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Publicação Mensal Ano XIII - Nº <strong>148</strong> Julho de 2010<br />
Virgem<br />
Flor do Carmelo
A confiança<br />
produz grandes<br />
acontecimentos<br />
S<br />
ão Joaquim, esposo de Sant’Ana,<br />
provavelmente seria desprezado<br />
por não ter filhos, devido à<br />
esterilidade de sua esposa. Naquele<br />
tempo, isso constituía uma tristeza,<br />
pois o casal estéril estava privado de<br />
ser da ascendência do Messias.<br />
Por meio deste sofrimento aceito com<br />
confiança, Deus preparava a vinda<br />
do Salvador, do qual São Joaquim foi<br />
o avô. É assim que Deus prepara os<br />
grandes acontecimentos.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 15/8/1968)<br />
2<br />
São Joaquim e Nossa Senhora Menina -<br />
Catedral de Salamanca, Espanha.
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIII - Nº <strong>148</strong> Julho de 2010<br />
Ano XIII - Nº <strong>148</strong> Julho de 2010<br />
Virgem<br />
Flor do Carmelo<br />
Na capa, Virgem de<br />
Fátima revestida com<br />
o hábito do Carmo.<br />
Foto: S. Miyazaki<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 Virgem Flor do Carmelo<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Julho de 1943: Consagração do<br />
Brasil ao Imaculado Coração de Maria<br />
Dona Lucilia<br />
6 Afetuosa e cordial seriedade<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
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assinatura anual<br />
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Exemplar avulso . . . . . . . R$ 12,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
O Santo do mês<br />
10 20 de julho<br />
Santo Elias, Profeta<br />
De Maria Nunquam Satis<br />
16 O perdão dos pecados<br />
e a misericórdia de Nossa Senhora<br />
“Revolução e Contra-Revolução”<br />
20 Contra-Revolução e<br />
Dom de Sabedoria<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
24 Quem encontra um amigo fiel,<br />
descobre um tesouro!<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
28 Um par de asas para rumar a Deus<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Onde está o auge do esplendor:<br />
na forma ou na cor?<br />
Última página<br />
36 Conhecimento perfeito da grandeza de Deus<br />
3
Editorial<br />
Virgem Flor do Carmelo<br />
N<br />
a sua última aparição em Fátima, enquanto a multidão ali reunida presenciava o chamado<br />
milagre do sol, a Santíssima Virgem fez ver à Irmã Lúcia, numa visão gloriosa, Nossa Senhora<br />
do Carmo coroada Rainha do Céu e da Terra, tendo o Menino Jesus ao colo.<br />
Que relação haveria entre essa gloriosa manifestação de Nossa Senhora do Carmo e a mensagem<br />
de Fátima?<br />
De fato, a intervenção de Maria Santíssima na história da Ordem Carmelita bem pode ser comparada<br />
àquela esperada para nossos dias. É o que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta a seguir:<br />
“Segundo uma respeitável tradição, o Profeta Elias reuniu no Monte Carmelo um grupo de discípulos<br />
e com eles constituiu a Ordem do Carmo, em louvor da Virgem Mãe que deveria vir, formando assim um<br />
filão de devotos, antes mesmo de que Ela nascesse.<br />
“Passaram-se os séculos, sobre o Oriente católico sobrevieram as invasões sarracenas, e, com isso, os<br />
carmelitas emigraram para a Europa. Neste continente os frades do Carmo começaram a figurar como<br />
membros de uma Ordem quase desconhecida, mal-admirada e à beira do desaparecimento. A família religiosa<br />
de Elias parecia um tronco seco e velho, fadado a se desmanchar em pó.<br />
“Era o instante esperado por Nossa Senhora para fazer florescer, no alto da ressecada vara, uma flor:<br />
São Simão Stock, o nono Superior Geral da Ordem Carmelita. Esse inglês, de reconhecida virtude, rezava<br />
a Nossa Senhora com muito fervor, implorando que Ela não permitisse o desaparecimento da Ordem<br />
do Carmo.<br />
“Em meio a essa aflitiva situação, a Virgem Santíssima apareceu a seu bom servo, em 1251, e lhe entregou<br />
o escapulário, com a promessa de não sofrerem o fogo do inferno os que morressem com ele revestidos.<br />
“A partir dessa misericordiosa intervenção da Mãe de Deus, a Ordem carmelitana refloresceu e conheceu<br />
outros períodos de glórias, propagando por toda a Igreja Católica a devoção à Santíssima Virgem.”<br />
***<br />
“Esta é uma lição de confiança digna de consideração em vista do que ocorreu depois: a Cristandade<br />
passou por um processo de ruína no decorrer dos séculos, até que, em Fátima, Nossa Senhora censurou<br />
esta decadência, recriminou o mundo pela torrente de pecados em que estava imerso, e anunciou os castigos<br />
que viriam caso a humanidade não se arrependesse e se emendasse de suas faltas. Depois, fez a promessa<br />
do Reinado d’Ela: ‘Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!’<br />
“Ora, proclamando no ápice das aparições de Fátima a efetivação de sua realeza, revestida do traje de<br />
sua mais antiga devoção — a do Carmo —, não quereria a Santíssima Virgem realizar desse modo uma<br />
síntese entre o historicamente mais remoto e o mais recente — o culto ao Imaculado Coração de Maria<br />
—, e o futuro glorioso, que é a vitória e o reinado desse mesmo Coração?<br />
“Eis várias das razões pelas quais a festa de Nossa Senhora do Carmo é muito grata a todos os filhos e<br />
devotos da Santíssima Virgem.”<br />
(Extraído de conferência de 16/7/1976)<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Julho de 1943<br />
Consagração<br />
do Brasil ao Imaculado<br />
Coração de Maria<br />
Atendendo ao convite dos beneméritos Padres<br />
Cordimarianos, em 31 de julho de<br />
1943, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> prestou sua contribuição<br />
para a gloriosa campanha em prol da consagração<br />
do Brasil ao Coração Imaculado de Maria:<br />
Uma das características da devoção que devemos<br />
tributar a Nossa Senhora consiste, sem dúvida,<br />
em ser terna. Entretanto, a devoção não se<br />
faz somente de ternura, de efusões sentimentais<br />
e afetivas. É indispensável, outrossim, ter bons e<br />
sólidos conhecimentos sobre a posição de Maria<br />
Santíssima na economia da graça divina, para<br />
que a devoção mariana se torne sólida e perfeita.<br />
Ora, a consagração do Brasil ao Imaculado<br />
Coração de Maria constituiria excelente oportunidade<br />
para se divulgar, com método e perseverança,<br />
os admiráveis ensinamentos da Santa<br />
Igreja sobre tão fundamental matéria.<br />
Assim sendo, jamais será suficiente encarecer<br />
a importância desta providencial consagração,<br />
pois é possível que alguns católicos não percebam<br />
desde logo o que ela significa.<br />
Quando a Igreja promove a consagração de<br />
nações, dioceses, famílias ou pessoas ao Coração<br />
Sacratíssimo de Jesus, ou ao Imaculado Coração<br />
de Maria, tem ela em vista que as criaturas<br />
assim consagradas formulem a resolução de<br />
pertencer-Lhes de modo particular, obedecendo-Lhes<br />
mais fielmente, tomando-Os mais perfeitamente<br />
por modelo, e, reciprocamente, recebendo<br />
de modo todo especial sua particular e<br />
vigilante atenção.<br />
Mas, é preciso acentuar: os que propugnamos<br />
pela consagração do Brasil ao Coração Imaculado<br />
de Maria, se bem que apreciemos no seu alto e devido<br />
valor estes frutos de tão solene ato, temos em<br />
vista um resultado muito mais alto e profundo.<br />
Queremos que nossa Pátria seja consagrada ao<br />
Coração Imaculado de Maria, antes de tudo e acima<br />
de tudo, porque Maria Santíssima tem direito<br />
a esta homenagem. A realeza de Nossa Senhora,<br />
em função da realeza de seu Divino Filho, não<br />
pode ser posta em dúvida pelos católicos. Rainha<br />
de todo o universo, Maria Santíssima já foi coroada<br />
Rainha do Brasil pela mão do ínclito Arcebispo<br />
do Rio de Janeiro, com coroa enviada especialmente<br />
pelo Santo Padre. Consagrado o Brasil ao<br />
Imaculado Coração de Maria, consagramos o reino<br />
ao Coração da Rainha e, com isto, fazemos um<br />
ato excelente de confiança filial em sua misericórdia,<br />
e, ao mesmo tempo, atraímos graças maiores e<br />
mais abundantes para nossa Pátria.<br />
Não se trata aí de meras figuras de literatura.<br />
Trata-se de realidades sobrenaturais. O reinado de<br />
Maria Santíssima sobre o Brasil não é alegórico ou<br />
simbólico: é real. Nossa consagração também não<br />
deverá ser um ato feito só para estimular as multidões<br />
e dar expansão, por meio de gracioso símbolo,<br />
a nosso afeto. Será um ato de caráter sobrenatural<br />
que, se Deus quiser, se realizará em todas<br />
as suas consequências. Consagrado o Brasil a Nossa<br />
Senhora, pertenceremos mais a Ela, e com nossa<br />
doação repararemos de modo mais conveniente<br />
todos os ultrajes que a Ela ou a seu Divino Filho<br />
temos feito. E, ao mesmo tempo, Ela será mais<br />
nossa. Aceito nosso dom, sua assistência e sua proteção<br />
sobre nós serão ainda mais contínuas, mais<br />
vigilantes, mais misericordiosas.<br />
Como se vê, não pode haver causa mais digna<br />
de ser apoiada com entusiasmo pelos fiéis do<br />
Brasil inteiro.<br />
(Extraído da <strong>Revista</strong> “Ave Maria”,<br />
nº 31,julho de 1943)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Anônimo<br />
Afetuosa e cordial seriedade<br />
Para muitos, a seriedade pode soar como algo antipático e, portanto,<br />
deve ser evitada. Porém, isto se trata de um engano decorrente<br />
de uma falsa concepção, pois a verdadeira seriedade<br />
deve caracterizar a alma de todo católico. Desta seriedade amena e<br />
afetuosa estava profundamente imbuída a alma de Dona Lucilia.<br />
Em geral, quando se diz de<br />
uma pessoa ser muito séria,<br />
é um elogio. Entretanto, esse<br />
elogio comporta certa restrição:<br />
o indivíduo sério, não raras vezes é<br />
tido por carrancudo e sem benevolência.<br />
Ele não perdoa e não transige,<br />
lembrando-se facilmente das<br />
más atitudes por ele presenciadas.<br />
Torna-se então desagradável o trato<br />
com ele, pelo eventual aborrecimento<br />
que possa causar.<br />
Assim, o contato com esse indivíduo<br />
é, por um aspecto, edificante,<br />
devido à retidão de alma demonstrada,<br />
convidando também aos outros<br />
para tal. De outro, lado porém,<br />
ao desejar a prática do bem por par-<br />
6
te de todos, intimida aos que não desejam<br />
ser direitos.<br />
Por isso, onde há alguém que<br />
continuamente obriga e estimula<br />
a observância da integridade, não<br />
é raro notar que as pessoas dele<br />
se afastam. Mesmo na experiência<br />
quotidiana é possível observar esse<br />
fato.<br />
Temperante convicção<br />
Embora fosse uma pessoa eximiamente<br />
séria, Dona Lucilia sempre<br />
possuiu um modo cordial e afetuoso<br />
no trato para com os outros. E quando<br />
algum conhecido narrava a ela<br />
uma ação praticada de maneira incorreta,<br />
não era sem torrentes de carinho<br />
e afabilidade que ela fazia notar<br />
a inconveniência de tal ato e de<br />
suas consequências.<br />
Resultando de uma convicção<br />
temperante e profunda, todas as atitudes<br />
por ela tomadas, por conseguinte<br />
eram sérias também. Quando<br />
estava realmente persuadida de que<br />
um princípio era verdadeiro, nunca<br />
agia de modo a contrariar esse princípio.<br />
Isto era uma máxima que não se<br />
abalava em seu espírito.<br />
Em decorrência, ela pedia às pessoas<br />
uma correção exímia no que faziam.<br />
E quando alguém tomava uma<br />
atitude censurável, caso dependesse<br />
dela, ela corrigia; caso não, ela possuía<br />
um modo de passar aquilo sob<br />
silêncio, por onde, amenamente, a<br />
pessoa notava que não havia sido<br />
agradável.<br />
Entretanto, se algo ela não tinha<br />
era carranca, porém deixava entendido<br />
que o erro não seria tolerado.<br />
Respeito e admiração<br />
mava nada tão a sério quanto as coisas<br />
da Igreja.<br />
E se a Religião Católica indica<br />
que o Papa é o chefe visível da<br />
Igreja, representante sensível de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo e sucessor<br />
de São Pedro, ela aceitava<br />
sem reservas, compreendendo<br />
que era necessário ter, em relação<br />
a ele, todas as disposições de alma<br />
que se deve ter para com quem representa<br />
o próprio Cristo entre os<br />
homens.<br />
O Divino Espírito Santo dirige a<br />
Igreja, Deus dirige a Igreja, mas não<br />
é visto. O Papa, entretanto, é o chefe<br />
visível da Igreja de Deus; então,<br />
a ele, Dona Lucilia devotava todo o<br />
seu respeito e sua admiração.<br />
Com esse feitio de espírito, que<br />
graças a Deus recebi dela, eu não po-<br />
Dona Lucilia<br />
tomava<br />
profundamente<br />
a sério as coisas<br />
mais respeitáveis;<br />
por isso, nada<br />
atraía tanto<br />
sua atenção quanto<br />
a Igreja Católica.<br />
Decorrente desse modo de ser,<br />
Dona Lucilia tomava profundamente<br />
a sério as coisas mais respeitáveis.<br />
E, para ela, o que havia de mais sério<br />
era a Religião. Logo, ela não toderia<br />
deixar de haurir também aquilo<br />
que havia de veneração ao Príncipe<br />
dos Apóstolos, o Papa, sucessor<br />
de São Pedro. Ela o considerava e o<br />
venerava sumamente.<br />
Nunca se referia de modo a criticar<br />
qualquer atitude tomada pelo<br />
Romano Pontífice. Ao contrário,<br />
aprazia-lhe contar fatos em que<br />
as pessoas destes ou daqueles Papas<br />
tinham praticado notoriamente<br />
as virtudes, a fim de incentivar<br />
em seus próximos o amor ao Papado,<br />
seguindo incondicionalmente<br />
todas as regras ditadas pelo Santo<br />
Padre.<br />
Séria também para<br />
com o filhão...<br />
No dia de minha formatura na Faculdade<br />
de Direito, ocasião em que<br />
os estudantes usavam fraque e cartola<br />
para a cerimônia, lembro-me de<br />
um fato que me impressionou profundamente<br />
pela seriedade de Dona<br />
Lucilia. A formatura realizou-se<br />
no prédio da faculdade. As famílias<br />
dos que se formavam compareciam<br />
inteiras ao salão nobre, grande e de<br />
boa aparência, da própria faculdade,<br />
para a realização de tal cerimônia.<br />
Todos os docentes com becas, numa<br />
atitude muito solene. Eram chamados,<br />
um a um, os vários alunos, e entregava-se<br />
o diploma.<br />
Tive eu também que mandar fazer<br />
meu fraque. Entretanto, por não<br />
considerar nada agradável o fato de<br />
experimentar as novas roupas, para<br />
que o alfaiate com alfinetes e giz pudesse<br />
tomar as medidas correspondentes,<br />
adiei um tanto a encomenda<br />
do fraque.<br />
Resultou daí que o alfaiate prometeu<br />
aprontar o fraque para o dia<br />
estrito da formatura, e não para os<br />
dias anteriores, como se costuma fazer.<br />
Na manhã do dia da formatura, o<br />
fraque ainda não estava pronto. Mamãe<br />
não me indagou, e também eu<br />
evitei estar próximo dela, pois certamente<br />
ficaria muito apreensiva caso<br />
soubesse que o fraque não estava<br />
pronto. Particularmente, a formatura<br />
não era o que mais me preocupava,<br />
pois já possuía o título e podia<br />
advogar.<br />
Não vem o seu fraque?<br />
Entretanto, não era desta forma<br />
que ela considerava o fato. Sendo a<br />
formatura uma grande solenidade,<br />
elevada, ela entendia que todos deviam<br />
prestigiar e, portanto, também<br />
eu tinha obrigação de estar presente<br />
em tal evento. Dar à formatura uma<br />
7
Dona Lucilia<br />
importância secundária não era uma<br />
atitude séria.<br />
Resultado: ela com certa angústia<br />
perguntou-me:<br />
— Mas não vem o seu fraque, filhão?<br />
— Mamãe, o fraque já chega. A<br />
senhora pode entrar no automóvel<br />
com minha irmã e meu pai, e seguem<br />
para a Faculdade de Direito. Eu os<br />
alcanço lá.<br />
Notei que ela não ficou muito<br />
agradada, entretanto não podia fazer<br />
outra coisa. Achou melhor, então,<br />
dirigir-se para a faculdade a fim<br />
de arranjar um lugar para sentar-se,<br />
pois ela padecia um incômodo nos<br />
pés, devido a sua idade, que lhe impedia<br />
de permanecer em pé por muito<br />
tempo. Então, seguiu.<br />
Por longo tempo esperei, porém<br />
o fraque não chegava. O que acontecera<br />
durante esse tempo, nem sequer<br />
cheguei a imaginar.<br />
Aparente normalidade<br />
Afinal de contas o fraque chegou.<br />
Eu vesti depressa, tomei um automóvel<br />
e rumei para a Faculdade de<br />
Direito. Quando lá cheguei — a sala<br />
da formatura era um pouco longa<br />
—, achei pelo ambiente que a cerimônia<br />
estava terminando. Fui apressadamente<br />
até à entrada da sala para<br />
ver se ainda chegava a tempo. Quando<br />
entrei, o secretário da faculdade,<br />
que lia os nomes dos alunos, estava<br />
no penúltimo nome. O último nome<br />
seria o meu, pois eles haviam me<br />
chamado, mas como não respondesse,<br />
deixaram-me então para o fim.<br />
Afinal, apresentei-me e ele chamou:<br />
— <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira.<br />
— Presente!<br />
Dona Lucilia fitou-me, com olhar<br />
alegre, enquanto fui até a frente para<br />
receber o diploma. Dirigi-me então<br />
até ela para receber seus cumprimentos,<br />
como também da família toda,<br />
e saímos. Durante todo o tempo<br />
da volta e das comemorações, ela<br />
permaneceu inteiramente normal.<br />
Pelo amor de Deus,<br />
nunca repita isso<br />
Ao chegar em casa, Mamãe voltou-se<br />
a mim dizendo:<br />
— <strong>Plinio</strong>, precisaria dizer uma palavra<br />
a você em particular. Venha comigo<br />
ao meu quarto.<br />
O quarto dela, porém, era na parte<br />
mais interna da casa, depois de<br />
um corredor. Era um apartamento<br />
que ela possuía ali.<br />
Eu a segui, e ela nada me disse,<br />
mantendo um ar de normalidade. Tive<br />
o receio de que fosse algum drama<br />
de família, ou algo semelhante.<br />
Entrei, ela fechou a porta a chave, e<br />
permaneci intrigado por desconhecer<br />
a razão daquele ato.<br />
Então, Mamãe ajoelhou-se diante<br />
de mim, atitude que nunca tomara<br />
na vida. O contrário é normal, o<br />
filho por uma razão especial ajoelhar-se<br />
diante de sua mãe para receber<br />
a bênção dela, por exemplo.<br />
Mas uma mãe ajoelhar-se diante do<br />
filho, dir-se-ia que não tem propósito.<br />
Então, compreendi profundamente<br />
como ela tomava a sério as<br />
menores coisas da vida.<br />
Ajoelhada diante de mim, Dona<br />
Lucilia disse o seguinte:<br />
— Pelo amor de Deus, mas pelo<br />
amor de Deus, você tem de prometer<br />
que nunca virá a repetir um<br />
atraso como este. Seja pontual nas<br />
coisas, e faça tudo com compenetração.<br />
— Mas mamãe... A senhora me vê<br />
chegar sempre um tanto impontual e<br />
nunca fica apreensiva, até um ou outro<br />
brinca comigo diante da senhora,<br />
a senhora sorri e não se incomoda —<br />
os parentes brincavam muito comigo<br />
porque eu vivia atrasado — e nesse<br />
caso a senhora vai tomar a sério?<br />
Meu bem, levante-se — e quis ajudála<br />
a levantar.<br />
M. Shinoda<br />
Anônimo<br />
8
Compreendi<br />
como Mamãe<br />
em tudo discernia<br />
as consequências<br />
mais profundas,<br />
o mal que podiam<br />
produzir, e como se<br />
devia evitá-lo.<br />
Anônimo<br />
— É meu sangue Ribeiro dos Santos<br />
que faz isso.<br />
Ribeiro dos Santos era a família<br />
dela. Então, dava a entender que<br />
era herdado da família dela. Eu<br />
disse com respeito e até com carinho,<br />
mas disse. Entretanto, ela me<br />
respondeu:<br />
— Ou você me promete, ou nunca<br />
mais eu quererei obrigar você a fazê-lo...<br />
— Então, faremos uma coisa.<br />
Prometo à senhora que em todas as<br />
ocasiões graves e gravíssimas nunca<br />
me atrasarei. Porém depois a senhora<br />
me explica a razão pela qual não<br />
devo me atrasar.<br />
— Durante todo o tempo, sua<br />
irmã e eu ficamos na aflição de<br />
que um automóvel houvesse se<br />
chocado com você pelo caminho,<br />
deixando-o morto ou esticado numa<br />
esquina. Isso por você ter atrasado<br />
a encomenda de um fraque.<br />
Está errado, você não deveria agir<br />
dessa forma.<br />
Sempre as consequências<br />
mais profundas<br />
— Não me levanto enquanto você<br />
não me prometer.<br />
— Mas não posso prometer uma<br />
coisa dessas, pois é uma mudança<br />
completa nos meus hábitos. Faz parte<br />
de meu temperamento deixar que<br />
as coisas fluam, sem me preocupar.<br />
Depois disse para ela, pois era<br />
uma forma de fazer um amável gracejo:<br />
Eu a acariciei e prometi que nas<br />
ocasiões de grande gravidade jamais<br />
me atrasaria.<br />
As circunstâncias ou a Providência<br />
quiseram algo diferente. Eu sofri<br />
um desastre de automóvel — dirse-ia<br />
que talvez ela previa esse perigo<br />
—, porém tal fato não se deveu a<br />
atraso nenhum. Lembro-me de ter<br />
chegado à hora, para embarcar no<br />
automóvel, então ele seguiu seu curso;<br />
o desastre ocorreu por outras razões.<br />
Então, eu compreendi como Mamãe<br />
discernia nas coisas suas consequências<br />
mais profundas, o mal que<br />
podiam produzir, e como se devia<br />
evitá-lo.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 1/ 7/ 1995)<br />
9
O Santo do Mês<br />
–– * Julho * ––<br />
1. Bem-Aventurado João Nepomuceno<br />
Chrzan, Sacerdote da Arquidiocese<br />
de Gniezno, Polônia.<br />
Martirizado por ódio à Fé, no campo<br />
de concentração nazista de Dachau,<br />
em 1º de julho de 1942.<br />
2. São Swithun de Winchester.<br />
Bispo dessa cidade inglesa. (+ 862)<br />
3. São Tomé, Apóstolo. Célebre é<br />
a sua exclamação, ao tocar as chagas<br />
de Jesus Ressuscitado: “Meu Senhor<br />
e meu Deus!”<br />
4. XIV Domingo do Tempo Comum.<br />
5. Santo Antonio Maria Zaccaria,<br />
presbítero fundador dos Clérigos<br />
Regulares Barnabitas. (+ 1539)<br />
6. Santa Maria Goretti, Virgem e<br />
Mártir. Morreu aos 11 anos de idade,<br />
defendendo sua pureza. Pio XII<br />
canonizou-a em 1950. (+ 1902)<br />
7. Santo Edda, Bispo de Winchester,<br />
Inglaterra. (+ 706).<br />
8. Santo Adriano III, Papa entre<br />
884 e 885. Morreu em viagem à Alemanha,<br />
e foi sepultado no mosteiro<br />
de Nonantola, perto de Modena.<br />
9. Santa Paulina do Coração Agonizante,<br />
Fundadora. Desde 2002 é a<br />
primeira santa brasileira. (+ 1942)<br />
10. São Pedro Viccioli, Presbítero<br />
e abade. (+ 1007)<br />
11. XV Domingo do Tempo Comum.<br />
12. Beata Marta do Bom Anjo<br />
(Marie Cluse) e 31 companheiras,<br />
Mártires em Orange, durante a Revolução<br />
Francesa. (+ 1794)<br />
13. Santo Henrique, Imperador<br />
do Sacro Império, juntamente com<br />
sua esposa, Santa Cunegunda, expandiu<br />
a Igreja Católica, instituindo<br />
sedes episcopais e fundando mosteiros.<br />
(+ 1024)<br />
14. São Camilo de Lellis. Fundador<br />
dos Clérigos Regulares para o<br />
serviço dos enfermos (Camilianos).<br />
(1550-1614)<br />
15. São Boaventura, Religioso<br />
franciscano, Bispo, Cardeal e Doutor<br />
da Igreja. Chamado “Doutor Seráfico”.<br />
(+ 1274)<br />
16. Nossa Senhora do Carmo. No<br />
Monte Carmelo teve o Profeta Elias<br />
a visão da nuvenzinha que simbolizava<br />
a futura Mãe de Deus. Em 16 de<br />
julho de 1251, São Simão Stock, geral<br />
dos Carmelitas, recebeu o Escapulário<br />
das mãos d’Ela.<br />
17. Santas Justa e Rufina, Mártires<br />
em Sevilha. (+ 305)<br />
18. XVI Domingo do Tempo Comum.<br />
19. Santa Macrina, a Jovem. Primogênita<br />
de uma família querida<br />
por Deus. Foram seus irmãos São<br />
Basílio Magno, São Gregório de Nissa<br />
— Padres da Igreja —, e de São<br />
Pedro de Sebaste. Seu lar foi um pequeno<br />
mosteiro de contemplação.<br />
Morreu assistida por São Gregório.<br />
(séc. IV)<br />
20. Santo Elias, Profeta do Antigo<br />
Testamento. Padroeiro da Ordem do<br />
Carmo. (séc. IX a.C)<br />
21. Santo Arbogasto. Bispo de Estrasburgo.<br />
(+ 660)<br />
22. São Felipe Evans e São João<br />
Lloyd, Sacerdotes jesuítas e Mártires,<br />
em Cardiff, no País de Gales,<br />
sob a perseguição religiosa em 1679.<br />
23. Santa Brígida de Suécia, Fundadora<br />
da Ordem do Santíssimo Salvador.<br />
(séc. XIV)<br />
24. Santos João Boste, Mártir<br />
sob a perseguição de Elisabeth I,<br />
na Inglaterra dividida pelo cisma<br />
anglicano.<br />
25. XVII Domingo do Tempo Comum.<br />
26. São Joaquim e Santa Ana.<br />
Pais da Santíssima Virgem. (séc. I)<br />
27. São Pantaleão, Mártir. Médico<br />
da Nicomédia, morreu na perseguição<br />
do Imperador Maximiniano.<br />
Todos os anos, às vésperas da<br />
sua festa, o sangue dele se liquefaz,<br />
no Mosteiro da Encarnação, de Madrid.<br />
(+ séc. IV)<br />
28. São Vitor , Papa. (séc. II)<br />
29. Santa Marta. Irmã de Lázaro,<br />
acolheu Nosso Senhor mais de uma<br />
vez em sua casa, em Betânia. (séc. I)<br />
30. São Pedro Crisólogo, Bispo de<br />
Ravenna (Itália) e Doutor da Igreja.<br />
(380-450)<br />
31. Santo Inácio de Loyola, Sacerdote.<br />
Fundador dos jesuítas. (1491-<br />
1556)<br />
10
Wikimedia Commons<br />
20 de julho<br />
Santo Elias,<br />
Profeta<br />
S. Hollmann<br />
É bem verdade que<br />
os grandes feitos<br />
tornam notórios<br />
muitos homens.<br />
Entretanto,<br />
o que dizer de<br />
quem obteve fogo<br />
do céu, fez cessar a<br />
chuva, e invectivou,<br />
ademais, rei, coorte<br />
e sacerdotes?<br />
O Antigo<br />
Testamento viu<br />
passar diante de si<br />
um ardoroso<br />
profeta:<br />
Elias o “ígneo”.<br />
Santo Elias, Profeta.<br />
Avida do Profeta Elias pode<br />
ser dividida em etapas:<br />
o enfrentamento com o Rei<br />
Acab, o arrebatamento num carro<br />
de fogo.<br />
11
O homem do<br />
Deus de Israel<br />
O Santo do Mês<br />
Na primeira delas, vemos Elias<br />
colocado diante do povo de Israel,<br />
bem amado de Deus, mas governado<br />
pelo Rei Acab, que por sua vez era<br />
dominado por sua esposa Jezabel,<br />
uma mulher ímpia. Esta havia introduzido<br />
o culto do deus imoral, impúdico<br />
1 , Baal, entre o povo eleito.<br />
Diante disso, Elias pregava contra<br />
Baal e fazia todo o possível para<br />
que o rei e a rainha se convertessem,<br />
dando assim o bom exemplo,<br />
e os judeus voltassem ao culto<br />
do verdadeiro Deus. Mas na realidade<br />
as palavras dele não tiveram<br />
resultado. Os soberanos continuaram<br />
na idolatria.<br />
Compreende-se que dentro dessa<br />
situação de tal maneira péssima, a<br />
cólera de um homem altamente virtuoso<br />
como Elias atingisse limites<br />
extraordinários, pois não havia outro<br />
caminho. Começa ele, então, a dar o<br />
grande de sua vida.<br />
“Quem sabe vosso<br />
deus está dormindo?”<br />
Com efeito, naturalmente por<br />
ordem de Deus, ele trancou o céu<br />
e não choveu durante três anos. E<br />
aquele povo, que vivia da agricultura<br />
e da criação de gado, não conseguia<br />
mais se manter: as ervas definhavam,<br />
o gado não tinha o que comer; a fome,<br />
a desolação e a miséria se instalavam<br />
por todos os lados.<br />
S. Hollmann<br />
E<br />
lias, o tesbita, um habitante de<br />
Galaad, veio dizer a Acab: “Pela<br />
vida do Senhor, Deus de Israel, a<br />
quem sirvo, não haverá nestes anos<br />
orvalho nem chuva, senão quando<br />
eu o disser.”<br />
Passado muito tempo, Elias partiu<br />
e foi apresentar-se a Acab. A fome<br />
devastava violentamente a Samaria.<br />
Ao vê-lo, Acab lhe disse: “Eis-te<br />
aqui, o perturbador de Israel!” “Não<br />
sou eu o perturbador de Israel,” respondeu<br />
Elias, “mas tu, sim, e a casa<br />
de teu pai, porque abandonastes os<br />
preceitos do Senhor e tu seguiste aos<br />
Baals. Convoca, pois, à montanha do<br />
Carmelo, junto de mim, todo o Israel<br />
com os quatrocentos e cinquenta<br />
profetas de Baal e os quatrocentos<br />
profetas de Assera, que comem à<br />
mesa de Jezabel.”<br />
Elias, aproximando-se de todo o<br />
povo (reunido no Monte Carmelo),<br />
Elias e Acab<br />
1Rs 17,1;18,1-2;17-41;45.<br />
(transcrição condensada)<br />
disse: “Se o Senhor é Deus, segui-O,<br />
mas se é Baal, segui a Baal!” O povo<br />
nada respondeu. Elias continuou:<br />
“Dê-se-nos um par de novilhos: eles<br />
(sacerdotes de Baal) escolherão um,<br />
fá-lo-ão em pedaços e o colocarão sobre<br />
a lenha, mas sem meter fogo por<br />
baixo; eu tomarei o outro novilho e<br />
pô-lo-ei sobre a lenha, sem meter fogo<br />
por baixo. Depois disso, invocareis<br />
o nome de vosso deus, e eu invocarei<br />
o nome do Senhor. Aquele que responder<br />
pelo fogo, esse será reconhecido<br />
como o (verdadeiro) Deus.”<br />
Eles (sacerdotes de Baal) tomaram<br />
o novilho que lhes foi dado<br />
e fizeram-no em pedaços. Em seguida,<br />
puseram-se a invocar o nome<br />
de Baal desde a manhã até o<br />
meio-dia, gritando: “Baal, responde-nos!”<br />
Mas não houve voz, nem<br />
resposta. E dançavam ao redor do<br />
altar que tinham levantado. Sen-<br />
Profeta Elias<br />
12
Passados três anos, por ordem de<br />
Deus, Elias foi ao encontro do monarca,<br />
desafiando os sacerdotes de<br />
Baal a uma confrontação no alto do<br />
Monte Carmelo.<br />
Elias, com majestade, obteve a<br />
sua vitória sobre os baalitas: “Escolham<br />
um novilho para o sacrifício<br />
e façam o altar! Depois iniciem<br />
vocês por pedir ao seu deus<br />
que envie fogo e consuma a vítima<br />
em holocausto. Eu farei depois<br />
o mesmo. O deus que ouvir será o<br />
verdadeiro.”<br />
Eles começam a implorar, a chamar<br />
e a executar danças religiosas,<br />
provavelmente impúdicas, pois Baal<br />
era o deus da imoralidade e da<br />
imundície; nada acontecia. Elias<br />
debicava deles: “Quem sabe se seu<br />
deus está dormindo! Gritem mais<br />
alto!” E eles gritavam, dançavam<br />
com mais frenesi e começaram então<br />
a se cobrir de sangue, cortandose,<br />
para que Baal ouvisse.<br />
Passados três<br />
anos, por ordem<br />
de Deus, Elias foi<br />
ao encontro do<br />
monarca, desafiando<br />
os sacerdotes de Baal<br />
a uma confrontação<br />
no alto do Monte<br />
Carmelo.<br />
Mas, quando o sol chegou a pino,<br />
o prazo designado por Elias cessou.<br />
Ele então, abstraindo da presença<br />
daquela gente, construiu um altar,<br />
molhou-o com abundância, para impedir<br />
qualquer dúvida de que houvesse<br />
algum artifício ou fraude, e depois<br />
invocou a Deus a fim de que fizesse<br />
descer o fogo do céu.<br />
Imaginemos a grandeza da cena!<br />
O povo de Israel e diante dele um altarzinho<br />
singelo, mas enormemente<br />
respeitável, com um boi esquartejado<br />
em cima, tudo molhado e também<br />
cercado por um valo cheio de<br />
água; todos atentos.<br />
Consideremos a majestade da hora<br />
da invocação de Elias. Homem<br />
venerável, já com a barba branca,<br />
provavelmente com uma túnica alva<br />
diante de Acab.<br />
Anônimo<br />
do já meio-dia, Elias escarneciaos,<br />
dizendo: “Gritai com mais força,<br />
pois (seguramente!) ele é deus;<br />
mas estará entretido em alguma<br />
conversa, ou ocupado, ou em viagem,<br />
ou estará dormindo... e isso<br />
o acordará.” Eles gritavam, com<br />
efeito, em alta voz, e retalhavamse<br />
segundo o seu costume, com espadas<br />
e lanças, até se cobrirem de<br />
sangue.<br />
Passado o meio-dia, (como) não<br />
houve voz, nem resposta, nem sinal<br />
algum de atenção, Elias reparou<br />
o altar demolido do Senhor, tomou<br />
doze pedras, segundo o número das<br />
doze tribos saídas dos filhos de Jacó,<br />
e erigiu com elas um altar ao Senhor.<br />
Fez em volta do altar uma valeta,<br />
com a capacidade de duas medidas<br />
de semente. Dispôs a lenha e<br />
colocou sobre ela o boi feito em pedaços.<br />
E disse: “Enchei quatro talhas<br />
de água e derramai-a em cima do<br />
holocausto e da lenha.” Depois disse:<br />
“Fazei isso segunda vez.” Tendoo<br />
eles feito, disse: “Ainda uma terceira<br />
vez.” A água correu em volta do<br />
altar e a valeta ficou cheia.<br />
O profeta Elias adiantou-se e<br />
disse: “Senhor, Deus de Abraão,<br />
de Isaac e de Israel, saibam todos<br />
hoje que sois o Deus de Israel, que<br />
eu sou vosso servo e que por vossa<br />
ordem fiz todas estas coisas. Ouvime,<br />
Senhor, ouvi-me: que este povo<br />
reconheça que vós, Senhor, sois<br />
Deus, e que sois vós que converteis<br />
os seus corações!” Então, subitamente,<br />
o fogo do Senhor baixou<br />
do céu e consumiu o holocausto,<br />
a lenha, as pedras, a poeira<br />
e até mesmo a água da valeta.<br />
Vendo isso, o povo prostrou-se<br />
com o rosto por terra, e exclamou:<br />
“O Senhor é Deus! O Senhor é<br />
Deus!”<br />
Elias disse-lhes: “Tomai agora os<br />
profetas de Baal, não deixeis escapar<br />
um só deles!” Tendo-os o povo agarrado,<br />
Elias levou-os ao vale de Cison<br />
e ali os matou. Depois disto Elias<br />
disse a Acab: “Vai, come e bebe, porque<br />
já ouço o ruído de uma grande<br />
chuva.”<br />
Num instante, o céu se cobriu de<br />
nuvens negras, soprou o vento e a<br />
chuva caiu torrencialmente.<br />
13
O Santo do Mês<br />
que lhe ia até os pés, ele reza ao Senhor,<br />
pedindo que afinal viesse o fogo<br />
do céu para provar ser Ele o verdadeiro<br />
Deus.<br />
Elias, com uma prece simples,<br />
cheia de beleza, obteve a vinda do<br />
fogo. Podemos imaginar um fogo<br />
lindíssimo, com labaredas entre<br />
azul e vermelho, que desciam do<br />
céu e penetravam na carne daquele<br />
boi; um fogo de tal maneira devorador<br />
que consumiu as pedras do altar<br />
e fez evaporar toda a água colocada<br />
em torno dele. À medida que o fogo<br />
descia, Elias se tornava mais majestoso<br />
e grandioso, e, quando tudo estava<br />
queimado, o povo reconheceu:<br />
“Tu és verdadeiramente o homem<br />
Elias é arrebatado<br />
num carro de fogo<br />
T. Ring<br />
Elias sendo arrebatado<br />
no carro de fogo.<br />
Anônimo<br />
E<br />
2Rs 2,1-2;7-12.<br />
is o que se passou no dia em que<br />
o Senhor arrebatou Elias ao céu<br />
num turbilhão: Elias e Eliseu partiram<br />
de Gálgala, e Elias disse a Eliseu:<br />
“Fica aqui, porque o Senhor me mandou<br />
a Betel.” “Por Deus e por tua vida,<br />
respondeu Eliseu, não te deixarei.”<br />
Seguiram-nos cinquenta filhos de<br />
profetas os quais pararam ao longe,<br />
diante deles, enquanto Elias e Eliseu<br />
se detinham à beira do Jordão.<br />
Elias tomou o seu manto, dobrouo<br />
e feriu com ele as águas, que se<br />
separaram para as duas bandas, de<br />
modo que atravessaram ambos a pé<br />
enxuto.<br />
Tendo passado, Elias disse a Eliseu:<br />
“Pede-me algo antes que eu seja<br />
arrebatado de ti: que posso eu fazer<br />
por ti?” Eliseu respondeu: “Seja-me<br />
concedida uma porção dobrada<br />
do teu espírito.” “Pedes uma coisa<br />
difícil,” replicou Elias. “Entretanto,<br />
se me vires quando eu for arrebatado<br />
de ti, isso te será dado: mas<br />
se não me vires, não te será dado.”<br />
Continuando o seu caminho, entretidos<br />
a conversar, eis que de repente<br />
um carro de fogo com cavalos de<br />
fogo os separou um do outro, e Elias<br />
subiu ao céu num turbilhão. Vendo<br />
isso, Eliseu exclamou: “Meu pai,<br />
meu pai! Carro e cavalaria de Israel!”<br />
E não o viu mais.<br />
A segunda fase<br />
da vida de Elias<br />
é misteriosa:<br />
num carro de fogo,<br />
puxado por cavalos<br />
de fogo, ele é<br />
arrebatado em meio<br />
a um redemoinho.<br />
14
do Deus de Israel”, prosternou-se<br />
por terra e adorou a Deus.<br />
Exaltabit caput suum<br />
A segunda fase da vida de Elias é<br />
misteriosa. Num carro de fogo, puxado<br />
por cavalos de fogo, ele é arrebatado<br />
num redemoinho.<br />
Sua vida nos abre perspectivas<br />
certamente deslumbrantes. Porque<br />
para ser glorificado assim é preciso<br />
ter passado por humilhações sem<br />
conta. Só fundam as instituições<br />
muito seguras os homens que passaram<br />
por todas as inseguranças! Só<br />
fundam as nações muito intrépidas<br />
os homens que se expuseram a todos<br />
os riscos! Só abrem grandes sulcos<br />
de glória na História os homens<br />
que sofreram toda espécie de humilhações!<br />
De torrente in via bibet, propterea<br />
exaltabit caput suum — Beberá<br />
da torrente no caminho; por isso, erguerá<br />
a sua fronte 2 . Quer dizer, trata-se<br />
de parcelas de gelo que se derretem<br />
e descem ao longo dos morros;<br />
e um viajante pobre e desamparado<br />
de recursos se põe de quatro<br />
para beber no chão, como um animal.<br />
Esse está no último da humilhação.<br />
Ele bebeu da torrente. Por isso,<br />
sua cabeça, sua fronte, será exaltada!<br />
E sua glória se<br />
manifestou a eles<br />
Devemos nos lembrar também de<br />
outro fato grandioso: Elias no monte<br />
Tabor, no dia da Transfiguração.<br />
Que predileção extraordinária! Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo vai Se transfigurando<br />
e sua glória interna vai se manifestando<br />
aos Apóstolos que não cabem<br />
em si de deslumbramento. Ao lado<br />
d’Ele duas figuras aparecem. Nosso<br />
Senhor, não contente de manifestar<br />
a sua grande glória, quis mostrá‐la<br />
em dois servos eminentes, por Ele especialmente<br />
amados: Moisés e Elias.<br />
Imaginemos todas as glórias que<br />
houve na História: os generais que<br />
obtiveram as vitórias mais brilhantes;<br />
os demagogos aclamados pelas multidões<br />
mais estrepitosas; os monarcas<br />
que receberam as homenagens mais<br />
reverentes; os sábios que tenham sido<br />
objeto de veneração dos homens mais<br />
ilustres e mais admirativos; os Santos<br />
diante dos quais se tenham dobrado<br />
as maiores multidões. O que tudo isso<br />
representa em comparação com a<br />
glória de Elias ao lado de Nosso Senhor<br />
no Tabor?<br />
v<br />
(Extraído de conferências de<br />
20/7/1991, 24/11/1990 e 20/7/1983)<br />
1) Palavra grafada como o autor a pronunciava,<br />
procurando dar-lhe melhor<br />
sonoridade.<br />
2) Sl 109, 7.<br />
M. Shinoda<br />
15
De Maria Nunquam Satis<br />
O perdão dos<br />
pecados e a<br />
misericórdia<br />
de Nossa<br />
Senhora<br />
A gratuita misericórdia de<br />
Deus para conosco, dando-nos<br />
sua própria Mãe como<br />
intercessora, de um lado,<br />
e nossa completa ausência<br />
de méritos, de outro, fez de<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> um convicto devoto<br />
da Santíssima Virgem.<br />
Um membro de nosso Movimento<br />
escreveu-me, fazendo<br />
uma pergunta que pode ser<br />
assim resumida:<br />
Certas graças determinam para<br />
quem as recebe uma espécie de<br />
Grand Retour 1 , como a que Nossa<br />
Senhora de Coromoto concedeu a<br />
um índio.<br />
Para que Maria Santíssima dê a<br />
uma pessoa graça assim fulminante,<br />
T. Ring<br />
Maria Auxiliadora - Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus (São Paulo, Brasil)<br />
16
é preciso que ela tenha pelo menos<br />
alguma boa disposição em sua alma,<br />
um primeiro desejo de sair do mal?<br />
Ou pode-se admitir que a graça<br />
venha a tocar um indivíduo que está<br />
aprazivelmente comendo as bolotas<br />
dos porcos, sem nenhuma vontade<br />
de voltar para a casa paterna?<br />
Gratuidade da parte de<br />
Deus e nossa completa<br />
ausência de méritos<br />
Passo, então, a responder.<br />
Segundo a doutrina católica, não<br />
existe a possibilidade de fazermos<br />
nenhum ato de vida espiritual sobrenatural<br />
que não tenha como ponto<br />
de partida uma graça a nós concedida<br />
gratuitamente. Quer dizer, o<br />
primeiro passo é sempre dado por<br />
Deus.<br />
O ato é sobrenatural quando praticado<br />
tendo em vista a Fé, adesão<br />
da inteligência a algo que foi revelado.<br />
Nenhum ato sobrenatural pode<br />
ser feito pelo homem antes que<br />
Deus lhe dê a possibilidade de vir a<br />
praticá-lo. De maneira que no início<br />
das nossas relações com Deus está<br />
a completa gratuidade da parte de<br />
Deus, e a total ausência de méritos<br />
de nossa parte.<br />
Isto se dá de modo evidente, por<br />
exemplo, com a criança que é batizada,<br />
a qual não tem o uso da razão<br />
e recebe, entretanto, desde logo, o<br />
dom infuso da Fé.<br />
E também com o pecador. Imaginemos<br />
dois pecadores. Um tem o resto<br />
de algo concedido por Deus e que<br />
ele não recusou inteiramente; o outro<br />
não possui nada, porque rejeitou tudo.<br />
Cada um deles, para dar um passo<br />
adiante na vida espiritual, precisa ter<br />
um perdão de Deus, uma graça. É claro<br />
que este perdão é maior para aquele<br />
que recusou tudo. Mas, em relação<br />
a ambos é preciso um perdão, um ato<br />
de misericórdia gratuita de Nosso Senhor.<br />
Para Deus nada<br />
é impossível<br />
Poder-se-ia apresentar a seguinte<br />
dúvida: Suponhamos um católico<br />
que apostatou da Fé e passou a ser<br />
satanista.<br />
E um outro católico, que vive<br />
em estado habitual de pecado mortal,<br />
mas não apostatou, reza de vez<br />
em quando e assiste a Missa aos domingos.<br />
Embora esteja morto para<br />
a vida espiritual, porque se encontra<br />
em estado de pecado mortal, há<br />
nele uma série de disposições de alma<br />
que, em última análise, são restos<br />
do efeito da graça. Pergunta-se:<br />
a este pecador não adianta nada ter<br />
estes restos, para atrair a misericórdia<br />
de Deus?<br />
É claro que adianta muito. Porque<br />
Deus, infinitamente santo e justo,<br />
sabe premiar até os pequenos<br />
restos de adesão que alguém dá a<br />
Ele. O melhor prêmio que Ele pode<br />
dar é exatamente chamar esta alma<br />
para junto de Si. De maneira que<br />
estes restos de virtude são uma razão<br />
que mais especialmente inclina a<br />
Deus a salvá-la. Mas é errado dizer<br />
que as outras almas de nenhum modo<br />
são tocadas por Deus, ou não podem<br />
ser salvas. Todo homem é salvável<br />
por Deus. E, portanto, é possível<br />
que qualquer pessoa, de um momento<br />
para outro, se converta.<br />
Assim como esses restos de virtude,<br />
que podem existir numa pessoa<br />
em estado de pecado mortal,<br />
são razões para Deus se inclinar<br />
mais para ela, é verdade também<br />
que o negrume de pecado, no qual<br />
se encontra aquele que poderíamos<br />
chamar pecador total, afastao<br />
do Criador. E somente atos de<br />
misericórdia de Deus podem de-<br />
A misericórdia<br />
gratuita de Deus<br />
para com o pecador<br />
R. C. Branco<br />
Filho pródigo - Basílica de<br />
São Jorge (Ferrara, Itália).<br />
17
De Maria Nunquam Satis<br />
Pedro Fábio<br />
As derradeiras tentações - Igreja Senhor do Bonfim (Salvador, Bahia)<br />
terminar sua conversão. É certo<br />
que não haverá conversão, quando<br />
se trata de formas de pecado onde<br />
existe um empedernimento, uma<br />
dureza tremenda, uma malícia intrínseca<br />
pavorosa.<br />
Deus é onipotente, e por um ato<br />
livre de sua misericórdia, a um pecador<br />
que está em estado de pecado<br />
completo, omnímodo, Ele pode<br />
dar mais do que a outro, no qual há<br />
restos de virtude, e fazer do primeiro<br />
um grande santo.<br />
Mas estas são operações de<br />
Deus excepcionalíssimas, com as<br />
quais, portanto, não se pode contar.<br />
Haveria até liberalismo em admitir<br />
que fossem fatos normais,<br />
correntes. É o que o bom senso indica<br />
e o convívio com as pessoas<br />
nos exprime.<br />
Repito: pode acontecer, em rigor,<br />
que o Criador, a rogos de Nossa<br />
Senhora, ainda converta essa pessoa,<br />
por mais que sua atitude reflita<br />
obstinação, porque para Deus nada<br />
é impossível.<br />
As batalhas, as<br />
tentações na hora da<br />
morte são tremendas;<br />
representam a última<br />
luta do homem. Se<br />
não rezarmos para<br />
sermos fiéis neste<br />
momento...<br />
A Teologia é uma ciência feita<br />
de subtilezas. Existe a misericórdia<br />
especial e a excepcionalíssima,<br />
incomparável, como a que opera a<br />
conversão de um adorador do demônio.<br />
Se estivermos unidos<br />
a Ela, tudo se arranjará<br />
O caminho de nossa perseverança<br />
e de nossa salvação é o de sempre ter<br />
devoção a Nossa Senhora. Ela é a Arca<br />
da Aliança, a Porta do Céu, o Refúgio<br />
dos pecadores, a Consoladora<br />
dos aflitos, o Auxílio dos cristãos.<br />
Se estivermos unidos à Mãe de Deus,<br />
tudo acaba se arranjando. Ela acaba<br />
nos dando graças incríveis, e as coisas<br />
vão para frente.<br />
É terrível quando se inicia a decadência<br />
espiritual de uma pessoa. Alguém<br />
dirá: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, agora o senhor<br />
está me assustando, porque comecei<br />
a decair.” Digo-lhe: “Meu filho,<br />
pegue imediatamente na corda<br />
e recomece a subir.” O que faz um<br />
náufrago no meio das ondas, ao qual<br />
se lança uma corda, mas ele de repente<br />
percebe que está segurandoa<br />
com uma mão só? Vai começar a<br />
18
gritar e largar a corda? Não! Deve<br />
agarrá-la com as duas mãos!<br />
Rezar muito para<br />
ser fiel na hora da morte<br />
Devemos sempre pedir a graça<br />
da perseverança final, de sermos<br />
fiéis no último momento de nossa<br />
vida. Porque é uma graça autônoma<br />
das outras. Por causa disto,<br />
na Ave-Maria se pede sempre: “...<br />
rogai por nós, pecadores, agora e<br />
na hora da nossa morte. Amém”.<br />
As batalhas, as tentações na hora<br />
da morte são tremendas; representam<br />
a última luta do homem.<br />
Se não rezarmos para sermos fiéis<br />
neste momento...<br />
Uma pessoa expirou; seu corpo<br />
está estendido; ela não responde<br />
mais nada. Os médicos a abandonaram.<br />
Mas considera-se hoje possível<br />
que a alma esteja ligada ao corpo<br />
aproximadamente duas horas depois<br />
do que se convencionou chamar de<br />
morte. Esta alma está lúcida. O que<br />
lhe acontecerá neste combate, nesta<br />
situação na qual eventualmente ouça<br />
comentar em torno de si que ela<br />
está morta? E vem o demônio com<br />
uma tentação:<br />
— Lembra-se, tal pecado?<br />
— Ah, meu Deus, não o confessei!<br />
— Você está só com medo do inferno;<br />
sem graça sacramental você<br />
não se salva. Agora, desespere.<br />
É uma mentira do demônio, porque<br />
se a pessoa fez bem a confissão<br />
e se esqueceu de acusar algum pecado,<br />
a graça do sacramento o perdoa.<br />
Na hora de nossa morte, lembrar-nos-emos<br />
bem disto? É preciso,<br />
portanto, pedir muito a perseverança<br />
final.<br />
E também a perseverança durante<br />
os acontecimentos previstos por<br />
Nossa Senhora em Fátima, a perseverança<br />
na eventualidade de grandes<br />
sofrimentos, como estar jogado num<br />
lugar qualquer, deitando sangue, todo<br />
ferido e não recebendo auxílio de<br />
ninguém. Para tudo isto é preciso<br />
pedir. E se a pessoa não pedir, não<br />
obtém. Esta é a razão pela qual se<br />
deve rezar e vigiar muito. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 16/2/1971)<br />
1) “Grande retorno”. No início de década<br />
de 1940 houve na França extraordinário<br />
incremento do espírito religioso,<br />
quando das peregrinações de<br />
quatro imagens de Nossa Senhora de<br />
Boulogne. Tal movimento espiritual<br />
foi denominado de “grand retour”,<br />
para indicar o imenso retorno daquele<br />
país a seu antigo e autêntico fervor,<br />
então esmaecido. Ao tomar conhecimento<br />
desses fatos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou<br />
a empregar a expressão “grand<br />
retour” no sentido não de “grande retorno”,<br />
mas de uma torrente avassaladora<br />
de graças que, através da Virgem<br />
Santíssima, Deus concederá ao<br />
mundo para a implantação do Reino<br />
de Maria.<br />
S. Miyazaki<br />
19
Revolução e Contra-Revolução<br />
Contra-Revolução<br />
e<br />
dom de sabedoria<br />
A luta entre os que anseiam tornar os homens mais<br />
próximos a Deus, e os que visam afastá-los das vias do bem,<br />
foi caracterizada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em sua obra “Revolução e<br />
Contra-Revolução”. Na presente conferência, mostra-nos o<br />
autor como é necessário, para compreender profundamente<br />
esse processo, analisá-lo com sabedoria.<br />
Para obtermos uma ampla<br />
compreensão da obra “Revolução<br />
e Contra-Revolução”,<br />
é indispensável termos em mente o<br />
seguinte:<br />
Visão de conjunto<br />
Ao analisarmos, por exemplo,<br />
uma sala, se quisermos formar um<br />
completo juízo a seu respeito, não<br />
podemos apenas nos fixar aos pontos<br />
individuais que a compõem,<br />
como a dimensão, o estilo da iluminação<br />
ou cada móvel separadamente.<br />
Não basta formar opinião<br />
a respeito de cada elemento que a<br />
constitui. Mas, é necessário chegar<br />
a um juízo do conjunto da decoração<br />
e do ambiente, pois é este<br />
conjunto que se entende por sala.<br />
Isto se dá também com o universo,<br />
o qual bem poderia ser comparado<br />
a uma imensa sala feita por Deus,<br />
dentro da qual vive o gênero humano.<br />
Quem queira compreender o<br />
universo não pode formar uma<br />
opinião apenas a respeito da chaminé<br />
de uma fábrica, ou da marca<br />
de um automóvel, ou de uma estrela,<br />
mas deve ver o conjunto que<br />
constitui esta imensa sala chamada<br />
universo.<br />
Necessidade da noção de<br />
conjunto para o conhecimento<br />
das coisas<br />
A fim de compreendermos o papel<br />
da noção de conjunto para se<br />
chegar a um conhecimento do universo,<br />
tomemos o exemplo de Helen<br />
Keller1, uma norte-americana que,<br />
apesar de tornar-se cega e surda ain-<br />
20
L. Maria. B. V.<br />
da quando bebê, chegou a conferenciar<br />
para multidões!<br />
Através do tato ela adquiriu tal<br />
conhecimento do mundo externo,<br />
que, tendo aprendido a falar, passou<br />
a fazer conferências, viajando por<br />
todo o mundo.<br />
Imaginemos que sua professora,<br />
ao invés de lhe transmitir uma ideia<br />
completa do mundo, conseguisse somente<br />
dar-lhe uma noção a respeito<br />
da formiga ou da água. Certamente,<br />
de pessoa muito lúcida que era, bem<br />
poderia ter ficado louca... Pois o que<br />
fazer destas noções isoladas?<br />
Ora, quantas pessoas, sem ter visão<br />
de conjunto sobre a vida, passam<br />
por ela somente com uma porção de<br />
noções a respeito de objetos isolados?<br />
E por causa disso passam pela<br />
vida com crises, com problemas, com<br />
estertores, com abatimentos, com<br />
prostrações, e até com algumas manifestações<br />
de loucura. Por não terem<br />
a capacidade de concatenar as coisas<br />
de modo a tornarem-se compreensíveis,<br />
não são capazes de compreenderem-se<br />
a si próprias.<br />
Esta noção de conjunto, que nos<br />
faz relacionar todas as coisas por um<br />
princípio mais alto, chama-se dom<br />
de sabedoria, o qual é, naturalmente,<br />
a forma mais profunda de conhecimento,<br />
pois procura sair da esfera<br />
do físico, do terreno, e subir até<br />
Deus, e de lá analisar todas as coisas.<br />
A sabedoria concede a quem a possui<br />
uma capacidade de ver tudo em<br />
função de uma unidade.<br />
Pois bem, este desejo de sabedoria<br />
é o que eu considero como condição<br />
fundamental para que a pessoa possa<br />
chegar a uma inteira compenetração<br />
da Revolução e da Contra-Revolução.<br />
21
T. Ring<br />
22<br />
Revolução e Contra-Revolução<br />
O que é o oposto<br />
da sabedoria?<br />
Não obstante, a mediocridade<br />
exerce um papel contrário ao da sabedoria,<br />
pois leva o homem a procurar<br />
sua satisfação tão somente nas<br />
coisas desta terra, e a fruir da felicidade<br />
quase de forma animal,<br />
excluindo qualquer nobreza<br />
de alma, e procurando fazer<br />
do puro gozo a finalidade<br />
de sua vida.<br />
O homem medíocre<br />
não se preocupa em saber<br />
de onde veio, nem<br />
para onde vai, e, se pudesse,<br />
gostaria de viver<br />
como se estivesse numa<br />
nuvem cor-de-rosa,<br />
embebendo-se eternamente<br />
de um bem-estar<br />
puramente terreno.<br />
No fundo, esse gênero<br />
de gente tem tal amor<br />
a si que acaba por esquecer-se<br />
de Deus. E quando<br />
temos de falar para essas<br />
pessoas sobre os problemas,<br />
as lutas, os ideais da<br />
Revolução e da Contra-<br />
Revolução, encontramos<br />
uma dificuldade enorme.<br />
A atenção destas pessoas<br />
corre espontaneamente<br />
para tudo quanto lhes causa<br />
bem-estar; só com imensa<br />
dificuldade são capazes<br />
de elevar seu pensamento a<br />
coisas mais profundas.<br />
Há uma regra que não falha:<br />
dize-me para onde corre<br />
tua atenção, que te direi<br />
quem és. Portanto, se for para<br />
estas coisas triviais que<br />
tende tua atenção, não posso<br />
dizer que és um homem sábio.<br />
Sedes Sapientiae -<br />
São Paulo, Brasil<br />
Ora, o varão católico deve buscar<br />
a sabedoria, e por isso precisa desapegar-se<br />
dessa vidinha, e tender para<br />
preocupações de caráter superior,<br />
para tudo quanto o leva ao amor a<br />
Deus, o que em última análise, é filho<br />
da sabedoria.<br />
Assim, para compreendermos a<br />
temática Revolução e Contra-Revolução<br />
não basta apenas aplicar<br />
a inteligência, mas também a vontade.<br />
Não basta procurarmos conhecer<br />
a razão mais alta das coisas,<br />
mas devemos amá-la acima de tudo.<br />
Não vale a pena viver<br />
sem honra<br />
Neste sentido é muito bonita a<br />
atitude de Eleazar, no tempo dos<br />
Macabeus, ao levantar-se contra<br />
os sírios que queriam obrigar-lhe<br />
a abandonar os costumes de sua<br />
religião, preferindo morrer a viver<br />
numa terra devastada e sem honra.<br />
2<br />
Vê-se que este filho de Abraão<br />
preferia os bens superiores a qualquer<br />
bem desta terra, e considerava<br />
que ou se vive em função de Deus e<br />
de suas Leis ou não se vive.<br />
Este é o oposto do medíocre, o<br />
qual considera agradável uma vida<br />
sem honra, contanto que esta lhe<br />
proporcione tantas alegrias nesta<br />
terra. Caso falemos a ele nas lutas<br />
e combates para praticar a virtude,<br />
não encontraremos boa recepção,<br />
pois sua vontade não adere<br />
aos bens sapienciais, mas somente<br />
aos contingentes, pequenos e concretos.<br />
Doutrina, espírito e princípios nada<br />
lhe significam; interessa-se apenas<br />
pelos bens materiais que dizem<br />
respeito ao corpo; desta forma procura<br />
assistir, sem grande concurso da<br />
inteligência, ao desenrolar da vida.<br />
Evidentemente, em uma pessoa assim<br />
não pode haver compreensão da<br />
Revolução e da Contra-Revolução.
A mais importante<br />
das lutas<br />
Quem é tendente a agir de acordo<br />
com a sabedoria — conforme<br />
acima foi dito — encontra em “Revolução<br />
e Contra-Revolução” o<br />
meio vivo de adquiri-la. Pois esta<br />
obra nos explica o fundo dos acontecimentos<br />
hodiernos, apontando<br />
o fato central ante o qual os outros<br />
não têm importância: a luta entre os<br />
que visam afastar o homem das práticas<br />
da Lei de Deus, destruir toda<br />
forma de hierarquia, e os que lutam<br />
por Deus.<br />
Desta luta ninguém pode subtrair-se,<br />
pois tudo quanto se passa<br />
em torno de nós, é de acordo ou contrário<br />
à Lei divina, é sagrado ou profano,<br />
dá-se em função da Fé ou da<br />
incredulidade.<br />
Em síntese, a busca da sabedoria<br />
nos conduz à compenetração da temática<br />
Revolução e Contra-Revolução,<br />
e esta, por sua vez, aumenta<br />
em nós o desejo de crescer neste<br />
dom.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 31/3/1966)<br />
1) Helen Keller: nascida em 27 de junho<br />
de 1880 em Tuscumbia, Alabama.<br />
Perdeu subitamente a visão e a audição<br />
devido a uma doença diagnosticada<br />
como febre cerebral, ou escarlatina.<br />
Alguns meses antes de Helen completar<br />
sete anos de idade, Anne Sullivan<br />
foi contratada como sua professora.<br />
Até então a jovem não falava nem<br />
compreendia o significado das coisas.<br />
Anne iniciou seu trabalho utilizando<br />
uma boneca e tentando relacionar o<br />
objeto à soletração da palavra “boneca”<br />
pelo alfabeto manual. Helen logo<br />
aprendeu a repetir as letras corretamente,<br />
mas não sabia o que as letras<br />
significavam. Aprendeu através<br />
desse método a soletrar com o uso<br />
das mãos várias palavras. Certo dia,<br />
ao bombear água no quintal da casa,<br />
Sullivan colocou a mão de Helen na<br />
água fria, e sobre a outra mão soletrou<br />
vagarosamente a palavra “água”.<br />
De repente, os sinais atingiram a<br />
consciência de Helen, agora com um<br />
significado. Ela aprendeu que “água”<br />
significava algo frio e fresco que escorria<br />
entre suas mãos. Ao anoitecer<br />
já havia relacionado trinta palavras<br />
aos seus significados.<br />
2) Cfr. 2Mc 6,19.<br />
Revolução e<br />
Contra-Revolução<br />
“Uma obra magistral cujos ensinamentos<br />
deveriam ser difundidos até fazê-los penetrar<br />
na consciência de todos os que se sintam<br />
verdadeiramente católicos.”<br />
Pe. Anastasio Gutiérrez, CMF<br />
Pedidos à<br />
Editora Retornarei Ltda.<br />
(11) 2236-1027<br />
23
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Quem encontra um<br />
amigo fiel,<br />
descobre um tesouro!<br />
Num mundo absorvido por inovações e descobertas, não raras vezes os<br />
antigos conceitos tornam-se desprovidos de seu verdadeiro valor.<br />
Haverá em nosso tempo, por exemplo, a autêntica amizade de outrora?<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> explica detalhadamente o grande tesouro<br />
que a amizade pode representar para o homem de nossos dias,<br />
tão carente de verdadeira estima.<br />
Ovenerável Tomás de Kempis,<br />
autor da bela obra Imitação<br />
de Cristo, teceu preciosos comentários<br />
sobre a verdadeira amizade,<br />
para seus irmãos de hábito. O<br />
grande valor desta obra encontra-se<br />
em indicar um teor de relações humanas<br />
que foram completamente<br />
esquecidas pelo modernismo e pelo<br />
naturalismo.<br />
Dessa forma, a amizade é um tema<br />
capaz de ser compreendido apenas<br />
quando se experimentou alguma<br />
forma de dificuldade relativa ao trato<br />
com os outros. Só então se pode<br />
verdadeiramente obter uma profunda<br />
compreensão do tema.<br />
Amigos por interesse<br />
F. Lecaros<br />
24<br />
Monges cistercienses em<br />
fraternal convívio.<br />
De acordo com as ideias comumente<br />
em voga, o que vem a ser propriamente<br />
um amigo? Em geral, entende-se<br />
que é uma pessoa cuja companhia<br />
todos acham entretida, por<br />
divertir e ser agradável quando está<br />
próxima.
É<br />
Verdadeira amizade<br />
vosso amigo aquele que vos ama em<br />
Deus, que vos suporta por Deus. É<br />
verdadeiramente vosso amigo aquele que<br />
ama a salvação de vossa alma e não aquele<br />
que vos lisonjeia e vos aplaude. É<br />
vosso melhor amigo aquele que chora<br />
e reza por vossas misérias e se rejubila<br />
com vosso progresso e vos repreende<br />
na caridade. Não há amigo<br />
fiel senão entre os homens que<br />
não procuram seus interesses.<br />
Aquele que é negligente consigo<br />
mesmo, como poderá a seu<br />
tempo persuadir o outro? Se cuidais<br />
com amor da salvação de<br />
vosso irmão, não esqueçais de<br />
o fazer da vossa. Nada se deve<br />
colocar antes da salvação para<br />
que não se vos objetem esse<br />
antigo adágio: “Médico,<br />
cura-te a ti mesmo”. Pregai<br />
antes em vós o que ides dizer<br />
a outro, ensinai palavras vivas.<br />
Mostrai-vos como exemplo e<br />
não citeis um outro modelo,<br />
negligenciando-vos.<br />
Sede bom e fiel e encontrareis<br />
um amigo fiel. É o<br />
amor de Deus que cria o<br />
amigo fiel. Sem Deus nenhuma<br />
amizade será estável.<br />
(Espírito dos Santos Ilustres,<br />
L. Grimes, 1866.)<br />
Dois santos amigos: São Francisco de Assis<br />
e São Domingos de Gusmão.<br />
Resulta, então, certa benevolência,<br />
simpatia e também entendimento<br />
mútuo. Porém essa benevolência<br />
e esse entendimento cessam imediatamente,<br />
acabada a diversão, ou então<br />
o interesse comum que liga as<br />
pessoas. É o que se denomina um<br />
amigo de prazeres, um amigo de divertimentos.<br />
Existe também o que se conhece<br />
como amigo de negócios. Vem a ser<br />
um amigo de negócios o homem duro,<br />
sem sentimentos nem heroísmos,<br />
feito para o lucro, para as operações<br />
práticas e para a vida quotidiana do<br />
século XX. Grande conhecedor da<br />
Bolsa de Valores, que chega mascando<br />
nervosamente uma ponta de charuto<br />
e intui que tal ação irá se valorizar,<br />
realiza então uma compra imediata,<br />
e logo após um burburinho volta<br />
a vendê-la pelo dobro do preço.<br />
Tal “amigo” é um indivíduo que<br />
ganha dinheiro unido a um outro. É<br />
amigo enquanto não ganhar também<br />
o dinheiro de seu consorte, ou enquanto<br />
auxiliar a embolsar o dinheiro<br />
dos demais.<br />
A partir do momento em que não<br />
mais ajuda a ganhar dinheiro, ou então<br />
procura tomar o dinheiro de seus<br />
próprios amigos, torna-se um fardo,<br />
desfazendo-se então o laço de amizade.<br />
Todas essas formas de amizade caracterizam-se<br />
pela ausência de senti-<br />
25
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
mento e pela carência de qualquer<br />
forma de bondade ou suavidade.<br />
A amizade de outrora<br />
O que vem a ser um amigo nos<br />
dias de hoje? Acredito que tal palavra<br />
acabou por perder seu mais profundo<br />
valor.<br />
Assim era a típica amizade<br />
de outrora: apesar de os<br />
trens não serem comuns, e<br />
as estradas péssimas, certamente<br />
seria atendido aquele<br />
que, morando em São<br />
Paulo, enviava um recado a<br />
um amigo em Minas Gerais<br />
ou no Rio de Janeiro, dizendo:<br />
“Caro Fulano, estou<br />
muito doente e não desejo<br />
morrer sem antes vê-lo. Venha<br />
visitar-me, pois minha<br />
morte será mais serena depois<br />
que eu o tenha visto e<br />
abraçado mais uma vez.”<br />
Uma morte mais serena<br />
pelo fato de abraçar<br />
um amigo? É difícil para<br />
o pensamento moderno<br />
compreender tal atitude.<br />
O orgulho atingiu tais<br />
extremos no mundo contemporâneo,<br />
que as pessoas<br />
se sentiriam humilhadas<br />
ao expressar a alguém<br />
o desejo de abraçá-lo antes<br />
de morrer. Quando tomam<br />
conhecimento da proximidade<br />
de sua morte, não desejam<br />
ver ninguém. Efetivamente,<br />
a amizade autêntica<br />
já quase não existe.<br />
Quando se extingue<br />
a amizade...<br />
O que vem a ser um<br />
amigo nos dias de<br />
hoje? Acredito que<br />
tal palavra acabou<br />
por perder seu mais<br />
profundo valor...<br />
<strong>Plinio</strong>, numa praia em Santos<br />
Certa vez, um clérigo<br />
que tinha de ministrar o<br />
auxílio espiritual em um<br />
hospital, relatou como era<br />
de cortar o coração a atitude<br />
tomada por certos doentes<br />
de males incuráveis: sabiam<br />
que para seus casos não havia cura e<br />
por isso se recolhiam; não desejavam<br />
falar com ninguém, ouvir ninguém,<br />
atender ninguém, nem sequer um sacerdote.<br />
Os familiares visitavam-nos<br />
raramente, de modo que eles permaneciam<br />
sozinhos, envergonhados pelo<br />
fato de que iam morrer.<br />
São esses os sintomas<br />
próprios a uma época em<br />
que a amizade extinguiu-se<br />
por completo.<br />
Anônimo<br />
O choque entre o<br />
ambiente familiar<br />
e o social<br />
Não foi sem um sobressalto<br />
interior que pude<br />
constatar a diferença entre<br />
o ambiente vivido na<br />
minha primeira infância<br />
e a atmosfera inovadora<br />
na qual fui introduzido de<br />
modo repentino, quando<br />
aconteceu a mim o que sucede<br />
a todo menino: o ingresso<br />
no colégio para os<br />
estudos. Distante dos cuidados<br />
maternos, tive de<br />
iniciar a luta de minha própria<br />
vida.<br />
Em uma atmosfera de<br />
afeto, proteção e delicadeza,<br />
vi passar os primeiros<br />
anos da infância, habituando-me,<br />
portanto, a ser<br />
benquisto por meus próximos<br />
e consequentemente<br />
retribuir-lhes de igual maneira.<br />
Assim, ao entrar no<br />
colégio, dei-me conta de<br />
encontrar-me em meio a<br />
uma concepção de trato e<br />
de convívio completamente<br />
diversa da qual estava<br />
habituado.<br />
O século XX iniciava<br />
sua segunda fase, pois a<br />
humanidade acabara de<br />
sofrer um grande drama:<br />
26
a Primeira Guerra Mundial.<br />
Deparei-me, então, com um<br />
mundo fortemente marcado<br />
pelo novo modo de compreender<br />
a vida.<br />
No âmbito infantil, os meninos<br />
eram influenciados pelos<br />
contos de cowboy e pelas histórias<br />
de Tom Mix, herói que<br />
montava a cavalo, tinha um<br />
chapelão pontudo e dava tiros<br />
no ar. Sempre se saía bem sucedido,<br />
após uma agitação fatigante<br />
de se acompanhar, sobretudo<br />
para quem era afeito<br />
à calma e ao equilíbrio. Corria<br />
freneticamente, sem grande<br />
razão de ser. Diante de tal circunstância,<br />
sentia-me tendente<br />
a uma vida onde houvesse tempo<br />
para refletir, para rezar.<br />
Amizades sentimentais<br />
e românticas<br />
Com tais transformações,<br />
sobrevieram, em consequência,<br />
enormes mudanças —<br />
muitas vezes desvirtuadas<br />
— no modo de considerar as<br />
coisas.<br />
A amizade também foi um<br />
conceito que sofrera modificações,<br />
degenerando, muitas vezes,<br />
em sentimentalismo.<br />
A partir de determinado momento,<br />
tornou-se possível notar,<br />
com frequência, que havia<br />
na mentalidade das pessoas uma concepção<br />
de bondade distorcida da realidade.<br />
Entendia-se que o correto era<br />
uma total indulgência para com o<br />
erro e para com o pecado. Sempre<br />
uma palavra de contemporização<br />
era mencionada, pois reprimir<br />
um erro ou repreender uma ofensa<br />
a Deus seriam uma manifestação<br />
de inconformidade, podendo<br />
constranger e causar desgosto. Pois<br />
o homem bom nunca causa sofrimentos.<br />
Cristo Rei<br />
Procuravam<br />
identificar a adorável<br />
Pessoa de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
com a falsa bondade<br />
então propagada,<br />
dando a entender que<br />
essa era a verdadeira<br />
caridade cristã.<br />
Essa forma equivocada de<br />
sentimento produziu grande<br />
degenerescência, permitindo<br />
que se introduzissem na sociedade,<br />
hábitos desviados e<br />
ideias contrárias à ortodoxia<br />
dos costumes.<br />
Havia, contudo, quem mantivesse<br />
os bons costumes. Essas<br />
pessoas possuíam a obrigação<br />
de defender e preservar os<br />
seus do contágio com o erro,<br />
esclarecendo e apontando suas<br />
falácias e as racionalizações,<br />
que não eram raras.<br />
Entre tais racionalizações<br />
encontrava-se também a seguinte:<br />
identificar a adorável<br />
Pessoa de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo com a falsa bondade<br />
que era propagada, de modo<br />
a se compreender que a<br />
verdadeira bondade e caridade<br />
cristã era essa. Desejavase<br />
com isso mostrar que o Divino<br />
Mestre passara sua existência<br />
humana abrandando a<br />
coragem e o entusiasmo dos<br />
bons.<br />
Essa forma de considerar a<br />
bondade não era senão uma<br />
cômoda escusa para levar a vida<br />
sem brigas nem inimigos. Os<br />
que assim viviam seriam capazes<br />
de vender, em favor do comodismo,<br />
os princípios morais<br />
que tinham a obrigação de defender.<br />
Tal atitude abria de par<br />
em par as portas das almas para a maré<br />
montante do erro que ameaçava<br />
entrar.<br />
Apresentavam-se, então, dois extremos<br />
a serem seguidos: a dureza<br />
férrea do homem moderno ou o caráter<br />
mole e indolente dos que condescendiam<br />
com o mal. v<br />
Anônimo<br />
Continua no próximo número...<br />
(Extraído de conferências de<br />
30/8/1968 e 5/4/1986)<br />
27
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Um par de asas para<br />
rumar a Deus<br />
Uma autêntica formação filosófica faz-nos, ao<br />
contrário do que muitos julgam, voar para Deus. Sem<br />
dúvida, a consideração das limitações do raciocínio<br />
do homem e o anseio dos mais altos valores<br />
constituem o estímulo para a vida sobrenatural.<br />
Ao longo da vida, todo homem<br />
adquire uma experiência interna<br />
de si mesmo, das suas<br />
próprias limitações, fraquezas e carências.<br />
Entretanto, ao experimentar<br />
essa insuficiência, ele sente desabrochar<br />
em seu interior um intenso<br />
desejo de voltar-se para algo de absoluto<br />
e divino, que compreende ser<br />
exterior a si. Essa necessidade, que<br />
é também uma carência, determina<br />
uma apetência e um desejo de ordem<br />
instintiva, que jorra possante e plenamente<br />
em sua integridade e pureza<br />
original, rumo ao Divino, no mais<br />
profundo da alma humana.<br />
Esse fenômeno é denominado<br />
Instinto do Divino, algo que de si<br />
mesmo é inteiramente conforme à<br />
natureza.<br />
À procura de Deus<br />
Como fruto do Instinto do Divino,<br />
surge um conhecimento ainda<br />
anterior ao raciocínio, que é conhecido<br />
como Senso do Divino.<br />
s. Hollmann<br />
28
Movido pelo Instinto do Divino,<br />
o homem tem sua atenção voltada<br />
para alguns princípios de ordem<br />
filosófica, ainda quando subconscientes,<br />
que o fazem excogitar<br />
algo a respeito de Deus enquanto<br />
ser transcendente. Esses princípios<br />
induzem sua alma a aplicar as verdades<br />
já conhecidas também a este<br />
senso, permitindo-o entrever muito<br />
do divino nas coisas, facilitando<br />
assim a pesquisa feita pelo raciocínio<br />
rumo ao encontro do Divino.<br />
Este conhecimento anterior ao raciocínio<br />
explícito, capaz de guiá-lo<br />
e estimulá-lo, chama-se Senso do<br />
Divino.<br />
O Instinto e o Senso do Divino<br />
são, portanto, de ordem natural.<br />
Porém quando corroborados por<br />
uma ação de Deus ou pelos dons<br />
do Espírito Santo no sentido de<br />
guiá-los e aguçá-los, podem passar<br />
facilmente da ordem natural para<br />
a ordem sobrenatural. Isso afirmava<br />
São Tomás de Aquino, utilizando-se<br />
de Aristóteles, acerca da<br />
ação do Espírito Santo no Instinto<br />
do Divino.<br />
Anônimo<br />
Formação autêntica<br />
Compreende-se, então, como a autêntica<br />
formação católica deveria começar,<br />
desde suas mais básicas raízes,<br />
no estímulo ao Instinto do Divino como<br />
também ao Senso do Divino. Caso<br />
contrário este instinto atrofia-se,<br />
ainda nos anos da infância dos indivíduos,<br />
devido a mil circunstâncias desfavoráveis<br />
da educação moderna.<br />
Considerando valores<br />
mais altos...<br />
À luz destas noções, torna-se possível<br />
considerar o conceito de nobreza<br />
de espírito.<br />
Para uma pessoa que não possua<br />
uma luz primordial 1 especificamente<br />
metafísica, tanto o Instinto do Divino<br />
como o Senso do Divino se fazem<br />
sentir através da procura do que<br />
há de mais elevado e arquetípico em<br />
cada ordem de coisas criadas por<br />
Deus. De tal forma que o espírito<br />
busca, em tudo, o que é mais nobre.<br />
Essa é, então, a verdadeira nobreza<br />
de alma. E é na consideração ou procura<br />
de valores superiores, que vive<br />
o homem de alma nobre.<br />
Essa nobreza constitui uma condição<br />
para que o Instinto do Divino<br />
obtenha o que anseia, que vem a ser<br />
propriamente Deus.<br />
O Instinto do Divino predispõe<br />
a alma para receber a Revelação.<br />
Além de proporcionar uma docilidade<br />
em relação à Doutrina Católica,<br />
o que serve posteriormente<br />
como prodigioso argumento apologético.<br />
Pois o conhecimento da<br />
Doutrina Católica sacia de tal modo<br />
a alma humana e, em consequência,<br />
o Instinto do Divino, que se<br />
torna desnecessário um argumento<br />
apologético que prove as verdades<br />
da Fé.<br />
29
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Segundo São Tomás<br />
de Aquino, o Instinto<br />
e o Senso do Divino,<br />
quando corroborados<br />
por uma ação de<br />
Deus, podem passar<br />
facilmente da ordem<br />
natural para a<br />
sobrenatural.<br />
F. Boulay<br />
Obstáculos a vencer<br />
São Tomás de Aquino - Ohio, Estados Unidos.<br />
Entretanto, ao longo da vida, inúmeros<br />
são os obstáculos que nascem<br />
contra o Instinto do Divino. Esses<br />
empecilhos caracterizam-se, sobretudo,<br />
por um amarfanhamento ou<br />
um desuso desse instinto, que são diretamente<br />
provenientes do ateísmo<br />
e do egoísmo.<br />
Outro obstáculo ocorre pela repressão<br />
do senso metafísico e do<br />
Instinto do Divino, causando uma<br />
“opacidade” de alma no indivíduo.<br />
Sua concepção do Divino limitase,<br />
então, ao revelado, e sua posição<br />
de alma perante a Revelação<br />
torna-se mera recepção indiferente.<br />
Não repercute mais a Revelação<br />
nele se é de uma de outra forma.<br />
Existe ainda a deformação do indivíduo<br />
que racionaliza esse senso.<br />
Ao fazer o estudo de Filosofia ou de<br />
Teologia, realizam-no de tal forma<br />
cartesiana, que julga dever reduzir o<br />
Instinto do Divino a tábula rasa, fazendo<br />
desse instinto um simples jogo<br />
de razão afastado de Deus, e portanto,<br />
indiferente às maravilhas<br />
das quais poderá tomar conhecimento.<br />
Raciocínio humano<br />
Lembro-me de um professor<br />
e filósofo do qual tomei<br />
conhecimento, que afirmava<br />
algo que me causava profunda<br />
estranheza. Porém eu<br />
ainda não possuía elementos<br />
sólidos para refutá-lo. Dizia<br />
ele o seguinte: “A verdade<br />
que eu concebo como corolário<br />
de meu raciocínio, é a<br />
verdade contra tudo e contra<br />
todos. Será verdade até contra<br />
a Igreja. Contudo creio<br />
que a Igreja nunca errará.”<br />
Ou seja, sempre concordaria<br />
com ele... “Mas a verdade,<br />
absolutamente entendida,<br />
não abro mão dela.”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos anos 80.<br />
30
Com o passar do tempo tornouse-me<br />
clara a explicação para o problema:<br />
qualquer homem sente em si<br />
debilidades e fraquezas inumeráveis,<br />
por onde se torna inviável que ele<br />
mantenha uma confiança plena em<br />
seu próprio raciocínio. Por isso, conhecendo<br />
razões extrínsecas ao seu<br />
pensamento que o levem a duvidar<br />
dele, ele tem de fazê-lo. Pois o raciocínio<br />
humano não é, de modo algum,<br />
inerrante.<br />
O Instinto do Divino indica-nos<br />
que toda conclusão a que possamos<br />
chegar, que em algo o contrarie, deve<br />
ser eliminada e negada, devido a<br />
uma verdade superior diretamente<br />
conhecida, que é incapaz de se equivocar:<br />
Deus.<br />
Quem não toma esta atitude<br />
diante de suas convicções, faz do<br />
Instinto do Divino uma coisa absurda,<br />
transformando a Sabedoria em<br />
mera ciência.<br />
E os verdadeiros voos<br />
do espírito?<br />
Não será que a utilização dos<br />
brinquedos como entretenimento<br />
único e normal da criança, não contribui<br />
em algo para a eliminação do<br />
Instinto do Divino, sobretudo quando<br />
os brinquedos não possuem algo<br />
de elevado, ou tendente ao sobrenatural?<br />
Todavia, não menor é o erro da<br />
formação universitária, quando realizada<br />
com o pressuposto de prescindir<br />
dos instintos sobrenaturais,<br />
proporcionando uma exclusividade<br />
científica. De modo que o indivíduo<br />
é obrigado a calcar aos pés todas as<br />
formas de Instinto do Divino e nobreza<br />
de espírito, para colocar-se<br />
em um patamar puramente racional,<br />
transformando-se, como se diz<br />
em latim, em um ente diminutae rationis.<br />
Anônimo<br />
Os verdadeiros voos de espírito ficam<br />
excluídos da equivocada formação<br />
universitária para dar lugar apenas<br />
ao raciocínio que se pode pôr no<br />
quadro negro.<br />
Núcleo da vida<br />
sobrenatural<br />
Sendo um elemento reto e ordenado,<br />
o Instinto do Divino acompanhado<br />
pelo Senso do Divino são o<br />
núcleo em torno do qual se estrutura<br />
a vida espiritual e mental do homem.<br />
Tal é o auxílio que prestam à alma<br />
em busca de Deus, que agem diretamente<br />
sobre as virtudes, tanto teologais<br />
quanto cardeais, proporcionando<br />
temperança, equilíbrio e sensatez<br />
àqueles que deles desfrutam.<br />
Não há fortaleza maior do que a<br />
do homem que busca energicamente<br />
a plenitude do Senso do divino.<br />
Não há justiça maior do que a do<br />
homem que se põe em face do Senso<br />
do Divino e por isso julga com<br />
justiça todas as coisas. Não há temperança<br />
maior do que a do homem<br />
que possui a distância adequada<br />
a cada coisa, pelo fato de viver em<br />
função do Divino.<br />
Considerados no plano sobrenatural,<br />
o Instinto do Divino e o Senso<br />
do Divino são os principais elementos<br />
para uma adequada vida espiritual.<br />
De tal modo que seria mister desempenhar<br />
uma formação moral e<br />
consequentemente intelectual que<br />
proporcionasse um contínuo estímulo<br />
a esses sensos, em vez de os amarfanhar.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 3/7/1972)<br />
1) Luz primordial: assim <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
denominava a virtude ou o conjunto<br />
de virtudes que cada alma<br />
é especialmente chamada a admirar.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Onde está o auge do esplen<br />
As civilizações expressam suas peculiaridades e<br />
características próprias também através das artes. Assim<br />
sendo, a arquitetura constitui outrossim um modo de<br />
se compreender pensamentos, inclinações e até mesmo<br />
intenções, existentes por detrás de meras pedras.<br />
Quem admira os monumentos<br />
góticos se compraz em ver<br />
não só as suas linhas definidas<br />
e suas harmoniosas proporções, mas<br />
também as pedras com as quais foram<br />
eles edificados. Em geral granitos,<br />
de cor um tanto indefinida, constituem<br />
massas enormes e fortes, que<br />
parecem jorrar da terra. Assim são<br />
catedrais, castelos e torres da Idade<br />
Média, que muito impressionam<br />
quem se detenha a contemplá-los.<br />
Entretanto, tais monumentos não<br />
seriam mais belos caso fossem pintados?<br />
Pois, embora exista uma indiscutível<br />
beleza própria ao granito cinzento,<br />
poder-se-ia perguntar se numa<br />
catedral não seriam cabíveis outras<br />
formas de beleza, como a pintura.<br />
Os fanáticos pelo purismo gótico<br />
— que nem sempre abarcam todo o<br />
seu valor — afirmam não raras vezes:<br />
“Pintar? Nunca! Seria uma blasfêmia!<br />
Elas devem ser de granito natural;<br />
do contrário perderiam completamente<br />
sua beleza.”<br />
É bem verdade que o granito, com<br />
sua cor natural, é belo, e ademais seria<br />
uma lástima que desaparecesse.<br />
Dizer, entretanto, que esta é a única<br />
forma de beleza possível, contraria,<br />
antes de tudo, a realidade histórica<br />
dos fatos. Estudos acurados, em<br />
outros monumentos, têm demonstrado<br />
que as estátuas outrora eram<br />
pintadas. Em razão de chuvas, tem-<br />
V. Domingues<br />
32
dor: na forma ou na cor?<br />
pestades e neves, as tintas foram, aos<br />
poucos, desaparecendo; e devido ao<br />
esfriamento da apetência que o povo<br />
possuía pelo gótico, não foram renovadas.<br />
Isso não impediu, entretanto,<br />
que para várias dessas figuras fosse<br />
possível reconstituir parte da pintura.<br />
Ora, os homens que conceberam<br />
essas maravilhas, fizeram-nas<br />
com cores. Assim, não se pode admitir<br />
que os sonhos e os hinos de<br />
entusiasmo dessas almas foram<br />
concebidos na atmosfera de uma<br />
blasfêmia.<br />
Por que dissociar<br />
a forma da cor?<br />
Foram encontradas, no subsolo<br />
de um banco em Paris, há não muito<br />
tempo, cabeças das esculturas de<br />
reis do Antigo Testamento que ficavam<br />
no pórtico de Notre-Dame, formando<br />
uma galeria.<br />
Durante a Revolução Francesa<br />
foram elas decapitadas e as cabeças<br />
jogadas ao chão. Possivelmente<br />
uma pessoa piedosa recolheuas<br />
e enterrou-as o mais fundo que<br />
pôde.<br />
Deu-se, então, um fato maravilhoso.<br />
As cabeças foram retiradas<br />
e, ao serem analisadas, verificou-se<br />
que partes delas ainda estavam pintadas.<br />
Portanto, deve-se conceber a<br />
possibilidade e a coerência de monumentos<br />
em estilo gótico com pintura:<br />
catedrais, edifícios públicos como<br />
paços municipais, e castelos evidentemente,<br />
na medida em que não<br />
eram fortalezas, e sim residências.<br />
Mesmo sendo fortaleza, a casa de residência<br />
do senhor feudal e a capela<br />
no recinto do castelo podem ter sido<br />
pintados.<br />
A alma enlevada do medieval não<br />
poderia deixar de pensar o seguinte:<br />
se a forma é tão linda, não haverá<br />
um ornato de cor para ela? Por que<br />
dissociar a forma da cor?<br />
O cinzento da pedra é bonito<br />
por seu aspecto resoluto e batalhador,<br />
e também porque nos<br />
permite pensar em qualquer cor.<br />
Quando se vê uma catedral cinzenta,<br />
o subconsciente nos sugere,<br />
sucessiva e vagamente, várias cores<br />
para ela.<br />
Esse é um dos encantos do cinzento,<br />
como, aliás, das antigas fotografias<br />
em branco e preto. Sob certo<br />
ponto de vista, eram mais poéticas<br />
do que as coloridas, pois subconscientemente<br />
era possível imaginar<br />
as cores.<br />
S. Hollman<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
É lindo ver o reflexo de um vitral<br />
incidir sobre o granito cinzento<br />
do interior de uma igreja! A pedra<br />
fica momentaneamente, como<br />
que, cravejada de pedras preciosas.<br />
Não haveria, então, um modo<br />
de perpetuar este colorido magnífico?<br />
Orvieto: o gótico colorido<br />
Grande ilustração do gótico policromado,<br />
uma das mais famosas catedrais<br />
góticas existentes na Itália —<br />
onde se costuma dizer que não houve<br />
o estilo gótico —, cuja fachada é<br />
colorida com mosaicos de alto a baixo,<br />
é por certo dos edifícios góticos<br />
Tendo uma belíssima fachada colorida com<br />
mosaicos de alto a baixo, a Catedral de Orvieto é<br />
um dos edifícios góticos mais belos do mundo.<br />
mais belos do mundo: a Catedral de<br />
Orvieto.<br />
Estritamente gótica, traz ela em<br />
sua fachada uma feeria de cores.<br />
Mesmo a rosácea que está no interior<br />
de um quadrado, o qual não se<br />
diria exatamente gótico, tem qualquer<br />
coisa de clássico; ambos se<br />
encaixam perfeitamente no conjunto.<br />
Para a decoração foi escolhida<br />
a mais esplendorosa das cores: a<br />
do ouro. Em toda a fachada há um<br />
fundo dourado. O mosaico é de tal<br />
qualidade, tão rutilante e magnífico,<br />
que esta igreja, edificada no século<br />
XIV, causa a impressão de ter<br />
sido finalizada há poucos dias. Ela<br />
não apresenta a poesia do granito,<br />
que desafia todos os tempos, todas<br />
as intempéries e fica mais belo<br />
à medida que envelhece. Dir-seia<br />
que os invernos e as tragédias da<br />
História passaram sobre a Catedral<br />
de Orvieto sem a atingir<br />
em nada. Ela está magnífica,<br />
esplendorosa, sem alterações.<br />
O granito fala da<br />
eternidade, na medida<br />
em que resiste ao tempo.<br />
O mosaico de Orvieto<br />
evoca a eternidade,<br />
no sentido em que<br />
ignora o tempo.<br />
Causando viva<br />
impressão cromática,<br />
as diversas<br />
cenas se reportam<br />
à vida de<br />
Nossa Senhora.<br />
Fachada da<br />
Catedral de<br />
Orvieto, Itália<br />
34
Anônimo<br />
V. Domingues<br />
Acima: construções venezianas; abaixo, à esquerda:<br />
aspecto externo da Catedral de Florença.<br />
F. Lecaros<br />
Há várias figuras coloridas em ambos<br />
os lados da rosácea, no alto das<br />
portas laterais, dentro e fora das ogivas,<br />
no cume da porta central. No alto<br />
do frontispício, a coroação de Maria<br />
Santíssima. O colorido pode ser<br />
encontrado por toda parte.<br />
São cores ao mesmo tempo temperantes<br />
e muito vivas. Quem policromou<br />
a catedral não tinha o gosto<br />
pelas cores pálidas, ou discretas,<br />
que se confundem e se fundem umas<br />
com as outras, o que possui sua beleza.<br />
Mas o que há nela é a beleza das<br />
cores definidas, que têm individualidade<br />
e vida própria. Em cada grupo<br />
há uma sinfonia de cores.<br />
A beleza que representa essa<br />
distribuição colorida sobre a fachada,<br />
com as linhas do gótico,<br />
proporcionam a ideia do que seria<br />
uma síntese entre a forma e a<br />
cor. Antiga disputa entre os artistas:<br />
o que apresenta mais esplendor,<br />
a forma ou a cor? Num quadro,<br />
o que é mais notável, o desenho<br />
ou o colorido?<br />
Florença ou Veneza:<br />
cor ou forma?<br />
Existem duas grandes escolas<br />
italianas divergentes a esse respeito:<br />
a florentina, toda feita de desenho,<br />
intencionalmente pobre<br />
em cores, para que o desenho seja<br />
ressaltado; e a veneziana, magnífica<br />
em coloridos, tendo apenas<br />
o desenho necessário a fim de dar<br />
pretexto para as cores se mostrarem.<br />
Muito antes das duas escolas se<br />
diferenciarem e polemizarem, já havia<br />
uma magnífica síntese delas, na<br />
Catedral de Orvieto.<br />
Os detalhes são profusos nas colunas,<br />
na rosácea, nos florões, nos rebordos,<br />
e em todos os outros lugares,<br />
pois que seus executores trabalhavam<br />
sem pressa de acabar, sem o<br />
desejo de serem aplaudidos pelo povo.<br />
Morriam em paz diante da igreja<br />
inacabada, com a certeza de que as<br />
gerações futuras haveriam de completá-la.<br />
Esta catedral representa de um<br />
modo proeminente a beleza do gótico,<br />
tornando-se inatacável por todo<br />
o seu esplendor. Podem-se preferir<br />
outras — depende do gosto individual<br />
—, mas não é possível fazer alguma<br />
reserva ou ter algum desacordo<br />
em relação a ela.<br />
v<br />
Continua no próximo número...<br />
(Extraído de conferência<br />
de 23/1/1981)<br />
35
Nossa Senhora da<br />
Bondade. Igreja<br />
do Santíssimo<br />
Sacramento -<br />
Cracóvia, Polônia.<br />
G. Kralj<br />
Conhecimento perfeito da grandeza de Deus<br />
Q<br />
ual era a atitude de Nossa Senhora perante seu Divino Filho?<br />
Antes de tudo, era de uma grande estima e de uma grande consideração das grandezas<br />
d’Ele.<br />
Apesar de Nossa Senhora ser Mãe de Jesus Cristo e, portanto, ter a natural autoridade que<br />
toda mãe tem sobre seu filho, nenhuma criatura conheceu tão bem quanto Ela a grandeza<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo; nenhum intelecto criado pôde sondar tão profundamente essa<br />
grandeza e, por isso, nenhum soube admirá-Lo tão completamente.<br />
(Extraído de conferência de 21/8/1969)