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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>164</strong> Novembro de 2011<br />
O Heroísmo em<br />
meio às angústias!
S. Hollmann<br />
2<br />
Gedeão diante do Anjo do Senhor -<br />
Catedral de Colônia, Alemanha.<br />
Gedeão, segundo o anjo que lhe apareceu, era um valente guerreiro (cf. Jz 6,12).<br />
Entretanto, ao receber sua altíssima missão, estava com medo de morrer. Isso<br />
nos evoca uma importante ideia a respeito de valentia: Valente não é o homem<br />
que não tem medo, mas aquele que domina o seu medo.<br />
(Extraído de conferência de 13/10/1990)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>164</strong> Novembro de 2011<br />
O Heroísmo em<br />
meio às angústias!<br />
Na capa, Nosso<br />
Senhor aceita<br />
heroicamente as<br />
angústias do Horto<br />
das Oliveiras -<br />
Capela Notre Dame<br />
des Fontaines, La<br />
Brigue (França).<br />
Foto: F. Lecaros<br />
Ano XIV - Nº <strong>164</strong> Novembro de 2011<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Editorial<br />
4 O verdadeiro heroísmo<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 A Consagração Interior<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
De Maria Nunquam Satis<br />
6 Nossa Senhora, Rainha da História<br />
Dona Lucilia<br />
14 Bondade transbordante!<br />
Calendário dos Santos<br />
18 Santos de Novembro<br />
Hagiografia<br />
20 São Pio V, herói<br />
em meio às angústias!<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
26 A primeira Comunhão<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Régia amenidade<br />
3
Editorial<br />
O verdadeiro heroísmo<br />
A<br />
maceração da uva no lagar e o envelhecimento do mosto nos barris de carvalho são fatores<br />
imprescindíveis para a produção de um bom vinho. Além disso, a videira deve ser plantada<br />
em solo seco e pedregoso. Em suma, a videira só dá bom vinho em condições aparentemente<br />
adversas, ou seja, se “sofre”. Mas, é somente o fruto da videira que necessita de obstáculos para<br />
fazer desabrochar o melhor de si?<br />
O vinho bem pode ser comparado ao ser humano. Cícero, grande orador latino, dizia que “os vinhos<br />
são como os homens: com o tempo, os maus azedam e os bons apuram.” 1 E, de fato, tal como o<br />
fruto da videira necessita “sofrer” e “esperar” para alcançar o requinte de seu próprio sabor, assim é<br />
o ser humano: para adquirir a plenitude de sua personalidade, não requer comodidades nem prazeres,<br />
mas padecimentos e docilidade à vontade divina.<br />
O sofrimento é, pois, um valioso bem para o homem.<br />
Possui a natureza humana uma capacidade de sofrer que necessita ser atendida. O pior sofrimento<br />
do homem seria jamais sofrer, o que, aliás, é utópico neste vale de lágrimas. Com a dor, o ser humano<br />
sai de seu egoísmo, compreende a sua contingência e se abre para o sobrenatural. E para muitos, como<br />
ocorreu com o Apóstolo, é a dor o marco inicial do caminho da conversão para Deus.<br />
Pois “não há coisa mais adequada para conferir nobreza à alma do que o sofrimento; e não pode<br />
haver nobreza para a alma sem sofrimento.” (Conferência de 23/4/1964)<br />
Por isso, pode-se dizer que quem não sofreu, não viveu. Uma biografia só tem valor quando seu<br />
protagonista passou pelo crisol da dor. Diz São Luís Grignion de Montfort que “sem a cruz a alma se<br />
torna vagarosa, mole, covarde e sem coração. A cruz a torna fervorosa e cheia de vigor. Quando nada<br />
sofremos, na ignorância permanecemos. Temos inteligência quando bem sofremos.” 2<br />
Mas não precisamos ir à procura do sofrimento, uma vez que ele está a todo o momento batendo<br />
à nossa porta. Justamente na plena e conformada aceitação dele se encontra o verdadeiro heroísmo,<br />
igual ou maior até do que o das armas. Pois bem podem as dores morais ser mais penosas do que<br />
as físicas. E é a dor, somente ela, que nos faz verdadeiros heróis diante do Senhor: o sofrimento bem<br />
aceito produz o precioso vinho espiritual da santidade.<br />
A dor moral de Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto das Oliveiras, ao aceitar antecipadamente os indizíveis<br />
padecimentos da Paixão, foi autêntico, sublime e insuperável heroísmo. Assim, a Mãe das Dores,<br />
apesar de não ter sido tocada fisicamente, sofreu com seu Divino Filho mais do que qualquer ser<br />
humano foi capaz de fazê-lo na História, a ponto de ser chamada a Rainha dos Mártires, e ser para todos<br />
os homens modelo perfeito e autêntico de prática heroica das virtudes, ou seja, de santidade.<br />
1) http://www.academiadovinho.com.br<br />
2) São Luís Grignion de Montfort. Cântico XIX, O triunfo da Cruz - 18.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
A Consagração Interior<br />
Em 15 de novembro de 1958, por ocasião<br />
do Congresso da Ordem Terceira do Carmo,<br />
coube a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discorrer acerca<br />
dos elementos constitutivos da Consagração a<br />
Nossa Senhora.<br />
Foi-me dado, para sobre ele dissertar neste<br />
brilhante congresso, o seguinte tema: “O escapulário<br />
e a profissão da Ordem Terceira do Carmo<br />
constituem um ato de principal consagração<br />
a Nossa Senhora. É indispensável que essa verdade<br />
seja propagada com grande zelo para um<br />
conhecimento mais profundo e mais perfeito da<br />
espiritualidade carmelitana”.<br />
O enunciado da tese manifesta o louvável<br />
propósito de evitar que, em matéria de Ordem<br />
Terceira do Carmo, fiquemos apenas em exterioridades.<br />
Com efeito, o escapulário é um objeto palpável,<br />
que simboliza de um modo muito sensível<br />
nossa ligação com Nossa Senhora. Mas precisamente<br />
porque tal símbolo apresenta essas qualidades,<br />
podem certos espíritos facilmente cair na<br />
ideia de que sua simples posse, seu mero uso são<br />
suficientes para nos manter ligados a Nossa Senhora.<br />
Também a profissão na Ordem Terceira do<br />
Carmo, feita habitualmente de modo tão solene<br />
e festivo, fala muito aos sentidos e à imaginação.<br />
Por isto mesmo, podem certas pessoas facilmente<br />
formar a ideia de que o simples fato da profissão<br />
estabelece entre nós e Nossa Senhora um vínculo<br />
tão profundo, que basta por si mesmo, e para todo<br />
o sempre, sem mais deveres, para nos manter<br />
unidos a Nossa Senhora como perfeitos Terceiros.<br />
Tal é a condição do homem nesta terra que<br />
mesmo as melhores coisas, e as mais louváveis,<br />
são susceptíveis de abuso, não porque nelas<br />
haja qualquer coisa de mal, mas porque o mal<br />
está no homem cuja natureza decaiu com o<br />
pecado original. Assim se pode dizer que essas<br />
exterioridades tão úteis, tão oportunas, tão<br />
sábias, tão necessárias à natureza do homem<br />
podem, entretanto, ser usadas de modo errado<br />
fazendo com que tudo aquilo que o símbolo<br />
significa seja esquecido e apenas a realidade<br />
material do símbolo fique, como elemento<br />
evidentemente insuficiente para os fins que a<br />
instituição do símbolo tivera em vista.<br />
Realmente, é preciso que nos compenetremos<br />
bem de que a posse do escapulário ou o seu uso,<br />
e o simples ato de profissão na Ordem Terceira<br />
do Carmo, não constituem toda a essência<br />
de nossa vinculação a Nossa Senhora, e nada<br />
seriam se não fosse nossa consagração especial<br />
e interior à Virgem do Carmo. Este, sim, é o<br />
elemento básico de nossa condição de Terceiros<br />
Carmelitas. E o uso do escapulário, bem como a<br />
profissão na Ordem Terceira não são senão um<br />
objeto material e um ato jurídico - um e outro<br />
de grande significação e importância, aliás -<br />
que exprimem essa consagração. O principal,<br />
portanto, é que o Terceiro esteja consagrado a<br />
Nossa Senhora, numa consagração que, feita no<br />
ato oficial da profissão, se conserve e aumente<br />
em intensidade ao longo da vida inteira.<br />
O Terceiro deve, pois, compreender que é<br />
nesse fato interior, o qual em última análise, se<br />
desenvolve no terreno misterioso da relação das<br />
almas com Deus, indevassável para qualquer<br />
olhar humano, e posto diretamente sob os olhos<br />
do próprio Deus, é neste fato interior que consiste<br />
o liame que nos prende a Nossa Senhora do<br />
Carmo e faz de nós, no sentido pleno da palavra,<br />
verdadeiros carmelitas.<br />
Assim, portanto, por maior que seja, e o<br />
deve ser, o nosso apreço ao escapulário e à<br />
nossa profissão na Ordem Terceira, é de capital<br />
importância que nossa consagração interior seja<br />
por nós reputada o elemento capital de nossa<br />
vida carmelitana. É o que bem diz o enunciado<br />
da tese que nos foi dado desenvolver na noite<br />
de hoje. Afirma ela uma verdade que deve ser<br />
propagada com grande zelo, pois assim se evita<br />
o inconveniente de que numerosos Terceiros<br />
levem uma vida carmelitana completamente<br />
desviada do seu espírito, do seu sentido mais<br />
verdadeiro e profundo.<br />
[...]<br />
(Extraído do “Mensageiro do Carmelo”,<br />
número especial, 1959.)<br />
5
De Maria Nunquam Satis<br />
Nossa Senhora,<br />
Rainha da História<br />
Inúmeras vezes, em suas conferências, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> falou a respeito<br />
da realeza de Nossa Senhora. Suas elevadas explicitações eram frutos<br />
de uma autêntica piedade mariana.<br />
Imaginando como teria se desenvolvido a Humanidade no Éden,<br />
caso não houvesse o pecado original, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> narra<br />
o movimento ascensional da História rumo a Nossa Senhora.<br />
Com que alegria eu atendo ao<br />
pedido que me apresentaram<br />
para fazer uma exposição<br />
a respeito de Nossa Senhora como<br />
Rainha da História!<br />
Para se entender em que sentido<br />
Maria Santíssima tem esse título,<br />
é preciso compreender o que significa<br />
Rainha e História. Esses são temas<br />
familiares a nossas almas; tratarei<br />
apenas de explicitá-los.<br />
A História tem<br />
necessariamente<br />
um unum<br />
Imaginemos que alguém, ao fazer<br />
um histórico de um hotel, o concebesse<br />
da seguinte maneira: o que se<br />
passou nos quatrocentos ou quinhentos<br />
quartos do hotel. Não seria, portanto,<br />
a história dele como uma instituição,<br />
um estabelecimento que fornece<br />
comida, alojamento, com épocas<br />
em que os hóspedes são mais numerosos<br />
ou menos, a renda é maior<br />
ou menor; onde surgem problemas<br />
com os empregados, há mudanças de<br />
donos porque antigos proprietários<br />
morreram ou o venderam.<br />
O histórico seria, portanto, composto<br />
de histórias do que se passa<br />
naquela população ambulante, os<br />
hóspedes que vêm de diversos lugares,<br />
passam lá algum tempo, depois<br />
voltam ou nunca mais aparecem; são<br />
eles animados por desejos, esperanças,<br />
realidades diversas, e um hóspede<br />
que entra não tem ideia de quem<br />
o antecedeu nem de quem o sucederá.<br />
Isso não forma a História.<br />
Um historiador que trabalhasse<br />
essas informações poderia, quando<br />
muito, escrever “histórias em um hotel”.<br />
Escolheria esses e aqueles personagens<br />
interessantes que passaram<br />
pelo hotel, e explicaria em que<br />
períodos de suas vidas estiveram lá,<br />
quais eram presumivelmente seus<br />
pensamentos, suas preocupações,<br />
o que faziam, por que ali se hospedaram<br />
e, talvez pelo registro das ligações<br />
interurbanas do hotel, com<br />
quem teriam falado etc. Isto seriam<br />
histórias num hotel, mas não a história<br />
de um hotel.<br />
Por quê?<br />
A História, como um unum, é diferente<br />
das histórias fragmentadas e<br />
esparsas como as acima imaginadas.<br />
Ela é uma narração que tem o mesmo<br />
agente, temas conexos, e cuja<br />
ação é contínua através dos tempos.<br />
Essa é a perfeita História.<br />
Por exemplo, História de uma nação:<br />
há um mesmo agente, quer dizer,<br />
a nação tomada no seu conjunto,<br />
que está agindo. Em geral, os temas<br />
têm certa continuidade: relações<br />
com os países fronteiriços, problemas<br />
internos culturais, sociais,<br />
econômicos que vão mudando com<br />
o tempo, mas nascem um do outro.<br />
Mas, se não houver uma continuidade<br />
de agentes e de temas; mais<br />
ainda, se não existir uma continuidade<br />
daqueles em relação aos quais a<br />
História se desenvolve, ela não forma<br />
um todo.<br />
Nossa Senhora é a<br />
Rainha de todos os povos<br />
Ora, quando dizemos que Nossa<br />
Senhora é Rainha da História, não<br />
afirmamos que Ela é a Rainha apenas<br />
da História deste ou daquele país,<br />
nem sequer de um bloco de países.<br />
Por exemplo, Rainha da História dos<br />
povos cristãos Ela o é, sem dúvida,<br />
a título especial dos povos católicos.<br />
Mas a Virgem Santíssima é genericamente<br />
Rainha da História de todos os<br />
povos. E as relações longínquas entre<br />
a Coreia e o Japão, a Coreia e a<br />
China, a China e o Japão — relações<br />
6
triangulares complexas, atormentadas,<br />
que se desenvolveram entre esses<br />
três povos de raça amarela e vizinhos<br />
ao longo dos séculos — não tinham<br />
a Nossa Senhora como ponto<br />
de referência, mas sim como Rainha.<br />
A triste História intertribal da<br />
América do Sul, das várias nações<br />
de índios cujas tribos se atacavam<br />
umas às outras, colaboravam entre<br />
si por terem inimigos comuns, se ignoravam<br />
e por vezes se perdiam nas<br />
vastidões da jungle 1 americana; toda<br />
essa movimentação dos homens é a<br />
História. E Nossa Senhora é a Rainha<br />
dessa História, ainda para os povos<br />
que A ignoravam. Ela é a Rainha<br />
da História inteira.<br />
Digo de propósito “da História<br />
inteira”, porque não se refere apenas<br />
a tudo o que aconteceu em determinada<br />
época, mas desde que o<br />
homem foi criado até o momento<br />
em que os últimos justos vivos serão<br />
chamados a participar do julgamento<br />
dos outros — porque serão amados<br />
por Deus —, e os malditos escorraçados<br />
pela justiça divina. Enfim,<br />
enquanto houver homens vivos haverá<br />
História, e Nossa Senhora será<br />
a Rainha dessa História.<br />
Post-scriptum marial<br />
da História<br />
Qual é a relação de Nossa Senhora<br />
com o centro em torno do qual se<br />
move a História?<br />
Compreendendo o unum da História,<br />
entenderemos melhor como<br />
Ela é a Rainha da História. Então,<br />
a glorificação de Maria Santíssima<br />
como Rainha da História aparecerá<br />
claramente aos nossos olhos.<br />
No Reino de Maria haverá uma esplendorosa<br />
catedral em honra de Nossa<br />
Senhora Rainha da História. Será<br />
talvez a catedral de todos os esplendores<br />
do Reino de Maria. A vitória sobre<br />
o dragão da Revolução para a implantação<br />
do Reino d’Ela fecharia uma era<br />
na História e abriria outra. Mais ain-<br />
Rainha de todos os santos -<br />
Sevilha, Espanha.<br />
S. Hollmann<br />
7
De Maria Nunquam Satis<br />
S. Hollmann<br />
Nascimento de Nossa Senhora -<br />
Catedral de Bayonne, França.<br />
Nossa Senhora ainda<br />
não havia sido<br />
criada, mas já era<br />
com vistas a Ela e a<br />
seu Divino Filho que<br />
a História era tecida.<br />
da: de algum modo terminaria a História<br />
e começaria a post-História.<br />
Há uma tese, que nos é cara, de<br />
que a História propriamente não se<br />
encerraria agora e, portanto, não estaríamos<br />
no fim do mundo, embora<br />
todas as aparências sejam de fim de<br />
mundo. Em razão dos acontecimentos<br />
que ocorrem atualmente, podemos<br />
dizer que é o fim de um mundo,<br />
mas não o fim do mundo.<br />
Porque, pela intercessão de Nossa<br />
Senhora e para a realização de<br />
uma glória d’Ela, sem a qual a História<br />
não pode encerrar‐se — por causa<br />
d’Ela e não devido a nós —, a História<br />
terá a sua post-História. Como<br />
numa carta se pode colocar um post-<br />
-scriptum mais belo do que a própria<br />
carta, na História será escrito o post-<br />
-scriptum marial da História: o Reino<br />
de Maria. Todas as riquezas, todo<br />
o bom gosto e, sobretudo, toda a<br />
piedade do mundo devem se mobilizar<br />
para comemorar a abertura dessa<br />
post-História, que é o fecho de ouro<br />
da História do mundo.<br />
Antes mesmo de nascer,<br />
Nossa Senhora já<br />
reinava na História<br />
Vejamos qual será a continuidade<br />
dessa História.<br />
Antes da Torre de Babel, os homens<br />
constituíam um só todo, moravam<br />
no mesmo lugar, ou em locais<br />
tão próximos que tinham contato<br />
contínuo entre si. Em suma, o gênero<br />
humano não estava disperso pela<br />
Terra, todos os povos giravam em<br />
torno de alguns acontecimentos centrais<br />
e eram o eixo da História.<br />
Nossa Senhora ainda não havia sido<br />
criada, mas já era com vistas a Ela<br />
e a seu Divino Filho, o Qual haveria<br />
de vir, que a História era tecida.<br />
Deus, ao governar a História —<br />
e quem pode duvidar que Ele seja<br />
o Rei da História? —, tinha em vista<br />
a Encarnação do Verbo no claustro<br />
puríssimo de Maria Virgem, e,<br />
por causa disso, dirigia a História<br />
caminhando para esse ponto, esse<br />
destino. Nossa Senhora estava,<br />
portanto, presente nos planos de<br />
Deus e, antes de nascer, já reinava<br />
na História, porque tudo era dirigido<br />
por Ele de modo tal que desse<br />
glória a Ela.<br />
Há alguns reis que o são desde<br />
meninos; outros que, estando ainda<br />
no claustro materno quando lhes<br />
morre o pai, herdam a realeza antes<br />
mesmo de terem nascido; mas ninguém<br />
é rei antes de ter sido concebido.<br />
Nossa Senhora, séculos antes de<br />
ser concebida, já era Rainha. Desde<br />
sempre Ela estava nos planos do Padre<br />
Eterno, no amor do Verbo, nas<br />
ansiedades de seu Divino Esposo, o<br />
Espírito Santo, e, por causa disso, tudo<br />
corria em direção a Maria Santíssima.<br />
Isto é ser Rainha!<br />
Depois da dispersão da Torre de<br />
Babel — que estava sendo construída<br />
por pessoas tomadas de orgulho, pretendendo<br />
que ela chegaria até o Céu<br />
—, os homens foram para as direções<br />
mais variadas. A História nos mostra<br />
que uns perderam contato com os<br />
outros. Como um planeta que tivesse<br />
explodido no céu, dando origem a<br />
muitas estrelas pequenas e algumas<br />
Vias Lácteas, a Humanidade eclodiu,<br />
fazendo surgir corpúsculos, grupos<br />
humanos que se ignoraram uns aos<br />
outros do modo mais completo.<br />
Entretanto, acima disso pairava<br />
um unum, o qual fazia com que<br />
a História humana se desenrolasse.<br />
Qual era esse unum, e como Nossa<br />
Senhora é Rainha desse unum?<br />
8
Fivela que prende o reino<br />
angélico ao reino animal<br />
De fato, o gênero humano tem<br />
uma unidade. Nos planos de Deus,<br />
os homens constituem intermediários<br />
entre os anjos, seres puramente espirituais,<br />
e, de outro lado, os animais,<br />
seres materiais; e mais abaixo estão as<br />
plantas e os minerais. O ser humano<br />
é, por assim dizer, a fivela que prende<br />
o reino angélico ao reino animal.<br />
Embora não sejamos, nem de longe,<br />
elevados como os anjos — os de<br />
menor categoria entre eles, quando<br />
têm aparecido a simples mortais,<br />
mostram-se tão esplendorosos, que<br />
quem os vê começa a tremer pensando<br />
estar diante do próprio Deus —,<br />
entretanto temos este título de glória:<br />
somos o liame que une o imensamente<br />
grande com o imensamente<br />
pequeno, onde, portanto, a harmonia<br />
se afirma, triunfa.<br />
Essa é uma explicação pela qual<br />
convinha que nesse ponto de junção,<br />
ou seja, o gênero humano, o próprio<br />
Deus se encarnasse para honrar a<br />
Criação inteira. De nenhum modo o<br />
Criador poderia honrar tanto a Criação,<br />
quanto se encarnando. Ele se põe<br />
no centro de sua obra; a corola da flor<br />
do universo somos nós, homens. No<br />
centro dessa corola está Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo e junto d’Ele, com o véu<br />
de mãe, está Nossa Senhora.<br />
O homem simboliza,<br />
melhor do que o anjo,<br />
todo o universo<br />
Na mente de Deus, esta categoria da<br />
criação tão magnífica, de uma posição<br />
tão excelente, tão honrada por Ele, deveria<br />
realizar uma glória especial.<br />
O que vem a ser aqui a glória?<br />
É o deleite que Ele tem com a<br />
honra que recebe pelo fato de que<br />
seres à sua imagem e semelhança<br />
Lhe prestam culto e veneração. E a<br />
homenagem oferecida pelo homem<br />
simboliza melhor a de todo o universo<br />
do que a homenagem prestada<br />
pelo anjo.<br />
A estrela mais distante e da qual,<br />
talvez, não tenhamos conhecimento<br />
até o fim do mundo — corpo material<br />
com reluzimento e propriedades<br />
físicas e químicas no equilíbrio<br />
do universo —, entretanto, participa<br />
de nós e temos algo com que a honramos,<br />
porque ela é matéria, e a matéria<br />
está presente em nós. E se as estrelas<br />
não tivessem brilho, mas pudessem<br />
conhecer e soubessem que há<br />
homens, elas começariam a cintilar.<br />
Deus quis que esse gênero humano<br />
assim constituído tivesse certa<br />
forma de beleza e de excelência física,<br />
que não fosse senão o espelho de<br />
algo muito mais magnífico, precioso<br />
e nobre, que condiciona a beleza física,<br />
que é a beleza espiritual: o lumen<br />
do intelecto, a força da vontade,<br />
o cognoscitivo e o vibrátil da sensibilidade,<br />
formando em cada homem<br />
um exemplar e um padrão especial<br />
de beleza.<br />
História da Humanidade<br />
se não tivesse havido<br />
pecado original<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />
dezembro de 1989.<br />
Caso não tivesse havido o pecado<br />
original, Deus intencionava nesta<br />
linha criar cada ser humano com<br />
seu papel nesse universo de beleza:<br />
nasceria e, depois de passar algum<br />
tempo no Paraíso terrestre,<br />
seria chamado ao<br />
Céu, sem a morte, e brilharia<br />
por toda a eternidade,<br />
cintilando diante<br />
de Nosso Senhor.<br />
É claro que, neste<br />
plano, toda a História<br />
desenvolvida no Éden<br />
teria como ponto central<br />
a Encarnação do Verbo. O amor<br />
de Deus por essa espécie de criaturas<br />
iria se manifestando cada vez mais,<br />
de maneira tal que os homens até então<br />
existentes, e a própria natureza,<br />
exprimissem um santo, calmo e ardoroso<br />
alvoroço: “O que virá agora, já<br />
que Ele nos ama tanto?” E, em certo<br />
momento, viria o insuspeitado, o<br />
inimaginável: o próprio Deus se faria<br />
carne e habitaria entre nós. E apareceria<br />
o Homem ultra‐arquetípico,<br />
elevado a uma glória incomparavelmente<br />
maior do que a simples natureza<br />
pode dar, mas Homem, ligando<br />
sua natureza humana à natureza divina,<br />
formando uma só Pessoa, a segunda<br />
da Santíssima Trindade.<br />
Movimento ascensional<br />
da História rumo a<br />
Nossa Senhora<br />
Como se daria isso?<br />
É claro que o gargalo magnífico,<br />
pelo qual se chegaria até esse acontecimento<br />
único, seria Nossa Senhora,<br />
a Virgem perfeita, da qual Ele nasceria.<br />
Ela, a incomparável, a única para<br />
cuja construção gradual tudo confluísse,<br />
de maneira que os profetas<br />
teriam dentro de si uma palpitação,<br />
que era um pressentir de Maria que<br />
viria. A perfeição de todos os seres<br />
M. Shinoda<br />
9
De Maria Nunquam Satis<br />
humanos de algum modo prenunciaria<br />
a d’Ela; poderíamos assim imaginar<br />
uma ascensão gradual da Humanidade<br />
até Nossa Senhora, a flor que<br />
se abriria e o Verbo estaria em seu interior.<br />
Rainha da História…<br />
Não estaríamos no alto do morro<br />
do qual se desce, mas depois haveria<br />
algo mais alto. Porque as criaturas,<br />
conhecendo a Encarnação do Verbo e<br />
Nossa Senhora, convivendo com Ele e<br />
com Ela — por quanto tempo não se<br />
sabe —, num convívio pacífico, amoroso,<br />
reverente, como gostamos de<br />
imaginar ter sido na noite de Natal, no<br />
dia de Pentecostes, nas grandes festas<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo; haveria<br />
aquela paz, alegria, glória, sabedoria,<br />
majestade e, ao mesmo tempo, misericórdia<br />
e bondade indizíveis; surgiria<br />
então — eu emprego um termo moderno<br />
e desdourado — uma pista de<br />
voo ainda mais alta.<br />
No alto do morro se construiria<br />
uma catedral; e muito mais magnificente<br />
do que o morro seriam os séculos<br />
da História cristã.<br />
Como seria a festa da gloriosa Ascensão<br />
do Verbo Encarnado? Ele subiria<br />
ao Céu certamente sem Paixão,<br />
sem cruz. E, depois, a Assunção de<br />
Nossa Senhora? Como seriam as alegrias<br />
de todo o gênero humano? Os<br />
homens ficariam no Paraíso terrestre<br />
e Nosso Senhor viria apenas nas espécies<br />
eucarísticas? Ou, com a ausência<br />
do pecado, a inocência do gênero humano<br />
— podemos imaginar a beleza<br />
do gênero humano inocente! — levaria<br />
Deus Nosso Senhor a tornar a presença<br />
d’Ele frequente entre homens?<br />
Ninguém pode ter ideia, porque<br />
viriam alcandores sobrepujados<br />
por outros alcandores, no ápice dos<br />
quais sempre estaria Nossa Senhora,<br />
Rainha de todos os anjos e santos;<br />
Rainha de tudo aquilo quanto a<br />
graça engendrasse de grande, porque<br />
d’Ela nasceu Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, o Homem‐Deus.<br />
Portanto, por mais que a História<br />
glorificasse Maria Santíssima e Nosso<br />
Senhor, Ela pairaria acima de tudo<br />
e atrairia a Si a História. Aí está a<br />
Rainha da História: o movimento ascensional<br />
de toda a História rumo a<br />
Ela para chegar a Ele.<br />
Com a Virgem Maria<br />
a História se evanesce<br />
em santidade,<br />
virtude e beleza<br />
Para que isto tivesse tido a sua verdade,<br />
não era preciso que, depois de<br />
Adão e Eva, nenhum outro homem<br />
pecasse. O pecado original propriamente,<br />
o pecado do gênero humano,<br />
foi cometido em Adão e Eva porque<br />
eles eram o gênero humano naquele<br />
tempo. Mas seus descendentes já<br />
não continham todo o gênero humano.<br />
De maneira que os pecados deles<br />
não seriam pecados originais, nem se<br />
transmitiriam aos seus descendentes.<br />
Caso aqueles que pecassem fossem<br />
postos fora do Paraíso, deveriam<br />
aguentar a vida nesta Terra como<br />
pudessem. E surgiria a sub‐História,<br />
como as notas ao pé da página<br />
de um livro. O grande eixo central<br />
da História seria dos homens que teriam<br />
continuado no Paraíso.<br />
Em determinado dia a coleção dos<br />
homens estaria completa. E Nossa<br />
Senhora representaria às Três Pessoas<br />
da Santíssima Trindade: “Vede, o<br />
número misterioso, intencionado por<br />
Vós, está completo. No Céu, os lugares<br />
dos anjos malditos, que apostataram,<br />
estão também preenchidos, vosso<br />
plano está realizado; a História<br />
chegou ao auge de sua glória!”<br />
Como seriam esses homens perfeitíssimos<br />
do final da História? Como<br />
seria, então, o Reino de Maria?<br />
Aquela época em que os homens pudessem<br />
dizer a Nossa Senhora: “Vós<br />
realizais o que há de mais maravilhoso<br />
na História. Vós sois o ponto terminal,<br />
a História convosco se evanesce<br />
em santidade, virtude e beleza.<br />
Vós sois o aroma que se desprende<br />
da flor, ou seja, o melhor que a<br />
flor deita de si. Vós sois o aroma da<br />
História, o perfume de todas as misericórdias<br />
e todas as justiças daquele<br />
Infinito que nos criou.”<br />
A História terminaria quando o<br />
último justo tivesse atingido o píncaro<br />
de sua justiça, e Deus dissesse ao<br />
gênero humano: “Ó salvos no Céu, ó<br />
salvos na Terra, ó amados por toda<br />
parte, acabou!”<br />
Que glória e que hino! Todos os<br />
homens deixando o Paraíso terrestre<br />
para viver no Céu! Mas, não se<br />
restringindo às belezas insondáveis<br />
da visão beatífica e do Céu empíreo,<br />
eles de vez em quando desceriam à<br />
Terra e, olhando os diversos lugares,<br />
comentariam uns com os outros:<br />
“Lembra‐se? Lembra‐se?”<br />
Devido ao pecado<br />
original, Deus não<br />
desistiu de seu plano,<br />
mas o transcendeu<br />
Esse era o plano e essa seria a linha<br />
reta da História. Não se realizaram...<br />
O homem pecou. Mas, no mo-<br />
10
Fotos: S. Hollmann<br />
O homem pecou. Mas,<br />
no momento trágico<br />
de sua expulsão do<br />
Paraíso terrestre,<br />
Deus lhe revelou<br />
que a História<br />
continuaria, Ele<br />
realizaria seu plano<br />
e viria a Virgem que<br />
esmagaria a serpente.<br />
mento trágico de sua expulsão do Paraíso<br />
terrestre, Deus revelou ao homem<br />
que a História continuaria, Ele<br />
realizaria seu plano e viria a Virgem<br />
que esmagaria a serpente. O Criador<br />
profetizou ao homem a História,<br />
a qual não seria de paz, de beleza e<br />
de harmonia, mas de luta, de guerra;<br />
o gênero humano cindido entre duas<br />
raças, a da Virgem e a da serpente,<br />
e a vitória permanente da Virgem<br />
sobre a serpente, calcando-a aos pés.<br />
Nessa profecia estava contida a<br />
promessa do Salvador que viria. E,<br />
portanto, da Encarnação do Verbo e<br />
de tudo quanto aconteceu em virtude<br />
disso.<br />
Deus não desistiu de seu plano nem<br />
da História que os homens desfiguraram<br />
pelo seu pecado. Ele os transcendeu<br />
em magnificência, fazendo dessa<br />
luta uma História de algum modo mais<br />
bela do que a História daquela paz.<br />
A nossa grande guerra contra os<br />
filhos do demônio, por vários aspectos,<br />
é mais bela do que a própria<br />
História do Paraíso.<br />
Considerem a hipotética História<br />
do Paraíso: que magnificência!<br />
Mas seria uma História que não teria<br />
mártires, cruzados, nem homens<br />
que estraçalhassem o erro pelo vigor<br />
de sua lógica.<br />
Sendo verdadeiro o provérbio<br />
português “quanto maior a altura,<br />
tanto maior é o tombo”, também é<br />
verdade que quanto maior é o tombo,<br />
tanto mais alto é o soerguimento.<br />
E a altura da vitória se medirá pela<br />
profundidade do tombo, e por mais<br />
outro tanto que se elevará acima.<br />
Esta é a História com a post-História,<br />
a História do Reino de Maria<br />
que vem se aproximando.<br />
Se Nossa Senhora era a Rainha da<br />
História, nos planos cheios de bondade,<br />
impregnados de encanto paradisíaco<br />
de Deus Nosso Senhor, por<br />
essa mesma razão Ela é Rainha da<br />
história dos tormentos, das aflições,<br />
das lutas, das angústias, das incertezas,<br />
das batalhas, das polêmicas, da<br />
vitória. Portanto, Ela é verdadeiramente<br />
a Rainha da História.<br />
Poder-se-ia perguntar: “E a História<br />
triangular de chineses, coreanos e<br />
japoneses, que ligação tem com tudo<br />
isso?” Aliás, é a História noturna,<br />
porque longe do Sol da Justiça, que é<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Da esquerda para a direita: Adão<br />
e Eva sendo expulsos do Paraíso,<br />
de Fra Angélico - Museu do Prado<br />
(Madri, Espanha); “A Anunciação”,<br />
de Jean Bellegambe - Museu<br />
Hermitage (São Petersburgo, Rússia).<br />
Para ver as coisas simplificadamente,<br />
toda essa História correu<br />
até o momento em que São Francisco<br />
Xavier chegou ao Japão, pregando<br />
a Nosso Senhor Jesus Cristo. De<br />
um modo ou de outro, tudo havia sido<br />
um conjunto de tentames da Providência<br />
para aproximar esses povos<br />
e prepará‐los para aquela hora de<br />
bem‐aventurança.<br />
Uns rejeitaram, outros aceitaram<br />
e batalharam. Eles ignoravam qual<br />
era o ponto central em torno do qual<br />
lutavam, a fim de que se soerguessem<br />
tanto quanto possível de dentro<br />
da lama do paganismo, para poderem<br />
estender as mãos ao apóstolo<br />
magnífico que lhes fora mandado<br />
pelo zelo de Santo Inácio; e aos<br />
missionários que se lhe seguiram, ao<br />
longo da História desses povos.<br />
O centro é este: o momento magnífico<br />
da vitória do Reino de Maria, em<br />
que eles deverão converter‐se. E Nosso<br />
Senhor e Nossa Senhora, ainda que<br />
eles não soubessem, eram o centro<br />
dessa História. Maria Santíssima é ou<br />
não é a Rainha dessa História?<br />
Leme e figura de proa<br />
Rainha em que sentido?<br />
Como nós gostamos muito de lógica,<br />
de definições bem feitas, buriladas,<br />
lapidadas e de cada coisa colocada<br />
em seu lugar, estou certo de<br />
que todos desejam entender bem<br />
qual é aqui o papel da rainha.<br />
Até aqui eu descrevi a rainha como<br />
uma espécie de modelo ideal,<br />
que exerce uma presidência honorífica,<br />
atrai pelo esplendor, inspira pela<br />
magnificência de sua ação de presença<br />
e de seu exemplo. Mas uma<br />
rainha não é apenas isso.<br />
Em ponto muito pequeno, puramente<br />
terreno, in partibus infidelium,<br />
nas regiões dos infiéis, há uma<br />
rainha cujo papel, de certa forma, é<br />
análogo ao que foi dito: a Rainha da<br />
Inglaterra. Se se comparasse um fósforo<br />
com o Sol, ainda haveria exage-<br />
11
De Maria Nunquam Satis<br />
ro no tomar em consideração o papel<br />
do fósforo, de tal maneira é grande<br />
a desproporção entre essa Rainha<br />
e a Rainha da História. A Rainha da<br />
Inglaterra tem uma ação de presença,<br />
ela encanta, deslumbra, anima.<br />
Porém ela não reina, porque reinar<br />
não é só isso; é governar. Dizer que a<br />
rainha não governa, mas reina, equivale<br />
a afirmar que é uma figura de<br />
proa no navio.<br />
A figura de proa tem seu papel no<br />
navio, porque é um estandarte. Mas<br />
é uma coisa inteiramente diferente<br />
do leme. Para reinar é preciso ser leme<br />
e figura de proa.<br />
Maria Santíssima<br />
dirige a História...<br />
Em que sentido Nossa Senhora<br />
tem nas mãos o leme da História?<br />
Ela conhece as intenções de Deus<br />
a respeito da História; tais intenções<br />
são o plano de Deus condicionado às<br />
orações, aos atos de virtudes e aos<br />
pecados dos homens.<br />
Depois da Redenção infinitamente<br />
preciosa de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, os homens pertencem a seu<br />
Corpo Místico, formando com Ele<br />
uma unidade sobrenatural em cuja<br />
realidade interna o mais delicado<br />
disso se passa. Tomando essa verdade<br />
em consideração, é do modo pelo<br />
qual reagimos às graças, dizendo sim<br />
ou não, e também da maneira pela<br />
qual os outros aceitam ou recusam<br />
os favores divinos, que Deus realiza<br />
um balanço geral. Nesse balanço Ele<br />
faz pesar a sua bondade e a sua justiça<br />
infinitas.<br />
Mas o próprio Deus, na sua insondável<br />
bondade, quer mais do que Ele<br />
mesmo faz. Os homens são tão ruins<br />
que Deus daria aos homens menos<br />
do que Ele quer. Por uma disposição<br />
de sua sabedoria, verdadeiramente<br />
magnífica, Deus constituiu esta situação:<br />
uma criatura inteiramente humana,<br />
mas absolutamente perfeita;<br />
além disso, Filha do Padre Eterno,<br />
Mãe de Deus Filho e Esposa do Divino<br />
Espírito Santo, que sempre está<br />
em condições de retocar, ao menos<br />
em parte, o que homens fazem e, por<br />
assim dizer, corrigir — se a palavra<br />
“corrigir” não fosse inadequada —,<br />
reformar, rever, segundo os planos<br />
da misericórdia de Deus, aquilo que<br />
sua justiça faria. De maneira que<br />
Maria Santíssima está sempre pedindo:<br />
“Meu Pai Eterno, meu Filho<br />
adorável, meu Esposo perfeitíssimo,<br />
recuai um pouco, adoçai um tanto,<br />
ajeitai aqui, fazei mais acolá...”<br />
E a rogos de Nossa Senhora, que<br />
nunca deixou de ser atendida, Deus<br />
como que passa a borracha sobre o<br />
plano da História escrito a lápis, e<br />
deixa a Santíssima Virgem traçar a<br />
Nossa Senhora é<br />
Rainha da história<br />
dos tormentos, das<br />
aflições, das lutas,<br />
das angústias,<br />
das incertezas,<br />
das batalhas, das<br />
polêmicas, da vitória.<br />
ouro o plano verdadeiro, o qual corresponde<br />
ao mais fundo da intenção<br />
d’Ele.<br />
Deus não A teria criado se não<br />
fosse isso. Mas se não A tivesse criado,<br />
ficaria difícil ou impossível — hesito<br />
diante do termo — fazer a História<br />
tão bela como é. Nossa Senhora<br />
enfeita essa História. E somente<br />
por isso, de um lado, Ela é a Rainha<br />
da História, porque Ela imprime,<br />
por um profundo consentimento<br />
de Deus, à História um rumo, que<br />
Deus sem Ela não teria imprimido.<br />
Nossa Senhora, portanto, dirige o leme<br />
da História.<br />
De outro lado, Maria Santíssima<br />
não se limita a isso. Ela pede também,<br />
para alguns, o castigo. É natural.<br />
Quando surgir o Anticristo, virá<br />
o momento em que o próprio Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, com um sopro<br />
de sua boca, o exterminará. Mas esse<br />
momento não será apressado por<br />
Nossa Senhora? Ela dirá: “Eis que<br />
os últimos bons que restam bradam<br />
e pedem que venhais! Vinde, por favor,<br />
vossa Mãe Vos pede.” E pelo sopro<br />
dos lábios de Nosso Senhor estará<br />
encerrada a História.<br />
Compreendemos, então, a direção<br />
da História, direção “intercessiva”.<br />
Deus é quem dirige tudo, mas a<br />
intercessão de Nossa Senhora é segundo<br />
os planos do Criador. E Ela<br />
realiza a vontade de Deus, obtendo a<br />
modificação dos planos d’Ele. Deus<br />
reina, mas por meio de Maria Santíssima,<br />
a Quem Ele quis dar toda<br />
a glória que se pudesse imaginar a<br />
uma tão excelsa missão de intercessora<br />
de todo o gênero humano. Assim,<br />
Ela dirige a História.<br />
...e a modela como um<br />
artista faz com a argila<br />
Há mais. Nossa Senhora dirige<br />
a História geral dos homens, que<br />
é composta pelas Histórias de cada<br />
nação; e a História de cada nação é<br />
composta pelas histórias de cada família;<br />
e a história de cada família se<br />
compõe das histórias de cada homem.<br />
E, como família, entendo pai<br />
e mãe, unidos em legítimo matrimônio,<br />
e filhos dele decorrentes; e também<br />
as famílias espirituais, suscitadas<br />
por Maria Santíssima ao longo<br />
da História. É a reação delas que<br />
condiciona a História.<br />
Nossa Senhora intervém na história<br />
de cada um de nós, do último<br />
mendigo que possa estar implorando<br />
misericórdia, porque é um bêbado<br />
e um inútil, até o maior potentado<br />
da Terra. Por todas as pessoas<br />
a Santíssima Virgem intervém até o<br />
último momento de suas vidas, pedindo<br />
ao Padre Eterno, a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo e ao Divino Espírito<br />
Santo que mandem graças para<br />
12
converter esse, melhorar<br />
aquele. E são derramadas<br />
graças que a pessoa<br />
pode recusar totalmente,<br />
ou só a meias.<br />
Por isso a história, mesmo<br />
dos malditos, sofre<br />
certa inflexão devido a<br />
algum pedido da Virgem<br />
Maria.<br />
Até lá vai o poder de<br />
Nossa Senhora. E a oração<br />
d’Ela, interveniente<br />
junto a cada homem<br />
e “intercessivamente”<br />
junto a Deus, modela a<br />
História como um artista<br />
modela a argila para<br />
fazer uma imagem. Portanto,<br />
Maria Santíssima<br />
é operante na História.<br />
O fator determinante<br />
de todo o curso da<br />
História é nossa atitude<br />
diante das graças que recebemos<br />
através de Nossa<br />
Senhora. Todos os<br />
nossos pedidos sobem<br />
ao Céu por meio d’Ela,<br />
e só são gratos a Deus<br />
porque são apresentados por Ela.<br />
É conhecido o princípio de que,<br />
se o Céu inteiro pedisse sem Maria<br />
Santíssima não obteria; Ela, pedindo<br />
sozinha, obtém. Tal é a gloriosa,<br />
magnificente e régia intercessão de<br />
Nossa Senhora.<br />
Considerando tudo isso, compreendemos<br />
bem o que significa o poder<br />
d’Ela como Rainha da História.<br />
Aspecto “catedralício”<br />
da História<br />
Um homem inteligente, que olha<br />
para uma catedral, não tem a visão<br />
apenas das pedras com as quais ela é<br />
construída; sobretudo ele vê o unum,<br />
que é a catedral.<br />
Se a uma pessoa que foi olhar<br />
uma catedral perguntamos:<br />
— O que você viu?<br />
A coração de Nossa Senhora - Metropolitan<br />
Museum of Art, Nova York.<br />
F. Boulay<br />
— Um montão de granitos.<br />
Pensamos: “É claro que ele viu<br />
uma quantidade enorme de granito,<br />
mas se viu só isso ou principalmente<br />
isso é um estúpido.”<br />
O modo de relacionar esses granitos<br />
entre si forma uma coisa muito<br />
superior: a catedral. O granito foi per<br />
accidens, por acaso, circunstancialmente,<br />
um meio para se chegar a ver<br />
a catedral.<br />
Assim Nossa Senhora vê a História<br />
da Humanidade, da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana, a História<br />
d’Ela e do seu Divino Filho.<br />
Quer dizer, Maria Santíssima vê<br />
o plano de Deus e a inter‐relação<br />
do agir da Humanidade e do agir de<br />
Deus, mas da Humanidade formando<br />
um todo; e dentro da Humanidade,<br />
outros todos: as nações, as regiões, as<br />
famílias. Ou seja, Ela contempla todos<br />
os componentes e o<br />
grandioso todo do gênero<br />
humano que é a fivela<br />
entre o anjo e a criatura<br />
meramente material; o<br />
gênero humano ao qual<br />
Nossa Senhora e, em sua<br />
natureza humana, o Divino<br />
Filho d’Ela pertencem,<br />
com honra insondável<br />
para o gênero humano.<br />
Então, Maria Santíssima<br />
vê o conjunto dos<br />
pecados que conduzem<br />
a um grande movimento<br />
único de pecado: a Revolução.<br />
Mas Ela observa<br />
também o conjunto das<br />
virtudes e um grande movimento<br />
único que combate<br />
os pecados. E, como<br />
um homem não estúpido<br />
contempla uma catedral,<br />
os olhos virginais de Nossa<br />
Senhora veem o aspecto<br />
“catedralício” da História,<br />
isto é, a Revolução<br />
e a Contra‐Revolução.<br />
A Virgem Maria é<br />
Rainha da Contra‐Revolução e, em<br />
certo sentido, Rainha da Revolução.<br />
Como? A Revolução como tal é<br />
uma rebeldia contra Nossa Senhora,<br />
e Maria Santíssima não pode ser<br />
Rainha dessa rebeldia, a não ser neste<br />
sentido: Ela tem o direito, a missão<br />
e o poder de punir, e manda como a<br />
rainha sobre o escravo revoltado.<br />
Aí está uma exposição sobre Nossa<br />
Senhora como Rainha da História.<br />
Que a misericórdia de Maria Santíssima<br />
pouse sobre esta reunião, e<br />
faça com que produza frutos de salvação<br />
para nós e dê glória a Ela. v<br />
1) Selva.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 3/4/1982)<br />
13
Dona Lucilia<br />
Bondade<br />
transbordante!<br />
A bondade de Dona Lucilia não era<br />
restrita a seus filhos, mas se estendia<br />
a todos que dela se aproximavam.<br />
A propósito de um fato recordado por um<br />
primo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta as impressões<br />
que lhe foram deixadas por sua mãe.<br />
Há impressões que ficam<br />
para a vida inteira e, uma<br />
vez enunciadas, marcam<br />
como os relevos numa moeda; aquilo<br />
está comunicado à moeda e nunca<br />
mais muda.<br />
Assim também são as impressões<br />
insaciáveis. As impressões de que eu<br />
sou insaciável me foram dadas pela<br />
figura de Mamãe, de um modo tão<br />
magnífico.<br />
Se no conjunto de excelências<br />
morais de Dona Lucilia — que eu<br />
tanto amei e cuja recordação guardo<br />
no meu coração, com uma veneração<br />
e um afeto sem fim — há uma<br />
coisa que me impressionou, foi aquilo<br />
que havia em sua alma, ao mesmo<br />
tempo de muito elevado, muito impregnado<br />
das mais altas cogitações;<br />
e, de outro lado, de muito misericordioso,<br />
muito capaz de se dobrar sobre<br />
o que há de menor, de mais insignificante,<br />
para fazer o bem. Tudo<br />
isso faz com que eu me lembre dela<br />
para todo o sempre.<br />
Não só eu, mas outras pessoas<br />
que tiveram ocasião de tratar com<br />
ela na infância ou em outras idades;<br />
ou que a conheceram quando<br />
eram pequenas e depois a perderam<br />
de vista, com o vai-e-vem<br />
da vida nesta cidade enorme que é<br />
São Paulo, mas que nunca mais se<br />
esqueceram.<br />
Uma recordação afetuosa<br />
Uma das impressões que me ficaram<br />
muito marcadas foi a recordação<br />
de um primo, sobrinho dela,<br />
portanto.<br />
O Sr. Horácio Black 1 foi quem recolheu<br />
essa recordação.<br />
Ele foi fazer uma visita a esse primo<br />
e explicou que estava recolhendo<br />
recordações das pessoas que tinham<br />
conhecido Dona Lucilia, e que<br />
podiam lembrar alguns fatos. E esse<br />
primo frequentou bastante a casa de<br />
Mamãe, mais ou menos até ele fazer<br />
30 anos de idade. Depois, os trabalhos<br />
o arrastaram para outros lugares,<br />
mas sem que ele deixasse de<br />
ter o tempo inteiro uma recordação<br />
muito afetuosa e muito respeitosa<br />
acerca dela. E quando o Sr. Horácio<br />
Black perguntou-lhe que impressão<br />
ele tinha dela, esse senhor contou<br />
esse fato.<br />
14
Fotos: M. Shinoda; J. Dias.<br />
Dona Lucilia, alguns anos<br />
antes de sua morte.<br />
15
Dona Lucilia<br />
Meus pais, minha irmã e eu morávamos<br />
na casa de minha avó 2 , que<br />
também era avó desse meu primo.<br />
Os pais dele foram fazer uma viagem<br />
ao Rio de Janeiro e deixaram<br />
uma filha e dois filhos hospedados<br />
na casa de minha avó, os quais deveriam<br />
ali ficar até que eles voltassem<br />
do Rio.<br />
A menina, conforme os costumes<br />
daquele tempo, não dava trabalho.<br />
Os costumes eram ainda conservadores<br />
e ela era uma moça tão excelente<br />
que se tornou depois uma pessoa<br />
séria, correta, direita.<br />
Mas um meninote, que tem liberdade<br />
de sair sozinho, e com os pais<br />
viajando, dava mais trabalho.<br />
Dona Gabriela: obraprima<br />
de personalidade<br />
Minha avó era uma senhora muito<br />
altiva, muito bonita, eu diria, muito<br />
majestosa. Nós temos um quadro<br />
dela, pintado por um pintor parisiense<br />
do ano 1913, mais ou menos,<br />
que é uma verdadeira obra-prima de<br />
Quadro de Dona Gabriela pintado<br />
em Paris, no ano de 1913.<br />
Minha avó era<br />
uma senhora muito<br />
altiva, muito bonita,<br />
eu diria, muito<br />
majestosa.<br />
pintura, mas ela era uma obra-prima<br />
de personalidade. E ela, com a preocupação<br />
de manter os netos no freio<br />
para que tudo corresse direito, era<br />
ao mesmo tempo afetuosa, mas muito<br />
brava.<br />
E na hora do almoço todo mundo<br />
precisava estar presente. Havia muitas<br />
casas onde os pais faziam questão<br />
da pontualidade absoluta. Toda<br />
a criançada tinha que estar em casa<br />
na hora certa para almoçar. Era esse<br />
o sistema de minha avó.<br />
Esse meu primo, vendo-se livre<br />
dos pais dele, saiu antes do almoço<br />
e foi fazer um passeio nas cercanias<br />
da casa de minha avó. Mas ele não<br />
morava naquele bairro, gostou enormemente<br />
de passear e chegou muito<br />
tarde para o almoço.<br />
Quando ele entrou, minha<br />
avó, diante de todos que estavam<br />
presentes para o almoço,<br />
perguntou-lhe com severidade:<br />
— Fulano, onde é que você<br />
esteve?<br />
Ele disse:<br />
— Vovó, eu estive passeando.<br />
— Mas você imagina que pode<br />
tomar tal atitude na casa de<br />
sua avó? Não compreende que<br />
seu dever é deixar a sua avó<br />
inteiramente despreocupada<br />
quanto a você, e precisa, portanto,<br />
estar presente na hora exata<br />
do almoço? Isto que você fez é<br />
um disparate.<br />
Então ele desandou no choro.<br />
Era um menino de uns doze anos<br />
e chorão. Dona Lucilia, vendo<br />
que minha avó estava zangada,<br />
achou que não era o caso de liquidar<br />
o caso ali, mas levar o menino<br />
embora e mandar que lhe trouxessem<br />
almoço noutra sala da casa, e ela assistir<br />
ao almoço dele, conversar com<br />
ele, agradar-lhe um pouco.<br />
Bondade de Dona Lucilia<br />
Então ela virou-se para o menino<br />
e disse:<br />
— Olhe, meu filho, não se preocupe;<br />
nós daqui a pouco vamos falar<br />
com sua avó, mas agora vou levar<br />
você para almoçar naquela outra<br />
sala.<br />
Mamãe o suspendeu e ele abraçou-a.<br />
Foram para outra sala, onde<br />
ela arranjou o almoço para ele, conversou,<br />
explicou com muita bondade<br />
que meu primo de fato tinha andado<br />
errado; mas que ela ia arranjar<br />
com a avó dele para não lhe impor<br />
nenhum castigo, e todas as coisas se<br />
resolveriam bem.<br />
Agora vem o lado interessante.<br />
Esse primo contou que quando<br />
ela o segurou e o conduziu para<br />
a outra sala, ele sentiu que emanava<br />
da pessoa dela tanta bondade, tanta<br />
pena dele, tanta compaixão, tanta<br />
compreensão porque ele estava sofrendo<br />
e tanto desejo de fazer bem a<br />
ele, que ele parou de chorar, sentiu-<br />
-se consolado e foi almoçar.<br />
Ele tinha um apetite igual ao meu,<br />
um apetite feroz. Comeu o quanto<br />
quis. Depois minha mãe o deixou e<br />
na casa não se falou mais disso. Minha<br />
avó também não tocou no assunto.<br />
Comentário dele:<br />
— Tia Lucilia ficou marcada para<br />
mim a vida inteira como uma santa!<br />
Porque uma bondade tão grande ficou<br />
como que impregnada em mim,<br />
e até hoje eu ainda sinto o calor dessa<br />
bondade.<br />
É um homem um ano mais moço<br />
do que eu. Está velho, portanto. Mas<br />
até agora ele sente o afeto de Dona<br />
Lucilia, a propósito desse pequeno<br />
episódio que para ele, enquanto menino,<br />
tinha sido uma tragédia.<br />
16
Sepultura de Dona Lucilia - Cemitério da Consolação, São Paulo. Em destaque, Dona Lucilia em 1968,<br />
meses antes de sua morte.<br />
Tranquilizando e<br />
incutindo confiança<br />
nas pessoas<br />
O trato dela com os que estão neste<br />
auditório, pelo que me é dado ver<br />
no cemitério 3 , é desse gênero. Quando<br />
vou ao cemitério, discretamente<br />
eu olho para as fisionomias, para ver<br />
como estão, o que exprimem. E frequentemente<br />
vejo pessoas que chegam<br />
preocupadas, e às vezes sofredoras.<br />
Ficam paradas; algumas rezando;<br />
noto, pelo rosário nas mãos<br />
ou pelos movimentos dos lábios, que<br />
estão orando.<br />
Outras estão quietas. Tenho impressão<br />
de que aquelas cercanias da<br />
sepultura vão aplacando as pessoas,<br />
adoçando, dando um modo sensato<br />
de considerar as coisas, um modo de<br />
tranquilizar, de ter confiança, como<br />
se Dona Lucilia lhes estivesse sussurrando<br />
alguma coisa aos ouvidos.<br />
É a realização, talvez, de uma missão<br />
que ela efetua depois de morta<br />
Nas cercanias<br />
da sepultura de<br />
Dona Lucilia,<br />
as pessoas vão se<br />
aplacando, adoçando,<br />
tranquilizando, como<br />
se Ela lhes estivesse<br />
sussurrando alguma<br />
coisa aos ouvidos.<br />
porque não pôde realizar em vida.<br />
Ela era principalmente mãe. Todo<br />
o modo de ser dela era voltado para<br />
ser mãe. E eu às vezes me perguntava:<br />
“Que coisa curiosa! Ela, com o<br />
espírito tão voltado para ser mãe, teve<br />
apenas dois filhos. Mas por que<br />
Deus despertou nela um amor materno<br />
tão enorme, para tanta gente,<br />
quando dela não haverá senão uma<br />
descendência tão pequena?”<br />
Mas quando ela morreu e começou<br />
a aparecer essa descendência sobrenatural<br />
de filhos que a graça<br />
aproxima dela para rezarem em<br />
união com ela, para obterem graças<br />
pela intercessão dela, eu compreendi.<br />
Ela rezou e sofreu muito nesta vida<br />
para poder fazer muito bem na<br />
outra vida.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 15/1/1994)<br />
1) Grande admirador da mãe de <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, o Sr. Horácio Black foi um<br />
dos principais colaboradores da<br />
obra “Dona Lucilia”, publicada em<br />
setembro de 1995.<br />
2) Dona Gabriela Ribeiro dos Santos.<br />
3) Dona Lucilia foi enterrada no<br />
Cemitério da Consolação, na<br />
capital paulista. Com frequência,<br />
jovens participantes do movimento<br />
fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dirigiam-se<br />
afetuosamente ao túmulo de Dona<br />
Lucilia.<br />
17
Calendário dos Santos –––––––––<br />
1. Solenidade de Todos os Santos.<br />
2. Comemoração de todos os Fiéis<br />
Defuntos.<br />
3. São Martinho de Lima (ou de<br />
Porres), Religioso (†Lima, 1639).<br />
Ingressou aos 15 anos como oblato<br />
em um convento dominicano de<br />
Lima, no qual mais tarde professou<br />
como irmão leigo. Exerceu habitualmente<br />
os mais humildes serviços<br />
com despretensão e amor de Deus.<br />
Encarregado da enfermaria, possuía<br />
um verdadeiro dom para tratar<br />
os doentes, curando-os não apenas<br />
fisicamente mas também fazendo o<br />
bem às suas almas.<br />
4. São Carlos Borromeu, Bispo e<br />
Confessor (†Milão, 1584). Foi perfeito<br />
modelo de pastor das almas,<br />
aplicando em Milão as reformas ordenadas<br />
pelo Concílio de Trento.<br />
Faleceu com 46 anos.<br />
5. São Zacarias e Santa Isabel<br />
(†Palestina, séc. I). Pais de São<br />
João Batista, o Precursor do Messias.<br />
“Ambos eram justos diante de<br />
Deus, e de modo irrepreensível seguiam<br />
todos os mandamentos e<br />
preceitos do Senhor” (Lc 1,6).<br />
6. XXXII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
São Nuno Álvares Pereira. Foi<br />
Condestável de Portugal. No fim de<br />
sua vida, ingressou como oblato na<br />
Ordem Carmelita (†1431).<br />
7. Beato Francisco Palau, Confessor<br />
(†Tarragona, Espanha,<br />
1872). Nascido em Aytona, na Catalunha,<br />
professou solenemente<br />
aos 21 anos de idade. Possuía um<br />
particular discernimento do papel<br />
desempenhado pelo demônio no<br />
mundo, e empenhou-se para que a<br />
Igreja ampliasse o uso do exorcismo<br />
como arma espiritual adequada<br />
às necessidades dos fiéis.<br />
8. Cinco Santos Escultores, Mártires<br />
(†Panônia, 306). Foram decapitados<br />
por se recusarem a esculpir<br />
estátuas de ídolos. Seus corpos foram<br />
lançados ao rio Danúbio.<br />
9. São Teodoro, Mártir (†Ásia<br />
Menor, séc. III). Foi decapitado<br />
por ter confessado corajosamente<br />
a Fé cristã. Seu túmulo, em Achaita,<br />
atual Turquia, foi grande foco<br />
de peregrinações. Juntamente com<br />
São Jorge e São Demétrio constitui<br />
uma tríade de Santos militares<br />
orientais.<br />
10. São Leão Magno, Papa, Confessor<br />
e Doutor da Igreja (†Roma,<br />
Santo Estanislau Kostka -<br />
Barcelona, Espanha.<br />
461). Combateu as heresias do eutiquianismo<br />
e do donatismo e enfrentou<br />
sozinho Átila, Rei dos Hunos,<br />
que não invadiu a Cidade Eterna<br />
porque ficou impressionado pela<br />
extraordinária força moral do<br />
Pontífice.<br />
11. São Martinho de Tours, Bispo<br />
e Confessor (†Candes, França,<br />
397). Dois anos depois de se ter convertido<br />
à Fé católica, deixou o exército<br />
e passou a levar vida solitária,<br />
sob a orientação espiritual de Santo<br />
Hilário de Poitiers. Eleito mais tarde<br />
Bispo de Tours, exerceu de modo<br />
admirável suas funções de pastor.<br />
12. Santo Esíquio, Bispo de<br />
Vienne, França (†552).<br />
13. XXXIII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
Santo Estanislau Kostka, Confessor<br />
(†Roma, 1567). Convidado<br />
a ingressar na Companhia de Jesus<br />
pela própria Santíssima Virgem,<br />
encontrou grandes dificuldades<br />
para atender ao chamado, pois<br />
seu pai, embora católico, opôs-se<br />
inabalavelmente à vocação religiosa<br />
de Estanislau. Tendo feito o heroico<br />
voto de peregrinar pela Terra<br />
inteira, se necessário fosse, até encontrar<br />
uma casa da Companhia de<br />
Jesus que o quisesse aceitar sem a<br />
licença do pai, caminhou 700 km,<br />
de Viena até a Alemanha, à procura<br />
de São Pedro Canísio. Este o<br />
acolheu com bondade e o encaminhou<br />
a Roma, com uma carta de<br />
recomendação a São Francisco de<br />
Borja. Foi, então, aceito como noviço<br />
da Companhia, mas permaneceu<br />
nessa condição somente 9 meses,<br />
pois morreu, como desejava, na<br />
festa da Assunção de Nossa Senhora<br />
do ano de 1567. Não chegou a<br />
completar 17 anos de idade.<br />
18
––––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
14. São Serapião, Mártir (†Alexandria,<br />
séc. III). Foi martirizado<br />
no Egito, durante a perseguição do<br />
Imperador Décio.<br />
15. Santo Alberto Magno, Bispo<br />
e Doutor da Igreja (†Colônia, Alemanha,<br />
1280).<br />
16. Santa Margarida da Escócia<br />
(†Edimburgo, 1093). Nasceu<br />
na Hungria, cerca do ano 1046. Filha<br />
dos reis da Inglaterra, foi dada<br />
em matrimônio a Malcom III, Rei<br />
da Escócia, subindo ao trono aos 24<br />
anos. Teve oito filhos, que educou<br />
cristãmente, e cuidou da instrução<br />
religiosa e civil do seu povo.<br />
17. Santa Hilda, Abadessa de<br />
Whitby, Northumbria (†680).<br />
18. São Romano, Diácono e<br />
Mártir. Por ter incentivado os cristãos<br />
perseguidos a permanecerem<br />
firmes e constantes em sua Fé, foi<br />
aprisionado e morreu estrangulado.<br />
19. Santos Roque González, Afonso<br />
Rodríguez e João del Castillo,<br />
Presbíteros e Mártires (†Rio Grande<br />
do Sul, Brasil, 1628). Foram martirizados<br />
por índios selvagens, atiçados<br />
pelos seus pajés, em território<br />
que então pertencia à Coroa espanhola<br />
e hoje integram o Estado do<br />
Rio Grande do Sul. Segundo depuseram<br />
53 testemunhas, do coração<br />
do Pe. Roque González, arrancado<br />
de seu peito pelos índios enfurecidos,<br />
saía uma voz que dizia: “Matastes<br />
a quem tanto vos amava e queria.<br />
Matastes, porém, só o meu corpo,<br />
porque minha alma está no Céu!”<br />
20. Solenidade de Cristo Rei.<br />
21. São Gelásio, Papa e Confessor<br />
(†Roma, 496). Procurou mais<br />
Santa Margarida da Escócia -<br />
Montreal, Canadá.<br />
servir do que exercer a sua autoridade,<br />
associou a castidade aos méritos<br />
da doutrina, morreu pobre,<br />
após ter enriquecido os indigentes.<br />
22. Santa Cecília, Virgem e Mártir<br />
(†Roma, séc. III).<br />
23. São Columbano, Abade<br />
(†Itália, 615). Tendo abraçado a vida<br />
monástica, partiu da Irlanda,<br />
sua terra natal, para a França, onde<br />
fundou muitos mosteiros que governou<br />
com austera disciplina.<br />
24. Santos André Dung-Lac,<br />
Presbítero, e Companheiros, Mártires<br />
(†Vietnã, séc. XVI).<br />
25. Santa Catarina de Alexandria,<br />
Virgem e Mártir (†Egito,<br />
305). Conduzida diante do Imperador<br />
por ser cristã, censurou-o<br />
corajosamente por perseguir a Religião<br />
verdadeira, fez a apologia do<br />
Cristianismo e demonstrou a falsidade<br />
dos cultos idolátricos. O Imperador,<br />
encolerizado, condenou à<br />
morte.<br />
26. São Silvestre Gozzolini<br />
(†1267). Além de abade e anacoreta,<br />
fundou no deserto, perto do<br />
monte Fano, Itália, a Congregação<br />
dos Silvestrinos.<br />
27. I Domingo do Advento.<br />
Santa Catarina Labouré, Virgem<br />
(†Paris, 1876).<br />
28. São Tiago da Marca, Confessor<br />
(†Nápoles, 1476). Vivia austeramente<br />
fazendo jejuns e penitências<br />
continuamente.<br />
29. São Saturnino, Bispo e Mártir<br />
(†França, séc. III). Enviado para<br />
a evangelização das Gálias, fundou<br />
a diocese de Toulouse. Segundo<br />
um relato do século V, incorreu<br />
na ira dos sacerdotes de Júpiter,<br />
porque sua simples presença tornava<br />
mudo o ídolo ao qual eles costumavam<br />
sacrificar um touro. Certo<br />
dia, os devotos de Júpiter prenderam<br />
São Saturnino e exigiram que<br />
fosse ele próprio sacrificar o touro.<br />
Diante da recusa do Santo, que<br />
ademais desafiou Júpiter a fulminá-<br />
-lo com um raio se fosse capaz disso,<br />
os pagãos o condenaram a ser<br />
arrastado até à morte pelo mesmo<br />
touro. Por uma piedosa lembrança,<br />
os toureiros o têm, na Espanha, como<br />
seu protetor especial.<br />
30. Santo André, Apóstolo e<br />
Mártir (†séc. I).<br />
19
Hagiografia<br />
São Pio V,<br />
herói em meio<br />
às angústias!<br />
A célebre batalha de Lepanto, na qual a<br />
Armada Católica logrou afastar o poderio<br />
otomano que se acercava do Ocidente<br />
Cristão, foi assinalada por insigne heroísmo.<br />
Entretanto, houve quem, apesar de não<br />
empunhar armas físicas, obteve de Deus o<br />
bom êxito dos guerreiros da Fé.<br />
No século XVI, o protestantismo<br />
tinha um vigor incomparavelmente<br />
maior do que hoje; estava ainda<br />
na sua fase de expansão, de luta. E<br />
era muito de se temer que os protestantes<br />
aproveitassem a agressão feita<br />
pelos maometanos a um país católico,<br />
para eles mesmos invadirem outros<br />
países católicos. Tanto mais que<br />
já havia disso uma experiência.<br />
À Casa d’Áustria, que governava<br />
a Áustria e a Hungria, pertencia habitualmente,<br />
por eleição, o título de<br />
Imperador do Sacro Império Romano<br />
Alemão. Várias vezes ela se viu<br />
em dificuldades seríssimas por cau-<br />
T<br />
antos foram os comentários<br />
feitos a respeito da batalha de<br />
Lepanto, em vários anos sucessivos,<br />
que quase não há algo para<br />
acrescentar. Mas vou destacar um herói<br />
da batalha de Lepanto, a propósito<br />
do qual poucos historiadores falam.<br />
Esse herói foi o Papa São Pio V.<br />
No século XVI, os<br />
cristãos da Europa<br />
estavam divididos<br />
Em que sentido ele foi um herói,<br />
e por que é importante para nós reconhecermos<br />
o heroísmo dele?<br />
São Pio V via o poder otomano<br />
crescer cada vez mais e o perigo de<br />
que eles se lançassem sobre a Itália,<br />
por exemplo, ou qualquer outra parte<br />
da Europa, e operassem uma invasão<br />
com efeitos talvez mais ruinosos<br />
do que a dos árabes na Espanha,<br />
no começo da Idade Média.<br />
Isto porque no tempo de São Pio<br />
V, século XVI, os cristãos da Europa<br />
estavam divididos entre católicos e<br />
protestantes. Já havia, portanto, instalada<br />
entre os cristãos, essa lamentável<br />
divisão a qual enfraquece tanto as<br />
forças católicas e que nós desejamos<br />
remediar pela conversão de todos.<br />
20
Fotos: F. Lecaros; T. Ring; S. Hollmann.<br />
Batalha de Lepanto (Museu Naval de Madri, Espanha); à direita,<br />
São Pio V (Basílica de Santa Maria Maggiore, Roma).<br />
sa de combinações, ou ao menos<br />
de convergências claras, entre protestantes,<br />
do interior do Sacro Império,<br />
e otomanos, de fora dele, visando<br />
forçar a capitulação da Casa<br />
d’Áustria e liquidar de imediato o<br />
Catolicismo, pelo menos nos povos<br />
de língua alemã.<br />
Assim, para a Santa Sé, a ameaça<br />
otomana era muito mais forte do<br />
que foi a ameaça árabe, a qual, entretanto,<br />
fora tão terrível. Porque no<br />
tempo de São Pio V os cristãos estavam<br />
divididos.<br />
Indecisão de<br />
Felipe II<br />
Nessa situação, São<br />
Pio V precisava apelar,<br />
naturalmente, para<br />
quem era o apoio temporal<br />
da Igreja em seu tempo:<br />
Felipe II, Rei da Espanha.<br />
Com efeito, o<br />
Papa só podia encontrar<br />
apoio, dentre as<br />
grandes potências católicas,<br />
em Felipe II e<br />
21
Hagiografia<br />
depois em Veneza, uma grande cidade<br />
marítima, a qual constituía uma<br />
república aristocrática, com largo<br />
desenvolvimento em todo o Mediterrâneo<br />
e com muitos bons navegadores<br />
e boas frotas. Se bem que o<br />
poder de Veneza fosse ponderável,<br />
o grande poder decisivo era de Felipe<br />
II.<br />
Os historiadores reconhecem —<br />
mesmo aqueles que admiram Felipe<br />
II, e têm muitas razões para isso;<br />
eu sou um admirador dele —, entretanto,<br />
em Felipe II um homem extraordinariamente<br />
indeciso. Quando<br />
precisava resolver alguma questão,<br />
tinha vaivéns: concordava, depois<br />
discordava, mandava embaixadores,<br />
pedia prazo, deixava passar o<br />
prazo… Não era fácil vencer a indecisão<br />
de Felipe II.<br />
São Pio V via o perigo crescer e<br />
todo o assunto ser resolvido numa<br />
sala do Palácio Real de Madri, ou do<br />
Escorial, por Felipe II sozinho, ou<br />
Felipe II, por Antonio Moro - Museu<br />
de Belas Artes, Bilbao (Espanha).<br />
São Pio V lutou<br />
e desenvolveu um<br />
esforço igual ou maior<br />
do que os guerreiros<br />
vencedores de<br />
Lepanto.<br />
com seus auxiliares. Se, em última<br />
análise, Felipe II se retraísse, de repente<br />
a horda maometana desataria<br />
sobre a Itália, e depois atingiria toda<br />
a Cristandade; seria o fim da Civilização<br />
Cristã no Ocidente. Não seria<br />
o fim da Igreja porque Ela é imortal;<br />
mas ao que a Igreja poderia ficar reduzida<br />
ninguém sabe.<br />
Pástor 1 narra as tratativas de São<br />
Pio V com Felipe II, e diz que constituíram<br />
para o Papa um verdadeiro<br />
martírio, tanto teve ele que pedir ao<br />
Rei de Espanha. Felipe II fazia exigências;<br />
São Pio V solicitava<br />
apoio para uns e para outros,<br />
a fim de atender as exigências<br />
financeiras e outras<br />
de Felipe II. Afinal conseguia,<br />
porém Felipe II queria<br />
mais. Depois Felipe II pedia<br />
que o Papa mandasse seus<br />
navios, mas o Pontífice não<br />
os possuía. São Pio V acabou<br />
arranjando os navios, e Felipe<br />
II já não queria enviar a<br />
esquadra dele. Entretanto,<br />
apenas os navios da Santa Sé<br />
não adiantariam…<br />
É certo que, se não fosse<br />
a pressão de São Pio V,<br />
não haveria a batalha de Lepanto,<br />
porque a Espanha<br />
não teria mandado sua esquadra,<br />
a qual era o grande<br />
contingente decisivo entre<br />
as forças navais aliadas.<br />
Dessa forma, os historiadores<br />
de São Pio V reconhecem<br />
que para ele foi, ao pé<br />
da letra, um martírio lutar<br />
em tais condições; ele foi um verdadeiro<br />
herói em aguentar a angústia<br />
de tal situação, e ao mesmo tempo<br />
combater até o último momento,<br />
para conseguir afinal de contas<br />
que as tropas saíssem e a batalha se<br />
travasse.<br />
Nossa Senhora<br />
aparece a São Pio V<br />
Assim compreendemos melhor a<br />
razão pela qual houve a famosa aparição<br />
a São Pio V, quando ele estava<br />
reunido com cardeais, em Roma,<br />
tratando de algum assunto. Enquanto<br />
a reunião se desenvolvia, em certo<br />
momento ele se levantou e rezou<br />
um terço pela vitória dos católicos<br />
sobre os maometanos, porque ele tinha<br />
a noção de que, cedo ou tarde,<br />
deveria realizar-se uma grande batalha,<br />
a qual seria decisiva para a Cristandade.<br />
Enquanto ele rezava, ou terminada<br />
a oração do terço, Nossa Senhora<br />
Auxiliadora apareceu-lhe e comunicou-lhe<br />
a vitória cristã na batalha<br />
de Lepanto. São Pio V, então, foi ao<br />
local da sala onde estavam reunidos<br />
os cardeais e informou-lhes: “Nós<br />
podemos nos tranquilizar. A batalha<br />
foi ganha. Eu tive uma revelação<br />
neste sentido.”<br />
Naquele tempo não havia rádio,<br />
telégrafo ou televisão; e uma notícia<br />
dessas levaria um tempo enorme para,<br />
desde Lepanto, chegar até Roma.<br />
Entretanto, ele a recebeu no próprio<br />
dia da vitória. Ou seja, foi uma revelação<br />
sobrenatural feita por Nossa<br />
Senhora a São Pio V.<br />
Por que a ele? Porque era o chefe<br />
da Cristandade, não tem dúvida.<br />
Mas também porque São Pio V tinha<br />
lutado a propósito dessa guerra<br />
e desenvolvido um esforço igual ou<br />
maior do que os batalhadores de Lepanto.<br />
Foi um verdadeiro herói, como<br />
Dom João d’Áustria e os outros<br />
grandes guerreiros que venceram em<br />
Lepanto.<br />
22
Muitas vezes as dores<br />
morais atormentam<br />
mais que as físicas<br />
Alguém dirá: “Isso, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
eu não compreendo, porque ele<br />
não arriscou a vida, mas ficou comodamente<br />
em Roma à espera de<br />
que viesse uma notícia. Se ele não<br />
arriscou a vida e não combateu,<br />
não pode ser herói.”<br />
Este é o ponto, o prisma falso<br />
que devemos tirar de nossa cabeça.<br />
Por certo, quem luta com as<br />
armas na mão é um herói. Mas a<br />
Doutrina Católica jamais admitiu<br />
a tese de que esta é a única forma<br />
de heroísmo.<br />
O heroísmo não é apenas o ato<br />
pelo qual o homem enfrenta o risco<br />
de perder a vida ou a integridade<br />
física. Mas é a atitude pela qual<br />
o homem enfrenta qualquer grande<br />
dor ou grande infortúnio. Isso<br />
caracteriza o herói.<br />
Há dores morais e dores físicas.<br />
E muitas vezes as dores morais<br />
atormentam incomparavelmente<br />
mais, sendo mais difícil<br />
enfrentá-las do que as dores físicas.<br />
Um exemplo da heroicidade<br />
que há em enfrentar dores morais<br />
é a Paixão de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, a qual se divide claramente<br />
em duas partes: a Agonia e a Paixão<br />
propriamente, onde Ele foi preso,<br />
torturado e depois crucificado.<br />
Na primeira parte, a Agonia, o<br />
Redentor desenvolveu um verdadeiro<br />
e perfeito heroísmo, no mais<br />
alto sentido da palavra. Porque todos<br />
os sofrimentos morais ocasionados<br />
pelos pecados, pela ingratidão<br />
da Humanidade, pela maldade<br />
de que Jesus seria vítima, atingiram<br />
tal ponto que Ele pediu a<br />
Deus que, se fosse possível, afastasse<br />
o cálice. Ele chegou a suar sangue,<br />
dentro da perspectiva do que<br />
ia acontecer.<br />
Oração no Horto - Basílica de Paray le Monial, França.<br />
Sofrimento moral<br />
de Nosso Senhor no<br />
Horto das Oliveiras<br />
A aceitação antecipada do sofrimento,<br />
a dor moral que Nosso Senhor<br />
teve no Horto das Oliveiras foi<br />
um autêntico heroísmo, embora ali<br />
não tenha combatido fisicamente<br />
contra ninguém. Mas Ele deliberou<br />
aceitar o tormento e a morte, apesar<br />
da inutilidade de seus sofrimentos<br />
para quem não correspondesse à<br />
graça e acabasse se perdendo.<br />
Essa deliberação foi heroica. A<br />
dor de alma que tal deliberação Lhe<br />
causou foi uma dor autêntica, embora<br />
Ele fisicamente não estivesse<br />
combatendo.<br />
Alguém dirá: “Mas Jesus ofereceu<br />
o risco da vida d’Ele; e esse risco<br />
é um elemento integrante do heroísmo.”<br />
É verdade; entretanto Nossa Senhora<br />
não o ofereceu. N’Ela ninguém<br />
tocou. Seu sofrimento foi, de<br />
ponta a ponta, moral, sem nenhuma<br />
dor física. Ora, Maria Santíssima<br />
é chamada, invocada, aclamada<br />
pela Igreja como Regina Martyrum<br />
— Rainha de todos os mártires.<br />
Apesar de não ter sofrido fisicamente,<br />
ninguém, em toda a História<br />
do mundo, padeceu como Nos-<br />
23
Hagiografia<br />
São Pio V recebe a revelação da<br />
vitória cristã em Lepanto - Museu<br />
Naval de Madri, Espanha.<br />
sa Senhora pela Paixão e Morte de<br />
seu Filho.<br />
Vemos assim que ter a força de<br />
alma para aguentar as decepções,<br />
calúnias, frustrações, enfim, tudo<br />
quanto o homem pode sofrer na vida,<br />
é um verdadeiro heroísmo. É<br />
uma tolice imaginar ser herói apenas<br />
quem combate de armas na<br />
mão.<br />
Quanto a São Pio V, alguém poderia<br />
perguntar: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, na comodidade<br />
da sala do Palácio Pontifício,<br />
qual era o heroísmo dele?”<br />
Foi um heroísmo de alma,<br />
que consistiu em enfrentar<br />
este sofrimento: ter lutado<br />
com Felipe II em condições<br />
tão difíceis, em vez de entregar<br />
os pontos e procurar não<br />
ver o perigo iminente. O que<br />
ele fez caracteriza o verdadeiro<br />
herói.<br />
Confiança heroica<br />
Devemos entender que, na<br />
nossa vida de todos os dias, temos<br />
ocasiões de praticar verdadeiramente<br />
o heroísmo. Inclusive<br />
aguentando os quotidianos<br />
“rios chineses”, que nos fazem<br />
estar ziguezagueando continuamente<br />
em torno de algo que<br />
nunca chega ao fim. Isso é heroísmo.<br />
Como foi heroico o profeta<br />
Simeão, esperando sempre,<br />
até a extrema velhice, para,<br />
afinal de contas, ver o Salvador<br />
que lhe tinha sido prometido!<br />
E Abraão que ofereceu<br />
Isaac, o filho da promessa, o<br />
qual ele teve na velhice!<br />
Há uma confiança heroica<br />
pela qual nunca se desiste<br />
de esperar. Essa confiança<br />
dói, e a alma fica às vezes como<br />
que sangrando, mas a pessoa<br />
continua a confiar, dizendo:<br />
“A promessa interior, inefável,<br />
feita por Nossa Senhora<br />
não falhará! Eu confio na palavra<br />
d’Ela, cumprirei a minha missão.<br />
Vou para a frente. Que Maria Santíssima<br />
me ajude!”<br />
Qual é a palavra de Nossa Senhora?<br />
É uma voz da graça, uma<br />
apetência que sentimos, a qual nos<br />
leva a praticar a virtude e o amor<br />
de Deus. É com base nisso que devemos<br />
estruturar a nossa confiança.<br />
Uma alma assim tem uma confiança<br />
heroica: por isso a oração dessa<br />
alma move as montanhas.<br />
Em que consiste o<br />
verdadeiro heroísmo<br />
Nossa Senhora só revelou a São<br />
Pio V o que tinha acontecido, depois<br />
de ele ter rezado um terço. Quer dizer,<br />
Ela quis mostrar o quanto Lhe<br />
é grato pedirmos tudo quanto precisamos<br />
por meio do rosário; por isso,<br />
resolveu esperar aquela ocasião para<br />
dar-lhe esse enorme galardão.<br />
A Fé heroica move as montanhas.<br />
Fé que crê apesar de todas<br />
as aparências em sentido contrário.<br />
Não desanima, não volta atrás.<br />
Continua a lutar apesar de ter apenas<br />
um palito, porque possui o que<br />
vale mais do que tudo: um terço na<br />
mão.<br />
A nossa principal arma é a oração.<br />
E a oração é vitoriosa quando<br />
inspirada pela Fé que move as montanhas,<br />
segundo a expressão empregada<br />
por Nosso Senhor no Evangelho.<br />
Imaginemos um exército católico,<br />
que se encontra bloqueado diante<br />
de uma montanha cujo túnel foi<br />
destruído. Um santo começa a cavar<br />
a montanha e milagrosamente a levanta<br />
com as mãos. O exército passa<br />
e o varão de Deus deixa baixar a<br />
montanha, abre o túnel e sai do outro<br />
lado. Consideraríamos esse santo<br />
um colosso. Um homem que carregou<br />
com as duas mãos uma montanha!<br />
Oh! Fantástico! Seria admirável.<br />
Porém, muito mais bonito é carregar<br />
uma montanha com a oração,<br />
do que com as duas mãos. Isso fez<br />
São Pio V por meio de sua prece.<br />
Percebemos assim como é o verdadeiro<br />
heroísmo.<br />
Nós devemos ter apetência de<br />
derramar o nosso sangue pela Igreja?<br />
Pode ser que a graça nos dê essa<br />
apetência. Será uma coisa esplêndida!<br />
O desejo de verter o sangue pela<br />
Igreja é uma vontade de doação total.<br />
É magnífico. Não tenho palavras<br />
24
Admirando a quem<br />
Deus pede o sangue<br />
corpóreo na luta<br />
pela Igreja e pela<br />
Civilização Cristã,<br />
devemos entender<br />
que a muitos outros<br />
Ele pede o sangue da<br />
alma.<br />
suficientes para encorajá-los. Os<br />
mártires tinham esse desejo, e muitos<br />
morriam na alegria do sacrifício<br />
que faziam. Porém não posso aceitar<br />
que se entenda ser essa a única forma<br />
de heroísmo; que outras formas<br />
de lutar pela Igreja não são verdadeiro<br />
e autêntico heroísmo.<br />
Então o que é o heroísmo? É a<br />
aceitação enérgica, firme, com espírito<br />
de Fé, de qualquer sofrimento<br />
extraordinário, seja físico ou moral,<br />
que põe em risco a nossa vida ou outros<br />
bens.<br />
Heroísmo de um<br />
sacerdote que guardou<br />
o segredo de confissão<br />
Houve um caso que se contava<br />
no Brasil antigo. Um assassino acabava<br />
de matar alguém numa igreja,<br />
e pediu ao padre que o atendesse<br />
em confissão. O sacerdote, vendo<br />
que ele estava contrito, deu lhe absolvição<br />
e logo depois foi ver no templo<br />
— cidadezinha do interior, de<br />
manhãzinha, a igreja ainda vazia —<br />
quem estava morto. Encontrou um<br />
homem apunhalado. O padre começou<br />
a tirar o punhal, que estava cravado<br />
no corpo da vítima. Entram<br />
pessoas na igreja que começam a gritar,<br />
dizendo que o sacerdote havia<br />
matado aquele homem.<br />
O padre foi processado, condenado,<br />
preso, e passou muitos anos<br />
na cadeia, tido como um sacrílego,<br />
um degradado, um<br />
infame. O assassino tinha fugido<br />
e o sacerdote aceitou essa<br />
pavorosa humilhação, mas<br />
não declarou quem era o criminoso.<br />
Uns dez ou quinze anos depois,<br />
certo dia o padre vê chegar<br />
à cadeia, onde ele cumpria<br />
a pena, pessoas tocando música,<br />
dando brados de viva ao<br />
nome dele.<br />
O que sucedera? O assassino<br />
havia morrido e, pouco antes<br />
de falecer, tinha confessado<br />
que ele era o autor do crime<br />
e que o padre era inocente.<br />
Então o sacerdote foi absolvido<br />
e depois reintegrado<br />
no exercício do ministério sacerdotal.<br />
Embora não tenha levado<br />
pancadas, esse padre sofreu<br />
intensamente. Acho que vários<br />
dos que estão aqui presentes<br />
prefeririam morrer a<br />
passar por isso. Ele foi um<br />
autêntico herói.<br />
Heroísmo é a disposição<br />
de aguentar qualquer grande<br />
sofrimento, por amor a Nossa<br />
Senhora. E foi o que São Pio<br />
V suportou. Portanto, foi herói.<br />
Compreendamos, então,<br />
o valor do heroísmo, ainda<br />
quando incruento. Admirando<br />
a quem Deus pede o sangue<br />
corpóreo na luta pela Igreja e pela<br />
Civilização Cristã, devemos entender<br />
que a muitos outros Ele pede o<br />
sangue da alma.<br />
Quando temos uma grande dor,<br />
devemos dizer: “Quero sofrer isto,<br />
porque não há outro meio para chegar<br />
à finalidade que tenho em vista.<br />
Mas eu olho de frente tudo quanto<br />
estou sofrendo e meço grão por<br />
grão, milímetro por milímetro, todo<br />
o sofrimento que preciso aceitar.<br />
Está bem, eu aceito. Nossa Senhora<br />
São Pio V, por Alonso Antonio<br />
Villamayor - Salamanca, Espanha.<br />
me ajude e me dê força. Isto eu quero,<br />
porque o resultado vale mais do<br />
que eu sou.” Esse é o sofrimento<br />
heroico.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/10/1975)<br />
1) Ludwig von Pastor (1854 – 1928),<br />
historiador alemão, célebre por sua<br />
História dos Papas.<br />
25
Gesta Marial de um Varão Católico<br />
A primeira Comunhão<br />
Na manhã do dia 19 de novembro de 1917, o jovem <strong>Plinio</strong> recebia por<br />
primeira vez a Sagrada Comunhão. Ao longo de sua vida, inúmeras vezes<br />
recordaria ele, com profunda devoção eucarística, aquela data que lhe era<br />
sobremaneira cara. Evoquemos uma dessas suas reminiscências:<br />
Aatmosfera que cercava as<br />
primeiras Comunhões no<br />
meu tempo de menino era<br />
muito especial e foi toda ela organizada<br />
segundo a doutrina e a mentalidade<br />
do grande São Pio X, o Papa<br />
das primeiras Comunhões. Antes de<br />
São Pio X, a tendência corrente era<br />
de que as pessoas só fizessem a primeira<br />
Comunhão quando<br />
estivessem inteiramente<br />
adultas, de maneira tal<br />
que era frequente o fato<br />
de que comungassem pela<br />
primeira vez ao se casar.<br />
O noivo e a noiva esperavam<br />
essa ocasião para<br />
fazer a primeira Comunhão,<br />
pela ideia de que<br />
esta é uma coisa muito sagrada;<br />
e julgava-se que as<br />
crianças não deviam se<br />
aproximar dela porque<br />
não tinham critério para<br />
comungar com o respeito<br />
e a devoção necessários.<br />
Mais importante<br />
é a inocência do<br />
que a capacidade<br />
de pensar<br />
Foi São Pio X que colocou<br />
a questão em termos<br />
diferentes. Segundo<br />
ele, não se trata de saber<br />
o que a criança é capaz de<br />
pensar, mas sim que grau de inocência<br />
ela tem; porque se fôssemos raciocinar<br />
em função de sua capacidade<br />
de pensar, não deveríamos batizar<br />
a criança nos primeiros dias depois<br />
de seu nascimento.<br />
A criança não pensa, mas o Batismo<br />
é uma ocasião para a comunicação<br />
de graças extraordinárias, que<br />
São Pio X<br />
vão ficar vivendo nela para que, logo<br />
no limiar de sua vida de pensamento,<br />
comece pensando bem; já seus<br />
primeiros passos são fortalecidos pela<br />
graça do Batismo. Por causa disso<br />
a Igreja batiza as crianças logo depois<br />
do nascimento.<br />
O mesmo se pode dizer com relação<br />
à Sagrada Comunhão. Desde<br />
que a criança tenha a<br />
ideia, saiba distinguir entre<br />
hóstia e pão, compreenda<br />
que a hóstia é feita<br />
da mesma matéria que o<br />
pão; mas que, pronunciadas<br />
as palavras da Consagração,<br />
há uma transubstanciação,<br />
uma mudança<br />
de substância do pão e do<br />
vinho, e passa a estar ali<br />
presente verdadeiramente,<br />
em Corpo, Sangue, Alma<br />
e Divindade, Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo. Então,<br />
se a criança compreende<br />
isso e cumpre as necessárias<br />
condições, pode<br />
comungar, porque ela está<br />
na sua inocência.<br />
Trajes de primeira<br />
Comunhão<br />
São Pio X quis, e se executou<br />
no tempo dele, que<br />
a festa da primeira Comunhão<br />
fosse muito solene.<br />
Eram ornamentadas<br />
26
<strong>Plinio</strong>, com traje de<br />
Primeira Comunhão.<br />
27
Gesta Marial de um Varão Católico<br />
as igrejas, os altares, as crianças iam<br />
vestidas com trajes especiais de primeira<br />
Comunhão.<br />
Lembro-me de que as meninas<br />
iam trajadas de noivas: vestido branco<br />
até aos pés e véu, grinalda, flores,<br />
sapatos, tudo de cor branca, porque<br />
eram inteiramente inocentes e virginais<br />
e caminhavam de encontro ao<br />
seu Salvador.<br />
E os meninos deveriam ir tão bem<br />
vestidos quanto as posses de seus<br />
pais o permitiam. Por causa disto,<br />
os pais — não necessariamente muito<br />
ricos, mas que possuíam certa largueza<br />
— mandavam fazer roupa es-<br />
<strong>Plinio</strong>, com traje de<br />
Primeira Comunhão.<br />
pecial para os meninos, que, no meu<br />
tempo de infância, era a cópia da<br />
roupa oficial usada em solenidades<br />
por uma das escolas mais famosas<br />
do mundo: o Colégio Eton, na Inglaterra.<br />
E no braço esquerdo colocava-se<br />
uma fita que formava um laço em<br />
cujas pontas havia uns pingentes<br />
dourados. O branco da fita simbolizava<br />
a castidade, a virgindade daquele<br />
menino, e os pingentes dourados<br />
possivelmente representassem<br />
a Fé.<br />
No próprio dia da<br />
primeira Comunhão,<br />
recolhimento<br />
e não festa<br />
No dia da primeira Comunhão<br />
se fazia uma festa em<br />
casa. A recepção da Eucaristia<br />
era de manhã e a festa à<br />
tarde. A família de quem fez<br />
a primeira Comunhão convidava<br />
os parentes e amigos,<br />
mais ou menos da mesma<br />
idade. Então compareciam<br />
vinte, trinta crianças numa<br />
festa enorme onde se servia<br />
chocolate — que era tido<br />
como uma maravilha;<br />
hoje o chocolate se tornou<br />
comum — não com creme<br />
chantilly, mas com clara de<br />
ovo. São Paulo ainda era<br />
uma cidade tão primitiva<br />
que não conhecia creme<br />
de chantilly. Então vinham<br />
aquelas montanhas<br />
de clara de ovo batida<br />
em cima do chocolate<br />
e as crianças devoravam<br />
aquilo. Havia<br />
também frutas, doces,<br />
sanduíches, sorvetes,<br />
refrescos.<br />
Terminado isto, se<br />
fazia uma correria pelo<br />
jardim da casa. À<br />
noite, ia-se dormir,<br />
depois de<br />
ter rezado.<br />
Dona Lucilia,<br />
que organizou a<br />
primeira Comunhão<br />
dos filhos dela<br />
e de uma sobrinha<br />
que morava conosco<br />
em casa, filha<br />
de uma irmã dela,<br />
entendeu que desse<br />
modo a preparação<br />
não estaria bem feita.<br />
Se a festa fosse realizada<br />
no dia da primeira<br />
Comunhão, por causa<br />
da natureza da imaginação<br />
infantil, haveria o risco de<br />
a criança amanhecer pensando mais<br />
na festa do que no Santíssimo Sacramento.<br />
Nós tivemos um curso de preparação<br />
com um padre que dava as aulas<br />
só para nós três — os filhos dela<br />
e uma sobrinha —, explicando a<br />
Doutrina Católica e a História Sagrada.<br />
Depois de examinados e tendo sido<br />
verificado que sabíamos o bastante<br />
para comungar, fizemos parte<br />
de uma primeira Comunhão da<br />
Paróquia de Santa Cecília. Havia<br />
muitas crianças, vestidas de acordo<br />
com os níveis econômicos dos pais,<br />
que eram naturalmente os mais variados.<br />
Algumas estavam ricamente<br />
O traje dos meninos<br />
para a primeira<br />
Comunhão era a<br />
cópia da roupa oficial<br />
usada em solenidades<br />
por uma das escolas<br />
mais famosas do<br />
mundo: o colégio<br />
Eton, na Inglaterra.<br />
28
trajadas, portando, por exemplo, as<br />
meninas, livro de oração todo forrado,<br />
interna e externamente, com madrepérola<br />
ou até com pérolas na bordadura;<br />
e os meninos, livro impresso<br />
em várias cores e muito bonito; além<br />
disso, tinham lindos rosários.<br />
Então, com o afeto e o cuidado<br />
que era todo dela, Dona Lucilia<br />
nos chamou alguns dias antes da<br />
primeira Comunhão e nos avisou<br />
como seria o programa. Ela disse<br />
o seguinte: “Vocês devem entender<br />
que a festa não vai ser no dia<br />
da primeira Comunhão. Nesse dia<br />
vocês não vão estudar nem trabalhar,<br />
será um feriado. Vocês devem<br />
ficar o tempo inteiro fazendo coisas<br />
tranquilas, pequenos brinquedos<br />
calmos, rezando, procurando<br />
lembrar-se do que se deu com vocês,<br />
andando dentro da casa de um<br />
local para outro — a residência era<br />
Lembranças da Primeira<br />
Comunhão.<br />
muito grande —, mas não podem<br />
ir ao jardim nem ficar olhando pelas<br />
janelas. Têm que estar olhando<br />
dentro de casa, para concentrar o<br />
pensamento no Santíssimo Sacramento.”<br />
Segundo São Pio<br />
X, a criança pode<br />
comungar a partir<br />
do momento em<br />
que compreenda<br />
a mudança de<br />
substância do pão e<br />
do vinho no Corpo,<br />
Sangue, Alma e<br />
Divindade de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
Papel com a relação<br />
dos pecados<br />
A preparação feita com<br />
muito cuidado pelo padre, as<br />
explicações de Dona Lucilia<br />
que completavam as aulas do<br />
sacerdote e, depois, esse aviso<br />
nos fizeram ver bem como<br />
era sério o passo que íamos<br />
dar; e evidentemente próprio<br />
a determinar em nós<br />
todo o grau de recolhimento<br />
que uma criança possa<br />
ter.<br />
Eu tinha nove anos de<br />
idade, tomei muitíssimo a<br />
sério o que ela disse e fiz o<br />
propósito de observar esse<br />
recolhimento.<br />
Fiz a primeira Confissão<br />
tão seriamente que, para<br />
não me esquecer de nenhum<br />
dos meus pecados,<br />
anotei uma lista deles para confessá-los<br />
ao padre. Quais seriam os pecados<br />
de um menino de nove anos?<br />
Podemos imaginar.<br />
Entrei no confessionário e o padre<br />
ouviu a minha confissão.<br />
Quando cheguei em casa, pouco<br />
tempo depois, mexendo nos bolsos<br />
não encontrei o papel contendo<br />
a relação de meus pecados.<br />
Então, eu disse a Dona Lucilia:<br />
— Mamãe, preciso ir à igreja para<br />
pegar o meu papel, porque se alguém<br />
ficar com a lista dos meus pecados,<br />
estou perdido.<br />
Ela percebeu logo que era coisa<br />
de criança, mas ficou até satisfeita<br />
vendo como eu tinha tomado a sério<br />
a minha primeira Confissão.<br />
Enquanto ela falava comigo sobre<br />
isso, uma lavadeira que trabalhava<br />
em casa, pessoa muito boa, muito<br />
piedosa, chamada Madalena, estava<br />
dobrando umas roupas para colocá-las<br />
num armário. Mas naturalmente<br />
prestava atenção na conversa<br />
de Mamãe comigo e ouviu o que eu<br />
falei.<br />
29
Gesta Marial de um Varão Católico<br />
A Madalena disse então o seguinte:<br />
— Ah! eu dava tudo para conhecer<br />
os pecados do <strong>Plinio</strong>.<br />
Dona Lucilia, a senhora me<br />
dá licença e eu vou depressa à<br />
Igreja de Santa Cecília para ver<br />
se pego a lista dos pecados do<br />
<strong>Plinio</strong>.<br />
Fiquei ultrajadíssimo, mas<br />
notei que Mamãe não tomou isso<br />
ao trágico nem ficou com medo<br />
de revelações sensacionais. E<br />
vendo que ela não deu importância,<br />
até me esqueci do fato.<br />
A Madalena foi à igreja e não<br />
encontrou a lista. Com certeza<br />
um sacristão ou alguém que limpava<br />
a igreja jogou fora aquele<br />
papel. Não sei que pecados estavam<br />
ali anotados; devo ter dito<br />
alguma mentirinha, faltado<br />
com o respeito a<br />
papai e mamãe, mas<br />
eram pecados que<br />
eu não deveria<br />
ter feito e precisava<br />
pedir perdão<br />
a Deus.<br />
O traje do<br />
Colégio<br />
Eton<br />
Tive também<br />
que experimentar<br />
o famoso<br />
Eton, para ver<br />
se caía bem. Durante<br />
toda a vida, tive um<br />
desagrado de experimentar<br />
roupa: o alfaiate punha uns alfinetes,<br />
depois marcava com giz. O<br />
homem fez aqueles ajeitamentos<br />
e chegou à conclusão que o Eton<br />
estava muito bom. Foi também a<br />
opinião de Dona Lucilia, que em<br />
tudo exigia perfeição e não se contentaria<br />
com um Eton mal cortado.<br />
O alfaiate seria muito bem tratado,<br />
receberia um bom pagamento<br />
pelo trabalho sob a condição de<br />
estar perfeito.<br />
Mamãe<br />
achou que estava<br />
perfeito.<br />
O vestir o Eton<br />
deu-me muita alegria.<br />
Não sei se entrava alguma vaidade<br />
pelo meio, mas eu me considerava<br />
muito importante com aquele traje.<br />
Tinha a sensação de que ficara de<br />
repente mais velho e, portanto, mais<br />
capaz de me impor ao respeito dos<br />
outros.<br />
Na noite que precedeu a primeira<br />
Comunhão eu tive um sonho.<br />
Porém um sonho muito singular,<br />
porque eu via Nosso Senhor<br />
em pé junto à porta de uma casa<br />
bem branca, iluminada por dentro<br />
com uma luz muito clara. Ele vestia<br />
uma túnica branca e uma capa vermelha,<br />
me olhava e abria os braços<br />
para mim.<br />
Isso não tinha nada de comum<br />
com uma visão porque, no meu sonho,<br />
a casa na qual estaria Nosso Senhor<br />
era um enorme doce de coco,<br />
todo revestido de branco. Sendo preciso<br />
notar que jamais gostei de doce<br />
de coco; e que se me fizessem um<br />
doce de coco branco ou vermelho,<br />
ou de qualquer cor, eu não comeria.<br />
Portanto, vê-se que não foi uma coisa<br />
mandada pela Providência, mas<br />
um sonho natural de uma criança<br />
30
No centro,<br />
confessionário e<br />
altar principal da<br />
Igreja de Santa<br />
Cecília. À extrema<br />
esquerda, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> fazendo<br />
ação de graças;<br />
ao lado, iluminura<br />
medieval<br />
representando<br />
a Santa Missa.<br />
que está, isto sim, tomando profundamente<br />
a sério a Comunhão que<br />
vai receber.<br />
Grande veneração para<br />
com a Igreja Católica<br />
No dia seguinte, minha irmã, minha<br />
prima e eu fomos cedo à Igreja<br />
de Santa Cecília, cada um levando<br />
uma vela, pois em determinado<br />
momento da Missa eram acesas as<br />
velas de todas as crianças. Havia<br />
fiscalização, naturalmente, porque<br />
de repente pegava fogo no véu de<br />
uma menina... Tudo era muito organizado.<br />
Afinal começou a Missa, cantada,<br />
um tanto longa, na qual eu me lembro<br />
de que prestei muita atenção,<br />
sem entender bem o que era a Missa.<br />
Eu sabia tratar-se de uma oração<br />
da Igreja, mas de que era a renovação<br />
incruenta do Santo Sacrifício<br />
do Calvário, na qual se dava a transubstanciação,<br />
eu tinha certa noção,<br />
mas não tão clara quanto seria desejável.<br />
Sem embargo disto, vendo que<br />
era uma cerimônia da Igreja, e pela<br />
enorme veneração que eu tinha para<br />
com a Igreja, assisti à Missa muito<br />
atento e rezando.<br />
Na hora da Comunhão, eu entrei<br />
na fila dos meninos e, graças a Nossa<br />
Senhora, comunguei com muito recolhimento<br />
e rezei bastante. Depois, naturalmente,<br />
terminou a cerimônia e<br />
cada criança foi para casa com os seus.<br />
Preparação para<br />
resistir à revolução<br />
“hollywoodiana”<br />
Alguém dirá: “Mas que primeira<br />
Comunhão pobre! Nós<br />
esperávamos muito mais graças,<br />
algum milagre.”<br />
A minha vida não tem milagres.<br />
Ela sempre se fez de piedade,<br />
atenção, vontade de cumprir<br />
perfeitamente os Mandamentos<br />
da Lei de Deus, os Mandamentos<br />
da Igreja; fazer vencer<br />
a Igreja sobre a Revolução e<br />
implantar o reino de Nossa Senhora<br />
na Terra.<br />
Então, do que serviu a primeira<br />
Comunhão?<br />
Ela foi a primeira de uma série de<br />
Comunhões e, sobretudo, preparou<br />
a minha alma para algo de especial:<br />
quando eu tive o meu primeiro contato<br />
com a revolução “hollywoodiana”,<br />
imperando no recreio do Colégio<br />
São Luís, ofereci resistência.<br />
Uma resistência muito dolorida,<br />
mas forte e decidida. Eu não me<br />
lembro, graças a Deus, de ter tido a<br />
menor dúvida: “É preciso ir para a<br />
frente até ao fim.” Não cedi em nada<br />
e aqui estou.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 19/11/1994)<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Régia amenidade<br />
À primeira vista, no esplendor da Idade Média não havia lugar<br />
para a candura e a intimidade. Entretanto, como nos mostra<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a seguir, esta foi a época em que<br />
os homens mais sentiram sua intimidade com Deus.<br />
Há um aspecto da Idade<br />
Média continuamente<br />
desfigurado pela detração<br />
da Revolução: quando vemos altos<br />
castelos com torres, ameias, barbacãs,<br />
fosso e ponte levadiça, temos,<br />
naturalmente, a ideia de um edifício<br />
construído para a luta. E, como os<br />
castelos são, juntamente com as igrejas,<br />
o principal tipo de edifício que<br />
restou da Idade Média, elaboramos<br />
facilmente a ideia de que essa época<br />
foi de uma gravidade extraordinária,<br />
uma seriedade admirável, uma compostura<br />
perfeita. Uma era histórica<br />
na qual todo mundo, perpetuamente,<br />
estava numa atitude recolhida,<br />
tendente ao sublime e, por isto mesmo,<br />
tendente ao severo. E dessa concepção<br />
deduzimos que na Idade Média<br />
não cabia um sorriso, uma alegria,<br />
uma manifestação de contentamento;<br />
que aquela magnífica apresentação<br />
hierática, eu diria quase<br />
decorativa, dos personagens medievais,<br />
excluía certa intimidade, bondade,<br />
abertura de alma.<br />
Sorriso da vida de<br />
todos os dias<br />
Nada é mais falso do que isso.<br />
Quem conhece o bê-á-bá a respeito<br />
da Idade Média sabe dos grandes<br />
festins que a caracterizaram. Não só<br />
os festins aristocráticos nos castelos<br />
e nas residências reais, mas também<br />
as grandes festas populares, em<br />
que, por exemplo, nas praças públicas<br />
da cidade, algumas fontes jorravam<br />
vinho horas seguidas, por conta<br />
do Rei ou do senhor feudal; ou,<br />
mais modestamente, jorravam leite;<br />
em que se levavam bois inteiros para<br />
a praça pública, onde eram organizados<br />
churrascos, em torno dos quais a<br />
população dançava. E, para terminar<br />
a festa, o senhor do lugar jogava peças<br />
de ouro a mancheias para o povo,<br />
que as apanhava para fazer compras<br />
no pequeno comércio dos arredores,<br />
sobretudo de comes e bebes.<br />
Entretanto, havia mais do que essa<br />
alegria magnífica das festas. Exis-<br />
S. Hollmann; G. Kralj; F. Boulay; H. Grados<br />
32
Nas diversas páginas da seção,<br />
típicas cenas medievais.<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Na arte medieval podemos<br />
apreciar a alegria magnífica<br />
das festas, o sorriso da<br />
vida de todos os dias,<br />
a beleza inocente e<br />
cândida do contato entre<br />
as almas nas ocasiões<br />
normais da vida.<br />
tia um sorriso da vida de todos os<br />
dias, uma beleza inocente e cândida<br />
do contato das almas nas ocasiões<br />
normais da vida, que podemos apreciar<br />
bem nas iluminuras medievais.<br />
E, às vezes, também nos vitrais que,<br />
com cores estupendas, nos apresentam<br />
as cenas mais modestas. Por exemplo,<br />
um boi puxando um arado e um<br />
camponês que vai jogando as sementes.<br />
Mais adiante, um grupo de mulheres<br />
que lavam roupa e as batem sobre<br />
umas pedras colocadas junto a um rio.<br />
Depois, um copista, homem do povo,<br />
sentado junto a uma janela com vitral<br />
colorido, e que está copiando um<br />
texto qualquer. Junto dele, um vasinho<br />
bem medieval, pequenino, do<br />
qual sai uma só flor enorme, que não<br />
se sabe como fica em pé ali; e na frente<br />
um lirião, colhido em não sei que jardim<br />
maravilhoso. Céus claros, azuis<br />
de anil, nos quais voam aves de cores<br />
brancas, ou variegadas, em voos também<br />
bonitos. Cercas modestas de agricultura,<br />
não apenas magníficos jardins,<br />
fileiras de legumes e de outras<br />
plantações, mas tudo apresentado<br />
com um colorido tão bonito e tão real<br />
ao mesmo tempo, que se percebe com<br />
que cores interiores a alma inocente<br />
do homem medieval via as coisas.<br />
Pompa e amenidade<br />
O mesmo se dava com a piedade.<br />
Naquele tempo, a Igreja Católica,<br />
como sempre fez, realizava cerimônias<br />
magníficas e com pompa extraordinária,<br />
sobretudo nas grandes<br />
catedrais, em cujos vitrais penetrava<br />
a luz do Sol enquanto a Missa se<br />
desenrolava na capela-mor da igreja,<br />
com belos paramentos, o órgão tocando,<br />
o povo ajoelhado, o incenso<br />
perfumando todo o templo.<br />
Dir-se-ia que nessa pompa não<br />
caberia intimidade. Mas é o contrário.<br />
Se houve época em que os homens<br />
sentiram a sua intimidade com<br />
Deus, a misericórdia, a bondade, a<br />
afabilidade, essa época foi a Idade<br />
Média. E mil contos dessa época histórica,<br />
alguns talvez fantasiados, mas<br />
muitos deles, no total, verdadeiros,<br />
celebram, por essa forma, a extraordinária<br />
amenidade de Deus, de seus<br />
Anjos e Santos, sobretudo de Nossa<br />
Senhora, Rainha de todas as virtudes,<br />
e, portanto, Rainha também da<br />
materna e régia amenidade para<br />
com seus fiéis.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 12/11/1976)<br />
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35
Rainha dos Anjos, por Enrique de<br />
Estencop - Museu Nacional da Arte<br />
de Catalunha - Barcelona, Espanha.<br />
F. Lecaros<br />
Alguém poderá dizer: “Eu sinto que não sou<br />
digno, e que minha oração não vale nada.” De<br />
fato, nenhum homem é digno de ser atendido.<br />
Por isso existe Nossa Senhora, nossa Mãe e Mãe<br />
de Jesus. Quando a mãe é boa, ela tem toda espécie de<br />
paciência, afeto, indulgência para com o filho. O filho<br />
pode fazer as piores coisas que ela tem pena dele e o ajuda<br />
mais uma vez.<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo fez esta maravilha: Ele se<br />
encarnou numa Mulher, para nascer de uma Mulher que<br />
seria a Mãe d’Ele. E no momento em que Ela se tornou<br />
Mãe de Nosso Senhor, tornou‐se Mãe nossa. Ele morreu<br />
por nós no alto da Cruz e disse que Ela é Mãe nossa.<br />
Imaginemos que Nosso Senhor Jesus Cristo tivesse como<br />
Mãe a mãe de um de nós. Este ficaria estimulado: “Ah!<br />
desta vez eu vou ser atendido, porque consigo tudo de<br />
minha mãe...” Nossa Senhora nos ama muito mais do<br />
que nossas mães nos amam.<br />
Dona Lucilia tinha a condescendência, a bondade de<br />
me querer tanto. Mas Nossa Senhora me ama muito mais<br />
do que minha mãe me queria. Não há comparação!<br />
Assim, a cada um de nós Ela quer com esse amor,<br />
esse afeto, essa bondade. E Ela obtém de Nosso Senhor a<br />
graça que nossas orações não obteriam. Nenhum homem<br />
é digno de receber nada. Mas pedindo a Nossa Senhora,<br />
que é Mãe de misericórdia, ele obtém.<br />
E se algum de nós pecar, sobretudo, não desanime!<br />
Confie, confie, confie, porque um dia Nossa Senhora<br />
alcançará uma dessas graças com que se ganha a batalha<br />
desta vida!<br />
(Extraído de conferência de 28/3/1989)