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A primeira década
São Francisco de<br />
Assis - Afresco<br />
no Mosteiro de<br />
Subiaco, Itália<br />
T. Ring<br />
Santo de uma personalidade tão rica e marcante, São Francisco de Assis parece vivo ainda hoje, resplendendo<br />
sua presença diante dos homens. Deixou-nos um dos maiores exemplos da verdadeira<br />
contemplação das perfeições divinas e do profundo amor a Deus. Ao considerar os peixes num simples<br />
regato, sabia colher desta cena uma aplicação concreta para a vida espiritual. Dirigia-se ao “irmão<br />
sol” e à “irmã lua”, tecendo orações que elevam a alma à mais subida meditação das excelências de Deus,<br />
como quem afirma: “Ó Senhor, este universo criado, do qual faço parte, é grande e belo demais; porém,<br />
há algo infinitamente superior, que sois Vós!”<br />
Daí a fabulosa densidade da religiosidade franciscana, que devemos imitar. Diria mais: sem esse espírito<br />
contemplativo, nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.
Sumário<br />
A primeira década<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no<br />
início da década<br />
de 1990<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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Editorial<br />
4 3 de outubro de 1995 – 3 de outubro de 2005<br />
Há 10 anos, o encontro com Deus<br />
Dona Lucilia<br />
6 Primeiros anos em<br />
Pirassununga<br />
A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
10 Conversa e amor ao próximo<br />
16 Calendário litúrgico<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
18 As escadas e a dignidade humana<br />
“R-CR” em perguntas e respostas<br />
22 “Revolução e Contra-Revolução”<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
24 A vitória de um holocausto<br />
Preços da assinatura anual<br />
Outubro de 2005<br />
Comum. . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />
Colaborador.. . . . . . . . . . R$ 110,00<br />
Propulsor. . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />
Grande Propulsor. . . . . . R$ 370,00<br />
Exemplar avulso.. . . . . . . R$ 10,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />
O Santo do mês<br />
32 Santa Teresa do Menino Jesus<br />
e a pequena via<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
38 Esplendor áureo<br />
Última página<br />
44 Razão de nossa serenidade
Editorial<br />
3 de outubro de 1995 – 3 de outubro de 2005<br />
Há 10 anos, o encontro com Deus<br />
“<br />
É<br />
na esperança de podermos batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes<br />
em Nossa Senhora, que devemos atravessar nossos dias neste chão de exílio. E o homem que santificou<br />
sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade, poderá dizer as palavras mais magníficas<br />
que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: combati o bom combate, terminei<br />
a minha carreira, guardei a fé; resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz,<br />
me entregará naquele dia (2 Tim 4, 7-8).”<br />
Em diversas ocasiões ao longo de sua batalhadora e edificante existência, sulcada pelo sofrimento e o<br />
denodo apostólico, comprouve-se <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em recordar e aplicar ao católico essas palavras de São Paulo,<br />
tão consoladoras para quem procurou viver, autenticamente, conforme os preceitos e ensinamentos da fé<br />
cristã, defendendo-os com intrepidez a cada passo, face à maré montante do relativismo e às “modas” revolucionárias<br />
(ideológicas e tendenciais). Contra estas lutara desde o tempo em que irrompia o artificial<br />
frenesi de Hollywood e a Primeira Guerra destruía nos alicerces da Belle Époque, um status quo precário<br />
onde as aparências de um cristianismo oco de princípios ainda rendiam um fraco culto externo à virtude.<br />
As palavras do Apóstolo dos Gentios, bonum certamen certavi..., <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> as poderia reafirmar — referindo-se<br />
a si próprio — naquele 3 de outubro de 1995 quando, por volta das 18h20, rendeu seu espírito<br />
ao Criador, confortado pelos Sacramentos e indulgências da Santa Igreja, à serviço da qual combateu seu<br />
bom combate.<br />
Sim, era o sereno e piedoso termo de 87 anos transcorridos à luz da graça recebida no Batismo, sob o<br />
influxo de uma constante devoção aos Corações de Jesus e Maria, à Sagrada Eucaristia e ao Papa, Vigário<br />
de Cristo na Terra.<br />
Por mais de seis décadas, desde seu ingresso nas Congregações Marianas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dedicaria todo o vigor<br />
de sua inteligência, todo o empenho de sua vontade, todas as suas disposições físicas e morais para fazer<br />
triunfar, nos mais variados campos de ação, os direitos de Deus e da Igreja Católica, bem como a harmonia<br />
da sociedade temporal.<br />
Formou almas, discípulos, constituiu uma sólida escola espiritual, fundou uma obra apostólica cujos<br />
frutos não só perduram até hoje, como não fazem senão se multiplicar no Brasil e em muitos outros países,<br />
com a força renovada que lhe vem do Espírito Santo e do carisma do fundador. Lutou sem medir<br />
esforços, sacrificou-se sem se impor limites, determinado a seguir o que ele mesmo escreveu:<br />
“Para a Igreja, quer Deus toda a minha vida, quer organização, sagacidade, intrepidez; quer a inocência da<br />
pomba mas a astúcia da serpente, a doçura da ovelha mas a cólera irresistível e avassaladora do leão. A Deus<br />
devemos dar tudo, absolutamente tudo, e depois de ter dado tudo ainda devemos dar nossa própria vida” (cfr.<br />
Via Sacra, 9ª estação).<br />
E, em verdade, cumpriu à risca essa heróica disposição. Deu de si tudo, depositando sua existência nas<br />
misericordiosas mãos de Maria Santíssima, para que dela se servisse de acordo com seus superiores desígnios.<br />
Dessa sorte, naquele anoitecer de outubro, prestes a partir para a eternidade, poderia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se<br />
lembrar também destas suas outras tocantes palavras:<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
S. Miyazaki<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no início dos anos 90 — “Sempre nutri a vontade de desejar o meu holocausto por completo”<br />
“A grande imolação de nossa vida espiritual é o querermos deixar de ser o que somos e nos transformarmos<br />
inteiramente naquilo que a Igreja deseja que sejamos. O resto — doenças, provações, etc. — são meios para<br />
nos fazermos generosos a fim de praticar esse holocausto.<br />
“Santa Teresinha, por exemplo, a santa da ‘pequena via’, morreu como vítima do amor misericordioso, tendo<br />
sofrido muito com a tuberculose que lhe tirou a vida. Porém, o melhor do sacrifício dela não é o fato de ter<br />
morrido, e sim o ter querido morrer e, portanto, desejado em toda a medida o que se abateu sobre ela.<br />
“O centro do holocausto de um homem é a integridade com que ele o almeja e realiza.<br />
“Pois bem, quando jovem, lendo a biografia de Santa Teresinha, pareceu-me seria muito mais útil à causa<br />
católica se me oferecesse como vítima expiatória, tal qual ela o fez. E eu sempre nutri a vontade de desejar<br />
por completo esse meu holocausto. Considerei sempre que ter o meu espírito preparado por meio da coerência<br />
doutrinária, da previsão, para ser um todo, uma fortaleza no meio das trevas ou um navio no meio da tempestade,<br />
que isto era a essência da minha imolação.<br />
“Sem deixar, entretanto, de me voltar a Nossa Senhora, conformando-me aos planos d’Ela e rogando sua<br />
proteção: ‘Minha Mãe, quereis que eu sofra? Se quiserdes, preparai minha alma. Dai-me forças para esse sofrimento,<br />
tornai-me capaz de carregar a cruz de vosso Divino Filho’.<br />
“E assim, em poucos anos, pelo efeito desse sacrifício — misericordiosamente aceito por Nossa Senhora —<br />
a Contra-Revolução conheceria a vitória. Eu estaria enterrado no Cemitério da Consolação, mas sobre a minha<br />
sepultura, pelo favor da Santíssima Virgem, teria brotado a árvore do Reino de Maria e de uma nova Civilização<br />
Cristã.”
Dona Lucilia<br />
Primeiros anos em<br />
Pirassununga<br />
Foi em 1873 que <strong>Dr</strong>. Antônio<br />
se estabeleceu com a família<br />
em Pirassununga, a fim de ali<br />
exercer a advocacia. Nomeado promotor<br />
da comarca de Belém do Descalvado,<br />
que então incluía Pirassununga,<br />
habilitou-se depois ao cargo<br />
de juiz de direito, mas preferiu não<br />
seguir carreira, talvez por questões<br />
de política local. Outro motivo que<br />
o atraiu àquela região foram as terras<br />
que Dª Gabriela, sua esposa, herdara<br />
do pai, situadas em Rio Claro,<br />
São Paulo.<br />
Um Far West brasileiro...<br />
Cidade tão próspera e dinâmica em<br />
nossos dias, a Pirassununga daqueles<br />
tempos idos era um pólo de colonização<br />
cuja exploração metódica datava<br />
de há pouco, na qual a civilização penetrava<br />
apenas lentamente. Só alguns<br />
anos depois do nascimento de Dª Lucilia,<br />
a localidade passou a ser servida<br />
por um ramal de estrada de ferro. As<br />
características daquele sertão eram as<br />
de um Far West brasileiro, onde o policiamento<br />
ia rareando à medida que<br />
se adensava a mata virgem.<br />
Na serena Pirassununga de outrora, a casa de Dona Lucilia (à direita, na esquina do poste)
Décadas mais tarde, ao contar as<br />
recordações de infância, Dª Lucilia<br />
ainda deixará transparecer a impressão<br />
que lhe causava o grande contraste<br />
entre a atmosfera da sociedade<br />
paulista e aquele ambiente tão<br />
primitivo e campestre, que ia disputando<br />
espaço à mata tropical, quase<br />
tão inculta como no período em que<br />
o Padre Anchieta percorria as vastidões<br />
do Brasil.<br />
As casas, por exemplo, eram desprovidas<br />
de assoalho, sendo o chão<br />
simplesmente de terra batida. Mesmo<br />
as residências das notabilidades<br />
locais não escapavam à regra. A primeira<br />
moradia a ter vidraças nas janelas<br />
foi a dos Ribeiro dos Santos,<br />
considerada, por isso mesmo, de luxo,<br />
já que as outras possuíam apenas<br />
folhas de pau.<br />
Elevação e beleza no<br />
ambiente campestre<br />
Naquele meio agreste e monótono<br />
do interior, o nobre e jovem casal<br />
Ribeiro dos Santos estabeleceu-se<br />
com coragem, decidido a prosperar.<br />
A presença de Dª Gabriela introduzia<br />
uma nota de elevação e de beleza<br />
no ambiente de simplicidade campestre<br />
da pequena cidade.<br />
<strong>Dr</strong>. Antônio tornou-se desde logo<br />
benquisto na região. Pessoas de todas<br />
as classes procuravam-no, atraídas<br />
pelo brilho de sua personalidade<br />
e pela sua arte de conversar. Era<br />
o que invariavelmente acontecia, por<br />
exemplo, quando ele viajava naqueles<br />
trens de outrora.<br />
Estes paravam em cada estaçãozinha,<br />
demorando-se nelas certo<br />
tempo. Os homens desciam para<br />
tomar um cafezinho, e as notabilidades<br />
do lugar estavam muitas<br />
vezes presentes, acompanhadas de<br />
seus familiares, na expectativa de<br />
encontrar alguém importante que<br />
pudesse contar as últimas novidades<br />
da política ou trazer interessantes<br />
notícias.<br />
O jovem casal Gabriela e Antônio Ribeiro dos Santos. O pai de<br />
Dona Lucilia logo se tornou benquisto na região, por seus préstimos<br />
advocatícios e, sobretudo, pelo brilho de sua personalidade<br />
Pois bem, quando <strong>Dr</strong>. Antônio<br />
chegava a algum lugar, formava-se<br />
um verdadeiro enxame de gente a<br />
seu redor, desejando desfrutar de<br />
sua companhia. Situação tão favorável<br />
adquiria, aos olhos de sua filha<br />
Lucilia, contornos luminosos.<br />
Sossego e monotonia<br />
da vida do interior<br />
Havia um aspecto da pacata Pirassununga<br />
que agradava deveras à jovem<br />
Lucilia: era precisamente a calma.<br />
Ela nunca tomou gosto pela agi-
Dona Lucilia<br />
Dona Lucilia conservaria sempre agradável<br />
lembrança de seus anos vividos no interior,<br />
onde a pacatez, a regularidade e a serenidade<br />
da atmosfera que a rodeava se mostravam tão<br />
consoantes com sua alma ordenada<br />
Acima, o Fórum de Pirassununga, onde <strong>Dr</strong>.<br />
Antônio advogava; à esquerda, a velha Matriz da<br />
cidade; na página seguinte, a menina Lucilia<br />
tação da vida moderna, e várias vezes<br />
se referia de forma comprazida<br />
à tranqüilidade do interior. Elogiava<br />
a regularidade da vida, bem como a<br />
dignidade das pessoas dentro do sossego,<br />
ao comentar fatos locais que revelavam<br />
a íntima consonância de sua<br />
ordenada alma com a natural serenidade<br />
da atmosfera que a rodeava.<br />
Mas, ela sentia também, e muito,<br />
o peso da monotonia daquelas longínquas<br />
paragens. Referia-se ao vazio<br />
da cidadezinha, especialmente<br />
em alguns intermináveis domingos,<br />
durante os quais até os ruídos da vida<br />
quotidiana cessavam pelo fato de<br />
ninguém sair de casa. Quando um<br />
cachorro ladrava, o som do seu latido<br />
percorria os espaços vazios sem<br />
encontrar nenhum anteparo, nenhum<br />
obstáculo. Toda a cidade, de<br />
um extremo ao outro, ficava “transparente”<br />
a qualquer som e apenas<br />
pulsava de vida vegetativa, como se<br />
nada mais ali houvesse...<br />
Retidão admirativa<br />
de uma alma justa<br />
O sossego da pequena Pirassununga,<br />
a que nos referimos, muito<br />
ajudava a jovem Lucilia a observar<br />
com atenção e enlevar-se pelos mais
velhos. Sua capacidade de admirar<br />
os predicados alheios tinha origem<br />
na virginalidade de alma, que<br />
ela soube manter intacta. Com efeito,<br />
Dª Lucilia sempre se conservará<br />
fiel, até seus últimos dias, àquele<br />
notável senso admirativo, àquele<br />
modo primevo e rico de considerar<br />
os fatos e as criaturas com que a<br />
inocência envolve a infância de todos<br />
os cristãos.<br />
Quando ainda jovem, ao contemplar<br />
as qualidades de alma dos<br />
que compunham seu ambiente, com<br />
instintiva naturalidade as mitificava<br />
tanto que chegava a afastar suas<br />
sempre bem-intencionadas vistas<br />
de tudo o que neles pudesse não ser<br />
virtude. Os senões que encontrava<br />
na conduta das pessoas, reputava-os<br />
exceção. Era como se num belo<br />
lenço de seda houvesse pequenos<br />
furos. Porém, o resto era seda muito<br />
boa...<br />
Esse modo de considerar a realidade,<br />
pelo qual a todos situava numa<br />
clave de seriedade, distinção e<br />
grandeza estava muito presente em<br />
todas as narrações dela, procurando<br />
transmitir uma idéia arquetipizada<br />
da vida e do convívio entre os<br />
homens.<br />
Evidentemente, foi assim que o<br />
sereno olhar de Lucilia se voltou<br />
para seus pais, verdadeiras e luminosas<br />
imagens de Deus, naquele seu<br />
primeiro despertar para a vida. Que<br />
influência tiveram eles em sua formação?<br />
A resposta não é difícil, para<br />
quem teve a ventura de ouvi-la reviver<br />
— naquela voz clara, melodiosa<br />
e um tanto solene, que constituía<br />
um dos encantos de sua companhia<br />
— fatos ocorridos com seus queridos<br />
progenitores, dos quais tomaremos<br />
conhecimento em próximos artigos.<br />
(Transcrito, com adaptações,<br />
da obra “Dona Lucilia”, de<br />
João S. Clá Dias)
A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Conversa e amor<br />
ao próximo<br />
Tema inesgotável nas exposições de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, a arte da conversa,<br />
a causerie informal, era para ele importante forma de transmissão<br />
de conhecimentos, baseado num intercâmbio rico e espiritualizado<br />
no qual se procura antes fazer bem ao próximo do que transmitirlhe<br />
ensinamentos “livrescos” e cartesianos. Vejamos como ele<br />
desenvolve essa matéria que lhe era tão cara.<br />
Arespeito do tema “conversa”,<br />
como de tantos outros,<br />
fui favorecido pela influência<br />
de mamãe, pois ela era, fundamentalmente,<br />
uma causeuse 1 .<br />
Mais que palavras,<br />
a conversa por<br />
olhares e gestos<br />
Um de seus maiores prazeres na<br />
vida era conversar. Fazia-o bem, longamente,<br />
sem pressa, com um charme<br />
envolvente, o qual não é fácil definir,<br />
pois tinha mais relação com seus<br />
pensamentos do que com seus ditos.<br />
Tratava-se do arrière fond 2 implícito<br />
de sua conversação. Ela não tinha<br />
o hábito — aliás, inexistente em sua<br />
época — de espremer seu raciocínio<br />
até sair o último suco por meio da explicitação.<br />
O espremer não fica bem<br />
a uma dona de casa: refeições, horários,<br />
tudo contado e corrido aguça<br />
nos convidados dela a vontade de se<br />
retirarem. Creio ser mais interessante<br />
o calmo estilo antigo.<br />
E na alma de mamãe havia inúmeros<br />
aspectos pelos quais ela conversava<br />
muito mais pelo olhar, timbre de<br />
voz, gestos das mãos, do que propriamente<br />
pelo sentido das palavras.<br />
“Tinha a impressão<br />
de que as estrelas<br />
dialogavam comigo<br />
ou me olhavam<br />
em silêncio”<br />
Um paralelo com o<br />
contemplar as estrelas<br />
A esse propósito, tomo a liberdade<br />
de fazer uma comparação que,<br />
nos lábios de um filho, pode parecer<br />
excessiva, entretanto é a única que<br />
encontro para exprimir minha idéia.<br />
Quando criança, às vezes eu ficava<br />
sozinho, à noite, contemplando o<br />
céu estrelado. Como muitos, tinha<br />
a sensação de que a abóbada celeste<br />
não era inteiramente fixa, mas sim<br />
como um grande toldo circular, dilatando-se<br />
ou se encolhendo de modo<br />
suave. E que esse movimento comunicava<br />
um certo impulso de fole<br />
àqueles astros, os quais por isso cintilavam.<br />
Tomava-me a impressão de<br />
que as estrelas de certo modo dialogavam<br />
comigo, e, quando mudavam<br />
de posição, olhavam-me em silêncio.<br />
Eu sabia que isso não tinha fundamento,<br />
e dizia a mim mesmo: “É verdade,<br />
mas não pode ser mera ilusão,<br />
deve haver algo de real nisso”. Somente<br />
depois de homem feito consegui<br />
explicitar o que eu sentia. Deus<br />
criou o firmamento de maneira a<br />
causar essa impressão nas pessoas. E<br />
10
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante<br />
uma conversa no<br />
“Salão Azul” de<br />
sua residência<br />
11
A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
embora não seja a autora desse movimento,<br />
a abóbada celeste o é dessa<br />
sensação. Esta tem como origem<br />
remota e suprema a Deus Nosso Senhor,<br />
Criador do céu.<br />
Esse pensamento me parece elevado<br />
e belo, porque exprime o valor<br />
metafísico dessa sensação que nos<br />
colhe ao contemplarmos uma noite<br />
estrelada.<br />
Ora, de modo análogo ao que<br />
ocorria comigo ao considerar o firmamento,<br />
quando conversava com mamãe,<br />
muitas vezes tinha a impressão<br />
de estar dialogando com duas estrelas<br />
(os seus olhos), as quais pulsavam e<br />
fitavam-me, dizendo coisas sem relação<br />
imediata com os assuntos por nós<br />
As pessoas que<br />
sabiam conversar<br />
possuíam uma<br />
imensa vantagem<br />
na vida<br />
tratados. E eu sentia que lhe respondia<br />
também dessa forma, e assim con-<br />
versamos durante quase 60 anos, até<br />
a morte dela. Esse foi o contributo<br />
que ela me proporcionou para compreender<br />
a riqueza da conversa.<br />
“Não há arte de viver<br />
sem a arte de conversar”<br />
E ainda menino, através das revistas<br />
da Université des Annales, bem<br />
como de livros de história franceses,<br />
etc., não custei a perceber essa realidade:<br />
as pessoas que sabiam conversar<br />
possuíam uma imensa vantagem<br />
na vida. Não há arte de viver sem a<br />
arte de conversar. Pois normalmente<br />
12
“Quando dialogava com mamãe, parecia-me conversar com duas estrelas<br />
(seus olhos), que pulsavam e me fitavam, dizendo-me coisas sem relação direta<br />
com o assunto tratado por nós...”<br />
Na página anterior, Dona Lucilia em 1<strong>91</strong>2; acima, o menino <strong>Plinio</strong>, aos 8 anos<br />
os homens não vivem sozinhos, mas<br />
em sociedade, devendo, portanto,<br />
trocar idéias e comentários. E o efeito<br />
que se produz nos outros depende<br />
em grande parte do que se diz.<br />
Imaginemos uma pessoa contando<br />
a um conhecido o passeio que<br />
fez. Se ela seguir as normas da conversa,<br />
conforme expusemos, será ouvida<br />
com atenção e interesse. Porém,<br />
se narrar à maneira de um professor<br />
de química, que explica a reação<br />
produzida pela mistura de H 2<br />
O<br />
com outra substância, fará um relatório<br />
extenuante e não uma autêntica<br />
descrição. Por mais que tal relato<br />
seja profundo, é inaceitável como<br />
elemento de convívio humano.<br />
Certas revistas geográficas apresentam<br />
reportagens escritas por pessoas<br />
que passeiam sozinhas na natureza<br />
e contam o que vêem, sem nenhuma<br />
pulsação ou calor de alma.<br />
Ela fala, por exemplo, das borboletas<br />
do Ceilão ou das lagostas do Recife<br />
com a mesma neutralidade de<br />
um guia.<br />
13
A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Um intercâmbio de<br />
duas personalidades<br />
A conversa<br />
será tanto mais<br />
interessante quanto<br />
mais nela sobressair<br />
o indivíduo e<br />
não o tema<br />
Ora, a conversa não pode ser assim.<br />
Sendo um meio insubstituível<br />
para viver, pensar, a conversa não é<br />
uma mera crônica, um simples relatório.<br />
Sobretudo, não é uma aula.<br />
Entretanto, a causerie deve ter algo<br />
de crônica, de relatório e de aula.<br />
É, aliás, o que procuro fazer nesta<br />
exposição. Ela tem um aspecto docente,<br />
pois estou continuamente ensinando<br />
coisas. Mas difere de uma<br />
aula clássica, a qual pode ser comparada<br />
a uma avenida em cujo ponto<br />
terminal há um monolito chamado<br />
ensinamento. Enquanto que minha<br />
explanação é como um passeio<br />
por caminhos não retilíneos<br />
onde, de forma inesperada, encontra-se<br />
uma lição.<br />
Nela há também algo de relatório,<br />
quando faço um inventário<br />
dos modos de se conversar.<br />
Além disso, em minha exposição<br />
existe um pouco de conversa. Embora<br />
nesse momento esteja agindo especificamente<br />
como um professor<br />
que fez a introdução e focalizou o tema,<br />
sem perceberem, meus ouvintes<br />
estão conversando comigo e assistindo<br />
uma aula. Isso é propriamente<br />
causerie...<br />
E a conversa, o que vem a ser?<br />
A palavra “intercâmbio”, com freqüência<br />
empregada em assuntos comerciais,<br />
é inadequada para exprimir<br />
coisas do espírito. Contudo, é o<br />
vocábulo que me ocorre para explicar<br />
esse tema.<br />
A conversa é um intercâmbio de<br />
duas personalidades que falam sobre<br />
matéria atraente e que interessa<br />
a ambas. Será ainda mais autêntica,<br />
se o meu interlocutor puser certa nota<br />
pessoal em suas palavras, fazendo<br />
com que eu goste de ouvi-lo. Isso é<br />
um elemento fundamental da conversa.<br />
Há pessoas muito inteligentes<br />
e instruídas, cuja prosa é enfadonha;<br />
e outras de pouca capacidade<br />
14
Pelo olhar, o tom de voz, os gestos, além da troca de impressões e informações,<br />
uma boa conversa tende a alcançar sua plenitude: alma que vibra no<br />
contato com outra alma<br />
Na página da esquerda, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante conversa em sua residência;<br />
acima, “dois dedos de prosa” entre velhos amigos...<br />
intelectual e instrução, que conversam<br />
bem, pois sente-se em suas palavras,<br />
não principalmente o tema,<br />
mas o indivíduo.<br />
Depois de tê-la definido, aponto<br />
no que consiste a plenitude da conversa:<br />
não é apenas uma troca de informações<br />
nem de impressões, mas<br />
também de cognições mútuas dos interlocutores,<br />
cujas personalidades se<br />
manifestam pelo olhar, tom de voz,<br />
gestos, etc.<br />
Na boa conversa, a<br />
prática da caridade cristã<br />
Pode-se dizer que há na essência<br />
da arte de conversar um preceito<br />
da moral católica: o amor ao próximo.<br />
Para conversar bem, o indivíduo<br />
precisa ter uma atitude de alma<br />
— portanto, toda ela interna — pela<br />
qual se torne interessante para os<br />
outros. Do contrário, ele nunca será<br />
um bom conviva.<br />
Qual é essa atitude de alma?<br />
Descrevê-la-ei de modo sumário.<br />
Quando uma pessoa considera outra<br />
e sente afinidade, homogeneidade,<br />
ou heterogeneidade harmônica, ela<br />
se regozija. Notando, ao invés, dissonância,<br />
desagrada-se. Ou seja, ela vibra<br />
em contato com outra alma. Esse<br />
é o ponto de partida do verdadeiro<br />
causeur. Ser indiferente às almas,<br />
não senti-las, percebê-las, nem vibrar<br />
com elas, torna a conversa impossível.<br />
Por exemplo, estou conversando<br />
com meu auditório e percebo que todos,<br />
ou a maioria, nutrem interesse<br />
em conhecer minha alma, como ela<br />
se mostra ao longo dessa exposição,<br />
etc. E notam que eu, por meu lado,<br />
cultivo também a vontade de conhecê-los,<br />
de interpretar o olhar de cada<br />
um com interesse, como algo que<br />
a todo momento tem uma novidade<br />
a me dizer...<br />
E assim nos beneficiamos, reciprocamente,<br />
desse tesouro que é a<br />
arte da conversa.<br />
v<br />
1) Feminino de causeur, aquele que possui<br />
a arte da conversa.<br />
2) Âmago.<br />
15
Calendário litúrgico<br />
1. Santa Teresinha do Menino<br />
Jesus e da Sagrada Face, Virgem e<br />
Doutora da Igreja, + 1897. Ver artigo<br />
na página 32.<br />
2. 27º Domingo do Tempo Comum.<br />
Santos Anjos da Guarda.<br />
3. São Veríssimo, Máxima e Júlia,<br />
Mártires de Lisboa, + 303<br />
Bem-aventurados André de Soveral,<br />
Ambrósio Francisco, Presbíteros; e<br />
28 companheiros leigos — Protomártires<br />
do Brasil, + 1645. Foram massacrados<br />
por calvinistas holandeses, em<br />
Uruaçu, no Rio Grande do Norte, durante<br />
a celebração de uma Missa.<br />
4. São Francisco de Assis, Religioso,<br />
+ 1226. (Ver “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” nº 79)<br />
5. São Benedito, o Negro , Religioso,<br />
+ 1589. Eremita no Monte<br />
16<br />
San Pellegrino, na Sicília (Itália), e<br />
depois irmão leigo franciscano.<br />
Santa Faustina Kowalska, Religiosa,<br />
+ 1938.<br />
6. São Bruno, Presbítero e Religioso,<br />
+ 1101. Após uma renomada<br />
carreira como mestre de Teologia<br />
na Universidade de Reims, França,<br />
atendeu ao apelo para a vida eremítica,<br />
refugiando-se nas solidões dos Alpes.<br />
Fundou a Ordem dos Cartuxos.<br />
7. Nossa Senhora do Rosário.<br />
Celebração instituída pelo Papa<br />
São Pio V, em reconhecimento pela<br />
decisiva intercessão da Santíssima<br />
Virgem que favoreceu a vitória<br />
dos católicos na Batalha de Lepanto,<br />
no ano de 1571.<br />
8. Beatos João Adams, Roberto<br />
Dibdale e João Lowe, Presbíteros<br />
e Mártires, + 1586. Padeceram<br />
o martírio sob a perseguição de Isabel<br />
I, na Inglaterra.<br />
9. 28º Domingo do Tempo Comum.<br />
São João Leonardo, Presbítero,<br />
+ 1609. Fundador da<br />
congregação da Doutrina Cristã<br />
e da Ordem dos Clérigos<br />
Regulares da Mãe de Deus,<br />
assim como do Colégio para a<br />
Propagação da Fé, destinado à<br />
formação de sacerdotes.<br />
10. São Paulino de York,<br />
Bispo e Monge, + 644. Discípulo<br />
de São Gregório Magno,<br />
que o enviou a pregar o Evangelho<br />
ao povo anglo.<br />
Anjo da Guarda - Catedral<br />
de Notre-Dame de Paris<br />
11. São Meinardo, Bispo, +<br />
1196. Depois de levar vida monacal<br />
na Alemanha, já em avançada<br />
idade partiu como missionário<br />
junto aos letões. Tornou-se o<br />
primeiro Bispo da Letônia.<br />
12. Nossa Senhora da Conceição<br />
Aparecida, Rainha e Padroeira do<br />
Brasil.<br />
13. Santo Eduardo III, Rei da Inglaterra,<br />
1003-1066.<br />
14. São Calisto I, Papa e Mártir,<br />
+ 222. Era escravo nas minas da<br />
Sardenha, de onde foi libertado pelo<br />
Papa Vitor. Empenhou-se na defesa<br />
da fé trinitária e na difusão da<br />
reta doutrina católica.<br />
15. Santa Teresa de Jesus, Virgem<br />
e Doutora da Igreja, + 1582.<br />
Empreendeu a reforma do Carmelo,<br />
fundando diversos conventos em<br />
toda a Espanha.<br />
16. 29º Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Margarida Maria Alacoque,<br />
Virgem, + 1690. (Ver “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>” número 79)<br />
17. Santo Inácio de Antioquia,<br />
Bispo e Mártir, + 107. Terceiro Bispo<br />
de Antioquia depois de São Pedro<br />
e Santo Evódio. Sofreu o martírio<br />
em Roma, sob Trajano.<br />
18. São Lucas, Evangelista, séc.<br />
I. Autor do terceiro Evangelho e<br />
também dos Atos dos Apóstolos,<br />
acompanhou São Paulo desde a sua<br />
segunda viagem.<br />
19. São João de Brébeuf, São<br />
Isaac Jogues, Presbíteros, e companheiros<br />
— Mártires, + 1642-1649.<br />
Missionários jesuítas, martirizados<br />
no Canadá.<br />
São Paulo da Cruz, Presbítero,<br />
+ 1775. Italiano, fundador dos<br />
Clérigos Descalços da Santa Cruz e
* Outubro *<br />
“Prisão e martírio de São Crispim e São Crispiniano” - Igreja de São Sulpício, Fougères (França)<br />
Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
os “Passionistas”.<br />
20. São Cornélio, o Centurião<br />
séc. I. Batizado por São Pedro em<br />
Cesaréia da Palestina.<br />
21. Santo Hilarião de Gaza, Eremita,<br />
séc. IV. Viveu no deserto, e é<br />
considerado o continuador de Santo<br />
Antônio, Abade. Faleceu na Ilha<br />
de Chipre.<br />
22. São Donato de Fiesole, Bispo,<br />
+ 874. De origem irlandesa, foi eleito<br />
Bispo de Fiesole, Itália, quando retornava<br />
de uma peregrinação a Roma.<br />
23. 30º Domingo do Tempo Comum.<br />
São João de Capistrano, Presbítero,<br />
+ 1456. Fervoroso discípulo<br />
de São Francisco de Assis, suas<br />
virtudes e invulgar sabedoria o levaram<br />
a ser designado pelo Sumo<br />
Pontífice para importantes e delicadas<br />
missões em favor da causa<br />
católica, na Europa e na Terra<br />
Santa. Faleceu na Áustria, em<br />
1456.<br />
24. Santo Antônio Maria Claret,<br />
Bispo, séc. XIX. (Ver “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”<br />
número 79)<br />
25. Santos Crispim e Crispiniano,<br />
Séc. III.<br />
26. Santo Evaristo, Papa e Mártir,<br />
sécs. I-II. Foi o quarto sucessor<br />
de São Pedro.<br />
Santo Albino, Bispo, + 786. Beneditino,<br />
companheiro de São Bonifácio<br />
na evangelização da Alemanha.<br />
27. São Gaudioso, Bispo, + 455.<br />
Bispo de Abitina, no norte da África.<br />
Foi perseguido e exilado por<br />
Genserico, rei ariano dos Vândalos.<br />
Faleceu em Nápoles, Itália.<br />
28. São Simão e São Judas Tadeu,<br />
Apóstolos, séc. I. (Ver “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>” número 79)<br />
29. São Narcísio de Jerusalém,<br />
Bispo, séc. III.<br />
30. 31º Domingo do Tempo Comum.<br />
Santos Cláudio, Lupércio e Vitório,<br />
Mártires, séc. IV. Perseguidos<br />
sob Diocleciano.<br />
31. Santo Afonso Rodrigues,<br />
+ 1617. (Ver “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” número<br />
79)<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
As escadas<br />
e a<br />
dignidade humana<br />
Com aquela penetração de olhar que lhe era característica,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> costumava contemplar tanto as coisas elevadas<br />
quanto as corriqueiras. Quem teria pensado em analisar o<br />
que as escadas significam ou ocultam, como se as sobe com<br />
elegância ou deselegância, e como elas devem<br />
respeitar a psicologia do homem?<br />
Acompanhemos a primeira parte de um saboroso comentário.<br />
Ohomem contemporâneo, ao contrário do antigo,<br />
quase não tem idéia do verdadeiro significado<br />
de uma escada. Esta pode ser assim definida:<br />
uma série de degraus que nos permitem passar de um andar<br />
para outro, por via não mecânica. Através do elevador<br />
1 tal acesso é feito de modo mecanizado, enquanto o<br />
realizamos de forma natural pela escada, como pitorescamente<br />
se diz em latim: calcantibus pedibus — calcando<br />
os pés.<br />
Duas concepções de escadas<br />
Por não se compreender seu autêntico sentido, na arquitetura<br />
moderna as escadas raramente são postas em<br />
relevo. A tendência é até ocultá-las o quanto possível,<br />
eliminando seu papel ornamental.<br />
Consideremos uma bela escadaria, como a existente<br />
na sede principal do nosso movimento 2 . Trata-se do prédio<br />
residencial mais antigo do Bairro de Higienópolis. O<br />
arquiteto, segundo a concepção artística de outrora, procurou<br />
dar ao giro da escada uma certa nobreza, e a revestiu<br />
de bonitos lambris, mais graciosos que a colunata do<br />
corrimão o qual possui pelo menos este aspecto interessante:<br />
faz parte da coleção dos objetos que, com suas formas<br />
e cores, ilustraram a moda de fins do século XIX.<br />
Numa concepção diversa, não é difícil nos lembrarmos<br />
dos exemplos de escadas sem tradição, servindo puramente<br />
como acesso entre níveis diferentes. Muitas se<br />
apresentam como cascatas de degraus em linha reta, tendo<br />
em ambos os lados uma espécie de corrimão fixado<br />
nas paredes, sem beleza alguma, apenas o essencial para<br />
ser utilizado como apoio a quem sobe ou desce. Correspondem<br />
à noção moderna de escada.<br />
Idéias distintas sobre o próprio homem<br />
Por detrás dessas duas concepções há duas idéias a<br />
respeito do agir humano e do próprio homem.<br />
De acordo com o reto conceito, a escada — tanto<br />
quanto possível e sensato — deve ser algo ornamental,<br />
decorativo. Pois tudo aquilo que serve para o homem<br />
agir, precisa dissimular ou fazer olvidar alguma coisa da<br />
18
S. Miyazaki<br />
Escadaria da sede principal do movimento fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, comentada por ele neste artigo<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
miséria de sua condição decaída e, de outro lado, realçar<br />
algo de sua personalidade.<br />
Ora, a mais elementar idéia de escada é a de um meio<br />
empregado pelo homem para subir ou descer. Porém, essas<br />
duas operações acabam por patentear algo de nossas<br />
debilidades, assim como evidenciam nossa grandeza. Tudo<br />
quanto cerca o homem — mesmo mais modesto —<br />
deve respeitá-lo. O respeito é um dos maiores bens da<br />
vida, e ser acatado pode valer mais do que ser querido.<br />
Não existe genuína benquerença sem respeito. A escada,<br />
portanto, deve ser construída para honrar o homem, realçando<br />
algumas qualidades, excelências de sua natureza e<br />
disfarçando debilidades de sua condição.<br />
Vitória sobre o princípio da gravidade<br />
Ao subir uma escada, o homem se depara com alguns<br />
problemas que eu chamaria de teatrais, quase de encenação,<br />
pois ele luta contra a lei de Newton: quanto mais<br />
se afasta do solo, menor é a força da gravidade e maior o<br />
cansaço de seus músculos. Se bem que possa ganhar alguma<br />
coisa distanciando-se do chão, ele perde algo de<br />
sua elasticidade, e no topo de uma alta escada aparece o<br />
sinal — embora às vezes discreto — da miséria: a fadiga.<br />
Antes do pecado original, o homem se exercitava sem<br />
cansaço, o trabalho lhe era indolor, agradável, interessante.<br />
Porém, depois da queda de nossos primeiros pais,<br />
tornou-se difícil. A força da gravidade começou a agir<br />
contra ele, o chão o atraindo para deitar-se, e ele se esforçando<br />
para se firmar e pisá-lo.<br />
De passagem, apesar de nada ter lido acerca do assunto,<br />
pergunto-me se um modo de interpretar o sapateado<br />
espanhol não seria a vitória do homem sobre o princípio<br />
da gravidade. Tomado pela idéia da supremacia do espírito<br />
em relação à matéria, ele sapateia, e como que não<br />
sente a ação da gravidade. Seus músculos vencem a lei de<br />
Newton.<br />
Cada nação tem seu esplendor, gênio e modo de ser.<br />
Outra manifestação da vitória sobre a força da gravidade<br />
é o minueto francês, com aquela maneira de se movimentar<br />
delicada, em que o cavalheiro e a dama pisam o<br />
solo como se fossem plumas, conferindo ao chão a honra<br />
de ser tocado por eles. E para ostentar sua indiferença<br />
ao princípio da gravidade, executam longas reverências<br />
diante de pessoas às quais respeitam, depois se aprumam<br />
com altanaria e continuam a dançar com destreza, sem<br />
demonstrar cansaço. É uma linda expressão da douceur<br />
de vivre [doçura de viver] francesa, e um exemplo do papel<br />
do princípio da gravidade na conduta humana, dando-nos<br />
a oportunidade e o gosto de refletir.<br />
Aliás, para mim, raciocinar de modo agradável —<br />
compreendo que haja preferências diferentes — não<br />
consiste meramente em compulsar um tratado de teoria<br />
e pensar, mas passar da prática para a doutrina, galgando-a<br />
até o ponto mais alto. E depois fazer uma imersão<br />
até o fundo mais miúdo da experiência, procurando ali a<br />
confirmação ou ilustração das elevadas cogitações doutrinárias.<br />
Esse “subir e descer escadas” mental tem a leveza<br />
de um minueto.<br />
Tal exercício não é simplesmente deleitável, mas faz bem à<br />
alma. O homem se sente assim mais espírito, acentua-se nele<br />
o por onde é mais semelhante a Deus. E parecer-se com<br />
Deus é a honra suprema, o bem extremo, o fim último.<br />
Tributo pago ao pecado original<br />
Retornando ao nosso tema principal, cumpre considerar<br />
o seguinte: num homem ou numa dama, de qualquer<br />
S. Miyazaki<br />
idade ou condição social, ao terminar de subir uma escada,<br />
devido ao esforço, aparece alguma coisa que os diminui,<br />
algo do viço deles murcha.<br />
Alguém poderá dizer: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor não me<br />
conhece. Subo escadas de dois em dois degraus...”<br />
20
Ao subir uma escada<br />
o homem desafia a<br />
lei da gravidade,<br />
essa mesma lei que o<br />
sapateado espanhol<br />
ou o minueto francês<br />
parecem vencer<br />
com elegância e<br />
indiferença...<br />
Acima, “Minueto sob o carvalho”;<br />
à esquerda, detalhe da escadaria<br />
comentada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Não devemos nos iludir. Ainda que seja no arfar ou<br />
na pisada final, nota-se algo do tributo pago pela natureza,<br />
mesmo na flor da juventude. Além disso, visto do topo<br />
da escada, quem a sobe parece muito pequeno, e não<br />
é grato ao homem ser observado de cima para baixo. Os<br />
personagens que respeitamos, agrada-nos vê-los no alto.<br />
E assim, muitas outras considerações poderíamos fazer a<br />
respeito do “subir”.<br />
Analisemos, porém, o “descer”. Também nesta operação,<br />
como em tudo que o homem faz por si próprio, aparece<br />
a nossa miséria, a qual devemos saber disfarçar.<br />
Tal sucede nas mínimas coisas. Por exemplo, no momento<br />
em que lhes dirijo a palavra, apóio de modo ligeiro<br />
meu queixo sobre minha mão, enquanto faço um pequeno<br />
esforço de espírito para ordenar as idéias a serem<br />
expostas. Esse gesto é discretamente interrogativo, indicando<br />
que estou “emparafusando” um pensamento. Ou<br />
o faço com instintiva leveza, ou me degrado, porque a<br />
sensação de peso da queixada cansada é feia.<br />
Alguns espíritos talvez julguem inútil, uma bagatela,<br />
a observação desses aspectos do nosso cotidiano. Para<br />
mim, isso é saber tirar todo o proveito da vida. É viver. O<br />
contrário é vegetar.<br />
Então, se uma pessoa não descer uma escada com dignidade,<br />
dará a impressão de que está decaindo, degringolando.<br />
Pois a descida significa diminuição. Por exemplo,<br />
descer na saúde, na agilidade de inteligência, na arte<br />
de conversar, na virtude, no amor de Deus, etc.<br />
Razão pela qual não devemos julgar que seja fácil descer<br />
uma escada de maneira a nobilitar-se. Trata-se antes<br />
de uma arte, sobre a qual falaremos em outra oportunidade.<br />
v<br />
1) Entende-se que, para os efeitos dessa exposição, a chamada<br />
“escada-rolante” se equipara ao elevador.<br />
2) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341.<br />
21
“R-CR” em perguntas e respostas<br />
“Revolução e<br />
Contra-Revolução”<br />
Além de inúmeras exposições orais feitas ao longo de sua vida<br />
dedicada ao serviço de Deus e da Santa Igreja, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> escreveu<br />
15 livros, traduzidos para diversos idiomas, e incontáveis artigos<br />
publicados em periódicos e revistas do Brasil e do exterior. Sua obra<br />
magna, “Revolução e Contra-Revolução”, vinda a lume em 1959,<br />
tornou-se o livro de cabeceira de todos os que desejavam fazer parte<br />
da família de almas de seus seguidores.<br />
Sobre ele, o ilustre canonista espanhol, Pe. Anastásio Gutiérrez<br />
CMF, emitiu eloqüente parecer em que afirma:<br />
“Revolução e Contra-Revolução é uma obra magistral,<br />
cujos ensinamentos deveriam ser difundidos até fazêlos<br />
penetrar na consciência de todos os que se sintam<br />
verdadeiramente católicos. Eu diria mais: de<br />
todos os homens de boa vontade. [...] É uma<br />
obra profética no melhor sentido da palavra;<br />
[...] seu conteúdo deveria ensinar-se nos<br />
centros superiores da Igreja. [...] Impressiona<br />
fortemente o espírito com que a obra está<br />
escrita: um espírito profundamente cristão e<br />
amante da Igreja; é um produto autêntico da<br />
‘sapientia christiana’ [sabedoria cristã]”.<br />
A fim de proporcionar aos leitores de “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” os<br />
importantes ensinamentos contidos nesse livro —<br />
o qual designaremos pela sigla “R-CR” —, damos<br />
início à presente seção, no formato de perguntas e<br />
respostas. As citações são extraídas da 5ª edição em<br />
português, estampada pela “Editora Retornarei” em<br />
dezembro de 2002.<br />
Algumas das primeiras<br />
edições da “R-CR”; no<br />
alto, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pouco antes<br />
de lançar sua obra<br />
22
Definições preliminares<br />
Que é a Revolução?<br />
“É um processo que se manifestou, na ordem dos fatos,<br />
no início do século XV.<br />
Nasceu ele de uma explosão de paixões desordenadas<br />
que vai conduzindo à destruição de toda a sociedade<br />
temporal, à completa subversão da ordem moral, à negação<br />
de Deus.<br />
O grande alvo da Revolução é, pois, a Igreja, corpo<br />
místico de Cristo, mestra infalível da verdade, tutora da<br />
Lei natural e, assim, fundamento último da própria ordem<br />
temporal” (p. 144).<br />
E a Contra-Revolução?<br />
“É a luta incruenta para extinguir<br />
a Revolução e construir<br />
a Cristandade nova, toda resplandecente<br />
de Fé, de humilde<br />
espírito hierárquico e de ilibada<br />
pureza.<br />
Isto se fará, sobretudo, por<br />
uma ação profunda nos corações.<br />
Ora, esta ação é obra<br />
própria da Igreja, que ensina a<br />
doutrina católica e a faz amar e<br />
praticar.<br />
A Igreja é, pois, a própria alma<br />
da Contra-Revolução” (pp.<br />
147-148).<br />
Fidelidade ao Papado<br />
Que demonstração de fidelidade<br />
ao Papa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez no<br />
livro “R-CR”?<br />
Eis o último parágrafo da<br />
conclusão de seu trabalho:<br />
“Sobre cada uma das teses<br />
que o constituem, não temos em nosso coração a menor<br />
dúvida. Sujeitamo-las todas, porém, irrestritamente ao<br />
juízo do Vigário de Jesus Cristo, dispostos a renunciar<br />
de pronto a qualquer delas, desde que se distancie, ainda<br />
que de leve, do ensinamento da Santa Igreja, nossa Mãe,<br />
Arca da Salvação e Porta do Céu” (p. 199).<br />
O que move a Revolução e<br />
a Contra-Revolução<br />
Qual a principal força propulsora da Revolução?<br />
“A mais potente força propulsora da Revolução é o dinamismo<br />
das paixões desencadeadas num ódio metafísico<br />
contra Deus, contra a virtude, contra o bem e, especialmente,<br />
contra a hierarquia e contra a pureza” (p. 130).<br />
E da Contra-Revolução?<br />
“É no vigor de alma que vem ao homem pelo fato de<br />
Deus governar nele a razão, a razão dominar a vontade,<br />
e esta dominar a sensibilidade, que é preciso procurar a<br />
serena, nobre e eficientíssima força propulsora da Contra-Revolução”<br />
(pp. 130-131).<br />
Como adquirir esse vigor de alma?<br />
“Tal vigor de alma não pode ser concebido sem se tomar<br />
em consideração a vida sobrenatural.<br />
O papel da graça consiste exatamente em iluminar a<br />
inteligência, em robustecer a vontade e em temperar a<br />
sensibilidade de maneira que se voltem para o bem.<br />
De sorte que a alma lucra incomensuravelmente<br />
com a vida sobrenatural, que a eleva acima das misérias<br />
da natureza decaída, e do próprio nível da natureza<br />
humana.<br />
É nessa força de alma cristã que está o dinamismo da<br />
Contra-Revolução” (p. 131).<br />
Principal tarefa da Contra-Revolução<br />
Qual o dever primordial da Contra-Revolução?<br />
“A Contra-Revolução tem, como uma de suas missões<br />
mais salientes, a de restabelecer ou reavivar a distinção<br />
entre o bem e o mal, a noção do pecado em tese, do pecado<br />
original e do pecado atual.<br />
Essa tarefa, quando executada com uma profunda<br />
compenetração do espírito da Igreja, não traz consigo o<br />
risco de desespero da misericórdia divina, hipocondrismo,<br />
misantropia, etc., de que tanto falam certos autores<br />
mais ou menos infiltrados pelas máximas da Revolução”<br />
(pp. 132-133).<br />
Como reavivar essa noção do bem e do mal?<br />
“Pode-se reavivar a noção do bem e do mal por vários<br />
modos, entre os quais:<br />
• Salientar, nas ocasiões oportunas, que Deus tem o<br />
direito de ser obedecido, e que, pois, seus Mandamentos<br />
são verdadeiras leis, às quais nos conformamos<br />
em espírito de obediência, e não apenas porque<br />
elas nos agradam.<br />
• Divulgar a noção de um prêmio e de um castigo<br />
post-mortem.<br />
• Insistir sobre os efeitos do pecado original no homem<br />
e a fragilidade deste, sobre a fecundidade da<br />
Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo, bem como<br />
sobre a necessidade da graça, da oração e da vigilância<br />
para que o homem persevere.<br />
• Aproveitar todas as ocasiões para apontar a missão<br />
da Igreja como mestra da virtude, fonte da graça,<br />
e inimiga irreconciliável do erro e do pecado” (pp.<br />
133-134). v<br />
23
Gesta marial de um varão católico<br />
A vitória<br />
de um<br />
holocausto<br />
Aspecto marcante da vida espiritual de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> deu-se<br />
à certa altura de sua juventude, quando leu a história de<br />
Santa Teresinha do Menino Jesus. Esta, após seu ingresso<br />
no Céu e, posteriormente, sua canonização, passou a deitar<br />
luzes especiais sobre a piedade de todos os homens desde<br />
o início do século XX. Também <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se sentiu tocado<br />
pelos ecos dessas graças, conforme podemos acompanhar<br />
pela narração a seguir, que ele próprio nos deixou.<br />
Declaro que vivi e espero<br />
morrer na Santa Fé Católica<br />
Apostólica e Romana, à<br />
qual adiro com todas as veras de minha<br />
alma. Não encontro palavras suficientes<br />
para agradecer a Nossa Senhora o<br />
favor de haver vivido desde os meus<br />
primeiros dias, e de morrer, como espero,<br />
na Santa Igreja, à qual votei, voto<br />
e espero votar até o último alento,<br />
absolutamente todo meu amor.<br />
Agradeço da mesma forma a Nossa<br />
Senhora — sem que me seja possível<br />
encontrar palavras suficientes<br />
para fazê‐lo — a graça de haver lido<br />
e difundido o Tratado da Verdadeira<br />
Devoção à Santíssima Virgem, de São<br />
Luís Maria Grignion de Montfort,<br />
e de me haver consagrado a Ela como<br />
escravo perpétuo. Nossa Senhora<br />
foi sempre a Luz de minha vida, e<br />
de sua clemência espero que seja Ela<br />
minha Luz e meu Auxílio até o último<br />
momento da existência.<br />
Sofrer pela vitória<br />
da Igreja<br />
Assim se exprimiu <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em seu<br />
testamento, mais de uma vez evocado<br />
nas páginas desta <strong>Revista</strong>, posto traduzir<br />
de modo genuíno os princípios que<br />
nortearam sua longa vida: o inteiro<br />
24
No anoitecer de 3 de outubro de 1995, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> entregou sua alma a Deus:<br />
era o fim e o ápice de seu sofrimento confiante e vitorioso<br />
amor à Igreja e ao Papado, a humilde<br />
e intensa devoção a Nossa Senhora,<br />
como meio seguro de se conformar<br />
ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
Ouçamo-lo descrever como considerou<br />
o desenvolver de sua vocação, a<br />
qual culminaria, na Terra, naquele 3<br />
de outubro de 1995:<br />
Em determinado momento de minha<br />
infância, por inspiração da graça,<br />
cheguei à convicção de que havia<br />
no meu espírito um depósito de<br />
energia capaz de ser transformado<br />
em força, em energia vitoriosa, desde<br />
que eu estivesse disposto a sofrer.<br />
Ora, exatamente não me agradava<br />
o sofrimento. Afinal, quem gosta<br />
de padecer?<br />
Porém, entendia que, se tomasse<br />
essa capacidade, esse potencial de<br />
assumir a dor (o qual percebia ser incomum),<br />
e levasse até onde fosse me<br />
possível com a ajuda do Céu, eu sofreria<br />
menos do que se me deixasse<br />
arrastar pela moleza e me ver esmagado<br />
por todos os brutos do mundo.<br />
Meu sofrimento<br />
deveria ir tão longe<br />
quanto me fosse<br />
possível levá-lo, com<br />
a ajuda do Céu<br />
E pensava: “Se eu aceitar a cruz, posso<br />
ter insucessos e toda espécie de<br />
reveses; será porque Deus permitiu<br />
e quis me provar. Não será por culpa<br />
minha, e sim por desígnio d’Ele. Se é<br />
a vontade de Deus, faça Ele de mim<br />
o que Lhe aprouver. Por falta minha,<br />
não será”.<br />
A esse raciocínio aliavam-se as noções<br />
do confronto Revolução versus<br />
Contra-Revolução, no qual me sentia<br />
chamado a atuar de maneira particular.<br />
Então compreendi ser aquele<br />
sofrimento destinado a alcançar a<br />
vitória da Contra-Revolução nesse<br />
embate, e que tal padecimento, portanto,<br />
iria tão longe quanto o de um<br />
homem pode ir. Não apenas físico,<br />
mas, sobretudo, moral, pois nessa<br />
batalha pela causa católica e contrarevolucionária<br />
não me seriam poupados<br />
ódios, calúnias, perseguições.<br />
Santidade e expiação<br />
para realizar o chamado<br />
Anos mais tarde, com a leitura do<br />
livro de Dom Chautard — A alma de<br />
25
Gesta marial de um varão católico<br />
todo apostolado — nasceu em meu<br />
espírito a idéia de que eu só poderia<br />
realizar a obra para qual era chamado<br />
se me empenhasse em me tornar<br />
santo. E formei a intenção de me<br />
oferecer como vítima expiatória a<br />
Nosso Senhor, a Nossa Senhora, pela<br />
vitória da Contra-Revolução.<br />
Não cheguei a formalizar o oferecimento<br />
naquela época, pois um<br />
certo lampejo me era dado para entrever<br />
não ser então o que a Providência<br />
desejava de mim. Ela queria<br />
que eu vivesse. Mas, de fato, minha<br />
vontade era pedir que morresse<br />
como Santa Teresinha, imaginando<br />
nossas missões semelhantes, ou seja,<br />
fazer mais depois de morto que<br />
durante a vida. Assim, terminaria<br />
meus dias ainda moço, consumido<br />
por uma doença qualquer. Mas, ao<br />
menos teria pago o preço da Contra-Revolução.<br />
Contudo, percebi não ser o momento<br />
para isso, embora tenha tomado<br />
em face de Maria Santíssima<br />
uma atitude de quem se tivesse realmente<br />
oferecido.<br />
Pouco depois, deparava-me com<br />
a espiritualidade de São Luís Maria<br />
Grignion de Montfort, incutindome<br />
o desejo de nutrir uma devoção a<br />
Nossa Senhora absolutamente horsserie.<br />
Nesse anelo de ardente devoção<br />
mariana entrava, sim, o intuito<br />
de avantajar com ela a Contra-Revolução,<br />
mas entrava antes de tudo a<br />
vontade de amar Nossa Senhora com<br />
todas as veras de minha alma: “Eu A<br />
quero, porque a Mãe de Deus é ‘ultraquerível’!<br />
Portanto, almejo estabelecer<br />
com Ela uma união na linha<br />
de tudo quanto me seja dado imaginar,<br />
um vínculo fora de série”.<br />
Por essas disposições de alma eu<br />
compreendia que Nossa Senhora esperava<br />
de mim algo a mais do comum.<br />
E me vinha a idéia:<br />
“É isso. À falta de outro melhor,<br />
Ela chamou este medíocre para desincumbir<br />
essa tarefa, e ele aceitou.<br />
Percebo que minha inteligência<br />
se manifesta com boas rutilâncias,<br />
sob o influxo da graça alcançada<br />
por Maria. Mas, exatamente<br />
porque não tenho o talento de outros,<br />
torna-se necessário suprir essa<br />
carência com os dons divinos. É<br />
a misericórdia para o ‘medíocrão’.<br />
Aceite isso dessa maneira e se desempenhe<br />
com naturalidade. Eu só<br />
fico penalizado pelo fato de que,<br />
se eu valesse mais, poderia servi-<br />
La melhor. Valho o que tenho; Ela<br />
me completa, e vamos para frente.<br />
Nossa Senhora há de fazer o que<br />
está em mim realizar pela causa<br />
d’Ela!”<br />
Trajetória semeada de<br />
grandes provações<br />
Na extensa trajetória que se me<br />
abria, ao lado de algumas intensas<br />
consolações, sobrevieram também<br />
grandes provações, interpretadas co-<br />
Imaginava fazer<br />
mais depois de<br />
morto do que<br />
em vida, como<br />
Santa Teresinha<br />
26
“Lendo Dom Chautard,<br />
e pouco depois São Luís<br />
Grignion, compreendi que<br />
Nossa Senhora esperava de<br />
mim algo a mais do que<br />
uma piedade comum”<br />
Abaixo, São Luís Grignion, igreja de<br />
Saint-Laurent-sur-Sèvre (França); à<br />
direita, Dom Chautard, Abade de Sept<br />
Fonts; na página da esquerda, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
na época em que leu os dois autores<br />
S. Hollmann<br />
mo punição de Deus por minha falta<br />
de generosidade no cumprimento<br />
da vocação. Julgava que as adversidades<br />
e contrariedades se apresentavam<br />
porque eu tinha culpa, eram infidelidades<br />
conscientes ou não, pecados<br />
ocultos de cuja existência não<br />
me dera conta...<br />
Pensamento cruciante: “Tenho cegueira<br />
porque não quero ver, e por<br />
causa disso estão acontecendo coisas<br />
ruins. Mas, talvez seja porque estou<br />
disposto a servir de vítima expiatória,<br />
e esse oferecimento está me esmagando<br />
como eu desejei”. Contudo,<br />
eu era triturado entre a resignação<br />
— caso devesse ser vítima expiatória<br />
— e um brado, um clamor interno<br />
de que tal não devia ser. Então,<br />
a conclusão: “Não, não é vítima<br />
expiatória, mas é castigo. Entenda e<br />
abrace de frente essa situação. Bom,<br />
mas do que devo me arrepender? Do<br />
que você não vê. Se está sendo castigado<br />
por uma mão justa e não a vê,<br />
a culpa é de não enxergá-la. Ao menos<br />
agora não seja cego e siga adiante,<br />
pois Nossa Senhora, apesar de suas<br />
lacunas, vai lhe concedendo meios<br />
de desenvolver sua missão.”<br />
27
Gesta marial de um varão católico<br />
De um lado, a<br />
realização do<br />
desígnio divino; de<br />
outro, o tormento<br />
de uma missão<br />
fracassada<br />
Havia, portanto, de um lado, a<br />
idéia do desígnio divino que se realizava<br />
dentro da mediocridade, da<br />
correspondência insatisfatória; de<br />
outro, um tormento: o tempo ia passando,<br />
e quando eu estivesse com 60,<br />
70 anos, achar-me-ia tão velho que<br />
não serviria para mais nada. A velhice<br />
se aproximava de mim como em<br />
certos filmes representavam um acidente<br />
de automóvel, este indo de encontro<br />
a um rochedo. Assim também<br />
eu caminhava para a ancianidade, e<br />
nada se realizava, nada se movia.<br />
Na verdade, formáramos um movimento<br />
minúsculo, sem expressão.<br />
Eu dizia: “Pelos cálculos comuns, já<br />
devia estar mar alto na realização de<br />
minha missão. Por que não acontece?<br />
Mediocridade, castigo. É isso.<br />
Saiba não formar uma idéia pretensiosa<br />
a seu respeito. Aprenda a lição.”<br />
Em contrapartida, percebia desenvolverem-se<br />
certas qualidades,<br />
uma determinada aura em torno de<br />
mim. Logo vinha o crivo da consciência:<br />
“Você nota, mas os outros não.<br />
O que é claro aos seus olhos, não o<br />
é aos deles. Você vê, porque correspondeu<br />
um ‘tantinho’, porém, se os<br />
demais não percebem, é porque você<br />
não correspondeu o bastante.<br />
Portanto, o que deve se tornar admirável<br />
em você é a sua vergonha, porque<br />
não foi fiel o suficiente. Você é<br />
o abat-jour opaco que guarda a luz<br />
dentro de si, mas não a faz transparecer<br />
para os outros. Este é você.<br />
“Por outro lado, não consigo melhorar.<br />
Faço o que posso, realizo o<br />
que realizo. Um grupinho aqui, outro<br />
acolá... Leia no Dom Chautard e<br />
você encontrará a explicação de tudo:<br />
falta vida interior a você!”<br />
As dores compraram o<br />
florescimento da obra<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> por volta de 1965 — As provações estavam comprando<br />
o grande desenvolvimento de sua obra pelo mundo inteiro<br />
Não obstante essas provações —<br />
que constituíam um drama psicológico<br />
capaz de minar qualquer organismo,<br />
como de fato afetou o meu,<br />
determinando pouco depois uma crise<br />
de diabetes 1 — eu sentia que as<br />
graças alcançadas por Nossa Senhora<br />
iam aumentando, embora o apostolado<br />
não crescesse na mesma proporção.<br />
Resultado, novas auto-recriminações:<br />
“Você está melhorando<br />
um pouco, porém de forma morosa.<br />
Esfregue seu nariz no chão da vergonha,<br />
porque deveria ser muito mais.<br />
28
“Em determinado momento, pelo auxílio da graça, percebo-me<br />
produzindo junto a meus jovens seguidores o efeito que era de se desejar;<br />
isto me deu um imenso alento”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em meados dos anos 80<br />
Quer provas? Nossa Senhora o ajuda<br />
a formar esses grupinhos, mas... que<br />
dificuldade! Pense um pouco, reflita,<br />
observe que Ela não lhe concede nada<br />
de extraordinário. Qual é a grande<br />
dádiva a favorecer o seu apostolado?<br />
Nenhuma...”<br />
Eu me sentia tentado a dizer que<br />
tudo aquilo em que minhas mãos tocavam,<br />
esboroava-se. Eram, na verdade,<br />
os sofrimentos e as provações<br />
próprias à via de expiação na qual<br />
trilhávamos, tendo Maria Santíssima<br />
considerado aquela minha primeira<br />
disposição. Desejo de oferecimento<br />
esse reiterado pouco antes do meu<br />
desastre de automóvel em fevereiro<br />
de 1975, e também aceito por Nossa<br />
Senhora, como já tive anterior ocasião<br />
de narrar 2 .<br />
A partir de então, começo a notar<br />
nos meus seguidores mais jovens<br />
uma atitude invulgar em relação ao<br />
ideal e à minha própria missão. E<br />
pensei: “Afinal, me vem de algum lado<br />
uma repercussão por onde, junto<br />
a alguém, estou produzindo o efeito<br />
que, se fosse fiel à graça, estaria produzindo.<br />
Embora devesse sê-lo mais<br />
universalmente, ao menos isso nos é<br />
dado!”<br />
Esse fato me alentou sobremaneira,<br />
e com profunda gratidão a Nossa<br />
Senhora eu passei a ver o espraiar-se<br />
da aura de minha obra pelos mais diversos<br />
recantos do mundo.<br />
Na hora suprema, a<br />
suprema confiança<br />
Incansável paladino dos direitos de<br />
Deus e da Igreja, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> olhou para<br />
o seu futuro e para o momento da sua<br />
morte com a confiança que sempre o<br />
caracterizou. Antevendo seu caminho,<br />
afirmou ele certa vez:<br />
Imaginemos um de nós, muito<br />
chamado, muito eleito, sobre quem<br />
se abate a provação de uma grave<br />
enfermidade a qual, na aparência, o<br />
impede de cumprir a vocação. Pois<br />
tudo quanto sua alma desejaria para<br />
satisfazer a missão que lhe foi concedida,<br />
mil anseios bons, mil anelos de<br />
combater e vencer os adversários da<br />
Igreja, ficam tolhidos dessa maneira.<br />
O que era a respiração de seu espírito<br />
não lhe é mais permitida.<br />
A esse pode vir a perplexidade:<br />
“Será que o esperado nas melhores<br />
horas de minha vida espiritual, os<br />
combates decisivos e supremos em<br />
que ouviria o cântico de vitória dos filhos<br />
de Maria Santíssima, não eram<br />
para mim? E que me estava destinado<br />
um quarto de doente, o isolamento, e<br />
29
Gesta marial de um varão católico<br />
S. Miyazaki<br />
ainda sentindo que, pela minhas circunstâncias,<br />
estou pesando como elemento<br />
negativo sobre aquela força em<br />
marcha, na qual quisera ser de todos<br />
os modos um elemento positivo?”<br />
Noutras palavras, ele poderia<br />
pensar: “Nos melhores momentos<br />
de meu fervor espiritual, pareciame<br />
chegada a hora do Reino de Maria,<br />
que eu o estava tocando com as<br />
mãos. Alegrava-me a esperança de<br />
ter concorrido de modo significativo<br />
e triunfal, eu, pessoalmente, com<br />
os braços e as pernas que Deus me<br />
deu, para essa vitória. Mas, não. Não<br />
é esse o meu caso. Fiquei de lado. E<br />
algo parece agora desmentir os mais<br />
admiráveis impulsos que me levaram<br />
até o extremo da generosidade.<br />
“Haverá então um abandono de<br />
Deus? Eu cometi algum pecado, uma<br />
infidelidade por onde Ele me deixou?<br />
E eu devo sofrer na Terra a penitência<br />
deste abandono, até que Deus tenha<br />
pena de mim e me leve para o<br />
Purgatório? Ou há uma saída para essa<br />
situação, e preciso crer nessa solução,<br />
manter o mesmo espírito aceso,<br />
a mesma certeza de que na hora ‘H’<br />
serei um homem ‘H’, para cumprir a<br />
minha vocação, ainda que eu deva esperar<br />
as maiores maravilhas?”<br />
Sim, essa saída existe. E cumpre<br />
que ele se convença desta verdade:<br />
“Aquilo que eu considerei uma palavra<br />
de Deus na minha alma, a qual me<br />
levou para toda espécie de bem, nessa<br />
palavra confiei e continuo a confiar,<br />
a super-confiar, e quanto mais os<br />
fatores existentes forem contrários,<br />
tanto mais é certo que, confiando, na<br />
hora ‘H’ eu serei o homem ‘H’.”<br />
Alguém poderia me perguntar:<br />
por que razão devemos confiar contra<br />
toda a confiança, com serenidade<br />
e tranqüilidade numa situação que<br />
parece perdida?<br />
Esta é uma questão fundamental<br />
em nossa vocação, pois circunstância<br />
análoga pode suceder a qualquer um<br />
de nós.<br />
A resposta se cifra no fato de que a<br />
Providência não pode nos pedir nem<br />
alimentar em nossa alma algo de ilógico.<br />
Se, ao longo de nossa vida espiritual,<br />
dos anos dedicados ao serviço<br />
de Nossa Senhora e da Igreja, mantivemos<br />
acesos aqueles desejos primeiros,<br />
o primeiro impulso, a primeira<br />
verdade, aquele primeiro ato de<br />
vontade e aquelas deliberações daí<br />
decorrentes, jamais desmentidas, jamais<br />
diminuídas, jamais derrotadas,<br />
tal atitude só pode ter sido por uma<br />
ação da graça sobre nós. Se a graça<br />
agiu, Deus nos chamou. Se Ele nos<br />
chamou, pode dispor de nossa entrega<br />
como for da sua maior glória.<br />
Ele não quis de mim o combate<br />
direto e final contra os seus adversários,<br />
mas eu obterei um jeito de lutar<br />
melhor do que se o fizesse em campo<br />
aberto. Eu ofereço a Deus o martírio<br />
da minha inutilidade. Torneime<br />
inútil: ó bem-aventurada inutilidade!<br />
Eu sofro com isto mais do que<br />
se fosse um missionário obrigado a<br />
atravessar o Tibet a pé, evangelizando<br />
os povos montanheses.<br />
Deus permitiu essa minha condição<br />
ineficaz, porque o quis. Se é vontade<br />
d’Ele, eu me submeto, pois é<br />
meu Pai e meu Deus.
T. Ring<br />
em nosso coração sentimentos virtuosos,<br />
pois essa é a maneira de considerar<br />
a situação em função dos dados<br />
da fé católica.<br />
Então, nunca nos deixemos abater<br />
pelo desânimo, pela revolta, jamais<br />
abandonemos o verdadeiro caminho,<br />
que é o da confiança.<br />
Para vós, o prêmio<br />
da vitória!<br />
“Nossa vida foi uma longa espera, andando pelos<br />
rochedos e abismos, confiando em Maria Santíssima,<br />
até o dia em que Ela nos diria: ‘Esperastes tudo e agora<br />
ganhareis a vitória!’”<br />
Mãe do Bom Conselho de Genazzano; na página<br />
anterior, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no início da década de 90<br />
Alguém ainda dirá: “Mas, então,<br />
por que Ele me concedeu esses desejos<br />
extraordinários e me fez progredir<br />
na vida espiritual? Para, no fim,<br />
não me proporcionar a realização de<br />
tudo o que esperei?”<br />
É precisamente isso. Em sua insondável<br />
sabedoria, Deus determinou<br />
que tudo aquilo para o qual me chamava,<br />
eu como que queimasse sobre<br />
uma pira em louvor a Ele. Dessa forma,<br />
o desejo de fazer um bem que eu<br />
não pude concretizar haveria de valer<br />
mais aos olhos de Deus do que esse<br />
mesmo bem que eu poderia ter feito.<br />
Portanto, a alma deve ter isso em<br />
vista e se conformar com os desígnios<br />
divinos. Nela, a virtude da confiança<br />
consiste em ter a certeza de que ascenderá<br />
por esse caminho, amparada<br />
pela misericórdia de Maria Santíssima.<br />
E todos nós temos de estar<br />
dispostos a aceitar essa condição. Se<br />
assim procedermos, despertaremos<br />
A trajetória de nossa própria vocação<br />
é um dos grandes exemplos<br />
dessa forma de confiança inteira.<br />
Com efeito, nossa vida foi uma<br />
longa espera com quase nada que a<br />
confirmasse e com quase tudo que a<br />
desmentisse. Tratava-se de esperar<br />
contra toda a esperança, crer apesar<br />
de quase todas as razões que levavam<br />
a não crer; andar pelos rochedos,<br />
pelos abismos, pelos precipícios,<br />
pelas grutas, até que raiasse o dia no<br />
qual Nossa Senhora nos diria:<br />
“Filhos meus diletos, filhos meus<br />
caríssimos. Vós esperastes muito,<br />
vós recebereis muito. O vosso bilhete<br />
de loteria é o de acreditar, o bilhete<br />
de confiar. Por vossa confiança,<br />
esperastes tudo e agora ganhareis<br />
a vitória. Saindo de uma gruta,<br />
de repente percebeis o mar magnífico<br />
a se desdobrar à vossa frente, formando<br />
um panorama esplêndido, o<br />
oceano azulado onde as gotas douradas<br />
do sol deitam reflexos magníficos.<br />
Ide até lá, tomai as embarcações<br />
nas quais podeis navegar em direção<br />
ao triunfo. As grutas, os morcegos,<br />
as cobras, toda a vegetação da derrota,<br />
da umidade, da pantanosidade,<br />
das trevas, ficaram para trás.<br />
“Para vós, agora, o destino é outro:<br />
vencei!”<br />
v<br />
1) Cfr. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” número 21.<br />
2) Cfr. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” número 83.<br />
31
O Santo do mês<br />
Santa Teresa do<br />
Menino Jesus e<br />
a pequena via<br />
Há dez anos <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> entregava sua alma a Deus, no<br />
tríduo da festa de Santa Teresinha (outrora celebrada<br />
no dia do falecimento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, 3 de outubro).<br />
Ele próprio fizera o oferecimento de si como vítima<br />
do amor misericordioso por aquelas almas e aqueles<br />
acontecimentos que esperara, baseado na leitura das obras<br />
da Santa de Lisieux (cfr. Editorial, página 4).<br />
Transcrevemos a seguir, um dentre os diversos<br />
comentários tecidos por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à edificante vida e<br />
missão de Santa Teresinha.<br />
Em fins do século XIX a Divina Providência suscitou<br />
Santa Teresinha do Menino Jesus para despertar<br />
uma nova forma de espiritualidade própria<br />
a conduzir grande número de almas a Nosso Senhor.<br />
Foi uma resposta de Deus às manobras feitas para encharcar<br />
de Revolução a mentalidade do homem ocidental.<br />
Essa réplica consistiu na famosa pequena via a qual,<br />
conforme afirmação profética da Santa, haveria de levar<br />
incontáveis almas ao Céu.<br />
Um caminho para os menos fortes<br />
A pequena via é própria aos espíritos mais débeis, sem<br />
meios naturais para realizar extraordinários atos de generosidade<br />
interior que marcaram tantos santos do passado<br />
os quais se flagelavam de maneira espantosa, faziam<br />
penitências terríveis, sofriam cruzes e provações pavorosas,<br />
porque eram assistidos pela graça e esta encontrava<br />
neles uma natureza capaz de grandes feitos.<br />
Quando Santa Teresinha surgiu, as pessoas já estavam<br />
profundamente infiltradas de Revolução e, portanto, sem<br />
a coragem e disposição para lances heróicos de virtude.<br />
Por desígnio da Providência, ela abriu às “pequenas almas”<br />
(como as chamava) o caminho para o Céu.<br />
Trata-se da via do reconhecimento da própria fraqueza<br />
e da ausência de coragem, de força de vontade para<br />
enfrentar imensos sacrifícios. E da convicção de que<br />
Nosso Senhor se compadece das almas fracas, diminutas<br />
em comparação com as do passado, e que assiste àquelas<br />
com bondade, afabilidade, abundância de graças que<br />
substituem nelas, vantajosamente, aquilo que a natureza<br />
não lhes proporcionou.<br />
32
Desde muito jovem Santa<br />
Teresinha sentiu o chamado<br />
à perfeição, e dedicaria seus<br />
breves anos de vida a ensinar<br />
às “pequenas almas” o<br />
caminho para o Céu<br />
S. Hollmann<br />
À direita, “Santa Teresinha solicita a<br />
autorização de seu pai para entrar<br />
no carmelo” - Buissonnets, Lisieux<br />
(França); acima, já carmelita professa<br />
33
O Santo do mês<br />
Quer dizer, para as pessoas dos séculos anteriores<br />
atingirem o pleno amor de Deus eram necessários — valendo-me<br />
de uma expressão inadequada — tantos quilowatts<br />
de sofrimentos. Porém, as do tempo de Santa Teresinha,<br />
e a fortiori as de nossa época, são incapazes de suportar<br />
tais graus de ascese. Então, a rogos de Maria Santíssima,<br />
a graça lhes concede vigor para carregar menores<br />
quantidades de cruzes. Porém, elas o fazem com tanta<br />
intensidade de amor que acabam suprindo a quota de<br />
sofrimentos pelos quais não suportariam passar. Pois aos<br />
olhos de Deus, o importante<br />
não é o quilowatt da<br />
dor, e sim a intensidade de<br />
amor com que é padecida.<br />
Dessa sorte, o que as<br />
grandes almas conquistavam<br />
apenas no fim de sua<br />
existência, depois de muitos<br />
tormentos, as da pequena<br />
via recebem gratuitamente<br />
logo no começo da<br />
vida espiritual, unindo-se a<br />
Nossa Senhora, à Santíssima<br />
Trindade, por uma particular<br />
bondade de Deus.<br />
Esta graça encurta o caminho<br />
e faz o amor nascer cedo,<br />
tão veemente que, com<br />
uma “quilowatagem” menor<br />
de sofrimento, brilha<br />
com uma luz fulgurante.<br />
Admirável exemplo<br />
de Santa Teresinha<br />
O modelo característico<br />
dessa via foi a própria Santa<br />
Teresinha do Menino<br />
Jesus, uma pequena alma<br />
típica, cônscia de sua incapacidade<br />
de suportar grandes<br />
sofrimentos. Entretanto,<br />
recebeu ela tal intensidade de amor a Deus que, desde<br />
menina, fidelíssima à sua vocação, fazia meditações<br />
e amava tanto as coisas do Céu que sobrepujava em virtude<br />
a um número incontável de pessoas.<br />
Levou uma existência de verdadeiro sofrimento no<br />
Carmelo de Lisieux, tendo sido acometida por uma provação<br />
muito freqüente no claustro, embora no seu caso<br />
se apresentasse mais profunda: a aridez contínua, devido<br />
à qual ela não sentia consolações na piedade, nem no<br />
imenso amor a Deus que possuía.<br />
S. Hollmann<br />
Nessa situação, própria a afligir qualquer um, ela sempre<br />
manteve confiança cega na Providência, e reafirmava<br />
a cada instante seu desejo de morrer como vítima do<br />
amor misericordioso de Nosso Senhor para com aqueles<br />
que seguem a pequena via.<br />
E, de fato, certa noite, quando já se achava deitada para<br />
dormir, Santa Teresinha sentiu o peito incomodado e<br />
expeliu uma golfada. Veio-lhe logo a idéia de que poderia<br />
ser sangue, indício da fatídica doença daquela época, a tuberculose.<br />
Essa enfermidade tornou-se comum em fins do<br />
século XIX, e a medicina<br />
não lograva combatê-la eficazmente,<br />
pois não descobrira<br />
ainda os medicamentos<br />
existentes hoje. Assim,<br />
grande era o número de vítimas<br />
dessa moléstia.<br />
Ora, Santa Teresinha<br />
experimentou tal alegria<br />
diante da hipótese de estar<br />
tuberculosa, que ofereceu<br />
a Deus o sacrifício de<br />
não examinar de imediato<br />
o lenço sobre o qual golfara<br />
durante a noite, e fazê-lo<br />
apenas na manhã seguinte,<br />
à luz do dia. Verificando<br />
depois ser mesmo<br />
sangue, transportada de júbilo,<br />
ela compreendeu que<br />
sua derradeira paixão começava.<br />
Manifestou-se desse modo<br />
a tuberculose, doença<br />
lenta, trágica sob vários aspectos,<br />
sobretudo naquele<br />
tempo, quando tantos<br />
dela sofriam e morriam.<br />
Era, pois, uma via comum,<br />
na qual a noite escura e o<br />
Relíquia de Santa Teresinha - Carmelo de Lisieux abandono se tornaram cada<br />
vez maiores.<br />
Santa Teresinha passou a ser provada com tentações<br />
contra a Fé (também assíduas na vida dos santos), e chegou<br />
a afirmar serem estas tão violentas que só acreditava<br />
porque queria crer, tanto as razões de fé se tinham obnubilado<br />
em seu espírito. Sentia que estava morrendo, e na<br />
Terra nada mais havia para ela. Porém, a morte vinha aos<br />
poucos, a conta-gotas, no meio do sofrimento e da dor.<br />
De seu leito, ouviu um dia a conversa entre duas freiras<br />
sobre seu fim próximo, e este comentário: “Quando falecer<br />
nossa Irmã Teresa do Menino Jesus, e for preciso es-<br />
34
S. Hollmann<br />
Vítima do amor misericordioso,<br />
Santa Teresinha ofereceu as dores<br />
comuns do dia-a-dia, bem como<br />
as grandes provações durante a<br />
doença, com intensa caridade,<br />
salvando assim um incontável<br />
número de almas<br />
Acima, Santa Teresinha no seu leito<br />
de dor; à direita, relíquia da Santa,<br />
conservada no Carmelo de Lisieux<br />
35
O Santo do mês<br />
crever uma circular às demais comunidades contando como<br />
transcorreu a vida dela no claustro, não sei realmente<br />
o que será narrado. Porque ela não fez nada. Ao longo dos<br />
anos passados aqui, realizou apenas coisas pequeninas...”<br />
Nossa Santa sentiu-se consolada ao ouvir essas palavras,<br />
pois de fato ela oferecera somente sacrifícios menores<br />
a Nosso Senhor, que os recebia por meio de Nossa<br />
Senhora. Entretanto, devido ao amor com que eram<br />
aceitos, o Redentor os acolhia com sumo agrado. Assim,<br />
ela salvava um incontável número de almas. Ela abria<br />
dessa forma a pequena via.<br />
Então, uma característica da espiritualidade de Santa<br />
Teresinha é esse modo de oferecer as dores comuns do<br />
dia-a-dia, as quais Deus pede habitualmente a todo mundo.<br />
Porém, trata-se de oferecê-las como o fez a vítima do<br />
amor misericordioso de Nosso Senhor.<br />
Uma inundação de graças...<br />
Santa Teresinha nunca se vira favorecida por graças místicas<br />
extraordinárias, como visões ou revelações. Até que<br />
no último momento de sua vida foi arrebatada num êxtase,<br />
ficou transportada de alegria, ergueu-se na cama e disse<br />
palavras de entusiasmo diante daquilo que via. Depois,<br />
reclinou-se e expirou. Seu corpo jazia nesta Terra, mas sua<br />
alma já ingressava na eterna bem-aventurança.<br />
Dentro da extrema pobreza carmelitana, seus funerais<br />
foram esplêndidos, porque um quintessenciado aroma<br />
de violeta, procedente não se sabe de onde, dominou<br />
literalmente o lugar em que o corpo dela se encontrava<br />
exposto à visitação pública. Como uma de suas primeiras<br />
intercessões junto à misericórdia divina, obteve a<br />
conversão da superiora de seu convento, que tanto a tinha<br />
amargurado.<br />
De lá para cá, Santa Teresinha inundou o mundo com<br />
graças, sendo considerada a mais solícita em atender os pedidos<br />
feitos, inclusive os relativos aos bens terrenos. Nesse<br />
sentido, célebre é o caso passado em um convento na cidade<br />
de Galípoli, na Turquia. Essa comunidade se achava<br />
em grandes apuros financeiros, sem nenhum dinheiro para<br />
pagar suas despesas. A superiora implorou então o auxílio<br />
de Santa Teresinha: no dia seguinte, ao abrir o cofre<br />
da casa, encontrou a quantia necessária e mais ainda...<br />
Obtendo-lhes donativos materiais, Santa Teresinha atrai<br />
as almas para que peçam bens espirituais. E ela as atende.<br />
Destinada a socorrer a Terra<br />
Tinha ela certeza de que seria canonizada, e nos últimos<br />
dias de sua vida recomendava conservassem fragmentos<br />
de suas unhas ou fios de suas sobrancelhas, dizendo:<br />
“Guardem-nos, porque após minha partida, haverá pessoas<br />
que ficarão felizes tendo isso”. Quer dizer, seriam distribuídos<br />
como relíquias após sua glorificação nos altares.<br />
Em diversas ocasiões pronunciou ela essa linda frase:<br />
“Passarei meu Céu fazendo bem sobre a Terra”. E também<br />
afirmou: “Só estarei inteiramente livre das coisas da<br />
Terra depois que o número dos eleitos estiver completo”.<br />
Se pensamos que esse total dos escolhidos só será atingido<br />
no fim do mundo, esse dito significa que ela intervirá em<br />
nosso favor enquanto houver homens atuando na Terra.<br />
“Passarei meu Céu fazendo o bem<br />
sobre a Terra”, costumava dizer Santa<br />
Teresinha, prometendo interceder pelos<br />
homens até o fim do mundo<br />
Abaixo, prece diante da urna funerária de Santa<br />
Teresinha, no Carmelo de Lisieux; à direita, “Milagres<br />
de Santa Teresinha”, vitral do mesmo convento<br />
36
Fotos: S. Hollmann<br />
Foi, portanto, uma Santa especialmente designada<br />
pela Providência para fazer grande bem à Terra. Muitos<br />
eleitos há cuja memória, por assim dizer, desaparece,<br />
perde-se, devido à versatilidade humana. Algum benefício<br />
eles fazem, porém menor se comparado com o realizado<br />
por uma Santa que vai para o Céu com o programa<br />
de continuar a agir intensamente nos acontecimentos<br />
terrenos, apenas repousando quando o número dos escolhidos<br />
estiver completo.<br />
Alegria com a felicidade dos<br />
habitantes do Céu<br />
Para Santa Teresinha, cada ano que passa é um período<br />
de ação, de vitória, de esplendor. Pois no dia de sua<br />
festa, a um título especial, comemora-se um aniversário<br />
que a torna intensamente feliz e aumenta sua glória<br />
no Céu. É verdade que esta, no Paraíso, não cresce após<br />
ter terminado o mundo. Mas, enquanto tal não suceder,<br />
é passível de aumento. Por exemplo, se um bem-aventurado<br />
escreve um livro, e 200 anos depois de sua morte<br />
essa obra é ocasião de instrumento para a salvação de<br />
alguém, a alegria e a glória dele se avolumam no Céu.<br />
Alguém poderia objetar: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sinto-me um pouco<br />
insultado pensando em meus sofrimentos aqui no mundo,<br />
nesse vale de lágrimas, e o senhor anuncia que Santa<br />
Teresinha, já muito feliz, recebeu uma felicidade a mais no<br />
Céu. Parece uma distribuição desigual dos dons divinos...”<br />
Ora, os planos de Deus não são igualitários, e, sobretudo,<br />
os relativos aos que estão no Céu e na Terra. Permanecemos<br />
aqui para sofrer e expiar, e os santos no Paraíso<br />
para desfrutar a verdadeira felicidade. Se padecermos,<br />
lutarmos e expiarmos bem, seremos também daqueles<br />
que irão para o Céu, felizes por toda a eternidade.<br />
Dessa maneira, há uma inteira proporção, não igualdade,<br />
entre a nossa desventura e a ventura de Santa Teresinha.<br />
Mais. Devemos nos rejubilar com todos que se acham<br />
no Paraíso, pois nos precederam nesta Terra com o sinal<br />
da Fé. Viveram antes de nós com o signo da Cruz. São<br />
nossos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, em Nossa<br />
Senhora, e nos cabe desejar a alegria deles: a felicidade<br />
de um irmão interessa a outro irmão.<br />
Por fim, cumpre considerarmos que, ao ver nosso contentamento<br />
pela felicidade dela, Santa Teresinha há de<br />
se tornar particularmente propensa a nos alcançar graças<br />
cada vez maiores. Do Céu, ela nos acompanha com afabilidade,<br />
com um sorriso todo dela, e dirige à Santíssima<br />
Virgem uma empenhada prece por nós: para que aumente<br />
nossa fé, nossa crença, nossa esperança e nosso gáudio<br />
com as glórias futuras que nos aguardam na venturosa<br />
eternidade, junto a ela e aos Sagrados Corações de Jesus<br />
e Maria.<br />
v<br />
37
Luzes da Civilização Cristã<br />
Esplendor áureo<br />
Fotos: E. Caballero<br />
Aspecto do Palácio do<br />
Vaticano no alvorecer<br />
(à direita, as janelas dos<br />
aposentos pontifícios)<br />
38
Transportemo-nos com a imaginação<br />
até as primeiras eras<br />
da humanidade. Indivíduos e<br />
comunidades vagueiam pela Terra,<br />
ainda despoluída, embelezada por<br />
uma natureza virginal, pouco tisnada<br />
e desfigurada pelos nossos pecados.<br />
Pensemos numa tribo em cujo<br />
seio já se nota, em gérmen, a grandeza<br />
e a bondade de um povo que<br />
deve surgir. Essa tribo cruza as vastidões<br />
dos territórios livres, conduzindo<br />
seus rebanhos, suas tendas, caminha<br />
enfrentando as intempéries<br />
e outros perigos, recolhendo‐se em<br />
grutas, galgando e descendo montanhas,<br />
rezando e cantando.<br />
De súbito, depara-se com novo panorama.<br />
Digamos, o mar, estendendo-se<br />
à frente daqueles homens numa<br />
paisagem maravilhosa. Eles se detêm<br />
e aguardam a chegada do chefe, do<br />
A cúpula da Basílica de São Pedro<br />
sob as primeiras refulgências do sol<br />
39
Luzes da Civilização Cristã<br />
patriarca. Este se aproxima: ancião robusto,<br />
barba e cabelos brancos, trajando<br />
túnica igualmente branca. Enquanto<br />
ele considera aquele cenário, seus<br />
seguidores procuram o reflexo do mar<br />
no olhar do patriarca... Até os animais<br />
cessam de mugir e de se agitar. Faz-se<br />
profundo silêncio. O sol está se pondo<br />
sobre o oceano e cobrindo as águas de<br />
jóias e cintilações.<br />
A vista daquele espetáculo cumula<br />
de encanto quase paradisíaco a alma<br />
de todos.<br />
O patriarca se levanta com dignidade,<br />
majestoso, imponente, sublime,<br />
e sem mais comentários entoa<br />
um improvisado hino de louvor a<br />
Deus. Cântico que os vários segmentos<br />
de sua tribo vão parafraseando<br />
e desdobrando em melodias e poesias<br />
mais simples, enquanto montam<br />
o acampamento e se dispõem ao repouso<br />
noturno.<br />
No dia seguinte, eles sairão da poesia<br />
e do sono para ingressar novamente<br />
na luta e no trabalho cotidianos, sob<br />
a venerável orientação do seu líder.<br />
Como é bela a condição de patriarca!<br />
Entretanto, essa beleza, tão alta e<br />
grandiosa, é insignificante se compa-<br />
Fotos: E. Caballero<br />
40
Na praça vazia, ergue-se o famoso obelisco,<br />
e as fontes com o ruído harmonioso de suas<br />
águas a jorrarem e caírem nas bacias...<br />
Amanhecer na Praça de São Pedro<br />
rada com o esplendor do patriarcado<br />
dos patriarcados: o papado.<br />
Pois a instituição pontifícia se desenvolve<br />
inteira numa atmosfera áurea,<br />
ela vive numa esfera do dourado.<br />
De dentro desse áureo, ele impulsiona<br />
e se debruça sobre todas as coisas,<br />
sejam as mais complexas, sejam<br />
as mais triviais e terrenas, sem deixar<br />
de ser ele, sem receio de se deteriorar,<br />
de quebrar-se ou de perder a<br />
sua própria lógica. Age e existe com<br />
uma aisance que lhe vem, não de uma<br />
virtude acima do comum, mas de um<br />
elevadíssimo grau de sobrenatural.<br />
É de uma perfeição e excelência que<br />
só têm paralelo com o próprio Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, seu Fundador.<br />
O Papa no seu dia-a-dia é o Divino<br />
Mestre andando na banalidade<br />
da Judéia daquele tempo, detendo-se<br />
junto a esse mendigo, àquele cego ou<br />
àquele leproso, conversando com um<br />
servo, dirigindo a palavra ao homem<br />
mais insignificante, afagando e ensinando<br />
às criancinhas...<br />
Imaginamos um patriarca. Imaginemos<br />
um Papa santo no Vaticano.<br />
41
Luzes da Civilização Cristã<br />
A noite vai cedendo lugar às incipientes<br />
luzes da aurora. Toda a Roma<br />
dorme. Os 400 sinos das suas<br />
igrejas ainda não começaram a tocar.<br />
O Sumo Pontífice desperta, consulta<br />
o relógio. Dentro em pouco o<br />
sol estará raiando e a cidade emergirá<br />
do repouso. Ele sabe que a dois<br />
passos de seus aposentos se acha a<br />
capela com o Santíssimo Sacramento.<br />
Nosso Senhor, que o constituiu<br />
seu pastor e representante, o espera<br />
para uma primeira adoração.<br />
O Papa se apronta e se dirige à capela,<br />
onde se preparará para o augusto<br />
sacrifício da Missa. Enquanto<br />
caminha em direção ao Senhor, renascem<br />
na sua alma as preocupações<br />
da véspera, os pesados fardos do governo<br />
da Igreja, assim como animam<br />
seu espírito a imagem de muitas almas<br />
boas que a Providência tem suscitado<br />
pelo mundo, nas quais se depositam<br />
as esperanças e a glória da<br />
Esposa Mística de Cristo.<br />
Antes de entrar no oratório, ele<br />
pára e deita a vista através de uma<br />
das grandes janelas do Vaticano. À<br />
frente, os primeiros fulgores de sol<br />
osculam a imponente cúpula da Basílica<br />
de São Pedro. Na praça vazia,<br />
ergue-se o famoso obelisco que sempre<br />
nos faz lembrar do lema dos cartuxos:<br />
“a cruz está de pé, enquanto o<br />
orbe todo gira”.<br />
Das duas grandes fontes que ladeiam<br />
o obelisco, eleva-se o ruído<br />
harmonioso das águas a jorrarem e<br />
caírem nas suas bacias. A luz do dia<br />
começa a se refletir mais intensamente<br />
na cúpula. E o Pontífice pensa:<br />
“A Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana! O Papado!” E o seu<br />
Anjo da Guarda lhe sopra na alma:<br />
“Tu es Petrus!”<br />
De um modo particularmente vivo<br />
e tocante, ele se sente identificado<br />
com seu papel, com sua missão.<br />
O Vigário de Cristo compreende<br />
que suas meditações atingiram o auge,<br />
e ele deve se entregar aos seus<br />
afazeres. O mundo inteiro o espera.<br />
Porém, não começará lendo relatórios<br />
nem assinando decretos ou<br />
tomando conhecimento dos jornais.<br />
Ele iniciará seu dia rezando, pedindo<br />
por todos os homens, pela Igreja<br />
universal.<br />
Entra na capela devagar, caminha<br />
até seu genuflexório e se ajoelha.<br />
A lamparina do Santíssimo corusca<br />
e tremeluz, lançando fulgores<br />
avermelhados sobre o tabernáculo.<br />
E de dentro do sacrário, o amor do<br />
Homem‐Deus pelo pontífice Santo<br />
se irradia plenamente. E ele começa<br />
a rezar, rezar, rezar...<br />
Como essa situação é mais esplendorosa<br />
do que a do patriarca<br />
pastor, no começo da humanidade,<br />
muito embora algo do patriarcado<br />
primeiro esteja contido nesse<br />
patriarcado espiritual e supremo. O<br />
Papado: como é belo, como é maravilhoso!<br />
v<br />
E. Caballero<br />
A manhã vai se espraindo<br />
sobre a Cidade Eterna<br />
42
D. Domingues<br />
A luz do dia se reflete mais intensamente na<br />
cúpula, e o Pontífice pensa: “A Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana! O Papado!”<br />
43
Razão de nossa serenidade<br />
S. Hollmann<br />
Mãe incomparavelmente perfeita<br />
entre todas as mães,<br />
Nossa Senhora nos conhece,<br />
ama e quer bem com discernimento,<br />
bondade, paciência e carinho de<br />
uma intensidade extraordinária. Alcança-nos<br />
tudo o que nos convém e lhe pedimos<br />
confiantemente. Está disposta a<br />
nos obter o perdão de seu Divino Filho,<br />
mesmo para nossas piores faltas; alcançanos<br />
as graças necessárias para nossa emenda,<br />
nossa salvação e, assim, brilharmos diante<br />
d’Ela por toda a eternidade. É a misericórdia<br />
dessa Mãe de perfeição incalculável.<br />
Por isso mesmo, é Ela a razão de nossa serenidade.<br />
Não temos motivo para estarmos perturbados<br />
nem agitados, posto termos uma Mãe<br />
celeste que se compadece de nós e nos acompanha<br />
a todo instante com sua insondável solicitude.<br />
Devemos permanecer sempre tranqüilos:<br />
nossa Mãe vela por nós.<br />
A Virgem e o<br />
Menino - Igreja de<br />
Auteuil, França