O Santo Sudário, padrão perfeito<br />
das imagens do Sagrado Coração de Jesus<br />
No tempo de Pio IX, a Igreja chegou a ter um movimento<br />
bem desenvolvido no que diz respeito à devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus. Esse movimento continuou<br />
em algo na época de Leão XIII, e depois reviveu<br />
ainda mais no tempo de São Pio X.<br />
Essa devoção era incrementada, sobretudo, pelo<br />
Apostolado da Oração, grande organização dos padres<br />
jesuítas, que abarcava o mundo inteiro. E a ideia que o<br />
Apostolado da Oração apresentava do Sagrado Coração<br />
de Jesus era expressa, até certo ponto, pelas estampas<br />
e imagens daquele tempo, as quais naturalmente tinham<br />
diferenças fisionômicas — porque não há um modelo<br />
oficial, e cada artista concebe a figura de Jesus mais<br />
ou menos como entende. Mas as imagens de Nosso Senhor<br />
do século XVIII e épocas anteriores são menos parecidas<br />
com as do final do século XIX, que tomaram como<br />
modelo o Santo Sudário, o padrão ideal, perfeito, objetivo.<br />
Estas últimas eram inteiramente coerentes com o que<br />
seria Nosso Senhor gladífero 1 . Quer dizer, um homem<br />
em luta contínua contra o mal, nas suas horas de bondade,<br />
seria bondoso sem diminuir o seu espírito combativo;<br />
e um homem verdadeiramente afável, nas horas de<br />
luta seria gladífero. De maneira que, embora não apresentassem<br />
diretamente Jesus enquanto gladífero, as imagens<br />
davam, por assim dizer, uma pista de voo para se<br />
chegar até o gladífero.<br />
Recusa à mentalidade do século XX<br />
Dona Lucilia formou seu espírito segundo essa concepção.<br />
Ela era do tempo de Santa Teresinha do Menino<br />
Jesus, portanto século XIX largamente; e morreu, graças<br />
a Deus, bastante idosa, mas quase não entrou no século<br />
XX. Vamos dizer que o século XX, depois de aproximadamente<br />
1930, ela não acompanhou; e antes disso ela entrou<br />
para recusar. É claro que o fato de ela não ter acompanhado,<br />
após 1930, é uma forma de recusa também.<br />
Dessa forma, sendo Nosso Senhor bem simbolizado,<br />
mamãe tinha uma boa ideia d’Ele. E a imagem que está<br />
no oratório dela exprime adequadamente o que o conjunto<br />
das imagens católicas, no fluxo da devoção ao Sagrado<br />
Coração de Jesus no século XIX, apresentava. Dona<br />
Lucilia tinha grande devoção por aquela imagem; e<br />
também pela que está no salão azul 2 , feita de alabastro,<br />
a qual é inteiramente da escola da imagem que se encontra<br />
no oratório de mamãe. Então a ideia de Nosso Senhor<br />
era representada por essas imagens, muito parecidas<br />
com o Santo Sudário.<br />
Imagens sérias, repletas de doçura<br />
Essas imagens apresentam Nosso Senhor enormemente<br />
sério, enormemente triste e enormemente grande.<br />
A atitude do Redentor é de uma seriedade triste, perto<br />
da qual o pecador se sente pequenino. E Ele imen-<br />
6
ção de Jesus<br />
so, não pela estatura física, mas pelo porte moral, perto<br />
do qual qualquer um se sentiria pequeno. Porte moral<br />
feito de altíssimas cogitações. Realmente Ele era<br />
uma só Pessoa, mas na qual havia União Hipostática<br />
3 , e as imagens representam a humanidade<br />
d’Ele. Quais são as cogitações de uma<br />
natureza humana que está em União Hipostática<br />
com Deus?!<br />
Quer dizer, todos os místicos que houve<br />
— há e haverá — não tiveram uma união<br />
com Deus parecida com a União Hipostática.<br />
Acrescentemos a isso a santidade perfeita<br />
da humanidade d’Ele, e compreendemos que<br />
é insondável a grandeza de sua humanidade; e na<br />
humanidade d’Ele não se vê só humanidade, mas<br />
também a divindade, que transparece por causa da<br />
União Hipostática.<br />
Então a grandeza de Nosso Senhor é uma grandeza<br />
muito triste. Em geral as imagens desse tempo<br />
são sérias, de um olhar doce, mas que envolve<br />
e penetra na pessoa. E há uma pergunta implícita<br />
n’Aquele que olha para o pecador com bondade,<br />
com afeto, para uma criatura, mais ainda para um filho:<br />
“Mas, em troca de tão pouco você fez tudo isto<br />
pelo qual Eu estou sofrendo? Veja bem, você fez e<br />
Eu o amo, até o perdoo, mas quero que você pense!”<br />
Existe uma censura dentro disso. Não uma censura<br />
gladífera e iracunda, mas nobremente interrogativa,<br />
que pergunta, no fundo, o seguinte: “Será<br />
que você levará a sua torpeza e sua maldade a tal<br />
ponto que, vendo-Me nessa doçura e nessa atitude<br />
de perdão, você ainda continua endurecido?”<br />
Imagem do Sagrado Coração de Jesus<br />
venerada por Dona Lucilia no “Salão Azul”<br />
7
Dona Lucilia<br />
Oratório com a imagem do Sagrado Coração<br />
de Jesus, que pertencia a Dona Lucilia<br />
Coração com uma chama ardente e<br />
circundado por uma coroa de espinhos<br />
O Sagrado Coração é apresentado com uma chama ardente,<br />
uma cruz, coroado com espinhos e transpassado<br />
por uma lança. O Sagrado Coração é um símbolo; a Igreja<br />
é muito sóbria e não sobrecarregaria um símbolo com tantos<br />
outros símbolos se não fosse a intenção de fazer sentir<br />
aos homens o amor de Nosso Senhor para conosco, um<br />
amor excepcional, único. Ele abre o peito e mostra o Coração.<br />
Algumas imagens O apresentam com as duas mãos<br />
como se tivessem aberto o peito para fazer ver o Coração,<br />
num ato de bondade extrema: “O que Eu tenho no tabernáculo<br />
do meu peito, abro para que tu vejas!”<br />
De outro lado, o Coração tem uma chama. É o amor<br />
da humanidade d’Ele a Deus Nosso Senhor, mas também<br />
o amor pelos homens. Jesus quer dizer: “Meu filho,<br />
meu Coração arde por ti; e padeceu a cruz por ti e te carrega<br />
com teus defeitos, teus pecados, como uma cruz.”<br />
E está circundado da coroa de espinhos para dizer:<br />
“Lembre te de como a Paixão foi terrível. E meu Coração<br />
foi transpassado por amor a ti.” Depois de tudo quanto foi<br />
feito contra Jesus, restava-Lhe verter as últimas gotas de<br />
Sangue misturadas com linfa. E Ele quis que Seu Sangue<br />
fosse vertido inteiro, embora uma só gota fosse infinitamente<br />
preciosa e pudesse redimir o gênero humano largamente.<br />
Ele quis que o resto de Seu Sangue fosse vertido, em confirmação<br />
daquela palavra do Evangelho, que eu acho muito<br />
bonita: “...cum dilexisset suos, qui erant in mundo, in finem<br />
dilexit eos.” Quer dizer: “...como amasse os seus que esta-<br />
vam no mundo, até o extremo os amou.” 4 Por amor, Nosso<br />
Senhor derramou até a última gota de seu Sangue.<br />
Esse último dom teria que resultar da última brutalidade<br />
feita pelos homens. Para se certificarem de que Ele tinha<br />
morrido, meteram-Lhe uma lança que Lhe abriu o Coração.<br />
Depois de ter feito tudo, era preciso levar a selvageria até lá...<br />
Podemos imaginar o sobressalto de Nossa Senhora, pois<br />
Ela talvez julgasse que estava tudo concluído quando Ele<br />
disse: “Consummatum est — Está tudo acabado” e expirou.<br />
Entretanto, houve mais isso. E, suavemente, aquele Sangue<br />
e água começam a correr, e Maria Santíssima naturalmente<br />
compreendeu: Até isto Nosso Senhor quis sofrer! Quer dizer,<br />
é a bondade levada a um grau inimaginável.<br />
Segundo a tradição católica, o soldado que perfurou<br />
o Coração de Jesus era um homem de vista muito<br />
ruim, quase cego. E com aquele Sangue e água caindo<br />
sobre a face dele, sua visão ficou perfeita e ele se converteu.<br />
Chamava-se Longinus e passou a ser São Longinus.<br />
Quer dizer, ao homem que fazia isto Nosso Senhor deu a<br />
vista, converteu a fim de levá-lo para o Céu.<br />
Bondade que não conduz ao relaxamento<br />
moral, mas à suma compunção<br />
E aqui entra uma coisa que estava profundamente no<br />
espírito de Dona Lucilia, e se encontra no âmago dessa<br />
devoção: mostrar a imensidade do amor de Nosso Senhor<br />
para com o homem, de um lado, dizendo: “Veja como<br />
você tem razões para confiar! Peça porque será atendido!<br />
As portas da misericórdia estão abertas para você.”<br />
8
Mas de outro lado afirmava: “Veja o que representa<br />
todo o pecado, e o abismo de pecados em que a humanidade<br />
está se precipitando! Tu fazes parte da coorte dos<br />
que Me ofendem. E qual é o homem que, ao menos venialmente,<br />
não me ofendeu?”<br />
Então, bater no peito, pedir perdão, humilhar-se e<br />
compreender a gravidade do pecado. É, portanto, uma<br />
bondade que não leva ao relaxamento moral, mas a uma<br />
suma compunção, suma compenetração, e, portanto,<br />
muito reta, santa, direita. O equilíbrio católico, apostólico,<br />
romano está nisso.<br />
Tudo isto envolvia a devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus, ainda quando eu era menino. Mas notei<br />
que essa devoção foi se retraindo com o tempo, ficando<br />
cada vez mais formal. Em quase todas as igrejas<br />
havia uma imagem do Sagrado Coração de Jesus,<br />
porém a devoção foi perdendo densidade e as pessoas<br />
que rezavam para Ele já não viam bem isso. As<br />
imagens perderam também muito dessa expressão, e<br />
aquela atmosfera de seriedade cheia de tristeza, de<br />
gravidade, de nobreza da Igreja do Coração de Jesus,<br />
em torno das imagens do Coração de Jesus foi se dissipando.<br />
Fazendo perguntas análogas<br />
às do Sagrado Coração de Jesus<br />
Mamãe vivia dentro daquela atmosfera; ela rezava<br />
muito ao Sagrado Coração de Jesus, e toda a devoção,<br />
a piedade dela se exercia em função de Nosso<br />
Senhor visto assim. E, como o bom discípulo em algo<br />
se parece ao mestre, devo dizer que inúmeras vezes<br />
eu a vi interiormente lamentar, deplorar, sofrer e<br />
fazer perguntas análogas às do Sagrado Coração de<br />
Jesus.<br />
O que me tocava na conduta dela e me atraía tanto<br />
era notar essa semelhança. Eu pensava: “Mas a Igreja<br />
Católica é isto! Ela está na linha do espírito da Igreja Católica,<br />
portanto, da verdade certa na qual se pode crer;<br />
este é o modelo, esta é a via.” E isto me fez um bem sem<br />
conta.<br />
Se o que expliquei pode fazer um pouco de bem<br />
aos que estão neste auditório, dou o tempo por muito<br />
bem empregado. Aliás, há uma devoção muito bonita:<br />
“Nossa Senhora do Sagrado Coração”, que é Maria<br />
Santíssima considerada enquanto adorando o Sagrado<br />
Coração de Jesus, e, portanto, toda voltada para<br />
Ele; se nós vemos isso n’Ele, podemos imaginar o que<br />
Ela via! <br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
18 de junho de 1982)<br />
1) Cf. Ap 1, 16.<br />
2) Sala de visitas do apartamento de Dona Lucilia.<br />
3) Termo utilizado na Teologia para indicar, em Cristo, a união<br />
das duas naturezas – divina e humana – na Pessoa do Verbo.<br />
4) Jo 13, 1.<br />
9
Gesta marial de um varão católico<br />
Solução para todos<br />
os problemas - I<br />
Ao responder a uma pergunta, feita em tom declamatório e na qual<br />
a Igreja é comparada a um maravilhoso castelo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discorre<br />
sobre o modo pelo qual, desde menino, compreendia e amava a Santa<br />
Igreja, encontrando nisso o fundamento de sua vida.<br />
A<br />
metáfora foi lindíssima, a declamação muito<br />
bem feita, com o acompanhamento musical muito<br />
belo.<br />
As portas do inferno<br />
não prevalecerão contra a Igreja<br />
Entretanto, a respeito da metáfora, eu teria uma precisão<br />
a introduzir: o castelo é ainda mais belo do que vós<br />
descrevestes; a substância dele não cai em ruína nunca.<br />
Porque, a respeito dele, a voz mais perfeita fez a promessa<br />
incomparável: “As portas do inferno não prevalecerão<br />
contra esse castelo.” 1 E não podemos, portanto, imaginá-<br />
-lo em ruínas porque a promessa perfeita, feita pelos lábios<br />
perfeitos, movidos por um perfeito amor, não pode<br />
senão ter um cumprimento perfeito.<br />
O castelo pode ter partes que se perdem na névoa e, do<br />
fundo da planície, no momento se veem de um modo incompleto;<br />
podem, portanto, dar a uma pessoa que examina<br />
sem toda a atenção necessária a impressão de ruínas,<br />
mas esse castelo desafia o tempo. E, quando não houver<br />
mais História e nem tempo, o castelo estará na glória do<br />
Céu; esse castelo jamais será destruído.<br />
”Ó Santa Igreja Católica Apostólica<br />
e Romana!”<br />
O homem, quando tem a felicidade de estar num ambiente<br />
onde lhe é dada, desde pequeno, uma reta formação,<br />
encontra logo a Santa Igreja Católica Apostólica<br />
e Romana; e também alguns problemas que começam<br />
a desabrochar no fundo da alma. Problemas para<br />
os quais ele dá importância, ou não, que marcam sua infância,<br />
sua adolescência, ou não marcam. Pouco importa,<br />
os problemas existem, se apresentam ao espírito humano<br />
e são cobradores implacáveis. Porque, de vez em<br />
quando, se o homem não lhes dá importância, os problemas<br />
voltam ao longo da vida, diante de situações em que<br />
eles se põem de um modo cada vez mais trágico. São problemas<br />
relacionados com assuntos de foro íntimo, com<br />
a vida externa, com tudo, com o próprio ser do homem,<br />
e que se apresentam, na época de menino, de moço, de<br />
homem maduro, de velho, de modos diferentes. Mas no<br />
fundo são sempre os mesmos problemas, para os quais o<br />
homem não encontra uma solução satisfatória, a não ser<br />
quando os seus olhos dão para o castelo.<br />
Ele olha e pensa: “Mas é curioso. Aqui, ali, acolá, eu<br />
encontro uma solução, uma resposta que desperta em<br />
mim um movimento de alma, uma atitude. O castelo me<br />
fala, me ensina, canta, reza. O polo de minha vida é o<br />
castelo!” O homem se ajoelha e diz: “Ó castelo! Ó Santa<br />
Igreja Católica Apostólica e Romana!”<br />
Problemas internos que ondulam<br />
a alma de uma criança<br />
De que forma, para mim em concreto, esses problemas<br />
nasceram? Não saberia fazer naquele tempo a formulação<br />
que faço hoje a respeito deles, mas os problemas<br />
eram os seguintes:<br />
Eu tinha a minha vida de menino, mas sentia, pelo<br />
bom senso, por um sentir de si próprio que todos nós<br />
possuímos, pela vida externa que via mover-se em torno<br />
de mim, que eu era uma semente, percebia haver em<br />
10
Timothy Ring<br />
Basílica de São Pedro - Vaticano<br />
mim apenas o projeto, os elementos rudimentares de algo<br />
que deveria expandir-se muito mais, e que precisaria<br />
chegar normalmente até a mocidade, a idade madura,<br />
a velhice. Isto significava um desdobrar de aptidões, de<br />
capacidades internas, de modos internos de ser, que eu<br />
sentia existir em mim efetivamente.<br />
E me perguntava, de um modo mais ou menos vago,<br />
confuso: “Em que rumo e de que maneira devo me desdobrar?<br />
Como preciso fazer? A medida de tal sensação,<br />
tal percepção, tal estado de espírito, até que ponto deve<br />
chegar? Como devo ser agora a esse respeito?”<br />
A medida das coisas me era misteriosa a respeito de<br />
mim mesmo.<br />
Imaginemos dois estados de alma entre os quais a<br />
criança oscila muito — tudo mudou tanto, mas o homem<br />
continua sendo homem; não sei se isto passou pelos espíritos<br />
dos que se encontram neste auditório, mas passava<br />
pelos espíritos das crianças do meu tempo. O problema<br />
é o seguinte: a alegria, a tristeza — e aquilo que eu<br />
chamaria um estado pedestre e comum da vida, que não<br />
é alegria nem tristeza — parecem rotina na existência da<br />
criança e que a deixam às vezes enfastiada de viver; com<br />
tão pouca idade e já imersa na rotina e na banalidade.<br />
Então anunciam para a criança uma festa, e ela se rejubila;<br />
comunicam-lhe um fato triste, ela participa da<br />
tristeza. Mas até a tristeza lhe traz algum alívio, pois ela<br />
pensa: “Saí da rotina.”<br />
De outro lado, em certos dias a percepção de que a rotina<br />
tem seu lado aprazível. E, sobretudo, quando se foge<br />
dela, sente-se umas saudades que não se sentiria estando<br />
dentro da rotina. De maneira que, quando se passa da<br />
alegria para a rotina, tem-se desejo de dizer: “Ó rotina<br />
amiga, como és simpática!” Mais ainda, quando se passa<br />
da dor para a rotina, tem-se vontade de falar: “Olhe, essa<br />
rotina é bem boazinha!” Dali a pouco a pessoa está de<br />
novo à cata da alegria e até da dor, mas é a busca do excepcional<br />
para fugir da rotina.<br />
Isto é um dos mil problemas internos que ondulam na<br />
alma de uma criança, ou ao menos ondulavam na alma<br />
da criança que fui eu.<br />
Alegria e dor: em que consistem?<br />
Então, o que quer dizer alegria? Quando uma pessoa<br />
está alegre? Eu estou alegre quando faço algo que considero<br />
gostoso, mas o que é gostoso?<br />
Por exemplo, uma festa de crianças é gostosa; quase<br />
sempre… Comer uma coisa, folhear um álbum, estar<br />
com tal pessoa de minha família é gostoso. Que gostosos<br />
diferentes são esses? Será que eu, com minha natureza<br />
enfática — tendendo a gostar muito daquilo de que gosto<br />
e a não gostar nada do que não gosto —, estou gostando<br />
em toda a medida? Qual é a proporção exata? Como<br />
se deve gostar das coisas que são gostáveis?<br />
11
Gesta marial de um varão católico<br />
Outro ponto. O que é dor? O desagradável é dor, mas<br />
há uma porção de coisas que são desagradáveis a títulos<br />
muito diferentes.<br />
Por exemplo, ir ao barbeiro e mandar cortar o cabelo.<br />
De vez em quando a governanta ou mamãe mandavam:<br />
“É preciso ir cortar o cabelo.” Aquela meia hora no barbeiro<br />
era uma coisa intérmina! Entrava cabelo pelo pescoço,<br />
me desagradava, eu queria trocar de roupa: “Não<br />
pode, deixa disso! Não pode ser pelintra, aguenta!”<br />
Detesto ir ao barbeiro; isso é sofrimento, é dor? Arrancar<br />
um dente, estudar, brigar com um companheiro,<br />
estar doente, separar-me desta ou daquela pessoa é dor?<br />
Será que em mim essas coisas doem como devem doer?<br />
Qual é a medida?<br />
Depois, a dor e a alegria até que ponto se confundem<br />
em certas situações? Às vezes não se dá uma gargalhada<br />
que é amarga? Ou não se tem um chorinho que é doce?<br />
Até que ponto a dor é dor, a alegria é alegria?<br />
E me vinha o pensamento: “Olhe para os outros e veja<br />
o grande bom senso geral. O que todo mundo sente deve<br />
ser verdade, preste atenção nos outros.”<br />
Depois de algum tempo de atenção, uma impressão<br />
de caos. No vocabulário antes de tudo: essas palavras são<br />
escorregadias e designam as coisas mais variadas. Caos,<br />
de outro lado, na própria natureza das coisas: percebe-<br />
-se que, muito legitimamente, algumas coisas doem a um<br />
e não a outro, alegram a um e não a outro. E nota-se que<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma palestra<br />
isso está conforme ao modo legítimo de ser dos outros, e<br />
comigo é meio diferente.<br />
Então há algo que é uma medida própria de sentir dor<br />
ou alegria, a propósito de certas coisas. Que medida é?<br />
Desejo de manter a harmonia interna<br />
E por detrás disso há uma outra pergunta: o que fazer<br />
de mim mesmo?<br />
Eu sou eu e preciso me desenvolver. Mas não posso crescer<br />
e desenvolver-me, mais ou menos como — aquilo que<br />
eu soube muito depois, pelas aulas de Física, e me desagradou<br />
— a força de expansão dos gases. Se, por exemplo, uma<br />
pessoa acende nesta sala um objeto qualquer que começa a<br />
deitar fumaça, segundo que regra essa fumaça se espalha?<br />
É uma regra sem regra, ela se espalha como deve.<br />
Ora, eu tinha impressão que algumas pessoas cresciam<br />
como a fumaça se difunde, pela regra da espontaneidade,<br />
sem eira nem beira.<br />
Eu deitava atenção e pensava: “Mas que coisa curiosa, isso<br />
me explica que esse indivíduo tem dentro dele uma coisa<br />
que não quero em meu interior. Quero dentro de mim<br />
uma ideia de minha harmonia interna, de que as coisas estão<br />
bem relacionadas umas com as outras e com a minha<br />
própria natureza, no que eu tenho como homem e como ser<br />
individual, como este homem é, e não um homem em tese.”<br />
Há o homem em tese, mas cada um de nós existe concretamente.<br />
Deve haver alguns elementos<br />
ordenativos que são específicos a mim; e<br />
se isto estiver bem em ordem, eu encontro<br />
minha base, meu fundamento, posso viver.<br />
Se não for isto, percebo as consequências<br />
em torno de mim, aqui, lá, acolá: essas fumaças,<br />
fumaradas, desordens; é o caos.<br />
Isso naturalmente eu não seria capaz<br />
de exprimir com essa precisão. E provavelmente<br />
a maior parte dos que estão aqui na<br />
sala, quando crianças, também não exprimiriam<br />
o que eu estava dizendo. Mas duvido<br />
que uma pessoa, prestando atenção nas<br />
suas impressões daquele tempo, não encontre<br />
traço de problemas como esse.<br />
Às vezes expresso de modo muito elementar,<br />
mas no fundo é este o problema:<br />
“Eu quero ser como esse homem que conheço,<br />
e não desejo ser como aquele outro.<br />
Tal aspecto nessa pessoa me agrada,<br />
e tal outro aspecto em outra não me agrada.”<br />
O que leva as crianças, por mimetismo,<br />
por imitação, a copiarem algumas<br />
pessoas; é um dos elementos da tradição.<br />
E às vezes uma criança copia, procuran-<br />
12
Timothy Ring<br />
zer habitar em mim a totalidade daquelas harmonias<br />
magníficas, e notava, entretanto, que bastava<br />
me maravilhar, dizer sim, dar atenção interior<br />
àquela variedade harmônica e incomparável, que<br />
havia qualquer coisa de unum, o qual deveria corresponder<br />
a uma atitude do fundo de minha alma<br />
em que eu diria: “Isto é perfeito, é de Deus e para<br />
lá eu quero ir.” Agindo assim, sendo eu ainda menino<br />
e em estado de desabrochar, essas perfeições<br />
de algum modo começariam a habitar em mim.<br />
Uma harmonia lindíssima<br />
e uma beleza harmoniosíssima<br />
Igreja do Sagrado Coração de Jesus - São Paulo (Brasil)<br />
do parecer, ou tira uma espécie de contracópia instintiva:<br />
“Assim não serei.”<br />
Ora, como a criança escolhe esses modelos? Escolhe,<br />
no fundo, com cogitações que correspondem mais ou<br />
menos a essas que acabo de enunciar. E creio que seria<br />
até matéria interessante para reflexão, recordação, etc.,<br />
se procurassem refazer o fio condutor de suas infâncias.<br />
Primeiros contatos com a Igreja do<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Nesta perspectiva, lembro-me bem de que se explicam<br />
completamente os maravilhamentos primeiros que eu tive<br />
com a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.<br />
Na minha primeiríssima infância, muito notadamente<br />
na Igreja do Coração de Jesus, eu comecei a tomar os<br />
primeiros contatos conscientes de uma alma de criança<br />
com a Igreja Católica. Vendo o templo internamente, a<br />
liturgia, o canto sacro, as imagens, o ambiente, a atitude<br />
moral das pessoas que estavam lá, enfim, aqueles conjuntos<br />
das coisas, ligados com o começo muito elementar<br />
de catecismo que minha mãe me ensinou, e junto com<br />
as imagens de casa, as atitudes dela rezando, isso foi me<br />
dando uma ideia maravilhada de que ali eu encontrava a<br />
solução, a medida e o modelo para tudo.<br />
Com a noção inicial, em germinação, mas, pelo favor<br />
de Nossa Senhora, quão definida de que eu encontrava ali<br />
uma forma de perfeição espiritual, humana — não só religiosa,<br />
mas também sobrenatural — na qual, por mais que<br />
eu tivesse de me desdobrar, nunca chegaria a abarcar aquele<br />
mundo de perfeições harmônicas. Eu jamais poderia fa-<br />
Eu não era capaz de dizer com essas palavras,<br />
eram impressões, ao pé da letra o émerveillement,<br />
um maravilhamento de um menino com<br />
os nervos sumamente plácidos e que via isso,<br />
portanto, sem agitações, buliços, exclamações,<br />
mas analisava, aprofundava, conferia. Nunca<br />
com as conferições da dúvida, mas sempre com<br />
as conferições do pormenor, da minúcia, do entusiasmo<br />
pela linha geral, conferindo e dizendo a mim mesmo alguma<br />
coisa mais ou menos assim:<br />
“Isto que me maravilha tanto tem uma vida que é distinta<br />
da minha. É uma outra vida que entra em mim,<br />
limpa e dá sentido à minha existência. Eu aqui encontro<br />
aquele ponto de equilíbrio, de apoio, aquela medida<br />
de todas as coisas, aquele caminho para todos os meus<br />
movimentos, aquela solução para todos os meus problemas.<br />
Neste unum que está aqui e sei que é a Religião de<br />
Deus, nisto eu quero viver a vida inteira. Meu Deus, eu<br />
Vos adoro acima de todas as coisas!<br />
“Sei não só porque mamãe me ensinou que Vós sois o<br />
único Deus verdadeiro, Criador do Céu e da Terra, mas<br />
nisto que aqui contemplo, eu compreendo existir algo de<br />
mais belo do que a terra e o céu material que vejo. Há algo<br />
que confere com o timbre de voz de mamãe quando<br />
ela pronuncia a palavra santidade; quando eu a vejo rezar,<br />
confere com o órgão que ouço tocar, tudo confere<br />
com tudo. Aqui há uma harmonia lindíssima e uma beleza<br />
harmoniosíssima, uma verdade objetiva, real.”<br />
Com os meus olhos de septuagenário, eu vejo aqui<br />
uma almofada que existe realmente, fora de mim; assim<br />
também, em menino, a minha alma pousava sobre essas<br />
maravilhas e harmonias e dizia: “Eu vejo e creio!” v<br />
(Continua no próximo número)<br />
1) Cf. Mt 16, 18.<br />
(Extraído de conferência de 17/10/1981)<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Convívio entre as almas<br />
no Céu empíreo - I<br />
O corpo e a alma formam uma só pessoa. Se alguém vai para o Inferno,<br />
a justiça manda que ele seja castigado no corpo e na alma, porque é<br />
a pessoa inteira que peca e deve ser punida. E quando uma pessoa se<br />
salva, também seu corpo será objeto do prêmio celestial; o Céu empíreo<br />
existe para recompensar os bem-aventurados nos seus corpos.<br />
Já falamos de vários aspectos materiais do Céu empíreo,<br />
e convém ir preparando os nossos espíritos<br />
para aquilo que é a essência da felicidade celeste,<br />
a qual não está no Céu empíreo, mas fundamentalmente<br />
na visão de Deus face a face. Deus, puro espírito, eterno,<br />
perfeitíssimo, inefável, cuja consideração nós teremos<br />
eternamente e que constitui, Ele sim, a nossa felicidade<br />
perfeita.<br />
A felicidade da alma será infinitamente<br />
maior do que a do corpo<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1990<br />
Nosso corpo é elemento integrante de nossa pessoa.<br />
A alma não está para o corpo como, por exemplo, o corpo<br />
está para a roupa, a qual pode ser tirada, jogada fora,<br />
trocada por outra, e o corpo continua no estado normal.<br />
O corpo não é a roupa da alma; corpo e alma formam um<br />
só todo, uma só pessoa.<br />
E se alguém vai para o Inferno — que Deus nos livre!<br />
—, a justiça manda que ele seja castigado no corpo e na<br />
alma, porque é a pessoa inteira que peca e deve ser punida.<br />
O corpo é instrumento da alma para a maior parte<br />
dos pecados, e é bom que o instrumento seja punido como<br />
é castigada a alma, autora do pecado. Então, a contrario<br />
sensu, é também conveniente que o corpo seja premiado<br />
quando a pessoa se salva.<br />
E Deus dispôs o Céu empíreo para que os corpos<br />
tenham ali seu prêmio, junto com as almas. A alma se<br />
reúne ao corpo por ocasião da ressurreição, e o corpo<br />
14
Gustavo Kralj<br />
“Paraíso” - Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque (EUA)<br />
recebe numerosos deleites. Mas, ao mesmo tempo, a<br />
alma tem um deleite ainda muito maior, e convém que<br />
seja maior porque, dos dois elementos que constituem<br />
o homem, o corpo e a alma, esta é muito mais nobre<br />
do que aquele, sem nenhuma comparação.<br />
Basta considerarmos os animais — que têm corpo,<br />
mas não possuem alma — e a superioridade do homem<br />
sobre os animais, para compreendermos até que ponto<br />
a alma, que é espiritual, imortal, é superior ao corpo.<br />
Nesta perspectiva, se entende bem que a felicidade<br />
da alma tem que ser muito maior que a do corpo; não<br />
só muito maior, mas infinitamente maior do que a do<br />
corpo. A alma vê Deus face a face, e nesse convívio com<br />
Deus a alma tem uma felicidade verdadeiramente inexprimível.<br />
Contato de alma intensíssimo e diletíssimo<br />
Para formar uma ideia adequada da felicidade de ver<br />
a Deus, eu me sirvo de alguma coisa do que diz Cornélio<br />
a Lápide 1 , sobre o deleite da convivência das almas<br />
entre si no Paraíso celeste; o contentamento que uma<br />
alma terá no conhecer outra e ser uma com a outra. E, a<br />
partir disso, como um remoto, pálido e insuficiente termo<br />
de comparação, poderemos ter uma noção do que é<br />
a convivência da alma com Deus.<br />
De acordo com Cornélio a Lápide, no Paraíso celeste<br />
os homens terão mansões transparentes, não para que<br />
nelas nada se faça de oculto, nem de vergonhoso, mas a<br />
fim de que todas as almas estejam em condições de tomarem<br />
contato umas com as outras, verem o que estão<br />
fazendo, conhecerem o que estão pensando, cogitando,<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Gustavo Kralj<br />
a todo o momento. De maneira que há um contato de alma<br />
intensíssimo e diletíssimo!<br />
Não é como o contato entre nós aqui na Terra,<br />
quer dizer, cada um tem seu corpo que reflete, de algum<br />
modo, alguns estados de alma que se pode observar,<br />
quando se presta atenção. Então, meio hipoteticamente,<br />
meio com certeza — muitas vezes não sabendo<br />
nós distinguir exatamente a hipótese da certeza<br />
—, formamos uma certa noção a respeito da mentalidade,<br />
da psicologia, do estado de espírito de um outro,<br />
como ele está recebendo a nossa conversa e nossa<br />
companhia, e como estamos recebendo a companhia<br />
dele.<br />
Esse contato de alma aqui na Terra dá alguma luz;<br />
mas, sobretudo, tem penumbra. Gostaríamos de conhecer<br />
muito mais. No Céu nós nos conheceremos diretamente,<br />
como se cada alma lesse outra à maneira de um<br />
livro aberto.<br />
Perpétua festa de conhecimento,<br />
de gratidão e de aprofundamento<br />
Como todas estarão no respectivo estado de perfeição,<br />
tendo sido, no Purgatório, purificadas de todos os<br />
defeitos que tinham na Terra, a consideração de uma outra<br />
alma é altamente aprazível. Qualquer que seja a alma.<br />
Não há os inconvenientes que existem na Terra, onde,<br />
sendo ou não bom psicólogo, se estorva de repente,<br />
por defeito nosso ou de outrem, com estados de espírito<br />
incompatíveis com os nossos. E com a incompatibilidade,<br />
surge o desprazer do convívio.<br />
Às vezes aparece, pelo contrário, uma “suma” harmonia.<br />
A palavra “suma” vai aqui sempre entre aspas, porque<br />
sumo só se pode dizer de Deus. Mas uma grande harmonia,<br />
que é fugidia, surge durante alguns instantes e depois<br />
desaparece. E no máximo o que se pode dizer é: “Se<br />
eu conhecesse essa pessoa mais a fundo, em tal veio, provavelmente,<br />
nos entenderíamos muito bem. E nos outros<br />
veios, como nos entenderíamos? Seria igualmente bem?<br />
Isso que nela foi tão fugaz, que profundidade, que substância<br />
tem? O que é essa pessoa?”<br />
No Céu não há nada disso! Todos os estados de alma<br />
são definitivos. Podem uns aparecer com mais realce, outros,<br />
com menos, conforme o que a alma vê em Deus e<br />
vai despertando esses ou aqueles estados de alma. Mas<br />
tudo é perfeito. E nós temos, então, além do conhecimento<br />
total, o conhecimento daquilo que é totalmente<br />
deleitável, harmonioso em si mesmo — não há contradição<br />
no interior daquelas almas — e harmonioso conosco.<br />
Porque como estaremos, mediante a oração e ajuda<br />
de Nossa Senhora, em nosso estado de perfeição, nunca<br />
nos arranharemos uns nos outros. E teremos uma ale-<br />
16
Gustavo Kralj<br />
Nesta página e na anterior, detalhe de um retábulo que representa Jesus Cristo na glória com os santos -<br />
Galeria Nacional de Arte, Londres (Inglaterra)<br />
gria em ver este, aquele, aquele outro, como uma perpétua<br />
festa de conhecimento, de reconhecimento, de aprofundamento<br />
que não termina nunca mais. E esta alegria<br />
— que ainda não é, nem de longe, o gáudio de ver<br />
a Deus face a face — nós podemos imaginá-la, se encontrarmos<br />
no Céu aqueles que foram nossos conhecidos<br />
na Terra e nos ajudaram, ou a quem nós ajudamos, a<br />
praticar o bem.<br />
Por exemplo, que alegria no Céu nós encontrarmos<br />
uma alma em que notamos determinado fulgor, e ela nos<br />
diz: “Notastes tal disposição em mim. Vós vos lembrais de<br />
que foi devido ao vosso ensinamento?” Ou então, se se<br />
tratar de uma pessoa que terá vivido muito depois de nós:<br />
“Sabei que isso eu aprendi de Fulano, que aprendeu de<br />
Beltrano, de Sicrano… — e lá vem a genealogia, não relativa<br />
ao nascimento necessariamente, pode também ser,<br />
mas é a fileira de pessoas até chegar àquele que deu o primeiro<br />
conselho — e a vós eu agradeço!” Os dois se inclinam,<br />
mutuamente se reverenciam e se amam.<br />
A movimentação de eucaliptos soprados<br />
pelo vento, e o minueto de Boccherini<br />
Isto é convívio, em que a inveja, o ódio, o desagrado<br />
pelas desigualdades não existem; onde um maior enche o<br />
menor de contentamento e satisfação!<br />
Algum tempo atrás, viajando por uma rodovia de São<br />
Paulo, tive uma ideia muito passageira disso. Há em certo<br />
trecho uma plantação enorme de eucaliptos, pertencente<br />
a uma companhia que fabrica papel, e num determinado<br />
lugar existe um pequeno alagado, onde corre<br />
um riozinho; a terra é um pouco pantanosa e a plantação<br />
se abre um tanto. Passo com certa assiduidade por<br />
lá, e uma vez ou outra tem acontecido que o vento sopra<br />
de um modo curioso, talvez em redemoinho, causando a<br />
impressão de que aquelas árvores estão fazendo reverências<br />
umas às outras.<br />
Em certa ocasião, tive uma superior impressão de convívio<br />
ameno, respeitoso, inteiramente harmônico. Quando<br />
eu vejo essas árvores assim, a música terrena de que<br />
me lembro é o minueto de Boccherini 2 , no qual o trato<br />
mútuo das figuras que fazem parte da dança é eximiamente<br />
musicalizado.<br />
Muito mais do que isso, penso na harmonia existente<br />
no Céu entre as pessoas que apreciam as mútuas<br />
virtudes, e assim se reverenciam. Inclusive a maior<br />
em relação à menor, porque a criatura, por mais alta<br />
que seja, ama e respeita toda criatura de Deus, pois ali<br />
há uma imagem e semelhança do Criador. Mas também<br />
porque toda criatura é única e todo homem, debaixo<br />
de qualquer ponto de vista, em algum aspecto é único.<br />
E nesse convívio do Céu se conhece aquilo que a pes-<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Todos os estados<br />
virtuosos da alma,<br />
desde a indagação<br />
reflexiva mais atenta,<br />
até o enlevo, tudo se<br />
fará notar no Céu, nas<br />
várias almas, sobretudo<br />
naquelas cuja virtude<br />
foi intensíssima.<br />
Gustavo Kralj<br />
São Domingos (por Fra Angelico) -<br />
Museu de São Marcos, Florença (Itália)<br />
soa tem de irrepetível, de único. Portanto, tem-se o deleite<br />
de, no conhecer, fazer uma referência a Deus, entendendo<br />
o que Ele quis realizar ali. E com isso ter um<br />
gáudio especial.<br />
Compreendemos, então, o contínuo conhecimento<br />
de uns e de outros, e como, ao sabor do que Deus vai<br />
mostrando, eles mesmos vão apresentando suas cores.<br />
Tudo isso faz desse convívio de alma a alma um deleite<br />
que não podemos ter bem ideia nesta vida.<br />
O Céu é dulcíssimo, com variedade<br />
deleitável de sabores espirituais<br />
Uma coisa desta vida nos ajuda a compreender um<br />
pouco esse deleite: há pessoas que são expressivas; quer<br />
dizer, elas exprimem o que sentem. Algumas são agradavelmente<br />
expressivas. Outras são desagradavelmente expressivas,<br />
às vezes sem culpa própria; há pessoas que têm<br />
modo de ser desagradáveis.<br />
É muito deleitável entrar em contato com uma pessoa<br />
que exprime bem aquilo que tem a dizer, mas em que se<br />
percebe não só o sentido claro da palavra, mas a harmonia,<br />
a consonância de toda a personalidade com aquilo<br />
que está sendo dito.<br />
Poder-se-ia dizer que aquele que tem esse instrumental<br />
está para quem se exprime de um modo teórico e<br />
sem outras refrações fora de si, como aquele que canta,<br />
ou seja, diz a mesma coisa cantada, e o que simplesmente<br />
fala.<br />
Ora, no contato dos homens entre si no Paraíso — sobretudo<br />
no contato com os Anjos, com Nossa Senhora e<br />
Nosso Senhor — notaremos isso, porque tudo funcionará<br />
perfeitamente e de um modo agradabilíssimo; não haverá,<br />
portanto, um só contato que não seja verdadeiramente<br />
magnífico.<br />
E, nos esplendores do Céu, se nós virmos passar, por<br />
exemplo, São Gregório VII perto de nós, irradiante de<br />
glória — como ele estava quando o Imperador Henrique<br />
IV se ajoelhou diante das portas do castelo onde se<br />
encontrava o Papa, pedindo para entrar e depois, quando<br />
entrou, para pedir perdão —, notaremos todas as<br />
modalidades de santidade que houve nele, inclusive a<br />
cólera santa que o animou naquele momento.<br />
Não podemos imaginar, portanto, um Céu adocicado.<br />
Doce, sim, adocicado, não! Doce, dulcíssimo, mas<br />
com essa variedade deleitável de sabores — sabores espirituais,<br />
bem entendido! —, por onde todos os estados<br />
virtuosos da alma, desde a indagação reflexiva mais<br />
atenta, até o enlevo, desde a cólera mais angélica, até a<br />
serenidade mais diáfana, mais tranquila, tudo isto se fará<br />
notar no Céu, nas várias almas, sobretudo naquelas<br />
cuja virtude foi intensíssima.<br />
18
Há um quadro do Fra Angelico, do qual gosto muito,<br />
que representa São Domingos estudando. E para realçar<br />
a pureza do Santo, Fra Angelico pintou um homem feito,<br />
mas com a inocência de uma criança, sentado, com uma<br />
das mãos no queixo, lendo um livro colocado sobre os joelhos.<br />
No Céu, poderemos contemplar São Domingos.<br />
Alegria de poder encontrar-se com<br />
São Tomás de Aquino<br />
Como seria bonito, por exemplo, ver São Tomás de<br />
Aquino pensando profundamente num tema, e o espírito<br />
possante dele à procura da verdade, pondo os prós e<br />
contras: “Parece tal coisa, porque tem isso, aquilo, aquilo<br />
outro. Porém, há também esse, aquele e aquele outro argumento<br />
contrários. Agora, como concluir?”<br />
Depois de ter levantado cordilheiras magníficas de<br />
prós e de contras, pensar e dizer que não conseguia resolver,<br />
ele se ajoelhava diante do tabernáculo, com uma<br />
genuflexão profunda e, com os olhos postos na mediação<br />
de Nossa Senhora, abria o sacrário e punha sua cabeça<br />
dentro dele, para pensar e encontrar a verdade. Que coisa<br />
magnífica! Como seria sua fronte venerável?<br />
Vendo passar São Tomás no Céu, se nota tudo isso! E<br />
compreendemos o gáudio que essa consideração pode<br />
dar. Sobretudo se São Tomás sorri para nós e diz: “O<br />
senhor estava numa reunião, em São Paulo, onde todos<br />
excogitavam de mim com a cabeça posta dentro do Sacrário,<br />
não é? Eu naquela hora, no Céu, rezei pelo senhor!”<br />
Como será grato para nós, vermos que somos<br />
conhecidos de São Tomás, o qual, estando já no Céu,<br />
nos protegeu quando estávamos na Terra. Podemos<br />
imaginar os primeiros encontros no Céu e a alegria desta<br />
forma de convívio! <br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 9/1/1981)<br />
1) Cornélio a Lápide (* 1567 - † 1637): jesuíta e exegeta flamengo.<br />
2) Luigi Boccherini (* 1743 - † 1805): compositor clássico italiano,<br />
famoso por seus minuetos.<br />
Gustavo Kralj<br />
Apoteose de São Tomás de Aquino (por Zurbarán) - Museu de Belas Artes, Sevilha (Espanha)<br />
19
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Inocência e admiração<br />
desinteressada - II<br />
Uma pessoa perde sua inocência quando se deixa dominar<br />
pela inveja, a qual produz consequências espirituais que<br />
conduzem à Revolução. A Contra-Revolução, visando preservar<br />
a inocência e combater a inveja, deve ser, sobretudo, de índole<br />
religiosa. A Idade Média foi uma época em que a inveja não<br />
era bafejada, como o demonstram os “gisants”.<br />
Gales foi outrora um principado, que possuía um<br />
nexo feudal com os reis da Inglaterra, mas tinha<br />
seus príncipes próprios, com sua dinastia própria.<br />
Esses príncipes tomavam posse desse pequeno território,<br />
que é Gales, permanecendo num relacionamento<br />
com o rei da Inglaterra parecido com a relação que têm<br />
os bispos com o Papa. O Papa tem plena jurisdição sobre<br />
cada fiel, mas normalmente o governo dos assuntos locais<br />
compete ao bispo.<br />
O rei da Inglaterra tinha plena jurisdição sobre os galeses,<br />
exceto para os assuntos locais nos quais o Príncipe<br />
de Gales era ainda muito mais autônomo do que<br />
um bispo em relação ao Papa.<br />
Considerem Mônaco, que é um rochedo, mas<br />
com duas coisas muito preciosas, que indico na<br />
ordem inversa dos valores: um museu oceanográfico<br />
magnífico e, de outro lado — o que vale mais<br />
do que tudo —, uma pequena população habituada,<br />
desde a Idade Média, a ser um todo autônomo e sentir-<br />
-se nação independente, uma pequena miniatura do universo.<br />
Toda nação é uma miniatura do universo; Mônaco é<br />
uma miniatura das nações que são miniaturas do universo.<br />
Aquela independência de Mônaco, que ninguém jogou<br />
por terra e permanece em pé dentro do totalitarismo<br />
moderno, com seu hino, sua autoridade, seus costumes<br />
locais, suas leis, etc. tem um pitoresco extraordinário.<br />
Os monegascos respeitam o todo do qual fazem parte,<br />
com o respeito com que os membros da Commonwealth<br />
— Irlanda do Norte, Escócia, Canadá e tantos outros<br />
lugares pelo mundo afora — consideram a Rainha<br />
Georges Jansoone<br />
O senso da hierarquia e do<br />
maravilhoso nasce da inocência<br />
Acima, detalhe de um aquário marinho do Museu<br />
Oceanográfico de Mônaco. Na página seguinte, aspectos<br />
do Principado de Mônaco e da República de San Marino<br />
20
da Inglaterra. É uma coisa com a qual sorrimos<br />
encantados. Por quê? Porque, embora seja<br />
um pequeno país, esse estado de espírito leva<br />
todo o mundo a respeitá-lo.<br />
O Príncipe de Mônaco domina uma área<br />
de território incomparavelmente menor do<br />
que Tóquio, por exemplo, que é a cidade —<br />
segundo me disseram — mais populosa do<br />
mundo moderno. Entretanto, se o Prefeito de<br />
Tóquio vier a São Paulo, será recebido pelo<br />
Prefeito desta última. Se chegar o Príncipe de<br />
Mônaco em Brasília, irão recepcioná-lo o Ministro<br />
do Exterior, os representantes de outras<br />
grandes autoridades, executam-se o hino<br />
monegasco, o hino brasileiro, continência da<br />
tropa, etc. Porque ele é o chefe dessa pequena<br />
unidade independente: Mônaco; se ele vier<br />
a São Paulo, será recebido pelo Governador<br />
do Estado.<br />
Então, respeitar a grandeza até nas suas<br />
miniaturas é próprio desse senso de maravilhoso,<br />
que brota da inocência.<br />
Tomemos, por exemplo, a República<br />
de San Marino, encravada na Itália. Ela é<br />
muito menor do que uma série de prefeituras<br />
da Itália; Milão, por exemplo. Mas é independente;<br />
o presidente da República de<br />
San Marino, sendo chefe de Estado, representa<br />
algo que vai ser tratado com respei-<br />
The Emirr Arnaud<br />
21
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Gustavo Kralj<br />
Às vezes é fácil dizer que sim. Se uma pessoa quer ser,<br />
por exemplo, um grande mecânico e tem um amigo que<br />
é, digamos, um muito bom músico, não é tão difícil para<br />
o mecânico elogiar a música que o amigo toca; mas elogiaria<br />
um mecânico melhor do que ele?<br />
Aqui está a questão: ele ficaria alegre, vendo o mecânico<br />
consertar uma coisa que ele não foi capaz, e diria:<br />
“Sim senhor, então como se é capaz! Ótimo!” E<br />
quando ele fosse, aos olhos de terceiros, aplicar a força<br />
ou o jeito que aprendeu do outro, afirmaria: “Olha,<br />
eu vou fazer uma coisa que aprendi de Fulano.” Esta<br />
é a alma que tem inocência. E a alma invejosa, vendo<br />
a qualidade que o outro tem, diz: “Por que eu não inventei<br />
isso?”<br />
Conclusão: antipatia pelo mais capaz, alegria com alguma<br />
coisa que lhe aconteça, em razão da qual não possa<br />
mais exercer aquele trabalho, filança, ou seja, ele repete<br />
aquele serviço, sem dizer de quem aprendeu ou, pior,<br />
afirmando: “Sabe, surgiu em minha cabeça uma ideia<br />
ótima: inventei tal coisa”. Sendo que foi o outro que inventou...<br />
Sei que isto que estou dizendo dói e arde, desinfeta…<br />
Digo mais: desinfesta! Se alguém é muito atormentado<br />
por tentações do demônio, procure ver se combate a into<br />
enorme, porque ele é o supremo de uma pequena<br />
unidade autônoma.<br />
Eu poderia falar de Luxemburgo, da República de<br />
Andorra, do Principado de Liechtenstein, etc. Havia pelo<br />
mundo afora toda uma galáxia de pequenas entidades<br />
análogas que a Revolução foi absorvendo. Era o senso<br />
da hierarquia e do maravilhoso, dobrando-se até diante<br />
de uma coisa pequena, mas encantadora, e se extasiando,<br />
como um homem diante de um miosótis pode exclamar:<br />
“Ó flor!” Esse senso nasce da inocência e cria esse<br />
estado de alma.<br />
A inveja faz desaparecer a inocência<br />
O oposto a isso é o desejo do gozo, de não atingir o<br />
fim, causando a inveja e tudo quanto sabemos.<br />
Caim e Abel oferecem sacrifícios a Deus - Vaticano<br />
Há um tratado de Moral, de um jesuíta português do<br />
século XIX, que, segundo me contaram, é muito interessante<br />
na parte relativa à inveja. Afirma uma coisa que<br />
eu nunca ouvi dizer por nenhum moralista. Transmito-a,<br />
portanto, com as devidas reservas, mas percebe-se que<br />
algo assim ocorre.<br />
O homem peca por calúnia, não só quando atribui a<br />
alguém um mal que este não fez, mas quando ele se recusa<br />
a elogiar o bem que alguém praticou.<br />
De maneira que se o indivíduo silencia um ato ou uma<br />
qualidade de alguém, merecedores de realce, segundo<br />
esse moralista ele implicitamente calunia, porque faz um<br />
esforço para os outros verem aquele alguém menos excelente<br />
do que é.<br />
E se o homem faz um elogio menor do que alguém<br />
merece, ele também peca, e só estará em dia com o oitavo<br />
Mandamento se tiver elogiado tanto quanto entende<br />
que aquele alguém deve ser elogiado.<br />
Percebemos como isto contraria a inveja, porque se há<br />
uma coisa que o invejoso não quer é realçar alguém que<br />
ele acha ter algo mais do que ele mesmo, mas que ele<br />
quereria que não possuísse. Essa atitude é o contrário da<br />
inocência; o indivíduo não tem inocência na medida em<br />
que é invejoso.<br />
Devemos nos alegrar com as<br />
qualidades dos outros<br />
22
veja. Se não combate, compreenda<br />
que poucas coisas são tão exorcísticas<br />
quanto acabar com a inveja.<br />
E a questão da inveja vai mais longe:<br />
não basta sentir que o outro seja<br />
mais do que nós; é preciso ficar alegre,<br />
dizendo, por exemplo:<br />
— Olhe, que bom mecânico apareceu<br />
em São Paulo!<br />
Alguém lhe informará:<br />
— É verdade, mas em Bruxelas<br />
surgiu um mecânico muito melhor.<br />
— Ah! é? Ainda melhor que esse?<br />
Gostaria de conhecê-lo!<br />
Não tenho esses interesses, entusiasmos<br />
pela mecânica, como todos<br />
sabem. Estou assim exemplificando<br />
porque, do meu remoto tempo de<br />
mocidade, ficou-me a noção de que<br />
muitos, inspirados pelo espírito moderno,<br />
acham uma beleza ser mecânico.<br />
Julgo que isso não passou, mas<br />
só pode se ter agravado. Mas quantas<br />
outras coisas há nesse sentido!<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência na década de 1990<br />
Idade Média: uma civilização onde<br />
não se sentia o sopro da inveja<br />
Compreendemos, assim, o que vem a ser o fundo da<br />
Contra-Revolução, a qual deve ser, sobretudo, espiritual,<br />
de ordem religiosa.<br />
Então, entendemos como seria um Reino de Maria inteiramente<br />
limpo da inveja. Considerem as figuras com<br />
que, na Idade Média, se esculpiram pessoas santas e de<br />
alta dignidade na Igreja ou na sociedade temporal. Elas<br />
têm uma paz, uma tranquilidade...; e tais figuras se encontram<br />
também nas iluminuras, nos vitrais, nas tapeçarias,<br />
por toda parte. Analisando-as, não se sente o sopro<br />
da inveja naquelas almas; são inteiramente elas mesmas<br />
e não invejam ninguém.<br />
Um exemplo disso são os gisants 1 : esculturas de cavaleiros<br />
e damas como se estivessem dormindo sobre a própria<br />
sepultura, com as mãos postas e os olhos fechados.<br />
E junto à sepultura está escrito, por exemplo: “Aqui jaz o<br />
muito alto e poderoso senhor Fulano de tal, etc…” Pesquisando-se<br />
quem foi “o muito alto e poderoso senhor”,<br />
verifica-se ter sido um monsieur, um Herr qualquer 2 . A<br />
palavra alemã é encantadora — um Fraiherr, senhor livre.<br />
Tratava-se de um dono de uma coisa tão pequenina,<br />
que ele nem tinha sequer o título de barão; era apenas<br />
senhor de um rochedozinho com uma aldeia nas proximidades.<br />
Acima dele havia uma série de autoridades que ele<br />
serviu, reverenciou, amou; e abaixo uma camada: os seus<br />
camponeses no meio dos quais ele, exercendo sua autoridade,<br />
viveu na paz e de quem foi a alegria. Segundo um<br />
autor, a alegria desapareceu do mundo quando os castelos<br />
se esvaziaram, tornaram-se museus. Aquela paz manifestada<br />
nos gisants se tem impressão que se comunica,<br />
por exemplo, até às dobras do vestido de uma senhora,<br />
até ao travesseiro; às vezes, o escultor, para dar mais realidade<br />
ao que faz, esculpe no travesseiro umas dobras para<br />
indicar o peso da cabeça. Aquelas dobras são bem arranjadinhas:<br />
dir-se-ia que pousou ali uma cabeça sem remorsos.<br />
Isso exprime, em larga medida, uma civilização que<br />
não teve inveja.<br />
Encerrando esses comentários, aqui ficamos nós esperando<br />
o Reino de Maria para o brilho de nossa vocação e<br />
para a glória da Igreja. <br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/10/1981)<br />
1) Gisant, do francês: jacente, estendido, imóvel. Refere-se a<br />
esculturas estendidas sobre túmulos.<br />
2) Monsieur, do francês, e Herr, do alemão: senhor, cavalheiro.<br />
23
C<br />
alendário<br />
1. São Justino, mártir.<br />
Santo Aníbal Maria Di Francia,<br />
presbítero († 1927). Fundou<br />
a Congregação dos Rogacionistas<br />
do Coração de Jesus e as Filhas<br />
do Divino Zelo, para pedir<br />
ao Senhor que dê santos sacerdotes<br />
à sua Igreja.<br />
2. IX Domingo do Tempo Comum.<br />
São Nicolau, peregrino<br />
(† 1094). Levando uma vida de<br />
austera penitência e fervorosa<br />
piedade, percorreu a Itália<br />
portando um Crucifixo na mão<br />
e repetindo incessantemente:<br />
“Senhor, tem piedade!”<br />
3. São Carlos Lwanga e companheiros,<br />
mártires († 1886).<br />
Santa Clotilde, Rainha dos<br />
francos († 545). Ver página 26.<br />
São Morando, monge<br />
(† 1115). Depois de peregrinar<br />
a Santiago de Compostela, entrou<br />
no mosteiro de Cluny, tendo<br />
fundado posteriormente na<br />
Suíça o cenóbio onde veio a falecer.<br />
dos Santos – ––––––<br />
4. Bem-aventurados Antônio Zawistowski (presbítero)<br />
e Stanislao Starowieyski (leigo), mártires († 1942). Entregaram<br />
suas vidas por Nosso Senhor Jesus Cristo no campo<br />
de concentração Dachau, após atrozes tormentos.<br />
Gustavo Kralj<br />
São Paulo Apóstolo<br />
8. Imaculado Coração de Maria.<br />
Beata Maria Teresa Chiramel<br />
Mankidiyan, virgem<br />
(† 1926). Levou vida eremítica<br />
e fundou a Congregação das Irmãs<br />
da Sagrada Família.<br />
9. X Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato José Anchieta, presbítero<br />
(† 1597). Foi missionário<br />
jesuíta no Brasil, onde veio a falecer.<br />
10. Beato Eduardo Poppe,<br />
presbítero († 1924). Com seus<br />
escritos e pregação propagou a<br />
formação cristã e a devoção eucarística.<br />
11. São Barnabé, Apóstolo.<br />
Beato Inácio Maloyan, bispo<br />
e mártir († 1915). Foi Bispo<br />
de Mardin, na atual Turquia,<br />
durante o genocídio dos<br />
cristãos daquela região. Seu<br />
último ato, antes de ser fuzilado,<br />
foi celebrar a Santa Missa<br />
para os seus companheiros<br />
de prisão.<br />
12. Beata Mercedes Maria de Jesus Molina, virgem<br />
(† 1883). Fundou uma comunidade religiosa para atender<br />
e formar meninas órfãs e pobres.<br />
5. São Bonifácio, bispo e mártir († 754).<br />
São Doroteu, bispo e mártir († s. IV). Padeceu perseguições<br />
de vários imperadores romanos, sendo martirizado<br />
com cento e sete anos.<br />
6. São Rafael Guizar Valencia, bispo († 1938). Prelado<br />
de Vera Cruz, México, exerceu de modo clandestino o seu<br />
ministério episcopal durante a revolução mexicana.<br />
7. Sagrado Coração de Jesus.<br />
Beata Maria Teresa de Soubiran La Louvière, virgem<br />
(† 1889). Fundou a Sociedade de Maria Auxiliadora. Expulsa<br />
da mesma, passou o resto da sua vida na humildade.<br />
13. Santo Antônio de Pádua, presbítero e Doutor da<br />
Igreja († 1231).<br />
Beata Maria Ana Biernacka, mãe de família e mártir<br />
(† 1943). Nascida na Polônia, ofereceu-se para ser fuzilada<br />
no lugar da sua nora que estava grávida.<br />
14. São Metódio, bispo († 847). Foi grande defensor da<br />
veneração às imagens durante a segunda perseguição iconoclasta.<br />
15. Beato Tomás Scryven, mártir († 1537). Monge da<br />
Cartuxa de Londres, morreu de fome na prisão no tempo<br />
do Rei Henrique VIII.<br />
24
–––––––––––––––––– * Junho * ––––<br />
16. XI Domingo do Tempo Comum.<br />
Santos Domingo Nguyen, Domingo Nhi, Domingo Mao,<br />
Vicente e Andrés Tuong,mártires († 1862). Leigos degolados<br />
no Vietnã por causa de sua Fé cristã.<br />
17. Beato Pedro Gambacorta, fundador († 1435). Fundou<br />
a Ordem dos Eremitas de São Jerônimo, cujos primeiros<br />
religiosos eram ladrões que ele mesmo tinha convertido.<br />
18. Beata Osanna Andreasi, virgem († 1505). Tendo recusado<br />
o casamento, vestiu o hábito das Irmãs da Penitência<br />
de São Domingos, cultivando em alto grau as virtudes<br />
cristãs, especialmente a humildade. Alegre e caritativa,<br />
uniu com admirável sabedoria a contemplação dos mistérios<br />
divinos às ocupações do governo e a prática das boas<br />
obras, como atestam suas numerosas cartas.<br />
clérigos, e a reconciliar com Deus os presos e condenados<br />
à morte.<br />
24. Natividade de São João Batista.<br />
São Teodgaro, presbítero († c. 1065). Missionário na Dinamarca.<br />
Atribui-se a ele a construção da primeira igreja<br />
feita de madeira.<br />
25. Beata Doroteia de Montau, viúva († 1394). Tendo-<br />
-se casado com um homem temperamental e violento que<br />
a golpeava sem piedade, logrou, com paciência, humildade<br />
e gentileza, mudar o caráter de seu marido. Após o falecimento<br />
deste, entregou-se a uma vida contemplativa, em<br />
contínua oração e penitência.<br />
26. Beato Andrés Iscak, presbítero e mártir († 1941).<br />
Foi fuzilado, na Ucrânia, por motivo da sua Fé em Cristo.<br />
19. Santos Remigio Isoré e Modesto Andlauer, presbíteros<br />
e mártires († 1900). Foram<br />
assassinados, na China, enquanto<br />
rezavam diante do altar.<br />
20. Beato Dermicio O’Hurley,<br />
bispo e mártir († 1584). Irlandês,<br />
no tempo da Rainha Elizabeth<br />
I sofreu longos interrogatórios<br />
e torturas, acabando por<br />
ser martirizado em Dublin.<br />
21. São Luís Gonzaga, religioso<br />
(† 1591).<br />
São José Isabel Flores, presbítero<br />
e mártir († 1927). Foi<br />
martirizado durante a grande<br />
perseguição aos cristãos, no<br />
México, no início do século XX.<br />
22. São Nicetas, bispo<br />
(† c. 414). Converteu os bárbaros<br />
da região de Remesiana, na Dácia,<br />
atual Sérvia, ensinando-os a<br />
viver segundo o Evangelho.<br />
23. XII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
São José Cafasso, presbítero<br />
(† 1860). Dedicou-se à formação<br />
espiritual e cientifica dos<br />
Gustavo Kralj<br />
São Pedro Apóstolo<br />
27. São Sansão, presbítero († c. 530). Tendo curado o<br />
Imperador Justiniano de uma<br />
enfermidade, conseguiu que este<br />
instituísse um hospital em favor<br />
dos pobres.<br />
28. Santo Irineu, bispo e mártir<br />
(† c. 202).<br />
Santos Plutarco, Sereno, Heráclides,<br />
Herón, Sereno (outro),<br />
Heraidis, Potamiena e Marcela,<br />
mártires († c. 202). Discípulos<br />
de Orígenes, sofreram o martírio<br />
por meio de diversos suplícios<br />
sob o Imperador Septímio<br />
Severo.<br />
29. Santa Emma, viúva<br />
(† 1045). Condessa na Áustria,<br />
destacou-se pela prática da caridade,<br />
dando muitas esmolas aos<br />
pobres e à Igreja.<br />
30. São Pedro e São Paulo,<br />
Apóstolos.<br />
São Vicente Dô Yên, presbítero<br />
e mártir († <strong>183</strong>8). Foi degolado,<br />
por ódio à Fé cristã, na<br />
cidade de Hai Duong, Vietnã,<br />
no tempo do Imperador Minh<br />
Mang.<br />
25
Hagiografia<br />
Santa<br />
Clotilde, uma<br />
admirável<br />
flor-de-lis<br />
Segundo uma poética lenda,<br />
as armas do Rei Clóvis eram<br />
simbolizadas por figuras<br />
de sapos; quando ele e seus<br />
francos foram batizados, tais<br />
símbolos se transformaram em<br />
flores de lis. Bela imagem que<br />
poderia resumir a história de<br />
Santa Clotilde, cujo exemplo de<br />
virtudes fez despontar a aurora<br />
da santidade no Reino franco.<br />
Sérgio Hollmann<br />
Arespeito de Santa Clotilde, Pourrat 1 , no livro<br />
“Saints de France”, diz o seguinte:<br />
Santa Clotilde era princesa burgúndia, tendo visto toda<br />
a sua família assassinada por seu tio Gondebaud, que poupou<br />
somente Clotilde e sua irmã, tendo feito educá-las na<br />
religião católica, embora fosse ele ariano. Clóvis, Rei dos<br />
francos, tendo ouvido falar da beleza e virtudes da princesa,<br />
pediu-a em casamento ao tio. Não a obtendo, dirigiu-se<br />
diretamente a Clotilde, enviando-lhe seu anel real como penhor,<br />
através de um emissário. Clotilde aceitou.<br />
Embora se tratando de um pagão, e temendo então magoá-lo,<br />
Gondebaud permitiu o noivado. Casando-se com<br />
Clóvis, a princesa tudo fez para sua conversão. Nada obteve<br />
de início, pois seus filhos morriam logo após o Batismo<br />
e Clóvis atribuía o fato ao Sacramento. Clotilde rezava<br />
e penitenciava-se, até que raiou o dia da vitória de Tolbiac,<br />
quando o Rei franco, vencedor, fez-se batizar com seus soldados<br />
por São Remígio. Estava fundado o primeiro reino<br />
católico europeu. [...]<br />
Santa Clotilde, sem dúvida, recebeu uma missão especial:<br />
ela tudo transformou. Uma lenda comum em Estrasburgo<br />
26
Batismo de Clóvis - Catedral de Chartres, França.<br />
Em destaque, imagem de Santa Clotilde -<br />
Saint-Germain-l’Auxerrois, Paris (França)<br />
conta que no dia do Batismo dos francos, em Reims, um<br />
Anjo trouxe a Clotilde as armas do novo reino: as de Clóvis<br />
eram três sapos, que se transformaram em três flores de lis.<br />
O valor das lendas maravilhosas<br />
Notamos aqui mais uma manifestação do maravilhoso<br />
medieval. As armas do Rei pagão eram três sapos,<br />
mas, ao receber ele o Batismo, tornaram-se flores de<br />
lis 2 . É a ação da Igreja, tocando o que é natural e decaído<br />
e transformando-o.<br />
Marie-Lan Nguyen<br />
27
Hagiografia<br />
Não encontro imagem mais bonita para o Grand Retour<br />
3 , que deve ter lugar por ocasião dos acontecimentos<br />
previstos em Fátima, do que essa de sapos que se transformam<br />
em flores de lis. A Bíblia fala de transformação<br />
das pedras em filhos de Abraão, que é uma coisa linda,<br />
mas esta é muito poética e bonita.<br />
Pode-se imaginar um sapo — com aquela pele rugosa,<br />
aquele aspecto horrível dos pântanos, aquela suficiência<br />
cafajeste, aquela falta de respiração dando ideia de sua<br />
avidez — que se transforma e se torna um lírio maravilhoso.<br />
Esta é a transformação que as almas, por ocasião<br />
do Reino de Maria, devem sofrer.<br />
Aí está o valor das lendas e do maravilhoso: às vezes,<br />
dizem muito mais do que um acontecimento autenticamente<br />
histórico. Toda a história de Santa Clotilde pode<br />
basear-se nisto: transformação de sapos em flores de lis.<br />
Alto senso católico<br />
Ela era de um meio ariano. Católica, casou-se com um<br />
rei pagão.<br />
Os bárbaros que invadiram a Europa nos séculos<br />
IV e V eram arianos que tinham ódio ao nome católico.<br />
Eles haviam sido pervertidos, na passagem do<br />
paganismo para o arianismo, por um bispo ariano, Úlfilas,<br />
que percorrera as regiões dos bárbaros. Portanto,<br />
a invasão dos bárbaros foi a dos hereges arianos,<br />
que já tinham atormentado de todos os modos o Império<br />
Romano do Oriente e o Império Romano do<br />
Ocidente. Este foi o sentido fundamental dos acontecimentos.<br />
Com a invasão da Europa, um dos antigos reinos, que<br />
decorreu da ocupação realizada na antiga colônia romana<br />
da Gália, foi o borguinhão. O Rei dos borguinhões se<br />
tornara ariano. Era irmão do antigo monarca católico, o<br />
qual ele havia destituído, e se proclamou rei. Tinha uma<br />
sobrinha, filha do Rei católico deposto e morto, mantida<br />
por ele na corte como uma espécie de “Gata Borralheira”.<br />
Tudo leva a crer que existia entre os borguinhões um<br />
partido católico, o qual olhava para essa sobrinha com<br />
esperança.<br />
De outro lado havia Clóvis, que era um pagão, mas<br />
adotou a causa da Igreja em toda a Gália, mesmo antes<br />
de se converter ao Catolicismo. Ele resolveu pedir<br />
essa princesa em casamento, e colocar assim de seu lado<br />
o partido católico dos borguinhões, como também<br />
os católicos de todo o resto da Gália. E assim ele se casou<br />
com ela.<br />
Essa atitude de Santa Clotilde, aceitando um pagão<br />
para sair do domínio dos hereges, revela um alto senso<br />
católico. Ela se casa com Clóvis e começa a praticar a<br />
Religião Católica ao lado dele.<br />
Clóvis viu Deus em Santa Clotilde<br />
Eles discutiam, tinham alguma polêmica, e Clóvis perguntou-lhe<br />
algo sobre a religião dela? Nunca encontrei<br />
notícias a respeito disto, no pouco que tenho lido sobre<br />
o assunto. Mas tudo me leva a crer que não, e tenha sido<br />
apenas a prática constante da Religião que foi causando<br />
impressão no espírito de Clóvis.<br />
Isso sucedeu até que numa batalha, na qual, se não me<br />
engano, ele lutava precisamente contra os borguinhões,<br />
sentiu-se perdido. Resolveu então fazer uma promessa a<br />
Deus, que ele chamava o “Deus de Clotilde”: se ganhasse,<br />
ele se converteria à Religião Católica.<br />
Recordo-me do caso contado por Dom Chautard 4 ,<br />
sobre o advogado que esteve em Ars, no século XIX,<br />
viu o Santo Cura de Ars e voltou para Paris. Perguntado<br />
sobre o que vira, respondeu simplesmente: “Vi Deus<br />
num homem.”<br />
Iluminura do séc. XV representando a entrega da flor de<br />
lis a Clóvis - Livraria Britânica, Londres (Inglaterra)<br />
Romain<br />
28
Com certeza, Clóvis tinha<br />
visto Deus em Santa Clotilde,<br />
e quando fez a promessa<br />
de se converter ao “Deus de<br />
Clotilde”, via que esse Deus<br />
era verdadeiro e vivo.<br />
Santa Clotilde teve filhos<br />
criminosos que se jogaram<br />
uns contra os outros, a par de<br />
um filho santo, que foi o famoso<br />
Saint Cloud. Ela foi de<br />
uma raça de sapos transformada<br />
numa pura flor-de-lis 5 .<br />
Teve junto de si algumas outras<br />
flores-de-lis, mas o resto<br />
era sapo em via de transformação.<br />
Jan Arkesteijn<br />
O sol da santidade<br />
começou a brilhar<br />
para os francos<br />
“A educação dos filhos de Clóvis”, por Lawrence Alma-Tadema<br />
E aí vemos a tragédia de<br />
sua vida. Era tão grande o<br />
peso do paganismo, dos maus costumes antigos, que se<br />
tornava necessária uma virtude heroica para não cair nos<br />
pecados do paganismo, ainda que se tivesse sido batizado<br />
como católico.<br />
Houve um fato curioso de uma índia muito piedosa,<br />
que o Padre Anchieta encontrou em São Paulo, quando<br />
esta não era mais do que o Pátio do Colégio. A índia estava<br />
bastante triste e ele perguntou-lhe o que sentia. Ela:<br />
“Estou, padre, com saudade de comer o braço de uma<br />
criança tapuia…” Ela era batizada, comungava e não comeria<br />
o braço da criança, mas tinha vontade de fazê-lo…<br />
O pessoal que rodeava Santa Clotilde não era antropófago,<br />
mas pouco faltava para que o fossem. Eram batizados,<br />
mas tinham saudades das coisas bárbaras.<br />
Ela no meio de tudo isto, era uma flor-de-lis das mais<br />
perfeitas e admiráveis, ensinando a virtude, a mansidão<br />
e dando também admiráveis exemplos de senso de sua<br />
própria dignidade.<br />
Santa Clotilde é uma espécie de Chanteclair 6 daquela<br />
época: é a primeira que faz raiar o sol. Nela o sol da<br />
santidade começa a brilhar para os francos, trabalha para<br />
a conversão do Rei e dá exemplos das virtudes que o<br />
reino acabará por praticar. É uma santa admirável, que<br />
está na aurora dessa transformação dos sapos em flores-de-lis.<br />
É muito oportuno que lhe peçamos nos consiga a graça<br />
de vermos a hora da outra transformação de sapos em<br />
flores-de-lis. E, quando houver o Grand Retour e se começar<br />
a trabalhar para a construção do mundo futuro,<br />
sejamos o que ela foi no mundo dela: os precursores de<br />
um admirável progresso. Esse, então, verdadeiro, porque<br />
progresso em Nosso Senhor e em Nossa Senhora. v<br />
(Extraído de conferências<br />
de 3/6/1964 e 5/6/1967)<br />
1) Henri Pourrat (* 1887 - † 1959). Escritor francês.<br />
2) Flor de lis: símbolo heráldico da Casa Real Francesa.<br />
3) “Grande retorno”. No início da década de 1940, houve na<br />
França extraordinário incremento do espírito religioso,<br />
quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora<br />
de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado<br />
de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele<br />
país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido.<br />
Ao tomar conhecimento desses fatos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou<br />
a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de<br />
“grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças<br />
que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao<br />
mundo para a implantação do Reino de Maria.<br />
4) Jean-Baptiste Chautard (* 1858 - † 1935). Cisterciense trapista,<br />
abade do mosteiro de Sept-Fons (França). Entre outras<br />
obras, escreveu “A alma de todo apostolado”, à qual<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se refere na presente conferência.<br />
5) Flor-de-lis: Açucena-formosa, uma das espécies de lírio.<br />
6) Peça teatral escrita por Edmond Rostand em 1904. Ver<br />
“<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”, n. 22, p. 4.<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Leoboudv<br />
Fontainebleau - esplendor,<br />
Tratando dos mais diversos<br />
assuntos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> procurava<br />
ver o aspecto religioso.<br />
Analisando o castelo de<br />
Fontainebleau, aponta ele para<br />
a tendência de se construir<br />
algo que superasse a natureza e<br />
compensasse um pouco o que<br />
esta Terra tem de exílio. Há<br />
dentro disso um apelo para algo<br />
maior do que as coisas terrenas,<br />
e que é o começo do movimento<br />
rumo ao Céu.<br />
30
iqueza e simplicidade - II<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Omobiliário dessa sala é elegante, leve, também<br />
constituído de tapeçarias, e habilmente disperso<br />
pela sala, de maneira que se tem, ao mesmo<br />
tempo, impressão de muita mobília, mas há vazios importantes.<br />
Um dos segredos de uma sala bonita é ter vazios<br />
importantes. Eu já tenho visto sala empetecada de<br />
móveis, não se pode dar um passo sem esbarrar num cacareco.<br />
Não tem propósito! O vazio bonito faz parte da<br />
boa decoração.<br />
Orquestração fabulosa de riquezas de espírito<br />
Os vazios são indispensáveis para o ornamento de<br />
uma sala. Mas nessa sala do castelo de Fontainebleau,<br />
que estou analisando, tem-se a impressão, ao mesmo<br />
tempo, de muita mobília e de nada de atravancamento;<br />
isso é agradável. A beleza cromática da sala é a seguinte:<br />
os vidros das janelas são transparentes, a luz que entra<br />
por eles é, inteiramente, a luz do dia. Não é aquela<br />
luz leitosa da galeria.<br />
Mas essa luz do dia, no que ela tem de cru, é compensada<br />
por um mundo de cores. Quase se poderia dizer<br />
que todas as cores possíveis estão representadas aqui,<br />
mas para não ficarem sobrecarregadas, todas elas em<br />
estado muito pálido. E um mundo de cores muito pálidas<br />
não dá a ideia de feeria de cores, pois elas quase que<br />
se fundem umas nas outras, mas divertem e descansam<br />
os olhos maravilhosamente.<br />
Creio ser indiscutível que essa sala dá uma ideia de<br />
fausto. A principal noção de fausto que dela se depreende<br />
é da prodigiosa policromia, mas de cores delicadas<br />
que se fundem umas nas outras; é uma orquestra-<br />
ção fabulosa de riquezas de espírito, de riquezas culturais.<br />
No meio de mil coisas empalidecidas, ficaria um<br />
pouco insípido não ter uma nota viva. E, a ter uma nota<br />
viva, o vermelho é o mais bonito. O vermelho-cereja,<br />
dado um pouco para sangue, no meio das cores pálidas,<br />
é um jato. Como um cozinheiro, que entende das<br />
coisas, sabe pôr na elaboração de um prato um pouco<br />
de pimenta, para realçar todo o resto.<br />
A porta é feita com a preocupação de constituir um<br />
elemento decorativo a mais dentro da sala. Então ela<br />
mesma é tratada com uma série de painéis, todos muito<br />
delicados, leves, que contrastam com o sobrecarregado<br />
das laterais. O contraste de sobrecarregados e leves<br />
forma a harmonia da sala, que sem isto ficaria empetecada.<br />
Manifestamente, nota-se aí a tendência a construir<br />
uma coisa que superasse a natureza, e compensasse um<br />
pouquinho o que esta Terra tem de exílio, com a ideia<br />
de que o homem é feito para coisas maiores do que as<br />
coisas terrenas. Há dentro disso um apelo para algo<br />
maior do que esta vida e esta Terra, e que é começo de<br />
movimento rumo ao Céu. Esse é o lado religioso do assunto.<br />
Fotos: Ignis / Nicolas Vigier<br />
Abaixo, Salão da Imperatriz;<br />
à direita, detalhe do Salão da Rainha-Mãe<br />
32
Esplendor do luto com certa<br />
nota de severidade<br />
A sala de estar da Rainha-Mãe, quase não se sabe se<br />
é mais bonita do que a Sala do Conselho. É mais severa<br />
do que a Sala do Conselho, e se explica porque a Rainha-Mãe<br />
— por definição a viúva e tudo quanto acompanhava<br />
a viuvez — tinha uma certa nota de severidade.<br />
Donde o aparecimento dessas portas escuras, que trazem<br />
uma vaga reminiscência de todo o esplendor do luto. É<br />
uma sala de avó, tendo um certo compassado que a alegria<br />
e o esplendor da outra sala não possui.<br />
Isso corresponde à ideia daquele tempo de a viúva usar<br />
até o fim da vida os sinais de viuvez, sobretudo quando<br />
se tratava da rainha. O que a moldura dessa sala tem de<br />
muito sério é compensado por inúmeros arabescos finos.<br />
Então, há aqui um mundo de formas, flores, grinaldas,<br />
guirlandas, de figuras mitológicas, de quadros.<br />
E uma coisa que fica muito bonita é o espelho, certamente<br />
feito em Veneza — onde se fabricavam espelhos<br />
enormes, profundos — e que é como uma janela aberta,<br />
o que também torna alegre o ambiente. Depois, tapeçarias<br />
colossais, que também dão gáudio à sala.<br />
Os quadros sobre as portas dão à passagem quase a<br />
majestade de um arco de triunfo. Fica uma coisa riquíssima,<br />
muito bonita. Porta sempre com duas folhas, por<br />
causa do protocolo da corte. Para os filhos ou netos de<br />
um rei, as duas folhas da porta se abriam, o alabardeiro<br />
dava uma pancada no chão e gritava: “Sua Majestade,<br />
a Rainha, ou Sua Alteza Real...” Quando era para um<br />
príncipe de sangue real, mas não filho ou neto de rei,<br />
abria-se uma só face, como também se fazia para todo<br />
o resto da nobreza.<br />
De maneira que era de grande estilo a pessoa, digamos<br />
a Rainha-Mãe, ser precedida pelos alabardeiros<br />
que abriam a porta, colocavam-se de ambos os lados<br />
e gritavam: “Sa Majesté, la Reine!” Então, reverências,<br />
etc. Quer dizer, a porta era ocasião de um cerimonial,<br />
quase um pano de boca de um palco; daí seu<br />
caráter triunfal.<br />
Nicolas Vigier<br />
Aposentos da Rainha-Mãe<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Isto estava nos hábitos do tempo,<br />
porque entrar e sair eram uma arte.<br />
Não se faziam esses movimentos como<br />
um frango entra ou sai do galinheiro.<br />
A entrada e a saída de uma<br />
pessoa marcavam a sala.<br />
Observem a beleza dessa mesa,<br />
com as pernas trabalhadas e sobre ela<br />
uma taça de porcelana policromada<br />
muito bonita. Tudo em nível mais discreto<br />
do que o jogo de cores feérico.<br />
A Revolução vai se adensando:<br />
melancolia e moleza<br />
Sala de Conselho de Luís XV. O<br />
gênero de beleza evoluiu do tempo de<br />
Luís XIV para Luís XV. Enquanto a<br />
nota do raffiné 1 de Luís XIV era imponente,<br />
em Luís XV, que já marca uma<br />
certa decadência, o raffiné é gracioso.<br />
Então, é um esplêndido de gracioso,<br />
mas o gracioso é um valor menor que o<br />
imponente, e nisto está a decadência.<br />
Os ângulos retos desaparecem, ou<br />
como que desaparecem; o ângulo reto<br />
exprime muito mais a força do que<br />
o arredondado, que representa o jeito,<br />
a conciliação, o sorriso. Por outro lado,<br />
as cores se tornam — sob algum ponto<br />
de vista — mais delicadas, e um certo<br />
ar triunfal, que tinham as salas de Luís<br />
XIV, desapareceu. Não é uma sala<br />
feita para um rei vencedor do mundo,<br />
como Luís XIV pretendia ser e, em<br />
alguma medida, foi; mas é para um rei<br />
que leva uma vida gostosa e, nas horas<br />
vagas, realiza uma reunião do Conselho.<br />
Desta sala não sai a conquista<br />
do universo, nem a prevenção<br />
da Revolução que vai se formando<br />
e adensando. Considerada<br />
sob o aspecto da pulcritude,<br />
ela exprime o maravilhoso<br />
gracioso e, neste sentido,<br />
ela o exprime magnificamente.<br />
E a linha da feeria continua in-<br />
De cima para baixo: Sala do<br />
Conselho, Salão Branco, portal de<br />
entrada para os aposentos da Imperatriz<br />
34
Salão das Tapeçarias<br />
Fotos: Ignis / Jean-Pierre Dalbéra / Tim Schofield<br />
teiramente afirmada. Dir-se-ia que, de algum modo, ela<br />
é até mais raffinée do que as salas de Luís XIV.<br />
E notem uma coisa curiosa: dentro de todo esse gracioso<br />
há qualquer coisa de mais tristonho. Não há aquela<br />
alegria matinal. É um gracioso crepuscular, embora com<br />
todos os encantos do crepúsculo, mas já não é aquela coisa<br />
maravilhosa da aurora.<br />
Essa sala, com todo o seu maravilhoso, poderia ser<br />
de lazer, ou de jogo, num palácio real. Não poderia<br />
ir além disso. E mesmo assim, ela tem qualquer coisa<br />
de perigoso, porque se uma pessoa fica muito tempo<br />
aqui dentro, não tem vontade de passar para as outras<br />
salas. Ela tem qualquer coisa de anestésico, que é<br />
o anestésico do otimismo. Está tudo arranjadinho, redondinho.<br />
As cadeiras já são um pouco dadas ao anatômico, por<br />
incrível que pareça. A civilização que gosta da cadeira<br />
com pernas baixas é decadente. Então, nessa sala as cadeiras<br />
têm perninhas baixinhas.<br />
Poder-se-ia dizer que o melancólico e mole são as notas<br />
dominantes nessa sala. <br />
v<br />
1) Refinado, requintado.<br />
(Extraído de conferência de 31/10/1966)<br />
35
Nossa Senhora do<br />
Sagrado Coração<br />
“<br />
N<br />
ossa Senhora do Sagrado<br />
Coração” é Maria<br />
Santíssima considerada enquanto<br />
adorando o Sagrado Coração de<br />
Jesus, e, portanto, toda voltada<br />
para Ele.<br />
Invocar Nossa Senhora sob<br />
o título do Sagrado Coração é<br />
fazer uma síntese belíssima de<br />
todas as outras invocações, é<br />
lembrar o reflexo mais puro e mais<br />
belo da Maternidade Divina,<br />
é fazer vibrar a um só tempo,<br />
harmonicamente, todas as cordas<br />
do amor, que tocamos uma a uma<br />
enunciando as várias invocações<br />
da Ladainha Lauretana.<br />
Dizer que Nossa Senhora do<br />
Sagrado Coração é nossa advogada<br />
implica em dizer que temos no<br />
Céu uma advogada onipotente,<br />
em cujas mãos se encontra a<br />
chave de um oceano infinito de<br />
misericórdia.<br />
(Extraído de conferência de 18/6/1982 e<br />
de “O Legionário” de 21/7/1940)<br />
“Nossa Senhora do Sagrado<br />
Coração” - Igreja da Santíssima<br />
Trindade, Osimo (Itália)<br />
Francisco Lecaros