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Publicação Mensal Ano XI - Nº <strong>123</strong> Junho de 2008<br />
Admiração<br />
e contemplação
Modelo de alma<br />
admirativa,<br />
São<br />
João Batista anunciou<br />
a vinda do<br />
Messias e, por isso,<br />
foi seguido pelas<br />
multidões. Contudo,<br />
ao avistar<br />
Nosso Senhor, ele<br />
proclamou: “Eis<br />
aquele que é superior<br />
a mim, eis<br />
o Cordeiro de Deus<br />
que tira os pecados<br />
do mundo, e do qual<br />
não sou digno de desatar suas sandálias”.<br />
E logo depois, essa afirmação de extrema<br />
beleza: “Convém que Ele cresça; a<br />
mim me compete minguar”. Como<br />
se dissesse: “Terminou minha missão,<br />
que era de preparar os caminhos<br />
do Filho de Deus. Eu não sou<br />
nada; Ele é tudo. Importa que eu<br />
diminua, e Ele exista”. Esplêndida<br />
expressão de quem admira e se<br />
enleva com o que lhe é superior!<br />
(Extraído de conferência<br />
em 10/6/1967)<br />
São João Batista – Catedral<br />
de Notre-Dame de Paris<br />
S. Hollmann<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XI - Nº <strong>123</strong> Junho de 2008<br />
Ano XI - Nº <strong>123</strong> Junho de 2008<br />
Admiração<br />
e contemplação<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aos<br />
80 anos; no fundo,<br />
mar do litoral paulista<br />
Fotos: S. Miyazaki / H. Naville<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 Admiração e espírito épico<br />
Da ta s n a v i d a d e u m c r u z a d o<br />
5 Junho de 1921:<br />
Congregado Mariano no São Luís<br />
Do n a Lucilia<br />
6 Mútuo amor “em Jesus e Maria”<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Ec o fidelíssimo d a Ig r e j a<br />
10 A “Carta circular aos Amigos da Cruz” - VIII<br />
Assemelhar-se ao Varão de Dores<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 6606-2409<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 85,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . R$ 120,00<br />
Propulsor ............. R$ 240,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 400,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 11,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
16 Calendário dos Santos<br />
O p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o d e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
18 Intimidade suprema, distância infinita<br />
“R-CR” e m p e r g u n ta s e r e s p o s ta s<br />
24 Natureza decaída, graça<br />
e livre arbítrio<br />
O Sa n t o d o m ê s<br />
26 São João Fisher – Vigilância e serenidade<br />
diante da morte<br />
Lu z e s d a Civilização Cr i s t ã<br />
30 Supremacia da alma<br />
Últ i m a p á g i n a<br />
36 Palavra confortadora<br />
3
Editorial<br />
Admiração<br />
e espírito épico<br />
Por diversas vezes nos foi dado conhecer, através das explicitações de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> publicadas<br />
nessas páginas, como ele se comprazia em considerar a infinita beleza de Deus a partir da<br />
contemplação dos reflexos do Criador nas suas criaturas. Ao observar a majestosa força de<br />
um leão, a delicadeza de uma rosa, os variados movimentos do mar ou, sobretudo, a virtude reluzindo<br />
na alma de seus semelhantes, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> colhia dessas análises, os elementos necessários para elevar<br />
seu espírito à admiração de realidades superiores às terrenas.<br />
Saber e gostar de admirar: eis uma constante nas recomendações de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aos seus discípulos,<br />
no intuito de fazê-los ascender, de patamar em patamar, até a consideração do Absoluto, Deus nosso<br />
Senhor. Nesse exercício de admiração e contemplação, via ele uma forma de heroísmo:<br />
“A epopéia é o maravilhoso, não estático, mas posto em linha de combate e sujeito a um risco iminente.<br />
O maravilhoso do heróico: tal é a epopéia. Daí se infere, também, que o espírito épico é aquele<br />
voltado para a contemplação das maravilhas criadas por Deus, entusiasmado por elas e disposto a<br />
praticar qualquer ato de heroísmo para defendê-las.<br />
“Nesse sentido, vem a propósito recordar um pensamento de Talleyrand — homem dotado de fina<br />
inteligência e que, apesar de suas obras e atitudes não louváveis, conservava em si laivos de tradição<br />
católica — segundo o qual aqueles que não gostam de admirar ou, quando o fazem, são mesquinhos,<br />
nisso demonstram sua mediocridade.<br />
“Exemplifico. Imaginemos dois jovens que acabam de se conhecer, e um percebe no outro certa<br />
qualidade que merece ser admirada. Ambos podem ter duas atitudes de alma. A primeira é admirar:<br />
Que belo predicado ele possui! E como me alegra sabê-lo aquinhoado com essa virtude! Já a segunda<br />
atitude seria minimizar a superioridade alheia: Hum... Nem tanto! Vou prestar atenção e ver o que<br />
ele realmente vale. Pouco depois: É, em tal ponto assim ele não se mostra tão bom. Não vale grande coisa,<br />
é tudo questionável...<br />
“Ao contrário do que se poderia pensar, essa última atitude não é a de um espírito vigilante, que<br />
procura estar atento a algo menos bom para corrigi-lo ou aperfeiçoá-lo. Trata-se, na verdade, de mesquinhez<br />
de alma, que só deseja ver nos outros o lado ruim, a fim de não se dar o esforço de admirar<br />
neles os seus aspectos bons. Por isso diz Talleyrand que esse tipo de mentalidade é característico do<br />
medíocre.<br />
“A alma senhora de genuína grandeza, elevada, deleita-se em admirar, e em admirar com entusiasmo.<br />
Essa é a atitude própria de um espírito épico. Este possui, ao mesmo tempo, uma intensa admiração<br />
por algo de verdadeiramente admirável, e a disposição de correr todos os riscos, de fazer todos<br />
os sacrifícios, com abnegação, em prol daquilo que admira: uma causa, uma doutrina, um princípio.<br />
No caso concreto de nosso movimento, a causa da Civilização Cristã. Esse é o espírito épico.”<br />
(Extraído de conferência em 8/7/1972)<br />
Dec l a r a ç ã o: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Data s n a v i d a d e u m c r u z a d o<br />
Junho de 1921<br />
Congregado Mariano<br />
no São Luís<br />
N<br />
o dia 21 de junho de 1921, o jovem<br />
<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira, então com<br />
12 anos, foi recebido na Congregação<br />
Mariana do Colégio São Luís, sob a égide dos<br />
padres jesuítas. O certificado de admissão, com<br />
dizeres impressos, assim rezava:<br />
“Pelas presentes atestamos que o nosso querido<br />
irmão em Cristo, Sr. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira,<br />
no dia 21 de junho de 1921 foi recebido<br />
como membro da Congregação de alunos que,<br />
sob o título de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
e de São Luís, se acha estabelecida no Colégio<br />
São Luís, em São Paulo, no Brasil, e que,<br />
portanto, foi admitido a participar de todas as<br />
indulgências, graças, favores e privilégios espirituais<br />
de que gozam em vida os congregados formados,<br />
e dos sufrágios que essa nossa congregação<br />
costuma fazer por seus membros falecidos.”<br />
Fotos: Arquivo revista / T. Ring<br />
Quadro da Mãe<br />
do Bom Conselho,<br />
venerado na capela<br />
do Colégio São Luís,<br />
diante do qual o<br />
jovem <strong>Plinio</strong> (o primeiro<br />
de pé, à esquerda)<br />
costumava rezar<br />
Era o início de uma intensa militância católica,<br />
que se estenderia por mais de sete décadas.<br />
Já homem feito, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> assim recordaria<br />
aquele momento, para ele decisivo, em que<br />
abraçou para o resto de sua vida o caminho do<br />
bem e da virtude:<br />
Nossa Senhora sempre me ajudou com a abundância<br />
de sua misericórdia. Porém, o fez de modo<br />
particular a certa altura de minha adolescência<br />
quando, passando eu por uma série de provações<br />
e aflições espirituais, Ela me alcançou uma<br />
graça especial. Lembro-me de que, naquele difícil<br />
período, costumava freqüentar a Igreja do Coração<br />
de Jesus e me ajoelhava aos pés da imagem de<br />
Maria Auxiliadora que lá se encontra, bem como<br />
diante do quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
que existia e ainda existe na capela do Colégio<br />
São Luís, onde eu estudava, pedindo à Santíssima<br />
Virgem que me ajudasse. E Ela não demorou<br />
em me atender.<br />
Pouco depois, com meus 12 anos de idade,<br />
consegui que me admitissem na Congregação<br />
Mariana de meninos daquele colégio. Junto<br />
com essa graça, Nossa Senhora me obteve outra,<br />
não menos importante, de tomar essa resolução:<br />
“Aconteça comigo o que acontecer, eu serei a favor<br />
do bem contra o mal. O mal e eu somos inimigos<br />
irreconciliáveis. Serei, portanto, a favor da<br />
Igreja Católica Apostólica Romana, da pureza,<br />
da compostura, da hierarquia, ainda que eu tenha<br />
de ser o último dos homens, pisado, esmagado,<br />
triturado. Esses valores se confundem comigo,<br />
com minha vida. Aconteça o que acontecer, a<br />
eles devotarei minha existência; esse é o caminho<br />
que vou seguir”.<br />
Quer dizer, pela misericórdia de Nossa Senhora,<br />
aos 12 anos, em termos mais adequados à<br />
mentalidade de uma criança, essa decisão estava<br />
inteiramente fixada na minha alma. v<br />
(Extraído de conferência em 1973)<br />
5
Do n a Lucilia<br />
Mútuo amor “em<br />
Jesus e Maria”<br />
Alma afeita à admiração, Dona Lucilia tinha como ponto ápice<br />
de suas cogitações o Sagrado Coração de Jesus, para o Qual<br />
elevava continuamente seus pensamentos e preces, ao longo<br />
do “silêncio recolhido” em que vivia, sobretudo nas últimas<br />
fases de sua existência terrena. Dessa adoração ao Divino<br />
Redentor defluia o amor materno que tanto a unia a seu filho.<br />
Eis algumas recordações de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Averdadeira admiração nasce<br />
de uma aspiração e de um<br />
anelo retos. Quando essas<br />
disposições existem numa alma, ela<br />
sente o desejo de conhecer aquilo<br />
que é bom, no sentido moral do termo.<br />
Não se trata, portanto, de querer<br />
coisas deleitosas, mas de se agradar<br />
com aquelas que são moralmente<br />
boas. E ao conhecê-las, presta-se<br />
atenção nelas; à medida que a atenção<br />
se intensifica, a pessoa vai ficando<br />
admirada.<br />
O que significa admirar? Mirar é<br />
olhar; ad, para. Admiração é um estado<br />
de alma que temos em relação<br />
a algo ou alguém que julgamos digno<br />
de nossa consideração e para o qual<br />
nos comprazemos em olhar.<br />
Alma admirativa<br />
Ora, no convívio com mamãe,<br />
era-me dado notar um aspecto de<br />
sua personalidade, por onde ela<br />
deitava sobre as coisas que se passavam<br />
ao seu redor um olhar ao mesmo<br />
tempo quase indefinível e sereno.<br />
Havia horas em que ela permanecia<br />
quieta, meditando, percebiase<br />
que seu espírito pairava em cogitações<br />
mais elevadas. Via-se que,<br />
nesses momentos, ela não pensava<br />
em assuntos terrenos, a não ser na<br />
medida em que estes conduziam a<br />
reflexões mais altas.<br />
Nesse sentido — portanto, na melhor<br />
acepção do termo — mamãe era<br />
uma pessoa admirativa.<br />
O Sagrado Coração<br />
de Jesus, ponto<br />
máximo de atração<br />
O ponto de atração da admiração<br />
dela era, por excelência,<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, antes<br />
de qualquer outra coisa, de<br />
tal maneira Ele é único e incomparável.<br />
Com os olhos da fé, mamãe olhava<br />
para Ele e se regalava largamente.<br />
Em casa havia duas imagens do<br />
Sagrado Coração de Jesus, uma no<br />
quarto dela e outra no salão. Mamãe<br />
se punha diante de uma dessas duas<br />
imagens durante suas demoradas preces,<br />
e para elas fitava com muita admiração.<br />
Quer dizer, mirava para, e se<br />
sentia que, quanto mais olhava, mais<br />
seus pensamentos se alçavam a considerações<br />
sobre as infinitas perfeições<br />
d’Ele. Donde, nesse meditar, ela<br />
possuir elevações de alma que subiam<br />
sempre mais, no silêncio recolhido e<br />
isolado em que vivia.<br />
A recompensa por tanto<br />
sacrifício e doçura<br />
Constatei, aliás, que em certo<br />
momento da vida dela deu-se este<br />
6
J. S. Dias<br />
Dona Lucilia aos 92<br />
anos; atrás dela, a<br />
imagem do Sagrado<br />
Coração de Jesus<br />
que ficava no salão<br />
de sua residência<br />
7
Do n a Lucilia<br />
fato: enquanto o isolamento e a incompreensão<br />
em torno dela cresciam,<br />
mamãe sentia que suas boas<br />
aspirações de alma, ignoradas<br />
pelos homens mas conhecidas por<br />
Deus, pela misericórdia do Sagrado<br />
Coração de Jesus também cresciam.<br />
E que, embora isolada, ela se<br />
sentia amada por Deus e tinha nisso<br />
a sua recompensa.<br />
Há uma promessa de Deus na Escritura,<br />
dirigida a Abraão, mas aplicável<br />
a todos que O servem: “Serei<br />
Eu mesmo a vossa recompensa demasiadamente<br />
grande” (Gn 15, 1).<br />
Essa frase — que me parece revestida<br />
de uma sonoridade melodiosa<br />
— dita em latim é ainda mais bela:<br />
Noli timere, Abram! Ego protector<br />
tuus sum, et merces tua magna erit nimis.<br />
“Serei a mercê vossa grande demais”,<br />
magna nimis.<br />
Pois creio não cometer exagero<br />
em dizer que o Sagrado Coração de<br />
Fotos: Arquivo revista / M. Shinoda<br />
“Nossa união de almas,<br />
antes de ser o vínculo<br />
natural entre mãe e<br />
filho, era entre católica<br />
e católico; um reflexo<br />
do amor que uniu Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo e sua<br />
Mãe Santíssima”<br />
Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos fins da década de<br />
50; à esquerda, a imagem do Sagrado Coração<br />
de Jesus, do oratório que ficava no quarto dela<br />
8
Jesus foi, durante a vida de mamãe,<br />
a recompensa grande demais que ela<br />
teve pelos sacrifícios que suportou,<br />
pela generosidade que manifestou<br />
em relação a todos, pela bondade e<br />
doçura invariáveis que a caracterizaram.<br />
E pelo resignar-se àquele isolamento<br />
com um estado de alma tranqüilo,<br />
mas lúcido e inteligente, pelo<br />
qual media e pesava todas as coisas<br />
como deviam ser pesadas e medidas.<br />
Observado com<br />
justiça e amor<br />
Nesta paz e serenidade se dava<br />
também o relacionamento dela comigo.<br />
Eu me sentia objeto de contínua<br />
observação por parte de mamãe,<br />
porém observado com justiça e amor.<br />
Notava que ela me queria bem, não<br />
só por ser filho dela e lhe fazer todo<br />
o bem que pudesse, mas, sobretudo,<br />
porque eu era católico apostólico romano,<br />
com a mentalidade que tenho<br />
e da qual ela gostava imensamente.<br />
De maneira tal que nossa união<br />
de almas, antes de ser o vínculo natural<br />
e necessário entre mãe e filho,<br />
era entre católico e católica, entre filhos<br />
da Santa Igreja.<br />
Cumpre dizer, se é verdade que<br />
ela me observava muito, é igualmente<br />
verdade que eu a analisava não<br />
menos, e, provavelmente, ela se sentia<br />
observada por mim. Contudo,<br />
compreendia que dessa análise filial<br />
jorrava admiração, veneração e ternura.<br />
Dona Lucilia tinha consciência<br />
desse meu grande carinho para com<br />
ela, oriundo não só do fato de ela ser<br />
minha mãe: havia outro elemento,<br />
mais possante do que esse, o qual me<br />
levou a fazê-la passar por algo a que<br />
um bom filho, na maior parte dos casos,<br />
não ousaria submeter sua mãe.<br />
Dona Lucilia passa<br />
por um “teste”<br />
A fim de me convencer das boas<br />
disposições de alma de Dª Lucilia,<br />
resolvi testá-la. Certo dia em<br />
que almoçávamos na sala de jantar<br />
de nosso apartamento da Rua Alagoas,<br />
mamãe, como de costume,<br />
distendia-se em olhar pela janela<br />
que dava para o arvoredo da Praça<br />
Buenos Aires, cuja beleza muito<br />
a encantava. Conversávamos sobre<br />
uma coisa e outra e, em dado momento,<br />
mudei bruscamente de assunto,<br />
referindo-me ao nosso vínculo<br />
de alma como fruto da nossa<br />
filiação à Igreja Católica. Pela atitude<br />
dela, certifiquei-me de que<br />
mamãe pensava do mesmo modo.<br />
Portanto, ela sabia bem que eu a<br />
queria, sobretudo, pela razão maior<br />
de pertencermos ambos à Santa<br />
Igreja Católica. Como significava<br />
também que ela me queria por<br />
idêntico motivo. Sermos membros<br />
da Esposa Mística de Cristo: este<br />
era o alicerce do nosso recíproco<br />
amor materno e filial.<br />
Um amor, portanto, em Jesus e<br />
Maria. Quer dizer, um pálido reflexo<br />
do amor que uniu Nosso Senhor e<br />
sua Mãe Santíssima, e, dessa sorte,<br />
algo inteiramente bom, santo e como<br />
deve ser.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
em 2/7/1994)<br />
9
Ec o f i d e l í s s i m o d a Ig r e j a<br />
A “Carta circular aos<br />
Amigos da Cruz” - VIII<br />
Assemelhar-se ao<br />
Varão de Dores<br />
Em mais uma exposição dedicada a comentar o opúsculo de<br />
São Luís Grignion de Montfort, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ressalta a divina<br />
figura de Nosso Senhor Jesus Cristo como o “vir dolorum” —<br />
varão a cujas dores devemos estar associados, com veneração<br />
e gratidão profundas; a Ele nos unindo de modo crescente, ao<br />
aceitarmos os sofrimentos que a vida nos traz.<br />
N<br />
o intuito de afervorar seus discípulos no amor<br />
à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim<br />
prossegue São Luís Grignion de Montfort:<br />
Numquid et vos vultis abire (Jo 6, 67)?<br />
Isto é: “quereis vós também retirar-vos?”. Foi a pergunta<br />
que Nosso Senhor dirigiu aos apóstolos, quando<br />
alguns começaram a abandoná-Lo após ouvi-Lo proclamar<br />
que sua carne era verdadeira comida, e seu sangue<br />
verdadeira bebida. Ou seja, quando Ele aludiu à Sagrada<br />
Eucaristia. Vários discípulos se escandalizaram e O<br />
deixaram. Ele, então, fez aos que ficaram essa pergunta,<br />
cheia de melancolia patética: “Vós também quereis ir?”<br />
Como quem dissesse: “Se quiserdes, ide também vós”.<br />
É uma pergunta de transpassar a alma de qualquer<br />
ouvinte que tenha um mínimo de sentimento. Nosso Senhor<br />
foi abandonado estúpida e ingratamente. Nessa<br />
ocasião, São Pedro pronunciou aquela frase magnífica:<br />
“Aonde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavra de vida<br />
eterna?” (Jo 6, 68). Estava tudo dito, nada havia a acrescentar.<br />
Riquezas, prazeres e honras:<br />
causas de abandono da Cruz<br />
“Numquid et vos vultis abire? (Jo 6, 67). Quereis vós<br />
também abandonar-me, fugindo de minha Cruz, como os<br />
10
Jesus coroado de<br />
espinhos – Igreja da<br />
Ordem Terceira do<br />
Carmo, Salvador (BA)<br />
G. Kralj<br />
11
Ec o f i d e l í s s i m o d a Ig r e j a<br />
mundanos, que nisto são outros tantos Anticristos; Antichristi<br />
multi?” (1 Jo 2, 12)<br />
Por mundano devemos entender aquele que coloca as<br />
esperanças de sua felicidade apenas neste mundo e nesta<br />
vida, procurando tão-somente as coisas terrenas. Esse<br />
foge da Cruz de Nosso Senhor e, por isso, São Luís Grignion<br />
o compara ao Anticristo.<br />
Quereis, enfim, conformar-vos ao século presente, desprezar<br />
a pobreza de minha Cruz, para correr após as riquezas?<br />
Conforme o pensamento do santo autor, o apego às<br />
riquezas do século, ou seja, do mundo, seria um primeiro<br />
fator que inclina o homem a se recusar a seguir o Divino<br />
Mestre nas vias do sofrimento.<br />
Evitar a dor de minha Cruz para procurar os prazeres?<br />
O segundo motivo para a mesma recusa é a busca desordenada<br />
dos prazeres.<br />
Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar<br />
as honras?<br />
Estão, portanto, indicados os três grandes atrativos do<br />
mundo: as riquezas, os prazeres e as honras.<br />
Onde não está a Cruz, não<br />
está Nosso Senhor<br />
Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos<br />
de amor, mas no fundo me odeiam, pois não amam<br />
a minha Cruz...<br />
Aonde iremos, Senhor,<br />
se só Vós tendes palavra<br />
de vida eterna? — Se o<br />
Redentor fez tudo por<br />
nós, é inteiramente lógico<br />
que façamos tudo por<br />
Ele e O acompanhemos,<br />
com sua Cruz<br />
“Eu sou o caminho, a verdade e a<br />
vida” - Igreja do Sagrado Coração<br />
de Jesus, Montreal, Canadá<br />
F. Boulay / G. Kralj<br />
12
13
Ec o f i d e l í s s i m o d a Ig r e j a<br />
Esse pensamento de São Luís Grignion nos leva a uma<br />
importante consideração. Com efeito, pessoas há que parecem<br />
ser muito devotas de Nosso Senhor, mas, na hora<br />
de aceitar o sofrimento, de provar seu amor à Cruz, não<br />
o fazem. Ora, diz o santo, no fundo tais pessoas odeiam o<br />
Redentor, pois rejeitam sua Cruz.<br />
A frase é dura, mas verdadeira. Interpretando-a, poder-se-ia<br />
apontar como ridícula a afirmação que se ouve<br />
aqui e ali: “cada um pratica a religião a seu modo; uns<br />
amam Nosso Senhor com a Cruz; outros O amam sem<br />
ela”. Pelo que nos ensina São Luís, essa postura de alma<br />
é equivocada. Onde não entra a Cruz, não se acha o Redentor.<br />
E o requinte de amor a Ele é o amor à sua Cruz.<br />
Cumpre ter espírito de sacrifício, pois sem isto não existe<br />
autêntica adoração ao nosso Salvador.<br />
Compreendemos assim quanto é adequada a expressão<br />
de que todo católico deve se assemelhar ao Redentor<br />
enquanto vir dolorum, um varão de dores. Pareceme<br />
que esse qualificativo descreve de modo magnífico<br />
o Divino Mestre ao longo de sua existência terrena:<br />
um varão repleto de dores, que sofre profunda e lucidamente,<br />
e faz do sofrer o seu viver. Donde o autêntico<br />
católico dever se conformar a esse augusto exemplo,<br />
e levar sua cruz como Nosso Senhor levou a d’Ele,<br />
varonilmente, peito aberto, sem olimpismo, mas sem<br />
fraquezas.<br />
Peçamos à Santíssima Virgem que nos alcance a inestimável<br />
graça de amarmos assim a Cruz de seu Divino Filho.<br />
Necessidade da graça para tomarmos<br />
a sério esses ensinamentos<br />
Que a Mãe Dolorosa nos<br />
alcance a graça de sentirmos,<br />
como Ela, dor e pena pelos<br />
sofrimentos de seu Divino<br />
Filho; e nos faça ter,<br />
semelhante ao d’Ela, um<br />
abrasado amor à Cruz<br />
Mãe Dolorosa – Madrid, Espanha<br />
Muitos [são] amigos de minha mesa, e pouquíssimos<br />
de minha Cruz. A este apelo amoroso de Jesus elevemonos<br />
acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos<br />
nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor<br />
e consumador de nossa fé, Jesus crucificado. Fujamos<br />
da concupiscência do mundo corrompido; amemos<br />
Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda<br />
sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras<br />
de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição<br />
da vida cristã: ‘Si quis vult venire post me, abneget<br />
semetipsum et tollat crucem suam, et sequatur<br />
me!’ [Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo,<br />
tome a sua cruz e siga-me] (Mt 16, 24).<br />
Vemos, assim, qual é o convite feito para os genuínos<br />
amigos da Cruz. Nosso Senhor Jesus Cristo fez tudo por<br />
nós. Seria inteiramente lógico que, por retribuição, nós<br />
O seguíssemos. Porém, a maldade do homem é tal que<br />
precisamos pedir uma graça particular para tomarmos a<br />
sério esses ensinamentos, os quais entretanto são de molde<br />
a comover as pedras; devemos implorar o dom da fé<br />
capaz de mover montanhas, e termos os olhos sempre<br />
voltados para a Cruz.<br />
Pensemos: a morte de Cristo causou tanta perturbação<br />
no universo que o sol se toldou no firmamento, a terra<br />
tremeu e outros fenômenos do gênero se verificaram.<br />
Ora, se as próprias criaturas materiais como que se manifestaram<br />
diante da morte do Filho de Deus e Lhe preparam<br />
aquele funeral, como posso tomar conhecimento da<br />
Paixão e não me incomodar?<br />
Pois a maldade do homem decaído pelo pecado original<br />
o levará a ser indiferente aos padecimentos de Cristo<br />
e à sua Cruz, caso ele não seja auxiliado pela graça. A inclinação<br />
para essa indiferença, qualquer um pode sentir<br />
dentro de si: ouvirá diversos sermões a respeito dos sofrimentos<br />
de Nosso Senhor, os mais lógicos e atraentes;<br />
porém, sem uma assistência da graça, daria no mesmo se<br />
lhe narrassem a Guerra de Tróia. Quer dizer, não o abalaria<br />
nem o moveria a nenhuma boa disposição.<br />
Daí adquirirem especial valor aquelas palavras singelas<br />
do cântico Stabat Mater, frutos da piedade popular,<br />
acessível e amável: Santa Mãe, fonte de amor, fazei-me<br />
sentir a intensidade de vossa dor, fazei-me chorar convosco.<br />
Quer dizer, depois de Nosso Senhor ter feito tudo por<br />
mim, preciso pedir a Maria Santíssima que me alcance<br />
graças para eu ter pena d’Ele, pois a Cruz, sem o socorro<br />
da graça, pode me parecer apenas um pedaço de madeira,<br />
e todo um ciclo de conferências sobre a beleza e riqueza<br />
do sofrimento não nos tocará a alma.<br />
Oferecer com alegria nossos<br />
sofrimentos e renúncias<br />
Ao concluir esses comentários, gostaria de frisar como<br />
é excelente nutrirmos em nós, de maneira constan-<br />
14
T. Ring<br />
te, o desejo de um verdadeiro amor à Cruz, no seguinte<br />
sentido: se Nosso Senhor Jesus Cristo, se a Virgem<br />
Santíssima, minha Mãe e minha Senhora, pedirem-me<br />
alguma coisa, devo dá-la com alegria, sobretudo em se<br />
tratando de algo que me exija sacrifício, renúncia, sofrimento,<br />
de maneira que minha dor seja uma gota dentro<br />
do oceano das dores que Ambos padeceram por nós na<br />
Paixão. É por essa forma que melhor me unirei a Eles.<br />
Uma vez mais: não deixemos de implorar a graça de<br />
termos esse abrasado amor à Cruz, de nos tornarmos<br />
ardentes amigos dela, não querendo coisa mais elevada<br />
e mais cobiçada do que a Cruz de nosso Salvador. v<br />
(Extraído de conferência<br />
em 8/7/1967)<br />
15
Ca l e n d á r i o d o s Sa n t o s<br />
1. Santo Anibal Maria di Francia,<br />
+ 1927. Fundador dos Rogacionistas<br />
e das Filhas do Divino Zelo.<br />
Seu lema: “Rogai!”<br />
2. Santo Eugênio I, Papa, + 657.<br />
3. São Cono, monge (séc. XII),<br />
na Lucânia, Itália. Morreu juveníssimo,<br />
porém cumulado de virtudes.<br />
4. São Francisco Caracciolo, sacerdote,<br />
fundador da Congregação<br />
dos Clérigos Regulares Menores.<br />
Morreu em 1608 , aos 44<br />
anos.<br />
5. São Bonifácio, Bispo<br />
e Mártir, 680-754.<br />
10. Santo Itamar, séc. VII. Bispo<br />
de Rochester (Inglaterra). Foi<br />
o primeiro anglo-saxão em terra inglesa<br />
a ser nomeado arcebispo.<br />
11. São Barnabé, Apóstolo. Originário<br />
de Chipre, defendeu São<br />
Paulo perante os Apóstolos e o<br />
acompanhou na primeira viagem.<br />
Evangelizou sua ilha natal e esteve<br />
presente no Concílio de Jerusalém.<br />
S. Hollmann<br />
Nascido em Lisboa, e morto em<br />
Pádua (Itália), em <strong>123</strong>1. Foi declarado<br />
Doutor da Igreja em 1946<br />
por Pio XII e é chamado o Doctor<br />
Evangelicus.<br />
14. Santos Valério e Rufino, mártires<br />
em Soissons (França), séc. IV.<br />
15. São Vito, Mártir, na Lucânia,<br />
+ 303. É um dos Quatorze<br />
Santos Auxiliares ou Intercessores,<br />
assim nomeados na Idade<br />
Média por intercederem pelos fiéis<br />
em circunstâncias especiais.<br />
São Vito, em<br />
concreto, era invocado<br />
para ajuda aos epilépticos.<br />
6. Santa Paulina,<br />
e seu pai, Santo<br />
Artêmio, +<br />
304, mártires<br />
na Via Aurelia,<br />
Roma.<br />
7. Santo<br />
Antônio Maria<br />
Gianelli, Bispo e<br />
Fundador das Filhas<br />
de Santa Maria<br />
do Horto (Gianellinas),<br />
+ 1846.<br />
8. São Guilherme<br />
de York, + 1154. Bispo<br />
dessa cidade da Inglaterra.<br />
9. São Columbano, Abade, + 615.<br />
Nascido na Irlanda, fundou mosteiros<br />
dos monges chamados columbanos,<br />
na França. Morreu diante<br />
do altar.<br />
9. Beato José de Anchieta, + 1597.<br />
Jesuíta, com justiça chamado o Apóstolo<br />
do Brasil.<br />
São Barnabé<br />
12. São Leão III, Papa, + 816.<br />
Coroou Carlos Magno como Imperador,<br />
no Natal de 800.<br />
13. Santo Antônio de Pádua. Sacerdote<br />
e pregador franciscano.<br />
16. Santo Aureliano,<br />
Bispo de Arles,<br />
+ 553.<br />
17. São<br />
Gregório Barbarigo,<br />
Cardeal<br />
e Bispo<br />
de Bérgamo<br />
e de Pádua, +<br />
1697.<br />
18. Santa Elisabeth<br />
de Schönau, religiosa<br />
beneditina, + 1164.<br />
19. São Romualdo,<br />
Abade, + 1027. Levou<br />
vida eremítica e fundou a ordem<br />
dos Camaldulenses. Combateu os<br />
maus costumes na vida monástica.<br />
20. Mártires Ingleses, entre<br />
1535 e 1679. Perseguidos por professarem<br />
a sua fé contra o cisma<br />
da Inglaterra.<br />
21. São Luís Gonzaga,<br />
1568-1591. Nascido dos marqueses<br />
16
* Ju n h o *<br />
G. Raimundo<br />
23. Santa Edeltrudes, (Etheldreda),<br />
+ 679. Rainha da Northumbria,<br />
(atual Inglaterra), e mais tarde<br />
abadessa do mosteiro de Ely. Recebeu<br />
o véu monástico das mãos do<br />
Bispo São Wilfredo.<br />
24. Natividade de São João Batista,<br />
Precursor do Salvador e seu<br />
primo.<br />
25. Santa Orósia, Mártir, + 714.<br />
Viveu e dedicou-se à virtude na<br />
província espanhola de Aragão, na<br />
época da dominação muçulmana<br />
naquele país.<br />
26. São Josemaria Escrivá de<br />
Balaguer, 1902-1975. Presbítero e<br />
Fundador. Nascido em Barbastro<br />
(Aragão), fundou a Sociedade Sacerdotal<br />
da Santa Cruz (Opus Dei),<br />
hoje Prelatura Pessoal difundida<br />
em muitos países.<br />
27. Nossa Senhora do Perpétuo<br />
Socorro.<br />
28. Santo Irineu, Bispo e Doutor<br />
da Igreja, + 202. Bispo de Lyon,<br />
França, combateu o gnosticismo,<br />
contra o qual escreveu o tratado<br />
Adversus Haereses.<br />
Neste dia tem início o Ano Paulino,<br />
proclamado por Sua Santidade<br />
Bento XVI, que se estende até junho<br />
de 2009, para comemorar os dois mil<br />
anos do nascimento de São Paulo.<br />
de Castiglione, abandonou o mundo<br />
para ingressar na Companhia<br />
de Jesus. Morreu aos 23 anos, contagiado<br />
ao cuidar de doentes nos<br />
hospitais. Tornou-se modelo de<br />
pureza para a juventude.<br />
São Paulo – Santuário de Lourdes, França<br />
22. São João Fisher, Bispo e Mártir,1469-1535.<br />
Ver artigo na página 26.<br />
São Tomás Morus, Mártir, + 1535.<br />
Encarcerado e supliciado junto com<br />
São João Fisher. (Ver <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, nº<br />
64.)<br />
29. Santos Pedro e Paulo, Apóstolos.<br />
O Primeiro Papa e o Apóstolo<br />
dos Gentios, colunas da Igreja de<br />
Roma.<br />
30. Protomártires Romanos. Foram<br />
vítimas da primeira perseguição<br />
contra a Igreja, promovida pelo<br />
Imperador Nero, após o incêndio<br />
de Roma em 64.<br />
17
O p e n s a m e n t o filosófico d e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Intimidade suprema,<br />
distância infinita<br />
Exemplo daquilo que costumava ensinar a seus seguidores,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se deleitava em contemplar a ordenação das coisas<br />
criadas como reflexos de Deus e caminho que a Ele nos<br />
conduz. Nas suas palavras aqui transcritas, compara os<br />
diferentes reinos da natureza, cujas insondáveis diversidades<br />
nos fazem “intuir a infinita grandeza do Criador”.<br />
18
C<br />
ompraz-me, vez por outra,<br />
considerar os vários reinos da<br />
criação e as diferenças imensuráveis<br />
que os separam.<br />
O Pão de Açúcar<br />
e a grama<br />
Imaginemos, por exemplo, que<br />
o Pão de Açúcar, rochedo extraordinário,<br />
de repente pudesse ter cinco<br />
minutos de pensamento e, nesse<br />
fulgor de raciocínio, visse um punhado<br />
de grama crescer nas suas<br />
encostas. Ele, o grandioso e eterno<br />
paralítico, que nunca se move nem<br />
se moverá, provavelmente, até o fim<br />
do mundo, é incapaz de crescer, de<br />
diminuir, de se deslocar. Não possui<br />
vida. Pelo contrário, a grama cresce,<br />
se alastra. O Pão de Açúcar contempla<br />
aquele desdobrar da grama,<br />
estremece de alegria e pensa: “Que<br />
honra para mim carregar uma graminha!”<br />
Essa seria a bela e natural atitude<br />
a ser tomada por ele. Como seria<br />
igualmente natural e belo que a<br />
grama, por sua vez, dotada de pensamento,<br />
pudesse olhar para o Pão de<br />
Açúcar e dizer: “Que rochedo maravilhoso<br />
e colossal! Como sou pequena<br />
diante dele! Porém, eu vivo e ele<br />
não. Vivam as graminhas!”<br />
Existe, portanto, um abismo entre<br />
o reino mineral e o vegetal.<br />
Imóvel na sua<br />
extraordinária<br />
imponência, o Pão<br />
de Açúcar, se pudesse<br />
pensar, estremeceria<br />
de alegria ao ver a<br />
grama crescer nas<br />
suas encostas<br />
Pão de Açúcar – Rio de Janeiro<br />
T. Ring<br />
19
O p e n s a m e n t o filosófico d e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A rosa e a taturana<br />
Subamos outro degrau e imaginemos<br />
que a mais esplêndida das rosas,<br />
exercitando a faculdade de pensar<br />
que lhe fora dada, observasse<br />
uma taturana subindo pela sua haste,<br />
prestes a se esgueirar no meio<br />
de suas pétalas. A rosa então diria:<br />
“Sou linda, perfumada, uma obraprima!<br />
Quando me vêem, os homens<br />
me colhem, as damas me osculam, e<br />
todos me oferecem para ornar o que<br />
há de mais precioso, até para os altares<br />
das igrejas. Sou a rosa. Em contrapartida,<br />
se virem essa taturana,<br />
deitam-na abaixo e a esmagam, porque<br />
a aparência dela não lhes agrada.<br />
“Contudo — prossegue a rosa —<br />
um fato é fato: essa taturana se move<br />
e sente. Eu não sinto. Cortam-me,<br />
deixam-me secar e fenecer, e não tenho<br />
conhecimento disso. A taturana,<br />
porém, conhece quando é ameaçada e<br />
se encontra em perigo de vida. Como<br />
o conhecer é mais valioso do que ser<br />
belo! Ó taturana, feia e repulsiva, que<br />
honra para mim carregar-te!”<br />
Mais um abismo, pois, entre o reino<br />
vegetal e o animal.<br />
Outras distâncias<br />
insondáveis<br />
Imaginemos, agora, que um leão<br />
pudesse contemplar uma criança<br />
que está aprendendo a recitar a Avemaria,<br />
ensinada por sua mãe. Ainda<br />
não sabendo articular bem as palavras,<br />
a criança apenas tartamudeia<br />
a oração. O animal observa aquela<br />
criancinha. Ente indefeso, esta seria<br />
presa fácil para ele, um aperitivo que<br />
a fera estraçalharia quando quisesse.<br />
Porém, se pudesse compreender<br />
as coisas, o leão chegaria ao seguinte<br />
raciocínio: “Essa pequena criatura,<br />
que eu deglutiria em poucos minutos,<br />
é dotada de razão, de inteligência,<br />
de vontade. Ela pensa, ela deseja,<br />
ela age. Eu não penso, não quero.<br />
Sou um jogo das minhas vísceras que<br />
se movem e me impulsionam para<br />
frente. Sigo os instintos que me dominam<br />
e ordenam o que devo fazer.<br />
A criança se governará a si mesma, e<br />
eu não me governo. Somente nesse<br />
relâmpago de raciocínio me é dado<br />
Fotos: F. Boulay / G. Kralj<br />
20
Entre uma rosa e uma simples<br />
taturana, entre um não batizado<br />
e um filho da Santa Igreja<br />
Católica, abismos de diferenças,<br />
graus mais elevados de vida<br />
À esquerda, pia batismal – Igreja de<br />
Santa Brígida, Montreal, Canadá<br />
ter conhecimento disso. Ó criança, ó<br />
obra-prima!”<br />
O leão, se pudesse, veneraria<br />
aquele pequeno ser humano.<br />
Se galgarmos mais um patamar<br />
nessas comparações, deveríamos<br />
ainda imaginar um sábio pagão, inteligente<br />
e experimentado, diante de<br />
um menino batizado no qual desabrocham<br />
a inocência batismal, a vida<br />
da graça, a sua participação no Corpo<br />
Místico de Cristo, a sua filiação<br />
à Santa Igreja Católica. Se pudesse<br />
discernir tudo isso na criança batizada,<br />
o idoso pagão, movido por sua<br />
retidão natural, exultaria de admiração<br />
diante daquele grau mais elevado<br />
de vida.<br />
O homem e o<br />
Criador...<br />
Não é difícil perceber<br />
como essa graduação<br />
posta por Deus<br />
nos diversos reinos e seres<br />
criados se reveste de<br />
extrema beleza. E esse<br />
esplendor reluz de modo<br />
particular quando no<br />
outro termo de compara-<br />
21
O p e n s a m e n t o filosófico d e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
ção está o homem. Tomemos, por<br />
exemplo, de um lado, o mar. Magnífico,<br />
interessantíssimo, apresentando-se<br />
a nós como se fosse um<br />
interlocutor cujo repertório de temas<br />
é inesgotável. Ao mesmo tempo<br />
grandioso no alto oceano onde<br />
toca o céu, e encantador, capaz de<br />
dizer coisas afáveis num cantinho<br />
qualquer de praia onde ele circunda<br />
um caramujo. Estende-se por<br />
zonas calmas, assim como por outras<br />
em que suas ondas rugem. O<br />
mar é uma imensa prosa. Ele imita<br />
uma grande mente humana. Mas...<br />
como o homem menos afortunado<br />
em matéria de inteligência vale<br />
mais do que o mar inteiro!<br />
Assim Deus graduou e ordenou<br />
todas as coisas na criação, e dispôs<br />
entre elas esses abismos, cada um deles<br />
constituindo uma imagem do abismo<br />
quão mais insondável que separa<br />
a criatura do Criador. Essas diferenças<br />
abismais nos fazem intuir a infinita<br />
grandeza de Deus, Ele próprio diferente<br />
de tudo e em tudo refletido.<br />
Então, nós, homens dotados de<br />
inteligência, paramos e dizemos:<br />
“Meu Deus, eu pensei em tudo,<br />
medi tudo. Como sois Vós? Como<br />
será vossa Mãe Santíssima?”<br />
Infinitamente<br />
maior que o imenso<br />
oceano, a grandeza<br />
de Deus deixa o<br />
homem repassado de<br />
admiração e enlevo:<br />
“Senhor, como<br />
sois Vós?”<br />
Mar no Farol da Barra, Salvador (BA);<br />
na página 23, Padre Eterno, Igreja de<br />
Santa Maria do Castelo, Gênova, Itália<br />
22
Fotos: G. Kralj / R. C. Branco<br />
E logo nos silenciamos, mudos de<br />
admiração e enlevo diante de tanta<br />
magnitude. Em nosso interior formulamos<br />
uma súplica ao Onipotente,<br />
pelos rogos misericordiosos de<br />
Maria: que Ele, terminada nossa<br />
existência terrena, nos leve a contemplá-Lo<br />
na bem-aventurança eterna,<br />
onde O adoraremos numa intimidade<br />
suprema e numa distância<br />
infinita. E ambas as coisas nos encantarão<br />
pelos séculos sem fim. v<br />
23
“R-CR” e m p e r g u n ta s e r e s p o s ta s<br />
Natureza decaída,<br />
graça e livre arbítrio<br />
Na exacerbação de suas paixões, o homem decaído<br />
pode chegar, de pecado em pecado, ao ódio professado<br />
contra a própria ordem moral em seu conjunto. No momento<br />
em que esse ódio gerou erros doutrinários e passou a<br />
dominar as tendências do homem ocidental, afirma<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, teve início o processo revolucionário.<br />
Por nosso próprio esforço, podemos praticar todos os<br />
Mandamentos?<br />
“O homem, pelas simples forças de sua natureza, pode<br />
conhecer muitas verdades e praticar várias virtudes. Entretanto,<br />
não lhe é possível, sem o auxílio da graça, permanecer<br />
duravelmente no conhecimento e na prática de<br />
todos os Mandamentos 1 .<br />
“Isto quer dizer que em todo homem decaído há sempre<br />
a debilidade da inteligência e uma tendência primeira,<br />
e anterior a qualquer raciocínio, que o incita a revoltar-se<br />
contra a Lei 2 ” (pp. 78-79).<br />
O germe da Revolução<br />
Quais as etapas dessa tendência à revolta contra a Lei<br />
de Deus?<br />
“Tal tendência fundamental à revolta pode, em dado<br />
momento, ter o consentimento do livre arbítrio. O homem<br />
decaído peca, assim, violando um ou outro Mandamento.<br />
Mas sua revolta pode ir além, e chegar até o ódio,<br />
mais ou menos inconfessado, à própria ordem moral em<br />
seu conjunto” (p. 79).<br />
Neste processo, quando teve início a Revolução?<br />
“Esse ódio, revolucionário por essência, pode gerar erros<br />
doutrinários, e até levar à profissão consciente e explícita<br />
de princípios contrários à Lei moral e à doutrina revelada,<br />
enquanto tais, o que constitui um pecado contra o Espírito<br />
Santo. Quando esse ódio começou a dirigir as tendências<br />
mais profundas da História do Ocidente, teve início<br />
a Revolução cujo processo hoje se desenrola e em cujos<br />
erros doutrinários ele imprimiu vigorosamente sua marca.<br />
Ele é a causa mais ativa da grande apostasia hodierna. Por<br />
sua natureza, é ele algo que não pode ser reduzido simplesmente<br />
a um sistema doutrinário: é a paixão desregrada, em<br />
altíssimo grau de exacerbação” (pp. 79-80).<br />
Nem sempre uma paixão<br />
desordenada gera um erro<br />
Pode-se dizer que na raiz de todo erro doutrinário há<br />
sempre uma paixão desordenada?<br />
“Tal afirmação, relativa a esta Revolução em concreto,<br />
não implica em dizer que há sempre uma paixão desordenada<br />
na raiz de todo erro.<br />
“E nem implica em negar que muitas vezes foi um erro<br />
que desencadeou nesta ou naquela alma, ou mesmo<br />
24
S. Hollmann<br />
Em todo homem decaído<br />
há sempre a debilidade<br />
da inteligência, e uma<br />
inclinação primeira<br />
para revoltar-se contra<br />
a Lei de Deus<br />
Capitel das virtudes e dos vícios –<br />
Catedral de Autun, França<br />
neste ou naquele grupo social, o desregramento das paixões.<br />
“Afirmamos tão somente que o processo revolucionário,<br />
considerado em seu conjunto, e também em seus<br />
principais episódios, teve por germe mais ativo e profundo<br />
o desregramento das paixões” 3 (p. 80).<br />
1) Cf. Revolução e Contra-Revolução, Parte I, cap. 7, 2, D.<br />
2) Donoso Cortés in Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo<br />
y el Socialismo – Obras completas, Madrid, BAC, tomo II, p.<br />
377, dá um importante desenvolvimento dessa verdade, o<br />
qual muito se relaciona com o presente trabalho.<br />
3) Para todas as citações: Revolução e Contra-Revolução, Editora<br />
Retornarei; São Paulo, 2002, 5ª edição em português.<br />
25
O Sa n t o d o m ê s<br />
São João Fisher<br />
Vigilância e serenidade<br />
diante da morte<br />
Inabalável na Fé e na defesa<br />
da Verdade, São João Fisher,<br />
Arcebispo de Rochester, chegou<br />
ao seu último momento na<br />
prisão com placidez e esperança<br />
na bondade divina. Porém, antes<br />
de receber o golpe do verdugo,<br />
não confiou nas próprias<br />
forças e rogou as orações dos<br />
que presenciavam sua morte,<br />
para não fraquejar e ceder no<br />
derradeiro instante. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
nos apresenta e propõe esse<br />
admirável modelo de humildade<br />
e vigilância.<br />
Fotos: L. Miguel<br />
N<br />
o dia 22 de junho a Igreja celebra a memória<br />
de São João Fisher, juntamente com a de<br />
São Tomás Morus, ambos martirizados na<br />
Inglaterra por se recusarem a aderir à revolta de Henrique<br />
VIII contra o Papado.<br />
26
“Deixai-me dormir mais uma hora...”<br />
São João Fisher tinha sido capelão da mãe de Henrique<br />
VII e chanceler da universidade de Cambridge, antes<br />
de ser nomeado Bispo de Rochester. Opôs‐se ao divórcio<br />
de Henrique VIII e Catarina de Aragão, bem como<br />
à constituição da igreja anglicana. Tendo negado a<br />
prestar o juramento exigido pelo rei aos bispos ingleses,<br />
foi detido e encarcerado na Torre de Londres. Durante<br />
sua reclusão, em maio de 1535, foi feito Cardeal pelo Sumo<br />
Pontífice Paulo III.<br />
São João Fischer foi condenado a morrer por torturas,<br />
mas a pena lhe foi comutada para decapitação, devido ao<br />
muito debilitado estado de saúde em que se encontrava.<br />
Assim, nas primeiras horas do dia 22 de junho, o oficial da<br />
Com a coragem e a<br />
sobranceria dos mártires, São<br />
João Fisher caminhou para<br />
a morte com um olhar de<br />
vigilância sobre si mesmo, até<br />
o último instante<br />
São João Fisher, segundo esboço<br />
de Holbein – National Gallery de<br />
Londres; à esquerda, lugar onde<br />
São João Fisher foi martirizado,<br />
próximo à Torre de Londres<br />
Torre encontrou‐se com o prisioneiro na cela, recordou-lhe<br />
que era idoso e não poderia suportar o regime do cárcere<br />
por longo tempo. Em seguida, declarou-lhe ser vontade do<br />
rei que a execução tivesse lugar naquela mesma manhã.<br />
— Está bem — respondeu o santo —, se é essa a mensagem<br />
que me trazeis, não constituiu para mim novidade.<br />
Espero‐a todos os dias. Que horas são?<br />
27
O Sa n t o d o m ê s<br />
— Cerca de cinco.<br />
— Para que horas foi marcada a minha partida deste<br />
mundo?<br />
— Às dez.<br />
— Então, agradeço‐vos que me deixeis dormir uma<br />
hora ou duas mais, pois não dormi muito essa noite, não<br />
por medo, mas por causa de minhas doenças e grande<br />
fraqueza.<br />
Extremo cuidado com a saúde,<br />
a caminho do cadafalso<br />
Ao voltar às nove horas, o oficial encontrou Fischer de<br />
pé e vestido. O santo Bispo tomou o novo Testamento e<br />
com grande consolação leu essas palavras de São João:<br />
Ora, a vida eterna é essa: Que te conheçam a ti como um<br />
só Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu<br />
te glorifiquei sobre a Terra, acabei a obra que me deste para<br />
fazer; e agora, Pai, glorifica‐me junto de ti mesmo com<br />
aquela glória que tínheis em si antes que houvesse o mundo.<br />
Depois, pediu que lhe dessem seu manto forrado. Ao<br />
que lhe interrogou o oficial:<br />
— Mas, meu senhor, por que haveis de ter um tal cuidado<br />
com vossa saúde, se vosso tempo está contado, e<br />
pouco mais tendes que uma hora de vida?<br />
— Peço meu manto para me conservar aquecido até o<br />
momento da execução. Pois ainda que não me falte coragem<br />
quanto a morrer santamente, não quero, entretanto,<br />
comprometer minha saúde nem um minuto sequer.<br />
Caminhou rumo ao cadafalso endireitando seu corpo<br />
tão magro e descarnado que parecia que a morte tinha<br />
tomado a forma de um homem. Sobre o patíbulo, com<br />
voz inteligível e clara pediu aos que assistiam a execução<br />
que rezassem por ele:<br />
— Até agora nunca tive medo da morte; contudo, sou<br />
carne. E São Pedro, receando‐a, negou o Senhor três vezes.<br />
Ajudai‐me, pois, a que no instante preciso em que<br />
eu receba o golpe mortal, não ceda por fraqueza em nenhum<br />
ponto da Religião Católica.<br />
Já no lugar do suplício lhe ofereceram o perdão por<br />
várias vezes, se quisesse dizer o que dele esperavam. Mas<br />
foi inabalável. Após o suplício, seu corpo ficou exposto,<br />
desnudo, durante todo o dia. Sua cabeça, espetada numa<br />
lança, foi posta na ponte de Londres. Quinze dias depois,<br />
como ainda parecesse viva e o povo começasse a acreditar<br />
num milagre, foi lançada ao Tâmisa.<br />
Castigo que todo homem teme<br />
Vemos aqui as reações de alma de um grande prelado<br />
às vésperas de seu martírio, o qual não oculta seu receios<br />
diante da morte.<br />
Creio que, sem uma assistência da graça, ninguém pode<br />
dizer que não teme a morte, pois esta, de si, significa<br />
um castigo de Deus infligido aos homens por causa<br />
do pecado original. Ela é, portanto, de natureza a incutir<br />
medo. Não se pode saber que espécie de sofrimento a separação<br />
definitiva entre a alma e o corpo traz para quem<br />
morre, porém nos é dado conjeturar que se trata de uma<br />
dor profunda, mais ou menos inimaginável. Pois se a menor<br />
torção do menor osso do corpo humano pode ser penosa,<br />
que dizer dessa dilaceração pela qual a alma vai diminuindo<br />
sua influência sobre a carne até abandoná-la<br />
completamente?<br />
Portanto, é normal que uma pessoa, ao considerar de<br />
frente essa realidade, tenha medo no supremo momento<br />
de enfrentá-la.<br />
Se fosse só isso, ainda seria pouco. Na verdade, qualquer<br />
pessoa judiciosa que tenha presenciado a situação<br />
de um agonizante, sentiu medo da morte por uma razão<br />
mais profunda.<br />
Lembro-me, por exemplo, de observar meu pai durante<br />
a agonia dele, e de fazer a seguinte reflexão: “Está colocado,<br />
a bem dizer, entre a eternidade e a Terra, e já perdeu<br />
completamente a consciência de tudo. Os fatos exteriores<br />
não lhe tocam. Porém, no mais recôndito de sua mente,<br />
não estará pensando em algo? Que formas de medo, de<br />
tentação, de provação, que consolações, alegrias, que auxílios<br />
uma alma pode sentir nesse momento?”<br />
Mais uma vez, é compreensível que tal circunstância,<br />
repassada de incertezas, seja de molde a causar temores<br />
no homem.<br />
Admirável tranqüilidade<br />
na hora da morte<br />
Agora voltemos ao exemplo de São João Fisher, e<br />
consideremos até que ponto admirável esse santo levou<br />
a virtude da vigilância e do examinar-se a si próprio. Pois,<br />
afinal, ele recebe a notícia da morte com toda a serenidade<br />
e, em seguida, pede que lhe concedam mais duas<br />
horas de sono. É uma extraordinária despreocupação<br />
diante de sua partida iminente deste mundo: “Não dormi<br />
bem à noite, estou com sono, deixem-me repousar um<br />
pouco mais”.<br />
E adormece na paz de sua alma, pois a sabe pronta para<br />
comparecer diante de Deus, e nos braços d’Ele repousa<br />
até o momento de se deitar para o descanso eterno.<br />
É, sem dúvida, uma impressionante manifestação de limpeza<br />
de consciência, como também a de um auxílio sobrenatural<br />
por onde ele teve essa tranqüilidade na última<br />
hora de sua vida.<br />
Dali a pouco ele acorda, levanta‐se, prepara-se e se<br />
apresenta calmo ao oficial que vem buscá-lo.<br />
28
Peçamos sempre a Nossa<br />
Senhora que nos assista com sua<br />
misericórdia, no momento de<br />
partirmos para a eternidade<br />
Nossa Senhora das Mercês – Mosteiro<br />
de Puig, Valência, Espanha<br />
S. Hollmann<br />
implorado a intercessão de Maria Santíssima junto<br />
ao trono de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Permaneceu inabalável na sua fé, foi decapitado<br />
e assim recebeu a coroa do martírio.<br />
Medo de ter medo<br />
Dirigiu-se ao local do suplício e, ao pé do cadafalso<br />
sentiu que a fraqueza humana poderia falar mais alto.<br />
Ele teve medo de vir a ter medo, de perder algo daquele<br />
magnífico estado de alma em que se achava para enfrentar<br />
a morte. Então pediu que os presentes rezassem<br />
por ele.<br />
Quanta razão tinha o santo nessa desconfiança de si<br />
mesmo! Pois ali, no patíbulo, sofreu uma longa insistência<br />
por parte de seus algozes que o queriam perverter e<br />
fazê-lo renegar a fé católica. Esse assédio no último momento<br />
não era gratuito: sabiam que se aquele homem<br />
aceitasse as propostas heréticas, seria um triunfo para a<br />
causa anglicana, e nada mais sedutor do que ter de escolher<br />
entre o dizer “sim” e a morte. Se ele aceitasse, sairia<br />
daquele cadafalso cercado de honras e aplausos. Naquela<br />
noite dormiria em algum palácio, no meio do conforto,<br />
e com alguns anos de vida regalada pela frente.<br />
Porém, São João Fisher teve medo do próprio medo,<br />
receava uma tentação do demônio naquela hora, reconheceu<br />
que poderia cair, e por isso, praticando a virtude<br />
da vigilância recomendada pelo Divino Mestre, pediu<br />
a oração dos outros em seu favor. Sobretudo, deve ter<br />
Confiando em Nossa Senhora<br />
teremos forças para enfrentar<br />
a morte<br />
Eis para nós, católicos, um modelo de como enfrentarmos<br />
o momento de nossa própria morte. Tenhamos esse espírito<br />
de vigilância e humildade manifestado por São João<br />
Fisher. Nunca imaginemos que, por sermos devotos de Maria<br />
Santíssima e praticarmos boas obras de apostolado, não<br />
seremos tentados nem fraquejaremos na última hora.<br />
Devemos, sim, pedir a graça de sermos vigilantes sobre<br />
nós mesmos, a graça de resistir sempre à tentação<br />
quando esta se apresente, compreendendo que o espírito<br />
pode estar pronto, mas a carne é fraca. De modo especial<br />
peçamos a Nossa Senhora que nos assista com sua misericórdia<br />
no momento de deixarmos este mundo rumo à<br />
eternidade. Como nos recomenda a Santa Igreja, a graça<br />
de termos uma boa morte deve ser pedida com toda a<br />
insistência, pois não sabemos o que pode nos suceder no<br />
derradeiro instante de nossa vida.<br />
Essas considerações não visam criar pânico nem um<br />
terror malsão. Pelo contrário, quando o homem confia<br />
em Nossa Senhora — e, por meio d’Ela, em Nosso Senhor<br />
—, ao mesmo tempo compreende como a morte é<br />
terrível, mas para ela caminha com serenidade. Porém,<br />
insisto, cumpre entender a necessidade de implorarmos<br />
amiúde essa confiança em Deus e esse auxílio sobrenatural<br />
do Céu, único remédio para evitarmos o terror malsão<br />
diante da morte.<br />
Sejam esses os preciosos ensinamentos a colhermos<br />
do exemplo de São João Fisher, Bispo, Cardeal e mártir<br />
da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.<br />
(Extraído de conferência em 21/6/1967)<br />
29
Lu z e s d a Civilização Cr i s t ã<br />
Supremacia da alma<br />
30
C<br />
omo já tivemos ocasião de assinalar,<br />
a mentalidade do homem<br />
medieval se alicerçava<br />
na idéia da existência de uma outra<br />
vida e de uma ordem de coisas superior<br />
à terrena.<br />
A meu ver, retratos fiéis de pessoas<br />
com essa concepção aparecem nas<br />
pinturas de Fra Angélico, o qual, embora<br />
de uma época posterior, é um<br />
artista talhado nos moldes da Idade<br />
Média. Em seus afrescos ele costuma<br />
representar figuras imbuídas<br />
de uma luz, claridade e leveza que<br />
não encontramos na vida real, e que<br />
nos falam de uma ordem eminentemente<br />
superior. Personagens, dir-seia,<br />
isentos das fraquezas humanas e<br />
sem a marca do pecado original, tão<br />
Fotos: V. Toniolo / G. Kralj / S. Hollmann<br />
Personagens<br />
imbuídos de luz,<br />
claridade e leveza,<br />
que nos falam de<br />
uma ordem de<br />
coisas superior<br />
à terrena<br />
Na página 30: afresco da<br />
Madonna delle Ombre<br />
(detalhe) – Museu de São<br />
Marcos, Florença; à direita: A<br />
Virgem e o Menino (detalhe) –<br />
Pinacoteca Vaticana, Roma<br />
— Pinturas de Fra Angélico<br />
31
Lu z e s d a Civilização Cr i s t ã<br />
grande é a elevação de que o pintor<br />
os revestiu.<br />
E não apenas nas figuras humanas,<br />
como também nos anjos que<br />
retratou, Fra Angélico soube expressar<br />
a temperança e a sabedoria<br />
do espírito medieval, voltada para<br />
as riquezas celestiais. Anjos de alma<br />
tão límpida, tão honesta, que<br />
estão dispostos a toda espécie de<br />
serviço. Tão fortes e conscientes de<br />
si, que estão prontos para toda sorte<br />
de domínio. Tão pacíficos, que<br />
são anjos da paz; tão combativos,<br />
que são anjos de combate ao mal.<br />
Todos os contrastes, todos os opostos<br />
harmônicos neles se acham em<br />
estado maravilhoso. São uma sínte-<br />
Pessoas<br />
revestidas de uma<br />
elevação de alma<br />
tão grande, que<br />
se diria isentas<br />
das fraquezas<br />
humanas, sem<br />
a marca do<br />
pecado original<br />
A Virgem com o Menino<br />
(detalhe) - Pinacoteca Vaticana,<br />
Roma; na página 33: Madonna<br />
delle Ombre (detalhe) – Museu<br />
de São Marcos, Florença<br />
32
33
Lu z e s d a Civilização Cr i s t ã<br />
se magnífica e um símbolo perfeito<br />
das melhores disposições da alma<br />
medieval.<br />
Outros exemplos, ainda, poderse-ia<br />
ver nas figuras esculpidas nos<br />
portais e fachadas das catedrais góticas.<br />
Mesmo quando se tratam de<br />
imagens que representam pessoas<br />
na atitude de exercer sua profissão,<br />
percebe-se que têm o espírito povoado<br />
por idéias de uma ordem superior,<br />
o que lhes confere dignidade,<br />
equilíbrio, recolhimento e uma<br />
total preponderância da alma sobre<br />
a matéria.<br />
v<br />
(Extraído de conferências em<br />
15/9/1966 e 3/6/1967)<br />
Anjos símbolos<br />
das melhores<br />
disposições da<br />
alma medieval,<br />
representada<br />
também nas<br />
esculturas góticas,<br />
expressão da<br />
primazia do espírito<br />
sobre a matéria<br />
Nossa Senhora dos quatro anjos<br />
(detalhe), por Fra Angélico – Museu<br />
Hermitage de São Petersburgo,<br />
Rússia; na página 35: esculturas<br />
da Catedral de Amiens, França<br />
34
35
Palavra confortadora<br />
S. Hollmann<br />
Assim como São João Batista estremeceu<br />
de gáudio no seio de<br />
sua mãe ao ouvir a voz de Maria<br />
Santíssima, devemos pedir a Nossa Senhora<br />
que nos obtenha a graça de igualmente<br />
exultarmos ao som da voz d’Ela<br />
ressoando em nossos corações.<br />
Que, em meio aos sofrimentos<br />
e aflições a que todos estamos<br />
sujeitos nesta vida, a<br />
Mãe de Misericórdia nos diga<br />
uma dessas palavras interiores<br />
pela qual estremeçamos<br />
de santa<br />
alegria, e<br />
nos dê coragem<br />
e ânimo para<br />
carregarmos todas<br />
as nossas cruzes até o<br />
fim da vida.<br />
(Extraído de conferência<br />
em 2/7/1963)<br />
A Virgem com<br />
o Menino –<br />
Lourdes, França