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Revista Dr Plinio 174

Setembro de 2012

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Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>174</strong> Setembro de 2012<br />

Autoridade e afeto


São Gregório Magno<br />

foi um dos fundadores<br />

da gloriosíssima Idade<br />

Média. Pois, de fato, pode-se dizer<br />

que todos os problemas daquele<br />

tempo passaram pela mente desse<br />

grande homem. Ele os analisou<br />

e os enfrentou, deixando escritos<br />

que são verdadeiros pilares do<br />

pensamento medieval.<br />

Quer enquanto simples diácono<br />

ou sacerdote, quer depois de ser<br />

elevado ao Pontificado, em todos<br />

os traços sua vida foi admirável,<br />

voltada inteiramente para o sentir<br />

da Igreja Católica e da Civilização<br />

Cristã.<br />

Ele, de algum modo, acabou de<br />

fechar a última réstia da porta<br />

que nos separava da Antiguidade<br />

pagã; e, por outro lado, abriu a<br />

porta para a idade nova que ia<br />

nascer.<br />

Alain Patrick<br />

São Gregório Magno - Vitral da<br />

Capela da Sabedoria em Saint<br />

Laurent-sur Sevre (França)<br />

(Extraído de conferência<br />

de 11/3/1967)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>174</strong> Setembro de 2012<br />

Ano XV - Nº <strong>174</strong> Setembro de 2012<br />

Autoridade e afeto<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

na década de 1990.<br />

Foto: M. Shinoda<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Editorial<br />

4 Autoridade e afeto<br />

Datas na vida de um cruzado<br />

5 Setembro de 1928<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se inscreve nas Congregações Marianas<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

6 O verdadeiro modo de exercer a autoridade<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

14 Processo do pensamento – II<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Calendário dos Santos<br />

18 Santos de Setembro<br />

Gesta marial de um varão católico<br />

20 Gemendo e chorando neste<br />

vale de lágrimas…<br />

Dona Lucilia<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 107,00<br />

Colaborador .......... R$ 150,00<br />

Propulsor ............. R$ 350,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 550,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 14,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

24 Concórdia profunda entre<br />

mãe e filho<br />

Hagiografia<br />

28 São Jerônimo<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, apóstolo do pulchrum<br />

32 Uma joia dotada de asas<br />

3


Editorial<br />

Autoridade e afeto<br />

Ser como um pai e uma mãe no seio de sua família, eis o ideal de autoridade, segundo <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>. É a ideia que ele retoma ainda na sua última obra, “Nobreza e elites tradicionais análogas<br />

nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana” 1 .<br />

Assim, é na família – uma entidade privada e básica que constitui para a Nação e para o Estado<br />

uma “fonte de vida [...] autêntica e borbulhante” (p. 106) – que se deve buscar as características do<br />

verdadeiro relacionamento entre autoridade e súditos.<br />

Ao desenvolver esse tema, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> prefere ilustrar seu pensamento analisando o que se passa<br />

numa família numerosa, na qual “reinam” o pai e a mãe, os quais são objeto não só do respeito, como<br />

também da veneração e do amor dos filhos, cuja principal causa de alegria consiste em estar reunidos<br />

em torno deles. “E, sendo os pais de algum modo um bem comum de todos os filhos, é normal<br />

que nenhum destes pretenda absorver todas as atenções e todo o afeto dos pais, instrumentalizando-<br />

-os para o seu mero bem individual. O ciúme entre irmãos encontra terreno pouco propício nas famílias<br />

numerosas” (ibid., p, 108).<br />

Os progenitores, ao mesmo tempo que velam pela ordem e pela disciplina no lar, de um modo<br />

mais protetor que repressivo, são movidos pelo sentimento de benquerença e imenso amor por aqueles<br />

que Deus confiou a seus cuidados.<br />

Eis, pois, o modelo de autoridade que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> propõe para todos os âmbitos da sociedade, e que<br />

nos tempos passados constituíam a delícia das relações sociais, proporcionavam uma vida pacífica, livre<br />

de invejas e de comparações. Vem ao caso mencionar um exemplo muito do agrado de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

tirado da história de Portugal: depois da batalha de Aljubarrota (1385), perguntou-se a um combatente<br />

como fora possível a um exército tão pequeno, como o português, sair vitorioso na refrega contra<br />

tropas muito mais poderosas. A resposta foi imediata: “Nosso Rei venceu porque seu exército<br />

não é de soldados, mas é de filhos!”.<br />

Assim, a autoridade fiel à sua posição tem verdadeiro afeto por seus súditos e, em compensação,<br />

recebe deles essa forma de fidelidade filial.<br />

Na seção “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta”, da presente edição, ele volta à tese de que, quando um bom pai<br />

manda no bom filho, tem-se o auge da disciplina. Aquele que exerce a autoridade deve fazer o possível<br />

para estabelecer esse teor de relações com o súdito.<br />

E recordando a cerimônia de coroação da Rainha Elizabeth II, da Inglaterra, cercada do carinho e<br />

admiração de todo o povo, ele conclui: o principal fundamento disso é o amor e, secundariamente, o<br />

temor. “Eles se amam porque se compreendem”; “e aquilo dura um reinado inteiro”.<br />

1) Porto: Civilização, 1993.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Datas na vida de um cruzado<br />

Setembro de 1928<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

inscreve-se nas<br />

Congregações Marianas<br />

C<br />

om imenso gáudio <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> participou do<br />

Congresso da Mocidade Católica, na Igreja<br />

de São Bento, em Setembro de 1928. Deparou-se<br />

então com uma realidade pujante e nova<br />

para ele: um movimento de jovens católicos. Sua<br />

reação foi imediata.<br />

Já no encerramento do Congresso da Mocidade<br />

Católica, assisti ao ato com o propósito<br />

de, no domingo seguinte, ir para a Congregação<br />

Mariana da Igreja de Santa Cecília, uma das<br />

mais dinâmicas da época.<br />

De fato, lá me apresentei e dei início ao “dois<br />

romano” de minha vida: tinha início minha dedicação<br />

mais efetiva e completa ao serviço da<br />

Santa Igreja. 1<br />

Naquela época, era geralmente malvisto o homem<br />

que, ainda mais sendo moço, se apresentasse<br />

de modo ostensivo como católico praticante.<br />

Além disso, em virtude da profunda diferenciação<br />

de classes daquele tempo,<br />

o grande surto de<br />

Congregações Marianas,<br />

florescentes nos<br />

bairros populares,<br />

onde conquistavam<br />

extraordinário número<br />

de rapazes para<br />

a prática da Religião,<br />

era desconhecido<br />

entre as pessoas<br />

dos extratos sociais<br />

mais elevados.<br />

Em face dessas<br />

circunstâncias, <strong>Dr</strong>. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na época de seu<br />

<strong>Plinio</strong> adotou a seguinte<br />

postura: entre<br />

ingresso no movimento católico<br />

seus pares da alta sociedade paulista, mostrou-se<br />

com desassombro como católico militante; no âmbito<br />

do Movimento Católico, pôs desde cedo<br />

seu entusiasmo e suas brilhantes qualidades<br />

a serviço da Igreja, inclusive se lançando, por<br />

ela, nas vias da política nacional.<br />

O resultado desta ativa dedicação à Causa<br />

Católica não podia ser outro:<br />

Não demorou muito que eu me tornasse<br />

conhecido nos meios religiosos e passasse<br />

a ser visto e tomado como líder católico.<br />

2<br />

Congressistas na Igreja de São Bento<br />

1) Conferência de 26/2/1995.<br />

2) Conferência de 10/3/1987.<br />

5


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

O verdadeiro modo<br />

de exercer a autoridade<br />

Quem possui autoridade deve exercê-la com bondade e força.<br />

A propósito de uma fotografia da Catedral de Viena<br />

e do filme da coroação da Rainha da Inglaterra, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

tece considerações sobre o mando.<br />

Omando, entendido em seu sentido estrito, é o poder<br />

daquela pessoa investida de autoridade religiosa<br />

ou civil, militar, ou meramente administrativa,<br />

que lhe dá o direito de dizer a um subalterno: “Pense<br />

deste modo porque é assim que se deve pensar!”; ou<br />

“Faça desse modo porque é assim que se deve fazer!”;<br />

“Não pense daquele outro modo porque é errado!”,<br />

“Não faça de outro modo porque é errado!”<br />

Há, portanto, uma escala de poderes – poder de ordenar<br />

o pensamento, ordenar a ação – que faz com que o indivíduo<br />

sobre o qual se exerce o mando altere o curso do que<br />

ele pensa ou faz, conforme o que disponha a autoridade.<br />

Hugo Grados<br />

Bom pai mandando no<br />

bom filho é o auge da<br />

disciplina. E aquele que<br />

exerce a autoridade deve<br />

fazer o possível para<br />

estabelecer esse teor de<br />

relações com o súdito.<br />

Santo Agostinho entrega a Regra a seus<br />

discípulos - Casa de Espiritualidade<br />

Betânia, Sevilha (Espanha)<br />

6


Mathiasrex<br />

Batalha de Fontenoy - por Pierre Lenfant, Palácio de Versailles (França)<br />

Obstáculos da natureza humana<br />

para obedecer<br />

Mas acontece que na natureza humana há muitos obstáculos<br />

para obedecer. O primeiro deles está no próprio<br />

homem. Este frequentemente não quer obedecer porque<br />

tem a tendência nativa, desfigurada pelo pecado original,<br />

de fazer aquilo que ele entende que deve realizar e não<br />

o que o outro está mandando. E por causa disso, quando<br />

ele recebe uma ordem que não compreende, ou se a<br />

compreende, não está de acordo; quando a ordem for<br />

penosa e o obrigar a um sacrifício que ele julga que não<br />

seria necessário; quando acha que a autoridade tem razão,<br />

mas ele detesta fazer aquele sacrifício em concreto<br />

e, portanto, se recusa a obedecer; por todas essas razões<br />

conjuntas, o espírito humano tende a levantar-se contra<br />

a autoridade e dizer: “O senhor está mandando. Eu<br />

vou lhe mostrar com quantos paus se faz uma canoa; não<br />

obedecerei.” E é tomado por uma indignação, que nasce<br />

nele pelo fato de ter sido mandado e pelas outras circunstâncias<br />

que indiquei.<br />

Então se configura uma situação doentia, enfermiça,<br />

má, perigosa, uma crise nas relações entre quem manda<br />

e quem obedece. É preciso que quem manda compreenda<br />

que a situação de crise pode ter resultados imprevistos.<br />

Se ele está mandando “à chibata”, pode ser que<br />

tenha a melhor, mas pode ser que não. Não digo chibata<br />

no sentido físico – porque isso não entra em cogitação<br />

– mas se ele empregar a autoridade no estilo duro e aos<br />

berros: “Eu estou obrigando! E abaixe a cabeça!”, é possível<br />

que o problema que ele deveria resolver se agrave, e<br />

que o súdito, machucado pelo remédio aplicado, seja levado<br />

a uma explosão, uma fuga, uma ruptura e até a uma<br />

agressão.<br />

Então isso não é a vitória, mas o fracasso da autoridade.<br />

Em geral, uma ordem<br />

é dada para benefício do subalterno<br />

Isso se compreende tanto melhor quanto, em geral, a<br />

ordem é dada para benefício daquele que está obedecendo,<br />

mesmo que lhe seja um sacrifício.<br />

Por exemplo, a autoridade manda um soldado para a<br />

guerra. Na aparência não é para benefício dele, pois vai<br />

sair da guerra estropiado, mutilado ou morrer. Mas, pela<br />

ordem natural das coisas, quando um país é agredido,<br />

todos os membros válidos dessa nação devem atender<br />

ao apelo da autoridade: pegar em armas e lutar. Porque<br />

do contrário o país desaparece. É como está muito<br />

7


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

bem expresso no Livro dos Macabeus: Mais vale ao homem<br />

morrer do que viver numa terra devastada em sem<br />

honra 1 , ou seja, numa terra na qual os que a povoam não<br />

têm o senso da honra, o senso da resistência até o sangue<br />

para manter de pé a bandeira nacional, e, sobretudo,<br />

o estandarte sacrossanto da Santa Igreja Católica, Apostólica<br />

e Romana, pátria das almas de todos os viventes. E<br />

por causa disso, aquele que recebe a ordem “Vá combater!”<br />

é beneficiado.<br />

Mas ele não entende isto assim — é difícil imaginar<br />

que todos os homens com facilidade o compreendam,<br />

máxime na hora do perigo — e pode se revoltar.<br />

Se o indivíduo se revoltar, a autoridade — que está<br />

mandando para o bem comum e para o bem do indivíduo<br />

— obtém como resultado que o mal se instale na alma<br />

dele em vez do bem. E a sua deserção é um mal para<br />

o país. Todo soldado que deserta subtrai ao país uma força<br />

que pertence ao país. Resultado: é o fracasso da autoridade.<br />

A relação pai e filho no mandar e obedecer<br />

De maneira que, diante do fato da recusa ou da acolhida<br />

mal-humorada daquele que obedece de má vontade,<br />

relaxadamente, minimalistamente, fazendo o menos<br />

possível, a autoridade tem um problema moral e psicológico,<br />

que ela deve resolver.<br />

Qual é o problema?<br />

Como agir sobre a alma daquele súdito de modo que<br />

mude de ânimo, queira fazer aquilo que deve, e não se<br />

rebele contra a vontade da autoridade? Mas, pelo contrário,<br />

haja um consenso entre ele e a autoridade, e assim<br />

as relações entre quem manda e quem obedece atinjam<br />

o auge de sua normalidade, que é a relação pai e filho.<br />

Bom pai mandando no bom filho é o auge da disciplina.<br />

E aquele que exerce a autoridade deve fazer o possível<br />

para estabelecer esse teor de relações com o súdito.<br />

Como fazer para conseguir isso?<br />

Em primeiro lugar, a autoridade precisa fazer-se compreender<br />

de todos os modos — digo de todos os modos<br />

de propósito —, de maneira que aquele que deve obedecer<br />

fique numa disposição tal que não se levantem nele<br />

os vagalhões da inconformidade. Pelo contrário, tenha<br />

alegria, boa disposição de alma em fazer o que deve.<br />

A colaboração da bondade com a força<br />

Eu estava vendo outro dia um cartão postal da Catedral<br />

de Viena, fotografada durante a noite pelo lado que<br />

eu nunca vira. Sempre havia visto a Catedral fotografada<br />

do outro lado. Do meu agrado pessoal, ela é muito mais<br />

bonita desse lado que mostrava o cartão. Nota-se a Catedral<br />

fortemente iluminada, composta de dois corpos de<br />

edifícios inteiramente distintos: uma torre enorme, mas<br />

muito delicada, esguia e forte ao mesmo tempo. A força,<br />

o esguio e o delicado se compunham admiravelmente<br />

e se elevavam audaciosamente até uma altura de causar<br />

surpresa.<br />

E ao lado um edifício bem mais baixo, como que<br />

apoiado na torre arrojada da Catedral. Era como uma<br />

casa de família encostada numa fortaleza. Casa de família,<br />

íntima, agradável, acolhedora, afável, distinta, digna,<br />

muito bela, mas o que possuía de melhor era o arrojado<br />

da torre na qual ela se amparava.<br />

Seria um pouquinho como esposa e esposo. O esposo<br />

é a torre: forte, enérgico, batalhador; a esposa: delicada,<br />

mãe de família amorosa. E ambos desse modo vistos<br />

pelo filho.<br />

De maneira que a colaboração da bondade com a força,<br />

para dar a figura do estado temperamental de quem<br />

exerce a autoridade, se deixava ver por este símbolo da<br />

autoridade da Igreja, que é a autoridade das autoridades.<br />

Sem a Igreja, não há nenhuma autoridade que tenha<br />

o fundamento necessário e prevaleça durante o tempo<br />

necessário.<br />

Então, é a autoridade da Igreja apoiada na autoridade<br />

do Estado, ou a da mãe apoiada na do pai, ou a da imperatriz<br />

apoiada na do imperador.<br />

A autoridade de quem representa o direito, a bondade,<br />

a delicadeza seria frágil demais para subsistir se não<br />

fosse a força. Mas a força seria brutal demais se não fosse<br />

toda essa doçura. A conjugação da doçura e da força faz<br />

com que o súdito, em suas boas horas, se embeba da doçura<br />

e, nas suas horas difíceis, seus “calombos” de alma<br />

sejam raspados à plaina pela ação da força. E assim se estabelece<br />

o equilíbrio das relações humanas.<br />

A beleza da luta ao lado da<br />

beleza da concórdia<br />

Lembro-me do filme do enterro do Imperador Francisco<br />

José, que morreu no segundo ano da Primeira<br />

Guerra Mundial. Naquele tempo, a aviação militar ou<br />

não existia ou estava no nascedouro, e não constituía um<br />

perigo notável para as grandes cidades.<br />

Então o enterro se fez com toda a pompa do regime<br />

de paz, embora estivessem em guerra. Um longo cortejo<br />

acompanhava, para sua última morada na histórica<br />

cripta dos capuchinhos de Viena, o corpo do Imperador<br />

Francisco José. No cortejo estavam — tudo bem equilibrado<br />

— o novo Imperador Carlos com a Imperatriz Zita,<br />

os membros da família imperial, depois os membros<br />

da nobreza, da justiça, da universidade, dos grandes corpos<br />

de Estado e de um lado e de outro toda a tropa, im-<br />

8


Uma torre enorme, mas muito<br />

delicada, esguia e forte ao mesmo<br />

tempo. A força, o esguio e o delicado<br />

se compunham admiravelmente e<br />

se elevavam audaciosamente até<br />

uma altura de causar surpresa.<br />

Lukelace<br />

Catedral de Santo Estêvão,<br />

Viena (Áustria)<br />

9


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

pecavelmente trajada com os lindos uniformes do Império<br />

Austro-Húngaro, formando uma alameda.<br />

E eu sabia, por uma pessoa que estava sentada ao meu<br />

lado — não havia cinema sonoro naquele tempo —, que,<br />

enquanto o cortejo percorria o itinerário na cidade de<br />

Viena, de vez em quando os canhões troavam. Quando<br />

os canhões paravam, os sinos tocavam; depois os canhões<br />

retomavam sua voz.<br />

Aquela fragilidade elegante, fina, aristocrática, da<br />

corte que desfilava no meio do exército e dos demais<br />

corpos militares apresentando armas e simbolizando a<br />

força do Império, ao lado da beleza, da delicadeza, do<br />

charme do Império, formava um conjunto que a voz dos<br />

sinos e o troar dos canhões completava. Porque o sino<br />

é a delicadeza, a música; o canhão é a tragédia, a força,<br />

mas também é a vitória. É a guerra, a beleza da luta<br />

ao lado da beleza da concórdia, da paz, do bom entendimento.<br />

Cerimônia da coroação<br />

da Rainha da Inglaterra<br />

Este modo de entender fez com que, no tempo em<br />

que existia na Europa a plenitude das monarquias católicas,<br />

houvesse em todas as cerimônias do trono esse misto<br />

de majestade e de força.<br />

Outro exemplo, a coroação da Rainha da Inglaterra.<br />

No corpo da igreja, o clero anglicano com paramentos<br />

vagamente parecidos com os da Igreja Católica, e, portanto,<br />

vagamente bonitos. Tribunas especiais para os nobres,<br />

todos eles com suas coroas correspondendo aos respectivos<br />

títulos de nobreza. Bem em frente ao altar, o<br />

trono aonde iam se sentar a nova Rainha e seu esposo; à<br />

direita e à esquerda, os assentos para os membros da casa<br />

real inglesa. E em frente do altar os membros das casas<br />

reais de outros países da Europa, que tinham afluído<br />

para assistir à cerimônia.<br />

A cerimônia era lindíssima. E o número de pessoas do<br />

povo que assistiam a essa cerimônia dentro da Basílica,<br />

que é ampla, era enorme. Pode-se fazer uma ideia do aspecto<br />

daquilo tudo no interior da Basílica.<br />

Realizava-se o longo cortejo acompanhando a Rainha,<br />

do Palácio de Buckingham até a Basílica de Westminster.<br />

As principais pessoas da cerimônia desfilavam<br />

em carros tradicionais, dourados, com pinturas, janelas<br />

de cristal, plumas, com lacaios usando chapéus de três bicos<br />

e durante todo o tempo se viam no desfile príncipes<br />

europeus, com os seus uniformes muito bonitos e todas<br />

as suas condecorações. Notava-se também, de outro lado,<br />

marajás, sultões, toda espécie de potentados do mundo<br />

ainda misterioso do Oriente, colocados alguns em<br />

carruagens próprias que eles tinham trazido.<br />

Recordo-me da Rainha de Tonga, da Oceania, gorda<br />

a mais não poder, enorme, um pouco escura, muito bem<br />

humorada, que sabia ser Rainha, e o povo gostava de<br />

olhar para ela e lhe fazia sinais. Ela olhava e respondia<br />

com um pequeno sinal, e batiam palmas freneticamente<br />

para ela.<br />

Depois passavam os homens eminentes, Churchill,<br />

Eden, que tinham salvado a Inglaterra durante a Segunda<br />

Guerra. Era um entusiasmo enorme.<br />

Alguém dirá: “Para que isto?”<br />

Para ungir — no sentido próprio da palavra, quer dizer,<br />

recobrir do azeite da compreensão, da admiração,<br />

10


BiblioArchives/LibraryArchives<br />

As palmas batidas no início de<br />

um reinado vão até os dobres<br />

de finados do fim do reinado.<br />

E no início do novo reinado,<br />

todos se preparam para novas<br />

palmas, e novos dobres de<br />

finados, quando ele terminar<br />

Cerimônia de Coroação da Rainha da Inglaterra,<br />

Elizabeth II, em 2 de junho de 1953<br />

do respectivo amor — as relações entre o rei e a rainha<br />

de um lado, e o povo do outro. A fim de que o povo compreendesse<br />

o que era um rei, uma rainha, o que é mandar<br />

e obedecer. Mas também houvesse tal compreensão<br />

por parte do rei e da rainha, vendo aquela multidão de<br />

entusiasmo que subia para eles de todos os lados, dos altos<br />

prédios de Londres, cheios de pessoas nas janelas ornamentadas,<br />

que os saudavam quando eles passavam. O<br />

povinho nas ruas, até de bairros pobres, colocados por<br />

todos os lados, encarapitados nos postes, nos tetos das<br />

casas, e aplaudindo, aplaudindo, aplaudindo. E os monarcas<br />

acenando.<br />

Amor e admiração<br />

O que queria dizer esse dueto?<br />

Significava: “Nós nos queremos, estamos compreendendo<br />

o que cada um é para o outro. O principal fundamento<br />

das nossas boas relações é o recíproco amor, e a<br />

razão pela qual nós nos amamos é que nos entendemos,<br />

nos queremos e nos admiramos.”<br />

Onde o amor admira, a admiração ama, a boa inteligência<br />

se estabelece; e onde se estabelece esta mútua visualização,<br />

este mútuo entendimento, as instituições ficam<br />

sólidas. Porque o principal fundamento daquilo tudo<br />

é o amor e, secundariamente, o temor. Eles se amam<br />

porque se compreendem; e se compreendem porque<br />

souberam mostrar-se um ao outro no seu melhor aspecto.<br />

E aquilo dura um reinado inteiro.<br />

Digamos que as palmas batidas no início de um reinado<br />

vão até os dobres de finados do fim do reinado. E<br />

no início do novo reinado, todos se preparam para novas<br />

palmas, e novos dobres de finados, quando ele terminar.<br />

É uma fonte contínua de amor, de admiração, de esperança,<br />

quando um reinado nasce; de tristeza quando ele<br />

morre; de afeto em todas as ocasiões. É uma nação forte,<br />

como uma torre levantada no meio de uma planície; nada<br />

pode atentar contra ela.<br />

Porém, isto não deve ser só nos grandes dias, mas também<br />

na vida quotidiana. Um rei, uma rainha que só tenha<br />

o tom do rei e da rainha no dia da coroação, mas que<br />

são meio amolecados na vida quotidiana, estão se suicidando,<br />

e destruindo diariamente aquilo que eles construíram<br />

no primeiro dia de seu reinado.<br />

Um reinado é uma coroação contínua, uma reafirmação<br />

contínua da coroa, por parte do rei, da rainha e<br />

dos membros da família real onde quer que estejam. É o<br />

11


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

mesmo borbulhar de mútua compreensão, admiração, de<br />

mútuo amor, de onde fica muito fácil a autoridade mandar,<br />

e sabe-se que por detrás há um aviso: “Ai de quem<br />

não obedeça!”<br />

Mas fica-se sabendo também que esse “ai de quem<br />

não obedeça!” não é mau humor, megalice 2 , ódio, nem<br />

dureza de coração; é afeto. De acordo com as palavras<br />

da Sagrada Escritura: “Quem poupa a vara, odeia seu filho;<br />

quem o ama, corrige-o prontamente.” 3 Logo, o pai<br />

que, na hora oportuna, sabe dar umas varadas no seu filho,<br />

ama seu filho. A vara na mão de um bom pai pode<br />

ser um símbolo de amor.<br />

O sacrifício da seriedade permanente<br />

Os antigos exprimiam essas verdades — que estou<br />

procurando resumir com a cena grandiosa da coroação<br />

— de mil maneiras diferentes na vida quotidiana.<br />

Por exemplo, no modo pelo qual em incontáveis lares<br />

de toda a Cristandade, ainda em meados do século XIX,<br />

os pais sempre abençoavam a comida quando ela chegava<br />

à mesa, tanto em casas pobres como em palácios. E, quando<br />

era uma família mais modesta, vinha um pão enorme<br />

que o pai cortava e distribuía um pedaço grande para cada<br />

filho; então todos se sentavam e começava a refeição.<br />

Numa certa região da Espanha havia uma oração muito<br />

bonita, mais ou menos assim: “Que el Niño Jesus, que<br />

nació en Belén, bendiga el Rey, la Pátria y a nosotros también.”<br />

E todos respondiam: “Amém.” O pai dizia “Sentaos”<br />

e sentava-se antes; depois todos se sentavam. Ao lado<br />

dele, numa cadeira menos imponente, mas num lugar<br />

mais acessível, a esposa. Eles presidiam a refeição como<br />

presidiam a vida da família, bem como essa circulação<br />

mútua de amor e de admiração, que forma a essência<br />

da boa ordenação das coisas.<br />

Isto supõe da parte de todos um sacrifício. É o sacrifício<br />

da seriedade permanente. Nunca uma brincadeira à<br />

toa, vulgar; sobretudo uma brincadeirota suja ou imoral,<br />

au grand jamais, nunca dos nuncas.<br />

Pelo contrário, havia uma conversa afável, agradável,<br />

em que cada um contava as novidades que conhecia, e<br />

todos se interessavam pela vida uns dos outros; era um<br />

convívio despreocupado que, nos dias de feriado, continuava<br />

depois da refeição, durante o tempo que quisessem.<br />

Depois a família se dispersava. Cada um ia para seu<br />

canto, mas com o coração cheio de amor.<br />

Esta é a família patriarcal, verdadeira base da sociedade.<br />

Na família patriarcal vemos bem o que é o mando,<br />

pois o filho podia ser maior de idade, mas quando o<br />

pai lhe dava uma ordem, ele obedecia contente porque<br />

se tratava da vontade de seu pai.<br />

A autoridade nunca deve procurar<br />

vantagem pessoal<br />

Nessa atmosfera de afeto, de mando, se exerce a influência,<br />

que é a atitude de alma pela qual alguém transmite<br />

não apenas uma convicção, mas um sentimento, um<br />

amor; ou comunica um ódio ao mal, e às vezes é indispensável<br />

saber comunicar o ódio ao mal. Enquanto não<br />

houver essa conjugação harmônica de ódio e de amor,<br />

ninguém terá aprendido a mandar.<br />

M. Shinoda<br />

Esta é a família patriarcal,<br />

verdadeira base da<br />

sociedade. Na família<br />

patriarcal vemos bem o que<br />

é o mando, o filho podia ser<br />

maior de idade, mas quando<br />

o pai lhe dava uma ordem,<br />

ele obedecia contente.<br />

Francisco Lecaros<br />

Bênção da Mesa - por Antonio Lecuona,<br />

Museu de Belas Artes, Vitória (Espanha)<br />

12


Esse ideal é tão grande, tão<br />

verdadeiro, que nós faremos<br />

tudo por ele. Faremos<br />

tudo uns pelos outros, e<br />

na hora de uns mandarem<br />

e outros obedecerem, um<br />

particular amor, uma particular<br />

solidariedade nos reúne.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1990<br />

Isto também se aplica na vida quotidiana de cada um<br />

de nosso Movimento, com os dirigentes imediatos dos<br />

serviços, das secções ou dos êremos 4 em que estão. E cada<br />

um com outro, irmão com irmão, igual com igual, vivendo<br />

do mesmo modo, com o mesmo princípio da harmonia<br />

proporcional, do ódio e do amor a coisas muito<br />

maiores do que nós, que nos excedem completamente.<br />

Nós não estamos juntos apenas, nem principalmente,<br />

porque nos queremos, mas essencialmente porque queremos<br />

Aquele para O qual nascemos, queremos a Deus,<br />

a Nossa Senhora, a Santa Igreja, queremos o Reino de<br />

Maria. E nós nos queremos porque queremos juntos o<br />

mesmo ideal.<br />

Esse ideal é tão grande, tão verdadeiro, tão perfeito,<br />

que nós faremos tudo por ele. Consequência: faremos<br />

tudo uns pelos outros, e na hora de uns mandarem e outros<br />

obedecerem, um particular amor, uma particular solidariedade<br />

nos reúne.<br />

O subalterno deve ter o pensamento seguinte: “Ele está<br />

mandando em mim para a glória de Nossa Senhora.<br />

Vou obedecer!” E o superior: “Estou exercendo a autoridade<br />

para a glória de Nossa Senhora. Com que cuidado,<br />

respeito, afeto, vou dirigir esta alma, que foi posta<br />

em minhas mãos para que eu mande nela. Como saberei<br />

escolher a hora e a palavra oportunas, no momento em<br />

que eu veja que este meu filho está em crise! E escolher<br />

até a inflexão de voz e o olhar oportunos, para ajudá-lo<br />

de dentro dos escombros de si mesmo a se reerguer e a se<br />

refazer! É preciso que ele sinta que estou com mais pena<br />

dele do que ele tem pena de si próprio, que isto não dá<br />

em moleza, mas em estímulo. Entretanto, quero que ele<br />

cumpra o seu dever!”<br />

Quando isso se dá e ele percebe que a autoridade não<br />

procura nenhuma vantagem pessoal, mas apenas a vitória<br />

da Causa da Contra-Revolução, aí ele terá aprendido<br />

a mandar.<br />

v<br />

(Extraído de conferências<br />

de 28/7/1993 e 30/07/1993)<br />

1) Cfr. 1Mc 3, 59.<br />

2) A partir do termo “megalomania” <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> criou a palavra<br />

“megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si<br />

mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.<br />

3) Pr 13, 24.<br />

4) A expressão êremo designava as casas onde se vivia em regime<br />

de recolhimento, dividindo o tempo entre o estudo, a<br />

oração e as atividades de apostolado. A origem desse nome<br />

liga-se a um fato ocorrido durante a estadia de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

em Roma, no ano de 1962. Seus companheiros de viagem,<br />

ao visitarem Assis, tinham estado também no Eremo delle<br />

Carceri, onde São Francisco e seus primeiros discípulos passavam<br />

períodos de retiro. Ao regressarem, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> notou<br />

neles uma ação benéfica da graça, fruto do curto período de<br />

recolhimento que haviam passado no Eremo delle Carceri. E<br />

pensou prolongar esses efeitos benfazejos, promovendo no<br />

interior de seu movimento, algo à maneira do eremo. Posteriormente,<br />

ao surgir em alguns a aspiração a uma vida de recolhimento,<br />

foi dada, por analogia, à instituição criada o nome<br />

de êremo.<br />

13


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Processo do<br />

pensamento – II<br />

Continuando o tema das “duas cabeças”, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> indica quais são<br />

os conflitos entre elas e aponta para a harmonia que deve reinar entre<br />

ambas, a fim de que o processo mental chegue a bom termo.<br />

T<br />

omando o assunto “duas cabeças” de um modo<br />

simples, é preciso considerar que quem domina<br />

nessas cabeças é o “eu”, ou é um “olho” que observa<br />

as duas cabeças e escolhe entre elas.<br />

Qual das duas cabeças é<br />

a mais importante?<br />

A esse respeito parece-me que se deve dizer o seguinte:<br />

a segunda cabeça, por muitos lados, é superior à primeira<br />

porque tem um contato com a realidade muito<br />

mais vivo. Ela pode corrigir muitas vezes a primeira cabeça,<br />

quando esta quiser simplificar uma coisa; pelo contato<br />

vivo com a realidade, a segunda cabeça terá uma<br />

percepção quase imediata de que aquilo não é verdade.<br />

Mas, considerada a coisa na ordem ontológica, a primeira<br />

cabeça é superior a essa evidência. A capacidade do<br />

raciocínio teórico é de um nível superior. De modo que,<br />

entre as duas cabeças, a que tem preponderância é a primeira.<br />

E a prova de que ela tem preponderância está em<br />

que, mesmo quando o “olho” dá a adesão à segunda cabeça,<br />

ele vai à primeira cabeça procurar um pretexto para<br />

essa adesão. O diabético que come açúcar, sabendo<br />

que isso faz mal, arranjará uma desculpa na primeira cabeça,<br />

dizendo, por exemplo: “A Medicina tem-se enganado<br />

tantas vezes que é possível que ela também esteja enganada<br />

no meu caso.” Se ele não tivesse essa noção ou<br />

algo semelhante, ele não conseguiria comer açúcar. Quer<br />

dizer, a primeira cabeça não cederia.<br />

O conflito entre as conclusões<br />

da primeira e da segunda cabeças<br />

A primeira cabeça tem uma função rectrix tal que,<br />

quando está colocada diante de uma determinada verdade<br />

que se apresenta a ela de maneira indiscutível, isso<br />

exerce uma espécie de império sobre o “olho”.<br />

Onde é que nasce a possibilidade do indivíduo ter certezas<br />

e, entretanto, haver evasões em outra direção?<br />

A certeza tem graus. E a evidência é uma certeza que<br />

tolhe todas as saídas em contrário. Mas, quando há graus<br />

de certeza menores, fica aberto um campo para, na segunda<br />

cabeça, existirem impressões em sentido contrário,<br />

não completamente dominadas. E então aparece<br />

uma espécie de dualidade de certezas. Enquanto o<br />

“olho” considera a primeira cabeça, ele tem uma certeza;<br />

quando olha para a segunda cabeça, encontra uma montagem<br />

de quadro que a certeza da primeira cabeça não<br />

foi bastante forte para extinguir.<br />

Então se cria uma situação de conflito para o “olho” que<br />

recebe de um lado uma certeza, mas, de outro, um conjunto<br />

de impressões que parecem combalir aquela certeza.<br />

Vivem nos flancos daquela certeza, mais ou menos como<br />

dentro de alguns peixes grandes vivem peixes peque-<br />

14


nos. Assim também, esses como que bichos ou micróbios<br />

nocivos vivem dentro das certezas do homem; essa espécie<br />

de certeza com sombras crepusculares vive no indivíduo.<br />

Esses dois fenômenos constituem a fonte de perplexidades<br />

para o “olho”. O “olho” fica colocado na situação em<br />

que se encontra o homem diante da Religião verdadeira.<br />

Pascal dizia que, nela, há bastante luz para que o homem<br />

que realmente queira ver a verdade a veja; mas há bastante<br />

sombra para que o homem que não a queira ver não a veja.<br />

Isso se pode dizer, não de cada um dos dados da primeira<br />

cabeça, mas do conjunto da produção da primeira cabeça.<br />

O defeito de cada cabeça e a posição<br />

certa do homem diante delas<br />

É errada a posição da pessoa que ache dever sempre<br />

dar primazia à primeira cabeça contra a segunda cabeça,<br />

sob o pretexto de que é sempre preciso privilegiar a razão<br />

contra os sentidos.<br />

Há um comprimento de onda em que isso é verdade,<br />

quando se trata das tais certezas de sombra, de penumbra,<br />

que são fenômenos viciosos da segunda cabeça.<br />

Mas a segunda cabeça tem também a função de controladora<br />

e complementadora da primeira cabeça, legitimamente.<br />

Porque a segunda cabeça não é um defeito<br />

no homem, mas uma riqueza. Ela não é um<br />

fruto do pecado original, embora tenha sido<br />

viciada por esse pecado. Mas a razão também<br />

foi atingida pelo pecado original.<br />

O verdadeiro é colher os dados da primeira<br />

cabeça e da segunda, confrontá‐los<br />

em grande parte pelo processo da “conversio<br />

ad phantasmata” 1 , e então ligá‐los para<br />

fazer conferir um com outro, a fim de formar<br />

uma certeza total e humana. Uma das<br />

coisas que, a meu ver, é muito importante<br />

dentro da vida intelectual e da vida interior<br />

é saber assegurar a colaboração das duas<br />

cabeças. Em todo estudo e trabalho essas<br />

duas cabeças devem operar juntas.<br />

O “olho” tem a função de temperar ambas<br />

as cabeças.<br />

Há muita gente que, por relaxamento,<br />

por displicência, deixa na segunda cabeça<br />

uma porção de impressões contraditórias<br />

com a primeira. Algumas válidas, outras<br />

não. Esta é uma atitude de alma muito má.<br />

É preciso ir sempre conferindo uns conhecimentos<br />

com os outros.<br />

Às vezes é preciso acudir à segunda cabeça<br />

para obrigá‐la a abandonar certos hábitos,<br />

categorias mentais que, depois de<br />

testadas, verificou‐se que não são válidas; é necessário<br />

quase que fazer uma reeducação e obrigá‐la a aceitar as<br />

coisas de outra maneira. Trata-se de uma espécie de pedagogia<br />

do “olho” em relação à segunda cabeça, que é<br />

muito necessária para o comum dos espíritos.<br />

Deve haver também a mesma violência em relação à<br />

primeira cabeça, quando ela é cartesiana e se recusa a<br />

aceitar os dados nuancés 2 da realidade, fornecidos pela<br />

segunda cabeça. A primeira cabeça muitas vezes é simplista,<br />

preguiçosa etc.<br />

A pessoa entregue à segunda cabeça<br />

tende a se fechar sobre si<br />

O mundo da segunda cabeça, quando não é controlado<br />

e fica entregue a si mesmo, forma uma espécie de universo<br />

fechado, obedecendo a uma espécie de dialética e de criteriologia<br />

próprias, cujo fim último é a satisfação dos instintos.<br />

É uma visão do universo relacionada apenas com a sua<br />

existência, com os dados fornecidos pela segunda cabeça.<br />

Se o homem não toma essa posição equilibrada entre<br />

primeira e segunda cabeças, ele assume uma posição errada<br />

diante de todos os problemas da vida. Se ele se deixou<br />

levar por esse falso dilema, está com o gérmen de<br />

todas as heresias posteriores. Por exemplo, o idealismo<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1980<br />

Mário Shinoda<br />

15


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

afirma que só existem as verdades do mundo interior —<br />

primeira cabeça; o realismo diz, ao contrário, que há somente<br />

as verdades do mundo exterior — segunda cabeça;<br />

e atrás de um e outro está a gnose.<br />

Conceito de conversio ad phantasmata<br />

O homem, porque tem unidade em todo o seu ser, pede<br />

a harmonização entre as ideias da primeira cabeça e<br />

a sensibilidade da segunda cabeça. Por causa disso, os<br />

conceitos abstratos nele só chegam ao seu termo final de<br />

elaboração quando são convertidos depois em imagens<br />

ou figuras. Essa conversão às imagens concretas é o que<br />

chamaremos de conversio ad phantasmata.<br />

Por exemplo, o belo se dá quando um conceito de ordem,<br />

contido em qualquer coisa, é reduzido a um certo<br />

fantasma, que dá ao homem, na segunda cabeça, uma<br />

sensação de ordem, mas uma sensação bonita, em que<br />

o fantasma produz uma ideia de beleza. Temos aí, nessa<br />

conversio ad phantasmata, a geração da beleza saída<br />

de dentro da ordem. De uma ordem que, enquanto apresentada<br />

num fantasma, dá uma ideia particularmente rica<br />

dessa ordem.<br />

Não adianta a primeira cabeça ter visto as coisas especulativamente.<br />

Enquanto isso não for transposto para a<br />

segunda cabeça, nos termos em que ela apanha e é capaz<br />

de degustar, há como que um segundo homem dentro do<br />

homem, que fica fundamentalmente insatisfeito.<br />

Tudo leva a crer que antes do pecado original a transição<br />

de uma cabeça para outra se desse com toda a harmonia.<br />

O fato de agora apresentar desarmonias tem algo<br />

de defectivo. Mas essas desarmonias, depois do pecado<br />

original, existem nos homens mais sadios; portanto, não<br />

são doentias, se bem que alguma doença possa acentuar<br />

a desarmonia decorrente do pecado original. Mas o processo,<br />

em si, não é absolutamente doentio ou defectivo.<br />

Alguns exemplos<br />

A afirmação de Camões de que “um fraco rei faz fraca<br />

a forte gente” é, também, uma espécie de conversio<br />

ad phantasmata, porque fala muito à segunda cabeça. O<br />

princípio filosófico, que está enunciado secamente aqui,<br />

e não falaria à segunda cabeça, seria: “Tal é o papel do<br />

rei dentro do Estado que, se ele for fraco, todo o Estado<br />

se debilita.”<br />

Outro exemplo é a frase de Churchill, referindo-se aos<br />

pilotos da Real Força Aérea inglesa: “Nos campos dos<br />

combates humanos, nunca tantos deveram tanto a tão<br />

poucos.” Seria o mesmo que dizer: “Povos, ouvi! Vamos<br />

aguentar duro, e somos pouquinhos!” É o que está no<br />

fundo disso, mas ao mesmo tempo não está.<br />

A relação da sensibilidade da segunda<br />

cabeça com a conversio ad phantasmata<br />

Que relação tem a sensibilidade da segunda cabeça<br />

com o processo de conversio ad phantasmata? Eu diria<br />

que esta parte da alma prepara — pela finura de suas<br />

percepções, pela delicadeza e acuidade de suas vistas —<br />

o conhecimento de uma série de analogias entre as coisas<br />

sensíveis que lhe caem debaixo dos olhos. Prepara assim<br />

grandes conjuntos, tão claros e bem feitos, que deles como<br />

que se desprende uma noção teórica bem elaborada.<br />

Então, esses quadros vão harmoniosamente preparados<br />

para a inteligência, de modo que esta produz, com eles,<br />

noções abstratas esplêndidas e muito ricas.<br />

Há uma espécie de processo de passagem do fantasma<br />

para o princípio, que é o paralelo harmônico do processo<br />

de passagem do princípio para o fantasma, e que faz com<br />

que uns se alimentem dos outros. Um processo não é o<br />

contrário do outro, mas se apoia no outro, como a força<br />

centrípeta e a centrífuga. De tal modo que as duas coisas<br />

possam caminhar juntas.<br />

Papel de todas as coisas sensíveis<br />

dentro da cultura<br />

Essa verificação nos leva mais longe, porque ficamos<br />

compreendendo melhor o papel da arte e de todas as coisas<br />

sensíveis dentro da cultura, que consiste em dizer a<br />

mesma coisa que – de outro modo – o raciocínio diz à razão,<br />

mas numa linguagem própria e quase intraduzível, à<br />

maneira de fantasmas para os sentidos.<br />

Exatamente uma de nossas críticas à arte moderna é<br />

que ela não respeita isso. Fazer, por exemplo, uma mesa<br />

de um bloco de madeira pesadíssimo, baseada numas<br />

pernas muito finas, mesmo que estas sejam confeccionadas<br />

de um material muito resistente, desafia essa parte<br />

da alma que é a segunda cabeça, a qual, vendo isso, fica<br />

hirta, com a certeza que a mesa vai cair.<br />

O termo do processo mental<br />

A partir das considerações que fizemos sobre a conversio<br />

ad phantasmata, vimos que era uma operação muito sutil,<br />

porque é a aplicação do conceito geral a um ser concreto,<br />

individualizado, de tal maneira que se possa compreender<br />

esse ser pela relação que ele apresenta com a ideia geral.<br />

Desse ponto de vista, qual é o termo da operação mental?<br />

Eu sei, por exemplo, o que é cadeira — conceito geral;<br />

analiso um objeto concreto e vejo que ele é cadeira.<br />

Então, quando digo que é cadeira e formo um juízo sobre<br />

isso, terminou a minha operação mental. Mas é preciso<br />

dizer que essa conversio ad phantasmata tem ainda<br />

16


Posso ter uma noção<br />

genérica do que é polidez.<br />

Se eu vejo uma pessoa<br />

ter uma atitude muito<br />

polida com outra, direi<br />

que o ato foi de polidez,<br />

e poderei acrescentar:<br />

“Polidez é isto!”<br />

Carolus<br />

Luis XIV recebe o Doge de Gênova -<br />

por Claude Guy Hallé, Museu do<br />

Palácio de Versailles, França<br />

alguns pontos reversíveis. Ao mesmo tempo em que digo<br />

que isto é cadeira, no sentido de que ao conhecer o indivíduo<br />

de uma espécie, cuja nota genérica está na minha<br />

mente, eu enriqueço de algum modo o conceito que está<br />

na minha mente. O próprio conceito universal se robustece<br />

de algum modo, pelo fato de eu ter conhecido aquilo<br />

que em concreto está debaixo de meus olhos.<br />

Esta consideração ainda é mais clara se eu a vejo em função,<br />

por exemplo, da polidez. Posso ter uma noção genérica<br />

do que é a polidez. Se eu vejo uma pessoa ter uma atitude<br />

muito polida com outra, direi que o ato foi de polidez,<br />

e poderei acrescentar: “Polidez é isto.” Tendo observado a<br />

polidez em ação, enquanto praticada, ela adquire aos meus<br />

olhos uma riqueza de conhecimentos que ela não tinha no<br />

puro conceito abstrato. E a conversio ad phantasmata não é<br />

apenas algo que morre no concreto, no individual, mas ainda<br />

deita uma última luz reflexiva e indireta sobre o geral.<br />

O termo do processo mental, a partir<br />

da segunda cabeça<br />

O termo do processo mental a partir dos dados da segunda<br />

cabeça é análogo ao descrito acima. A segunda cabeça<br />

apresenta os dados que vão se reunir no senso comum.<br />

A inteligência toma esses dados unificados e opera<br />

sobre eles, tirando dali um conceito geral. Mas depois<br />

de atingido este conceito geral, a inteligência entrega de<br />

novo o resultado de seu trabalho ao senso comum, que,<br />

por sua vez, vai conferir o conceito obtido com a realidade.<br />

Assim, a segunda cabeça passa a ver as coisas concretas<br />

de uma forma mais intelectualizada.<br />

A sabedoria e o processo mental<br />

Aí se entende o que vem a ser a sabedoria, aplicada<br />

ao processo mental. Diz‐se que a sabedoria é a tendência<br />

para o fim. Mas afirma‐se também que a sabedoria é o<br />

percurso harmonioso e íntegro de todo o processo mental,<br />

a respeito de uma determinada coisa; é o hábito de<br />

percorrer esse processo mental inteiro, de um modo devido,<br />

com relação a cada coisa.<br />

Qual é a noção por onde os dois conceitos são sabedoria?<br />

É que fazer o percurso íntegro do processo mental a<br />

respeito de uma determinada coisa, até o seu termo inteiramente<br />

maduro e acabado, é visar, no processo mental,<br />

o seu fim. E a um processo mental “afinalístico”, que<br />

para pelo meio, falta a virtude da sabedoria, a qual pede<br />

que cada coisa chegue a seu fim. De maneira que se entende<br />

uma espécie de duplo jogo da palavra sabedoria.<br />

Em última análise, sempre que a pessoa comete um erro,<br />

pratica uma falta de sabedoria, porque se o processo<br />

mental tivesse sido aplicado com toda a ponderação e toda<br />

a maturidade, ela não teria caído em erro. v<br />

(Extraído de conferências de 1, 12/12/1958; 13/5,<br />

8/10/1959; 2, 4/4/1963)<br />

1) Terminologia tomista que quer dizer: tornar imagens sensíveis<br />

(fantasmas) aquilo que por enquanto só são ideias.<br />

Cfr. Summa Theologiae, Ia., q. 84, a.7; q. 85, a. 1 e 8; q. 86, a. 1;<br />

q. 88, a 1; q. 89, a. 1 e 2; q. 111, a. 2; q. 118, a. 3; IIa-II, q. 175, a.<br />

5; In II Super Sent., d. 23 q. 2 a. 2; De veritate, q. 10, 2 ad 7; etc.<br />

2) Expressão francesa: matizados.<br />

17


C<br />

alendário<br />

1. Santa Beatriz da Silva e Menezes,<br />

Virgem (†Toledo, 1490).<br />

2. XXII Domingo do Tempo Comum.<br />

São Guilherme, Bispo e Confessor<br />

(†Dinamarca, 1070). Sensibilizado<br />

pela situação de abandono em<br />

que viviam os pagãos dinamarqueses,<br />

dedicou-se a evangelizá-los. Foi<br />

Bispo de Roskilde.<br />

dos Santos – ––––––<br />

3. São Gregório Magno, Papa,<br />

Confessor e Doutor da Igreja (†Roma,<br />

604). Considerado o último dos<br />

Papas do antigo Império Romano<br />

e o primeiro dos Papas medievais.<br />

Enfrentou a peste e a fome em Roma,<br />

bem como a devastação produzida<br />

pelos invasores Lombardos que<br />

chegaram a assediar a cidade e só<br />

foram contidos graças à diplomacia<br />

do Pontífice. Apesar dessas dificuldades, seu Pontificado é<br />

tido a justo título como um dos mais fecundos e grandiosos<br />

da História da Igreja.<br />

4. Santa Rosália, Virgem (†Palermo séc. XII).<br />

5. São Bertino, Confessor (†França, 700). Recebeu formação<br />

monástica no célebre Mosteiro de Luxeuil. Fundou<br />

o Mosteiro de São Pedro, na Ilha de Sithiu, no Artois. Desse<br />

mosteiro vinte e dois monges foram elevados às honras<br />

dos altares.<br />

6. Santo Eleutério, Abade e Confessor (†Roma, séc.<br />

VI). Abade do Mosteiro de São Marcos Evangelista, em<br />

Espoleto, com suas orações curou doentes e até ressuscitou<br />

um morto.<br />

7. São Clodoaldo, Confessor (†França, séc. VI). Filho<br />

do Rei Clodomiro e neto do Rei Clóvis e da Rainha Santa<br />

Clotilde, São Clodoaldo abandonou o mundo para servir<br />

somente a Deus, na solidão da vida contemplativa.<br />

Francisco Lecaros<br />

São Nicolau de Tolentino - por Antoine<br />

de Lonhy, Museu Nacional de Arte da<br />

Catalunha, Barcelona (Espanha)<br />

São Pedro Claver, Confessor<br />

(†Cartagena, 1654). Natural da Catalunha,<br />

ingressou aos 22 anos na Companhia<br />

de Jesus. Partiu como missionário<br />

para a Hispano-América, sendo<br />

ordenado sacerdote em Bogotá. Consagrou<br />

sua vida ao apostolado com<br />

escravos trazidos da África.<br />

10. São Nicolau de Tolentino,<br />

Confessor (†Itália, 1305). Pertenceu<br />

à Ordem dos Eremitas de Santo<br />

Agostinho e passou a maior parte<br />

da vida num convento, entregue a<br />

práticas austeras e à oração, na mais<br />

alta contemplação.<br />

11. São João-Gabriel Perboyre,<br />

Mártir (†China, 1840).<br />

12. São Guido, Confessor (†Brabante,<br />

Bélgica, 1012). Nascido numa<br />

família de camponeses, distribuiu seus poucos bens aos pobres<br />

e se consagrou inteiramente ao serviço de Deus. Peregrinou<br />

durante sete anos, visitando os principais santuários da<br />

Cristandade, dentre os quais, Roma e Terra Santa. Depois retornou<br />

à sua terra natal onde exerceu o ofício de sacristão na<br />

Igreja de Nossa Senhora de Laken. Muitos foram os milagres<br />

e prodígios que ocorreram em sua sepultura.<br />

13. São João Crisóstomo, Bispo, Confessor e Doutor<br />

da Igreja (†Ponto, Ásia Menor, 407). Após alguns anos de<br />

solidão no deserto, foi ordenado sacerdote em Antioquia.<br />

Nomeado Bispo e Patriarca de Constantinopla, esforçou-<br />

-se para moralizar o Clero. Denunciou também, corajosamente,<br />

abusos de autoridades civis. Foi, em consequência,<br />

desterrado duas vezes e acabou morrendo no exílio.<br />

14. Exaltação da Santa Cruz. A Cruz de Cristo é o troféu<br />

de sua vitória pascal sobre a morte. A tradição vê nela<br />

também o sinal do Filho do Homem, que aparecerá no céu<br />

para anunciar sua volta (Mt 24,30).<br />

São Materno, Bispo (†Trèves, séc. IV).<br />

8. Natividade de Nossa Senhora. Precisamente nove<br />

meses depois de comemorar a Imaculada Conceição da<br />

Virgem, a Igreja celebra a festividade do seu Nascimento.<br />

9. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />

15. Nossa Senhora das Dores.<br />

16. XXIV Domingo do Tempo Comum.<br />

São Cornélio, Papa, e São Cipriano, Bispo, Mártires<br />

(†séc. III).<br />

18


––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />

São Cornélio condenou os erros<br />

dos hereges novacianos, que promoveram<br />

um cisma na Igreja e procuraram<br />

depô-lo. Nessa emergência, foi apoiado<br />

e encorajado por São Cipriano, Bispo<br />

de Cartago (Norte da África). São<br />

Cornélio foi martirizado durante a<br />

perseguição de Galiano, no ano 252, e<br />

São Cipriano sofreu o martírio em 258.<br />

17. São Roberto Belarmino, Bispo,<br />

Confessor e Doutor da Igreja<br />

(†Roma, 1621).<br />

18. São José de Cupertino, Confessor<br />

(†Itália, 1663).<br />

19. São Januário (Bispo) e Companheiros,<br />

Mártires (†Pozzuoli, Itália,<br />

305). São Januário (também conhecido<br />

como San Gennaro), Bispo<br />

de Benevento, foi martirizado durante a perseguição de<br />

Diocleciano, juntamente com seis clérigos de sua diocese:<br />

Santos Sósio, Próculo, Festo, Desidério, Eutíquio e Acúrcio.<br />

O sangue de São Januário, conservado até hoje em uma ampola,<br />

liquefaz-se milagrosamente três vezes por ano, em datas<br />

certas dos meses de maio, setembro e dezembro.<br />

20. Santos André Kim Taegón, Presbítero, Paulo Chong<br />

Hasang e Companheiros, Mártires (†Coreia, 1839-1866).<br />

21. São Mateus Evangelista, Apóstolo e Mártir (†séc.<br />

I). Segundo antiga tradição, pregou na Palestina e depois<br />

na Etiópia.<br />

22. Santos Maurício e Companheiros, Mártires (†séc.<br />

III). São Maurício comandava a célebre Legião Tebana,<br />

constituída por cristãos do Egito. Por volta do ano 286, enquanto<br />

reinava Diocleciano, essa divisão estava servindo<br />

em território da atual Suíça, quando o comandante supremo,<br />

Maximiano, ordenou que todos os soldados oferecessem<br />

sacrifícios aos deuses pagãos. Os membros da Legião<br />

Tebana se recusaram e, por isso, foram mortos.<br />

23. XXV Domingo do Tempo Comum.<br />

São Lino, Papa e Mártir (†Roma, séc. I). Foi o segundo<br />

Papa, escolhido pelo próprio São Pedro para sucedê-lo.<br />

Sofreu o martírio por volta do ano 77, sendo sepultado ao<br />

lado de São Pedro.<br />

Sérgio Hollmann<br />

São Maurício - Catedral de<br />

Manresa (Espanha)<br />

24. São Vicente Maria Strambi,<br />

Bispo e Confessor (†Roma, 1824).<br />

Após ingressar na Congregação<br />

Passionista, que acabava de ser fundada,<br />

dedicou-se com grande sucesso<br />

às pregações populares, até que<br />

foi feito Bispo de Macerata e Tolentino.<br />

Recusou prestar juramento de<br />

fidelidade a Napoleão Bonaparte,<br />

que invadira e usurpara os Estados<br />

Pontifícios e, em consequência, foi<br />

desterrado durante 7 anos. Ofereceu<br />

sua vida a Deus para que o Papa,<br />

gravemente enfermo, não morresse,<br />

e foi atendido: São Vicente<br />

Maria morreu e o Papa recuperou a<br />

saúde.<br />

25. São Firmino, Bispo e Mártir<br />

(†Amiens, séc. IV).<br />

26. São Cosme e São Damião, Mártires (†Cilícia, Ásia<br />

Menor, séc. I). Sofreram o martírio durante a perseguição<br />

de Diocleciano (284-305).<br />

27. São Vicente de Paulo, Confessor (†Paris, 1660).<br />

28. São Venceslau, Mártir (†Boêmia, 929).<br />

São Lourenço Ruiz e Companheiros, Mártires (†Nagasaki,<br />

1633-1637). No século XVII, entre os anos de 1633<br />

e 1637, dezesseis mártires, Lourenço Ruiz e seus Companheiros,<br />

derramaram seu sangue por amor de Cristo, em<br />

Nagasaki, no Japão.<br />

29. São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos.<br />

30. XXVI Domingo do Tempo Comum.<br />

São Jerônimo, Confessor e Doutor da Igreja (†Palestina,<br />

419). Natural de Dalmácia, realizou seus estudos em<br />

Roma, cultivando com esmero a sabedoria latina. Aos 20<br />

anos recebeu o batismo. Depois, tomado pelo desejo da<br />

contemplação, entregou-se a uma vida ascética no Oriente,<br />

onde foi ordenado presbítero. De regresso a Roma, foi<br />

secretário do Papa São Dâmaso, até que, fixando sua residência<br />

em Belém da Judeia, viveu uma vida monástica<br />

dedicado a traduzir e explanar as Sagradas Escrituras, revelando-se<br />

como insígne doutor. De modo admirável foi<br />

partícipe de muitas necessidades da Igreja e, finalmente,<br />

avançado em anos, descansou na paz do Senhor.<br />

19


Gesta marial de um varão católico<br />

Gemendo e chorando<br />

A propósito de episódios ocorridos<br />

em sua infância, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pondera<br />

como esta vida é um vale de lágrimas,<br />

onde os sofrimentos, dramas e<br />

problemas são inúmeros e muitas<br />

vezes procuram nos abater.<br />

Jsfouche<br />

Na Salve Rainha, esta vida recebe o título de<br />

“vale de lágrimas”. Quando eu era jovem, ouvia<br />

na recitação da “Salve Regina” as palavras<br />

“in hac lacrimarum valle — neste vale de lágrimas”, e<br />

imaginava os vales que eu via frequentemente na serra<br />

existente no caminho de São Paulo a Santos, que naquele<br />

tempo se percorria de trem e não de automóvel.<br />

São serranias altíssimas e, às vezes, se via no cimo de<br />

um morro brotar uma mina de água de dentro de uma<br />

pedra, a qual percorria a superfície da pedra vagarosamente,<br />

sem pressa, formando pela espuma como que uns<br />

babados de cortina. Tinha-se a impressão de uma cortina<br />

de prata com uns bordados de renda, que descia do alto<br />

do morro até embaixo.<br />

Eu me lembrava do vale de lágrimas, e pensava: “Então<br />

essa vida é como a considera o autor da Salve Rainha<br />

1 ? Mas afinal de contas, se eu conseguir coisas desejáveis<br />

desta vida: ficar rico, ir à Europa para ver os monumentos<br />

do passado da Cristandade, a nobreza do presente,<br />

tomar contato com pessoas inteligentes e interessantes,<br />

que levam um tipo de existência toda especial, contemplar<br />

e oscular o caixão onde está sepultado Carlos<br />

Magno, ir à Place de la Concorde, em Paris, onde um amigo<br />

me mostrará qual o lugar exato onde estava a guilhotina<br />

em que Luís XVI e Maria Antonieta foram decapitados,<br />

rezar por eles, fazer um ato de execração contra o<br />

crime que então se cometeu, e de desagravo a Deus pelo<br />

horror desse crime, e depois continuar o passeio, isso<br />

não proporciona felicidade? É um vale de lágrimas ir a<br />

Paris, a Roma ou a Madri? Ou, pelo contrário, a afirmação<br />

que se faz na Salve Rainha, é equivocada?”<br />

Quando fiquei um pouco mais velho, compreendi.<br />

20


neste vale de lágrimas…<br />

Tudo na Terra é efêmero e passageiro<br />

Não é que a todo o momento esteja acontecendo uma<br />

coisa que nos arranque lágrimas; isso evidentemente não<br />

é verdade, graças a Deus. Mas quando ficamos um pouco<br />

mais velhos, começamos a pensar no passado e percebemos<br />

as ciladas pelas quais passamos já quando éramos<br />

meninos. Quantas ilusões, quantas desilusões, quantos<br />

bluffs, quantas esperanças rachadas!<br />

Mais tarde conhecemos pessoas — será um colega,<br />

um parente, um vizinho — que nos parecem pessoas perfeitas,<br />

e pensamos: “Se ficar amigo deste, eu terei a minha<br />

alma completamente satisfeita.” Aproximamo-nos<br />

dele e começamos uma amizade. De repente vemos que<br />

tudo é ilusão.<br />

Por quê? Como? Ele, de quem sou tão amigo, é de fato<br />

meu amigo? Ou, pelo contrário, quando vê qualquer<br />

coisa em mim um pouquinho superior a ele, fica ácido<br />

comigo? Se fosse meu amigo, se contentaria, se alegraria<br />

em ver-me superior a ele em algum ponto. Mas não: ele<br />

começa a querer mesquinhar o que estou fazendo ou dizendo,<br />

a caçoar, debicar e, sob pretexto de brincadeira,<br />

saem coisas amargas. Esse não é meu amigo, vou procurar<br />

outro; e constatamos que tudo é ilusão.<br />

O tempo passa e nos lembramos da expressão francesa:<br />

“Tout passe, tout casse, tout lasse… et tout se remplace<br />

— Tudo passa, tudo se quebra, tudo enfastia… e tudo se<br />

substitui.” Quer dizer, tudo é efêmero. A previsão do futuro<br />

aliada à lembrança das desilusões do passado constitui<br />

um vale de lágrimas.<br />

Uma desilusão nos tempos de infância<br />

Lembro-me de um episódio de meu tempo de menino<br />

de colégio, e que me marcou profundamente. Eu vinha<br />

do Colégio São Luís, situado na Avenida Paulista,<br />

descendo a pé pela Avenida Angélica até minha casa nos<br />

Campos Elíseos, conversando com um colega de minha<br />

idade que me parecia um bom rapaz.<br />

Por uma razão da qual não me recordo, nós tínhamos sido<br />

os primeiros a sair do colégio, de maneira que íamos na<br />

frente; depois outros grupos de alunos vinham descendo<br />

por aquela avenida. De repente ouço, bem atrás de nós, um<br />

menino que chamava por aquele que estava ao meu lado:<br />

— Fulano! Fulano!<br />

Olhei com o canto<br />

dos olhos para o que<br />

vinha ao meu lado,<br />

para ver o que ele<br />

fazia. Ele não respondia<br />

e fingia<br />

que não estava<br />

ouvindo. Mas o<br />

outro corria, enquanto<br />

nós dois<br />

não estávamos<br />

correndo, porque<br />

nunca gostei de<br />

andar muito depressa;<br />

eu caminhava devagar,<br />

e ele acertava o<br />

passo pelo meu.<br />

Resultado: a<br />

<strong>Plinio</strong> no Jardim da Luz<br />

voz do menino<br />

chamando pelo meu companheiro era cada vez mais insistente.<br />

Percebia-se que se tratava de um amigo que gostava<br />

muito dele e queria estar com ele para conversar.<br />

Poderíamos perfeitamente descer conversando os três, é<br />

uma coisa banal. Eu nem tinha notado aquele menino no<br />

Colégio São Luís, no meio daquela multidão de alunos,<br />

mas pouco me incomodava; e pensava: “Deixa entrar um<br />

outro na conversa, não tem importância nenhuma.”<br />

O meu amigo, afinal, quando notou que a voz estava<br />

se tornando mais próxima, parou, voltou-se de costas e<br />

disse num tom amargurado:<br />

— Hum! Mas que pressa e que mania de falar comigo,<br />

que coisa cacete! O que quer comigo esse tipo?<br />

Pensei: “Mas ele retribui uma simpatia desta maneira?<br />

Amanhã vai chegar minha vez. Ele de repente fica<br />

saturado da minha companhia como se saturou daquele<br />

menino. Isso é um amigo?”<br />

E o que se deu foi o contrário: antes dele se saturar da<br />

minha companhia, eu me saturei da dele e rompi as relações<br />

com ele como se arranca uma folha morta de uma<br />

árvore.<br />

Quando se vai ficando moço compreende-se como as<br />

dificuldades, as incompreensões e as incompatibilida-<br />

21


Gesta marial de um varão católico<br />

des pelas quais passam os adultos são ainda mais difíceis.<br />

Mesmo no seio de uma família feliz aparecem problemas<br />

que preocupam o esposo ou a esposa.<br />

Tudo isso se dá porque a vida é um vale de lágrimas.<br />

Lágrimas ora pelo que está acontecendo, ora na previsão<br />

do que pode vir a suceder.<br />

O tormento trazido por uma doença<br />

Por exemplo, as doenças. Às vezes ouvimos falar de alguém<br />

que contraiu um horrível mal, que o faz sofrer muito.<br />

São verdadeiros fantasmas. Precisamos entender que<br />

de um momento para outro uma doença dessas nos agride.<br />

Algo assim se passou comigo quando eu era pequeno.<br />

Acordei fraquíssimo pela manhã. Isso não acontecia comigo;<br />

como todo menino, eu acordava alegre, me levantava,<br />

ia dizer bom-dia a papai, mamãe, aprontava-me e<br />

começava a vida. Nesse dia eu não conseguia nem sentar-<br />

-me na cama.<br />

Sendo meu quarto contíguo ao dos meus pais, pus-me<br />

a chamar:<br />

— Mamãe, mamãe — e ela veio.<br />

Eu disse a ela:<br />

— Estou me sentindo muito mal. Não sei o que eu tenho.<br />

— O que você sente?<br />

— Uma dor de garganta horrorosa.<br />

Ela mandou-me abrir a boca, viu que eu estava com<br />

uma inflamação medonha na garganta e chamou o médico.<br />

Este era homeopata. Tratava-se de um homem alto,<br />

teso, saudável, rubicundo, vermelho, tendo num dos<br />

dedos um anel com uma esmeralda linda. A esmeralda<br />

era o distintivo dos médicos. Eu, que gosto muito de pedras,<br />

quando estava com ele nunca perdia oportunidade<br />

de olhar para a esmeralda.<br />

Ele entrou no meu quarto, examinou-me e saiu com<br />

mamãe.<br />

Eu não fiquei sabendo o que eu tinha, e estava piorando<br />

cada vez mais.<br />

Web Gallery of Art<br />

Juízo Final (detalhe) - por Fra Angélico, Museu de São Marcos, Florença (Itália)<br />

22


Logo depois, ela veio e me contou que o médico disse<br />

a ela o seguinte: “A senhora dê para o <strong>Plinio</strong> tais remédios<br />

de hora em hora. Pouco antes das três da tarde, esteja<br />

próxima a ele com uma toalha no colo, pois nesta hora<br />

ele deve expelir da garganta uma membrana infeccionada.<br />

Ele está com uma doença chamada crupe ou angina<br />

diftérica. Se ele expelir a membrana, está curado.<br />

Quando ele a expelir, feche a toalha porque a membrana<br />

está infeccionada; e mande queimar a toalha<br />

com a membrana e tudo o mais. Aí o <strong>Plinio</strong><br />

está salvo. Se não for assim, terá que se fazer<br />

uma operação muito dolorida e perigosa.”<br />

Quando chegou mais ou menos três<br />

horas, comecei a dar sinais de mal-estar,<br />

inquietação. Ela, que era muito previdente,<br />

tinha mandado abrir no quintal da casa<br />

uma espécie de tumulozinho para essa<br />

membrana. Os micróbios ficariam<br />

sepultados ali debaixo da terra.<br />

Quando afinal de contas expeli a<br />

membrana, ela mandou uma criada<br />

ir correndo jogar nesse lugar a toalha<br />

com a membrana e pôr terra<br />

em cima, o que foi feito rapidamente.<br />

Depois ela foi falar pelo telefone<br />

com o médico, para contar que estava<br />

tudo em ordem.<br />

Quando o médico atendeu desde<br />

o seu consultório, mamãe disse<br />

a ele:<br />

— <strong>Dr</strong>. Murtinho…<br />

— Não precisa me dizer o resto<br />

porque pela sua voz eu já vejo. A senhora está contente<br />

porque a membrana foi expelida.<br />

— Muito obrigada, foi um alívio.<br />

Pode-se imaginar o que ela sofreu durante essas horas.<br />

Sofreu muito mais do que eu —não tem comparação!<br />

—, na previsão do que podia acontecer. Essa previsão<br />

é um tormento, a vida é mesmo um vale de lágrimas.<br />

Por isso, a única esperança verdadeira que o homem<br />

tem nesta vida é a de, no momento em que fechar os<br />

olhos com a consciência em paz, alcançar a felicidade<br />

eterna.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 24/9/1994)<br />

1) A autoria da Salve Rainha é atribuída ao monge Germano<br />

Contracto que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro<br />

de Reichenan, na Alemanha.<br />

Nossa Senhora Auxiliadora<br />

Héctor Mattos<br />

23


Dona Lucilia<br />

Fotos: J. Dias; Sérgio Miyazaki<br />

Dona Lucília e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />

década de 1960, por ocasião do<br />

encerramento de uma Semana<br />

de Estudos de Catolicismo<br />

24


Concórdia profunda<br />

entre mãe e filho<br />

Dona Lucilia, sempre muito bondosa e condescendente para com todos,<br />

sabia, entretanto, ponderar os defeitos e qualidades de cada um.<br />

Dona Lucilia era muito observadora, mas também<br />

muito admirativa. Em geral, quando se<br />

diz de alguém que é muito observador, tem-se<br />

a impressão de que ele está à procura dos defeitos dos<br />

outros. Se encontrou um defeito, fica satisfeito; se não<br />

encontrou, fica decepcionado, porque a finalidade da investigação,<br />

da análise, é encontrar os defeitos.<br />

Essa é uma posição antipática e que não corresponde<br />

à justiça. Diante dos outros não se deve procurar apenas<br />

os defeitos nem somente as qualidades, mas deve-se procurar<br />

a verdade.<br />

Como é Fulano? Ele tem tais qualidades e eu me alegro;<br />

vou ainda examinar melhor para ver se encontro<br />

nessas virtudes tesouros ainda maiores. Se encontrei<br />

poucas qualidades, devo perguntar o seguinte: se ele andasse<br />

bem, que virtudes floresceriam nele?<br />

Posição justa e equilibrada<br />

Quer dizer, se essa planta, que é tal ou qual colega<br />

meu, fosse bem regada, bem tratada, se quisesse — planta<br />

não tem vontade, mas emprego aqui uma metáfora<br />

—, como ela se desenvolveria?<br />

Há vegetais que têm uma como que vontade. Por<br />

exemplo, o girassol, que gira constantemente de maneira<br />

a estar recebendo a luz do Sol; essa procura do Sol concorre<br />

muito para que o girassol tome o aspecto e o modo<br />

de ser que o caracteriza. Assim também, os homens adquirem<br />

um modo de ser, um aspecto, porque giram muito<br />

à procura de tais qualidades ou comprazendo-se com<br />

tais defeitos, e gostando de ser daquele jeito.<br />

Então, devemos procurar nos outros essas qualidades<br />

e esses defeitos para ter uma visão global verdadeira.<br />

Não uma visão deformada por um otimismo idiota:<br />

tal indivíduo tem defeitos que saltam aos olhos, e eu, como<br />

um bobo, só vou ver os lados bons e não os ruins; mas<br />

também não devo ser uma pessoa de uma injustiça, uma<br />

antipatia flagrante, que está apenas à procura do defeito<br />

e, quando encontra qualidade, fica como que desapontada.<br />

É preciso ter a verdadeira posição justa e equilibrada<br />

diante das coisas.<br />

Essa era a posição que mamãe procurava ter e que,<br />

a meu ver, ela conseguia possuir muito bem, magnificamente,<br />

com muita bondade, muita condescendência.<br />

Diante de tudo que se diz neste auditório de útil, de<br />

bom, no sentido da Doutrina Católica, se ela aqui estivesse<br />

teria muita alegria. Se notasse da parte de um ou<br />

de outro algum momento de dissipação, de distração, de<br />

indiferença, ela ficaria apreensiva. E conversando depois<br />

comigo ela diria:<br />

— Meu filho, aquele enjolras 1 , que estava com tal pulôver<br />

— seria uma característica para descrevê-lo —, como<br />

é que vai?<br />

Eu responderia:<br />

— Mamãe, eu penso assim.<br />

— É verdade. Mas olhe, ele também tem tal coisa;<br />

preste atenção porque, de repente, pode acontecer alguma<br />

coisa.<br />

Ou falaria o contrário:<br />

— Ele é muito bonzinho, mas é fraco e pode ser arrastado<br />

por gente ruim para o mal, a qualquer momento.<br />

Defenda-o muito, apoie-o muito.<br />

25


Dona Lucilia<br />

Sobretudo, ela me diria:<br />

— Você, meu filho, quando falar em público fale pouco<br />

— isso ela afirmava várias vezes —, porque quem fala<br />

em público pensa que os outros estão gostando mais<br />

do que o orador imagina. Então, quando você se dirigir<br />

aos enjolras, fale pouquinho.<br />

E eu a ouviria de bom grado.<br />

Numa conferência deve-se falar<br />

pouco, mas há exceções...<br />

Dona Lucilia com 91 anos<br />

Quando conversávamos,<br />

mamãe, se não concordasse<br />

com algo, não dizia nada,<br />

ficava quietinha e mudava<br />

de assunto. Mas levava<br />

aquilo para pensar.<br />

Recordo-me de uma coisa engraçada.<br />

Certa ocasião, fui fazer uma conferência e,<br />

antes de sair de casa, ela me disse:<br />

— Filhão, lembre-se disso, hein! Falar<br />

pouco. Quando você fizer uma reunião e<br />

falar pouco, os outros saem tristes: “Foi<br />

pena que durou pouco a reunião!” É uma<br />

honra para o conferencista terem achado<br />

que a conferência dele durou pouco. Mas<br />

se, quando você tiver acabado de falar, todo<br />

mundo disser: “Que facilidade ele tem<br />

para falar, e como fala longamente, hein!<br />

Até cansa as pessoas.” Aí é o seu fracasso.<br />

Então fui para a reunião e, pensando no<br />

que ela disse, fiz uma conferência breve demais,<br />

e estava ali um senhor — eu não sabia —<br />

que fora para lá pela primeira vez, para me ouvir<br />

falar em público. Terminada a exposição, esse senhor<br />

saiu uma fera, dizendo:<br />

— Mas não tem propósito! Eu saio de minha casa à<br />

noite — trabalhei o dia inteiro! — para ouvir esse homem<br />

falar, e ele me fala uns quinze minutos! Então seria<br />

melhor que ele dissesse que não está com vontade de falar,<br />

ou está doente, cansado, e não aceitasse fazer a conferência.<br />

Mas não obrigue a pessoa sair de casa para ouvir<br />

uma coisinha.<br />

E eu vi as contradições: a pessoa precisa pautar com<br />

muito cuidado aquilo que faz, porque alguns podem<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante<br />

uma conferência<br />

na década de 1990<br />

26


gostar muito, outros podem não gostar. Daí por diante,<br />

quando esse senhor estava presente, eu alongava um tanto<br />

a conferência. Fizemos bom relacionamento, e quando<br />

ele morreu, há alguns anos, as nossas relações estavam<br />

inteiramente em paz.<br />

Assim as coisas andam e se movem.<br />

Quando conversávamos, mamãe, se não concordasse<br />

com algo, não dizia nada, ficava quietinha e mudava de<br />

assunto. Mas levava aquilo para pensar. E alguns dias depois,<br />

encontrando-se comigo ela me dizia: “Filhão, a respeito<br />

de tal negócio, você disse isso, eu falei aquilo; e eu<br />

queria saber tal coisa.”<br />

E eu, com todo o respeito, toda a reverência que tinha<br />

a ela, fosse qual fosse o assunto, falava e punha os pingos<br />

nos is, e a coisa terminava muito bem. Era a concórdia<br />

profunda entre mãe e filho.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 7/1/1995)<br />

1) Denominação carinhosa com a qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se referia aos<br />

seus jovens discípulos de então, cujas deficiências se mostravam<br />

mais acentuadas que as de “geração nova”. Eram, entretanto,<br />

igualmente mais propensos ao maravilhamento e a<br />

uma maior confiança na graça divina, estando compenetrados<br />

de suas fraquezas.<br />

27


Hagiografia<br />

São Jerônimo<br />

Num período onde o patriciado e a nobreza romana ganharam novo<br />

brilho devido à influência monástica, São Jerônimo mostrou-se<br />

um zeloso apóstolo e um exímio lutador pela glória virginal de Maria.<br />

Dotado por Deus com o carisma da polêmica, ele apontou o mal<br />

que há na heresia para depois falar a respeito da verdade.<br />

Arespeito de São Jerônimo, Confessor e Doutor<br />

da Igreja, Dom Guéranger, no “L’Année Liturgique”<br />

1 , diz o seguinte:<br />

Estranho fenômeno para o historiador sem fé: eis que<br />

em torno deste dálmata, na hora onde a Roma dos Césares<br />

agoniza, se irradiam subitamente os mais belos nomes da<br />

Roma antiga. Crer-se-ia que eles estavam extintos, desde o<br />

dia onde se tornou obscura entre as mãos dos parvenus da<br />

glória a cidade rainha.<br />

Nos tempos críticos em que, purificada pelas flamas que<br />

os bárbaros incendiaram, a capital que eles deram ao mundo<br />

vai retomar seus destinos e reaparece, como por seu direito<br />

de nascimento, para fundar novamente a cidade eterna.<br />

A luta se tornou outra, mas seu lugar continua à testa<br />

do exército que salvará o mundo. Raros são entre nós os sábios,<br />

os poderosos, os nobres, dizia o Apóstolo, quatro séculos<br />

antes. Numerosos eles são em nosso tempo, protesta<br />

Jerônimo, numerosos entre os monges.<br />

O patriciado e a nobreza ganham<br />

novo brilho na Roma Eterna<br />

O pensamento está expresso com uma complexidade<br />

um pouco século XIX e, portanto, creio que não muito<br />

clara para a geração atual. Mas, em duas palavras, quer<br />

dizer o seguinte:<br />

Roma estava decaindo. As antigas famílias, às quais<br />

Roma devia a sua antiga glória política, não a estavam<br />

mais dirigindo devido ao seguinte fenômeno: o pessoal<br />

adventício, que dominara Roma, havia deixado numa<br />

certa penumbra as famílias antigas; mas essas famílias —<br />

que no começo do Cristianismo, quando elas dirigiam a<br />

sociedade civil, eram pouco numerosas entre os católicos<br />

—, na época de São Jerônimo, no fim do Império Romano,<br />

eram muito numerosas entre eles.<br />

Quer dizer, a nobreza e o patriciado romanos tinham<br />

um papel de vanguarda na direção dessa segunda Roma,<br />

que não era mais a Roma dos Césares, que estava morrendo,<br />

mas a Roma dos Papas, que estava nascendo. E<br />

eles se encontravam na liderança da vida religiosa e da<br />

expansão católica no mundo.<br />

A falange aristocrática constituiu o melhor do exército<br />

monástico.<br />

Ou seja, o melhor das vocações para monges era de<br />

nobres.<br />

Nesses tempos de sua origem no Ocidente…<br />

Em que o monaquismo, que já existia no Oriente, começou<br />

a nascer no Ocidente.<br />

… ela lhe deixará para sempre seu caráter de antiga<br />

grandeza.<br />

O caráter da antiga grandeza nobiliárquica comunicou<br />

algo para a dignidade do monaquismo.<br />

Mas nas suas fileiras, a título igual de seus pais e de seus<br />

irmãos, se veem a virgem e a viúva, ao mesmo tempo o esposo<br />

e a esposa. É Marcela, que será para ele o auxílio na<br />

tradução das Escrituras. E, como ela, Fabíola, Paula e outras<br />

que lembram os grandes ancestrais, os Camilii, os Fabii,<br />

os Scipiones.<br />

Camilos, Fábios e Cipiões eram grandes famílias nobres.<br />

E, em linguagem mais simples, Dom Guéranger<br />

menciona nobres — como viúvas, virgens, ou esposo e<br />

esposa, sendo separado o casal — que iam viver no estado<br />

monástico, conferindo-lhe algo de sua antiga grandeza.<br />

28


Gustavo Kralj<br />

São Jerônino (por Tadeo di<br />

Bartollo) - Metropolitan Museum<br />

of Art, Nova Iorque (EUA)<br />

29


Hagiografia<br />

Francisco Lecaros<br />

São Jerônimo não era apenas o<br />

grande herói que lutava contra<br />

os hereges, mas também salvava<br />

da podridão o que Roma tinha<br />

de melhor, as antigas famílias<br />

aristocráticas, e as conduzia<br />

para a conquista do mundo,<br />

para a Roma dos Papas, e não<br />

mais para a Roma dos Césares.<br />

São Jerônimo (por Gerard David) - Galeria<br />

de Arte Palazzo Bianco, Gênova (Itália)<br />

São Jerônimo, vingador da glória<br />

virginal de Maria<br />

Nesta altura, a refutação de Elvidius, que ousava pôr em<br />

dúvida a perpétua virgindade da Mãe de Deus, revelou em<br />

Jerônimo o polemista incomparável, do qual Joviniano, Venâncio,<br />

Pelágio e outros ainda teriam que experimentar o<br />

vigor.<br />

Eram hereges que São Jerônimo fustigou vigorosamente.<br />

Como recompensa, entretanto, de sua honra vingada,<br />

Maria conduzia a ele todas essas almas nobres. Ele as dirigia<br />

no caminho da virtude e, pelo sal das Escrituras, as preservava<br />

da corrupção da qual morria o Império Romano.<br />

Então, aqui se completa esse bonito pensamento que<br />

explica a tarefa de São Jerônimo.<br />

Um apóstolo da alta aristocracia<br />

Ele não era apenas o grande herói que lutava contra<br />

os hereges, mas também salvava da podridão o que Roma<br />

tinha de melhor, as antigas famílias aristocráticas, e<br />

as conduzia para a conquista do mundo, para a Roma<br />

dos Papas, e não mais para a Roma dos Césares. O santo<br />

realizava isto por meio de assistência espiritual à alta<br />

aristocracia romana, que já não tinha poder político, mas<br />

ainda era fabulosamente rica naqueles tempos.<br />

Qual é a consideração que isto nos traz ao espírito?<br />

São Jerônimo tinha em mente a importância das elites<br />

para a direção da sociedade. E ele soube compreender<br />

que um movimento católico que vise levar o mundo inteiro<br />

para a Igreja, a cristianização do mundo, deve contar<br />

com todas as classes sociais, levando cada uma a dar o<br />

contributo que lhe é específico. Portanto, a classe aristocrática<br />

deve prestigiar a expansão apostólica com o valor<br />

do nome, da fortuna, mas sobretudo com o valor de certo<br />

prestígio indefinido, que se ligava merecidamente às<br />

grandes famílias da aristocracia romana.<br />

Quer dizer, ele compreendeu que, acionando as classes<br />

mais influentes, havia um meio para acionar toda a<br />

sociedade e para obter a cooperação dela para a luta pelo<br />

Reino de Cristo.<br />

Austero, polemista e zeloso<br />

pela glória de Deus<br />

No breviário antigo consta um elogio a São Jerônimo,<br />

que convém comentar:<br />

Molestou os hereges com acérrimos escritos.<br />

Existiram santos dotados de carismas extraordinários<br />

para a posição polêmica. Um deles foi São Jerônimo. De<br />

fato, ele representa, por excelência, na Igreja, o espírito<br />

da polêmica. Os seus escritos são de uma energia, para<br />

não dizer de uma violência, que pareceria desaboto-<br />

30


Gustavo Kralj<br />

ada se não fosse ele um santo. E para as menores questões<br />

ele dava respostas de fogo tremendas, e deixava todo<br />

mundo tremendo diante dele.<br />

Certa ocasião, Santo Agostinho chegou a escrever-lhe<br />

uma carta muito engraçada, dizendo que, com metade<br />

da energia empregada, já cederia diante de São Jerônimo.<br />

Li uma missiva de São Jerônimo a uma dirigida dele,<br />

uma santa, que lhe mandou, aliás, um lindo presente:<br />

pombinhos e cerejas; e ele respondeu perguntando se ela<br />

queria corromper a austeridade dele, e afirmou que imediatamente<br />

deu aquilo para os pobres, porque era um<br />

homem penitente.<br />

Isto é o zelo da Casa de Deus, que devora o homem,<br />

uma das formas mais características, portanto, das mais<br />

santas, mais legítimas dessa virtude. Desde que seja feito<br />

por amor de Deus, e não por ressentimentos pessoais —<br />

porque com ressentimentos a coisa muda de aspecto —,<br />

isto é uma coisa santíssima, é ser um gládio vivo de Deus.<br />

Não conheço elogio maior do que dizer de alguém que<br />

ele é a espada viva de Deus.<br />

A polêmica visa sobretudo<br />

influenciar os indecisos<br />

Em matéria de polêmica, é preciso sempre prestar<br />

atenção no seguinte: os espíritos modernistas consideram<br />

a existência de duas figuras, uma que diz “A” e outra<br />

que diz “B”; eles não tomam em consideração um terceiro<br />

elemento, que é talvez o mais importante no caso:<br />

o público que assiste à discussão.<br />

Toda polêmica, ainda que seja feita a portas fechadas,<br />

vai repercutir fora e atuar sobre pessoas que estão na dúvida,<br />

e que se trata de convencer.<br />

Quando se discute, por exemplo, com um pastor protestante,<br />

o mais importante não é convertê-lo, mas evitar<br />

que os católicos fiquem protestantes. Em segundo lugar,<br />

converter os protestantes menos empedernidos que<br />

ali estão. E por fim converter o pastor.<br />

Ao homem em risco fala-se usando<br />

a linguagem do medo<br />

Imaginemos que um amigo nosso esteja se debruçando<br />

perigosamente sobre um parapeito pequeno que dá<br />

para um abismo. Nós não lhe diremos: “Fulano, venha<br />

para cá, porque o chão é de mármore!” Mas falaremos:<br />

“Cuidado! Caindo nesse abismo você arrebenta a cabeça!”<br />

Porque o modo de afastar um indivíduo imediatamente<br />

do perigo e da imprudência é mostrar-lhe o mal<br />

que lhe sucederá e não o bem.<br />

Quem de nós haveria de dizer para uma pessoa que,<br />

por exemplo, está brincando com um revólver imprudentemente:<br />

“Fulano, você quer ir jogar xadrez?”, para ver<br />

se ele tira o dedo do gatilho e depois lhe tiramos o revólver.<br />

Seria de nossa parte uma atitude idiota. Poderíamos<br />

falar-lhe: “Fulano! Olhe esse revólver! Você pode se ferir<br />

gravemente ou me ferir!”<br />

Quer dizer, normalmente, ao homem<br />

em risco, tentado, deve-se falar usando a<br />

linguagem do medo. Isto é, sobretudo, verdadeiro<br />

no que diz respeito à Doutrina Católica,<br />

porque os homens, pela sua maldade,<br />

são mais fáceis de se mover pelo medo<br />

do Inferno, do que pela apetência do Céu;<br />

pelo temor das más consequências, do que<br />

pelo bem que pode acontecer. E é preciso,<br />

portanto, como remédio de urgência,<br />

apontar o mal, a falsidade, que há no erro<br />

para depois falar a respeito da verdade.<br />

Assim se compreende a posição polêmica<br />

de São Jerônimo.<br />

v<br />

(Extraído de conferências<br />

de 30/9/1964 e 29/9/1966)<br />

A última Comunhão de São Jerônimo (por Botticelli) -<br />

Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque (EUA)<br />

1) GUÉRANGER, Prosper. L’Année Liturgique.<br />

14. ed. Tours: Alfred Mame et fils, 1922,<br />

v.V, p. 327-339.<br />

31


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, apóstolo do pulchrum<br />

Fotos: Dario Sanches / Cláudio Dias Timm<br />

Uma joia dotada de asas<br />

Quem não se encanta ao contemplar o voo de um beija-flor?<br />

Tão pequenino e tão belo, ele nos dá a ideia de uma pedraria voando,<br />

uma joia dotada de asas.<br />

Há animais que podem ser muito frágeis, mas<br />

na sua fragilidade são também muito ágeis. E<br />

a agilidade lhes dá uma capacidade de avançar,<br />

de fugir e de voltar, que constitui a sua força. Uma<br />

ave que me dá muito essa impressão é o beija-flor.<br />

Analisando um beija-flor<br />

Lembro-me de uma vez em que eu estava trabalhando<br />

num terraço e, de repente, um beija-flor parou e começou<br />

a sugar o néctar que ele encontrava nas flores de<br />

uma trepadeira. Era um beija-flor de muito bom gênio<br />

e que se contentava com pouco, porque não parecia haver<br />

muito néctar naquelas esquálidas flores. Mas, enfim,<br />

o beija-flor sugou flor por flor. Interrompi o que eu estava<br />

fazendo e fiquei, em silêncio, olhando o beija-flor,<br />

com o cuidado de não o atrapalhar.<br />

Ele, tão inflexível em voar, na hora de sugar tremia e<br />

avançava, com mil movimentos, em torno da flor, tirando<br />

todo o néctar que podia e batendo com as asas de tal maneira<br />

que nenhum dos movimentos imitava exatamente o<br />

outro, e nenhuma das vibrações repetia a outra; parecia<br />

um instrumento tocando uma música sempre nova.<br />

Eu pensava: “Ele tem lá suas regras, que não conheço,<br />

mas afinal quando ele vai acabar?” Então sugava, sugava,<br />

e, de repente, da maneira mais inopinada, tomando<br />

conhecimento de que não havia nada, ou quase nada,<br />

a aproveitar da flor, deixava-a de um modo tão completo<br />

que era como se nunca aquela flor tivesse existido para<br />

ele; e, sem vacilação, ia direto para outra flor.<br />

Então eu refletia: “É a própria imagem da decisão.<br />

Quando é hora de sugar, faz força e suga; quando é hora<br />

de partir, abandona, rejeita e deixa a coisa reduzida a<br />

bagaço.”<br />

Aquele beija-flor não conhecia o sentimento brasileiro<br />

de saudade: ele abandonava cada flor sem rancor, mas<br />

também sem saudade. Eu tinha a impressão de que depois<br />

de tirar o último néctar ele ficava meio liberado, e<br />

então voava e recomeçava em outro lugar.<br />

O beija-flor não conhece<br />

o sentimento brasileiro de<br />

saudade: ele abandona cada<br />

flor sem rancor, mas também<br />

sem saudade. Depois de<br />

tirar o último néctar ele fica<br />

meio liberado, e então voa e<br />

recomeça em outro lugar.<br />

32


33


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, apóstolo do pulchrum<br />

Uma joia preciosa criada por Deus<br />

O voo do beija-flor tem certa beleza, mas é tão rápido<br />

que não dá tempo de se contemplar. Porém, quando ele<br />

para junto a uma flor, movimenta as asas e começa a sugar<br />

o néctar, a beleza de suas penugens, a riqueza das penas<br />

furta-cor são ainda mais ressaltadas.<br />

Ele fica parecido a uma joia preciosa que Deus criou<br />

para o homem poder olhar e nunca segurar, e ter o encanto<br />

da coisa fugidia que passa, a qual, neste vale de lágrimas,<br />

é para nós uma esperança do Céu.<br />

Uma outra característica do beija-flor é que ele foi feito<br />

para ser fugaz. A Providência criou nesta Terra de exílio<br />

uma porção de coisas fugazes ótimas — que deixariam<br />

de ser ótimas se não fossem fugazes —, para nos<br />

dar uma tinta do Céu. Sendo aqui Terra de exílio, elas<br />

não podem dar essa impressão estavelmente. Mas Deus<br />

teve pena de nós e mandou um vaga-lume do Céu para a<br />

Terra, para acender e apagar, fazendo-nos entender algo<br />

do Céu.<br />

O momento auge da vida do beija-flor<br />

Ele escolhe o que deve querer<br />

e acerta o material necessário<br />

para fazer aquilo que está na sua<br />

natureza fazer. Uma vez que se<br />

lança sobre uma flor, tira de dentro<br />

dela todo o seu suco delicioso,<br />

fica com um aroma de flor e uma<br />

beleza de pedra preciosa.<br />

Quando o beija-flor começa a sugar o néctar de uma<br />

flor, em primeiro lugar se percebe o tamanho do bico,<br />

o qual é propriamente bonito quando imerso na flor. O<br />

ponto máximo, o auge da vida do beija-flor é o momento<br />

em que ele suga o néctar de dentro da flor.<br />

De maneira que aquela agilidade de estar o tempo todo<br />

voando e absorvendo o néctar, aquele poder de conquista<br />

com que ele mete o bico na flor, e, de outro lado,<br />

a beleza do movimento de suas asas, fazem dele uma espécie<br />

de joia volátil.<br />

É o relacionamento dele com a flor que o põe nessa<br />

postura. Quer dizer, no momento em que ele faz aquilo<br />

para o que foi criado, todo o seu esforço faz ver o que há<br />

de excelente dentro dele e o apresenta no seu melhor aspecto;<br />

o mais louvável que há no plano de Deus a respeito<br />

do beija-flor se vê ali.<br />

Voo radical<br />

Seu voo é parecido com uma seta: depressa e reto.<br />

Dir-se-ia que o bico dele fende os ares, as distâncias, e<br />

chega direto ao ponto onde, de longe, o beija-flor já viu o<br />

que deve atingir.<br />

Ele se aproxima da flor, enfia o bico na corola e dali tira<br />

o que quer. Sai cheio de coisas doces que estão na natureza<br />

da flor; e sai vitorioso porque foi radical. Ele voa<br />

leve, rápido, forte e depressa: é um voo radical.<br />

Mais ainda: ele escolhe o que deve querer e acerta o<br />

material necessário para fazer aquilo que está na sua natureza<br />

fazer. Uma vez que se lança sobre uma flor, tira<br />

de dentro dela todo o seu suco delicioso, fica com um<br />

aroma de flor e uma beleza de pedra preciosa. Uma verdadeira<br />

maravilha!<br />

Mais do que tudo, o beija-flor é radical no seguinte:<br />

ele dá vários voos a diversas plantas da mesma natureza,<br />

em todas elas mete o bico e sai levando as mesmas doçuras<br />

para se alimentar, ficar com um colorido mais bonito,<br />

um movimento mais ágil. Ele ganha em todos os sentidos<br />

da palavra; e ganha à força de radicalidade.<br />

Todo o trabalho do beija-flor — quer o voo, quer a<br />

sucção — é feito com tanta leveza, delicadeza e distinção<br />

que até parece uma dança. Entretanto, é muito mais do<br />

que dança: é um voo. Porque o homem, quando dança,<br />

mostra seu encanto com o voo. Mas quem dança mesmo<br />

são os pássaros no céu.<br />

v<br />

(Extraído de conferências de 31/1/1980, 20/1/1990,<br />

5/4/1990 e 28/1/1994 )<br />

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35


Virgem com o Menino<br />

(por Fra Angélico) - Galeria<br />

Nacional, Parma (Itália)<br />

Francisco Lecaros<br />

Ao ver nossas fraquezas e maldades, Nossa Senhora<br />

tem uma pena especial. E, enquanto medimos a<br />

profundeza de nossas chagas, Ela nos sorri, como<br />

que dizendo: “Meu filho, muito mais Eu sou boa do que você<br />

é ruim! Eu passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, o<br />

trago para junto de Mim.”<br />

(Extraído de conferência de 12/4/1989)

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