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Revista Dr Plinio 91

Outubro de 2012

Outubro de 2012

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A primeira década


São Francisco de<br />

Assis - Afresco<br />

no Mosteiro de<br />

Subiaco, Itália<br />

T. Ring<br />

Santo de uma personalidade tão rica e marcante, São Francisco de Assis parece vivo ainda hoje, resplendendo<br />

sua presença diante dos homens. Deixou-nos um dos maiores exemplos da verdadeira<br />

contemplação das perfeições divinas e do profundo amor a Deus. Ao considerar os peixes num simples<br />

regato, sabia colher desta cena uma aplicação concreta para a vida espiritual. Dirigia-se ao “irmão<br />

sol” e à “irmã lua”, tecendo orações que elevam a alma à mais subida meditação das excelências de Deus,<br />

como quem afirma: “Ó Senhor, este universo criado, do qual faço parte, é grande e belo demais; porém,<br />

há algo infinitamente superior, que sois Vós!”<br />

Daí a fabulosa densidade da religiosidade franciscana, que devemos imitar. Diria mais: sem esse espírito<br />

contemplativo, nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.


Sumário<br />

A primeira década<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no<br />

início da década<br />

de 1990<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6606-2409<br />

Editorial<br />

4 3 de outubro de 1995 – 3 de outubro de 2005<br />

Há 10 anos, o encontro com Deus<br />

Dona Lucilia<br />

6 Primeiros anos em<br />

Pirassununga<br />

A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

10 Conversa e amor ao próximo<br />

16 Calendário litúrgico<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

18 As escadas e a dignidade humana<br />

“R-CR” em perguntas e respostas<br />

22 “Revolução e Contra-Revolução”<br />

Gesta marial de um varão católico<br />

24 A vitória de um holocausto<br />

Preços da assinatura anual<br />

Outubro de 2005<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador.. . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor. . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso.. . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

O Santo do mês<br />

32 Santa Teresa do Menino Jesus<br />

e a pequena via<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

38 Esplendor áureo<br />

Última página<br />

44 Razão de nossa serenidade


Editorial<br />

3 de outubro de 1995 – 3 de outubro de 2005<br />

Há 10 anos, o encontro com Deus<br />

“<br />

É<br />

na esperança de podermos batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes<br />

em Nossa Senhora, que devemos atravessar nossos dias neste chão de exílio. E o homem que santificou<br />

sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade, poderá dizer as palavras mais magníficas<br />

que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: combati o bom combate, terminei<br />

a minha carreira, guardei a fé; resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz,<br />

me entregará naquele dia (2 Tim 4, 7-8).”<br />

Em diversas ocasiões ao longo de sua batalhadora e edificante existência, sulcada pelo sofrimento e o<br />

denodo apostólico, comprouve-se <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em recordar e aplicar ao católico essas palavras de São Paulo,<br />

tão consoladoras para quem procurou viver, autenticamente, conforme os preceitos e ensinamentos da fé<br />

cristã, defendendo-os com intrepidez a cada passo, face à maré montante do relativismo e às “modas” revolucionárias<br />

(ideológicas e tendenciais). Contra estas lutara desde o tempo em que irrompia o artificial<br />

frenesi de Hollywood e a Primeira Guerra destruía nos alicerces da Belle Époque, um status quo precário<br />

onde as aparências de um cristianismo oco de princípios ainda rendiam um fraco culto externo à virtude.<br />

As palavras do Apóstolo dos Gentios, bonum certamen certavi..., <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> as poderia reafirmar — referindo-se<br />

a si próprio — naquele 3 de outubro de 1995 quando, por volta das 18h20, rendeu seu espírito<br />

ao Criador, confortado pelos Sacramentos e indulgências da Santa Igreja, à serviço da qual combateu seu<br />

bom combate.<br />

Sim, era o sereno e piedoso termo de 87 anos transcorridos à luz da graça recebida no Batismo, sob o<br />

influxo de uma constante devoção aos Corações de Jesus e Maria, à Sagrada Eucaristia e ao Papa, Vigário<br />

de Cristo na Terra.<br />

Por mais de seis décadas, desde seu ingresso nas Congregações Marianas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dedicaria todo o vigor<br />

de sua inteligência, todo o empenho de sua vontade, todas as suas disposições físicas e morais para fazer<br />

triunfar, nos mais variados campos de ação, os direitos de Deus e da Igreja Católica, bem como a harmonia<br />

da sociedade temporal.<br />

Formou almas, discípulos, constituiu uma sólida escola espiritual, fundou uma obra apostólica cujos<br />

frutos não só perduram até hoje, como não fazem senão se multiplicar no Brasil e em muitos outros países,<br />

com a força renovada que lhe vem do Espírito Santo e do carisma do fundador. Lutou sem medir<br />

esforços, sacrificou-se sem se impor limites, determinado a seguir o que ele mesmo escreveu:<br />

“Para a Igreja, quer Deus toda a minha vida, quer organização, sagacidade, intrepidez; quer a inocência da<br />

pomba mas a astúcia da serpente, a doçura da ovelha mas a cólera irresistível e avassaladora do leão. A Deus<br />

devemos dar tudo, absolutamente tudo, e depois de ter dado tudo ainda devemos dar nossa própria vida” (cfr.<br />

Via Sacra, 9ª estação).<br />

E, em verdade, cumpriu à risca essa heróica disposição. Deu de si tudo, depositando sua existência nas<br />

misericordiosas mãos de Maria Santíssima, para que dela se servisse de acordo com seus superiores desígnios.<br />

Dessa sorte, naquele anoitecer de outubro, prestes a partir para a eternidade, poderia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se<br />

lembrar também destas suas outras tocantes palavras:<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.


S. Miyazaki<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no início dos anos 90 — “Sempre nutri a vontade de desejar o meu holocausto por completo”<br />

“A grande imolação de nossa vida espiritual é o querermos deixar de ser o que somos e nos transformarmos<br />

inteiramente naquilo que a Igreja deseja que sejamos. O resto — doenças, provações, etc. — são meios para<br />

nos fazermos generosos a fim de praticar esse holocausto.<br />

“Santa Teresinha, por exemplo, a santa da ‘pequena via’, morreu como vítima do amor misericordioso, tendo<br />

sofrido muito com a tuberculose que lhe tirou a vida. Porém, o melhor do sacrifício dela não é o fato de ter<br />

morrido, e sim o ter querido morrer e, portanto, desejado em toda a medida o que se abateu sobre ela.<br />

“O centro do holocausto de um homem é a integridade com que ele o almeja e realiza.<br />

“Pois bem, quando jovem, lendo a biografia de Santa Teresinha, pareceu-me seria muito mais útil à causa<br />

católica se me oferecesse como vítima expiatória, tal qual ela o fez. E eu sempre nutri a vontade de desejar<br />

por completo esse meu holocausto. Considerei sempre que ter o meu espírito preparado por meio da coerência<br />

doutrinária, da previsão, para ser um todo, uma fortaleza no meio das trevas ou um navio no meio da tempestade,<br />

que isto era a essência da minha imolação.<br />

“Sem deixar, entretanto, de me voltar a Nossa Senhora, conformando-me aos planos d’Ela e rogando sua<br />

proteção: ‘Minha Mãe, quereis que eu sofra? Se quiserdes, preparai minha alma. Dai-me forças para esse sofrimento,<br />

tornai-me capaz de carregar a cruz de vosso Divino Filho’.<br />

“E assim, em poucos anos, pelo efeito desse sacrifício — misericordiosamente aceito por Nossa Senhora —<br />

a Contra-Revolução conheceria a vitória. Eu estaria enterrado no Cemitério da Consolação, mas sobre a minha<br />

sepultura, pelo favor da Santíssima Virgem, teria brotado a árvore do Reino de Maria e de uma nova Civilização<br />

Cristã.”


Dona Lucilia<br />

Primeiros anos em<br />

Pirassununga<br />

Foi em 1873 que <strong>Dr</strong>. Antônio<br />

se estabeleceu com a família<br />

em Pirassununga, a fim de ali<br />

exercer a advocacia. Nomeado promotor<br />

da comarca de Belém do Descalvado,<br />

que então incluía Pirassununga,<br />

habilitou-se depois ao cargo<br />

de juiz de direito, mas preferiu não<br />

seguir carreira, talvez por questões<br />

de política local. Outro motivo que<br />

o atraiu àquela região foram as terras<br />

que Dª Gabriela, sua esposa, herdara<br />

do pai, situadas em Rio Claro,<br />

São Paulo.<br />

Um Far West brasileiro...<br />

Cidade tão próspera e dinâmica em<br />

nossos dias, a Pirassununga daqueles<br />

tempos idos era um pólo de colonização<br />

cuja exploração metódica datava<br />

de há pouco, na qual a civilização penetrava<br />

apenas lentamente. Só alguns<br />

anos depois do nascimento de Dª Lucilia,<br />

a localidade passou a ser servida<br />

por um ramal de estrada de ferro. As<br />

características daquele sertão eram as<br />

de um Far West brasileiro, onde o policiamento<br />

ia rareando à medida que<br />

se adensava a mata virgem.<br />

Na serena Pirassununga de outrora, a casa de Dona Lucilia (à direita, na esquina do poste)


Décadas mais tarde, ao contar as<br />

recordações de infância, Dª Lucilia<br />

ainda deixará transparecer a impressão<br />

que lhe causava o grande contraste<br />

entre a atmosfera da sociedade<br />

paulista e aquele ambiente tão<br />

primitivo e campestre, que ia disputando<br />

espaço à mata tropical, quase<br />

tão inculta como no período em que<br />

o Padre Anchieta percorria as vastidões<br />

do Brasil.<br />

As casas, por exemplo, eram desprovidas<br />

de assoalho, sendo o chão<br />

simplesmente de terra batida. Mesmo<br />

as residências das notabilidades<br />

locais não escapavam à regra. A primeira<br />

moradia a ter vidraças nas janelas<br />

foi a dos Ribeiro dos Santos,<br />

considerada, por isso mesmo, de luxo,<br />

já que as outras possuíam apenas<br />

folhas de pau.<br />

Elevação e beleza no<br />

ambiente campestre<br />

Naquele meio agreste e monótono<br />

do interior, o nobre e jovem casal<br />

Ribeiro dos Santos estabeleceu-se<br />

com coragem, decidido a prosperar.<br />

A presença de Dª Gabriela introduzia<br />

uma nota de elevação e de beleza<br />

no ambiente de simplicidade campestre<br />

da pequena cidade.<br />

<strong>Dr</strong>. Antônio tornou-se desde logo<br />

benquisto na região. Pessoas de todas<br />

as classes procuravam-no, atraídas<br />

pelo brilho de sua personalidade<br />

e pela sua arte de conversar. Era<br />

o que invariavelmente acontecia, por<br />

exemplo, quando ele viajava naqueles<br />

trens de outrora.<br />

Estes paravam em cada estaçãozinha,<br />

demorando-se nelas certo<br />

tempo. Os homens desciam para<br />

tomar um cafezinho, e as notabilidades<br />

do lugar estavam muitas<br />

vezes presentes, acompanhadas de<br />

seus familiares, na expectativa de<br />

encontrar alguém importante que<br />

pudesse contar as últimas novidades<br />

da política ou trazer interessantes<br />

notícias.<br />

O jovem casal Gabriela e Antônio Ribeiro dos Santos. O pai de<br />

Dona Lucilia logo se tornou benquisto na região, por seus préstimos<br />

advocatícios e, sobretudo, pelo brilho de sua personalidade<br />

Pois bem, quando <strong>Dr</strong>. Antônio<br />

chegava a algum lugar, formava-se<br />

um verdadeiro enxame de gente a<br />

seu redor, desejando desfrutar de<br />

sua companhia. Situação tão favorável<br />

adquiria, aos olhos de sua filha<br />

Lucilia, contornos luminosos.<br />

Sossego e monotonia<br />

da vida do interior<br />

Havia um aspecto da pacata Pirassununga<br />

que agradava deveras à jovem<br />

Lucilia: era precisamente a calma.<br />

Ela nunca tomou gosto pela agi-


Dona Lucilia<br />

Dona Lucilia conservaria sempre agradável<br />

lembrança de seus anos vividos no interior,<br />

onde a pacatez, a regularidade e a serenidade<br />

da atmosfera que a rodeava se mostravam tão<br />

consoantes com sua alma ordenada<br />

Acima, o Fórum de Pirassununga, onde <strong>Dr</strong>.<br />

Antônio advogava; à esquerda, a velha Matriz da<br />

cidade; na página seguinte, a menina Lucilia<br />

tação da vida moderna, e várias vezes<br />

se referia de forma comprazida<br />

à tranqüilidade do interior. Elogiava<br />

a regularidade da vida, bem como a<br />

dignidade das pessoas dentro do sossego,<br />

ao comentar fatos locais que revelavam<br />

a íntima consonância de sua<br />

ordenada alma com a natural serenidade<br />

da atmosfera que a rodeava.<br />

Mas, ela sentia também, e muito,<br />

o peso da monotonia daquelas longínquas<br />

paragens. Referia-se ao vazio<br />

da cidadezinha, especialmente<br />

em alguns intermináveis domingos,<br />

durante os quais até os ruídos da vida<br />

quotidiana cessavam pelo fato de<br />

ninguém sair de casa. Quando um<br />

cachorro ladrava, o som do seu latido<br />

percorria os espaços vazios sem<br />

encontrar nenhum anteparo, nenhum<br />

obstáculo. Toda a cidade, de<br />

um extremo ao outro, ficava “transparente”<br />

a qualquer som e apenas<br />

pulsava de vida vegetativa, como se<br />

nada mais ali houvesse...<br />

Retidão admirativa<br />

de uma alma justa<br />

O sossego da pequena Pirassununga,<br />

a que nos referimos, muito<br />

ajudava a jovem Lucilia a observar<br />

com atenção e enlevar-se pelos mais


velhos. Sua capacidade de admirar<br />

os predicados alheios tinha origem<br />

na virginalidade de alma, que<br />

ela soube manter intacta. Com efeito,<br />

Dª Lucilia sempre se conservará<br />

fiel, até seus últimos dias, àquele<br />

notável senso admirativo, àquele<br />

modo primevo e rico de considerar<br />

os fatos e as criaturas com que a<br />

inocência envolve a infância de todos<br />

os cristãos.<br />

Quando ainda jovem, ao contemplar<br />

as qualidades de alma dos<br />

que compunham seu ambiente, com<br />

instintiva naturalidade as mitificava<br />

tanto que chegava a afastar suas<br />

sempre bem-intencionadas vistas<br />

de tudo o que neles pudesse não ser<br />

virtude. Os senões que encontrava<br />

na conduta das pessoas, reputava-os<br />

exceção. Era como se num belo<br />

lenço de seda houvesse pequenos<br />

furos. Porém, o resto era seda muito<br />

boa...<br />

Esse modo de considerar a realidade,<br />

pelo qual a todos situava numa<br />

clave de seriedade, distinção e<br />

grandeza estava muito presente em<br />

todas as narrações dela, procurando<br />

transmitir uma idéia arquetipizada<br />

da vida e do convívio entre os<br />

homens.<br />

Evidentemente, foi assim que o<br />

sereno olhar de Lucilia se voltou<br />

para seus pais, verdadeiras e luminosas<br />

imagens de Deus, naquele seu<br />

primeiro despertar para a vida. Que<br />

influência tiveram eles em sua formação?<br />

A resposta não é difícil, para<br />

quem teve a ventura de ouvi-la reviver<br />

— naquela voz clara, melodiosa<br />

e um tanto solene, que constituía<br />

um dos encantos de sua companhia<br />

— fatos ocorridos com seus queridos<br />

progenitores, dos quais tomaremos<br />

conhecimento em próximos artigos.<br />

(Transcrito, com adaptações,<br />

da obra “Dona Lucilia”, de<br />

João S. Clá Dias)


A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Conversa e amor<br />

ao próximo<br />

Tema inesgotável nas exposições de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, a arte da conversa,<br />

a causerie informal, era para ele importante forma de transmissão<br />

de conhecimentos, baseado num intercâmbio rico e espiritualizado<br />

no qual se procura antes fazer bem ao próximo do que transmitirlhe<br />

ensinamentos “livrescos” e cartesianos. Vejamos como ele<br />

desenvolve essa matéria que lhe era tão cara.<br />

Arespeito do tema “conversa”,<br />

como de tantos outros,<br />

fui favorecido pela influência<br />

de mamãe, pois ela era, fundamentalmente,<br />

uma causeuse 1 .<br />

Mais que palavras,<br />

a conversa por<br />

olhares e gestos<br />

Um de seus maiores prazeres na<br />

vida era conversar. Fazia-o bem, longamente,<br />

sem pressa, com um charme<br />

envolvente, o qual não é fácil definir,<br />

pois tinha mais relação com seus<br />

pensamentos do que com seus ditos.<br />

Tratava-se do arrière fond 2 implícito<br />

de sua conversação. Ela não tinha<br />

o hábito — aliás, inexistente em sua<br />

época — de espremer seu raciocínio<br />

até sair o último suco por meio da explicitação.<br />

O espremer não fica bem<br />

a uma dona de casa: refeições, horários,<br />

tudo contado e corrido aguça<br />

nos convidados dela a vontade de se<br />

retirarem. Creio ser mais interessante<br />

o calmo estilo antigo.<br />

E na alma de mamãe havia inúmeros<br />

aspectos pelos quais ela conversava<br />

muito mais pelo olhar, timbre de<br />

voz, gestos das mãos, do que propriamente<br />

pelo sentido das palavras.<br />

“Tinha a impressão<br />

de que as estrelas<br />

dialogavam comigo<br />

ou me olhavam<br />

em silêncio”<br />

Um paralelo com o<br />

contemplar as estrelas<br />

A esse propósito, tomo a liberdade<br />

de fazer uma comparação que,<br />

nos lábios de um filho, pode parecer<br />

excessiva, entretanto é a única que<br />

encontro para exprimir minha idéia.<br />

Quando criança, às vezes eu ficava<br />

sozinho, à noite, contemplando o<br />

céu estrelado. Como muitos, tinha<br />

a sensação de que a abóbada celeste<br />

não era inteiramente fixa, mas sim<br />

como um grande toldo circular, dilatando-se<br />

ou se encolhendo de modo<br />

suave. E que esse movimento comunicava<br />

um certo impulso de fole<br />

àqueles astros, os quais por isso cintilavam.<br />

Tomava-me a impressão de<br />

que as estrelas de certo modo dialogavam<br />

comigo, e, quando mudavam<br />

de posição, olhavam-me em silêncio.<br />

Eu sabia que isso não tinha fundamento,<br />

e dizia a mim mesmo: “É verdade,<br />

mas não pode ser mera ilusão,<br />

deve haver algo de real nisso”. Somente<br />

depois de homem feito consegui<br />

explicitar o que eu sentia. Deus<br />

criou o firmamento de maneira a<br />

causar essa impressão nas pessoas. E<br />

10


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante<br />

uma conversa no<br />

“Salão Azul” de<br />

sua residência<br />

11


A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

embora não seja a autora desse movimento,<br />

a abóbada celeste o é dessa<br />

sensação. Esta tem como origem<br />

remota e suprema a Deus Nosso Senhor,<br />

Criador do céu.<br />

Esse pensamento me parece elevado<br />

e belo, porque exprime o valor<br />

metafísico dessa sensação que nos<br />

colhe ao contemplarmos uma noite<br />

estrelada.<br />

Ora, de modo análogo ao que<br />

ocorria comigo ao considerar o firmamento,<br />

quando conversava com mamãe,<br />

muitas vezes tinha a impressão<br />

de estar dialogando com duas estrelas<br />

(os seus olhos), as quais pulsavam e<br />

fitavam-me, dizendo coisas sem relação<br />

imediata com os assuntos por nós<br />

As pessoas que<br />

sabiam conversar<br />

possuíam uma<br />

imensa vantagem<br />

na vida<br />

tratados. E eu sentia que lhe respondia<br />

também dessa forma, e assim con-<br />

versamos durante quase 60 anos, até<br />

a morte dela. Esse foi o contributo<br />

que ela me proporcionou para compreender<br />

a riqueza da conversa.<br />

“Não há arte de viver<br />

sem a arte de conversar”<br />

E ainda menino, através das revistas<br />

da Université des Annales, bem<br />

como de livros de história franceses,<br />

etc., não custei a perceber essa realidade:<br />

as pessoas que sabiam conversar<br />

possuíam uma imensa vantagem<br />

na vida. Não há arte de viver sem a<br />

arte de conversar. Pois normalmente<br />

12


“Quando dialogava com mamãe, parecia-me conversar com duas estrelas<br />

(seus olhos), que pulsavam e me fitavam, dizendo-me coisas sem relação direta<br />

com o assunto tratado por nós...”<br />

Na página anterior, Dona Lucilia em 1<strong>91</strong>2; acima, o menino <strong>Plinio</strong>, aos 8 anos<br />

os homens não vivem sozinhos, mas<br />

em sociedade, devendo, portanto,<br />

trocar idéias e comentários. E o efeito<br />

que se produz nos outros depende<br />

em grande parte do que se diz.<br />

Imaginemos uma pessoa contando<br />

a um conhecido o passeio que<br />

fez. Se ela seguir as normas da conversa,<br />

conforme expusemos, será ouvida<br />

com atenção e interesse. Porém,<br />

se narrar à maneira de um professor<br />

de química, que explica a reação<br />

produzida pela mistura de H 2<br />

O<br />

com outra substância, fará um relatório<br />

extenuante e não uma autêntica<br />

descrição. Por mais que tal relato<br />

seja profundo, é inaceitável como<br />

elemento de convívio humano.<br />

Certas revistas geográficas apresentam<br />

reportagens escritas por pessoas<br />

que passeiam sozinhas na natureza<br />

e contam o que vêem, sem nenhuma<br />

pulsação ou calor de alma.<br />

Ela fala, por exemplo, das borboletas<br />

do Ceilão ou das lagostas do Recife<br />

com a mesma neutralidade de<br />

um guia.<br />

13


A sociedade, analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Um intercâmbio de<br />

duas personalidades<br />

A conversa<br />

será tanto mais<br />

interessante quanto<br />

mais nela sobressair<br />

o indivíduo e<br />

não o tema<br />

Ora, a conversa não pode ser assim.<br />

Sendo um meio insubstituível<br />

para viver, pensar, a conversa não é<br />

uma mera crônica, um simples relatório.<br />

Sobretudo, não é uma aula.<br />

Entretanto, a causerie deve ter algo<br />

de crônica, de relatório e de aula.<br />

É, aliás, o que procuro fazer nesta<br />

exposição. Ela tem um aspecto docente,<br />

pois estou continuamente ensinando<br />

coisas. Mas difere de uma<br />

aula clássica, a qual pode ser comparada<br />

a uma avenida em cujo ponto<br />

terminal há um monolito chamado<br />

ensinamento. Enquanto que minha<br />

explanação é como um passeio<br />

por caminhos não retilíneos<br />

onde, de forma inesperada, encontra-se<br />

uma lição.<br />

Nela há também algo de relatório,<br />

quando faço um inventário<br />

dos modos de se conversar.<br />

Além disso, em minha exposição<br />

existe um pouco de conversa. Embora<br />

nesse momento esteja agindo especificamente<br />

como um professor<br />

que fez a introdução e focalizou o tema,<br />

sem perceberem, meus ouvintes<br />

estão conversando comigo e assistindo<br />

uma aula. Isso é propriamente<br />

causerie...<br />

E a conversa, o que vem a ser?<br />

A palavra “intercâmbio”, com freqüência<br />

empregada em assuntos comerciais,<br />

é inadequada para exprimir<br />

coisas do espírito. Contudo, é o<br />

vocábulo que me ocorre para explicar<br />

esse tema.<br />

A conversa é um intercâmbio de<br />

duas personalidades que falam sobre<br />

matéria atraente e que interessa<br />

a ambas. Será ainda mais autêntica,<br />

se o meu interlocutor puser certa nota<br />

pessoal em suas palavras, fazendo<br />

com que eu goste de ouvi-lo. Isso é<br />

um elemento fundamental da conversa.<br />

Há pessoas muito inteligentes<br />

e instruídas, cuja prosa é enfadonha;<br />

e outras de pouca capacidade<br />

14


Pelo olhar, o tom de voz, os gestos, além da troca de impressões e informações,<br />

uma boa conversa tende a alcançar sua plenitude: alma que vibra no<br />

contato com outra alma<br />

Na página da esquerda, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante conversa em sua residência;<br />

acima, “dois dedos de prosa” entre velhos amigos...<br />

intelectual e instrução, que conversam<br />

bem, pois sente-se em suas palavras,<br />

não principalmente o tema,<br />

mas o indivíduo.<br />

Depois de tê-la definido, aponto<br />

no que consiste a plenitude da conversa:<br />

não é apenas uma troca de informações<br />

nem de impressões, mas<br />

também de cognições mútuas dos interlocutores,<br />

cujas personalidades se<br />

manifestam pelo olhar, tom de voz,<br />

gestos, etc.<br />

Na boa conversa, a<br />

prática da caridade cristã<br />

Pode-se dizer que há na essência<br />

da arte de conversar um preceito<br />

da moral católica: o amor ao próximo.<br />

Para conversar bem, o indivíduo<br />

precisa ter uma atitude de alma<br />

— portanto, toda ela interna — pela<br />

qual se torne interessante para os<br />

outros. Do contrário, ele nunca será<br />

um bom conviva.<br />

Qual é essa atitude de alma?<br />

Descrevê-la-ei de modo sumário.<br />

Quando uma pessoa considera outra<br />

e sente afinidade, homogeneidade,<br />

ou heterogeneidade harmônica, ela<br />

se regozija. Notando, ao invés, dissonância,<br />

desagrada-se. Ou seja, ela vibra<br />

em contato com outra alma. Esse<br />

é o ponto de partida do verdadeiro<br />

causeur. Ser indiferente às almas,<br />

não senti-las, percebê-las, nem vibrar<br />

com elas, torna a conversa impossível.<br />

Por exemplo, estou conversando<br />

com meu auditório e percebo que todos,<br />

ou a maioria, nutrem interesse<br />

em conhecer minha alma, como ela<br />

se mostra ao longo dessa exposição,<br />

etc. E notam que eu, por meu lado,<br />

cultivo também a vontade de conhecê-los,<br />

de interpretar o olhar de cada<br />

um com interesse, como algo que<br />

a todo momento tem uma novidade<br />

a me dizer...<br />

E assim nos beneficiamos, reciprocamente,<br />

desse tesouro que é a<br />

arte da conversa.<br />

v<br />

1) Feminino de causeur, aquele que possui<br />

a arte da conversa.<br />

2) Âmago.<br />

15


Calendário litúrgico<br />

1. Santa Teresinha do Menino<br />

Jesus e da Sagrada Face, Virgem e<br />

Doutora da Igreja, + 1897. Ver artigo<br />

na página 32.<br />

2. 27º Domingo do Tempo Comum.<br />

Santos Anjos da Guarda.<br />

3. São Veríssimo, Máxima e Júlia,<br />

Mártires de Lisboa, + 303<br />

Bem-aventurados André de Soveral,<br />

Ambrósio Francisco, Presbíteros; e<br />

28 companheiros leigos — Protomártires<br />

do Brasil, + 1645. Foram massacrados<br />

por calvinistas holandeses, em<br />

Uruaçu, no Rio Grande do Norte, durante<br />

a celebração de uma Missa.<br />

4. São Francisco de Assis, Religioso,<br />

+ 1226. (Ver “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” nº 79)<br />

5. São Benedito, o Negro , Religioso,<br />

+ 1589. Eremita no Monte<br />

16<br />

San Pellegrino, na Sicília (Itália), e<br />

depois irmão leigo franciscano.<br />

Santa Faustina Kowalska, Religiosa,<br />

+ 1938.<br />

6. São Bruno, Presbítero e Religioso,<br />

+ 1101. Após uma renomada<br />

carreira como mestre de Teologia<br />

na Universidade de Reims, França,<br />

atendeu ao apelo para a vida eremítica,<br />

refugiando-se nas solidões dos Alpes.<br />

Fundou a Ordem dos Cartuxos.<br />

7. Nossa Senhora do Rosário.<br />

Celebração instituída pelo Papa<br />

São Pio V, em reconhecimento pela<br />

decisiva intercessão da Santíssima<br />

Virgem que favoreceu a vitória<br />

dos católicos na Batalha de Lepanto,<br />

no ano de 1571.<br />

8. Beatos João Adams, Roberto<br />

Dibdale e João Lowe, Presbíteros<br />

e Mártires, + 1586. Padeceram<br />

o martírio sob a perseguição de Isabel<br />

I, na Inglaterra.<br />

9. 28º Domingo do Tempo Comum.<br />

São João Leonardo, Presbítero,<br />

+ 1609. Fundador da<br />

congregação da Doutrina Cristã<br />

e da Ordem dos Clérigos<br />

Regulares da Mãe de Deus,<br />

assim como do Colégio para a<br />

Propagação da Fé, destinado à<br />

formação de sacerdotes.<br />

10. São Paulino de York,<br />

Bispo e Monge, + 644. Discípulo<br />

de São Gregório Magno,<br />

que o enviou a pregar o Evangelho<br />

ao povo anglo.<br />

Anjo da Guarda - Catedral<br />

de Notre-Dame de Paris<br />

11. São Meinardo, Bispo, +<br />

1196. Depois de levar vida monacal<br />

na Alemanha, já em avançada<br />

idade partiu como missionário<br />

junto aos letões. Tornou-se o<br />

primeiro Bispo da Letônia.<br />

12. Nossa Senhora da Conceição<br />

Aparecida, Rainha e Padroeira do<br />

Brasil.<br />

13. Santo Eduardo III, Rei da Inglaterra,<br />

1003-1066.<br />

14. São Calisto I, Papa e Mártir,<br />

+ 222. Era escravo nas minas da<br />

Sardenha, de onde foi libertado pelo<br />

Papa Vitor. Empenhou-se na defesa<br />

da fé trinitária e na difusão da<br />

reta doutrina católica.<br />

15. Santa Teresa de Jesus, Virgem<br />

e Doutora da Igreja, + 1582.<br />

Empreendeu a reforma do Carmelo,<br />

fundando diversos conventos em<br />

toda a Espanha.<br />

16. 29º Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Margarida Maria Alacoque,<br />

Virgem, + 1690. (Ver “<strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>” número 79)<br />

17. Santo Inácio de Antioquia,<br />

Bispo e Mártir, + 107. Terceiro Bispo<br />

de Antioquia depois de São Pedro<br />

e Santo Evódio. Sofreu o martírio<br />

em Roma, sob Trajano.<br />

18. São Lucas, Evangelista, séc.<br />

I. Autor do terceiro Evangelho e<br />

também dos Atos dos Apóstolos,<br />

acompanhou São Paulo desde a sua<br />

segunda viagem.<br />

19. São João de Brébeuf, São<br />

Isaac Jogues, Presbíteros, e companheiros<br />

— Mártires, + 1642-1649.<br />

Missionários jesuítas, martirizados<br />

no Canadá.<br />

São Paulo da Cruz, Presbítero,<br />

+ 1775. Italiano, fundador dos<br />

Clérigos Descalços da Santa Cruz e


* Outubro *<br />

“Prisão e martírio de São Crispim e São Crispiniano” - Igreja de São Sulpício, Fougères (França)<br />

Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

os “Passionistas”.<br />

20. São Cornélio, o Centurião<br />

séc. I. Batizado por São Pedro em<br />

Cesaréia da Palestina.<br />

21. Santo Hilarião de Gaza, Eremita,<br />

séc. IV. Viveu no deserto, e é<br />

considerado o continuador de Santo<br />

Antônio, Abade. Faleceu na Ilha<br />

de Chipre.<br />

22. São Donato de Fiesole, Bispo,<br />

+ 874. De origem irlandesa, foi eleito<br />

Bispo de Fiesole, Itália, quando retornava<br />

de uma peregrinação a Roma.<br />

23. 30º Domingo do Tempo Comum.<br />

São João de Capistrano, Presbítero,<br />

+ 1456. Fervoroso discípulo<br />

de São Francisco de Assis, suas<br />

virtudes e invulgar sabedoria o levaram<br />

a ser designado pelo Sumo<br />

Pontífice para importantes e delicadas<br />

missões em favor da causa<br />

católica, na Europa e na Terra<br />

Santa. Faleceu na Áustria, em<br />

1456.<br />

24. Santo Antônio Maria Claret,<br />

Bispo, séc. XIX. (Ver “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”<br />

número 79)<br />

25. Santos Crispim e Crispiniano,<br />

Séc. III.<br />

26. Santo Evaristo, Papa e Mártir,<br />

sécs. I-II. Foi o quarto sucessor<br />

de São Pedro.<br />

Santo Albino, Bispo, + 786. Beneditino,<br />

companheiro de São Bonifácio<br />

na evangelização da Alemanha.<br />

27. São Gaudioso, Bispo, + 455.<br />

Bispo de Abitina, no norte da África.<br />

Foi perseguido e exilado por<br />

Genserico, rei ariano dos Vândalos.<br />

Faleceu em Nápoles, Itália.<br />

28. São Simão e São Judas Tadeu,<br />

Apóstolos, séc. I. (Ver “<strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>” número 79)<br />

29. São Narcísio de Jerusalém,<br />

Bispo, séc. III.<br />

30. 31º Domingo do Tempo Comum.<br />

Santos Cláudio, Lupércio e Vitório,<br />

Mártires, séc. IV. Perseguidos<br />

sob Diocleciano.<br />

31. Santo Afonso Rodrigues,<br />

+ 1617. (Ver “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” número<br />

79)<br />

17


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

As escadas<br />

e a<br />

dignidade humana<br />

Com aquela penetração de olhar que lhe era característica,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> costumava contemplar tanto as coisas elevadas<br />

quanto as corriqueiras. Quem teria pensado em analisar o<br />

que as escadas significam ou ocultam, como se as sobe com<br />

elegância ou deselegância, e como elas devem<br />

respeitar a psicologia do homem?<br />

Acompanhemos a primeira parte de um saboroso comentário.<br />

Ohomem contemporâneo, ao contrário do antigo,<br />

quase não tem idéia do verdadeiro significado<br />

de uma escada. Esta pode ser assim definida:<br />

uma série de degraus que nos permitem passar de um andar<br />

para outro, por via não mecânica. Através do elevador<br />

1 tal acesso é feito de modo mecanizado, enquanto o<br />

realizamos de forma natural pela escada, como pitorescamente<br />

se diz em latim: calcantibus pedibus — calcando<br />

os pés.<br />

Duas concepções de escadas<br />

Por não se compreender seu autêntico sentido, na arquitetura<br />

moderna as escadas raramente são postas em<br />

relevo. A tendência é até ocultá-las o quanto possível,<br />

eliminando seu papel ornamental.<br />

Consideremos uma bela escadaria, como a existente<br />

na sede principal do nosso movimento 2 . Trata-se do prédio<br />

residencial mais antigo do Bairro de Higienópolis. O<br />

arquiteto, segundo a concepção artística de outrora, procurou<br />

dar ao giro da escada uma certa nobreza, e a revestiu<br />

de bonitos lambris, mais graciosos que a colunata do<br />

corrimão o qual possui pelo menos este aspecto interessante:<br />

faz parte da coleção dos objetos que, com suas formas<br />

e cores, ilustraram a moda de fins do século XIX.<br />

Numa concepção diversa, não é difícil nos lembrarmos<br />

dos exemplos de escadas sem tradição, servindo puramente<br />

como acesso entre níveis diferentes. Muitas se<br />

apresentam como cascatas de degraus em linha reta, tendo<br />

em ambos os lados uma espécie de corrimão fixado<br />

nas paredes, sem beleza alguma, apenas o essencial para<br />

ser utilizado como apoio a quem sobe ou desce. Correspondem<br />

à noção moderna de escada.<br />

Idéias distintas sobre o próprio homem<br />

Por detrás dessas duas concepções há duas idéias a<br />

respeito do agir humano e do próprio homem.<br />

De acordo com o reto conceito, a escada — tanto<br />

quanto possível e sensato — deve ser algo ornamental,<br />

decorativo. Pois tudo aquilo que serve para o homem<br />

agir, precisa dissimular ou fazer olvidar alguma coisa da<br />

18


S. Miyazaki<br />

Escadaria da sede principal do movimento fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, comentada por ele neste artigo<br />

19


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

miséria de sua condição decaída e, de outro lado, realçar<br />

algo de sua personalidade.<br />

Ora, a mais elementar idéia de escada é a de um meio<br />

empregado pelo homem para subir ou descer. Porém, essas<br />

duas operações acabam por patentear algo de nossas<br />

debilidades, assim como evidenciam nossa grandeza. Tudo<br />

quanto cerca o homem — mesmo mais modesto —<br />

deve respeitá-lo. O respeito é um dos maiores bens da<br />

vida, e ser acatado pode valer mais do que ser querido.<br />

Não existe genuína benquerença sem respeito. A escada,<br />

portanto, deve ser construída para honrar o homem, realçando<br />

algumas qualidades, excelências de sua natureza e<br />

disfarçando debilidades de sua condição.<br />

Vitória sobre o princípio da gravidade<br />

Ao subir uma escada, o homem se depara com alguns<br />

problemas que eu chamaria de teatrais, quase de encenação,<br />

pois ele luta contra a lei de Newton: quanto mais<br />

se afasta do solo, menor é a força da gravidade e maior o<br />

cansaço de seus músculos. Se bem que possa ganhar alguma<br />

coisa distanciando-se do chão, ele perde algo de<br />

sua elasticidade, e no topo de uma alta escada aparece o<br />

sinal — embora às vezes discreto — da miséria: a fadiga.<br />

Antes do pecado original, o homem se exercitava sem<br />

cansaço, o trabalho lhe era indolor, agradável, interessante.<br />

Porém, depois da queda de nossos primeiros pais,<br />

tornou-se difícil. A força da gravidade começou a agir<br />

contra ele, o chão o atraindo para deitar-se, e ele se esforçando<br />

para se firmar e pisá-lo.<br />

De passagem, apesar de nada ter lido acerca do assunto,<br />

pergunto-me se um modo de interpretar o sapateado<br />

espanhol não seria a vitória do homem sobre o princípio<br />

da gravidade. Tomado pela idéia da supremacia do espírito<br />

em relação à matéria, ele sapateia, e como que não<br />

sente a ação da gravidade. Seus músculos vencem a lei de<br />

Newton.<br />

Cada nação tem seu esplendor, gênio e modo de ser.<br />

Outra manifestação da vitória sobre a força da gravidade<br />

é o minueto francês, com aquela maneira de se movimentar<br />

delicada, em que o cavalheiro e a dama pisam o<br />

solo como se fossem plumas, conferindo ao chão a honra<br />

de ser tocado por eles. E para ostentar sua indiferença<br />

ao princípio da gravidade, executam longas reverências<br />

diante de pessoas às quais respeitam, depois se aprumam<br />

com altanaria e continuam a dançar com destreza, sem<br />

demonstrar cansaço. É uma linda expressão da douceur<br />

de vivre [doçura de viver] francesa, e um exemplo do papel<br />

do princípio da gravidade na conduta humana, dando-nos<br />

a oportunidade e o gosto de refletir.<br />

Aliás, para mim, raciocinar de modo agradável —<br />

compreendo que haja preferências diferentes — não<br />

consiste meramente em compulsar um tratado de teoria<br />

e pensar, mas passar da prática para a doutrina, galgando-a<br />

até o ponto mais alto. E depois fazer uma imersão<br />

até o fundo mais miúdo da experiência, procurando ali a<br />

confirmação ou ilustração das elevadas cogitações doutrinárias.<br />

Esse “subir e descer escadas” mental tem a leveza<br />

de um minueto.<br />

Tal exercício não é simplesmente deleitável, mas faz bem à<br />

alma. O homem se sente assim mais espírito, acentua-se nele<br />

o por onde é mais semelhante a Deus. E parecer-se com<br />

Deus é a honra suprema, o bem extremo, o fim último.<br />

Tributo pago ao pecado original<br />

Retornando ao nosso tema principal, cumpre considerar<br />

o seguinte: num homem ou numa dama, de qualquer<br />

S. Miyazaki<br />

idade ou condição social, ao terminar de subir uma escada,<br />

devido ao esforço, aparece alguma coisa que os diminui,<br />

algo do viço deles murcha.<br />

Alguém poderá dizer: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor não me<br />

conhece. Subo escadas de dois em dois degraus...”<br />

20


Ao subir uma escada<br />

o homem desafia a<br />

lei da gravidade,<br />

essa mesma lei que o<br />

sapateado espanhol<br />

ou o minueto francês<br />

parecem vencer<br />

com elegância e<br />

indiferença...<br />

Acima, “Minueto sob o carvalho”;<br />

à esquerda, detalhe da escadaria<br />

comentada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Não devemos nos iludir. Ainda que seja no arfar ou<br />

na pisada final, nota-se algo do tributo pago pela natureza,<br />

mesmo na flor da juventude. Além disso, visto do topo<br />

da escada, quem a sobe parece muito pequeno, e não<br />

é grato ao homem ser observado de cima para baixo. Os<br />

personagens que respeitamos, agrada-nos vê-los no alto.<br />

E assim, muitas outras considerações poderíamos fazer a<br />

respeito do “subir”.<br />

Analisemos, porém, o “descer”. Também nesta operação,<br />

como em tudo que o homem faz por si próprio, aparece<br />

a nossa miséria, a qual devemos saber disfarçar.<br />

Tal sucede nas mínimas coisas. Por exemplo, no momento<br />

em que lhes dirijo a palavra, apóio de modo ligeiro<br />

meu queixo sobre minha mão, enquanto faço um pequeno<br />

esforço de espírito para ordenar as idéias a serem<br />

expostas. Esse gesto é discretamente interrogativo, indicando<br />

que estou “emparafusando” um pensamento. Ou<br />

o faço com instintiva leveza, ou me degrado, porque a<br />

sensação de peso da queixada cansada é feia.<br />

Alguns espíritos talvez julguem inútil, uma bagatela,<br />

a observação desses aspectos do nosso cotidiano. Para<br />

mim, isso é saber tirar todo o proveito da vida. É viver. O<br />

contrário é vegetar.<br />

Então, se uma pessoa não descer uma escada com dignidade,<br />

dará a impressão de que está decaindo, degringolando.<br />

Pois a descida significa diminuição. Por exemplo,<br />

descer na saúde, na agilidade de inteligência, na arte<br />

de conversar, na virtude, no amor de Deus, etc.<br />

Razão pela qual não devemos julgar que seja fácil descer<br />

uma escada de maneira a nobilitar-se. Trata-se antes<br />

de uma arte, sobre a qual falaremos em outra oportunidade.<br />

v<br />

1) Entende-se que, para os efeitos dessa exposição, a chamada<br />

“escada-rolante” se equipara ao elevador.<br />

2) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341.<br />

21


“R-CR” em perguntas e respostas<br />

“Revolução e<br />

Contra-Revolução”<br />

Além de inúmeras exposições orais feitas ao longo de sua vida<br />

dedicada ao serviço de Deus e da Santa Igreja, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> escreveu<br />

15 livros, traduzidos para diversos idiomas, e incontáveis artigos<br />

publicados em periódicos e revistas do Brasil e do exterior. Sua obra<br />

magna, “Revolução e Contra-Revolução”, vinda a lume em 1959,<br />

tornou-se o livro de cabeceira de todos os que desejavam fazer parte<br />

da família de almas de seus seguidores.<br />

Sobre ele, o ilustre canonista espanhol, Pe. Anastásio Gutiérrez<br />

CMF, emitiu eloqüente parecer em que afirma:<br />

“Revolução e Contra-Revolução é uma obra magistral,<br />

cujos ensinamentos deveriam ser difundidos até fazêlos<br />

penetrar na consciência de todos os que se sintam<br />

verdadeiramente católicos. Eu diria mais: de<br />

todos os homens de boa vontade. [...] É uma<br />

obra profética no melhor sentido da palavra;<br />

[...] seu conteúdo deveria ensinar-se nos<br />

centros superiores da Igreja. [...] Impressiona<br />

fortemente o espírito com que a obra está<br />

escrita: um espírito profundamente cristão e<br />

amante da Igreja; é um produto autêntico da<br />

‘sapientia christiana’ [sabedoria cristã]”.<br />

A fim de proporcionar aos leitores de “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” os<br />

importantes ensinamentos contidos nesse livro —<br />

o qual designaremos pela sigla “R-CR” —, damos<br />

início à presente seção, no formato de perguntas e<br />

respostas. As citações são extraídas da 5ª edição em<br />

português, estampada pela “Editora Retornarei” em<br />

dezembro de 2002.<br />

Algumas das primeiras<br />

edições da “R-CR”; no<br />

alto, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pouco antes<br />

de lançar sua obra<br />

22


Definições preliminares<br />

Que é a Revolução?<br />

“É um processo que se manifestou, na ordem dos fatos,<br />

no início do século XV.<br />

Nasceu ele de uma explosão de paixões desordenadas<br />

que vai conduzindo à destruição de toda a sociedade<br />

temporal, à completa subversão da ordem moral, à negação<br />

de Deus.<br />

O grande alvo da Revolução é, pois, a Igreja, corpo<br />

místico de Cristo, mestra infalível da verdade, tutora da<br />

Lei natural e, assim, fundamento último da própria ordem<br />

temporal” (p. 144).<br />

E a Contra-Revolução?<br />

“É a luta incruenta para extinguir<br />

a Revolução e construir<br />

a Cristandade nova, toda resplandecente<br />

de Fé, de humilde<br />

espírito hierárquico e de ilibada<br />

pureza.<br />

Isto se fará, sobretudo, por<br />

uma ação profunda nos corações.<br />

Ora, esta ação é obra<br />

própria da Igreja, que ensina a<br />

doutrina católica e a faz amar e<br />

praticar.<br />

A Igreja é, pois, a própria alma<br />

da Contra-Revolução” (pp.<br />

147-148).<br />

Fidelidade ao Papado<br />

Que demonstração de fidelidade<br />

ao Papa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez no<br />

livro “R-CR”?<br />

Eis o último parágrafo da<br />

conclusão de seu trabalho:<br />

“Sobre cada uma das teses<br />

que o constituem, não temos em nosso coração a menor<br />

dúvida. Sujeitamo-las todas, porém, irrestritamente ao<br />

juízo do Vigário de Jesus Cristo, dispostos a renunciar<br />

de pronto a qualquer delas, desde que se distancie, ainda<br />

que de leve, do ensinamento da Santa Igreja, nossa Mãe,<br />

Arca da Salvação e Porta do Céu” (p. 199).<br />

O que move a Revolução e<br />

a Contra-Revolução<br />

Qual a principal força propulsora da Revolução?<br />

“A mais potente força propulsora da Revolução é o dinamismo<br />

das paixões desencadeadas num ódio metafísico<br />

contra Deus, contra a virtude, contra o bem e, especialmente,<br />

contra a hierarquia e contra a pureza” (p. 130).<br />

E da Contra-Revolução?<br />

“É no vigor de alma que vem ao homem pelo fato de<br />

Deus governar nele a razão, a razão dominar a vontade,<br />

e esta dominar a sensibilidade, que é preciso procurar a<br />

serena, nobre e eficientíssima força propulsora da Contra-Revolução”<br />

(pp. 130-131).<br />

Como adquirir esse vigor de alma?<br />

“Tal vigor de alma não pode ser concebido sem se tomar<br />

em consideração a vida sobrenatural.<br />

O papel da graça consiste exatamente em iluminar a<br />

inteligência, em robustecer a vontade e em temperar a<br />

sensibilidade de maneira que se voltem para o bem.<br />

De sorte que a alma lucra incomensuravelmente<br />

com a vida sobrenatural, que a eleva acima das misérias<br />

da natureza decaída, e do próprio nível da natureza<br />

humana.<br />

É nessa força de alma cristã que está o dinamismo da<br />

Contra-Revolução” (p. 131).<br />

Principal tarefa da Contra-Revolução<br />

Qual o dever primordial da Contra-Revolução?<br />

“A Contra-Revolução tem, como uma de suas missões<br />

mais salientes, a de restabelecer ou reavivar a distinção<br />

entre o bem e o mal, a noção do pecado em tese, do pecado<br />

original e do pecado atual.<br />

Essa tarefa, quando executada com uma profunda<br />

compenetração do espírito da Igreja, não traz consigo o<br />

risco de desespero da misericórdia divina, hipocondrismo,<br />

misantropia, etc., de que tanto falam certos autores<br />

mais ou menos infiltrados pelas máximas da Revolução”<br />

(pp. 132-133).<br />

Como reavivar essa noção do bem e do mal?<br />

“Pode-se reavivar a noção do bem e do mal por vários<br />

modos, entre os quais:<br />

• Salientar, nas ocasiões oportunas, que Deus tem o<br />

direito de ser obedecido, e que, pois, seus Mandamentos<br />

são verdadeiras leis, às quais nos conformamos<br />

em espírito de obediência, e não apenas porque<br />

elas nos agradam.<br />

• Divulgar a noção de um prêmio e de um castigo<br />

post-mortem.<br />

• Insistir sobre os efeitos do pecado original no homem<br />

e a fragilidade deste, sobre a fecundidade da<br />

Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo, bem como<br />

sobre a necessidade da graça, da oração e da vigilância<br />

para que o homem persevere.<br />

• Aproveitar todas as ocasiões para apontar a missão<br />

da Igreja como mestra da virtude, fonte da graça,<br />

e inimiga irreconciliável do erro e do pecado” (pp.<br />

133-134). v<br />

23


Gesta marial de um varão católico<br />

A vitória<br />

de um<br />

holocausto<br />

Aspecto marcante da vida espiritual de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> deu-se<br />

à certa altura de sua juventude, quando leu a história de<br />

Santa Teresinha do Menino Jesus. Esta, após seu ingresso<br />

no Céu e, posteriormente, sua canonização, passou a deitar<br />

luzes especiais sobre a piedade de todos os homens desde<br />

o início do século XX. Também <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se sentiu tocado<br />

pelos ecos dessas graças, conforme podemos acompanhar<br />

pela narração a seguir, que ele próprio nos deixou.<br />

Declaro que vivi e espero<br />

morrer na Santa Fé Católica<br />

Apostólica e Romana, à<br />

qual adiro com todas as veras de minha<br />

alma. Não encontro palavras suficientes<br />

para agradecer a Nossa Senhora o<br />

favor de haver vivido desde os meus<br />

primeiros dias, e de morrer, como espero,<br />

na Santa Igreja, à qual votei, voto<br />

e espero votar até o último alento,<br />

absolutamente todo meu amor.<br />

Agradeço da mesma forma a Nossa<br />

Senhora — sem que me seja possível<br />

encontrar palavras suficientes<br />

para fazê‐lo — a graça de haver lido<br />

e difundido o Tratado da Verdadeira<br />

Devoção à Santíssima Virgem, de São<br />

Luís Maria Grignion de Montfort,<br />

e de me haver consagrado a Ela como<br />

escravo perpétuo. Nossa Senhora<br />

foi sempre a Luz de minha vida, e<br />

de sua clemência espero que seja Ela<br />

minha Luz e meu Auxílio até o último<br />

momento da existência.<br />

Sofrer pela vitória<br />

da Igreja<br />

Assim se exprimiu <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em seu<br />

testamento, mais de uma vez evocado<br />

nas páginas desta <strong>Revista</strong>, posto traduzir<br />

de modo genuíno os princípios que<br />

nortearam sua longa vida: o inteiro<br />

24


No anoitecer de 3 de outubro de 1995, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> entregou sua alma a Deus:<br />

era o fim e o ápice de seu sofrimento confiante e vitorioso<br />

amor à Igreja e ao Papado, a humilde<br />

e intensa devoção a Nossa Senhora,<br />

como meio seguro de se conformar<br />

ao Sagrado Coração de Jesus.<br />

Ouçamo-lo descrever como considerou<br />

o desenvolver de sua vocação, a<br />

qual culminaria, na Terra, naquele 3<br />

de outubro de 1995:<br />

Em determinado momento de minha<br />

infância, por inspiração da graça,<br />

cheguei à convicção de que havia<br />

no meu espírito um depósito de<br />

energia capaz de ser transformado<br />

em força, em energia vitoriosa, desde<br />

que eu estivesse disposto a sofrer.<br />

Ora, exatamente não me agradava<br />

o sofrimento. Afinal, quem gosta<br />

de padecer?<br />

Porém, entendia que, se tomasse<br />

essa capacidade, esse potencial de<br />

assumir a dor (o qual percebia ser incomum),<br />

e levasse até onde fosse me<br />

possível com a ajuda do Céu, eu sofreria<br />

menos do que se me deixasse<br />

arrastar pela moleza e me ver esmagado<br />

por todos os brutos do mundo.<br />

Meu sofrimento<br />

deveria ir tão longe<br />

quanto me fosse<br />

possível levá-lo, com<br />

a ajuda do Céu<br />

E pensava: “Se eu aceitar a cruz, posso<br />

ter insucessos e toda espécie de<br />

reveses; será porque Deus permitiu<br />

e quis me provar. Não será por culpa<br />

minha, e sim por desígnio d’Ele. Se é<br />

a vontade de Deus, faça Ele de mim<br />

o que Lhe aprouver. Por falta minha,<br />

não será”.<br />

A esse raciocínio aliavam-se as noções<br />

do confronto Revolução versus<br />

Contra-Revolução, no qual me sentia<br />

chamado a atuar de maneira particular.<br />

Então compreendi ser aquele<br />

sofrimento destinado a alcançar a<br />

vitória da Contra-Revolução nesse<br />

embate, e que tal padecimento, portanto,<br />

iria tão longe quanto o de um<br />

homem pode ir. Não apenas físico,<br />

mas, sobretudo, moral, pois nessa<br />

batalha pela causa católica e contrarevolucionária<br />

não me seriam poupados<br />

ódios, calúnias, perseguições.<br />

Santidade e expiação<br />

para realizar o chamado<br />

Anos mais tarde, com a leitura do<br />

livro de Dom Chautard — A alma de<br />

25


Gesta marial de um varão católico<br />

todo apostolado — nasceu em meu<br />

espírito a idéia de que eu só poderia<br />

realizar a obra para qual era chamado<br />

se me empenhasse em me tornar<br />

santo. E formei a intenção de me<br />

oferecer como vítima expiatória a<br />

Nosso Senhor, a Nossa Senhora, pela<br />

vitória da Contra-Revolução.<br />

Não cheguei a formalizar o oferecimento<br />

naquela época, pois um<br />

certo lampejo me era dado para entrever<br />

não ser então o que a Providência<br />

desejava de mim. Ela queria<br />

que eu vivesse. Mas, de fato, minha<br />

vontade era pedir que morresse<br />

como Santa Teresinha, imaginando<br />

nossas missões semelhantes, ou seja,<br />

fazer mais depois de morto que<br />

durante a vida. Assim, terminaria<br />

meus dias ainda moço, consumido<br />

por uma doença qualquer. Mas, ao<br />

menos teria pago o preço da Contra-Revolução.<br />

Contudo, percebi não ser o momento<br />

para isso, embora tenha tomado<br />

em face de Maria Santíssima<br />

uma atitude de quem se tivesse realmente<br />

oferecido.<br />

Pouco depois, deparava-me com<br />

a espiritualidade de São Luís Maria<br />

Grignion de Montfort, incutindome<br />

o desejo de nutrir uma devoção a<br />

Nossa Senhora absolutamente horsserie.<br />

Nesse anelo de ardente devoção<br />

mariana entrava, sim, o intuito<br />

de avantajar com ela a Contra-Revolução,<br />

mas entrava antes de tudo a<br />

vontade de amar Nossa Senhora com<br />

todas as veras de minha alma: “Eu A<br />

quero, porque a Mãe de Deus é ‘ultraquerível’!<br />

Portanto, almejo estabelecer<br />

com Ela uma união na linha<br />

de tudo quanto me seja dado imaginar,<br />

um vínculo fora de série”.<br />

Por essas disposições de alma eu<br />

compreendia que Nossa Senhora esperava<br />

de mim algo a mais do comum.<br />

E me vinha a idéia:<br />

“É isso. À falta de outro melhor,<br />

Ela chamou este medíocre para desincumbir<br />

essa tarefa, e ele aceitou.<br />

Percebo que minha inteligência<br />

se manifesta com boas rutilâncias,<br />

sob o influxo da graça alcançada<br />

por Maria. Mas, exatamente<br />

porque não tenho o talento de outros,<br />

torna-se necessário suprir essa<br />

carência com os dons divinos. É<br />

a misericórdia para o ‘medíocrão’.<br />

Aceite isso dessa maneira e se desempenhe<br />

com naturalidade. Eu só<br />

fico penalizado pelo fato de que,<br />

se eu valesse mais, poderia servi-<br />

La melhor. Valho o que tenho; Ela<br />

me completa, e vamos para frente.<br />

Nossa Senhora há de fazer o que<br />

está em mim realizar pela causa<br />

d’Ela!”<br />

Trajetória semeada de<br />

grandes provações<br />

Na extensa trajetória que se me<br />

abria, ao lado de algumas intensas<br />

consolações, sobrevieram também<br />

grandes provações, interpretadas co-<br />

Imaginava fazer<br />

mais depois de<br />

morto do que<br />

em vida, como<br />

Santa Teresinha<br />

26


“Lendo Dom Chautard,<br />

e pouco depois São Luís<br />

Grignion, compreendi que<br />

Nossa Senhora esperava de<br />

mim algo a mais do que<br />

uma piedade comum”<br />

Abaixo, São Luís Grignion, igreja de<br />

Saint-Laurent-sur-Sèvre (França); à<br />

direita, Dom Chautard, Abade de Sept<br />

Fonts; na página da esquerda, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

na época em que leu os dois autores<br />

S. Hollmann<br />

mo punição de Deus por minha falta<br />

de generosidade no cumprimento<br />

da vocação. Julgava que as adversidades<br />

e contrariedades se apresentavam<br />

porque eu tinha culpa, eram infidelidades<br />

conscientes ou não, pecados<br />

ocultos de cuja existência não<br />

me dera conta...<br />

Pensamento cruciante: “Tenho cegueira<br />

porque não quero ver, e por<br />

causa disso estão acontecendo coisas<br />

ruins. Mas, talvez seja porque estou<br />

disposto a servir de vítima expiatória,<br />

e esse oferecimento está me esmagando<br />

como eu desejei”. Contudo,<br />

eu era triturado entre a resignação<br />

— caso devesse ser vítima expiatória<br />

— e um brado, um clamor interno<br />

de que tal não devia ser. Então,<br />

a conclusão: “Não, não é vítima<br />

expiatória, mas é castigo. Entenda e<br />

abrace de frente essa situação. Bom,<br />

mas do que devo me arrepender? Do<br />

que você não vê. Se está sendo castigado<br />

por uma mão justa e não a vê,<br />

a culpa é de não enxergá-la. Ao menos<br />

agora não seja cego e siga adiante,<br />

pois Nossa Senhora, apesar de suas<br />

lacunas, vai lhe concedendo meios<br />

de desenvolver sua missão.”<br />

27


Gesta marial de um varão católico<br />

De um lado, a<br />

realização do<br />

desígnio divino; de<br />

outro, o tormento<br />

de uma missão<br />

fracassada<br />

Havia, portanto, de um lado, a<br />

idéia do desígnio divino que se realizava<br />

dentro da mediocridade, da<br />

correspondência insatisfatória; de<br />

outro, um tormento: o tempo ia passando,<br />

e quando eu estivesse com 60,<br />

70 anos, achar-me-ia tão velho que<br />

não serviria para mais nada. A velhice<br />

se aproximava de mim como em<br />

certos filmes representavam um acidente<br />

de automóvel, este indo de encontro<br />

a um rochedo. Assim também<br />

eu caminhava para a ancianidade, e<br />

nada se realizava, nada se movia.<br />

Na verdade, formáramos um movimento<br />

minúsculo, sem expressão.<br />

Eu dizia: “Pelos cálculos comuns, já<br />

devia estar mar alto na realização de<br />

minha missão. Por que não acontece?<br />

Mediocridade, castigo. É isso.<br />

Saiba não formar uma idéia pretensiosa<br />

a seu respeito. Aprenda a lição.”<br />

Em contrapartida, percebia desenvolverem-se<br />

certas qualidades,<br />

uma determinada aura em torno de<br />

mim. Logo vinha o crivo da consciência:<br />

“Você nota, mas os outros não.<br />

O que é claro aos seus olhos, não o<br />

é aos deles. Você vê, porque correspondeu<br />

um ‘tantinho’, porém, se os<br />

demais não percebem, é porque você<br />

não correspondeu o bastante.<br />

Portanto, o que deve se tornar admirável<br />

em você é a sua vergonha, porque<br />

não foi fiel o suficiente. Você é<br />

o abat-jour opaco que guarda a luz<br />

dentro de si, mas não a faz transparecer<br />

para os outros. Este é você.<br />

“Por outro lado, não consigo melhorar.<br />

Faço o que posso, realizo o<br />

que realizo. Um grupinho aqui, outro<br />

acolá... Leia no Dom Chautard e<br />

você encontrará a explicação de tudo:<br />

falta vida interior a você!”<br />

As dores compraram o<br />

florescimento da obra<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> por volta de 1965 — As provações estavam comprando<br />

o grande desenvolvimento de sua obra pelo mundo inteiro<br />

Não obstante essas provações —<br />

que constituíam um drama psicológico<br />

capaz de minar qualquer organismo,<br />

como de fato afetou o meu,<br />

determinando pouco depois uma crise<br />

de diabetes 1 — eu sentia que as<br />

graças alcançadas por Nossa Senhora<br />

iam aumentando, embora o apostolado<br />

não crescesse na mesma proporção.<br />

Resultado, novas auto-recriminações:<br />

“Você está melhorando<br />

um pouco, porém de forma morosa.<br />

Esfregue seu nariz no chão da vergonha,<br />

porque deveria ser muito mais.<br />

28


“Em determinado momento, pelo auxílio da graça, percebo-me<br />

produzindo junto a meus jovens seguidores o efeito que era de se desejar;<br />

isto me deu um imenso alento”<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em meados dos anos 80<br />

Quer provas? Nossa Senhora o ajuda<br />

a formar esses grupinhos, mas... que<br />

dificuldade! Pense um pouco, reflita,<br />

observe que Ela não lhe concede nada<br />

de extraordinário. Qual é a grande<br />

dádiva a favorecer o seu apostolado?<br />

Nenhuma...”<br />

Eu me sentia tentado a dizer que<br />

tudo aquilo em que minhas mãos tocavam,<br />

esboroava-se. Eram, na verdade,<br />

os sofrimentos e as provações<br />

próprias à via de expiação na qual<br />

trilhávamos, tendo Maria Santíssima<br />

considerado aquela minha primeira<br />

disposição. Desejo de oferecimento<br />

esse reiterado pouco antes do meu<br />

desastre de automóvel em fevereiro<br />

de 1975, e também aceito por Nossa<br />

Senhora, como já tive anterior ocasião<br />

de narrar 2 .<br />

A partir de então, começo a notar<br />

nos meus seguidores mais jovens<br />

uma atitude invulgar em relação ao<br />

ideal e à minha própria missão. E<br />

pensei: “Afinal, me vem de algum lado<br />

uma repercussão por onde, junto<br />

a alguém, estou produzindo o efeito<br />

que, se fosse fiel à graça, estaria produzindo.<br />

Embora devesse sê-lo mais<br />

universalmente, ao menos isso nos é<br />

dado!”<br />

Esse fato me alentou sobremaneira,<br />

e com profunda gratidão a Nossa<br />

Senhora eu passei a ver o espraiar-se<br />

da aura de minha obra pelos mais diversos<br />

recantos do mundo.<br />

Na hora suprema, a<br />

suprema confiança<br />

Incansável paladino dos direitos de<br />

Deus e da Igreja, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> olhou para<br />

o seu futuro e para o momento da sua<br />

morte com a confiança que sempre o<br />

caracterizou. Antevendo seu caminho,<br />

afirmou ele certa vez:<br />

Imaginemos um de nós, muito<br />

chamado, muito eleito, sobre quem<br />

se abate a provação de uma grave<br />

enfermidade a qual, na aparência, o<br />

impede de cumprir a vocação. Pois<br />

tudo quanto sua alma desejaria para<br />

satisfazer a missão que lhe foi concedida,<br />

mil anseios bons, mil anelos de<br />

combater e vencer os adversários da<br />

Igreja, ficam tolhidos dessa maneira.<br />

O que era a respiração de seu espírito<br />

não lhe é mais permitida.<br />

A esse pode vir a perplexidade:<br />

“Será que o esperado nas melhores<br />

horas de minha vida espiritual, os<br />

combates decisivos e supremos em<br />

que ouviria o cântico de vitória dos filhos<br />

de Maria Santíssima, não eram<br />

para mim? E que me estava destinado<br />

um quarto de doente, o isolamento, e<br />

29


Gesta marial de um varão católico<br />

S. Miyazaki<br />

ainda sentindo que, pela minhas circunstâncias,<br />

estou pesando como elemento<br />

negativo sobre aquela força em<br />

marcha, na qual quisera ser de todos<br />

os modos um elemento positivo?”<br />

Noutras palavras, ele poderia<br />

pensar: “Nos melhores momentos<br />

de meu fervor espiritual, pareciame<br />

chegada a hora do Reino de Maria,<br />

que eu o estava tocando com as<br />

mãos. Alegrava-me a esperança de<br />

ter concorrido de modo significativo<br />

e triunfal, eu, pessoalmente, com<br />

os braços e as pernas que Deus me<br />

deu, para essa vitória. Mas, não. Não<br />

é esse o meu caso. Fiquei de lado. E<br />

algo parece agora desmentir os mais<br />

admiráveis impulsos que me levaram<br />

até o extremo da generosidade.<br />

“Haverá então um abandono de<br />

Deus? Eu cometi algum pecado, uma<br />

infidelidade por onde Ele me deixou?<br />

E eu devo sofrer na Terra a penitência<br />

deste abandono, até que Deus tenha<br />

pena de mim e me leve para o<br />

Purgatório? Ou há uma saída para essa<br />

situação, e preciso crer nessa solução,<br />

manter o mesmo espírito aceso,<br />

a mesma certeza de que na hora ‘H’<br />

serei um homem ‘H’, para cumprir a<br />

minha vocação, ainda que eu deva esperar<br />

as maiores maravilhas?”<br />

Sim, essa saída existe. E cumpre<br />

que ele se convença desta verdade:<br />

“Aquilo que eu considerei uma palavra<br />

de Deus na minha alma, a qual me<br />

levou para toda espécie de bem, nessa<br />

palavra confiei e continuo a confiar,<br />

a super-confiar, e quanto mais os<br />

fatores existentes forem contrários,<br />

tanto mais é certo que, confiando, na<br />

hora ‘H’ eu serei o homem ‘H’.”<br />

Alguém poderia me perguntar:<br />

por que razão devemos confiar contra<br />

toda a confiança, com serenidade<br />

e tranqüilidade numa situação que<br />

parece perdida?<br />

Esta é uma questão fundamental<br />

em nossa vocação, pois circunstância<br />

análoga pode suceder a qualquer um<br />

de nós.<br />

A resposta se cifra no fato de que a<br />

Providência não pode nos pedir nem<br />

alimentar em nossa alma algo de ilógico.<br />

Se, ao longo de nossa vida espiritual,<br />

dos anos dedicados ao serviço<br />

de Nossa Senhora e da Igreja, mantivemos<br />

acesos aqueles desejos primeiros,<br />

o primeiro impulso, a primeira<br />

verdade, aquele primeiro ato de<br />

vontade e aquelas deliberações daí<br />

decorrentes, jamais desmentidas, jamais<br />

diminuídas, jamais derrotadas,<br />

tal atitude só pode ter sido por uma<br />

ação da graça sobre nós. Se a graça<br />

agiu, Deus nos chamou. Se Ele nos<br />

chamou, pode dispor de nossa entrega<br />

como for da sua maior glória.<br />

Ele não quis de mim o combate<br />

direto e final contra os seus adversários,<br />

mas eu obterei um jeito de lutar<br />

melhor do que se o fizesse em campo<br />

aberto. Eu ofereço a Deus o martírio<br />

da minha inutilidade. Torneime<br />

inútil: ó bem-aventurada inutilidade!<br />

Eu sofro com isto mais do que<br />

se fosse um missionário obrigado a<br />

atravessar o Tibet a pé, evangelizando<br />

os povos montanheses.<br />

Deus permitiu essa minha condição<br />

ineficaz, porque o quis. Se é vontade<br />

d’Ele, eu me submeto, pois é<br />

meu Pai e meu Deus.


T. Ring<br />

em nosso coração sentimentos virtuosos,<br />

pois essa é a maneira de considerar<br />

a situação em função dos dados<br />

da fé católica.<br />

Então, nunca nos deixemos abater<br />

pelo desânimo, pela revolta, jamais<br />

abandonemos o verdadeiro caminho,<br />

que é o da confiança.<br />

Para vós, o prêmio<br />

da vitória!<br />

“Nossa vida foi uma longa espera, andando pelos<br />

rochedos e abismos, confiando em Maria Santíssima,<br />

até o dia em que Ela nos diria: ‘Esperastes tudo e agora<br />

ganhareis a vitória!’”<br />

Mãe do Bom Conselho de Genazzano; na página<br />

anterior, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no início da década de 90<br />

Alguém ainda dirá: “Mas, então,<br />

por que Ele me concedeu esses desejos<br />

extraordinários e me fez progredir<br />

na vida espiritual? Para, no fim,<br />

não me proporcionar a realização de<br />

tudo o que esperei?”<br />

É precisamente isso. Em sua insondável<br />

sabedoria, Deus determinou<br />

que tudo aquilo para o qual me chamava,<br />

eu como que queimasse sobre<br />

uma pira em louvor a Ele. Dessa forma,<br />

o desejo de fazer um bem que eu<br />

não pude concretizar haveria de valer<br />

mais aos olhos de Deus do que esse<br />

mesmo bem que eu poderia ter feito.<br />

Portanto, a alma deve ter isso em<br />

vista e se conformar com os desígnios<br />

divinos. Nela, a virtude da confiança<br />

consiste em ter a certeza de que ascenderá<br />

por esse caminho, amparada<br />

pela misericórdia de Maria Santíssima.<br />

E todos nós temos de estar<br />

dispostos a aceitar essa condição. Se<br />

assim procedermos, despertaremos<br />

A trajetória de nossa própria vocação<br />

é um dos grandes exemplos<br />

dessa forma de confiança inteira.<br />

Com efeito, nossa vida foi uma<br />

longa espera com quase nada que a<br />

confirmasse e com quase tudo que a<br />

desmentisse. Tratava-se de esperar<br />

contra toda a esperança, crer apesar<br />

de quase todas as razões que levavam<br />

a não crer; andar pelos rochedos,<br />

pelos abismos, pelos precipícios,<br />

pelas grutas, até que raiasse o dia no<br />

qual Nossa Senhora nos diria:<br />

“Filhos meus diletos, filhos meus<br />

caríssimos. Vós esperastes muito,<br />

vós recebereis muito. O vosso bilhete<br />

de loteria é o de acreditar, o bilhete<br />

de confiar. Por vossa confiança,<br />

esperastes tudo e agora ganhareis<br />

a vitória. Saindo de uma gruta,<br />

de repente percebeis o mar magnífico<br />

a se desdobrar à vossa frente, formando<br />

um panorama esplêndido, o<br />

oceano azulado onde as gotas douradas<br />

do sol deitam reflexos magníficos.<br />

Ide até lá, tomai as embarcações<br />

nas quais podeis navegar em direção<br />

ao triunfo. As grutas, os morcegos,<br />

as cobras, toda a vegetação da derrota,<br />

da umidade, da pantanosidade,<br />

das trevas, ficaram para trás.<br />

“Para vós, agora, o destino é outro:<br />

vencei!”<br />

v<br />

1) Cfr. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” número 21.<br />

2) Cfr. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” número 83.<br />

31


O Santo do mês<br />

Santa Teresa do<br />

Menino Jesus e<br />

a pequena via<br />

Há dez anos <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> entregava sua alma a Deus, no<br />

tríduo da festa de Santa Teresinha (outrora celebrada<br />

no dia do falecimento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, 3 de outubro).<br />

Ele próprio fizera o oferecimento de si como vítima<br />

do amor misericordioso por aquelas almas e aqueles<br />

acontecimentos que esperara, baseado na leitura das obras<br />

da Santa de Lisieux (cfr. Editorial, página 4).<br />

Transcrevemos a seguir, um dentre os diversos<br />

comentários tecidos por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à edificante vida e<br />

missão de Santa Teresinha.<br />

Em fins do século XIX a Divina Providência suscitou<br />

Santa Teresinha do Menino Jesus para despertar<br />

uma nova forma de espiritualidade própria<br />

a conduzir grande número de almas a Nosso Senhor.<br />

Foi uma resposta de Deus às manobras feitas para encharcar<br />

de Revolução a mentalidade do homem ocidental.<br />

Essa réplica consistiu na famosa pequena via a qual,<br />

conforme afirmação profética da Santa, haveria de levar<br />

incontáveis almas ao Céu.<br />

Um caminho para os menos fortes<br />

A pequena via é própria aos espíritos mais débeis, sem<br />

meios naturais para realizar extraordinários atos de generosidade<br />

interior que marcaram tantos santos do passado<br />

os quais se flagelavam de maneira espantosa, faziam<br />

penitências terríveis, sofriam cruzes e provações pavorosas,<br />

porque eram assistidos pela graça e esta encontrava<br />

neles uma natureza capaz de grandes feitos.<br />

Quando Santa Teresinha surgiu, as pessoas já estavam<br />

profundamente infiltradas de Revolução e, portanto, sem<br />

a coragem e disposição para lances heróicos de virtude.<br />

Por desígnio da Providência, ela abriu às “pequenas almas”<br />

(como as chamava) o caminho para o Céu.<br />

Trata-se da via do reconhecimento da própria fraqueza<br />

e da ausência de coragem, de força de vontade para<br />

enfrentar imensos sacrifícios. E da convicção de que<br />

Nosso Senhor se compadece das almas fracas, diminutas<br />

em comparação com as do passado, e que assiste àquelas<br />

com bondade, afabilidade, abundância de graças que<br />

substituem nelas, vantajosamente, aquilo que a natureza<br />

não lhes proporcionou.<br />

32


Desde muito jovem Santa<br />

Teresinha sentiu o chamado<br />

à perfeição, e dedicaria seus<br />

breves anos de vida a ensinar<br />

às “pequenas almas” o<br />

caminho para o Céu<br />

S. Hollmann<br />

À direita, “Santa Teresinha solicita a<br />

autorização de seu pai para entrar<br />

no carmelo” - Buissonnets, Lisieux<br />

(França); acima, já carmelita professa<br />

33


O Santo do mês<br />

Quer dizer, para as pessoas dos séculos anteriores<br />

atingirem o pleno amor de Deus eram necessários — valendo-me<br />

de uma expressão inadequada — tantos quilowatts<br />

de sofrimentos. Porém, as do tempo de Santa Teresinha,<br />

e a fortiori as de nossa época, são incapazes de suportar<br />

tais graus de ascese. Então, a rogos de Maria Santíssima,<br />

a graça lhes concede vigor para carregar menores<br />

quantidades de cruzes. Porém, elas o fazem com tanta<br />

intensidade de amor que acabam suprindo a quota de<br />

sofrimentos pelos quais não suportariam passar. Pois aos<br />

olhos de Deus, o importante<br />

não é o quilowatt da<br />

dor, e sim a intensidade de<br />

amor com que é padecida.<br />

Dessa sorte, o que as<br />

grandes almas conquistavam<br />

apenas no fim de sua<br />

existência, depois de muitos<br />

tormentos, as da pequena<br />

via recebem gratuitamente<br />

logo no começo da<br />

vida espiritual, unindo-se a<br />

Nossa Senhora, à Santíssima<br />

Trindade, por uma particular<br />

bondade de Deus.<br />

Esta graça encurta o caminho<br />

e faz o amor nascer cedo,<br />

tão veemente que, com<br />

uma “quilowatagem” menor<br />

de sofrimento, brilha<br />

com uma luz fulgurante.<br />

Admirável exemplo<br />

de Santa Teresinha<br />

O modelo característico<br />

dessa via foi a própria Santa<br />

Teresinha do Menino<br />

Jesus, uma pequena alma<br />

típica, cônscia de sua incapacidade<br />

de suportar grandes<br />

sofrimentos. Entretanto,<br />

recebeu ela tal intensidade de amor a Deus que, desde<br />

menina, fidelíssima à sua vocação, fazia meditações<br />

e amava tanto as coisas do Céu que sobrepujava em virtude<br />

a um número incontável de pessoas.<br />

Levou uma existência de verdadeiro sofrimento no<br />

Carmelo de Lisieux, tendo sido acometida por uma provação<br />

muito freqüente no claustro, embora no seu caso<br />

se apresentasse mais profunda: a aridez contínua, devido<br />

à qual ela não sentia consolações na piedade, nem no<br />

imenso amor a Deus que possuía.<br />

S. Hollmann<br />

Nessa situação, própria a afligir qualquer um, ela sempre<br />

manteve confiança cega na Providência, e reafirmava<br />

a cada instante seu desejo de morrer como vítima do<br />

amor misericordioso de Nosso Senhor para com aqueles<br />

que seguem a pequena via.<br />

E, de fato, certa noite, quando já se achava deitada para<br />

dormir, Santa Teresinha sentiu o peito incomodado e<br />

expeliu uma golfada. Veio-lhe logo a idéia de que poderia<br />

ser sangue, indício da fatídica doença daquela época, a tuberculose.<br />

Essa enfermidade tornou-se comum em fins do<br />

século XIX, e a medicina<br />

não lograva combatê-la eficazmente,<br />

pois não descobrira<br />

ainda os medicamentos<br />

existentes hoje. Assim,<br />

grande era o número de vítimas<br />

dessa moléstia.<br />

Ora, Santa Teresinha<br />

experimentou tal alegria<br />

diante da hipótese de estar<br />

tuberculosa, que ofereceu<br />

a Deus o sacrifício de<br />

não examinar de imediato<br />

o lenço sobre o qual golfara<br />

durante a noite, e fazê-lo<br />

apenas na manhã seguinte,<br />

à luz do dia. Verificando<br />

depois ser mesmo<br />

sangue, transportada de júbilo,<br />

ela compreendeu que<br />

sua derradeira paixão começava.<br />

Manifestou-se desse modo<br />

a tuberculose, doença<br />

lenta, trágica sob vários aspectos,<br />

sobretudo naquele<br />

tempo, quando tantos<br />

dela sofriam e morriam.<br />

Era, pois, uma via comum,<br />

na qual a noite escura e o<br />

Relíquia de Santa Teresinha - Carmelo de Lisieux abandono se tornaram cada<br />

vez maiores.<br />

Santa Teresinha passou a ser provada com tentações<br />

contra a Fé (também assíduas na vida dos santos), e chegou<br />

a afirmar serem estas tão violentas que só acreditava<br />

porque queria crer, tanto as razões de fé se tinham obnubilado<br />

em seu espírito. Sentia que estava morrendo, e na<br />

Terra nada mais havia para ela. Porém, a morte vinha aos<br />

poucos, a conta-gotas, no meio do sofrimento e da dor.<br />

De seu leito, ouviu um dia a conversa entre duas freiras<br />

sobre seu fim próximo, e este comentário: “Quando falecer<br />

nossa Irmã Teresa do Menino Jesus, e for preciso es-<br />

34


S. Hollmann<br />

Vítima do amor misericordioso,<br />

Santa Teresinha ofereceu as dores<br />

comuns do dia-a-dia, bem como<br />

as grandes provações durante a<br />

doença, com intensa caridade,<br />

salvando assim um incontável<br />

número de almas<br />

Acima, Santa Teresinha no seu leito<br />

de dor; à direita, relíquia da Santa,<br />

conservada no Carmelo de Lisieux<br />

35


O Santo do mês<br />

crever uma circular às demais comunidades contando como<br />

transcorreu a vida dela no claustro, não sei realmente<br />

o que será narrado. Porque ela não fez nada. Ao longo dos<br />

anos passados aqui, realizou apenas coisas pequeninas...”<br />

Nossa Santa sentiu-se consolada ao ouvir essas palavras,<br />

pois de fato ela oferecera somente sacrifícios menores<br />

a Nosso Senhor, que os recebia por meio de Nossa<br />

Senhora. Entretanto, devido ao amor com que eram<br />

aceitos, o Redentor os acolhia com sumo agrado. Assim,<br />

ela salvava um incontável número de almas. Ela abria<br />

dessa forma a pequena via.<br />

Então, uma característica da espiritualidade de Santa<br />

Teresinha é esse modo de oferecer as dores comuns do<br />

dia-a-dia, as quais Deus pede habitualmente a todo mundo.<br />

Porém, trata-se de oferecê-las como o fez a vítima do<br />

amor misericordioso de Nosso Senhor.<br />

Uma inundação de graças...<br />

Santa Teresinha nunca se vira favorecida por graças místicas<br />

extraordinárias, como visões ou revelações. Até que<br />

no último momento de sua vida foi arrebatada num êxtase,<br />

ficou transportada de alegria, ergueu-se na cama e disse<br />

palavras de entusiasmo diante daquilo que via. Depois,<br />

reclinou-se e expirou. Seu corpo jazia nesta Terra, mas sua<br />

alma já ingressava na eterna bem-aventurança.<br />

Dentro da extrema pobreza carmelitana, seus funerais<br />

foram esplêndidos, porque um quintessenciado aroma<br />

de violeta, procedente não se sabe de onde, dominou<br />

literalmente o lugar em que o corpo dela se encontrava<br />

exposto à visitação pública. Como uma de suas primeiras<br />

intercessões junto à misericórdia divina, obteve a<br />

conversão da superiora de seu convento, que tanto a tinha<br />

amargurado.<br />

De lá para cá, Santa Teresinha inundou o mundo com<br />

graças, sendo considerada a mais solícita em atender os pedidos<br />

feitos, inclusive os relativos aos bens terrenos. Nesse<br />

sentido, célebre é o caso passado em um convento na cidade<br />

de Galípoli, na Turquia. Essa comunidade se achava<br />

em grandes apuros financeiros, sem nenhum dinheiro para<br />

pagar suas despesas. A superiora implorou então o auxílio<br />

de Santa Teresinha: no dia seguinte, ao abrir o cofre<br />

da casa, encontrou a quantia necessária e mais ainda...<br />

Obtendo-lhes donativos materiais, Santa Teresinha atrai<br />

as almas para que peçam bens espirituais. E ela as atende.<br />

Destinada a socorrer a Terra<br />

Tinha ela certeza de que seria canonizada, e nos últimos<br />

dias de sua vida recomendava conservassem fragmentos<br />

de suas unhas ou fios de suas sobrancelhas, dizendo:<br />

“Guardem-nos, porque após minha partida, haverá pessoas<br />

que ficarão felizes tendo isso”. Quer dizer, seriam distribuídos<br />

como relíquias após sua glorificação nos altares.<br />

Em diversas ocasiões pronunciou ela essa linda frase:<br />

“Passarei meu Céu fazendo bem sobre a Terra”. E também<br />

afirmou: “Só estarei inteiramente livre das coisas da<br />

Terra depois que o número dos eleitos estiver completo”.<br />

Se pensamos que esse total dos escolhidos só será atingido<br />

no fim do mundo, esse dito significa que ela intervirá em<br />

nosso favor enquanto houver homens atuando na Terra.<br />

“Passarei meu Céu fazendo o bem<br />

sobre a Terra”, costumava dizer Santa<br />

Teresinha, prometendo interceder pelos<br />

homens até o fim do mundo<br />

Abaixo, prece diante da urna funerária de Santa<br />

Teresinha, no Carmelo de Lisieux; à direita, “Milagres<br />

de Santa Teresinha”, vitral do mesmo convento<br />

36


Fotos: S. Hollmann<br />

Foi, portanto, uma Santa especialmente designada<br />

pela Providência para fazer grande bem à Terra. Muitos<br />

eleitos há cuja memória, por assim dizer, desaparece,<br />

perde-se, devido à versatilidade humana. Algum benefício<br />

eles fazem, porém menor se comparado com o realizado<br />

por uma Santa que vai para o Céu com o programa<br />

de continuar a agir intensamente nos acontecimentos<br />

terrenos, apenas repousando quando o número dos escolhidos<br />

estiver completo.<br />

Alegria com a felicidade dos<br />

habitantes do Céu<br />

Para Santa Teresinha, cada ano que passa é um período<br />

de ação, de vitória, de esplendor. Pois no dia de sua<br />

festa, a um título especial, comemora-se um aniversário<br />

que a torna intensamente feliz e aumenta sua glória<br />

no Céu. É verdade que esta, no Paraíso, não cresce após<br />

ter terminado o mundo. Mas, enquanto tal não suceder,<br />

é passível de aumento. Por exemplo, se um bem-aventurado<br />

escreve um livro, e 200 anos depois de sua morte<br />

essa obra é ocasião de instrumento para a salvação de<br />

alguém, a alegria e a glória dele se avolumam no Céu.<br />

Alguém poderia objetar: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sinto-me um pouco<br />

insultado pensando em meus sofrimentos aqui no mundo,<br />

nesse vale de lágrimas, e o senhor anuncia que Santa<br />

Teresinha, já muito feliz, recebeu uma felicidade a mais no<br />

Céu. Parece uma distribuição desigual dos dons divinos...”<br />

Ora, os planos de Deus não são igualitários, e, sobretudo,<br />

os relativos aos que estão no Céu e na Terra. Permanecemos<br />

aqui para sofrer e expiar, e os santos no Paraíso<br />

para desfrutar a verdadeira felicidade. Se padecermos,<br />

lutarmos e expiarmos bem, seremos também daqueles<br />

que irão para o Céu, felizes por toda a eternidade.<br />

Dessa maneira, há uma inteira proporção, não igualdade,<br />

entre a nossa desventura e a ventura de Santa Teresinha.<br />

Mais. Devemos nos rejubilar com todos que se acham<br />

no Paraíso, pois nos precederam nesta Terra com o sinal<br />

da Fé. Viveram antes de nós com o signo da Cruz. São<br />

nossos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, em Nossa<br />

Senhora, e nos cabe desejar a alegria deles: a felicidade<br />

de um irmão interessa a outro irmão.<br />

Por fim, cumpre considerarmos que, ao ver nosso contentamento<br />

pela felicidade dela, Santa Teresinha há de<br />

se tornar particularmente propensa a nos alcançar graças<br />

cada vez maiores. Do Céu, ela nos acompanha com afabilidade,<br />

com um sorriso todo dela, e dirige à Santíssima<br />

Virgem uma empenhada prece por nós: para que aumente<br />

nossa fé, nossa crença, nossa esperança e nosso gáudio<br />

com as glórias futuras que nos aguardam na venturosa<br />

eternidade, junto a ela e aos Sagrados Corações de Jesus<br />

e Maria.<br />

v<br />

37


Luzes da Civilização Cristã<br />

Esplendor áureo<br />

Fotos: E. Caballero<br />

Aspecto do Palácio do<br />

Vaticano no alvorecer<br />

(à direita, as janelas dos<br />

aposentos pontifícios)<br />

38


Transportemo-nos com a imaginação<br />

até as primeiras eras<br />

da humanidade. Indivíduos e<br />

comunidades vagueiam pela Terra,<br />

ainda despoluída, embelezada por<br />

uma natureza virginal, pouco tisnada<br />

e desfigurada pelos nossos pecados.<br />

Pensemos numa tribo em cujo<br />

seio já se nota, em gérmen, a grandeza<br />

e a bondade de um povo que<br />

deve surgir. Essa tribo cruza as vastidões<br />

dos territórios livres, conduzindo<br />

seus rebanhos, suas tendas, caminha<br />

enfrentando as intempéries<br />

e outros perigos, recolhendo‐se em<br />

grutas, galgando e descendo montanhas,<br />

rezando e cantando.<br />

De súbito, depara-se com novo panorama.<br />

Digamos, o mar, estendendo-se<br />

à frente daqueles homens numa<br />

paisagem maravilhosa. Eles se detêm<br />

e aguardam a chegada do chefe, do<br />

A cúpula da Basílica de São Pedro<br />

sob as primeiras refulgências do sol<br />

39


Luzes da Civilização Cristã<br />

patriarca. Este se aproxima: ancião robusto,<br />

barba e cabelos brancos, trajando<br />

túnica igualmente branca. Enquanto<br />

ele considera aquele cenário, seus<br />

seguidores procuram o reflexo do mar<br />

no olhar do patriarca... Até os animais<br />

cessam de mugir e de se agitar. Faz-se<br />

profundo silêncio. O sol está se pondo<br />

sobre o oceano e cobrindo as águas de<br />

jóias e cintilações.<br />

A vista daquele espetáculo cumula<br />

de encanto quase paradisíaco a alma<br />

de todos.<br />

O patriarca se levanta com dignidade,<br />

majestoso, imponente, sublime,<br />

e sem mais comentários entoa<br />

um improvisado hino de louvor a<br />

Deus. Cântico que os vários segmentos<br />

de sua tribo vão parafraseando<br />

e desdobrando em melodias e poesias<br />

mais simples, enquanto montam<br />

o acampamento e se dispõem ao repouso<br />

noturno.<br />

No dia seguinte, eles sairão da poesia<br />

e do sono para ingressar novamente<br />

na luta e no trabalho cotidianos, sob<br />

a venerável orientação do seu líder.<br />

Como é bela a condição de patriarca!<br />

Entretanto, essa beleza, tão alta e<br />

grandiosa, é insignificante se compa-<br />

Fotos: E. Caballero<br />

40


Na praça vazia, ergue-se o famoso obelisco,<br />

e as fontes com o ruído harmonioso de suas<br />

águas a jorrarem e caírem nas bacias...<br />

Amanhecer na Praça de São Pedro<br />

rada com o esplendor do patriarcado<br />

dos patriarcados: o papado.<br />

Pois a instituição pontifícia se desenvolve<br />

inteira numa atmosfera áurea,<br />

ela vive numa esfera do dourado.<br />

De dentro desse áureo, ele impulsiona<br />

e se debruça sobre todas as coisas,<br />

sejam as mais complexas, sejam<br />

as mais triviais e terrenas, sem deixar<br />

de ser ele, sem receio de se deteriorar,<br />

de quebrar-se ou de perder a<br />

sua própria lógica. Age e existe com<br />

uma aisance que lhe vem, não de uma<br />

virtude acima do comum, mas de um<br />

elevadíssimo grau de sobrenatural.<br />

É de uma perfeição e excelência que<br />

só têm paralelo com o próprio Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, seu Fundador.<br />

O Papa no seu dia-a-dia é o Divino<br />

Mestre andando na banalidade<br />

da Judéia daquele tempo, detendo-se<br />

junto a esse mendigo, àquele cego ou<br />

àquele leproso, conversando com um<br />

servo, dirigindo a palavra ao homem<br />

mais insignificante, afagando e ensinando<br />

às criancinhas...<br />

Imaginamos um patriarca. Imaginemos<br />

um Papa santo no Vaticano.<br />

41


Luzes da Civilização Cristã<br />

A noite vai cedendo lugar às incipientes<br />

luzes da aurora. Toda a Roma<br />

dorme. Os 400 sinos das suas<br />

igrejas ainda não começaram a tocar.<br />

O Sumo Pontífice desperta, consulta<br />

o relógio. Dentro em pouco o<br />

sol estará raiando e a cidade emergirá<br />

do repouso. Ele sabe que a dois<br />

passos de seus aposentos se acha a<br />

capela com o Santíssimo Sacramento.<br />

Nosso Senhor, que o constituiu<br />

seu pastor e representante, o espera<br />

para uma primeira adoração.<br />

O Papa se apronta e se dirige à capela,<br />

onde se preparará para o augusto<br />

sacrifício da Missa. Enquanto<br />

caminha em direção ao Senhor, renascem<br />

na sua alma as preocupações<br />

da véspera, os pesados fardos do governo<br />

da Igreja, assim como animam<br />

seu espírito a imagem de muitas almas<br />

boas que a Providência tem suscitado<br />

pelo mundo, nas quais se depositam<br />

as esperanças e a glória da<br />

Esposa Mística de Cristo.<br />

Antes de entrar no oratório, ele<br />

pára e deita a vista através de uma<br />

das grandes janelas do Vaticano. À<br />

frente, os primeiros fulgores de sol<br />

osculam a imponente cúpula da Basílica<br />

de São Pedro. Na praça vazia,<br />

ergue-se o famoso obelisco que sempre<br />

nos faz lembrar do lema dos cartuxos:<br />

“a cruz está de pé, enquanto o<br />

orbe todo gira”.<br />

Das duas grandes fontes que ladeiam<br />

o obelisco, eleva-se o ruído<br />

harmonioso das águas a jorrarem e<br />

caírem nas suas bacias. A luz do dia<br />

começa a se refletir mais intensamente<br />

na cúpula. E o Pontífice pensa:<br />

“A Santa Igreja Católica Apostólica<br />

Romana! O Papado!” E o seu<br />

Anjo da Guarda lhe sopra na alma:<br />

“Tu es Petrus!”<br />

De um modo particularmente vivo<br />

e tocante, ele se sente identificado<br />

com seu papel, com sua missão.<br />

O Vigário de Cristo compreende<br />

que suas meditações atingiram o auge,<br />

e ele deve se entregar aos seus<br />

afazeres. O mundo inteiro o espera.<br />

Porém, não começará lendo relatórios<br />

nem assinando decretos ou<br />

tomando conhecimento dos jornais.<br />

Ele iniciará seu dia rezando, pedindo<br />

por todos os homens, pela Igreja<br />

universal.<br />

Entra na capela devagar, caminha<br />

até seu genuflexório e se ajoelha.<br />

A lamparina do Santíssimo corusca<br />

e tremeluz, lançando fulgores<br />

avermelhados sobre o tabernáculo.<br />

E de dentro do sacrário, o amor do<br />

Homem‐Deus pelo pontífice Santo<br />

se irradia plenamente. E ele começa<br />

a rezar, rezar, rezar...<br />

Como essa situação é mais esplendorosa<br />

do que a do patriarca<br />

pastor, no começo da humanidade,<br />

muito embora algo do patriarcado<br />

primeiro esteja contido nesse<br />

patriarcado espiritual e supremo. O<br />

Papado: como é belo, como é maravilhoso!<br />

v<br />

E. Caballero<br />

A manhã vai se espraindo<br />

sobre a Cidade Eterna<br />

42


D. Domingues<br />

A luz do dia se reflete mais intensamente na<br />

cúpula, e o Pontífice pensa: “A Santa Igreja<br />

Católica Apostólica Romana! O Papado!”<br />

43


Razão de nossa serenidade<br />

S. Hollmann<br />

Mãe incomparavelmente perfeita<br />

entre todas as mães,<br />

Nossa Senhora nos conhece,<br />

ama e quer bem com discernimento,<br />

bondade, paciência e carinho de<br />

uma intensidade extraordinária. Alcança-nos<br />

tudo o que nos convém e lhe pedimos<br />

confiantemente. Está disposta a<br />

nos obter o perdão de seu Divino Filho,<br />

mesmo para nossas piores faltas; alcançanos<br />

as graças necessárias para nossa emenda,<br />

nossa salvação e, assim, brilharmos diante<br />

d’Ela por toda a eternidade. É a misericórdia<br />

dessa Mãe de perfeição incalculável.<br />

Por isso mesmo, é Ela a razão de nossa serenidade.<br />

Não temos motivo para estarmos perturbados<br />

nem agitados, posto termos uma Mãe<br />

celeste que se compadece de nós e nos acompanha<br />

a todo instante com sua insondável solicitude.<br />

Devemos permanecer sempre tranqüilos:<br />

nossa Mãe vela por nós.<br />

A Virgem e o<br />

Menino - Igreja de<br />

Auteuil, França

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