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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>161</strong> Agosto de 2011<br />
Cultura e santidade,<br />
irmãs ou inimigas?
F. Lecaros<br />
São Caetano de Tiene<br />
- Madri, Espanha.<br />
Arespeito de São Caetano de Tiene<br />
e do significado de sua obra,<br />
convém fixar o seguinte: uma das<br />
causas da decadência da Idade Média foi<br />
o apego às riquezas e à vida de fausto e de<br />
grandeza.<br />
Infelizmente, o clero também não foi<br />
isento desta culpa… Em vez de conduzir<br />
por amor de Deus a magnificência que lhes<br />
era devida, muitos dignatários eclesiásticos<br />
faziam dela um título de grandeza pessoal; e<br />
o que deveria ser um elemento de edificação<br />
para os outros se transformou em ocasião de<br />
mau exemplo.<br />
Diante dessa situação, entrou um espírito<br />
de relaxamento no clero diante do orgulho e<br />
da sensualidade, que são as duas principais<br />
causas da Revolução. Nós podemos,<br />
portanto, localizar esse problema na origem<br />
da Revolução.<br />
E, como sempre acontece na Igreja,<br />
quando o espírito do mal nela introduz algo<br />
de ruim, o Divino Espírito Santo suscita um<br />
bem muito maior do que o mal produzido.<br />
Em virtude dessa regra, houve um santo<br />
que levou o espírito de pobreza até onde,<br />
sob certo aspecto, nem São Francisco de<br />
Assis tinha levado: São Caetano de Tiene,<br />
fundador dos Teatinos.<br />
A fim de levar o espírito de pobreza a um<br />
limite quase inimaginável, São Caetano<br />
proibiu seus religiosos inclusive de pedir<br />
esmolas: quando precisavam de alguma<br />
coisa, deviam ficar parados em algum lugar<br />
à espera de que alguém viesse lhes atender…<br />
(Extraído de conferência de 7/8/1965)<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>161</strong> Agosto de 2011<br />
Ano XIV - Nº <strong>161</strong> Agosto de 2011<br />
Cultura e santidade,<br />
irmãs ou inimigas?<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
no ano de 1974.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 Cultura e santidade, irmãs ou inimigas?<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Agosto de 1936<br />
Em prol da civilização cristã<br />
Dona Lucilia<br />
6 A fonte de toda bondade<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2606-2409<br />
Hagiografia<br />
10 São Lourenço, Mártir<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
14 Os pequenos defeitos:<br />
obstáculos para a santidade…<br />
Perspectiva pliniana da história<br />
20 O Império Romano nos planos de Deus – II<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
24 Verdadeira cultura e santidade<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 101,00<br />
Colaborador .......... R$ 130,00<br />
Propulsor ............. R$ 260,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 13,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Calendário dos Santos<br />
28 Santos de Agosto<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Catedral de York:<br />
Obra-prima de bom gosto e arte<br />
Última página<br />
36 A melhor de todas as mães<br />
3
Editorial<br />
Cultura e santidade,<br />
irmãs ou inimigas?<br />
Poucas palavras no léxico moderno possuem tantos significados quanto a expressão “cultura”.<br />
Estudiosos chegaram a contabilizar mais de 160 acepções diferentes para o termo.<br />
Na vida cotidiana, costuma-se associar o adjetivo “culto” a diversos predicados individuais.<br />
Este adjetivo é comumente usado como correlato de instrução, ciência, erudição, ilustração e sabedoria.<br />
Aplicada à sociedade, seu sentido atual parece significar progresso, desenvolvimento ou tudo<br />
aquilo que corresponderia ao avanço técnico e social. Há ainda a distinção entre “cultura erudita” e<br />
“cultura popular”.<br />
O antepassado etimológico da palavra tinha o sentido de “agricultura”, significado que a palavra<br />
mantém ainda hoje em determinados contextos biológicos e arqueológicos.<br />
Durante o século XVIII, o vocábulo foi associado por autores católicos ou anticatólicos ao conceito<br />
de “civilização”. Nesta época a cultura muitas vezes se confundiu com noções de educação, requinte<br />
e elegância. E, de fato, a Europa daquele tempo — inclusive nas camadas populares da sociedade<br />
— estava repleta de delicadeza, bons costumes e comportamentos aristocráticos.<br />
No século XIX, o antropólogo britânico Edward Burnett Tylor definiu cultura como “aquele todo<br />
complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros<br />
hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. No entanto, esta definição<br />
parece ser tão abrangente que poderia ser aplicada por cientistas ao modo de viver dos primatas,<br />
considerados por alguns como portadores de uma “espécie de cultura”...<br />
Hoje o significado técnico-científico, aliado ao desenvolvimento social, predomina no uso da palavra.<br />
O homem imbuído desta forma de considerar o termo “cultura”, num contato superficial com a<br />
Igreja, pode julgar que a espiritualidade borbulhante das manifestações populares de Fé e a dedicação<br />
incondicional às obras de caridade e evangelização não se coadunam com a cultura. Pela mentalidade<br />
contemporânea, o apreço pela humildade e pela liturgia, a adesão às verdades de Fé — embora<br />
de fato razoáveis mas não evidentes à razão — e a preocupação com a moralidade dos atos humanos<br />
parecem contrariar a atual noção de cultura.<br />
Assim, tais atividades, ditas essencialmente eclesiásticas, podem, como é evidente, tolher o tempo<br />
para o estudo e para uma consideração crítica do Universo. Este é o motivo pelo qual, num primeiro<br />
contato com a Igreja, pode-se apressadamente julgar que ela não prima pela cultura no sentido corrente.<br />
A salvação das almas e a santificação da ordem temporal parecem assim ser contrárias a tudo<br />
aquilo que se define como cultural. A Igreja é, portanto, classificada como anticultural.<br />
A Fé e a evangelização são de fato um obstáculo à cultura? O ideal da Igreja, que é a santidade, é<br />
contrário à realização da cultura? A vida interior, o apostolado e o amor à Fé e à moral podem existir<br />
sem cultura? Pode haver cultura sem santidade? Pode haver santidade sem cultura?<br />
No artigo “Verdadeira cultura e santidade”, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> traça brilhantes considerações sobre as misteriosas<br />
relações entre estas duas irmãs que parecem separadas pelos séculos como inconciliáveis inimigas.<br />
Em verdade, a cultura e a santidade só alcançam a plena realização de si mesmas quando caminham<br />
numa indissolúvel união.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Agosto de 1936<br />
Em prol<br />
da civilização cristã<br />
Iniciada em 1936, a Guerra Civil Espanhola<br />
seria responsável por monstruosidades sem<br />
conta… Diante dela, como deveriam reagir<br />
os católicos?<br />
“Há uma verdadeira campanha de >Horas<br />
Santas= em prol da gloriosa e infeliz Espanha.<br />
Não há dúvida de que o melhor apoio que possamos<br />
dar a nossos irmãos espanhóis está na<br />
oração. Mas bastará isso? O que está fazendo o<br />
Itamaraty? Como respondeu ele à nota do Governo<br />
de Burgos, comunicando ao Brasil a sua<br />
constituição? Por que não foi publicada a resposta?<br />
“Parece‐nos que a intenção que inspirou a<br />
nota brasileira foi excelente. Quis ela dissociar<br />
nosso Governo de qualquer démarche internacional<br />
que venha a paralisar a marcha triunfal<br />
das forças anticomunistas. No entanto, um dos<br />
argumentos sobre que ela se estriba é perigoso.<br />
Referimo‐nos a isto porque o erro é, de per<br />
si, tão funesto, que não pode ser tolerado, nem<br />
mesmo quando uma argumentação especiosa<br />
procure pô‐lo ao serviço do bem e da verdade.<br />
“Ninguém pode afirmar que a repercussão e<br />
as consequências da guerra civil não ultrapassarão<br />
as fronteiras da Espanha. A vitória do comunismo<br />
na Ibéria terá uma repercussão mundial.<br />
Nos combates da Serra de Guadarrama, não é<br />
apenas o destino da Espanha que está sendo jogado.<br />
Está em jogo o destino da civilização. E,<br />
em tese, é permitido a uma nação intervir a favor<br />
da civilização contra a barbárie? A doutrina<br />
católica afirma que sim. A nota brasileira parece<br />
insinuar que não.<br />
“Compreendemos que, no terreno militar, a<br />
única atitude sensata para o Brasil é a abstenção.<br />
Mas seria conveniente que ficasse bem claro<br />
que, se não praticamos a intervenção, não<br />
é porque a julguemos ilegítima, mas porque a<br />
consideramos inviável no momento. Só quem<br />
Crianças conversam diante de uma casa destruída<br />
durante a Guerra Civil Espanhola, em 1937.<br />
Photographie de presse - Agence Meurisse<br />
não tiver o menor senso jurídico poderá ver nessa<br />
ressalva um mero bizantinismo@.<br />
“Nossos oradores políticos, atualmente, não<br />
se fartam em falar sobre a >civilização cristã=.<br />
Mas, no momento de dispensar a essa civilização<br />
um apoio eficiente, eles, que são tão valentes<br />
em doutrina, vacilam. A situação, de fato, a<br />
que ninguém pode fechar os olhos, é esta: na Espanha<br />
se defrontam a civilização cristã e os filhos<br />
das trevas. E, à vista disto, é preciso perguntar<br />
se, sim ou não, somos pela primeira contra<br />
os segundos. A nota portuguesa enfrentou a<br />
questão com magnífica coragem. A nota brasileira<br />
fecha os olhos a esse problema fundamental.<br />
Repugna‐lhe uma mediação que salvaria os<br />
assassinos e os incendiários da Espanha. No entanto,<br />
aceitaria tal mediação >por solidariedade<br />
americana=. E a solidariedade humana, que<br />
devemos aos salvadores da Espanha? Não fica<br />
ela abaixo da problematissíssima >solidariedade<br />
americana=? E a civilização cristã, de que estão<br />
tão cheios os discursos oficiais? Mandam‐nas às<br />
urtigas?”<br />
(Extraído d’O Legionário de 23/8/1936)<br />
5
Dona Lucilia<br />
A fonte de<br />
toda bondade<br />
Analisando, cheio de amor, as qualidades<br />
de sua extremosa mãe, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não teve<br />
dificuldade em aderir àquela que foi a “fonte<br />
de tanta bondade”: a Santa Igreja Católica<br />
Apostólica Romana.<br />
T<br />
anto quanto me lembro, o<br />
amor à Igreja Católica nasceu<br />
em mim junto com o<br />
amor à minha mãe. Mas, de que maneira?<br />
Afeto, causa de encanto<br />
Quando ainda muito jovem — talvez<br />
aos três anos de idade —, eu notava<br />
em mamãe uma harmonia, uma<br />
bondade e uma elevação em tudo<br />
quanto ela fazia: tudo quanto ela dizia<br />
era elevado, tudo aquilo em rumo<br />
do qual ela se movimentava era<br />
bom. Em síntese, ela possuía um extraordinário<br />
conjunto de qualidades<br />
que formavam um todo.<br />
Lembro-me, por exemplo, de<br />
quando eu tinha insônias. Durante<br />
certo período de minha infância fui<br />
sujeito a acordar durante a noite.<br />
Quando a criança acorda durante<br />
a noite e vê que todos da casa estão<br />
dormindo, naturalmente é tomada<br />
por uma sensação de solidão e de insegurança.<br />
Ela não tem ninguém que<br />
a proteja das sombras formadas apenas<br />
por uma tênue luz que penetra<br />
no quarto escuro através da veneziana,<br />
dando-lhe uma sensação do peso<br />
do próprio corpo e da própria alma,<br />
que a faz pensar: “Devo enfrentar<br />
sozinho esta situação, e se acontecer<br />
alguma coisa tenho que resolver<br />
o problema. Se entrar um ladrão, o<br />
que vou fazer? Talvez eu deva acordar<br />
papai e mamãe. Mas, se o ladrão<br />
perceber e me matar?”<br />
Propositadamente, mamãe mandava<br />
colocar todas as noites minha<br />
cama junto à sua, e abaixava a grade<br />
que as separava. Então, quando<br />
eu acordava e via mamãe dormindo<br />
com uma respiração muito regular,<br />
mas muito profunda e tranquila, eu<br />
sabia que, caso tivesse necessidade,<br />
apesar de seu sono profundo, se<br />
eu conseguisse acordá-la, ela me<br />
faria uma boa acolhida.<br />
Eu então desatava a chamá-<br />
-la. Porém, como todo menino<br />
— eu tinha dois anos de idade!<br />
— não pronunciava bem as palavras,<br />
e em vez de dizer “mãezinha”,<br />
dizia:<br />
— Manguinha, manguinha!<br />
Ela não atendia. Então, sentava-me<br />
sobre seu peito para despertá-la<br />
e, quando ela não acordava,<br />
eu, de um temperamento categórico<br />
desde pequeno, começava a<br />
mexê-la. Às vezes, por estar doente<br />
ou devido a um sono naturalmen-<br />
<strong>Plinio</strong> aos dois anos de idade.<br />
6
Dona Lucilia em 1906.<br />
7
Dona Lucilia<br />
te muito profundo, ela continuava a<br />
dormir. Eu pensava: “Ela não acorda,<br />
mas estou precisando dela mais<br />
do que nunca... Não aguento esta solidão.”<br />
Em certo momento, eu decidia:<br />
“Bom, vou arriscar tudo: abrirei<br />
os olhos dela com meus dedos.” Naturalmente<br />
isso tinha de dar certo! E<br />
eu o fazia sem o mínimo mau humor,<br />
mas pelo contrário, com muito afeto<br />
e respeito.<br />
Afinal ela acordava, e então eu<br />
sentia tudo de uma só vez: um afeto<br />
aveludado, profundo, envolvente<br />
e tranquilizador, uma pena que mostrava<br />
quanto ela compreendia minha<br />
dor e o embaraço no qual eu me encontrava.<br />
Estreitava-me junto a si,<br />
sentava-se imediatamente, sorria e<br />
dizia:<br />
— Filhinho, o que é?<br />
— Eu não estou conseguindo dormir.<br />
Ela se sentava, e eu lhe pedia:<br />
— Manguinha, conte-me uma história.<br />
Não se tratava tanto de que eu<br />
quisesse ouvir uma história, mas sim<br />
eu desejava que ela não dormisse para<br />
eu não ficar sozinho naquela vastidão<br />
obscura. Ela então me contava<br />
uma história, dentre as muitas que<br />
ela sabia, e eu ficava encantado.<br />
À medida que ela ia falando, eu ia<br />
me tranquilizando e o sono naturalmente<br />
ia vindo. Quando percebia que<br />
eu já estava com bastabte sono, ela me<br />
suspendia pelos braços e me punha<br />
deitado em minha cama; eu já estava<br />
derrotado e dormia profundamente.<br />
Ao acordar na manhã seguinte, eu<br />
sentia uma profunda impressão de<br />
toda aquela harmonia e carinho que<br />
eu tinha recebido durante a noite;<br />
por isso, ia eu logo para a cama dela<br />
a fim de acordá-la, beijá-la e perguntar-lhe<br />
como tinha passado. Ela ficava<br />
encantada. Ou seja, mesmo com<br />
todos esses pequenos aborrecimentos<br />
que uma criancinha dá, pelo afeto<br />
extraordinário que tinha para comigo,<br />
ela ficava contente.<br />
Igreja do Sagrado Coração de<br />
Jesus - São Paulo, Brasil.<br />
8
T. Ring<br />
“Um agrado de <strong>Plinio</strong>”<br />
À semelhança das senhoras de<br />
seu tempo, mamãe usava uma pulseira<br />
de marfim com incrustações,<br />
vinda da Europa. E eu, aos doze ou<br />
treze anos, brincando com o braço<br />
dela — não sem alguma brutalidade<br />
inerente aos meninos que vão se tornando<br />
mais velhos —, girava a pulseira,<br />
e, sendo o marfim um material<br />
muito duro, machucava-a um pouco.<br />
Não se tratava de nada muito grave,<br />
mas, sendo a pulseira muito dura,<br />
isso fez uma mancha escura num<br />
ponto de seu braço. E ela não se<br />
queixou de nada; em vez de se zangar<br />
— porque uma mancha dessas é<br />
feia, uma senhora não gosta de ter<br />
isso —, ela ficou encantada.<br />
Certo dia, quando almoçávamos<br />
em casa de minha avó, onde morávamos,<br />
uma pessoa da família perguntou<br />
para ela:<br />
Dona Lucilia com cerca de 50 anos.<br />
Compreendi que<br />
era a mentalidade<br />
da Igreja que se<br />
reproduzia em Dona<br />
Lucilia, porque a<br />
Igreja forma seus<br />
filhos, como uma mãe<br />
forma sua prole.<br />
— Lucilia, o que é esta machucadura<br />
em seu braço?<br />
Ela olhou — para ter tempo de<br />
pensar — e depois disse com muita<br />
naturalidade:<br />
— Isso foi um agrado do <strong>Plinio</strong>.<br />
Foi uma gargalhada geral na mesa,<br />
gargalhada afetuosa, mas que<br />
mexia com ela. Era tal o encanto dela<br />
por mim, que até quando eu, involuntariamente,<br />
a machucava, ela ficava<br />
maravilhada.<br />
Mesmo quando eu era importuno,<br />
a mansidão de mamãe a fazia ficar<br />
ainda mais encantada; e isso me<br />
deixava enlevadíssimo por ela.<br />
A harmonia afetuosa e<br />
grandiosa que ela exprimia,<br />
fazia-me pensar: “Ela é formidável,<br />
acima de qualquer<br />
pessoa que eu conheço.<br />
Eu vejo tantas<br />
pessoas em torno dela,<br />
pessoas muito boas, mas<br />
ninguém tem essa virtude<br />
extraordinária, essa<br />
harmonia de personalidade,<br />
essa lógica e esse<br />
afeto contínuo que ela<br />
tem.”<br />
Jesus Cristo, fonte<br />
da bondade da<br />
Igreja e dos homens<br />
Um dia, estando sentado ao lado<br />
dela na Igreja do Coração de Jesus —<br />
ela ocupava sempre o mesmo banco<br />
e, evidentemente, reservava um lugar<br />
junto a si para mim —, eu olhei<br />
de soslaio para ver o que estava fazendo,<br />
e percebi que estava rezando<br />
à imagem do Sagrado Coração de Jesus,<br />
a qual fica no alto do altar-mor.<br />
Ela me pareceu extremamente semelhante<br />
com a imagem. Certamente,<br />
por ser muito devota do Sagrado Coração,<br />
ela recebia d’Ele as extraordinárias<br />
qualidades que possuía.<br />
Isso me fez explicitar o seguinte:<br />
“Jesus Cristo é o fundador da Igreja;<br />
por isso, a Igreja se assemelha a<br />
Ele. Mamãe, sendo membro da Igreja,<br />
também se assemelha a Nosso Senhor,<br />
e d’Ele recebe a mansidão, a<br />
bondade, a ternura.”<br />
Tendo nascido d’Ele, a Igreja Católica<br />
é responsável por todo o bem<br />
que há no mundo; não há bem que<br />
não seja feito por ela.<br />
Comecei, então, a prestar atenção<br />
na Igreja — na Missa, nos ornamentos,<br />
no edifício — e percebi que era<br />
tudo feito segundo o mesmo estilo.<br />
Assim compreendi que era a mentalidade<br />
da Igreja que se reproduzia em<br />
Dona Lucilia, porque ela era filha da<br />
Igreja e a Igreja forma seus filhos, como<br />
uma mãe forma sua prole.<br />
Não posso permitir<br />
que não se tenha toda<br />
a devoção à Igreja<br />
Com isso, comecei também a<br />
prestar atenção numa imagem do<br />
Coração de Jesus que ela possuía.<br />
Então, ao olhar para a imagem, eu<br />
pensava: “Ele é o mestre de mamãe,<br />
por isso sua alma é tão parecida com<br />
a d’Ele. Ele é infinitamente mais<br />
perfeito, porém, à força de amá-Lo,<br />
ela acabou por ficar parecida com<br />
Ele.”<br />
Foi assim que nasceu em mim o<br />
amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, a<br />
crença na Santa Igreja Católica e a<br />
devoção a Nossa Senhora. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 14/8/1993)<br />
9
Hagiografia<br />
São Lourenço, Mártir<br />
Colocado sobre uma grelha e assado vivo, São Lourenço passou para a<br />
História como exemplo para os séculos futuros…<br />
F<br />
aremos alguns comentários,<br />
com base num texto da obra<br />
de Rohrbacher “A vida dos<br />
santos”, a respeito de São Lourenço,<br />
Mártir.<br />
A perseguição de Valeriano intensificou-se<br />
sobremaneira no ano de 258.<br />
O Papa São Sisto foi preso com alguns<br />
membros do seu clero, quando estava<br />
no cemitério de Calisto para celebrar<br />
os Santos Mistérios. Quando o levavam<br />
ao suplício, Lourenço, o primeiro<br />
dos diáconos da Igreja Romana,<br />
seguia-o chorando e dizendo: “Aonde<br />
ides, pai, sem vosso filho? Aonde ides,<br />
Santo Pontífice, sem vosso Diácono?<br />
Não estais acostumado a oferecer o<br />
sacrifício sem ministro. No que vos<br />
desagradei? Experimentai se sou digno<br />
da escolha que fizestes de mim, para<br />
me confiar a dispensa do Sangue de<br />
Nosso Senhor.” Sisto respondeu-lhe:<br />
“Não sou eu que te deixo, meu filho,<br />
mas um combate maior te está reservado.<br />
Poupam-nos, a nós velhos, mas<br />
tu me seguirás dentro de três dias.”<br />
Entretanto, o prefeito de Roma, julgando<br />
que os cristãos tinham grandes<br />
tesouros escondidos e querendo disso<br />
certificar-se, mandou chamar Lourenço,<br />
que como primeiro Diácono da<br />
Igreja Romana era custódio. Pediu-lhe<br />
que lhe entregasse os tesouros dos cristãos<br />
e Lourenço respondeu-lhe que<br />
lhe entregaria, após fazer o cômputo<br />
total do que possuíam. Reuniu todos<br />
os pobres e doentes de Roma, mostrando-os<br />
ao prefeito como únicos tesouros<br />
e os maiores da Igreja. Os pobres<br />
eram ouro, as virgens e viúvas, as<br />
pérolas e demais pedras preciosas. Furioso,<br />
o prefeito ordenou a morte do<br />
Diácono, mas exigiu que fosse lenta e<br />
cruel. Despiram-no e deitaram-no sobre<br />
uma grelha, tendo embaixo brasas<br />
semiacesas. Os que assistiam ao suplício<br />
viram o rosto do mártir rodeado de<br />
esplendor extraordinário. Depois de<br />
muito tempo, disse o supliciado ao algoz:<br />
“Fazei-me virar. Já estou bastante<br />
assado desse lado.” Depois que o viraram,<br />
disse ainda: “Está assado, podeis<br />
comer.” Olhando então ao céu,<br />
rogou a Deus pela conversão de Roma<br />
e expirou. Senadores, convertidos pelo<br />
exemplo de sua constância, carregaram-lhe<br />
o corpo nas costas e o enterraram<br />
no Campo Verano, perto de Tivoli,<br />
numa gruta.<br />
O sacrifício de um mártir<br />
Há um grande número de dados<br />
preciosos nesse texto. O primeiro<br />
deles é o diálogo de São Lourenço<br />
com o Papa São Sisto. O santo sacrifício<br />
da Missa é a repetição incruenta<br />
do Santo Sacrifício da Cruz.<br />
De sorte que oferecer o Sacrifício da<br />
Cruz e oferecer o sacrifício da Missa<br />
é uma mesma coisa. O mártir, por<br />
outro lado, quando se oferece em<br />
holocausto, de algum modo oferece<br />
um sacrifício que é o dele e, sem renovar<br />
o Sacrifício da Cruz, entretanto<br />
imita a Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
que se imolou a Si próprio. Há,<br />
portanto, um conjunto de correlações<br />
entre o Sacrifício do Calvário,<br />
a Missa e o martírio. E foi em torno<br />
dessas correlações que girou o diálogo,<br />
entre todos admirável, do Papa<br />
São Sisto com seu Diácono.<br />
O Papa foi preso e conduzido para<br />
a morte. E o Diácono dele, São<br />
Lourenço, lhe dizia: “Vós oferecestes<br />
tantas vezes o sacrifício comigo<br />
— era o papel do Diácono ajudar o<br />
Papa na celebração da Missa. Agora,<br />
vós não o quereis oferecer? Ireis<br />
me deixar nesta Terra, no momento<br />
em que vosso sacrifício vai ser feito?<br />
É como que a vossa Missa. Eu não<br />
sou vosso Diácono? Levai-me para<br />
eu ser morto convosco; uma<br />
vez que eu vos servi a vida inteira<br />
ao pé do altar, quero<br />
servir-vos também ao pé<br />
da morte.”<br />
Depois dessa maravilha<br />
de diálogo,<br />
São Sisto profetizou:<br />
“Eu vou ter uma morte<br />
suave em comparação<br />
com a tua. Os moços<br />
vão ser menos poupados<br />
do que nós, velhos. Daqui<br />
a três dias chegará tua ocasião<br />
e serás morto.”<br />
Prenúncio do<br />
vínculo feudal<br />
Realmente, essa fidelidade<br />
de São Lourenço a São Sisto<br />
traz consigo um primeiro lampejo<br />
de Idade Média. Trata-se de<br />
uma fidelidade que gira em torno<br />
de relações de caráter eclesiástico,<br />
mas é uma fidelidade feudal. O servidor<br />
se une àquele a quem serve,<br />
por um vínculo muito maior do que<br />
um contrato de locação de serviço;<br />
é um vínculo de amor e de dedicação<br />
de toda a alma, de consagra-<br />
R. C. Branco<br />
10
São Lourenço - Basílica de São<br />
Lourenço extramuros - Roma, Itália.<br />
ção da vida inteira, de tal maneira<br />
que ele sente que não tem razão de<br />
existir a não ser em função daquele<br />
a quem serve. Na força desse vínculo<br />
vemos prenunciado o feudalismo,<br />
em que há os vínculos de fidelidade,<br />
já então de ordem temporal,<br />
mas concebidos religiosamente,<br />
porque a fidelidade é uma virtude<br />
religiosa, ainda quando praticada<br />
no âmbito temporal.<br />
Nesse vínculo que ligava o Diácono<br />
ao Papa, vemos desabrochar<br />
a alma feudal, feita do<br />
senso do serviço, do senso<br />
da alienação e do senso<br />
de honra, pois aquele que<br />
serve coloca a sua honra<br />
em servir de fato àquele a<br />
quem se vinculou. Vemos<br />
nisso uma admirável alienação,<br />
o contrário da desalienação<br />
miserável que<br />
os revolucionários desejam.<br />
E um antessabor da<br />
Idade Média, onde as articulações<br />
das pessoas que constituíam<br />
a sociedade eram todas na base<br />
de uma alienação, de uma entrega,<br />
de uma proteção. Todo o perfume<br />
da Idade Média começa a evolar-<br />
-se nessa lealdade, nessa dedicação,<br />
nesse senso de honra, nessa<br />
entrega, nessa alienação de São<br />
Lourenço para com o Papa São<br />
Sisto.<br />
Os tesouros da Igreja...<br />
De outro lado, temos o episódio<br />
admirável com os pobres.<br />
Tendo ouvido dizer que os cristãos<br />
eram riquíssimos, o prefeito<br />
mandou chamar São Lourenço,<br />
ao qual, de acordo com a organização<br />
da Igreja naquele tempo,<br />
como Diácono, cabia a guarda<br />
dos objetos que constituíam<br />
o tesouro da Igreja romana.<br />
Pobre tesouro primitivo: alguns<br />
objetos doados pela nobreza<br />
romana, ou pelas pessoas ricas de<br />
Roma, para o culto. Era uma coisa<br />
que não tinha comparação com os<br />
tesouros hodiernos da Igreja.<br />
Exigiu, então, que São Lourenço<br />
os entregasse. O santo Diácono disse-lhe:<br />
“Não tem dúvida. Eu vou trazê-los.<br />
Preciso de certo tempo para<br />
reuni-los todos para ver quantos<br />
são; depois eu os trago.” O prefeito<br />
respondeu: “Está bem. Então faça<br />
isso.”<br />
No dia marcado aparece grande<br />
número de pobres de Roma, viúvas,<br />
estropiados, aos quais os romanos<br />
pagãos tinham um desprezo soberano;<br />
o pouco-caso dos romanos em<br />
relação ao pobre era uma coisa incomparável.<br />
São Lourenço afirmou:<br />
“Aqui estão os tesouros da Igreja.” É<br />
uma admirável lição de espírito sobrenatural.<br />
O mártir, quando se<br />
oferece em holocausto,<br />
imita a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, que se<br />
imolou a Si próprio.<br />
Por que o pobre é um tesouro?<br />
Antes de tudo, porque ele é homem,<br />
é cristão, batizado, filho da Igreja Católica.<br />
E o que vale no homem não é<br />
o que ele tem, sabe, pode ou faz; mas<br />
sim o fato de ele ser, acima de tudo,<br />
uma criatura de Deus. Em segundo<br />
lugar, que ele foi remido pelo Sangue<br />
infinitamente precioso de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo. Em terceiro lugar,<br />
que ele custou as lágrimas indizivelmente<br />
preciosas de Nossa Senhora.<br />
Esses títulos fazem de qualquer<br />
homem, mesmo que seja um molambo,<br />
um verdadeiro tesouro, porque<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo ter-se-ia<br />
encarnado e morrido na Cruz ainda<br />
que fosse só por causa dele.<br />
Ora, duas quantidades iguais a<br />
uma terceira são iguais entre si. Se<br />
11
S. Miyazaki<br />
Hagiografia<br />
aquele homem vale o Sangue de<br />
Cristo, como o Sangue de Cristo tem<br />
um valor infinito, aquele homem<br />
tem de algum modo um valor infinito.<br />
Então, por ser homem, por ser filho<br />
da Igreja, um pobre tem um valor<br />
incomensurável. Mas ele tem um<br />
valor ainda maior, não simplesmente<br />
pelo fato de ser homem, mas de ser<br />
pobre. Não no sentido revolucionário<br />
de que só o pobre tem valor. Aos<br />
olhos de Deus, há uma série de predicados<br />
humanos, até opostos entre<br />
si, se bem que não contraditórios, os<br />
quais tornam o homem digno de um<br />
amor especial de Deus, debaixo de<br />
certo título.<br />
O sofrimento: uma<br />
forma de predileção!<br />
Por exemplo, “simples de espírito”,<br />
no sentido corrente, atual da<br />
expressão — não no sentido antigo<br />
— quer dizer pessoas pouco inteligentes.<br />
Deus ama os simples de espírito<br />
de um modo especial; os ama<br />
na sua fragilidade porque são desnudados<br />
intelectualmente dos recursos<br />
necessários para viver, e a<br />
Providência Divina pousa sobre<br />
eles e os protege. Isso não quer dizer<br />
que Deus não ame o sábio. O<br />
fato de Deus amar com uma proteção<br />
especial aquele que é carente<br />
do ponto de vista intelectual não<br />
O mártir sacrossanto<br />
está no mais alto dos<br />
Céus; até o fim do<br />
mundo se celebrará<br />
sua memória e por<br />
toda a eternidade os<br />
anjos cantarão a sua<br />
glória.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência, na década de 1990.<br />
exclui que Ele, por outro título,<br />
ame imensamente um São Tomás<br />
de Aquino, ou Nossa Senhora, cujo<br />
conhecimento de todas as coisas<br />
deixava o de São Tomás de Aquino<br />
mais longe do que o de São Tomás<br />
dista de nós.<br />
São títulos diversos, segundo os<br />
quais Deus ama cada coisa. De certa<br />
forma, isso ocorre com o homem<br />
que se encanta com a rosa, a rainha<br />
das flores, porque ela se abre lindíssima<br />
e se mostra no seu esplendor.<br />
Entretanto, o homem não se maravilha<br />
com a violeta pela razão oposta?<br />
Porque ela se esconde, é apagada,<br />
delicada, pequenina. Dizer que<br />
Deus ama o pobre não significa que<br />
Ele não ama o rico. Na pobreza há<br />
um título especial para o Criador<br />
amar quem é pobre. E qual é esse<br />
título?<br />
Esse título é: Deus ama os que sofrem;<br />
bem entendido, os que padecem<br />
com resignação, em união com<br />
Ele; o sofrimento é uma prova de<br />
predileção. De maneira que quem vê<br />
um pobre porque sofre, vê no pobre<br />
um tesouro. O que significa que se<br />
eu devo amar a pobreza de um pobre,<br />
o pobre também precisa amar<br />
sua pobreza. É evidente.<br />
Isso não quer dizer que o pobre<br />
não deva trabalhar, para deixar de<br />
ser pobre. Mas enquanto não consegue<br />
sair da pobreza, ele precisa,<br />
ao mesmo tempo, ver nela um sofrimento,<br />
mas deve carregá-la com resignação.<br />
E nós, vendo um pobre,<br />
devemos lamentar que ele seja pobre<br />
e, na medida em que podemos e<br />
tem propósito, precisamos ajudá-lo;<br />
mas devemos dar graças a Deus que<br />
não só criou os ricos, mas também os<br />
pobres. Porque há uma excelência<br />
especial da alma humana na aceitação<br />
da pobreza.<br />
É como, por exemplo, a doença.<br />
Não se pode imaginar a que<br />
grau de degradação teria descido<br />
o mundo se não houvesse doenças.<br />
Que cúmulo de imoralidades have-<br />
12
F. Lecaros.<br />
À esquerda, martírio de São Lourenço - Igreja de<br />
Santo André (Asola, Itália); acima, o Escorial.<br />
ria na Terra, se elas não existissem!<br />
A Igreja é quem mais faz para acabar<br />
com as doenças, mas Ela dá graças<br />
a Deus por haver doenças invencíveis,<br />
porque é necessário para<br />
o homem que haja doenças. Assim,<br />
com esse equilíbrio muito grande<br />
das coisas, pode-se e deve-se dizer<br />
que o pobre, a viúva, o órfão,<br />
são verdadeiros tesouros reais dentro<br />
da Igreja Católica. São Lourenço<br />
deu uma admirável lição ao prefeito<br />
de Roma.<br />
Lição para todos<br />
os séculos<br />
A última lição ele a deu para todos<br />
os séculos: foi o seu martírio.<br />
Não se pode compreender sem um<br />
milagre, mas um milagre de primeira<br />
classe, que um homem aguente o<br />
que ele suportou. São Lourenço foi<br />
colocado sobre uma grelha, debaixo<br />
da qual foram postas brasas. E<br />
ele foi assando aos poucos. Podemos<br />
imaginar o que representa a dor de<br />
ser assado por essa forma.<br />
E São Lourenço, com placidez e<br />
o rosto translúcido de alegria, quando<br />
percebeu que uma parte de seu<br />
corpo estava queimada — é um outro<br />
milagre ele não ter morrido com<br />
isso —, disse: “Um lado está assado,<br />
podem assar o outro lado.” Ele<br />
foi virado e na hora de expirar pediu<br />
a conversão de Roma; e foi atendido.<br />
Vários senadores que assistiram<br />
o seu martírio carregaram o seu corpo<br />
até a sepultura. Quer dizer, ele,<br />
um mero Diácono da Igreja, que vivia<br />
como perseguido nas catacumbas,<br />
é carregado por componentes<br />
do mais alto órgão legislativo da Terra<br />
naquele tempo, que era o Senado<br />
romano, levado aos ombros por<br />
aqueles que ele converteu com seu<br />
sofrimento.<br />
Qual o resultado<br />
da humildade?<br />
Isso foi o resultado de sua humildade.<br />
No Magnificat, disse Nossa Senhora:<br />
“Deposuit potentes de sede, et<br />
exaltavit humiles — Deus destituiu<br />
de suas cátedras os poderosos e exaltou<br />
aqueles que são humildes.” Vimos<br />
o que aconteceu com São Lourenço.<br />
Quem hoje houve falar do<br />
Imperador Valeriano? Está desfeito<br />
em poeira, apontado ao horror de<br />
todos os séculos, quando não, no esquecimento.<br />
Um dos mais célebres palácios do<br />
mundo comemora a glória de São<br />
Lourenço: o Escorial, construído por<br />
Felipe II. Era festa de São Lourenço<br />
e Felipe II teria contra os protestantes<br />
franceses uma batalha muito árdua.<br />
Então, o rei propôs a Deus que<br />
ele faria construir uma Basílica magnífica<br />
em louvor de São Lourenço,<br />
se ganhasse aquela batalha. Ele desbaratou<br />
os hereges e mandou construir<br />
uma grande obra de arte, o Escorial,<br />
que tem exatamente a forma<br />
de uma grelha, para celebrar o instrumento<br />
do martírio de São Lourenço.<br />
E todos os turistas e peregrinos<br />
do mundo inteiro, que vão ao<br />
Escorial, ficam sabendo das glórias<br />
de São Lourenço. Sem falar, naturalmente,<br />
no culto que lhe presta a<br />
Igreja Universal.<br />
O mártir sacrossanto está no mais<br />
alto do Céu, louvado por Nossa Senhora,<br />
pelos anjos, objeto de predileção<br />
de Deus; até o fim do mundo<br />
se celebrará a memória dele e por<br />
toda a eternidade os anjos vão cantar<br />
sua glória no Paraíso.<br />
E os poderosos, que eram filhos<br />
da iniquidade e se orgulhavam do<br />
seu poder, foram jogados no chão.<br />
Valeriano onde estará? v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 9/8/1969)<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Os pequenos defeitos:<br />
obstáculos para a santidade…<br />
Todo homem deve almejar a santidade; porém, concebidos no pecado<br />
original e débeis de vontade, temos enorme dificuldade em atingi-la…<br />
Como fazer para alcançar meta tão ousada?<br />
S. Miyazaki<br />
Oque poderíamos aconselhar<br />
a uma pessoa, não muito generosa,<br />
que se encontre encalhada<br />
na vida espiritual e dominada<br />
por uma porção de hábitos que<br />
lhe prejudicam o desenvolvimento e<br />
o progresso sobrenatural?<br />
Imaginemos uma situação hipotética,<br />
de alguém que dissesse o seguinte:<br />
“Eu tenho o hábito de comer<br />
demais. Não quero mudar esse<br />
hábito, porque acho que é extremamente<br />
desagradável e penoso o<br />
sacrifício que eu faria para alterá-<br />
-lo. De outro lado, porém, quero<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no ano de 1992.<br />
de algum modo progredir. Como<br />
fazer, numa situação em que eu, ao<br />
mesmo tempo, sinto que não quero<br />
progredir e quereria progredir?<br />
O que fazer para que o pobre barco<br />
de minha vida espiritual desencalhe?”<br />
A esta pergunta que se pode fazer<br />
no nível da vida espiritual de alguém<br />
que, de certo modo, procura<br />
manter-se em estado de graça, responde-se,<br />
entretanto, muito melhor<br />
se imaginássemos um nível mais<br />
baixo, ou seja, de uma pessoa que<br />
vive habitualmente no estado de pecado<br />
mortal. Como ela deveria proceder<br />
perante seu próprio pecado<br />
mortal?<br />
Assim, poderemos compreender<br />
melhor como uma pessoa deveria viver<br />
em face de hábitos ou de defeitos<br />
que, sem constituírem pecados mortais,<br />
entretanto podem retardar singularmente<br />
a santificação da alma,<br />
para que, de fato, ela atinja aquele<br />
alto nível de perfeição.<br />
Como sair do vício<br />
da embriaguez?<br />
Vou começar a tratar da questão<br />
de como deveria ser no nível de pecado<br />
mortal, para depois me transpor<br />
ao plano que é próprio, normal<br />
e natural aos membros de nosso Movimento.<br />
Imaginem que um diretor espiritual<br />
conhecesse um homem que tivesse,<br />
por exemplo, o hábito da bebedeira<br />
e se embriagasse sete vezes<br />
por semana, e de uma embriaguez<br />
profunda.<br />
Esse homem procura o diretor espiritual<br />
e diz-lhe: “Padre, eu lamento<br />
ter esse vício. Mas o deixar a bebida<br />
para mim é abandonar um prazer<br />
ao qual estou ligadíssimo; significa<br />
fazer um sacrifício que não sinto<br />
vontade de realizar.”<br />
14
G. Kralj<br />
Cristo Rei - Basílica de<br />
São Marcos, Itália.<br />
O indivíduo poderia acrescentar:<br />
“Fiz uma porção de esforços para<br />
largar a bebedeira e o máximo que<br />
consegui foi de parar de beber três<br />
vezes por semana. Achei tão horrível<br />
que, na semana seguinte, bebi<br />
mais ainda; embriaguei-me duas vezes<br />
por dia. De maneira que estou<br />
inteiramente sem saída. Não vejo em<br />
mim recursos para parar com o vício<br />
da embriaguez.”<br />
É claro que é uma situação horrível,<br />
não própria a um membro de<br />
nosso Movimento, mas estou imaginando<br />
um caso muito pior para depois<br />
supor um muito melhor, para<br />
fazer a aplicação da analogia de um<br />
para outro.<br />
Evitar um inferno<br />
horrorosíssimo<br />
Um sacerdote sensato<br />
precisaria começar por<br />
explicar-lhe o seguinte:<br />
“Meu filho, você precisa<br />
tomar em consideração<br />
que a embriaguez, sendo<br />
um pecado mortal,<br />
é própria a levar a pessoa<br />
para o inferno. E,<br />
portanto, deve fazer o<br />
seguinte raciocínio: se<br />
você está na perspectiva<br />
de ir para aquele<br />
lugar de tormentos,<br />
procure ir para um inferno<br />
menos horroroso.”<br />
No inferno há vários<br />
graus de tormento<br />
e de infelicidade. E também<br />
entre os próprios demônios.<br />
Certos demônios<br />
estão no inferno porque foram<br />
chefes da rebelião no Céu.<br />
Outros ainda não foram mandados<br />
para lá porque não chefiaram a<br />
revolta, mas foram sequazes que se<br />
deixaram arrastar e ficam vagueando<br />
pelos ares, fazendo mal para todo<br />
mundo, completa e perpetuamente<br />
infelizes, porém não com a desdita<br />
horrorosíssima que, desde já, têm os<br />
demônios precipitados no inferno.<br />
Então o padre poderia aconselhar<br />
ao viciado em bebedeira: “Você<br />
procure pelo menos diminuir a<br />
sua pena eterna. Ora, há um ponto<br />
que não custa nada, ou custa muito<br />
pouco, para a maior parte dos pecadores,<br />
e isto você pode descontar<br />
do seu inferno. Eu, como sacerdote,<br />
estou disposto a ajudá-lo nesse<br />
passo para sair das perspectivas<br />
de um inferno mais profundo. É<br />
um modo muito modesto de caminhar<br />
rumo ao Céu, mas tudo aquilo<br />
que orienta para o Paraíso é bom.<br />
De maneira que vamos dar esse primeiro<br />
passo.”<br />
Reconhecer o que a<br />
embriaguez tem de mau<br />
Explicando melhor, o padre continuaria:<br />
“Você, pelo menos, reconheça<br />
claramente tudo quanto sua embriaguez<br />
tem de ruim. Faça uma análise,<br />
caia em si, e diga de si para consigo,<br />
com toda a sinceridade, de um<br />
modo o mais positivo e o mais firme:<br />
‘A minha bebedeira é má por tais e<br />
tais razões. Eu, quando estou bêbado,<br />
sinto o horror de minha própria<br />
degradação e me lamento de ficar<br />
nesse estado.’”<br />
É uma coisa que não custa nada,<br />
porque não quer dizer que o bêbado<br />
vai deixar de beber; ele apenas<br />
dá um passo, reconhecendo o mal de<br />
sua embriaguez. Mas, entre dois pecadores,<br />
um que reconhece o mal de<br />
seu pecado e outro que nem o reconhece,<br />
este último vai para um inferno<br />
muito mais profundo. O pecador<br />
que não lamenta o seu pecado dá<br />
uma adesão da inteligência ao mal,<br />
está empedernido e comete uma forma<br />
de pecado péssimo, pior do que<br />
aquele que, pelo menos, reconhece<br />
o mal de seu pecado e quereria não<br />
praticá-lo.<br />
Dever-se-ia, então, pedir ao bêbado<br />
que ele tivesse a franqueza de reconhecer<br />
de modo taxativo, explícito,<br />
tudo quanto sua embriaguez tem<br />
de ruim. Em primeiro lugar, o desequilíbrio<br />
do espírito que ela produz<br />
e como é degradante para um<br />
homem ficar voluntariamente nesse<br />
desequilíbrio; o mal pelo fato de<br />
que a inteligência, sendo tão nobre,<br />
se degrade por vontade própria; depois,<br />
o papel de palhaço que o indivíduo<br />
faz quando está bêbado, a risada<br />
de todo mundo ao vê-lo; a desordem<br />
de um embriagado, as mil<br />
manifestações degradantes que dá<br />
de si: ele vomita, faz coisas horrorosas,<br />
torna-se parecido com um porco.<br />
Depois, num nível menor, mas<br />
que tem sua importância, o comprometimento<br />
da saúde, a degradação<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
do corpo, além da degradação do<br />
espírito.<br />
Que o bêbado ponha claramente<br />
isso diante dos olhos, seja pelo<br />
menos um embriagado franco e<br />
humilde em relação à sua própria<br />
bebedeira.<br />
Admirar aqueles que<br />
não têm esse vício<br />
Depois que esse bêbado estivesse<br />
habituado a reconhecer o mal de<br />
sua própria bebedeira, o padre poderia<br />
convidá-lo para dar mais um<br />
passo: “Aprecie os que não são bêbados<br />
e veja como é bonito não se<br />
embriagar. Fique na rua e preste<br />
atenção num homem que vai para<br />
casa com sua família: ele passou<br />
por uma porção de botequins e<br />
nem teve vontade de beber. Guardou<br />
dinheiro e, por exemplo, comprou<br />
roupas para as crianças dele. Compare<br />
com seus filhos, que andam malvestidos<br />
e sujos porque você bebe. Admire<br />
os homens sóbrios, que fazem o contrário<br />
do que você faz. Procure amar<br />
esses homens porque eles têm uma<br />
qualidade que é oposta ao seu defeito.<br />
Não estou lhe pedindo que você deixe<br />
de beber uma gota; quero apenas que<br />
você admire quem não bebe uma gota,<br />
ou bebe moderadamente, equilibradamente,<br />
sadiamente. Mas admire com<br />
toda a sua alma. Veja como isso é bonito<br />
e humilhe-se.”<br />
Fazer apostolado<br />
para evitar que outros<br />
caiam na embriaguez<br />
S. Hollmann<br />
Depois disso, o padre deveria pedir<br />
ao bêbado que desse um terceiro<br />
passo: “Por que você não faz apostolado<br />
junto aos que são bêbados?<br />
Quando você vir, nesses ambientes<br />
miseráveis em que se bebe, um jovem<br />
que está começando a se embriagar,<br />
procure-o e diga-lhe: ‘Fulano,<br />
como é triste ser bêbado! Não<br />
entre no caminho em que estou!’<br />
Batismo de Clóvis - Catedral<br />
de Rouen, França.<br />
As guerras<br />
particulares foram<br />
desaparecendo, pouco<br />
a pouco, em todo<br />
o Ocidente; tendo<br />
realizado a Igreja<br />
com o conjunto das<br />
almas aquilo que um<br />
bom diretor espiritual<br />
deveria fazer com um<br />
pecador empedernido.<br />
Procure orientar outros para não caírem<br />
no vício que você tem.”<br />
Se conseguisse isso de um viciado<br />
em bebida, sem que este tivesse<br />
deixado seu vício, o sacerdote o teria<br />
transformado, de algum modo, de<br />
bêbado miserável, naquele bom publicano<br />
de que Nosso Senhor fala no<br />
Evangelho, que entrava no Templo,<br />
batia no peito, mas nem ousava chegar<br />
perto do altar. E dizia: “Senhor,<br />
eu não sou digno de estar em vossa<br />
casa, de que Vós sequer olheis para<br />
mim, mas dizei uma palavra;<br />
dai-me essa graça para que eu sare<br />
do mal no qual estou.”<br />
Quer dizer, embora sem arrancar<br />
uma gota de álcool de dentro<br />
dos maus hábitos desse indivíduo,<br />
o padre tê-lo-ia preparado<br />
para, não só na hora da morte<br />
ter a contrição, mas desde já começar<br />
a pedir com empenho que<br />
uma graça do alto do Céu o modificasse.<br />
Dessa forma, teria sido<br />
feito um trabalho prévio precioso,<br />
pois, de algum modo, começou<br />
a transformar esse homem. E isso<br />
sem lhe custar nenhum sacrifício,<br />
porque ele não teria, por enquanto,<br />
renunciado a nenhuma gota de<br />
álcool.<br />
Depois se iniciaria a regeneração.<br />
Somente assim estariam criadas<br />
as condições para esse homem<br />
se resolver a fazer um sacrifício. Enquanto<br />
ele não visse todo o mal da<br />
bebedeira e toda a beleza que há em<br />
não ficar embriagado; enquanto não<br />
tivesse admiração pelos que não são<br />
bêbados e nojo dos que o são, a começar<br />
por si mesmo; enquanto esse<br />
estado de alma não fosse criado nele,<br />
seria mais ou menos inútil procurar<br />
arrancar dele os grandes esforços<br />
que conduzem à regeneração.<br />
Fazer sacrifícios para<br />
deixar de beber<br />
Mas, a partir do momento em<br />
que o bêbado se encontrasse nesse<br />
estado de alma, estavam criados<br />
nele, se não a virtude da humildade<br />
inteira, pelo menos os pressupostos,<br />
os primeiros elementos dessa<br />
virtude, por onde o homem agrada<br />
a Deus. Esses elementos são: reconhecer<br />
e detestar o seu próprio<br />
defeito, amar a virtude dos outros<br />
e trabalhar para que as pessoas não<br />
tenham esse defeito.<br />
Garanto que uma alma assim estaria<br />
preparada para começar a orar.<br />
16
E, a partir do momento em que ela<br />
iniciasse a rezar, e rezar para Nossa<br />
Senhora, com humildade e empenho,<br />
estariam criadas as condições<br />
para ela iniciar a fazer os sacrifícios<br />
por onde se deixa de beber.<br />
Então, o viciado poderia fazer a<br />
resolução de beber apenas seis dias<br />
por semana. Aos domingos, por<br />
exemplo, dia de Deus, ele se absterá;<br />
depois, nas sextas-feiras, em homenagem<br />
à Paixão de Nosso Senhor;<br />
em seguida, aos sábados, em louvor<br />
da Santíssima Virgem.<br />
E assim, aos poucos, ele iria se<br />
curando de sua bebedeira. O mais<br />
empedernido dos bêbados poderia<br />
deixar esse defeito, desde que um diretor<br />
espiritual tivesse tomado o cuidado<br />
de preparar na alma dele os<br />
pressupostos da conversão.<br />
O ponto de partida não consiste<br />
em exigir imediatamente o sacrifício,<br />
mas em criar as condições de alma<br />
propícias para o sacrifício, para que<br />
depois este seja praticável, factível.<br />
Essa é a conversão em câmara<br />
lenta de um pecador em estado<br />
de pecado mortal; tal preparação se<br />
aplica também à conversão das nações.<br />
Como a Igreja combateu<br />
o excesso de espírito<br />
guerreiro dos bárbaros<br />
Quando analisamos a luta da Igreja<br />
contra o excesso de espírito guerreiro<br />
dos bárbaros que haviam invadido<br />
o Império Romano do Ocidente,<br />
vemos que a Esposa de Cristo fez<br />
exatamente assim.<br />
A Igreja incutiu nesses bárbaros,<br />
ou em seus descendentes, a ideia<br />
de que o assassínio era um mal; e<br />
de que a guerra injusta era, portanto,<br />
um mal muito maior porque uma<br />
espécie de assassínio em larga escala.<br />
Depois, a Igreja foi dulcificando<br />
S. Miyazaki<br />
a guerra. Em primeiro lugar, criando<br />
leis de honra da guerra, pelas quais<br />
não só não se matava um inimigo ferido,<br />
mas ele deveria ser conduzido<br />
a um hospital onde se lhe proporcionava<br />
um padre para ajudá-lo a<br />
se emendar; leis ordenando que em<br />
certos dias do ano não se combatia,<br />
em louvor da Paixão de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo; depois as leis segundo<br />
as quais o homem plebeu não<br />
era obrigado a guerrear, a não ser<br />
dentro de certo perímetro em torno<br />
de sua própria cidade.<br />
Posteriormente, a Igreja, por um<br />
consenso geral, obteve que não houvesse<br />
combate nos domingos porque<br />
era o dia de Deus. Depois, nas sextas-feiras,<br />
em memória da Paixão de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo; e aos sábados,<br />
dia de Nossa Senhora. Assim,<br />
de dia em dia, acabaram as guerras<br />
privadas.<br />
Aquelas guerras particulares de<br />
indivíduos contra indivíduos, famílias<br />
contra famílias, foram desaparecendo<br />
em todo o Ocidente,<br />
pouco a pouco,<br />
tendo realizado<br />
a Igreja com o conjunto das<br />
almas aquilo que um bom diretor espiritual<br />
deveria fazer com um pecador<br />
empedernido.<br />
Método aplicável<br />
para lutar contra os<br />
pecados veniais<br />
Isso que se aplica às regiões sombrias,<br />
negras, tristes, do hábito do<br />
pecado mortal, aplica-se também<br />
para o pecado venial e aos defeitos<br />
de alma que, mesmo sem levar o indivíduo<br />
ao pecado mortal, às vezes,<br />
estão radicadíssimos. Por exemplo, o<br />
hábito da megalice 1 , ou seja, de querer<br />
ser o primeiro, mandar em todo<br />
mundo, ser saliente; ou o hábito da<br />
agressividade, de a todo propósito<br />
agredir os outros; o hábito da<br />
preguiça. De todos<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />
dezembro de 1991.<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
esses, creio que a preguiça é o mais<br />
difícil de extirpar. Como uma pessoa<br />
que tem um desses hábitos deve<br />
combatê-lo?<br />
Como o pecado original ferve e<br />
ruge em nós, comentar qualquer um<br />
desses hábitos tem sua atualidade.<br />
A megalice não é um defeito tão<br />
alheio a nós que se possa dizer que<br />
o exemplo seja tirado do mundo da<br />
lua... De maneira que vou tratar desse<br />
hábito.<br />
Seria interessante chegar junto a<br />
um mega 2 e dizer-lhe: “Reconheça<br />
que é mega; em que ponto e até que<br />
ponto é mega.”<br />
É muito fácil o indivíduo afirmar<br />
que é mega. Pode até ser uma forma<br />
de megalice... Ele declara numa<br />
roda de pessoas: “Bem, eu, mega...”<br />
Outro comenta: “Coitado, como ele<br />
é humilde!”<br />
Se um diretor espiritual lhe pergunta:<br />
“Fulano, você tem de si uma<br />
muito boa opinião, não tem?”, ele<br />
responderá: “Sim, padre, sei que tenho<br />
tal defeito.”<br />
Ele pensa que está fazendo um<br />
ato de humildade. Continuando a<br />
falar, ele indicará um décimo dos<br />
defeitos que possui e as qualidades<br />
que se atribui, mas de fato não<br />
tem. A coisa mais dura para se apontar<br />
a um homem não são os seus defeitos;<br />
porque às vezes eles saltam<br />
aos olhos. O mais duro é dizer-lhe<br />
de frente: “Você pensa que tem tais<br />
qualidades? As que você possui são<br />
menores do que imagina, e tais outras,<br />
as quais julga ter, você não possui.<br />
E tem até o defeito oposto.”<br />
Recebendo as<br />
confidências de um mega<br />
Fazer isso é de uma dureza extrema,<br />
porque o apego que o indivíduo<br />
tem a certas qualidades é incrível.<br />
Lembro-me de uma pessoa, na<br />
qual eu tinha notado uma insuficiência<br />
de inteligência realmente fora do<br />
comum. Considerem que o comum é<br />
bem pouco inteligente... Ela sentou-<br />
-se diante de mim e, com um ar modesto,<br />
depois de esfregar um pouco<br />
os olhos — e eu pensando o que<br />
sairia dali —, olhou para mim, como<br />
que para me sustentar diante do<br />
que era obrigada a dizer, e afirmou:<br />
“Bem, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, para começar, o<br />
senhor não leve a mal que eu ponha<br />
o dedo no ponto... mas a dificuldade<br />
que me causa, do ponto de vista da<br />
megalice, é isto que o senhor já deve<br />
ter notado: a minha excepcional inteligência.”<br />
Era uma pessoa notavelmente inferior<br />
à média. E, supondo que eu<br />
tinha alguma percepção psicológi-<br />
É quase a regra geral<br />
que o indivíduo é<br />
mega imaginando<br />
qualidades que não<br />
tem, e não é mega das<br />
qualidades que possui.<br />
ca, ela estava certa de que eu ficara<br />
extasiado diante de sua penetração<br />
intelectual. E foi preciso ter paciência<br />
para tocar o assunto nessa base.<br />
Eu me perguntava: Como ser mega<br />
da inteligência que ela não tem,<br />
e nem mesmo possui qualquer coisa<br />
que se pareça com o que ela imagina?<br />
Como esse, há imensidades de<br />
horrores!<br />
Se reconhecesse sua<br />
megalice, diminuiria<br />
seu purgatório<br />
Seria conveniente que cada um<br />
procurasse fazer esse exame bem<br />
claro, aos pés de Nossa Senhora:<br />
Que qualidades eu tenho? Que qualidades<br />
não possuo? Quais os reais<br />
tamanhos de minhas supostas qualidades?<br />
Procurar ter uma ideia exata a<br />
respeito disso diminuiria enormemente<br />
o purgatório do mega. Ele foi<br />
mega, é verdade, mas ao menos reconheceu<br />
sua própria megalice. Não<br />
se trata absolutamente de fazer o sacrifício<br />
de não ser mega, mas sim reconhecer<br />
no que a pessoa é mega.<br />
Ter a coragem de, em determinado<br />
momento, ouvir alguém lhe dizer todas<br />
as verdades.<br />
Depois de reconhecer no que não<br />
deveria ser mega, como é bonito que<br />
a pessoa tenha uma ideia certa do<br />
mal que há na megalice.<br />
Para se ter um pouco a noção do<br />
que pode haver de mal na megalice,<br />
imaginemos o que seria a vida financeira<br />
de um homem que se supõe<br />
cinquenta vezes mais rico do que é.<br />
Então ele funda indústrias, bancos,<br />
com base em um dinheiro que não<br />
tem. Haveria desastres, um em cima<br />
do outro.<br />
Geralmente o indivíduo<br />
é mega imaginando<br />
qualidades que<br />
não possui<br />
Muita gente fracassa na vida por<br />
ter tido uma ideia exagerada de si<br />
mesmo. Conheço casos de pessoas<br />
que se metem em estudos e se percebe<br />
que aquilo não é para elas. Não<br />
têm êxito, e o caminho da Providência<br />
fica à espera delas.<br />
É quase a regra geral que o indivíduo<br />
é mega imaginando qualidades<br />
que não tem, e não é mega das<br />
qualidades que possui. Se ele aproveitasse<br />
estas últimas, as quais às vezes<br />
são maiores do que as qualidades<br />
que ele imagina ter e de fato não<br />
possui, ele daria mais. Mas não: devido<br />
à megalice ele começa a sacar<br />
sem fundo. Resultado: sua vida é um<br />
desastre.<br />
Muitas pessoas afirmam que não<br />
se encaixam em nenhum serviço. A<br />
cada uma fico com vontade de dizer:<br />
18
“Você não será um pouco<br />
mega? Você já fez bem seu<br />
balanço para verificar qual<br />
é seu ‘capital’? Quem sabe<br />
se você dá para mais do<br />
que pensa? Mas você quer<br />
menos... Busque um pouco<br />
o papel da megalice dentro<br />
disso, que você encontrará.<br />
Veja em torno de si os que<br />
são humildes e procure admirá-los,<br />
observe como a<br />
Providência os protege e<br />
como as coisas dão certo<br />
para eles; quando não dão<br />
certo, é para o bem deles; e<br />
nesse caso dão certíssimo,<br />
porque lhes fazem bem espiritual.<br />
“Procurando ver de frente<br />
a sua megalice, o mal<br />
que ela lhe traz e, de outro<br />
lado, admirando quem não<br />
é mega, mas admirando<br />
sinceramente, com toda a<br />
alma, estará criada a condição<br />
para começar a pedir a<br />
Nossa Senhora, de um modo<br />
mais vivo, para libertá-lo<br />
da megalice. Então faça isso:<br />
aos sábados, em louvor<br />
de Maria Santíssima, não<br />
seja mega. Depois o resto o<br />
anjo da guarda lhe dirá.”<br />
“Peccatum<br />
meum contra<br />
me est semper”<br />
G. Kralj<br />
Feito com suavidade, não de maneira<br />
bruta, esse é o modo de se<br />
curar da megalice e de tantos outros<br />
defeitos: um reconhecimento confiante<br />
na bondade, na misericórdia e<br />
no auxílio de Nossa Senhora.<br />
No Magnificat está dito: “Depôs<br />
de seu trono os poderosos e levantou<br />
aqueles que são humildes.” O poderoso<br />
é o mega, e o humilde aquele<br />
que não é mega. Poderoso é o fariseu<br />
e humilde o que bate no peito e<br />
reconhece o seu próprio defeito.<br />
Visitação de Maria a sua prima,<br />
Santa Isabel - Louvre, Paris.<br />
Aqui estaria um modo de tornarmos<br />
curáveis defeitos em nossas almas,<br />
que, à primeira vista, parecem<br />
incuráveis: caminharmos pouco a<br />
pouco.<br />
Alguém dirá: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, eu<br />
não sou assim. Curei-me de tal defeito<br />
maravilhosamente, de um momento<br />
para outro.”<br />
Respondo: “É verdade, eu conheço<br />
casos semelhantes, dou graças a<br />
Nossa Senhora, admiro e me alegro<br />
muito com isso.” Entretanto, es-<br />
sa não é a regra geral. Enquanto<br />
Maria Santíssima<br />
não nos conceder exceção,<br />
vamos andando pelas vias<br />
da regra geral. Nada nos<br />
prepara mais para sermos<br />
tratados no caminho da exceção<br />
do que nossa fidelidade<br />
à regra geral. Caminhamos<br />
devagarzinho, nos colocando<br />
ao pé da montanha<br />
e dizendo: “Aqui está o meu<br />
defeito, Senhor, e eu Vos<br />
peço perdão por ele.”<br />
Gosto muito dos Salmos<br />
de David. Ele via claramente<br />
os seus próprios defeitos<br />
e reconhecia que eram graves.<br />
Sobretudo aprecio aquela<br />
frase dele: “Quia peccatum<br />
meum contra me est semper<br />
3 .” Como quem dissesse:<br />
“Vós estáveis na minha<br />
presença quando eu pequei.<br />
Portanto, tudo se passou como<br />
se no universo só houvesse<br />
Vós e eu. Diante de Vós<br />
pequei, e o meu pecado está<br />
continuamente diante de<br />
mim, me acusando. Eu reconheço<br />
o tamanho do meu<br />
pecado, bato no peito por<br />
ele, quero me emendar.”<br />
Peçamos que Nossa Senhora<br />
faça com que estas<br />
palavras tenham alguma<br />
penetração em nossos espíritos,<br />
e que saibamos aplicar<br />
isso para a mudança de<br />
nossas almas.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 27/9/1969)<br />
1) Termo cunhado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para<br />
designar o defeito de quem exagera<br />
as próprias qualidades ou imagina<br />
qualidades que não possui.<br />
2) Assim <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> designava a pessoa<br />
que tem o defeito da megalice.<br />
3) Sl 50.<br />
19
Perspectiva pliniana da história<br />
O Império Romano nos<br />
planos de Deus – II<br />
Após discorrer acerca das “continuidades esplendorosas” existentes<br />
na História, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, dotado de profundo senso de reversibilidade,<br />
imagina a “esplendorização histórica” do Céu empíreo.<br />
Essencialmente falando, eu<br />
acho que aquele traço dado<br />
de algum modo se projeta<br />
no Céu empíreo. Não posso imaginar<br />
o Céu empíreo como se os homens<br />
tivessem vivido atemporalmente,<br />
sem nenhuma civilização,<br />
meio parecido com aquelas indecências<br />
do Olimpo, onde as pessoas se<br />
portavam como índios selvagens...<br />
A meu ver, nossas almas não têm<br />
uma plena atração por essas coisas,<br />
porque não se sentem inteiramente<br />
refletidas.<br />
Pergunto-me se não há infiltrações<br />
de Renascença nesses modos<br />
de apresentar o Paraíso. Não posso<br />
admitir um Céu empíreo onde a<br />
Igreja não esteja representada em<br />
tudo aquilo por onde ela se materializou,<br />
para as delícias dos sentidos<br />
humanos. É Igreja Triunfante.<br />
Haverá ordens religiosas no Céu?<br />
Enquanto tais, não; mas como famílias<br />
de almas, sim. Portanto, isso<br />
tem que ter continuidades, as<br />
quais devem se refletir no Céu empíreo.<br />
Eu gostaria de imaginar um<br />
Céu empíreo que fosse uma esplendorificação,<br />
além de todos os aspectos<br />
da natureza, também da História:<br />
as intenções de Nosso Senhor<br />
com aquilo que ficou em estado potencial,<br />
as mostras de coisas que foram<br />
de determinado modo, e como<br />
poderiam ter sido.<br />
Não concebo — claro que se a<br />
Igreja disser o contrário, eu me inclino<br />
com delícias — que o Céu empíreo<br />
seja simplesmente como ele<br />
é apresentado, por exemplo, pelo<br />
Cornélio 1 : tem-se a impressão de<br />
que os anjos produzem sons, emitem<br />
cores etc., dando aos bem-aventurados<br />
a ideia que são uns artistas convencionais.<br />
Tudo isso é verdade, mas<br />
deve haver algo a mais.<br />
Que relação existe entre o Céu<br />
empíreo e o Paraíso terrestre, que<br />
não vai ser destruído? A própria<br />
ideia do Céu empíreo precisaria<br />
ser muito enriquecida. Talvez fosse<br />
missão de nosso Movimento<br />
fazer tal enriquecimento, para<br />
Fotos: G. Kralj<br />
20
Detalhe do Arco de Constantino - Roma, Itália.<br />
glorificar a obra total de Deus e também<br />
atrair mais as almas para o Céu.<br />
Juízo Final: grande<br />
aula de História<br />
Volto a dizer, tenho pânico de não<br />
manter a ordenação católica verdadeira<br />
— submeto-me de muito bom<br />
grado a tudo quanto a Igreja ensine<br />
—, mas a História deve ser consoante<br />
com o Juízo Final. E o Céu,<br />
visto por esse lado, seria uma espécie<br />
de condensação da História, não<br />
porque fiquem pedaços menos importantes<br />
de lado, mas em razão de<br />
ser feita de modo denso, de maneira<br />
a apresentar um panorama com<br />
as várias glórias sucessivas, que Nosso<br />
Senhor foi determinando para Si<br />
ao longo dos tempos, e que iriam recompondo<br />
de algum modo o plano<br />
que Ele teve com o Paraíso terrestre,<br />
o qual não se realizou. E depois do<br />
Juízo Final todas essas coisas ficariam,<br />
por assim dizer, paradas, e de<br />
algum modo vivendo no Céu o que<br />
na Terra não foi vivido.<br />
Alguém poderia dizer ser imprudente<br />
ensinar isto assim, porque<br />
desvia a ideia daquilo que é a essência<br />
do Céu: a visão beatífica. Eu me<br />
pergunto se desvia ou encaminha. É<br />
uma cogitação de caráter pastoral,<br />
e não doutrinário, que se pode pelo<br />
menos discutir.<br />
Percebe-se que há no Céu, dentro<br />
de todas as fixidezes de uma eternidade<br />
perfeita, tal ou qual acontecer<br />
que é, creio eu, o festejamento de<br />
algumas dessas luzes que aparecem<br />
sob algum aspecto especial, em função<br />
de Deus que se compraz. Deus<br />
atua como a Igreja faz com suas glórias<br />
passadas: ela se alegra em remexê-las,<br />
extraindo delas sua glória.<br />
Quer dizer, a História teria um papel,<br />
no plano divino, que não se<br />
esgota. Algum teólogo poderia objetar:<br />
“Acabou o tempo e agora é a<br />
eternidade.” É magnífico, mas o que<br />
quer dizer isso? Eu gostaria de lhe<br />
dizer: “Não quer estudar um pouco<br />
esse assunto, ó teólogo venerável, e<br />
condescender com essas minhas babugens<br />
de criança envelhecida? Vamos<br />
conversar um pouco sobre isso.”<br />
Dou um exemplo com os mistérios<br />
da vida de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo. No Céu, Ele está fisicamente<br />
presente em sua Humanidade Santíssima,<br />
com a idade perfeita que<br />
atingiu. Mas o Divino Redentor vive<br />
dentro do Céu com os esplendores<br />
próprios de cada uma das idades,<br />
que se fundem dentro da idade perfeita<br />
d’Ele. Há no Céu uma alegria<br />
Mercado de Trajano - Roma, Itália.<br />
21
Perspectiva pliniana da história<br />
por Jesus Menino, que não é a alegria<br />
por Jesus Adolescente.<br />
Quer dizer, seria preciso encontrar<br />
um modo, uma forma de exprimir isso,<br />
de juntar ao mistério da eternidade.<br />
E compreender que, assim como<br />
essas coisas, de certa forma, coexistem<br />
no Céu, a História tem também,<br />
de um modo minor, um existir contínuo<br />
no Céu, que explica o Juízo Final,<br />
a grande aula de História final!<br />
O Juízo não será apenas para separar<br />
uns homens de outros, mas a fim de<br />
dar a cada um o seu quinhão.<br />
Como seria agradável fazer um<br />
simpósio sobre História, para tratarmos<br />
a respeito disso! E se quiséssemos,<br />
poderíamos estender o quadro<br />
até suas últimas consequências.<br />
O pulcro das obras de<br />
Deus e o hediondo dos<br />
feitos do demônio<br />
Também o demônio engendrou<br />
seu plano: fazer que a cada aspecto de<br />
Deus corresponda um hediondum para<br />
o qual ele procura levar o povo de<br />
certa época, e que ele pode mostrar<br />
à luz do Sol, neste nunc, neste agora,<br />
com o efêmero brilho de mentira das<br />
De um lado, há povos<br />
que desaparecem<br />
apodrecendo,<br />
fulminados no<br />
isolamento; de<br />
outro, há povos<br />
que desaparecem<br />
renascendo.<br />
coisas terrenas. E esse hediondo, como<br />
historicamente existiu, é atirado<br />
ao inferno, punido permanentemente.<br />
Por isso, eu acredito que haja um<br />
reflexo celeste do Império Bizantino e<br />
também um reflexo infernal da podridão<br />
bizantina, do hediondum bizantino.<br />
E, no que diz respeito aos homens,<br />
imagino um inferno historicamente<br />
ordenado para tudo quanto Bizâncio<br />
teve de podre, de horroroso.<br />
Então, há o inferno dos podres,<br />
dos chicanistas, dos sofistas, dos incapazes<br />
porque não quiseram ter valor,<br />
que são eternamente atormentados<br />
por esses vícios.<br />
Essas considerações seriam úteis<br />
para uma aula de catecismo. Por<br />
exemplo, o inferno de Hollywood,<br />
que não forma ali um império, mas<br />
o hediondum dele traz a lama do que<br />
foi esse império. Como os franciscanos<br />
no Céu não formarão uma ordem,<br />
mas o pulchrum deles será o<br />
que a Ordem Franciscana teve de belo.<br />
Não preciso dividir um fio de cabelo<br />
em quatro para fazer compreender<br />
o que é isso; uma comparação<br />
simples, despretensiosa, o torna<br />
claro. Mais ainda, há festas no Céu e<br />
tormentos simétricos no inferno.<br />
Às vezes, o Paraíso é representado<br />
com anjinhos ridiculamente gordinhos<br />
— a ponto de formar dobras nos<br />
joelhos. Entretanto, com a visualização<br />
que apresentei, todos desta sala<br />
tomamos atitudes de quem pela primeira<br />
vez está conseguindo respirar<br />
até o fundo dos pulmões. Por quê?<br />
Não será alguma coisa para indicar<br />
que há um caminho nessa direção?<br />
No Reino de Maria<br />
a sociedade será<br />
semelhante ao Céu<br />
Compreendendo tudo isso se poderá<br />
proceder à construção do Reino<br />
de Maria, com todo amor e virtudes<br />
R. Castelo Branco; G. Kralj<br />
À esquerda, Detalhe do Arco de Constantino (Roma); à direita, Fórum Romano.<br />
22
S. Miyazaki<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em novembro de 1991, por ocasião do VIII Encontro de Correspondentes de seu Movimento.<br />
que são necessários. Aqui está o “tal<br />
enquanto tal” de nosso Movimento,<br />
quer dizer, temporal enquanto espiritual,<br />
espiritual enquanto temporal,<br />
expresso por inteiro. E no Reino<br />
de Maria uma pessoa bem persuadida<br />
de todas essas coisas deve ter<br />
certa noção, difusa — que uma boa<br />
mãe cozinheira e um bom pai padeiro<br />
possuem ao executar<br />
seus trabalhos —,<br />
mas com verdadeiro<br />
espírito sobrenatural,<br />
de por onde sopra o<br />
Espírito Santo, e da<br />
necessidade de construir<br />
uma sociedade<br />
terrena semelhante<br />
ao Céu. É o pendant<br />
de um Céu algum<br />
tanto parecido com a<br />
sociedade nesta Terra.<br />
No Padre-nosso se<br />
pede: “...venha a nós<br />
o vosso Reino... assim<br />
na Terra como no<br />
Céu”. O Céu vem à<br />
Terra, mas a Terra está<br />
construindo para o<br />
Céu.<br />
Como tudo isso é apaziguante para<br />
a alma; é distensivo!<br />
É bonita a distinção entre duas<br />
coisas: as civilizações que morrem,<br />
resultando numa espécie de purgatório<br />
dos respectivos povos, e as civilizações<br />
que morrem, dando numa<br />
espécie de inferno.<br />
Existiram civilizações que pararam,<br />
estancaram, ninguém sabe que<br />
fim tiveram, onde foram parar seus<br />
habitantes; há mistério a respeito<br />
delas. Em outras sucedeu algo parecido<br />
com o que aconteceu com o Império<br />
Romano: vieram os bárbaros,<br />
remexeram, passaram o açoite sobre<br />
ele, mas aquilo de algum modo<br />
revive. Enquanto revive, reassimila o<br />
que caiu.<br />
Enfim, os bárbaros fizeram com<br />
os romanos o que estes realizaram<br />
com a Grécia. Quer dizer, eles mesmos<br />
se civilizaram, tiraram daqueles<br />
escombros o que era aproveitável,<br />
reconstruíram outra ordem. Já com<br />
os bizantinos isso não foi feito. Pior,<br />
o que deles sobreviveu apodreceu o<br />
Ocidente.<br />
Esta é uma distinção que importa:<br />
há os povos que desaparecem apodrecendo,<br />
os que desaparecem fulminados<br />
no isolamento, e os que desaparecem<br />
renascendo. São coisas<br />
parecidas com o inferno, o purgatório<br />
e o Céu; com os demônios que<br />
caem no inferno e depois tentam<br />
os homens. Civilizações misteriosas<br />
que desaparecem, fulminadas não se<br />
sabe como, são infernos.<br />
É uma batalha enorme que em<br />
seu conjunto, no Juízo, terá sua movimentação<br />
e uma retificação. Tudo<br />
o que era para ser acabado, embora<br />
não idêntico ao que seria se tivesse<br />
correspondido, de algum modo se<br />
completa. E a obra de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo como Rei, Profeta e Sacerdote,<br />
chega a seu fim. É o pináculo.<br />
Acho que tudo isso tem pulchrum<br />
realmente extraordinário! v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 8/9/1982)<br />
1) Cornélio a Lapide (Cornelissen<br />
Cornelis van den Steen) exegeta<br />
flamengo, pertencente à Companhia<br />
de Jesus (18/12/1567 – 12/3/1637).<br />
23
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Verdadeira<br />
M. Shinoda; J. Dias; S. Hollmann.<br />
24
cultura e santidade<br />
Tudo quanto o homem admira e ama, de algum modo<br />
penetra nele. Por isso, embora um santo possa ser, sob<br />
muitos aspectos, menos culto do que um indivíduo não<br />
santo, a santidade é a seiva no tronco da verdadeira cultura.<br />
Apalavra “cultura” tem um<br />
sentido distinto daquele de<br />
palavras afins, tais como<br />
“inteligência”, “instrução”, “educação”<br />
e “civilização”. Empregarei o<br />
termo “cultura” não como este ou<br />
aquele especialista pode utilizá-lo,<br />
mas conforme ele é usado na linguagem<br />
portuguesa-brasileira e na dos<br />
povos ibero-americanos, tanto quanto<br />
eu possa conhecer.<br />
A inteligência, como é fácil notar,<br />
é a capacidade do homem de penetrar,<br />
de tomar conhecimento da realidade.<br />
Ela se distingue da cultura<br />
porque a inteligência é uma qualidade<br />
nativa, e a cultura, enquanto tal,<br />
não o é.<br />
Informação, instrução,<br />
erudição e cultura<br />
A instrução é o conjunto de conhecimentos<br />
que o homem adquire<br />
mediante a inteligência. Quer dizer,<br />
não é uma pura memória, mas uma<br />
memória pela qual as coisas estão<br />
explicadas e entendidas. Não é, portanto,<br />
a memória de um bicho, nem<br />
a memória de uma criança.<br />
A memória entendida, explicada,<br />
das coisas se atinge por meio do estudo<br />
e da reflexão; ou seja, por meio<br />
de um esforço intelectual que não é<br />
inteiramente o comum, feito pelo<br />
homem a qualquer hora do<br />
dia. É por causa disso que<br />
certas informações estão excluídas<br />
do conceito de instrução. Por exemplo,<br />
conhecer o horário dos trens,<br />
dos ônibus, não é instrução, mas sim<br />
uma informação corrente; não é uma<br />
informação sobre algo que a pessoa<br />
adquire por uma concentração, por<br />
um maior esforço do pensamento.<br />
Erudição é o ápice da instrução,<br />
mas não é ainda propriamente a cultura.<br />
Chamamos de erudito aquele<br />
que tem um notável cabedal de conhecimentos<br />
adquiridos com um esforço<br />
intelectual árduo. Quer dizer,<br />
a instrução arduamente adquirida,<br />
de alta categoria e copiosa, se chama<br />
erudição.<br />
A cultura está para o homem como<br />
a agricultura para a terra. Se quiséssemos<br />
fazer uma espécie de paralelismo<br />
implicante, poderíamos falar<br />
de “antropocultura”, ou de “homocultura”,<br />
quer dizer o cultivo do<br />
homem. O que é então cultura? É o<br />
aprimoramento que a alma humana<br />
recebe pelo fato de, não só ter uma<br />
grande instrução, mas degustar devidamente<br />
a sua instrução. De maneira<br />
que ela se enobrece, se eleva com<br />
a sua própria instrução.<br />
Dou um exemplo. Na Europa há<br />
excelentes museus com excelentes<br />
guias. Através destes últimos pode-<br />
-se compreender o que é uma instrução<br />
sem cultura. Em relação aos<br />
objetos de um museu, eles são notavelmente<br />
instruídos e transmitem o<br />
que sabem como verdadeiros papagaios.<br />
Um guia, por exemplo, se coloca<br />
diante de um quadro e diz: “Este<br />
quadro é de El Grecco; foi pintado<br />
em tal época e se destaca por tal<br />
tonalidade; no fundo está tal personagem;<br />
olhem tal jogo de luz…” Instruído<br />
ele é, mas não tem o mínimo<br />
de cultura. Quer dizer, a sua personalidade<br />
não assimilou nada daquilo;<br />
ele não teve uma admiração por<br />
aquelas coisas, não se deixou penetrar<br />
nem embeber por elas.<br />
O erudito, muitas vezes, não é um<br />
homem culto; é um indivíduo que<br />
adquire uma grande soma de conhecimentos<br />
com um esforço árduo,<br />
mas não inalou aquilo, não assimilou.<br />
Ele não admirou, não amou e<br />
não se modelou de acordo com aquilo.<br />
O resultado é que a pessoa dele<br />
teve um aprimoramento apenas de<br />
superfície, meramente intelectivo,<br />
mas seu interior não é de um homem<br />
culto.<br />
Aprimoramento do<br />
homem considerado<br />
como um todo<br />
Então o que vem a ser a cultura?<br />
A cultura resulta do princípio de que<br />
tudo quanto o homem admira e ama,<br />
de algum modo penetra nele e se incorpora<br />
a ele. Aquilo que o homem<br />
rejeita faz crescer nele o contrário<br />
do que rejeitou. Se, por exemplo, eu<br />
25
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Assim, a cultura não é unicamente<br />
uma plenitude puramente filosófica<br />
ou técnica, mas sim uma coisa<br />
muito mais vasta do que isso: a plenitude<br />
de todos os modos de operar<br />
da inteligência humana.<br />
Em segundo lugar, a cultura é um<br />
enobrecimento do fortalecimento da<br />
vontade. Esse enobrecimento é alentro<br />
num quarto imundo e tenho<br />
uma rejeição proporcionada àquela<br />
sujeira, o meu senso de limpeza cresceu.<br />
Se passando pela Rua Pará ou<br />
Avenida Angélica 1 percebo uma coisa<br />
imoral e a recuso, a minha pureza<br />
aumentou. Quer dizer, a rejeição<br />
do mal, do erro, do que não deve ser<br />
visto, aumenta em mim o contrário<br />
daquilo que vi.<br />
Chegamos então à conclusão de<br />
que a cultura é o aprimoramento do<br />
homem considerado como um todo;<br />
ela é fruto da instrução, mas não se<br />
identifica com a instrução, porque o<br />
indivíduo pode ser muito instruído e<br />
nem um pouco culto.<br />
Creio que as ciências naturais, como<br />
são estudadas habitualmente hoje<br />
em dia, proporcionam uma instrução<br />
sem cultura. Pois a pessoa que<br />
as estuda não é levada, senão raríssimas<br />
vezes, a ter uma admiração filosófica<br />
ou artística pelo objeto de seu<br />
estudo. De maneira que é um puro<br />
São Tomás de Aquino - Catedral<br />
de Innsbruck, Áustria.<br />
Tomar coisas<br />
análogas, distinguilas<br />
uma da outra e<br />
depois ver por onde<br />
elas são semelhantes<br />
ou diferentes, exige<br />
sutileza, ponderação,<br />
indica uma plenitude<br />
do espírito humano.<br />
jogo de dados, o qual não traz um<br />
aprimoramento. É preciso outra posição<br />
diante das ciências naturais para<br />
que elas nos sejam enriquecedoras,<br />
porque, à força de estudar sem<br />
admiração e amor, a capacidade de<br />
admirar e amar se embota. Então a<br />
capacidade de ser culto desaparece.<br />
É uma banalização.<br />
Estudo das ciências<br />
naturais e<br />
plenitude humana<br />
Podemos agora perguntar<br />
de que natureza é essa<br />
penetração que a coisa admirada<br />
ou amada produz<br />
no indivíduo.<br />
Na ordem cronológica,<br />
ela começa por um ato de inteligência;<br />
é antes de tudo<br />
uma flexibilização, um adestramento<br />
da inteligência.<br />
Pode haver formas de<br />
instrução que são anticulturais.<br />
Porque se a instrução<br />
consiste apenas em enfileirar<br />
raciocínios, a alma<br />
desenvolve apenas um dos<br />
aspectos de sua personalidade.<br />
Ela fica capaz do raciocínio<br />
quadrado 2 , que às<br />
vezes contém a verdade inteira,<br />
mas outras vezes até<br />
se afasta da verdade. A<br />
verdadeira instrução deve<br />
exercer na alma todas as<br />
faculdades que puder.<br />
Por causa disso eu fico muito encantado<br />
quando vejo, ainda hoje, a<br />
existência de grandes sábios — às vezes<br />
especialistas em ciências naturais<br />
ou outras matérias — que têm um<br />
grande interesse por um ramo qualquer<br />
da Literatura, da Arte, da Filosofia<br />
ou da História; isto prova uma<br />
plenitude humana: além de serem capazes<br />
daquilo que cuidam, o seu espírito<br />
os remeteu em outras direções.<br />
Acho bonito que um homem seja,<br />
digamos, especialista em formiga e<br />
tenha ao mesmo tempo interesse por<br />
Homero, por exemplo. Ele não ficou<br />
do tamanho de uma formiga, mas<br />
tem uma dimensão humana; possui<br />
uma cultura mais ampla do que a pura<br />
especialização que adquiriu.<br />
Essa é exatamente uma das recriminações<br />
que o verdadeiro católico<br />
deve fazer ao estudo das ciências naturais<br />
como geralmente é feito hoje<br />
em dia.<br />
Por exemplo, uma das faculdades<br />
intelectuais mais próprias do espírito<br />
católico, e que o espírito tecnicista<br />
poda, é a capacidade de distinguir.<br />
São Tomás de Aquino dizia que distinguir<br />
é pensar. Tomar coisas análogas,<br />
distingui-las uma da outra e depois<br />
ver por onde elas são semelhantes<br />
ou diferentes, exige sutileza, ponderação,<br />
indica uma plenitude do espírito<br />
humano; e quem é capaz de<br />
fazer isto é uma pessoa culta.<br />
Plenitude dos modos<br />
de operar da inteligência<br />
e enobrecimento<br />
da vontade<br />
26
go de imponderável. Até agora não<br />
consegui uma definição que me satisfizesse<br />
inteiramente para a palavra<br />
“nobre”. O que é uma vontade<br />
nobre? Mais importante do que<br />
ser forte é ser nobre. Há alguns sintomas<br />
que caracterizam a vontade<br />
nobre. Um deles é ser mais capaz<br />
de querer, de ser ávida de se apossar<br />
mais dos bens do espírito do que<br />
dos bens da matéria. Por exemplo,<br />
um homem que tenha mais vontade<br />
de ser virtuoso do que rico revela nobreza<br />
de vontade. Porque esta vontade<br />
quer uma coisa mais nobre.<br />
A virtude é intrinsecamente um<br />
bem da alma. E sendo um bem da<br />
alma, é mais nobre do que um bem<br />
para o corpo. Então um homem que<br />
quer as coisas do espírito tem uma<br />
vontade mais nobre.<br />
Mostraram-me uma estrofe de<br />
uma poesia de Molière 3 , a respeito do<br />
covarde. Entre outras coisas, o covarde<br />
dizia: “Eu prefiro viver dois anos<br />
desta vida a mil anos de História, de<br />
maneira que me deixem fugir.”<br />
Essa é a vontade sem nobreza.<br />
Porque, colocado entre a realização<br />
de um grande feito, que a alma magnânima<br />
quer, e a prática de uma série<br />
de pequenas ações, ele prefere as<br />
coisinhas. Porque ele prefere a vida<br />
do corpo; a vida da alma, a grandeza<br />
das ações, não lhe dizem nada.<br />
O próprio da cultura — fazendo-<br />
-nos apetecer as coisas do espírito, e<br />
dentre elas as mais altas, portanto as<br />
maravilhosas, as metafísicas, as sobrenaturais,<br />
o próprio Deus — é dar<br />
à nossa alma uma nobreza cristã, uma<br />
nobreza católica, e nos fazer santos.<br />
Ordenação<br />
da sensibilidade<br />
A cultura tem uma repercussão na<br />
sensibilidade. Pelo fato de o homem<br />
estudar, pensar muito e querer coisas<br />
nobres, há uma repercussão destas<br />
coisas na sua sensibilidade. Esta deixa<br />
de apetecer as coisas puramente<br />
materiais e começa a apetecer<br />
as espirituais; e depois<br />
a apetecer as sobrenaturais<br />
e divinas. Quer dizer,<br />
a sensibilidade se eleva.<br />
Por exemplo, ela perde<br />
qualquer coisa de grossamente<br />
natural, material,<br />
que ela tem nativamente,<br />
em virtude de nossa condição<br />
animal e do pecado<br />
original. E sua sensibilidade<br />
não só se eleva, mas fica<br />
então em condição de ser<br />
combativa. Para ser combativa,<br />
supõe-se que se desenvolva<br />
o que nela é ordenado.<br />
Somente desenvolvendo<br />
as forças de ordem, dentro<br />
da sensibilidade, é que<br />
se podem toldar os elementos<br />
de desordem. Temos assim<br />
uma noção de cultura<br />
que toma o homem inteiro.<br />
Agora, me restaria perguntar<br />
que relação há entre<br />
esse conceito de cultura e a santidade.<br />
Evidentemente, a cultura perfeita<br />
equivale à santidade. Esta é a<br />
mais alta forma de cultura, embora<br />
— e aqui existem matizes que se<br />
devem conservar — um santo possa<br />
ser, sob muitos aspectos, menos culto<br />
do que um indivíduo que não é<br />
santo; e até do que uma pessoa que<br />
certamente vai para o inferno.<br />
Sendo<br />
intrinsecamente<br />
um bem da alma, a<br />
virtude é mais nobre<br />
do que um bem para<br />
o corpo. Assim, um<br />
homem que quer as<br />
coisas do espírito tem<br />
uma vontade mais<br />
nobre.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência<br />
na década de 1990.<br />
Grandes reflexões sobre<br />
fatos comuns da vida<br />
Perceberemos melhor esta relação<br />
entre cultura e santidade se considerarmos<br />
um outro ponto da questão,<br />
que é o seguinte: a cultura é necessariamente<br />
filha da instrução?<br />
Um analfabeto pode ser mais culto<br />
do que um alfabetizado?<br />
Considerem, por exemplo, o tapete<br />
hindu que está na Sala da Tradição<br />
4 . Este tapete foi provavelmente<br />
feito por um analfabeto. Este analfabeto<br />
era um homem menos culto<br />
do que um eleitor alfabetizado, que<br />
saiba desenhar seu nome ou até ler<br />
um jornal? Que relação há nesse caso<br />
entre instrução e cultura?<br />
Há certos povos onde o ambiente<br />
de muito pensamento, numa atmosfera<br />
de muita orientação da atenção<br />
para as coisas do espírito, leva o indivíduo<br />
a refletir notavelmente sobre<br />
coisas que estão ao alcance de<br />
todo mundo. E a deduzir, a partir<br />
27
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
delas, consequências muito altas, de<br />
ordem metafísica, religiosa, e também<br />
estética, ou de qualquer outra<br />
ordem.<br />
Não está absolutamente provado<br />
que Homero soubesse ler e escrever.<br />
Há quem sustente até que Homero<br />
não existiu — eu acho que existiu<br />
—, e que a Ilíada foi um conjunto<br />
de canções populares compostas por<br />
analfabetos da Grécia primitiva, reunidas<br />
depois no período da literatura<br />
clássica num só todo. Seja como<br />
for, a pessoa que compôs a Ilíada,<br />
por exemplo, teve uma alta cultura<br />
ao lado de nenhuma instrução. Quer<br />
dizer, soube tirar grandes reflexões,<br />
grandes consequências de realidades<br />
que estão ao alcance de todo mundo.<br />
E na linguagem corrente, a meu ver,<br />
erroneamente, isto não é considerado<br />
instrução.<br />
Segundo nos mostra o Evangelho,<br />
um espírito muito elevado, apetente<br />
das grandes coisas, pode chegar<br />
a uma grande cultura sem ter tido<br />
propriamente o que a linguagem<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1970.<br />
corrente chama de instrução. Todas<br />
as parábolas do Evangelho são altíssimas<br />
conclusões tiradas dos fatos<br />
comuns da vida: um filho que foge<br />
e gasta a herança, fica reduzido à<br />
mendicância, e que volta para a casa<br />
do pai; o lírio do campo que não tece,<br />
não fia, cujas pétalas formam um<br />
tecido mais bonito que o manto de<br />
qualquer rei. Estas são observações<br />
comuns da vida do homem, há mais<br />
de mil anos, a partir das quais Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, que é a Sabedoria<br />
eterna e encarnada, soube tirar<br />
altíssimas consequências.<br />
Santa Teresinha e<br />
Viollet-le-Duc<br />
Então, estamos obrigados a reconhecer<br />
o seguinte: o conceito de instrução<br />
como é hoje apresentado —<br />
segundo o qual é necessário saber ler<br />
e ter um estudo sistemático num estabelecimento<br />
— é pobre. Pois um<br />
homem pode adquirir uma grande<br />
instrução sem ler nem escrever, pela<br />
consideração elevada de coisas puramente<br />
naturais e comuns.<br />
Nesse sentido, convém lembrar<br />
Santa Teresinha do Menino Jesus,<br />
que tinha uma instrução como as<br />
moças então possuíam, e conhecia<br />
muito bem a Doutrina Católica. Ela<br />
fazia reflexões de um grande alcance,<br />
capaz de deter a atenção de teólogos<br />
de fôlego. Mais ainda, de abrir,<br />
de traçar um caminho novo para as<br />
almas e mostrar que este caminho<br />
tem uma cidadania no firmamento<br />
da vida espiritual. É uma literatura<br />
intelectual muito delicada, sendo<br />
que a instrução dela certamente não<br />
estava na proporção do que tudo isto<br />
significa. Já em pequena, ela era<br />
uma pessoa que tinha muito enlevo<br />
pelas coisas da natureza, enquanto<br />
conduzindo a Deus.<br />
Somos então levados a perguntar<br />
se o verdadeiro nervo da instrução<br />
e da cultura não está exatamente<br />
nesta apetência que a alma deve ter<br />
das coisas elevadas que conduzem<br />
a Deus. Com esta apetência, a pessoa,<br />
mesmo não estudando, acaba,<br />
em certo sentido da palavra, se cultivando.<br />
Se estudar, ela se cultiva também,<br />
porque será capaz de uma análise<br />
profunda e elevada das informações<br />
que a instrução lhe dá.<br />
Houve pessoas não santas que foram<br />
mais cultas do que Santa Teresinha?<br />
Sem dúvida! Por exemplo, Viollet-<br />
-le-Duc 5 , um grande especialista em<br />
arte gótica, era um homem que pegou<br />
algo do espírito da arte gótica, do<br />
contrário não poderia ter feito a obra<br />
que realizou. Entretanto, possuindo<br />
um senso artístico provavelmente<br />
mais afinado do que Santa Teresinha,<br />
Viollet-le-Duc não viu no gótico<br />
o que Santa Teresinha veria, desde<br />
que a sua atenção se pusesse nisso.<br />
Porque o mais fundo, o mais elevado,<br />
não puramente estético, mas que estava<br />
além da estética, isso Santa Teresinha<br />
via, e ele, mesmo sendo artista,<br />
não via. Quer dizer, em um sentido<br />
28
minor da palavra, Viollet-de-Duc foi<br />
mais culto do que Santa Teresinha;<br />
no sentido major da palavra, não.<br />
Cultura católica<br />
A santidade é a seiva no tronco da<br />
verdadeira cultura. As outras formas<br />
de cultura são apenas manifestações<br />
de tal ou qual elevação de alma, mas<br />
que não chegam ao fundo como a<br />
santidade chega. Embora mereçam<br />
o nome de cultura, não são falsas<br />
culturas, mas cultura minor.<br />
A consequência disto é que a única<br />
cultura, no sentido pleno da palavra,<br />
é a cultura católica. É evidente.<br />
A santidade é o que mais leva os homens<br />
à cultura, embora não se possa<br />
afirmar — seria um pouco simplório<br />
— que basta ser santo para ter uma<br />
grande cultura. São José de Cupertino<br />
6 , por exemplo, não daria origem,<br />
por ele mesmo, a uma grande cultura.<br />
Mas uma sociedade que tem santos<br />
é capaz de cultivar de modo incomparável<br />
seus próprios dotes naturais<br />
como ela nunca cultivaria não<br />
possuindo santos.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 15/8/1971)<br />
À esquerda, Santa Teresinha do Menino Jesus;<br />
à direita, Viollet-le-Duc.<br />
1) Situadas em São Paulo, no bairro Higienópolis.<br />
2) Adjetivo empregado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
proveniente do termo “quadratice”<br />
com o qual ele significava uma inveterada<br />
estreiteza de vistas e, em consequência,<br />
de iniciativa (cf. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”<br />
nº 103).<br />
3) Um dos grandes escritores franceses<br />
do Grand Siècle das artes e letras.<br />
4) Sala existente na então Sede principal<br />
do Movimento fundado por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong><br />
5) Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc<br />
(1814 - 1879), francês, arquiteto famoso<br />
por suas restaurações de edifícios<br />
medievais.<br />
6) São José de Cupertino, Presbítero,<br />
séc. XVII (cf. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” nº 150).<br />
29
Calendário dos Santos –––––––––<br />
1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />
Bispo, Confessor e Doutor da<br />
Igreja (†Itália, 1787). Nobre napolitano,<br />
doutorou-se em Direito<br />
com 16 anos e iniciou uma carreira<br />
brilhante. Poucos anos depois,<br />
um insucesso profissional<br />
fez com que se desiludisse das<br />
glórias mundanas e passasse a aspirar<br />
somente à perfeição cristã.<br />
Foi ordenado sacerdote e fundou<br />
a Congregação do Santíssimo Redentor,<br />
de padres dedicados a pregar<br />
missões populares entre os próprios<br />
católicos. Aos 60 anos viu-se<br />
forçado a aceitar a sagração episcopal.<br />
Faleceu aos 91 anos de idade.<br />
2. Santo Eusébio de Vercelli, <br />
Bispo (†Vercelli, Sardenha, 371).<br />
Nasceu na Sardenha, no princípio<br />
do século IV. Fazia parte do clero<br />
de Roma quando, em 345, foi eleito<br />
primeiro bispo de Vercelli. Propagou<br />
a Religião Cristã por meio<br />
da pregação e introduziu a vida monástica<br />
na sua diocese. Por causa da<br />
Fé Católica, foi exilado pelo Imperador<br />
Constâncio, e suportou muitos<br />
sofrimentos. Tendo regressado<br />
à pátria, combateu valorosamente<br />
contra os arianos.<br />
3. São Pedro de Anagni, Bispo e<br />
Confessor (†Itália, 1105). Provinha<br />
da nobre família dos príncipes de<br />
Salerno e era monge beneditino em<br />
Anagni, quando o Papa Alexandre<br />
II, que ali se encontrava exilado, nomeou-o<br />
bispo da mesma cidade. Esteve<br />
em Constantinopla, a mandado<br />
de Alexandre II, como embaixador<br />
junto ao imperador. Participou da<br />
primeira Cruzada e retornou à sua<br />
diocese. Foi canonizado apenas cinco<br />
anos após seu falecimento.<br />
4. São João Maria Vianney, <br />
Confessor (†Ars, 1859).<br />
S. Hollmann<br />
Santa Mônica - Escorial, Espanha.<br />
5. São Cassiano, Bispo de Autun,<br />
na Gália Lugdunense, atual<br />
França (séc. IV).<br />
6. Transfiguração de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo (séc. I). Neste<br />
dia a Igreja celebra, conforme as<br />
palavras do Martirológio Romano-<br />
-Monástico, “o mistério pelo qual<br />
Cristo manifestou sua glória divina,<br />
atestada pela voz do Pai e pela<br />
presença de Moisés e de Elias, para<br />
preparar seus discípulos para a provação<br />
da Cruz”.<br />
7. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />
São Caetano de Tiene, Confessor<br />
(†Nápoles, 1547).<br />
8. São Domingos de Gusmão, <br />
Confessor (†Bolonha, 1221). Compreendendo<br />
todo o mal que a heresia<br />
dos albigenses produzia no Sul<br />
da França, decidiu fundar uma Ordem<br />
mendicante com a finalidade<br />
de defender a ortodoxia católica e<br />
pregar contra as heresias. Nasceu<br />
assim a Ordem dos Pregadores, ou<br />
Dominicanos.<br />
9. Santos Juliano, Mariano e Oito<br />
Companheiros, Mártires (†Constantinopla,<br />
séc. VIII). Padeceram<br />
muitos tormentos e afinal foram<br />
mortos pela espada, porque defenderam<br />
a veneração às santas imagens,<br />
contra os adeptos da heresia<br />
iconoclasta.<br />
10. São Lourenço, Mártir<br />
(†Roma, 258).<br />
11. Santa Clara de Assis, Virgem<br />
(†Assis, 1253). Pertencia a uma família<br />
nobre e tinha grande beleza.<br />
Enfrentando a oposição da família,<br />
que pretendia arranjar-lhe um<br />
casamento vantajoso, seguiu a São<br />
Francisco de Assis e fundou o ramo<br />
feminino da Ordem franciscana,<br />
também conhecidas como Damas<br />
Pobres ou Clarissas.<br />
12. Santo Euplúsio, Mártir<br />
(†Sicília, séc. IV). Obedecendo a<br />
um impulso excepcional da graça<br />
divina, apresentou-se voluntariamente<br />
ao tribunal de Catânia, na<br />
Sicília, e professou sua fé em Jesus<br />
Cristo. Sofreu vários tormentos<br />
e foi, afinal, decapitado.<br />
13. São Ponciano, Papa, e Santo<br />
Hipólito, Presbítero, Mártires<br />
(†Sardenha, séc. III).<br />
14. XX Domingo do Tempo Comum.<br />
São Maximiliano Kolbe, Mártir<br />
(†Auschwitz, 1941).<br />
15. Nossa Senhora da Assunção.<br />
16. Santo Estêvão da Hungria, Rei<br />
e Confessor (†1038). Rei da Hungria,<br />
foi convertido por Santo Adalberto,<br />
Bispo de Praga, e dedicou a vida a fazer<br />
de seu reino, tanto quanto possível,<br />
uma imagem do Reino dos Céus.<br />
30
––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />
17. São Jacinto, Confessor (†Polônia,<br />
1257). Nascido perto de Cracóvia,<br />
foi recebido na Ordem dos Pregadores<br />
pelo seu próprio fundador,<br />
São Domingos de Gusmão. Formou a<br />
província polonesa da Ordem dominicana<br />
e pregou na Rússia e na Prússia.<br />
É considerado o Apóstolo da Polônia.<br />
18. Santa Helena, Viúva (†Nicomédia,<br />
Ásia Menor, 330); mãe de<br />
Constantino, o primeiro imperador<br />
cristão.<br />
19. São João Eudes, Confessor<br />
(†Caen, França, 1680). Grande<br />
propagandista da devoção aos Sagrados<br />
Corações de Jesus e Maria.<br />
20. São Bernardo de Claraval,<br />
Confessor e Doutor da Igreja<br />
(†1153).<br />
21. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Pio X, Papa e Confessor<br />
(†Roma, 1914).<br />
22. Nossa Senhora Rainha.<br />
23. Santa Rosa de Lima, Virgem<br />
(†Lima, <strong>161</strong>7). O Peru constituiu, no<br />
século XVII, um verdadeiro viveiro<br />
de santos. Santa Rosa de Lima, Padroeira<br />
oficial da América Latina e<br />
das Filipinas, embora sem ingressar<br />
num convento, viveu de acordo com<br />
a mais estrita perfeição religiosa, em<br />
oração e em penitências contínuas.<br />
24. São Bartolomeu Apóstolo, <br />
Mártir (†séc. I). Também chamado<br />
Natanael, recebeu de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo um elogio magnífico:<br />
“Eis um verdadeiro israelita no qual<br />
não há fraude” (Jo 1,47). Já na ocasião<br />
em que o Apóstolo São Filipe o<br />
apresentava ao Mestre, São Bartolomeu<br />
reconheceu a realeza e a divindade<br />
de Jesus Cristo: “Mestre, tu és o<br />
Filho de Deus, és o Rei de Israel” (Jo<br />
1,49). Segundo a Tradição, São Bartolomeu<br />
foi martirizado no Oriente,<br />
para onde levou o Evangelho.<br />
25. São Luís IX, Rei da França e<br />
Confessor (†Tunísia, 1270).<br />
São José de Calasanz, Presbítero<br />
(†Roma, 1648). Nasceu em Aragão<br />
(Espanha) no ano 1557 e recebeu<br />
uma excelente formação cultural. Foi<br />
ordenado sacerdote e, depois de ter<br />
exercido o ministério na sua pátria,<br />
partiu para Roma, onde se dedicou à<br />
educação das crianças pobres e fundou<br />
uma Congregação (Escolas Pias)<br />
cujos membros (Escolápios) deviam<br />
dedicar-se a esta nobre missão.<br />
26. Santa Micaela do Santíssimo<br />
Sacramento, Virgem (†Valência, Espanha,<br />
1865). Nascida em Madri, possuía<br />
o título de Viscondessa de Jorbalán<br />
e empregou toda a sua fortuna em<br />
S. Hollmann<br />
São Domingos de Gusmão<br />
- Zaragoza, Espanha.<br />
obras de misericórdia. Fundou a Congregação<br />
das Senhoras Adoradoras e<br />
Escravas do Santíssimo Sacramento,<br />
destinada a acolher pecadoras públicas<br />
arrependidas. Estendeu sua obra a<br />
várias cidades espanholas.<br />
27. Santa Mônica, Viúva (†Óstia,<br />
Itália, 387). Conseguiu converter<br />
o filho, que foi adepto da heresia<br />
maniqueia e teve vida devassa,<br />
mas transformou-se depois no grande<br />
Santo Agostinho.<br />
28. XXII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Agostinho, Bispo, Confessor<br />
e Doutor da Igreja (†Hipona,<br />
430).<br />
29. Martírio de São João Batista<br />
(séc. I).<br />
30. São Félix e Santo Adauto, <br />
Mártires (†séc. IV).<br />
31. São Raimundo Nonato, Confessor<br />
(†Cardona, 1240). Ofereceu-<br />
-se voluntariamente para ficar escravo<br />
entre os mouros, a fim de<br />
permitir a libertação de um católico<br />
que estava periclitando na Fé.<br />
Para impedi-lo de pregar junto aos<br />
outros cativos, os mouros lhe furaram<br />
os lábios com um ferro quente,<br />
e mantinham sua boca fechada<br />
com um cadeado. Passou oito meses<br />
prisioneiro, sofrendo atrozmente.<br />
Depois de libertado, foi nomeado<br />
cardeal, em reconhecimento pelos<br />
seus méritos. Faleceu com apenas<br />
36 anos. Recebeu o nome de<br />
Nonato (do latim “non natus”, isto<br />
é, não nascido) porque sua mãe<br />
morreu antes de dá-lo à luz e ele<br />
precisou ser extraído do corpo já<br />
inerte da mãe. É por isso invocado<br />
como padroeiro das parturientes e<br />
das parteiras.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Catedral de York:<br />
Obra-prima de bom gosto e arte<br />
Comentando a imponente e aconchegante catedral de York, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
procura ensinar a arte de saborear belezas subtis que, à primeira<br />
vista, podem causar certo choque; mas por isso mesmo, quando bem<br />
compreendidas, são motivo de ainda maior admiração.<br />
Gostaria de comentar uma<br />
catedral bastante conhecida,<br />
porém não célebre. Ao<br />
menos não me parece que o seja. Esta<br />
catedral é de York, na Inglaterra,<br />
cidade conhecida no mundo inteiro,<br />
sobretudo pelo fato de seus habitantes<br />
terem fundado a Nova York, nos<br />
Estados Unidos; mas também por<br />
ser uma cidade muito importante na<br />
vida cultural, política e econômica<br />
da Inglaterra.<br />
É preciso saber saborear<br />
A catedral apresenta algumas características<br />
que, à primeira vista,<br />
impressionam pouco, e cuja beleza é<br />
preciso saber saborear.<br />
Por exemplo, a torre sem ponta.<br />
O gosto pelo princípio de unidade<br />
e transcendência nos levaria a desejar<br />
que a torre central terminasse<br />
bem mais alta, devendo ser constituída<br />
por uma série de lances menores,<br />
terminando com uma ponta altiva<br />
e elegante.<br />
Se analisarmos a construção<br />
que está ao lado — provavelmente<br />
deve ser a sala capitular<br />
—, com uma ponta cônica,<br />
veremos como a ponta a<br />
Catedral de York, Reino Unido.<br />
32
Belíssima catedral,<br />
construída por almas<br />
católicas, a fim de abrigar<br />
as orações do fiéis feitas<br />
junto ao Santíssimo<br />
Sacramento, aos pés<br />
das imagens de Nossa<br />
Senhora e dos santos.<br />
Fotos: G. Kralj / L. Miguel<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
torna bonita. Mas, na torre central<br />
não há ponta.<br />
Considerando ainda as duas torres<br />
do fundo, as quais não têm ponta,<br />
vemos que nos ângulos delas<br />
estão flanqueados florões que<br />
causam à primeira vista a impressão<br />
de torreões.<br />
Onde está a beleza dessa torre<br />
assim? Não se diria tratar-se<br />
de uma torre inacabada, portanto,<br />
não tendo toda a beleza sonhada<br />
pelo arquiteto?<br />
A poesia do cone<br />
inexistente<br />
A resposta, a meu ver, é a seguinte:<br />
Assim como o Fujiama tem sua<br />
beleza própria por não ter cone, há<br />
qualquer coisa nessas torres que faz<br />
sonhar vagamente numa ponta que<br />
não existe. Assim como na ordem da<br />
natureza as sombras têm sua beleza,<br />
e, às vezes, são mais belas do que a<br />
realidade, assim também os cumes e<br />
as pontas que não existem, quando o<br />
que está embaixo é feito com talento,<br />
ficam insinuados. E, por essa insinuação,<br />
qualquer um pode formar<br />
uma ideia, ainda que vaga e subconsciente,<br />
daquilo que não existe.<br />
Então, nas duas torres do fundo,<br />
há algo que ajuda a imaginação<br />
a se elevar até o cone. Na torre do<br />
meio não: é rasa mesmo! Mas, de fato,<br />
prestando atenção, desprende-se<br />
dela uma certa poesia: é a poesia do<br />
cone inexistente!<br />
Aconchego do convívio<br />
íntimo entre as pedras<br />
Eu queria chamar a atenção para<br />
outro aspecto da questão.<br />
Observando a catedral, vê-se ser<br />
toda ela, por assim dizer, imbricada<br />
dentro de um casario, o que se<br />
nota, sobretudo, no tocante à peça<br />
mais avançada, octogonal, a qual está<br />
quase imersa no meio de um ema-<br />
Diversos aspectos da Catedral<br />
de York, Reino Unido.<br />
34
anhado de dependências da catedral<br />
e de casas que estão ao seu redor.<br />
Próximo desta está um arvoredo;<br />
este também está um pouco entrelaçado<br />
com as construções.<br />
Aí se nota o contrário do urbanismo<br />
moderno, no qual nada é entrelaçado.<br />
Segundo esta concepção, se<br />
deveria derrubar todo este casario,<br />
para com isso a catedral ficar à vista<br />
de todos os lados; naquela área se<br />
faria uma praça vazia com gramado,<br />
e esse casario, se existisse, deveria<br />
existir para longe.<br />
O resultado é que se perderia algo<br />
da sensação do aconchego do<br />
convívio íntimo entre pedras diferentes.<br />
Note-se também que tais casas<br />
são um tanto ligadas umas às outras,<br />
sem nada de muito ordenado.<br />
Porém, formam um todo agradável<br />
e interessante, diferente do perpétuo<br />
quadrilátero, ou então do sinuoso,<br />
artificialmente poético, das ruas<br />
das cidades modernas. Este con-<br />
junto formado em torno da catedral<br />
causa a impressão de um urbanismo<br />
vivo.<br />
Fruto de almas católicas<br />
Hoje a catedral não é católica,<br />
mas foi construída por almas católicas,<br />
para orações católicas se erguerem<br />
daí de dentro, junto ao Santíssimo<br />
Sacramento, e aos pés das imagens<br />
de Nossa Senhora e dos santos.<br />
A beleza da ogiva e da harmoniosa<br />
galeria lateral dá-nos uma ideia<br />
de dignidade, de majestade, de recolhimento.<br />
Tem-se impressão que<br />
a forma da ogiva ajuda as orações<br />
a se levantarem ao Céu, até o<br />
trono de Deus.<br />
Acho de uma harmonia,<br />
de uma distinção<br />
e de uma beleza<br />
admirável essa catedral,<br />
e de um<br />
equilibro extraordinário.<br />
Chama a<br />
atenção a beleza<br />
da pedra,<br />
de um colorido<br />
que dá a impressão<br />
de ser feita<br />
de uma espécie<br />
de mel claro, de um<br />
tom parecido com o da<br />
madeira.<br />
Na entrada do coro vê-se<br />
uma sucessão de nichos, e entre<br />
cada duas colunas um santo; essa<br />
parede separa a nave central do<br />
coro. Nas asas laterais é muito bonito<br />
ver aqueles maços de colunas<br />
que se entreveem, e em cima, a<br />
construção que não chega até o teto,<br />
mas termina com uma balaustrada<br />
de colunetas góticas. Todo<br />
esse conjunto é uma verdadeira<br />
obra-prima de bom gosto e arte.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 22/5/1985)<br />
35
A melhor de todas as mães<br />
V. Toniolo<br />
N<br />
ossa Senhora é a<br />
melhor das mães que<br />
houve e haverá até o<br />
fim do mundo.<br />
Imaginemos que do começo<br />
do mundo até o seu término,<br />
desde Eva até a última mãe que<br />
houver, todas essas mães fossem<br />
perfeitíssimas, portanto quisessem<br />
bem a seus filhos com uma clareza,<br />
uma bondade, uma paciência e, ao<br />
mesmo tempo, com uma energia,<br />
uma força extraordinária. Se fosse<br />
possível colher as qualidades de<br />
todas elas, somá-las e colocá-las<br />
numa só mãe, esta seria de uma<br />
tal perfeição que a inteligência<br />
humana não conseguiria<br />
imaginar.<br />
Pois bem, esta não seria nada<br />
em comparação do que é Nossa<br />
Senhora como Mãe. Porque<br />
Maria Santíssima é Mãe de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa<br />
do Divino Espírito Santo, Filha<br />
especialíssima do Padre Eterno.<br />
Evidentemente, Ela é tão excelsa<br />
que não pode ser comparada com<br />
nenhuma criatura, nem com todas<br />
as criaturas juntas.<br />
A Santíssima Virgem e seu Divino Filho<br />
- Coleção Privada (Madri, Espanha).<br />
(Extraído de conferência<br />
de 12/10/1990)