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Revista Dr Plinio 29

Agosto de 2000

Agosto de 2000

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Apóstolo de<br />

Maria Rainha


Abiografia de Santa Clara<br />

de Assis muito nos fala<br />

da importância da vida<br />

interior, assim como da glória verdadeira<br />

das coisas santas e católicas.<br />

Oriunda de família nobre,<br />

undadora do ramo feminino da<br />

Ordem ranciscana, ela abandonou<br />

tudo o que possuía de rico e de<br />

precioso, para não ter “outro tesouro<br />

e outras heranças que o<br />

Deus do Presépio e do Calvário”.<br />

Consagrada a Nosso Senhor para<br />

todo o sempre, esta santa virgem<br />

um dia pôs em fuga os sarracenos<br />

que invadiam o norte da<br />

Itália e sitiavam seu convento.<br />

Avançou de encontro a eles, levando<br />

em suas mãos um cibório com<br />

o Santíssimo Sacramento: diante<br />

dessa frágil religiosa protegida pelo<br />

Coração Eucarístico de Jesus,<br />

tudo pára, tudo recua!<br />

Prova de que uma alma que se<br />

esforce na sua santificação pode<br />

fazer um bem maior para a causa<br />

católica do que todas as grandes<br />

realizações meramente materiais...<br />

Santa Clara (afresco da<br />

Capela de São Martinho,<br />

em Assis)


Sumário<br />

Na capa,<br />

a “Coroação da<br />

Santíssima Virgem”,<br />

retábulo do<br />

altar-mor da Igreja<br />

de St. Wolfgang,<br />

na Alemanha<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues erreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Diogo de Brito, 41 salas 1 e 2<br />

02460-110 S. Paulo - SP Tel: (11) 6971-1027<br />

otolitos: Diarte – Tel: (11) 571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, <strong>29</strong>6<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) <strong>29</strong>1-2579<br />

4<br />

5<br />

6<br />

8<br />

10<br />

15<br />

EDITORIAL<br />

Estradas reais<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

irmeza e diplomacia<br />

DENÚNCIA PROÉTICA<br />

“ides intrépida”<br />

ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Graça, oração e progresso<br />

na vida espiritual<br />

DONA LUCILIA<br />

Senhorio constituído de<br />

bondade e afeto<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Maternal e onipotente Realeza<br />

Preços da assinatura anual<br />

AGOSTO de 2000<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./ax: (11) 6971-1027<br />

20<br />

25<br />

31<br />

36<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Nos tempos de São Luís,<br />

rei de rança<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Vida de Advogado – IV<br />

Uma dádiva inesperada<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Maravilhas que fazem sonhar...<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Gloriosa santidade<br />

3


Editorial<br />

T<br />

alvez não haja figura mais apropriada<br />

do que o vitral para simbolizar a alma<br />

de uma pessoa virtuosa. Na profusão de<br />

suas tonalidades, na limpidez de sua luminosidade,<br />

na combinação de suas cores, se reflete a<br />

harmonia da riqueza interior que é apanágio dos<br />

espíritos retos.<br />

É o que se dava com <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. De tal modo<br />

que suas elevadas cogitações, suas análises, suas<br />

reflexões a propósito do que observava na história<br />

humana rendiam comentários e conferências,<br />

a bem dizer, tão atraentes quanto inexauríveis.<br />

Por isso, a cada número de nossa revista é<br />

possível deparar sempre com novidades — e<br />

muita variedade — dentro da extraordinária opulência<br />

do pensamento “pliniano”.<br />

Na presente edição, por exemplo, o leitor<br />

poderá ver como, ainda jovem, já redigia <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> sábios conselhos a respeito das condições<br />

para uma autêntica vida de piedade; ler seus comentários,<br />

repassados de admiração, sobre a<br />

personalidade de São Luís IX, rei de rança, e<br />

sua influência na história da Cristandade; retemperar-se<br />

com a proclamação de sua confiança na<br />

vitória da Igreja sobre quantos contra Ela se insurgem;<br />

deliciar-se com suas finas observações a<br />

respeito do espírito cristão refletido na arquitetura<br />

de formosas construções medievais, como<br />

Notre-Dame de Paris, a Sainte-Chapelle e o palácio<br />

do Louvre; encontrar, enfim, descrições e<br />

recordações encantadoras e edificantes a respeito<br />

do convívio de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com sua mãe, além<br />

de pitorescos episódios de sua vida, como uma<br />

ocasião em que chefiou um destacamento policial...<br />

Estradas reais<br />

Em meio a esse escachoar de maravilhas há,<br />

contudo, um tema que é como a corola da rosácea<br />

num vitral, em torno do qual todos os outros<br />

são apenas pétalas. Em se tratando de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

tal tema não poderia versar senão sobre Aquela<br />

que, segundo ele próprio dizia, era a luz de seus<br />

dias: a Mãe de Deus.<br />

*<br />

Em consonância com S. S. o Papa João Paulo II,<br />

estamos vivendo a grande esperança de que o<br />

3º Milênio seja uma era em que o mundo se<br />

volte para Nosso Senhor Jesus Cristo. Ou seja,<br />

uma época em que cada um destrone em seu coração<br />

os ídolos usurpadores e faça reinar em seu<br />

lugar nosso Divino Salvador. Não há meio mais<br />

eficaz para isto, não há caminho mais curto e seguro,<br />

do que fazer de Maria Santíssima nossa<br />

Rainha.<br />

São Luís Maria Grignion de Montfort, no seu<br />

famoso “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />

Virgem”, repete-o amiúde: “Para que venha<br />

o vosso Reino, venha a nós o Reino de Maria”.<br />

É bem esta a mensagem calorosa que, na<br />

matéria com o título de “Maternal e onipotente<br />

realeza”, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos transmite, neste mês em<br />

que a Igreja comemora a festa de Nossa Senhora<br />

Rainha.<br />

“As devoções marianas são as estradas reais<br />

pelas quais se chega a Nosso Senhor Jesus Cristo”,<br />

escreveu ele certa vez. E, ao discorrer agora<br />

sobre as prerrogativas régias de Maria, ele nos<br />

convida a voarmos com sua alma em filiais e devotos<br />

cânticos de louvor Àquela que, Soberana<br />

do Universo, é a “obra-prima da misericórdia divina”.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

irmeza e diplomacia<br />

D<br />

De 3 a 6 de agosto realizavam-se anualmente<br />

as festas do Senhor Bom Jesus<br />

de Pirapora — perto de São Paulo —,<br />

com uma concorrida romaria, em geral de pessoas<br />

de classe muito modesta. Paralelamente à festa religiosa,<br />

intensificara-se aos poucos uma comemoração<br />

profana, com danças nos barracões de hospedagem<br />

dos romeiros. Em vão os pregadores censuravam<br />

um certo número de “peregrinos”, que se<br />

entregavam a toda sorte de pecados, sendo comuns<br />

cenas e gestos indecorosos pelas ruas. Em 1938, a<br />

autoridade religiosa proibiu as danças, inclusive<br />

com avisos pagos em diários da capital paulista.<br />

Para evitar o que acontecera em 1937, quando as<br />

proibições não tiveram efeito, o Arcebispo de São<br />

Paulo resolveu interferir de modo enérgico. Chamou<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, que recorda:<br />

Dom Duarte me disse: “O senhor vai lá acompanhado<br />

de trinta soldados da polícia, com a incumbência<br />

de impedir qualquer dança, por respeito<br />

ao culto”. Ele não entrou em pormenores sobre<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, na época em que<br />

ocorreu o episódio de Pirapora. Como<br />

fundo de página uma vista desta cidade<br />

o uso que eu devia fazer da força. Para bom entendedor,<br />

meia palavra basta. Quer dizer: “Não<br />

quero que você faça violência, mas não quero lhe<br />

dizer para não fazer; quero que estique a corda,<br />

mas não arrebente”.<br />

Pirapora estava formigando de gente. Na hora<br />

do almoço, uma banda veio tocar músicas para eu<br />

ouvir. ui ao terracinho, bateram palmas, agradeci,<br />

etc. Vi que tentavam obter meu consentimento<br />

para o baile. No hotel, todas as atenções. Depois<br />

se apresentou o comandante do destacamento.<br />

Bateu continência:<br />

— Estou à disposição do senhor. Se ordenar,<br />

sai até fogo! A determinação da autoridade é não<br />

acontecer a dança.<br />

“Sair fogo é uma solução que nem me pode<br />

passar pela cabeça”, pensei eu. “Contudo, é preciso<br />

causar temor”. Disse ao policial:<br />

— Então, duas ordens: primeira, coloque todo<br />

o pessoal como se fosse sair fogo; segunda, não dê<br />

nenhum tiro sem antes falar comigo.<br />

Claro que eu nunca mandaria atirar, mas o policial<br />

ficou com a idéia de que, conforme o caso,<br />

eu o faria. Como entre ele e o povinho havia amizades,<br />

quando ele revelou minha suposta disposição,<br />

devem ter pensado que a situação era bravíssima.<br />

Quando começa a anoitecer, chega alguém do<br />

lugar e me diz que uma comissão dos festeiros deseja<br />

falar comigo. Muito tímidos, não querem entrar<br />

no hotel. Vou até a porta:<br />

— Boa tarde, como vão passando? O que há?<br />

Adianta-se um velhinho:<br />

— Doutor, faz favor! Sou romeiro velho, há tantos<br />

anos não venho aqui sem minha festinha, toda<br />

a nossa gente quer uma festinha. Por favor, doutor,<br />

deixa “nóis dançá”! — e tira o chapéu.<br />

Ao ouvir de novo a palavra “festinha”, eu o interrompo:<br />

— esta não! Liberdade para rezar, para andar<br />

por aqui, dou quanto quiserem! Mas não quero<br />

ouvir falar de dança. E tenham isso por bem entendido<br />

de uma vez por todas! O comandante do<br />

destacamento tem as minhas instruções.<br />

ui descansar. De manhã, após a Missa, perguntei<br />

na igreja:<br />

— O pessoal dançou?<br />

Todas as respostas:<br />

— Doutor, foi uma noite perfeitamente tranqüila,<br />

não houve nenhuma dança...<br />

5


DENÚNCIA PROÉTICA<br />

As épocas mudam, os adversários da Igreja<br />

transmudam. Às vezes parecem sufocá-la,<br />

porém ela ressurge mais esplendorosa. Aliás,<br />

“o negrume da mais absoluta dor abrevia o caminho<br />

para a vitória”. Esta proclamação feita há 70 anos<br />

pelo então jovem congregado mariano <strong>Plinio</strong> Corrêa<br />

de Oliveira, em artigo para o “Legionário”, continua<br />

e continuará válida até o fim do mundo.<br />

Altar da<br />

Confissão,<br />

na Igreja de<br />

São Pedro,<br />

em Roma<br />

“ides<br />

intrépida”


Em janeiro de 1930, escrevi, com<br />

este título, no Legionário, um<br />

longo artigo em que defendia<br />

a luminosa política do Santo<br />

Padre contra as acusações que<br />

os inimigos da Igreja faziam ao<br />

Tratado de Latrão, que selara a<br />

reconciliação entre o Vaticano e<br />

o Quirinal.<br />

Punha então em relevo a notável<br />

profecia em que São Malaquias<br />

indicava para cada Papa uma<br />

divisa que haveria de sintetizar e resumir<br />

a História da Igreja sob seu<br />

pontificado.<br />

Para Pio XI, o dístico é: ides intrépida.<br />

E eu justificava este título, enumerando todos<br />

os triunfos que cercavam então a Igreja de um ambiente<br />

de vitória. E meu artigo interpretava os sentimentos<br />

de todos os congregados de Santa Cecília.<br />

Estávamos então no alto do Tabor. De toda a parte subiam<br />

aos pés do Santo Padre as manifestações de admiração<br />

e alegria pelas assinaladas vitórias da Igreja em todo<br />

o orbe terrestre. A solução da questão mexicana, os progressos<br />

da Igreja nos países protestantes, o desenvolvimento<br />

promissor das missões católicas na Ásia e na África, a<br />

crescente invasão da filosofia católica em todos os meios<br />

científicos europeus e norte-americanos, cingiam o Santo<br />

Padre com um diadema de glórias, entre as quais refulgia,<br />

com brilho inconfundível, a reconciliação entre a Igreja e a<br />

Itália.<br />

Do Tabor passamos, agora, para o Gólgota. O diadema<br />

de glórias transformou-se em coroa de espinhos. Os murmúrios<br />

de admiração se converteram em gemidos, e irromperam<br />

perseguições em diversas partes da Terra. Quase simultaneamente,<br />

surge um conflito com a Lituânia, explode<br />

o anticlericalismo comunista da Espanha, reabrem-se novamente<br />

as crateras de impiedade do México, e a estas torturas<br />

vem acrescentar-se, com uma amargura penosíssima,<br />

a luta do fascismo contra a Igreja.<br />

Mas os companheiros do Tabor souberam seguir o Santo<br />

Padre ao Gólgota. E do mesmo modo por que misturamos<br />

nossas vozes às que se elevavam ao Trono de São Pedro<br />

para felicitar o Santo Padre, queremos que nosso protesto<br />

se erga no meio da confusão atual para hipotecar a<br />

Sua Santidade a solidariedade respeitosa e filial de todos<br />

os congregados de Santa Cecília.<br />

Mais do que nunca se justifica a divisa atribuída a São<br />

Malaquias. Na tortura, nas amarguras, na luta, Pio XI tem<br />

sabido manter o baluarte da é com uma intrepidez digna<br />

dos mártires do Coliseu. Não nos abatem nem nos espantam<br />

os acontecimentos que fazem sofrer a Igreja, simultaneamente<br />

perseguida em tantos lugares.<br />

Efetivamente, nunca as idéias e as instituições meramente<br />

humanas estão tão próximas da decadência do que<br />

Pio XI<br />

quando atingem seu apogeu. Nunca se<br />

aproxima tanto a fruta do apodrecimento<br />

do que quando atinge a plena maturidade.<br />

A impiedade está chegando<br />

a seu auge. O comunismo,<br />

que é a nota mais aguda no<br />

concerto de blasfêmias que se<br />

tem erguido contra a Igreja desde<br />

o século XVI, representa exatamente<br />

o paroxismo da incredulidade.<br />

E nós, católicos, gememos<br />

hoje ao peso da opressão<br />

de nossos adversários, que nos lançam<br />

à face a exclamação de Breno:<br />

“Ai dos vencidos!” Mas a Igreja, que é<br />

imortal porque não é humana, lhes devolve<br />

a frase, invertendo-lhe o sentido: “Ai dos vencedores!”<br />

Na realidade, para todas as coisas que não participam<br />

da indestrutível durabilidade da Igreja, o apogeu nada<br />

mais é senão uma etapa brilhante no caminho para a<br />

morte. Cada vitória de Napoleão representava, para este,<br />

um passo que o aproximava de Waterloo. O Waterloo da<br />

impiedade está próximo. Deixemos, portanto, passar estes<br />

Wagram e estes Austerlitz da descrença. Seu triunfo não<br />

há de durar.<br />

Quando é muito longo o trajeto a seguir por um trem,<br />

quando são muito escarpadas as montanhas que ele deve<br />

subir, quando são muito longas as voltas a que o obriga a<br />

ondulação do terreno, os engenheiros escavam um túnel<br />

que, embora sujeite os passageiros a alguns minutos de inteira<br />

escuridão, lhes encurta, todavia, as fadigas da viagem<br />

e lhes poupa longas horas de trajeto.<br />

Julgamos que a fase de dores cada vez mais acentuadas<br />

por que o Catolicismo virá a passar são como que o túnel<br />

que, embora nos mergulhe por algum tempo nas mais densas<br />

trevas, no negrume da mais absoluta dor, abreviará<br />

nosso caminho [rumo] à vitória final, cortando montanhas<br />

e transpondo obstáculos que, sem esse túnel de dores,<br />

levaríamos muitos decênios — séculos, talvez — a percorrer.<br />

Entra a Igreja, e com ela a civilização ocidental, em um<br />

dos túneis da história por que a Divina Providência nos faz<br />

passar, para encurtar os padecimentos do Catolicismo. E<br />

cada vez, portanto, que sentirmos mais cerrado o ataque,<br />

mais terríveis as provações, tenhamos a convicção tranqüilizadora<br />

de que estamos progredindo no túnel, e nos<br />

aproximamos cada vez mais do momento feliz em que nos<br />

acharemos novamente na claridade radiosa de uma civilização<br />

plenamente cristã. [...]<br />

Tomem cuidado, porém, os inimigos da Igreja! Berryer,<br />

o imortal defensor de Ney, dizia: “A Igreja não retribui os<br />

golpes que recebe; tome cuidado, porém, porque ela é uma<br />

bigorna que tem desgastado muitos martelos!”<br />

(Extraído do “Legionário”, nº 83, 12/7/31)<br />

7


ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Graça, oração e<br />

progresso<br />

na vida espiritual<br />

N<br />

o fim de junho de 1933, foram publicados os resultados oficiais do pleito para<br />

a Assembléia Nacional Constituinte. O jovem líder católico <strong>Plinio</strong> Corrêa de<br />

Oliveira surgiu como o candidato mais votado no país, com o dobro de sufrágios<br />

do segundo colocado. Seria natural que uma pessoa eleita nessas condições, e que<br />

possuísse uma coluna regular nalgum jornal, quisesse comentar tal sucesso na primeira<br />

oportunidade. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não se comportou assim. Com sua natural placidez, humildade e<br />

despretensão, continuou o assunto de seu último artigo: dificuldades da vida espiritual e<br />

o papel imprescindível da graça.<br />

Em meu último artigo 1 , criticava o erro de certos<br />

católicos que vêem na vida piedosa uma série de<br />

atos de cortesia praticados em honra de um<br />

Deus indiferente ou distante, ou uma mera expansão sentimental<br />

de temperamentos exaltados.<br />

Sem a graça não se persevera na virtude<br />

Este erro funestíssimo provém, em parte, da ignorância<br />

que se nota sobre o papel da graça na vida espiritual.<br />

8


É ensinamento católico, do qual não podemos dissentir,<br />

que, sem o auxílio da graça, o homem não pode perseverar<br />

por muito tempo no cumprimento integral dos Mandamentos,<br />

e que, sem ele, é-lhe impossível pronunciar sequer,<br />

devotamente, o Santíssimo Nome de Jesus.<br />

O homem toma todas as suas deliberações e forma todos<br />

os seus propósitos, servindo-se exclusivamente de suas<br />

faculdades intelectuais e volitivas. Assim, por exemplo, fazer<br />

uma viagem, resolver um negócio, comprar um livro,<br />

etc., são atos que dependem somente da vontade e da inteligência<br />

do homem. A esta regra, porém, não obedece a<br />

vida espiritual, em que intervém um novo fator, que é a<br />

graça.<br />

A graça sobrenatural é um auxílio que Deus dá gratuitamente<br />

à alma, para a sua salvação. A graça pode ser, pois,<br />

uma luz especial concedida por Deus à inteligência, que<br />

lhe faculta a penetração clara das verdades necessárias para<br />

a salvação, ou um auxílio dado à vontade, para que vença<br />

os obstáculos que a distanciam do bem percebido pela<br />

inteligência.<br />

Sem esta iluminação, pois, ou este auxílio, é impossível<br />

a prática completa e prolongada da virtude.<br />

Absoluta necessidade da oração<br />

Este auxílio, Deus no-lo dá de forma tal que possamos<br />

aceitá-lo ou rejeitá-lo livremente. A graça não destrói, portanto,<br />

o livre arbítrio. Mas ela constitui um dom absolutamente<br />

gratuito de Deus, que a alma recebe sem que nada<br />

tenha feito para o merecer. Daí decorre a necessidade absoluta<br />

da prece humilde e confiante, em que o homem pede<br />

as graças necessárias para seu aperfeiçoamento espiritual.<br />

A oração nos aparece, pois, ao cabo destas considerações,<br />

como elemento indispensável para o aperfeiçoamento<br />

moral do indivíduo.<br />

A graça não tem, no entanto, como único veículo a oração<br />

particular. A Igreja também canaliza para seus filhos<br />

as graças sobrenaturais de que necessitam, através dos<br />

seus Sacramentos e do valiosíssimo recurso de sua oração<br />

oficial e do Santo Sacrifício da Missa (...)<br />

aberração ...., quando desacompanhada do desejo .... de<br />

aperfeiçoamento espiritual.<br />

Os favores se medem pelos benefícios que nos trazem.<br />

Os dons de Deus, que nos auxiliam a conquistar uma felicidade<br />

precária neste mundo são, pois, imensamente menores<br />

do que os que Ele nos dá para conquistarmos a felicidade<br />

eterna. A desproporção entre os dons perecíveis e os<br />

imperecíveis é a que existe entre as almas, criadas para a<br />

eternidade, e os objetos materiais que o tempo destruirá.<br />

Nestas condições, o católico é devedor de graças inapreciáveis,<br />

cuja rejeição constitui a alma ré de um delito que a<br />

torna abominável aos olhos da Justiça Divina.<br />

A alma pecadora, que rejeita a graça, não está, pois, em<br />

estado de apresentar ao Criador atos de adoração, reparação,<br />

ação de graças ou louvor que lhe sejam agradáveis.<br />

Enquanto do altar em que se queimava o sacrifício de<br />

Abel subia um fumo que se elevava ao Trono de Deus, o<br />

fumo do sacrifício de Caim não se elevava no ar. A única<br />

oração feita pelo pecador, e que seja realmente agradável<br />

aos olhos de Deus, é o pedido sincero de que lhe dê forças<br />

para empreender seriamente a reforma de sua vida.<br />

Um dilema, portanto, se nos impõe: ou a alma se serve<br />

da piedade como meio de aperfeiçoamento espiritual, e<br />

nesse caso o progresso espiritual deverá ser tão real quanto<br />

for intensa e séria a piedade, ou esta será apenas uma<br />

pieguice sentimental, detestável aos olhos de Deus e dos<br />

homens, ridícula aos olhos destes e quase sacrílega aos<br />

olhos d’Aquele. Outro dilema também se impõe: ou a alma<br />

pede as graças necessárias para seu aperfeiçoamento<br />

espiritual, ou ela se verá reduzida às suas próprias forças, e<br />

portanto derrotada pela primeira tentação que a assaltar.<br />

Sem progresso espiritual, não há verdadeira piedade.<br />

Sem piedade, não há verdadeiro progresso espiritual.<br />

1) Cf. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”, nº 28, pp. 12-13.<br />

(Transcrito do “Legionário”, nº 123, 2/7/33.<br />

Título e subtítulos nossos.)<br />

Não há piedade autêntica sem o desejo<br />

de progresso espiritual<br />

Temos, pois, demonstrado que o<br />

progresso espiritual exige a oração.<br />

Por sua vez, demonstraremos agora<br />

que [a oração] constitui uma<br />

De modo indissociável se unem<br />

santidade e vida de oração:<br />

nesta última, devemos pedir as<br />

graças necessárias para nosso<br />

progresso espiritual


DONA LUCILIA<br />

Senhorio<br />

constituído de<br />

bondade<br />

e afeto<br />

C<br />

omo nos foi dado<br />

apreciar no último<br />

artigo desta<br />

seção, Dª Lucilia, inteiramente<br />

segura de si, não<br />

acompanhava as aflições, o<br />

espírito competitivo e os<br />

sustos não raros entre as<br />

senhoras e moças de seu<br />

tempo, influenciadas pela<br />

onda hollywoodiana. Veremos<br />

hoje como ela — com<br />

fino senso psicológico e solicitude<br />

materna — preservou<br />

desse mal seus filhos.<br />

10


Oque restava de pomposo no teor de vida de então<br />

ainda exigia o comparecimento a bailes em elegantes<br />

e distintos trajes, inspirados em geral nos<br />

modelos franceses. <strong>Revista</strong>s de Paris, assinadas pelas senhoras<br />

da alta sociedade paulista, traziam fotografias das<br />

mais recentes e finas toilettes femininas. Qual devia ser a<br />

cor da seda do vestido para se harmonizar com certo penteado;<br />

como devia ser a combinação do chapéu com os<br />

sapatos e a bolsa; que jóias estavam mais adequadas a determinado<br />

traje, tudo era meticulosamente analisado e<br />

discutido pelas leitoras, tendo em vista as reuniões sociais.<br />

Com freqüência as senhoras mandavam executar seus projetos<br />

numa grande casa especializada, La Saison, muito<br />

bem decorada ao gosto francês. A proprietária, Mme.<br />

rançoise, brasileiramente chamada de Dona rancisquinha,<br />

ou suas auxiliares, costumavam ir às casas das clientes<br />

para levar amostras de tecidos, tirar as medidas e fazer as<br />

provas.<br />

Dª Lucilia, sem fugir à regra, igualmente se esmerava<br />

em compor e desenhar seus vestidos, comprar o tecido e<br />

exigir a perfeita confecção de seus trajes. Participava também<br />

das animadas conversas sobre tais temas. No entanto,<br />

nunca se deixava tomar pela agitação por elas suscitada.<br />

Quando chegava o dia de alguma festa, uma expectativa<br />

ardente tomava a maior parte das senhoras. Dª Lucilia estava<br />

preparada com tanto apuro quanto as outras. Certa<br />

de seu bom gosto, mas sem a menor pretensão, denotava<br />

aquela tranqüilidade e serenidade que nunca a abandonavam.<br />

Afirmando-se desse modo, mantinha-se fiel à antiga placidez<br />

paulista, em meio a um mundo que ia aderindo cada<br />

vez mais à agitação da vida moderna.<br />

idelidade, mesmo ao preço do<br />

isolamento<br />

Inspirando-se nas elegantes modas ditadas pelo bom gosto<br />

francês (acima), a própria Dª Lucilia planejava e desenhava<br />

seus belos modelos (página anterior)<br />

A admirável coerência de Dª Lucilia custou-lhe, no entanto,<br />

um terrível tributo, que ela suportou com a firme<br />

resignação própria a uma alma católica: o isolamento.<br />

À medida que a nova mentalidade se foi difundindo por<br />

toda a parte, os que permaneciam fiéis às tradições e ao modo<br />

de ser do passado iam sendo postos de lado, caindo sobre<br />

eles a dura pena do ostracismo. Suas conversas, outrora<br />

apreciadas como atraentes, já não mais interessavam.<br />

Suas atitudes cerimoniosas não condiziam com os padrões<br />

ditos modernos. Só o engraçado, o excitante, o espontâneo<br />

tinham direito de cidadania.<br />

oi quando esses ventos de mudança sopravam mais<br />

fortes que Dª Lucilia viu seus filhos irem atingindo a adolescência,<br />

fase tão delicada na vida de uma pessoa, na qual<br />

tudo se pode ganhar ou perder. Para Rosée, já com doze<br />

anos, havia ainda a vantagem de ser educada no ambiente<br />

11


DONA LUCILIA<br />

— Meu filho, os tempos são muito ruins e você ainda é<br />

muito moço. Ninguém pode ter idéia do que é capaz uma<br />

pessoa quando se extravia. É bom que você saiba que eu<br />

preferiria vê-lo morto a vê-lo extraviado.<br />

Palavras carregadas de gravidade, que demonstram como<br />

os extremos de bondade e afeto pelos filhos, em Dª Lucilia,<br />

eram inteiramente movidos pelo amor de Deus, a<br />

ponto de ela preferir o sacrifício da vida terrena deles a vêlos<br />

perder a eterna.<br />

Um senhorio de afeto<br />

Com bondade<br />

e afeto, porém<br />

repassados<br />

de firmeza,<br />

Dª Lucilia<br />

velava de modo<br />

particular sobre<br />

<strong>Plinio</strong>...<br />

doméstico. Quanto a <strong>Plinio</strong>, pelo contrário, aproximava-se<br />

inevitavelmente o dia em que teria de freqüentar algum<br />

colégio. Tendo recebido elevada educação, era necessário<br />

que enfrentasse agora a luta contra o respeito humano. Auxílio<br />

do Céu nunca lhe faltaria, nem as fervorosas orações<br />

de sua mãe.<br />

No entanto, quantas apreensões sofreu o coração de Dª<br />

Lucilia!<br />

Preferia vê-lo morto a vê-lo extraviado<br />

Os temores de Dª Lucilia se manifestavam sobretudo<br />

no tocante aos rumos que, fazendo bom ou mau uso do livre<br />

arbítrio, seus filhos tomariam na vida. O papel dela cada<br />

vez mais se limitava, à medida que eles cresciam, a estimular<br />

os lados bons da personalidade de cada um, assim<br />

como suscitar neles ódio ao mal. Por isso, algumas vezes<br />

repetia a <strong>Plinio</strong>:<br />

Ouçamos uma palavra de quem tanto se beneficiou da<br />

preciosa solicitude materna de Dª Lucilia. A propósito do<br />

exercício da autoridade dela, diz <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />

“Havia um aspecto em mamãe que eu apreciava muito:<br />

o tempo inteiro, e até o fundo da alma, ela era senhora!<br />

Em relação aos filhos, guardava uma superioridade materna<br />

que me fazia sentir o quanto eu andaria mal, caso transgredisse<br />

a autoridade dela, e como semelhante atitude, de<br />

minha parte, lhe causaria tristeza, por ser ao mesmo tempo<br />

uma brutalidade e um malefício.<br />

“Senhora, ela o era, pois fazia prevalecer a boa ordem<br />

em todos os domínios da vida.<br />

“Sua autoridade era amena. Às vezes mamãe castigava<br />

um pouco. Mas mesmo em seu castigo, ou em sua repreensão,<br />

a suavidade era tão saliente que confortava a pessoa.<br />

“Com minha irmã Rosée o procedimento era análogo,<br />

embora mais delicado, por se tratar de menina. A reprimenda,<br />

entretanto, não excluía a benevolência, e mamãe estava<br />

sempre aberta a ouvir a justificação que seus filhos lhe<br />

quisessem dar.<br />

“Assim, a bondade constituía a essência do senhorio dela.<br />

Ou seja, era uma superioridade exercida por amor à ordem<br />

hierárquica das coisas, mas desinteressada e afetuosa<br />

em relação àquele sobre quem se aplicava.”<br />

Essa retidão de alma, que é a verdadeira bondade, cada<br />

vez menos era compreendida num mundo propenso a acabar<br />

com a incômoda distinção entre bem e mal.<br />

Porém, Dª Lucilia, fiel ao espírito da Igreja, continuava<br />

a formar seus filhos nos mesmos princípios perenes, resistindo<br />

aos vagalhões de mudança que agitavam a sociedade.<br />

O papel dos antepassados<br />

Já pudemos comprovar que um dos traços mais característicos<br />

da educação dada por Dª Lucilia consistia em transmitir<br />

lições morais através de contos ou histórias 1 . Método<br />

cheio de sabedoria, utilizado pelo próprio Homem-Deus<br />

em suas pregações, constituindo as parábolas algumas das<br />

páginas mais belas e ricas dos Evangelhos, por seus divinos<br />

ensinamentos envoltos em poesia sem igual.<br />

Dª Lucilia não era grande leitora de livros de história.<br />

Tinha noções gerais, como habitualmente as senhoras do<br />

12


tempo. Entretanto, possuía privilegiada memória, além de<br />

um dom extraordinário para transmitir seus sentimentos a<br />

respeito dos fatos, dando a entender, através de pormenores<br />

matizados, qual o fundo de seu pensamento. Usando<br />

vocabulário de dona-de-casa, com muita clareza, harmonia<br />

e correção, e sem se ater a precisões de caráter filosófico<br />

ou teológico, considerava os acontecimentos com aquele<br />

espírito católico que recebera pela tradição e enriquecera<br />

por sua piedade.<br />

De outro lado, possuía uma dimensão histórica do pensamento,<br />

concernente ao pequeno mundo de sua família.<br />

ormara assim uma teoria da vida, baseada na história de<br />

seus próprios ancestrais, que ela deveras admirava. Pela<br />

recordação do passado, ilustrava o presente, enunciando<br />

com subtileza o que este último tinha de rejeitável e o que<br />

o primeiro tinha de louvável.<br />

Costumava contar inúmeros fatos da vida de seu pai, a<br />

quem considerava o arquétipo do homem perfeito, bem<br />

como da vida de parentes ou de pessoas da sociedade de<br />

São Paulo que ela conhecera mais de perto.<br />

Ao longo das narrativas, acentuava certos pontos que<br />

serviam de lição para os filhos e depois acrescentava:<br />

— Vocês prestem atenção em como se deve ser. Uma<br />

pessoa deve agir assim, olhem o que sucedeu com tio tal,<br />

ou com a prima tal.<br />

Ela insistia em especial sobre determinados procedimentos,<br />

como por exemplo, o de se empenhar em ser uma pessoa<br />

muito respeitável.<br />

Dª Lucilia fazia uma alta idéia do papel que tinham, na<br />

vida de uma pessoa, os antepassados e o nome da família.<br />

Achava que este último devia ser usado como um estandarte,<br />

tal como um soldado porta sua bandeira em combate.<br />

É uma honra carregá-la e seria uma desonra deixá-la<br />

cair, por preguiça ou por medo, nas mãos do adversário.<br />

Assim, para quem descende de ancestrais dignos de nota,<br />

constituiria um desdouro não estar na mesma altura moral<br />

dos mais destacados dentre eles.<br />

Estimulava sempre os filhos a almejarem a honra e adquirirem<br />

respeitabilidade através de suas virtudes pessoais,<br />

sem se tornarem ambiciosos nem ávidos de dinheiro.<br />

Ela falava quase exclusivamente do bem, da verdade e<br />

do belo; dir-se-ia que não via a realidade senão através<br />

desses prismas. Entretanto, quando lhe cumpria censurar<br />

algo de mau, era difícil encontrar alguém que a excedesse<br />

no desempenho dessa obrigação. Por seu senso de justiça,<br />

a par do louvor aos méritos alheios, também a reprovação<br />

ao mal nunca lhe faltava nos lábios.<br />

A fim de incutir em seus filhos horror ao vício, descrevia<br />

o ocorrido com pessoas conhecidas de outrora, ressaltando<br />

as tristes conseqüências das paixões desenfreadas, de<br />

modo a fazer transparecer o quanto havia nestas de censurável.<br />

alando quase só do bem,<br />

incutia aversão ao mal<br />

Em suas narrativas, Dª Lucilia tinha muito em vista ensinar<br />

o desapego. Se fosse necessário sacrificar a posição<br />

social ou a fortuna, a fim de inteiramente cumprir o dever,<br />

ela o faria, e salientava ser esta a única atitude cabível nessa<br />

circunstância. A vida não é feita para o prazer, mas para<br />

carregar aos ombros, de bom grado, a Cruz de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, princípio amado e posto em prática por<br />

ela em sua existência diária, não só por sua resignação, como<br />

também por sua postura decidida face às adversidades.<br />

Ao contar algum fato acontecido com outrem, participava<br />

da alegria ou das dores das pessoas envolvidas, virtude esta<br />

própria a alimentar seu gosto em descrever pequenos episódios<br />

da vida real.<br />

... e Rosée,<br />

quando ambos<br />

entravam<br />

naquela préadolescência<br />

que tanta<br />

solicitude requer<br />

de toda mãe<br />

verdadeiramente<br />

católica<br />

13


DONA LUCILIA<br />

Um marido roubado<br />

azendo alta idéia do papel dos<br />

antepassados numa família,<br />

Dª Lucilia não deixava de propô-los<br />

como exemplos para seus filhos.<br />

Acima, o Cons. João Alfredo Corrêa<br />

de Oliveira; abaixo, o <strong>Dr</strong>. Gabriel<br />

José Rodrigues dos Santos<br />

Um desses fatos da São Paulo antiga passou-se<br />

com um de seus parentes, de bela aparência mas<br />

bem pouco inteligente. Conseguiu ele, no entanto,<br />

ser nomeado para o cargo de juiz de direito<br />

numa comarca vizinha à da Capital, provavelmente<br />

por efeito de relações sociais. Porém, não<br />

tendo capacidade para julgar qualquer causa cuja<br />

complexidade fosse tão-só um pouco maior que a<br />

normal, levava, no lugar, a vida apagada dos nulos.<br />

O pior nele, porém, não era a falta de dotes<br />

intelectuais, mas a preguiça. Não fazia esforço algum<br />

para melhorar sua própria situação.<br />

Havia na localidade uma viúva muito rica que,<br />

pela mera razão dos dotes físicos do jovem, queria<br />

casar-se com ele. Mas este, como não<br />

gostasse dela, não queria aceitar a proposta<br />

de modo nenhum. Percebendo a senhora<br />

quanto ele era mole e sem personalidade,<br />

mandou uns capangas invadirem seu quarto<br />

à noite e raptá-lo, como quem roubava antigamente<br />

uma moça. E ele não opôs resistência...<br />

Quando chegou à casa dela, encontrou-a<br />

furiosa, resolvida a casar-se com ele a todo<br />

custo. Como para resistir era preciso esforço...<br />

então se casou!<br />

O modo sério de Dª Lucilia contar a história,<br />

bem como sua rejeição a tanta pusilanimidade,<br />

dispensavam o emprego de adjetivos<br />

para tornar reprováveis, aos olhos de<br />

seus filhos, a preguiça e a moleza desse homem.<br />

Repudiar quase instintivamente esses vícios<br />

era a reação mais salutar que ela despertava<br />

em seus jovens ouvintes, predispondo-os<br />

desse modo às enérgicas e sábias atitudes<br />

que deveriam tomar perante as inúmeras<br />

vicissitudes desta vida.<br />

(Transcrito, com adaptações,<br />

da obra “Dona Lucilia”,<br />

de João S. Clá Dias)<br />

1) Cf. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, nº 26, pp. 11-14.<br />

14


DR. PLINIO COMENTA...<br />

“Coroação de Nossa<br />

Senhora”, por<br />

Velázquez<br />

Maternal<br />

e onipotente Realeza


DR. PLINIO COMENTA...<br />

I<br />

maculada pureza,<br />

inquebrantável<br />

prudência, insondável<br />

bondade, sublime<br />

sabedoria. Sobre<br />

cada uma das qualidades<br />

e virtudes da Mãe<br />

de Deus, temos visto comentários<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

que constituem verdadeiros<br />

hinos de abrasado<br />

amor.<br />

Desta vez, exprime ele<br />

seu enlevo e admiração<br />

pelo caráter régio da<br />

vocação de Maria.<br />

Ao instituir a festa de Nossa<br />

Senhora Rainha, quis a<br />

Igreja glorificar a Deus por<br />

meio da realeza de sua Mãe Santíssima,<br />

honrando-A e venerando-A com<br />

este título, um dos maiores e mais belos<br />

que já lhe foram atribuídos. É, portanto,<br />

com imenso júbilo que devemos<br />

nos associar a essa celebração das prerrogativas<br />

régias de Maria, pensando e<br />

meditando nelas, não só para crescermos<br />

no conhecimento de tão excelsa<br />

Soberana, como também — e sobretudo<br />

— aumentarmos nosso amor e nossa<br />

devoção a Ela.<br />

Mãe do Rei dos reis<br />

Voltemos-nos em primeiro lugar<br />

para os fundamentos dessa realeza,<br />

quer dizer, as razões pelas quais Nossa<br />

Senhora é chamada de Rainha.<br />

Antes de tudo, por ser a Mãe do<br />

Rei, isto é, de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo. É Ele Rei como Deus, Autor<br />

de toda a Criação. É Rei como Salvador<br />

e Redentor do gênero humano,<br />

pois este, perdido que estava, foi resgatado<br />

pelo sangue infinitamente precioso<br />

do Cordeiro Divino, o Qual se<br />

tornou assim seu dono e senhor. É<br />

Rei por direito de nascença, descendendo<br />

da linhagem monárquica de<br />

David. É Rei, ainda, como o mais excelente<br />

dos homens, no qual nossa natureza<br />

atingiu uma superioridade e<br />

uma plenitude inimagináveis.<br />

Ora, enquanto Mãe do Rei, merece<br />

Nossa Senhora o título de Rainha, e<br />

não apenas porque convinha a Ele ser<br />

filho de uma soberana, mas também<br />

porque foi dada a Ela uma participação<br />

efetiva no governo de Nosso Senhor<br />

sobre todo o Universo.<br />

Com efeito, depois de sua triunfal<br />

Assunção, a Santíssima Virgem se viu<br />

exaltada pelas Três Pessoas Divinas,<br />

recebendo um completo domínio sobre<br />

as criaturas visíveis e invisíveis, os<br />

Anjos e os Santos no Céu, os homens<br />

vivos, as almas do Purgatório, bem como<br />

sobre os réprobos e demônios do<br />

Inferno. De tal sorte que, a partir de<br />

então, Deus executa todas as suas<br />

obras e realiza todas as suas vontades<br />

por intermédio de sua Mãe. Esta não<br />

é apenas o canal por onde passa o império<br />

do Rei, mas é a Rainha que decide<br />

por alvitre próprio, consoante os<br />

desígnios d’Ele.<br />

16


Medianeira universal de<br />

todas as graças<br />

Essa sapiencial disposição da Beatíssima<br />

Trindade, concedendo tal poder<br />

a Nossa Senhora, nos leva a considerar<br />

outro precioso fundamento<br />

da realeza mariana: a prerrogativa de<br />

Medianeira universal de todas as graças.<br />

É sentença estabelecida na Teologia<br />

que, igualmente por vontade divina,<br />

todos os dons celestiais nos são<br />

outorgados por meio de Maria Santíssima,<br />

assim como todas as nossas súplicas<br />

e orações só chegam ao trono<br />

de Deus se apresentadas pelas maternas<br />

e compassivas mãos de sua Mãe.<br />

Ele A constituiu dispensadora de<br />

seu inextinguível tesouro de graças<br />

e favores, e é por meio d’Ela<br />

que deseja atender nossos pedidos.<br />

Se todos os Anjos e Santos<br />

reunidos suplicassem algo em proveito<br />

de um fiel, sem invocar a intercessão<br />

de Maria, nada obteriam.<br />

Ela sozinha, pedindo por nós,<br />

tudo alcança.<br />

Nossa Senhora é, em relação às<br />

nossas preces, um alto-falante incomparável<br />

a ecoar no Céu. Ela transforma<br />

nossas palavras, dá-lhes uma melodia,<br />

um som, o valor de um hino,<br />

purifica a nossa pronúncia de todas as<br />

marcas de nosso desregramento e de<br />

nossas insuficiências. E não contente<br />

com isso, acaba substituindo nossa<br />

voz pela d’Ela, pois nosso timbre, tão<br />

menos eminente que o de Maria, vale<br />

apenas como um sussurro que se une<br />

e se perde no cântico d’Ela ao Senhor<br />

da Criação. De tal maneira o foco da<br />

predileção divina se concentrou inteiro<br />

nesta ilha bem-amada.<br />

Desse modo, a realeza de Nossa<br />

Senhora está numa conexão íntima<br />

com o fato de Ela ser o canal de todas<br />

as graças. Ela é Rainha de tudo, porque<br />

tudo é pedido e outorgado por<br />

meio d’Ela. Verdade esta corroborada<br />

pelo título de Onipotência Suplicante,<br />

com o qual os atributos régios<br />

da Santíssima Virgem ainda mais se<br />

explicam: para ser genuinamente soberana,<br />

importa que Ela tenha junto a<br />

Deus uma influência sem restrições.<br />

Então, porque pode tudo aos pés<br />

d’Aquele que tudo pode, por isso Ela<br />

é Rainha.<br />

Rainha dos corações<br />

Tomemos, agora, o significado<br />

da realeza de Maria vista num ângulo<br />

ainda mais acessível à consideração<br />

dos homens.<br />

Assim como uma rainha terrena<br />

exerce o melhor de seu domínio<br />

sobre a parte mais nobre de<br />

seu reino, assim também o gover-<br />

Nossa Senhora é Rainha,<br />

antes de tudo, por ser a<br />

Mãe do Rei dos reis<br />

(Tríptico de Jan van Eyck)<br />

17


DR. PLINIO COMENTA...<br />

no de Nossa Senhora reveste-se de<br />

particular excelência quando se trata<br />

de seu império sobre o gênero humano,<br />

a parcela mais importante de<br />

sua universal soberania. E como o<br />

que há de mais nobre no homem é a<br />

alma, podemos concluir que a plenitude<br />

da realeza da Virgem Santíssima<br />

se verifica no fato de Ela ser Rainha<br />

de nossas almas.<br />

Este maravilhoso predicado mariano<br />

foi superiormente exaltado por<br />

São Luís Grignion de Montfort, ao invocá-La<br />

sob o título de Rainha dos<br />

corações. Como coração entende-se,<br />

na linguagem das Sagradas Escrituras,<br />

a mentalidade do homem, sobretudo<br />

sua vontade e seus desígnios, e<br />

não a mera sensibilidade, segundo a<br />

simbologia moderna.<br />

Assim, Nossa Senhora é Rainha<br />

dos corações enquanto tendo um poder<br />

sobre a mente e a vontade dos homens.<br />

Este império, Maria o exerce,<br />

não por uma imposição tirânica, mas<br />

pela ação da graça, em virtude da<br />

qual Ela pode liberar os homens de<br />

seus defeitos e atraí-los, com soberano<br />

agrado e particular doçura, para o<br />

bem que Ela lhes deseja.<br />

Esse poder de Nossa Senhora sobre<br />

as almas nos revela quão admirável<br />

é a sua onipotência suplicante,<br />

que tudo obtém da misericórdia divina.<br />

Ela nos governa com uma tão extrema<br />

suavidade que Ele, como Eterno<br />

Juiz, acabaria não podendo fazê-lo<br />

em igual medida. Tão augusto é este<br />

domínio maternal sobre todos os corações,<br />

que ele representa incomparavelmente<br />

mais do que ser Soberana<br />

de todos os mares, de todas as vias<br />

terrestres, de todos os astros do céu.<br />

Tal é o valor de uma alma, ainda que<br />

seja a do último dos homens!<br />

Reinar nos corações, para<br />

reinar sobre o mundo<br />

Rainha de inesgotáveis<br />

misericórdias,<br />

dia virá em<br />

que Nossa Senhora<br />

reinará sobre todos<br />

os corações<br />

(fachada da<br />

Catedral de<br />

Orvieto, Itália)<br />

Dessas consoladoras considerações<br />

depreende-se, entretanto, um grave<br />

corolário. Se é verdade que Nossa Senhora<br />

nunca é mais plenamente Rainha<br />

do que quando reinando nos corações<br />

e na sociedade humana, cumpre<br />

observar que, lamentavelmente, é<br />

também verídico que pouco se nota<br />

no mundo contemporâneo uma efetiva<br />

aceitação dessa realeza. Cada vez<br />

mais foi ele rompendo com Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, com Maria Santíssima,<br />

desprezando e relegando a segundo<br />

plano os ensinamentos e ditames<br />

da Santa Igreja. O resultado é esse<br />

auge de desordem em que hoje vivemos.<br />

Para que Nossa Senhora volte a<br />

reinar nas almas e sobre o gênero humano,<br />

é necessário que cada<br />

devoto d’Ela tenha saudades<br />

das épocas católicas<br />

em que brilhou essa<br />

plenitude da realeza mariana;<br />

que tenha, sobretudo,<br />

esperança de uma<br />

nova era católica que<br />

virá, daquele Reino de<br />

Maria profetizado e<br />

descrito por São<br />

Luís Grignion nas<br />

páginas de seu<br />

Tratado da Verdadeira<br />

Devoção à Santíssima Virgem,<br />

em que todos os corações e toda a civilização<br />

de bom grado estarão submetidos<br />

ao doce império da Mãe de<br />

Deus.<br />

Mas, será só isso? Devemos viver<br />

apenas de uma grande saudade e de<br />

uma grande esperança?<br />

Não. Temos a possibilidade, cada<br />

um dentro de si mesmo, de proclamar<br />

o Reino de Maria, de dizer: “Em<br />

mim, ó minha Mãe, Vós sois a Rainha.<br />

Eu reconheço o vosso direito e<br />

procuro atender as vossas ordens.<br />

Dai-me lúmen de inteligência, força<br />

de vontade, espírito de renúncia para<br />

que as vossas determinações sejam<br />

efetivamente acatadas. Ainda que o<br />

mundo inteiro se revolte e Vos renegue,<br />

eu Vos obedeço”. Desse modo,<br />

haverá sempre no meio dessa torrente<br />

de desordem, de pus e de pecado,<br />

muitos brilhantes puros e<br />

adamantinos, ou seja, almas em<br />

que Nossa Senhora continua a<br />

reinar, corações que são outros<br />

tantos enclaves d’Ela na<br />

18


Terra, a Ela consagrados e a partir dos<br />

quais poderá estender seu domínio<br />

uma vez mais sobre o resto do mundo.<br />

Rainha indestronável<br />

Algum espírito cético poderia objetar:<br />

“Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pelo que o senhor<br />

acaba de afirmar, tem-se a impressão<br />

de que Nossa Senhora, em relação<br />

ao mundo de hoje, faz um pouco<br />

o papel de uma rainha no exílio,<br />

dessas ex-soberanas que vivem em algum<br />

canto, longe de seus antigos reinos.<br />

Poderão levar uma existência com<br />

certo luxo, com certo esplendor até,<br />

porém já não exercem verdadeiro domínio.<br />

Se, como o senhor disse, Nossa<br />

Senhora é rejeitada por uma grande<br />

parcela da humanidade, Ela será portanto<br />

uma Rainha destronada.”<br />

Eis aí um grande equívoco. Onipotência<br />

suplicante e tesoureira<br />

das misericórdias divinas, Nossa<br />

Senhora é Rainha indestronável.<br />

E quando parece<br />

não dominar, é porque, em última<br />

análise, está exercendo outra de<br />

suas prerrogativas régias: a de censurar<br />

e punir aqueles que recusam as<br />

suas benevolências. Se qualquer soberana,<br />

por mais compassiva e materna<br />

que seja, tem o direito de repreender<br />

seus súditos rebeldes e infiéis, a fortiori<br />

o terá a Rainha do Céu e da Terra.<br />

E pode haver pior castigo do que<br />

este de não estar sujeito ao governo e<br />

proteção da melhor de todas as Mães?<br />

Na verdade, Nossa Senhora possui<br />

os meios de obter de Deus<br />

— que sempre A atende<br />

— graças suficientes e<br />

até superabundantes<br />

para que todas as almas<br />

se salvem. Estas, porém,<br />

em virtude do livre arbítrio,<br />

conservam a<br />

liberdade de não corresponderem<br />

a essas<br />

graças. E se a Santíssima<br />

Virgem, apesar<br />

de sua insondável<br />

solicitude<br />

para com tais almas, permite que<br />

d’Ela permaneçam afastadas, há-de<br />

ser, em última análise, por uma<br />

punição inteiramente conforme com<br />

o exercício efetivo de seu poder de<br />

Rainha. E se somos castigados por<br />

Ela, Maria continua a ter sobre nós<br />

todo o domínio que Ela entenda. Nosso<br />

miserável esperneio, nossas péssimas<br />

recusas, não são senão movimentos<br />

que têm eficácia na medida em<br />

que Ela, por superiores desígnios de<br />

sua justiça, o tolere.<br />

“Por fim, meu Imaculado<br />

Coração triunfou!”<br />

Contudo — como nunca será demais<br />

repetir e salientar — Nossa Senhora<br />

é Rainha e Mãe de inesgotáveis<br />

misericórdias. Sabendo, como Ela só,<br />

que Deus não deseja a morte do pecador<br />

mas que ele viva, a Santíssima<br />

Virgem quer a salvação de todos os<br />

homens. E pode, por uma dessas maravilhas<br />

de sua inesgotável clemência,<br />

alcançar de Nosso Senhor uma forma<br />

super-excelente e irresistível de ação<br />

da graça, por onde as almas rebeldes<br />

se deixem tocar e se convertam, como<br />

que não querendo, mas de fato completamente<br />

livres, à maneira de São<br />

Paulo no caminho de Damasco. Tão<br />

iluminadas e tão auxiliadas do alto,<br />

que não têm sequer a tentação de<br />

uma recaída.<br />

Devemos, então, pedir a Nossa Senhora<br />

que atue assim sobre as almas<br />

duras e empedernidas, para que estas<br />

se abram à sua realeza toda feita de<br />

suavidade e benevolências. Que Ela<br />

quebre e remova, do fundo desses corações<br />

rebeldes, as resistências abjetas,<br />

as paixões desordenadas, as vontades<br />

péssimas.<br />

E tenhamos inteira confiança de<br />

que está nas mãos dessa celestial Soberana<br />

o conquistar um número assombroso<br />

de almas, o submeter os impenitentes,<br />

aqueles que até agora se<br />

fizeram surdos aos seus apelos. De<br />

maneira que, num dia não muito distante,<br />

poderá Ela proclamar: “Por fim<br />

— segundo a promessa que fiz em á-<br />

19


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA


J<br />

á temos mencionado em outras ocasiões o princípio defendido por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, de<br />

que “no plano temporal, se os homens abrirem sua alma à influência da Igreja, estará<br />

franqueado a eles o caminho de todas as prosperidades e grandezas”. São<br />

Luís Rei, cuja festa se comemora em 25 de agosto, foi fidelíssimo a tal princípio. É o tema<br />

de hoje de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Assim como Deus deseja encaminhar o desenvolvimento<br />

da Igreja para a realização de seus<br />

planos, é natural que esteja nos desígnios d’Ele,<br />

correlativamente, estabelecer, proteger e desenvolver a civilização<br />

católica. Em virtude dessa disposição divina, desperta<br />

o maior interesse uma análise da história à procura<br />

das pessoas providenciais, dos problemas, das crises, dificuldades<br />

e êxitos que a formação e conservação dessa civilização<br />

encontrou diante de si.<br />

Vejamos hoje um de seus períodos-auge, aqueles anos<br />

do século XIII nos quais desabrochou um sábio governante<br />

e um grande herói da é: São Luís IX, rei da rança.<br />

um dos piores reis de toda a história, ilipe, o Belo. Quer<br />

dizer, uma virtuosa mãe na origem, um primo santo no<br />

ramo colateral e um neto iníquo. É a confirmação de uma<br />

triste regra no existir das dinastias, segundo a qual a santidade<br />

e a infâmia costumam disputar lugar numa mesma<br />

genealogia...<br />

Santidade e infâmia<br />

numa mesma dinastia<br />

Ele era filho de Luís VIII e de uma princesa cercada de<br />

uma auréola bem medieval e poética, tanto pelo seu<br />

nome como pela origem, pelo estilo e pelas qualidades<br />

morais: Branca de Castela.<br />

Parece-me um nome de contos de fadas, que faz pensar<br />

num lírio particularmente alvo, brotado no alto da<br />

torre de uma fortaleza sobranceira e inexpugnável!<br />

Branca de Castela...<br />

Dela nasceu, em 25 de abril de 1215, um filho<br />

igualmente lirial, do qual se podem fazer todos os<br />

elogios.<br />

Por ocasião da morte de seu pai, em 1227, Luís<br />

tinha 12 anos. Com esta idade foi proclamado rei,<br />

bem antes do reconhecimento de sua maioridade,<br />

que sobreviria apenas em 1235. Neste mesmo ano<br />

casou-se com uma princesa de nome também literário,<br />

Margarida de Provença. Situada no sul da<br />

rança, a Provença, além de rica e bela, é uma<br />

região de clima suave, terra dos trovadores e da<br />

poesia. E assim como a mãe era um lírio desabrochado<br />

nos cumes de uma fortaleza, a esposa<br />

era uma margarida nascida no meio dos encantos<br />

provençais.<br />

Pelo lado materno, era primo-irmão de Luís<br />

outro monarca santo, o rei ernando de Castela,<br />

grande herói da reconquista espanhola contra<br />

os mouros. Quanto a seus descendentes, São<br />

Luís foi pai do rei ilipe III, o Ousado, e avô de<br />

Imagem de São Luís,<br />

na Igreja de Mainneville,<br />

rança.<br />

Na iluminura da página<br />

anterior, o rei segura<br />

a Sainte-<br />

Chapelle


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Encontro de São Luís com o Papa Inocêncio IV — A autoridade do Sumo Pontífice sobre reis e nobres<br />

mantinha a harmonia social na Idade Média<br />

Temas candentes no tempo de São Luís<br />

Viveu São Luís numa época em que alguns temas eram<br />

candentes, revestindo-se de importância transcendental e<br />

ocasionando as mais profundas repercussões na organização<br />

da Idade Média. Não se tratava, portanto, de problemas<br />

meramente especulativos, nos quais o santo soberano<br />

deve ter tomado parte relevante, embora haja carência de<br />

dados históricos para situar essa participação.<br />

Para mencionar apenas alguns desses temas, havia, em<br />

primeiro lugar, a luta entre o Império e o Papado, que<br />

atingia então seu estágio mais delicado.<br />

Luís IX, rei de rança — ou seja, da “ilha Primogênita”<br />

da Esposa de Cristo — santo, terceiro franciscano,<br />

cheio de zelo pela causa da Igreja, acompanhou com<br />

apreensão essa querela que envolvia os poderes espiritual<br />

e temporal. Infelizmente, não se conhece muito de sua<br />

atividade diplomática, nem da força política ou material<br />

que tenha empregado para assegurar a preponderância do<br />

Papado sobre o Império, questão absolutamente nevrálgica<br />

para a Civilização Católica daquela época. Seria preciso<br />

esclarecer ainda alguns pontos, para se poder chegar a uma<br />

conclusão acertada sobre a atitude do monarca francês<br />

nessa controvérsia.<br />

Outro tema interessante é o seguinte: São Luís viveu no<br />

ápice da Idade Média. Sabemos que foi contemporâneo de<br />

São Tomás, de São Boaventura, e que no tempo dele a sociedade<br />

orgânica e corporativa atingiu o máximo de seu<br />

desenvolvimento. Ora, gostaríamos de saber se ele teve<br />

consciência de todo esse florescimento que se dava na sociedade,<br />

e de sua importância.<br />

De modo mais particular é preciso abordar outro ponto.<br />

Sabemos que o regime feudal, para corresponder à concepção<br />

católica da sociedade que o engendrou, devia ser<br />

constituído pelo inteiro equilíbrio de forças entre suseranos<br />

e vassalos. Sobretudo, entre o rei e os nobres. Esse<br />

equilíbrio é garantido por dois fatores: é necessário que o<br />

rei tenha uma autoridade efetiva e, por isso, que seja bastante<br />

vigoroso para impor sua vontade aos senhores feudais.<br />

Mas é preciso também que estes últimos sejam bastante<br />

fortes para poderem conter os eventuais abusos do<br />

monarca. Assim se mantinha a harmonia social na Idade<br />

Média.<br />

Tal situação era possível em virtude do ascendente do<br />

Papa sobre toda a sociedade, pois, sendo o Pontífice superior<br />

aos reis e aos senhores feudais, podia servir de árbitro.<br />

E um rei que tinha sobre si esse poder pontifício (maior<br />

que a própria tutela exercida pelo Imperador do Sacro Império),<br />

não era inteiramente livre para estrangular os vassalos<br />

e nobres inferiores.<br />

No tempo de São Luís, esse equilíbrio social parece ter<br />

atingido um apogeu. Segundo conceituados historiadores,<br />

no século XIV — portanto, no período imediato ao de São<br />

Luís — o feudalismo alcançou na Europa a sua posição<br />

ideal. Se isto é assim, deve ter havido uma preparação,<br />

realizada pela geração anterior, precisamente a que viveu<br />

sob a influência direta do virtuoso monarca francês.<br />

Um santo no trono da rança<br />

Logo após a morte de Luís VIII, Branca de Castela, tão<br />

enérgica quanto jeitosa em política, assumiu a regência do<br />

governo. Depois de enfrentar vitoriosamente algumas<br />

crises, deixou o caminho livre e bem calçado para que as<br />

22


ormado nas virtudes cristãs por sua mãe, Branca de<br />

Castela (ao lado), São Luís tornou-se modelo de<br />

justiça e retidão, como nos célebres julgamentos sob<br />

o carvalho de Vincennes (abaixo)<br />

jovens mãos de seu filho continuassem a magna tarefa de<br />

governar a rança.<br />

Os contemporâneos de São Luís afirmavam que a melhor<br />

distração do rei era cantar no coro da Igreja e conversar<br />

a respeito de assuntos religiosos com os cortesãos. Costumava<br />

servir comida a 200 pobres, cujos pés lavava. Cuidava<br />

de bom grado dos doentes e tinha uma predileção especial<br />

em tratar dos leprosos, numa época em que esta<br />

doença era epidêmica e dificilmente curável.<br />

Quando se pensa na aparência de um desses pobres enfermos,<br />

com as carnes em decomposição, cobertos por um<br />

manto grotesco e esfarrapado, agitando um guizo para<br />

afugentar as pessoas sãs, e se imagina um rei, no esplendor<br />

de seu poder, aproximar-se dele para tratá-lo com todo o<br />

carinho e solicitude, pode-se vislumbrar a autenticidade de<br />

suas virtudes.<br />

Além de sua admirável caridade e paternal benevolência,<br />

São Luís era também louvado pela justiça e eqüidade<br />

com que governava seus súditos. Tornou-se quase legendário<br />

o fato de proceder pessoalmente a julgamentos e decisões,<br />

sob um grande carvalho nas proximidades de seu<br />

palácio, em Vincennes.<br />

Igual retidão marcou também outro episódio de sua vida,<br />

no qual esteve em jogo a integridade territorial francesa.<br />

Tratava-se de uma rebelião levada a cabo nada menos<br />

do que pelo próprio sogro do rei, Raimundo VII, Conde<br />

de Tolosa, que se aliara a outro importante nobre francês<br />

revoltoso, Hugo de Lusignan, ambos simpatizantes de<br />

Henrique III, soberano inglês com pretensões não pequenas<br />

de conquista na rança.<br />

São Luís, para quem os interesses do reino contavam<br />

acima de quaisquer sentimentos familiares, partiu em luta<br />

contra seu sogro, derrotou-o e o obrigou a assinar um tratado<br />

ratificando os direitos da coroa francesa. Por fim, em<br />

1243 se estabeleceu a chamada “paz de Bordeaux”, pela<br />

qual o rei da Inglaterra foi obrigado a ceder terras a São<br />

Luís. Aproveitando-se da ocasião propícia, os conselheiros<br />

23


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

do santo monarca quiseram convencê-lo a exigir mais do<br />

que o razoável. Prevaleceu, no entanto, o equilíbrio e a<br />

honestidade de São Luís, decidido a exigir apenas aquilo a<br />

que tinha direito, isto é, o proporcional à sua vitória.<br />

Diante desse modelo de desprendimento, o ímpio e ganancioso<br />

Voltaire fez este interessante comentário: “É impossível<br />

ao homem levar mais longe sua virtude...”<br />

Rei cruzado e penitente<br />

São Luís IX, o rei cruzado, diante de Damietta (gravura de Doré)<br />

Não se pode falar de São Luís IX sem mencionar um<br />

dos aspectos mais rutilantes<br />

de sua personalidade:<br />

o de cruzado.<br />

Depois de enfrentar<br />

e vencer as mais<br />

duras batalhas no<br />

seu reino, viu-se na<br />

contingência de conquistar<br />

vitória ainda<br />

mais árdua, ou seja,<br />

aplacar as resistências<br />

e as injunções<br />

maternas que tentaram<br />

demovê-lo da<br />

promessa feita de<br />

abraçar a cruz. Afinal,<br />

prevaleceram<br />

suas inabaláveis disposições,<br />

e São Luís<br />

acabou vestindo a<br />

túnica de cruzado e<br />

partindo com seus<br />

guerreiros para a<br />

Terra Santa.<br />

Nessa campanha,<br />

semeada de reveses<br />

e pontilhada de poucos<br />

sucessos, São<br />

Luís lutou como herói,<br />

mas acabou sendo<br />

preso por causa<br />

da imprudência de<br />

um irmão seu, que<br />

não seguiu as ordens do rei sobre a tática a ser empregada<br />

na batalha decisiva. No cárcere, São Luís deu provas de<br />

heroísmo ainda maior, edificando os próprios inimigos<br />

que o mantinham cativo. Após um longo período de sofrimento,<br />

recobrou a liberdade e pôde voltar ao seu reino,<br />

cujos súditos rezavam e ansiavam por seu feliz retorno.<br />

Sem fundamento, São Luís pensou haver cometido alguma<br />

imperfeição, algum pecado, em punição do qual Deus<br />

permitira o inglório fracasso daquela Cruzada. Sua delicadeza<br />

de consciência e sua profunda piedade o faziam pensar<br />

numa reparação, quando lhe chegou o oferecimento de<br />

uma preciosa relíquia, vinda diretamente da Terra Santa:<br />

um espinho da dolorosa coroa que, na Paixão, cingira a<br />

fronte adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O que fez São Luís?<br />

Não mandou confeccionar apenas um precioso escrínio,<br />

mas ordenou a construção de uma verdadeira jóia de arquitetura,<br />

a Sainte Chapelle (Capela Santa), no interior da<br />

qual fosse abrigada aquela relíquia de inestimável valor. E<br />

como se tal não bastasse, resolveu partir para as fronteiras<br />

de seu reino com a Itália, onde recebeu pessoalmente o espinho<br />

sagrado, a fim<br />

de conduzi-lo a pé,<br />

em trajes de penitente,<br />

até Paris. Tudo<br />

isso, em reparação<br />

pela suposta<br />

falta que ele teria<br />

cometido nos campos<br />

de batalha, defendendo<br />

a Terra<br />

Santa.<br />

Eis a verdadeira<br />

fisionomia de um<br />

santo, e de um santo<br />

que era rei! Autêntico<br />

monarca, que dizia<br />

“mea culpa, mea<br />

culpa, mea maxima<br />

culpa”, quando não<br />

tinha culpa alguma.<br />

Possuía, sim, um<br />

senso moral tão desenvolvido,<br />

uma<br />

aversão tão completa<br />

ao pecado, que se<br />

julgava na obrigação<br />

de reparar uma pretensa<br />

falta, em virtude<br />

da qual Deus<br />

não havia sido glorificado<br />

como merecia.<br />

oram almas dessa<br />

categoria que levaram<br />

a Civilização Cristã aos seus dias de maior esplendor.<br />

oram personalidades assim, santas e providenciais,<br />

que procuraram realizar neste mundo a sociedade humana<br />

perfeita, regida pelas leis de Deus e pelos ensinamentos da<br />

santa Igreja.<br />

O santo monarca entregou sua alma ao Criador em<br />

1270, aos 55 anos, após ser atingido pela peste, em plena<br />

guerra, durante outra Cruzada que ele comandou. Até<br />

chegar a seu leito de morte foi um batalhador, a respeito<br />

do que haveria muito a dizer noutra oportunidade. v<br />

24


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Ao fundo, fachada<br />

da Igreja do<br />

Carmo, em São<br />

Paulo, pertecente à<br />

Ordem para a qual<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> advogou<br />

durante muitos<br />

anos (abaixo, em<br />

foto tirada nas<br />

escadarias desse<br />

templo)<br />

VIDA DE ADVOGADO - IV<br />

Uma dádiva<br />

inesperada<br />

25


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

P<br />

or volta de 1940, quando o escritório de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> já prestava<br />

serviços advocatícios a um selecionado grupo de pessoas e instituições,<br />

Nossa Senhora lhe enviou, por uma via inesperada — e<br />

pitoresca —, aquele que se tornaria seu mais duradouro cliente.<br />

Não posso deixar de me lembrar<br />

com saudades, e até<br />

com respeito, de um fato<br />

que me aconteceu numa ocasião, num<br />

desses momentos pelo qual todo profissional<br />

passa.<br />

Certa tarde, lá por volta de 1940,<br />

estava eu trabalhando, quando meu<br />

oi para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> agradável<br />

surpresa o encontro com<br />

um velho amigo de seu tio<br />

João Alfredo...<br />

ajudante veio da sala ao lado e me<br />

disse em voz baixa:<br />

— Está aqui um velhinho, advogado,<br />

acompanhado de um frade enorme,<br />

querendo falar com você.<br />

Levantei-me, mas eles já vinham<br />

entrando. Um franzino ancião, de barbichinha<br />

branca, fisionomia típica de<br />

nordestino — era cearense —, olhar<br />

vivo e inteligente, com uma cartolinha<br />

na mão como ninguém mais usava<br />

havia pelo menos 20 anos. O padre,<br />

que já começava a entrar na velhice,<br />

era alto como uma torre, todo magro,<br />

mas forte, com umas sobrancelhas<br />

grossas que pareciam bigodes em cima<br />

dos olhos, e um jeito venerável.<br />

Um homem muito respeitável, de nacionalidade<br />

não muito definida para<br />

mim.<br />

Longe de imaginar o que poderiam<br />

desejar, pensei: “Na certa vão me<br />

convidar para fazer conferência nalguma<br />

pequena festa paroquial, ou algo<br />

do gênero”.<br />

Mas já o meu nordestinozinho<br />

avançou rumo a mim, estendendo a<br />

mão para me cumprimentar. Vi que<br />

era uma pessoa de consideração.<br />

Apertei-lhe a mão, mas... tomando<br />

um ar de amável interrogação: “Com<br />

quem tenho o prazer de falar?” Não<br />

quis perguntar, porque de repente eu<br />

conhecia esse homem e não estava<br />

lembrado.<br />

— <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor não me conhece<br />

certamente, talvez conheça de<br />

nome. Sou o desembargador Primitivo<br />

de Castro Rodrigues Sete.<br />

Desembargador era um cargo de<br />

prestígio. E quando ingressei no movimento<br />

católico, tinha ouvido falar<br />

do nome do <strong>Dr</strong>. Primitivo Sete com<br />

simpatia, como sendo um católico de<br />

certa projeção e um homem benemérito.<br />

Não chegamos a nos conhecer,<br />

mas o nome me ficara no ouvido. Há<br />

tempos não mais se falava dele, porque,<br />

em virtude da avançada idade,<br />

cessara quase todas as atividades.<br />

— Pois não, desembargador, muito<br />

prazer em conhecê-lo. Que honra me<br />

dá vir ao meu escritório!<br />

Ele apresentou o padre:<br />

26


— Aqui está rei Canísio Mulderman,<br />

holandês, provincial da Ordem<br />

do Carmo.<br />

— Ah, muito prazer em conhecêlo.<br />

Tenham a bondade de sentar-se.<br />

Via-se que haviam combinado tudo.<br />

O <strong>Dr</strong>. Primitivo Sete, que era visivelmente<br />

quem promovia os fatos,<br />

saiu com uma tirada inimaginável:<br />

— <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, fui desembargador<br />

durante muitos anos. Depois de deixar<br />

essa função, ainda advoguei longamente.<br />

À medida que avançava em<br />

idade, fui me desfazendo dos meus<br />

clientes, e agora sinto-me tão velho,<br />

que não tenho mais ânimo nem forças<br />

para advogar. Chegou afinal a vez de<br />

eu descansar.<br />

Eu pensei: “Ao que vai conduzir tudo<br />

isso?” Mas sempre com uma fisionomia<br />

amável. Aí veio o inesperado:<br />

— Agora, venho prestar uma homenagem<br />

ao Conselheiro João Alfredo<br />

Corrêa de Oliveira. Sei que o senhor<br />

é sobrinho-neto dele.<br />

“Conselheiro João Alfredo!” — eu<br />

pensei. “Conselheiro João Alfredo está<br />

na poeira dos livros de história;<br />

ninguém mais está pensando em homenageá-lo”.<br />

Tio João Alfredo, que tinha morrido<br />

há tempo, era irmão de meu avô<br />

paterno. Ele era para mim um ente<br />

mítico, em especial porque, entre as<br />

várias funções públicas que exercera<br />

brilhantemente, fora Primeiro Ministro<br />

do Império, havendo assinado<br />

com a Princesa Isabel a lei de 13 de<br />

maio de 1888, de libertação dos escravos.<br />

— ui grande admirador e amigo<br />

dele — continuou o <strong>Dr</strong>. Primitivo Sete.<br />

— Em homenagem à sua memória,<br />

resolvi fechar meu escritório, entregando<br />

a chave ao sobrinho-neto<br />

dele. Essa chave é de ouro: é o último<br />

cliente que me resta, o melhor que eu<br />

tinha e conservei até o fim, a Ordem<br />

do Carmo, aqui representada por seu<br />

Provincial, rei Canísio Mulderman.<br />

Ele deseja se tornar seu cliente, se o<br />

senhor concordar com esse negócio.<br />

Vi naquilo uma inegável dádiva de<br />

Nossa Senhora, e imediatamente disse:<br />

rei Canísio Mulderman, um “homem de ouro”, que representou<br />

o melhor cliente recebido por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no escritório de advocacia<br />

— Oh! mas desembargador, quanta<br />

honra! quanta bondade!<br />

E voltando-me para rei Canísio:<br />

— Espero ser um sucessor do desembargador<br />

Primitivo Sete que esteja<br />

à altura do nível de advocacia ao<br />

qual ele habituou o senhor.<br />

Ele, o holandesão, alto, quieto, respondeu<br />

com um “ôôh!... ôôh!..” Mais<br />

tarde descobri que ele, quando respondia<br />

a alguém que conhecia pouco,<br />

manifestava-se habitualmente desse<br />

modo lacônico, às vezes alisando a sobrancelha.<br />

Antes de nos despedirmos, ficou<br />

combinado um encontro com o rei<br />

Canísio para o dia seguinte, a fim de<br />

começarmos logo o serviço, pois o <strong>Dr</strong>.<br />

Primivito Sete já não queria tratar de<br />

mais nada.<br />

Um homem de ouro<br />

Acho que o tio João Alfredo nunca<br />

pensou que a memória dele contribuísse<br />

para aumentar minha confiança<br />

em Nossa Senhora. Mas Deus se<br />

serve dos instrumentos que entende,<br />

para fazer o bem. E serviu-se dele.<br />

oi, realmente, um dos melhores<br />

clientes eclesiásticos de São Paulo<br />

aquele que, por meio do Desembargador<br />

Primitivo Sete, a Providência<br />

levou para o meu escritório.<br />

Até aquele momento eu não tivera<br />

praticamente nenhum contato com a<br />

Ordem do Carmo e não conhecia rei<br />

Canísio. Ele era o Superior da Província<br />

Carmelitana luminense (dos Carmelitas<br />

Calçados), na qual São Paulo<br />

estava também incluído. Muito res-<br />

27


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

peitável, muito direito, muito honesto,<br />

levando os negócios da Ordem<br />

do Carmo no fio, e sabendo zelar pelos<br />

seus interesses.<br />

Com o tempo, rei Canísio mostrou<br />

ser um homem de ouro. Sempre<br />

muito amável, ia muito ao meu escritório<br />

para tratar dos negócios da Ordem,<br />

expunha seus problemas e intenções,<br />

e eu animava uma prosa com<br />

ele. Como já disse outras vezes, faz<br />

parte da profissão de advogado saber<br />

prosear. Era o que eu procurava fazer<br />

com ele. Lembro-me de seu acentuado<br />

sotaque holandês e de que, quando<br />

se dizia algo que o deixasse perplexo,<br />

exclamava com a pronúncia muito<br />

aspirada do “h”: “Hhhomem! hhhomem!”<br />

— e alisava a sobrancelha.<br />

Trabalhamos juntos, rei Canísio e<br />

eu, uns vinte anos, até ele morrer.<br />

Tratávamo-nos na maior cordialidade<br />

e simpatia recíprocas. izemos bons<br />

negócios, que deram ocasião à Ordem<br />

do Carmo de lucrar bastante, e<br />

me permitiram estabilizar minha situação<br />

financeira.<br />

Interior da Igreja do Carmo, em São Paulo<br />

Aliás, a Ordem do Carmo era riquíssima<br />

e, portanto, uma cliente de<br />

primeira categoria. Possuía bens adquiridos<br />

ou recebidos há séculos. No<br />

tempo colonial, os reis de Portugal<br />

(como os de Espanha, no período de<br />

união das coroas ibéricas) doavam<br />

terras enormes no Brasil, onde havia<br />

espaços devolutos de milhares de léguas.<br />

Os carmelitas estavam entre os<br />

beneficiados, e nada venderam do<br />

que ganharam. Seu patrimônio rendia,<br />

pois, muito movimento de advocacia.<br />

olha de papel mais valiosa<br />

que uma ilha<br />

Conto uma pequena curiosidade<br />

que se prende a isso. Certo dia recebi<br />

um telefonema do advogado de uma<br />

companhia de petróleo. Achei estranho,<br />

pois nunca tive nenhuma relação<br />

com esse tipo de empresa. Mas eu estava<br />

para o que desse e viesse. Atendi:<br />

— Pois não, etc.<br />

— Queremos comprar uma ilha<br />

que a Província Carmelitana luminense<br />

possui na entrada do estuário<br />

em Santos. Então, gostaríamos de saber<br />

do senhor como podemos fazer<br />

para ver o preço, etc.<br />

— Não tem dúvida — respondi<br />

amável, mas meio surpreendido.<br />

Compreende-se, porém, a intenção<br />

deles. Pretendiam instalar na ilha — a<br />

qual, se me recordo bem, era a de<br />

Urubuqueçaba — um reservatório de<br />

petróleo. Desse modo, se houvesse alguma<br />

explosão, o fogo não se alastraria.<br />

Era uma ilha desabitada, de<br />

modo que ninguém correria risco de<br />

vida. As companhias petrolíferas, à<br />

medida que iam crescendo, iam comprando<br />

ilhas como aquela, para essa<br />

finalidade.<br />

Telefonei ao rei Canísio:<br />

— Tal companhia está propondo<br />

comprar tal ilha assim, que a Ordem<br />

tem em tal lugar.<br />

— Ôh, ôh!<br />

— Eles oferecem tal preço (era<br />

muito bom). O senhor quer entrar<br />

nesse negócio?<br />

— Ôôh, pode ser, pode ser...<br />

Telefonei para a companhia, dizendo<br />

que a Ordem aceitava fazer o negócio,<br />

e concordava com o preço.<br />

— Vamos então fechar o negócio?<br />

— perguntei.<br />

— Antes queremos as escrituras<br />

que comprovam ser a Ordem do Carmo<br />

a proprietária da ilha.<br />

Telefonei ao rei Canisío:<br />

— O senhor pode me mandar os títulos<br />

de propriedade da ilha, de quem<br />

comprou, etc., para o pessoal da companhia<br />

vir pegar aqui? Querem comprovar<br />

se a Ordem é verdadeiramente<br />

dona da ilha.<br />

— Non, non pode ser. Eu não posso<br />

fornecer esses documentos.<br />

— Mas rei Canisío, não é esse o<br />

hábito comercial. É preciso entregar<br />

ao advogado os títulos.<br />

— Mas não é possível. O documento<br />

vale mais do que a ilha.<br />

— Mas como, frei Canísio?!<br />

— É um título assinado de próprio<br />

punho pelo rei ilipe II, da Espanha<br />

— e também de Portugal —, doando<br />

28


essa ilha à Ordem do Carmo. De maneira<br />

que esse documento tem grande<br />

valor e a ilha tem um valor pequeno.<br />

Diga ao advogado que, se ele quiser,<br />

venha aqui para estudar o documento.<br />

Aquilo era uma ilhota perdida, valia<br />

pouco. Ele estava contente de poder<br />

vendê-la. Mas dar o título, não.<br />

Nisso ele foi intransigente.<br />

Com efeito, o documento é interessantíssimo,<br />

e de muito valor.<br />

Eu disse ao advogado da companhia<br />

petrolífera:<br />

— Tenho certeza de que o senhor<br />

vai achar o título excelente, porque<br />

tem muito mais do que 30 anos de<br />

aquisição (era o prazo de prescrição<br />

naquele tempo). oi passado da Coroa<br />

diretamente para a Ordem do<br />

Carmo. O signatário é o rei ilipe II,<br />

da Espanha...<br />

— Oooohh! Mas que coisa magnífica!<br />

— Por ser um documento tão precioso,<br />

o padre superior não permite<br />

que ele saia do convento. O senhor<br />

tem de ir lá para examiná-lo.<br />

Ele achou graça e disse:<br />

— Ah! vou ver isso de qualquer<br />

jeito!<br />

Naturalmente, a companhia deve<br />

ter querido uma cópia fotográfica do<br />

título, até como curiosidade...<br />

Após uma grande batalha<br />

jurídica, um banquete<br />

holandês<br />

Um dia ganhei uma causa deles a<br />

propósito de um arranha-céu do largo<br />

da Sé, o Edifício Stella Maris. oi<br />

uma vitória brilhante de advocacia.<br />

Estava em vigor uma lei de inquilinato,<br />

que congelava os aluguéis, tornados<br />

irrisórios com o passar do tempo.<br />

Encontramos nessa lei um furo que<br />

permitia desalojar todos os inquilinos<br />

que, há tempos, estavam fixos naquele<br />

prédio, pagando quase nada.<br />

icando vazio o edifício, os carmelitas<br />

puderam alugá-lo como quiseram,<br />

a preço muito bom, e até me cederam<br />

ali uma sala, para as reuniões<br />

“Mais valiosa que<br />

a própria doação,<br />

era o documento<br />

assinado de<br />

próprio punho<br />

pelo rei elipe II,<br />

de Espanha...”<br />

de estudo à noite, com meu grupo de<br />

amigos.<br />

O superior — não era mais rei<br />

Canísio — apareceu para agradecer,<br />

pagou os honorários, e comunicou<br />

que o convento todo estava muito<br />

contente com a vitória que tinha obtido<br />

e que queriam oferecer um banquete<br />

holandês na chácara deles.<br />

Na manhã do dia combinado, antes<br />

de irmos para a chácara, estivemos<br />

conversando numa roda com frades<br />

carmelitas, todos holandeses, a respeito<br />

de sopa de batata. Eu disse que<br />

sopa de batata era algo bom, mas dificilmente<br />

bem feita, e por isso praticamente<br />

não valia nada. Um dos holandeses<br />

disse:<br />

— O senhor diz isto porque nunca<br />

comeu sopa de batata feita a la holandesa.<br />

— Realmente não comi, mas a que<br />

se come aqui no Brasil não há de ser<br />

muito diferente, pois batata é a mesma<br />

no mundo inteiro.<br />

— Sim, mas os cozinheiros não são<br />

os mesmos — respondeu ele.<br />

Sorri, e pensei: “Se as batatas são<br />

brasileiras, não sei que jeito poderão<br />

dar para ficarem mais saborosas”.<br />

ui com dois amigos para o tal jantar.<br />

Nessa noite, por surpresa, os frades<br />

prepararam entre outras coisas<br />

uma sopa de batata. Excelente! Completamente<br />

distinta do que entendemos<br />

por sopa de batata. oram as batatas<br />

mais deliciosas que comi na vida!<br />

Realmente eram brasileiras, mas,<br />

preparadas à holandesa, se transformaram<br />

num prato extraordinário!<br />

Possibilitando continuar a<br />

militância católica<br />

Ao mesmo tempo em que cuidava<br />

dos negócios da Ordem, nossas amizades<br />

no Convento do Carmo favoreceram<br />

inclusive a continuidade de<br />

nosso apostolado no final da década<br />

de 40 e na de 50.<br />

<strong>29</strong>


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Mais que o vínculo profissional,<br />

unia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à Ordem do Carmo<br />

sua condição de prior de um sodalício<br />

dos terceiros carmelitas. Ao lado, ele<br />

está revestido do traje carmelitano;<br />

abaixo, a tranqüilidade claustral<br />

reina no pátio interno da<br />

Igreja do Carmo<br />

Acabei sendo eleito prior da Ordem<br />

Terceira do Carmo. Os carmelitas<br />

têm três ramos: o primeiro, constituído<br />

pelos padres; o segundo, das<br />

freiras; e o terceiro, constituído por<br />

leigos. Mas os membros deste último<br />

pertencem verdadeiramente à Ordem<br />

do Carmo, são filhos de Santo Elias.<br />

Tornar-me terceiro carmelitano realizava<br />

um antigo desejo, pois toda a vida<br />

tive vontade de pertencer à Ordem<br />

do Carmo, com a qual sentia grande<br />

afinidade.<br />

Levei para a Ordem Terceira os<br />

amigos que pude. E um dos mais belos<br />

atos a que nos entregávamos era a<br />

adoração noturna mensal que se fazia<br />

na Basílica do Carmo. Entrávamos na<br />

igreja revestidos de hábito, em cortejo<br />

e cantando. O Santíssimo Sacramento<br />

era exposto e ficávamos rezando<br />

mais ou menos das 21h até meianoite,<br />

quando era dada a Bênção do<br />

Santíssimo.<br />

Durante muitos anos, a Ordem do<br />

Carmo acabou sendo, portanto, não<br />

apenas cliente distinta do meu escritório<br />

de advocacia, mas permitiume<br />

um modo de continuar a militância<br />

católica, propiciando-me um<br />

inestimável instrumento de apostolado.<br />

v<br />

30


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Maravilhas que<br />

fazem sonhar...


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Quando uma alma é reta e inocente,<br />

ela deixa falar em seu interior a<br />

apetência que tem de uma ordem de<br />

coisas inteiramente conforme com os planos de<br />

Deus para a Criação, de algo que havia no Paraíso<br />

em que todos viveríamos, não fosse a queda<br />

de nossos primeiros pais. Se tomássemos uma<br />

pessoa nesse estado de espírito, e a ela disséssemos:<br />

“Olhe, o Céu é assim, como o que você deseja<br />

no mais íntimo de seu ser”, não estranharia<br />

que tal pessoa sentisse intensa vontade de partir<br />

logo para o Éden celeste, ao encontro das maravilhas<br />

que tanto procura.<br />

Tenho razões para afirmar que esse estado de<br />

espírito foi o ponto de partida da Idade Média.<br />

Que esta, na medida em que rezou, lutou, ou<br />

construiu, o fez orientada para aquele fim mais<br />

alto, movida por aquilo que vem expresso na<br />

Ladainha de Todos os Santos: ut mentes nostras<br />

ad caelestia desideria erigas — para que Vos digneis<br />

elevar as nossas almas a desejar as coisas do<br />

Céu.<br />

Assim, poder-se-ia comparar a alma medieval<br />

a uma ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tu-<br />

do para cima. Ao mesmo tempo calma e reflexiva,<br />

pesando e analisando tudo, disposta tanto a<br />

se recolher, dizendo: “Quanta coisa existe de<br />

bom neste mundo”, e a subir para maiores considerações;<br />

ou então, inflexível na sua retidão, disposta<br />

a combater o que não seja conforme à verdade,<br />

ao bem e ao belo. Porém, com serenidade<br />

e isenção de ânimo, sem agitações nem trepidações.<br />

Almas assim engendraram as grandes maravilhas<br />

da Idade Média.<br />

Por exemplo, Notre-Dame de Paris. Uma catedral<br />

toda feita de seriedade, gravidade, estabilidade,<br />

pensamento, grandes considerações das<br />

linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos,<br />

panorama... e as torres que se lançam para<br />

o céu!<br />

Tão magnificamente para o céu, que nenhum<br />

artista se atreveu a completá-las. Porque só<br />

quem as planejou tem alma para lhes conferir o<br />

arremate final. E as torres estão ali, ao mesmo<br />

tempo tragicamente incompletas, mas fazendo<br />

cada observador imaginar no subconsciente uma<br />

torre ideal, segundo o seu próprio feitio. Dir-se-<br />

Notre-Dame<br />

de Paris


Inspirado pela<br />

mesma graça que<br />

deu origem a<br />

Notre-Dame de Paris,<br />

certo dia um artífice<br />

concebeu a idéia<br />

de construir uma<br />

parede feita toda de<br />

vitrais. Nasceu a<br />

Sainte-Chapelle!...


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Interior da Sainte-Chapelle, feita para abrigar almas<br />

que você tem, ou alguma coisa está<br />

faltando?”<br />

E a história dos seus vitrais passa a<br />

ser a dos vôos cada vez mais altos, até<br />

chegar a um ponto em que o homem<br />

diga: “Aqui não é possível ir mais longe”.<br />

Ele instala o vitral na parede. De<br />

repente lhe vem ao espírito a idéia de<br />

uma parede feita toda de vitral. Nasceu<br />

a Sainte-Chapelle!<br />

*<br />

Agora, para termos um pouco a<br />

idéia do que foi a civilização cristã<br />

medieval, precisamos imaginar uma<br />

noite na Paris do século XIII. A cidade<br />

dorme. Na Sainte-Chapelle, em<br />

Notre-Dame, o Santíssimo Sacramento<br />

aguarda no interior do sacrário a<br />

adoração dos homens. No Louvre de<br />

São Luís, repousa um rei que é santo,<br />

e que ordena com santidade todas as<br />

coisas do seu reino.<br />

E assim, a história da rança flui<br />

gloriosa e tranqüilamente, como flui<br />

o rio Sena aos pés do palácio do piedoso<br />

monarca.<br />

v<br />

ia que elas terminam num pontilhado,<br />

de acordo com o espírito de quem as<br />

contempla. De maneira que se nos<br />

dissessem: “Olhe, sabe de uma novidade!?<br />

Completaram as torres de Notre-Dame!”,<br />

tomaríamos um susto: “Será<br />

que fizeram errado!?”<br />

Ou seja, de modo diverso desse pontilhado<br />

que, subconscientemente, cada<br />

um constrói no seu interior, olhando<br />

aqueles dois magníficos fragmentos<br />

de torre que nos convidam para o<br />

sonho. Porque, a partir daquele ponto,<br />

se sonha...<br />

*<br />

O mesmo sonho para o qual nos<br />

atrai a Sainte-Chapelle, do rei São<br />

Luís. Uma bonbonnière feita para ter<br />

almas dentro e não bombons. É o que<br />

pode haver de magnífico e encantador.<br />

O espírito que a concebeu, se pudesse<br />

construir um edifício todo de<br />

cristal, sentir-se-ia realizado. Construiu<br />

um feito de vitrais!<br />

Agrada-me imaginar a ação da graça<br />

sobre a alma desse artífice. Até então,<br />

ele apenas manuseava vidros comuns,<br />

de cores também comuns. Em<br />

determinado momento,<br />

ele sente no seu íntimo<br />

a inspiração — vinda do<br />

alto — de procurar uma<br />

cor ideal, mais bela do<br />

que todas as outras. Então<br />

compõe uma cor de<br />

sonho, ou toda uma policromia<br />

de sonho, para<br />

colorir, não só um vitral,<br />

mas um mundo,<br />

porque nos vitrais e rosáceas<br />

se representam<br />

batalhas, trabalhos, cenas<br />

do Antigo Testamento,<br />

episódios do Novo<br />

Testamento, enfim, a vida<br />

dos homens enquanto<br />

relacionada com a<br />

Igreja e a religião.<br />

À medida que ele vai<br />

colorindo, em seu espírito<br />

vão brotando novas<br />

idéias. O vitral seguinte<br />

que ele fará, será<br />

precedido por uma crítica<br />

ao vitral anterior:<br />

“Atingiu inteiramente<br />

esse desejo de perfeição<br />

Notre-Dame e suas torres que fazem sonhar<br />

34


“Enquanto no Louvre repousa um rei santo,<br />

que ordena com santidade todas as coisas do seu reino...”


Gloriosa santidade<br />

AProvidência concedeu a Nossa<br />

Senhora a glória de se encontrar<br />

no píncaro da Criação,<br />

tendo acima d’Ela apenas o Homem-<br />

Deus, seu adorável ilho. Quem recebesse<br />

a suprema graça de contemplá-<br />

La, teria, num só golpe de vista,<br />

a noção de toda a sabedoria e<br />

santidade da Igreja, da beleza<br />

de toda a sua liturgia em todas<br />

as épocas, do esplendor de todos<br />

os Santos, do talento de todos<br />

os seus doutores, do heroísmo<br />

de todos os cruzados e de todos<br />

os mártires. Porque não há<br />

virtude, qualidade e beleza que<br />

a Igreja tenha engendrado, e<br />

que não brilhe completamente<br />

em Nossa Senhora, com fulgor<br />

extraordinário.<br />

Por isso, nosso louvor à Santíssima<br />

Virgem, além de ser<br />

um cântico à grandeza e bondade<br />

d’Ela, deve ser um reconhecimento<br />

efetivo dessa bondade e dessa<br />

grandeza, traduzido em atos concretos:<br />

ou seja, na imitação de todas<br />

as virtudes e predicados que Ela,<br />

numa perfeita correspondência<br />

à graça, possuiu e praticou<br />

no mais alto grau.<br />

Nossa Senhora da Glória

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