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Os homens de destaque de outrora coincidiam na convicção<br />
de que, em substância, o mais alto valor de um homem<br />
consiste em ser santo. Um guerreiro, um sábio, um monarca, ou<br />
um papa, só dariam toda a sua medida quando sua sabedoria,<br />
seu heroísmo, sua capacidade de governar as almas ou as nações,<br />
fossem levadas ao zênite pela inigualável força de propulsão da<br />
santidade.<br />
Carlos Magno no trono, entre o Papa São Leão III, à sua direita, e o Bispo<br />
Turpin de Reims (detalhe do sarcófago do Imperador, em Aix-la-Chapelle)
Sumário<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> diante<br />
do portão do<br />
Palais de Justice,<br />
em Paris, vendose<br />
ao fundo a<br />
torre da Sainte<br />
Chapelle<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
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Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
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Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />
Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
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03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />
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Novembro de 2001<br />
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ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />
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EDITORIAL<br />
Espelho das perfeições de Deus<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Alegrias da inocência<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Santidade, o ideal de todo homem<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A restauração do mundo<br />
só pode vir da Igreja<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Franqueza apostólica<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
“O meu mundo de sonhos existe no Céu...”<br />
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
A ordem temporal sacral,<br />
“ministra” da Igreja<br />
DONA LUCILIA<br />
Incansável solicitude materna<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Harmonioso cântico de matizes<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Céu de virtudes<br />
3
Editorial<br />
Espelho das perfeições<br />
Q<br />
uem nunca sentiu, algum dia, o coração<br />
comover-se, ao contemplar um límpido<br />
céu noturno semeado de estrelas, ou a<br />
grandeza majestosa do oceano, ou ainda o reluzir<br />
de um vitral atravessado pelos raios do sol?<br />
E muitas vezes era o próprio Deus que, por meio<br />
desses elementos, nos falava à alma. De fato, “a<br />
beleza da criação reflete a infinita beleza do Criador”<br />
— ensina o Catecismo da Igreja Católica —,<br />
pois “Deus criou o mundo para manifestar e para<br />
comunicar a sua glória” (nº 2500).<br />
Mas quis o Altíssimo que, em relação à sua obra,<br />
o homem não tivesse um papel meramente passivo.<br />
Por isso confiou-lhe a tarefa de completá-la,<br />
dando-lhe luzes e discernimento para imaginar um<br />
mundo o mais formoso possível e para saber trabalhar<br />
na sua edificação, de tal modo que as produções<br />
belas e boas do engenho humano pudessem<br />
também espelhar as perfeições do Autor da<br />
Criação.<br />
Segundo a feliz expressão de Dante, as obras<br />
saídas das mãos do homem são “netas de Deus”.<br />
Ora, estava nos planos divinos que suas “netas”<br />
fossem numerosas e esplêndidas, e por isso instilou<br />
nas almas o desejo insaciável de procurar o<br />
belo — o pulchrum — em todas as coisas e de<br />
querer multiplicá-lo pela face da terra. As provas<br />
de que essa busca do belo é incessante na história<br />
da humanidade estão nos incontáveis monumentos<br />
e outras produções que nossos maiores<br />
nos legaram.<br />
de Deus<br />
Com este tema tocamos em cheio na vida e nas<br />
vias de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Com efeito, é elemento fundamental<br />
da escola de espiritualidade pliniana explicitar<br />
e traduzir na prática tudo o que se relaciona<br />
com o papel do pulchrum na Criação.<br />
Ele considerava uma tarefa vital tornar claro a<br />
seus semelhantes a importância do belo na nossa<br />
existência, não apenas do ponto de vista da Estética<br />
ou da Psicologia, mas principalmente da<br />
Teologia. Isto porque — dizia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — se o<br />
belo suscita emoções e sentimentos nobres, ele<br />
sobretudo eleva os corações a Deus, servindo assim<br />
de poderoso instrumento de santificação.<br />
Cumpre ainda ressaltar que, quanto mais os homens<br />
observam os Mandamentos do Decálogo,<br />
tanto mais são capazes de procurar o pulchrum,<br />
admirá-lo e difundi-lo. Razão pela qual a maior<br />
parte do patrimônio artístico, arquitetônico, paisagístico<br />
e urbanístico da humanidade foi edificado<br />
nas eras de particular fervor católico.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> concluía essa linha de reflexões mostrando<br />
que, se a humanidade contemporânea voltar<br />
a corresponder de modo exímio às graças divinas<br />
e deixar-se vivificar e inspirar pela Santa Igreja<br />
— Mãe e Mestra das nações —, terá a capacidade<br />
de erigir uma ordem temporal esplendorosa<br />
e inteiramente sacral, ainda mais perfeita do que<br />
aquela que um dia começou a construir.<br />
É para essas considerações que o conjunto da<br />
matéria do presente número o convida, caro leitor.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Alegrias da inocência<br />
Em 19 de novembro de<br />
1917, o pequeno <strong>Plinio</strong><br />
recebia pela primeira<br />
vez a Sagrada Eucaristia.<br />
Naquele tempo – narra ele –,<br />
os meninos faziam a Primeira<br />
Comunhão com um traje solene,<br />
inspirado no uniforme de<br />
um dos colégios mais famosos<br />
do mundo, o Eaton, da Inglaterra.<br />
No braço esquerdo levavam<br />
um laço de fita branca, com<br />
pingentes dourados. O branco<br />
simbolizava a castidade e a virgindade;<br />
o dourado lembrava<br />
a fé.<br />
Lembro-me particularmente<br />
dessa fita da Primeira Comunhão,<br />
e do pensamento que<br />
ela sugeriu à minha alma: “Oh!<br />
A inocência é uma coisa branca.<br />
Eu vou defendê-la, vou guardá-la!”<br />
A fita se perdeu, mas<br />
esta lembrança, eu a conservei:<br />
a inocência é uma coisa branca...<br />
O problema da restauração da<br />
inocência — entendida no sentido<br />
literal do termo, de ter o<br />
coração puro em relação a qualquer<br />
pecado (e não apenas em<br />
questão de castidade), além de<br />
ter um enlevo por tudo o que seja<br />
maravilhoso — era considerado<br />
fundamental por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para<br />
qualquer programa que vise a<br />
estimular a santificação das almas.<br />
Certa vez comentou:<br />
A graça da inocência vem em toques passageiros,<br />
convidando a alma para morar num alto patamar.<br />
É convite para a vida inteira, e dá-se de modo<br />
habitual na infância, principalmente por ocasião da<br />
Primeira Comunhão, ou quando vemos um belo<br />
vitral, ou nas mil oportunidades em que a Providência<br />
vai visitando a alma e dizendo: “Meu filho,<br />
vem! Eu tenho para ti isto, tenho para ti aquilo”.<br />
São momentos de uma alegria, de um enlevo,<br />
de um estado de alma que não se pode repetir. O<br />
<strong>Plinio</strong> com o traje de Primeira Comunhão; no braço esquerdo,<br />
a fita branca, símbolo da inocência e da fé da criança<br />
que recebia Nosso Senhor Sacramentado<br />
nosso Gonçalves Dias se referia a esse tempo,<br />
dizendo: “Ah! que saudades que eu tenho da aurora<br />
da minha vida, da minha infância querida, que<br />
os anos não trazem mais...”<br />
Saudades do quê?<br />
Daquela alegria que nada pode exprimir adequadamente.<br />
Alegria da inocência. Felizes os que<br />
não a tenham perdido! Felizes também os que a recuperaram!<br />
Mais felizes ainda os que subiram ao<br />
Céu com ela.<br />
5
DR. PLINIO COMENTA...<br />
“Os coros dos<br />
Santos no Céu”,<br />
afrescos de<br />
Fra Angelico<br />
e outros<br />
pintores, no<br />
teto da Catedral<br />
de Orvieto<br />
S<br />
antidade,<br />
o ideal de todo homem<br />
6
De que aproveitará ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder<br />
a sua alma?” (Mt 16, 26) — é a advertência, repassada de solicitude,<br />
que nos faz o Divino Mestre. Na verdade, riquezas e glórias terrenas, reconhecimento<br />
e aplausos nesta vida, de nada nos valerão para a eternidade,<br />
se não procurarmos a perfeição. Por isso <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tomava<br />
tanto a peito formar seus filhos e discípulos no<br />
maior e mais belo dos ideais: a santidade.<br />
N<br />
este mundo em que o existir humano se volta, cada<br />
dia mais, para os interesses meramente terrenos,<br />
é muito importante termos bem claro qual<br />
o verdadeiro fim a que o homem deve aspirar na sua vida.<br />
A felicidade da perfeita realização<br />
Em primeiro lugar, consideremos que a criatura humana,<br />
por sua natureza, é dotada de valores e possibilidades<br />
que ela deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se<br />
realizar por inteiro.<br />
Para me valer de uma comparação, tomemos por exemplo<br />
um vidro de perfume aberto numa sala. Ele contém<br />
uma fragrância da qual o próprio é evaporar-se e impregnar<br />
com seu envolvente aroma o ambiente em que se encontra.<br />
Suponhamos que o perfume, posto no frasco, pudesse<br />
pensar. E imaginemos que ele permanecesse tampado<br />
no seu invólucro de cristal sem que ninguém jamais o<br />
cheirasse, guardado numa gaveta, esquecido, durante 100,<br />
150 anos, até que alguém, ao arranjar um armário velho,<br />
numa velha casa de família, o achasse, o destampasse, e<br />
dissesse: “Isto é um perfume antigo que não vale para nada”.<br />
E logo em seguida o espalhasse pelo jardim, deixando<br />
que seu cheiro deteriorado e repelente espante as minhocas<br />
e bichinhos que vivem dentro da terra.<br />
Se esse perfume pensasse, ele julgaria que sua existência<br />
foi bem sucedida?<br />
Reflitamos um momento. Dentro de um vidro de cristal<br />
que abafa, colocado na semi-obscuridade de uma gaveta<br />
segura, ele teria todo o conforto e a tranqüilidade das coisas<br />
nas quais ninguém mexe, que não passam por nenhum<br />
susto, que não trabalham, das coisas que, afinal de contas,<br />
são zero. Ele estaria ali cercado de toda comodidade. Um<br />
perfume não come, não bebe, não dorme; um perfume<br />
simplesmente se limita a existir, e existir dentro de um vidro.<br />
Um bonito frasco de cristal é um palácio para um perfume,<br />
com todas as facilidades de uma boa existência.<br />
Entretanto, algo nele lhe é motivo de sofrimento. É que<br />
está na natureza dele perfumar, e ele preferiria qualquer<br />
coisa a não poder fazê-lo, pois esta lacuna é contrária à sua<br />
essência.<br />
Semelhante raciocínio se aplicaria, por exemplo, às águas<br />
que correm sob a terra. Existem rios, fontes subterrâneas
DR. PLINIO COMENTA...<br />
que não chegam a aflorar na superfície, e vêem<br />
suas águas caudalosas, abundantes, viverem numa<br />
perpétua obscuridade. Essas águas poderiam<br />
pensar o seguinte: “Felizes somos nós, que<br />
não temos bichos, que não precisamos suportar<br />
o peso de nenhum barco, e não temos de<br />
fazer outra coisa senão deixar a força da gravidade<br />
nos ir levando para onde for. Para nós é<br />
o ideal!”<br />
Mas, imaginemos que uma dessas águas, de<br />
repente, passasse por uma fenda qualquer, encontrasse<br />
finalmente a luz do sol e começasse a<br />
longa travessia de uma massa líquida desde a<br />
sua nascente até o oceano onde ela deve sumir.<br />
É uma epopéia que atravessa mil vicissitudes:<br />
um pouco dessa água é absorvida pela terra,<br />
outro tanto se evapora, forma-se em nuvem e<br />
vai cobrir os céus de algum lugar distante do<br />
mundo; um pouco dessa água é derramada aos<br />
pés de uma flor, transforma-se em matéria que<br />
fará desabrochar uma linda magnólia ou uma<br />
bela rosa...<br />
A água passará por mil vicissitudes, mas<br />
quando ela saísse da terra e começasse a sua<br />
movimentada trajetória, se ela pudesse pensar,<br />
se ela pudesse cantar, ela cantaria depois de ter<br />
pensado, e diria: “Chegou a minha vez de ser<br />
flor, de ser bebida pelos homens e pelos animais,<br />
chegou a minha vez de ser nuvem, chegou<br />
a minha vez de ser tudo! Afinal, realizarei aquilo<br />
que está na minha natureza ser!”<br />
E por mais aventurosa que fosse a existência daquela<br />
água, nisto ela encontraria uma felicidade que não lhe seria<br />
dada em nenhuma outra condição.<br />
Todo homem procura um ideal<br />
Se essa necessidade da existência realizada parece tão<br />
evidente nos seres inanimados quando nós os imaginamos<br />
vivos, como não o será para o homem? Ao procurar a sua<br />
felicidade, a sua realização, o que ele deseja? Ficar engarrafado?<br />
Ser um curso de água subterrâneo? Ele procura<br />
não ter história, nem vencer dificuldades?<br />
Não. Inteligente, dotado de uma alma espiritual, a primeira<br />
coisa que o homem procura, pela sua natureza, é ter<br />
um ideal: uma verdade suprema de onde ele deduza todas<br />
as outras verdades; uma beleza suprema da qual ele deduza<br />
todas as outras belezas; uma santidade suprema em<br />
cuja luz ele contemple todas as outras santidades. Isto o<br />
homem deseja, sem que lhe baste ficar apenas no pensamento.<br />
Depois de pensar, ele quer agir, quer ter uma vida<br />
em que mexa as coisas e as faça andar num determinado<br />
rumo, ainda que isto lhe custe muito.<br />
E ao atingir o anoitecer da existência, o homem se perguntará<br />
sobre seus dias neste mundo. E terá imensa alegria<br />
se compreender que ele foi um perfume que se evaporou,<br />
foi uma água que fecundou terras ou se transformou<br />
em flor; se ele compreender, sobretudo, que foi um herói,<br />
enfrentando riscos, realizando seu ideal. Então, feliz, ele<br />
pode encarar de frente o pouco tempo que lhe resta, e dizer:<br />
“Eu fiz o que eu deveria ter feito, a minha vida está realizada!<br />
Vivi! E agora só me resta a coroação da vida: é morrer.”<br />
Ser santo, a mais bela ambição humana<br />
Trata-se de um impulso interno existente em todo homem,<br />
e que se reveste de particular riqueza se considerarmos<br />
o seguinte: quando uma criatura humana procura se<br />
realizar, procura ser “perfume”, procura ser “água”, procura<br />
ser herói, ela não pode ter ambição mais bela e mais<br />
nobre diante de si, do que a de ser santa.<br />
Enganar-se-ia quem pensasse que o ideal de santidade<br />
não está ao alcance de qualquer um, mas apenas para<br />
aqueles expoentes da humanidade que um dia chegam à<br />
glória dos altares.<br />
Na verdade, segundo a doutrina católica, sabemos que,<br />
pela ação da graça, dom sobrenatural de Deus, todos nós<br />
podemos ter uma participação criada na existência incriada<br />
do Altíssimo. Com isto, algo de divino penetra em nós,<br />
8
e recebemos uma força para conhecer e crer em coisas as<br />
quais nossa inteligência, por maior que fosse, não teria capacidade<br />
de compreender sem esse auxílio da graça. Assim<br />
como à nossa vontade é comunicado um vigor para fazer e<br />
conseguir coisas que, sem a ajuda sobrenatural, não faria<br />
nem conseguiria.<br />
Quer dizer, a graça eleva o homem a uma tal condição<br />
que o menor indivíduo — como capacidade, como apresentação,<br />
como cultura, como tudo —, sob o influxo da vida<br />
sobrenatural vale mais do que o maior dos homens sem<br />
aquele dom divino.<br />
Convidados para a corte celestial<br />
E o primeiro convite que Deus Nosso Senhor nos dirige,<br />
quando a Providência d’Ele nos encaminha para o batismo,<br />
é este: “Meu filho, Eu te dei a condição de homem;<br />
não queres mais? Não queres ser um príncipe na minha<br />
Criação? Eu te concedo uma participação criada na minha<br />
própria vida. Com isso Eu habitarei em ti, e tu serás o templo<br />
no qual Eu viverei. Far-te-ei meu herdeiro.”<br />
É um chamado maravilhoso, que se desdobra em outros<br />
não menos extraordinários. Depois de ser dado ao<br />
homem o Batismo, após ser infundida nele esta virtualidade<br />
incomparável que é a graça, a própria graça o<br />
impele para coisas inauditas, superiores à sua estatura,<br />
coisas em que o homem galgue acima de si<br />
mesmo e realize feitos de heróis de sonho, de heróis<br />
de paraíso, numa palavra, de heróis do Céu.<br />
O verdadeiro católico no qual vive a vida sobrenatural<br />
deseja, portanto, o maior. E se ele não chegar ao maior,<br />
não chega a nada. Ele quer o quê? Ser um cortesão de<br />
Deus no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça,<br />
imorredoura, na contemplação e no diálogo contínuo com<br />
o Ser Supremo, Perfeito, que é Deus Nosso Senhor, por toda<br />
a eternidade.<br />
Ali teremos esse convívio perpétuo com o Criador, no<br />
qual Ele nunca se cansa de nós, e nós nunca nos cansamos<br />
d’Ele: Verdade, Bondade, Virtude, Santidade e Beleza<br />
personificadas, recompensa demasiadamente grande que<br />
encontraremos no fim desta altíssima escada que todos<br />
subimos, degrau após degrau, passando por aventuras, batalhas,<br />
sacrifícios e privações. Ali, Deus se revela a nós na<br />
sua eternidade, com todo o atrativo daquilo que existiu<br />
sempre e daquilo que sempre existirá — o passado no seu<br />
esplendor, o futuro na sua magnificência.<br />
C<br />
om a proteção e pela<br />
misericórdia de Nossa Senhora,<br />
Rainha e Mãe de todos os Santos,<br />
depois de purificarmos e<br />
embelezarmos nossa alma,<br />
poderemos tomar o assento que nos<br />
está reservado na corte celestial<br />
(Na página anterior, a Virgem de Todos os Santos;<br />
acima e ao lado, imagens que compõem o passo<br />
processional d’Ela, em Sevilha)<br />
9
DR. PLINIO COMENTA...<br />
É uma situação simplesmente admirável a que somos<br />
chamados, fazendo-nos santos, postos na visão e na adoração<br />
contínuas da Trindade Santíssima.<br />
Então, compreendamos que um homem de fé não se<br />
sente talhado para a vida insípida do perfume engarrafado,<br />
que envelhece e em determinado momento é jogado<br />
fora. Ele se sente, sim, feito para uma imensa, criteriosa,<br />
sábia, mas ousada aventura, aquela em que ele ordena sua<br />
alma para Deus, a purifica e embeleza, preparando-a para<br />
o salto dentro da morte. E com a proteção de Nossa Senhora,<br />
Mãe e Rainha de Misericórdia, este salto será para<br />
a bem-aventurança eterna, para a corte celestial onde um<br />
assento nos está reservado.<br />
Julgados e premiados segundo o amor<br />
Para concluir, é oportuno lembrarmos ainda que Deus<br />
tem seus mistérios, e não há quem possa afirmar com toda<br />
a certeza que tal bem-aventurado é maior que outro aos<br />
olhos do Senhor. Quem poderá conhecer os arcanos da<br />
maravilhosa história das almas? Quem poderá ter exata<br />
noção de quantas pessoas se sacrificaram pela Fé nos desertos<br />
da África e da Ásia, nas vastidões das Américas, em<br />
meio a populações bárbaras e indígenas, aqui, lá e acolá?<br />
E com quanto amor essas pessoas aceitaram esse sacrifício?<br />
Ora, é pelo amor que somos grandes aos olhos de Deus.<br />
E se alguém, apagado e obscuro no entender do mundo,<br />
entretanto fez um imenso sacrifício com imenso amor,<br />
quando forem reveladas todas as coisas no Juízo Final, o<br />
maior será esse.<br />
Donde, também, não devemos nos pôr a pergunta se os<br />
homens reconhecerão nossas realizações e nossas grandezas.<br />
Importa sabermos que Deus nos assiste a todo momento,<br />
perscrutando no fundo das almas o amor com que<br />
O servimos. E se é verdade o ensinamento de São João da<br />
Cruz, segundo o qual “no entardecer desta vida, seremos<br />
julgados segundo o amor”, o amor que tivemos a Deus, é<br />
verdade então que Ele olhará para quem mais O adorou e<br />
glorificou, de forma notória ou oculta, e lhe dirá: “Este me<br />
amou de modo extraordinário e merece a maior recompensa!”<br />
Por sua vez, este homem que santificou sua alma, no<br />
instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer<br />
as palavras mais magníficas que imagino postas nos<br />
lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Eu percorri<br />
toda a extensão que deveria percorrer; combati por<br />
Vós o bom combate, o combate pelo bem; dai-me Senhor,<br />
agora, o prêmio de vossa glória!”<br />
É na esperança de podermos viver, de batalhar pela<br />
nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes<br />
em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve<br />
graças para nos tornarmos outros heróis da Fé e príncipes<br />
do Céu, que devemos atravessar nossos dias nesta terra de<br />
exílio.<br />
v<br />
“No entardecer desta vida,<br />
sereis julgados segundo o amor” —<br />
Importa que sejamos grandes<br />
aos olhos de Deus,<br />
e o seremos se O amarmos<br />
de todo o nosso coração<br />
(São João da Cruz, imagem venerada por Santa<br />
Teresinha do Menino Jesus, no Carmelo de Lisieux)
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A RESTAURAÇÃO<br />
DO MUNDO<br />
SÓ PODE VIR<br />
DA IGREJA<br />
Lembrando a<br />
soberania espiritual e<br />
moralizadora da Santa<br />
Igreja, a Catedral de<br />
Notre-Dame de Paris<br />
sobressai no<br />
panorama urbano da<br />
capital francesa
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Acrise generalizada na qual se debate a sociedade contemporânea tem como<br />
causa central a decadência do próprio homem. Uma reforma durável não<br />
ocorrerá senão por obra da Igreja Católica, "fator inigualável de moralização<br />
dos povos". Esta tese, defendida por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> há cerca de setenta anos numa entrevista<br />
para a "Folha da Noite", torna-se mais verdadeira do que nunca neste caótico início<br />
do terceiro milênio.<br />
Oséculo XX vota um culto<br />
supersticioso ao Estado, de<br />
quem espera a solução para<br />
a crise contemporânea. Por esta razão,<br />
não costuma ser atribuída à ação<br />
social dos católicos a importância e o<br />
alcance que, na realidade, tem.<br />
Sem querer diminuir a importância<br />
do papel do Estado, que tem na<br />
hora presente gravíssimas responsabilidades,<br />
cumpre notar que o Estado,<br />
por si só, não está em condições<br />
de solucionar a crise contemporânea.<br />
Efetivamente, é suficiente um<br />
exame sucinto da situação moral,<br />
social e política do mundo moderno,<br />
para nos persuadir disto.<br />
O estado de luta parece ter-se<br />
tornado habitual para os homens e<br />
as nações hodiernas. Na família, a<br />
luta se estabelece entre os cônjuges,<br />
esquecidos de seus deveres recíprocos,<br />
e desejosos de direitos sempre<br />
maiores. Entre pais e filhos, também<br />
não reina harmonia, pois que<br />
a autoridade paterna parece, para a<br />
mocidade de hoje, um jugo cada<br />
vez mais pesado. Lutam entre si as<br />
classes, que formulam, umas contras<br />
as outras, reivindicações sempre<br />
maiores, procurando ao mesmo tempo<br />
subtrair-se ao cumprimento dos<br />
respectivos deveres. Enfim, lutam nações<br />
contra nações, estimuladas pelo<br />
orgulho nacional e pelo desejo de<br />
maior expansão econômica.<br />
A razão deste estado de coisas deve<br />
ser procurada muito menos nas leis<br />
modernas do que na mentalidade do<br />
homem contemporâneo. Um desejo<br />
imoderado de prazeres e o horror ao<br />
cumprimento do dever são suas duas<br />
grandes características. E ambas as<br />
características derivam do egoísmo<br />
que domina hoje toda a humanidade.<br />
Enquanto o homem continuar aferrado<br />
a este individualismo sem limites,<br />
não será possível estabelecer qualquer<br />
reforma durável na sociedade contemporânea.<br />
Ora, a ação do Estado é totalmente<br />
impotente para operar a reforma dos<br />
caracteres. É certo que o Estado pode<br />
defender a moralidade pública. Não é<br />
menos certo, porém, que ele não pode<br />
edificar a moralidade pública ou<br />
privada.<br />
Os que desejam<br />
restaurar a civilização<br />
cristã devem abraçar<br />
resoluta e<br />
exclusivamente o<br />
Catolicismo, única<br />
expressão autêntica<br />
e completa da doutrina<br />
de Cristo.<br />
Ora, enquanto o Estado é impotente<br />
para esta tarefa indispensável, a<br />
Igreja é um fator inigualável de moralização<br />
dos povos. Realmente, ela os<br />
submete a uma disciplina intelectual e<br />
moral perfeita, que, ao contrário do<br />
protestantismo, submete os atos de cada<br />
homem não ao julgamento sempre<br />
suspeito de suas próprias consciências,<br />
mas a um tribunal superior cheio de<br />
austeridade e ao mesmo tempo rico<br />
em benignidade. Por outro lado, pelos<br />
motivos que a Religião Católica dá ao<br />
homem de amar a Deus e de desejar a<br />
felicidade eterna, bem como pelo temor<br />
da condenação, ela proporciona<br />
ao espírito humano os estímulos mais<br />
eficientes que se possam conceber para<br />
induzi-lo à prática do bem. Assim,<br />
a Igreja é a grande moralizadora dos<br />
povos. E ela o provou em inúmeros<br />
episódios históricos como, por exemplo,<br />
quando encaminhou ao martírio<br />
na antiguidade legiões de virgens, ao<br />
passo que o culto da Vesta pagã perecia<br />
porque o paganismo não podia mais<br />
suscitar em Roma o número de virgens<br />
necessário ao culto do fogo sagrado.<br />
Por outro lado, o Estado tem<br />
uma atuação meramente nacional.<br />
E a reedificação da ordem social<br />
não pode depender da ação de um<br />
país, mas de uma atuação supernacional,<br />
afetando simultaneamente<br />
o mundo inteiro e agindo com uma<br />
inteira unidade de pensamento e<br />
de direção.<br />
E não é do protestantismo que<br />
se deve esperar tal ação supernacional.<br />
Também dos cismáticos nada<br />
se pode esperar. Alguns procuram<br />
estabelecer um modus vivendi,<br />
doutrinário com o comunismo e outros<br />
tendem ao catolicismo. Por outro<br />
lado, negando a supremacia do<br />
Bispo de Roma, as igrejas cismáticas<br />
renunciaram implicitamente à<br />
possibilidade de desenvolverem qualquer<br />
ação mundial, porque nenhum<br />
de seus bispos reconhece qualquer autoridade<br />
espiritual que lhe seja superior.<br />
Assim, se aqueles que desejam restaurar<br />
a civilização cristã querem alcançar<br />
a vitória, não devem limitar-se<br />
a aceitar um vago pan-cristianismo,<br />
mas devem abraçar resoluta e exclusivamente<br />
o Catolicismo, única expressão<br />
autêntica e completa da doutrina<br />
de Cristo.<br />
(Transcrito da “Folha da Noite”, São<br />
Paulo, de 1/10/1935. Título nosso.)<br />
12
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Imagens dos<br />
Apóstolos, na<br />
fachada da<br />
Catedral de<br />
Amiens<br />
FRANQUEZA<br />
APOSTÓLICA
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
C<br />
ontinuando uma série de artigos que vinha escrevendo no<br />
“Legionário”, sobre formação espiritual, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> trata da<br />
Fortaleza, uma das “virtudes cardiais cuja carência mais se<br />
faz sentir hoje”.<br />
E<br />
Em brilhante artigo, não há muito publicado em<br />
uma folha francesa, o Cardeal Baudrillard acentuou<br />
que, graças aos rudes tempos em que vivemos,<br />
a alma contemporânea é sedenta de heroísmo. As<br />
ideologias de panos-quentes, os programas minimalistas,<br />
as atitudes ecléticas, já não são capazes de empolgar, arrastar<br />
e edificar. Só as posições nítidas, que exigem dedicação<br />
heróica, encontram no espírito das massas aquelas<br />
repercussões profundas que são os únicos mananciais de<br />
um entusiasmo durável e fecundo.<br />
Regra fundamental do proselitismo católico<br />
Disse muito bem Santo Agostinho que a Igreja Católica<br />
não pede aos seus adversários outra coisa senão o direito<br />
de não ser julgada sem antes ser conhecida. Muitos deduzem<br />
daí que se deve supor que todas as pessoas que condenam<br />
a Igreja, só o fazem porque não a conhecem. Esta<br />
afirmação, verdadeira em determinados casos particulares,<br />
se generalizada não corresponde absolutamente à realidade.<br />
Jesus Cristo e sua Igreja serão sempre uma pedra de<br />
contradição entre os povos, e o mesmo conhecimento exato<br />
do Catolicismo, que em muitos gera o amor, em outros<br />
causa oposição. Se a Igreja deseja sempre ser conhecida<br />
antes de julgada, fá-lo não só para evitar os efeitos da ignorância<br />
de alguns, mas ainda para que fique bem patente o<br />
cunho irracional da oposição de outros.<br />
Assim, a franqueza apostólica foi sempre uma regra fundamental<br />
de todo proselitismo católico. Excetuadas certas<br />
situações especias, o interesse da Igreja consiste em fazer<br />
com que seus arautos a proclamem sem desfiguramentos.<br />
Se em todos os tempos esta foi a regra, hoje, mais do<br />
que nunca, esta atitude se impõe. Ela já não constitui só<br />
um ato de coerência com nossos princípios, mas uma medida<br />
de soberana sabedoria estratégica. A adaptação de nossos<br />
processos de propaganda aos dias atuais consiste em<br />
mostrar o Catolicismo em todo o seu esplendor.<br />
Inspiram, pois, compaixão os espíritos que julgam, à moda<br />
de certos católicos do século passado, que o único meio<br />
de fazer circular as idéias católicas consiste em apresentálas<br />
diluídas em dinamizações tanto melhores quanto mais<br />
tênues.<br />
(Excertos com adaptações de artigo<br />
publicado no “Legionário”, nº 478, de 9/11/1941.<br />
Título e subtítulo nossos.)<br />
“Nosso Senhor Jesus Cristo e<br />
sua Igreja serão sempre<br />
uma pedra de contradição<br />
entre os povos, e o mesmo<br />
conhecimento exato do<br />
Catolicismo, que em muitos<br />
gera o amor, em outros<br />
causa oposição.”<br />
(Ao lado, imagem da Catedral de Chartres)<br />
14
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Uma alma eminentemente contemplativa,<br />
tanto no tocante<br />
às realidades sobrenaturais quanto<br />
às naturais. Este é, sem dúvida,<br />
um traço fundamental da personalidade<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, que não pode faltar<br />
em nenhuma biografia que pretenda<br />
retratá-lo com fidelidade.<br />
Quando, já avançado em anos, falava<br />
da importância de uma contemplação<br />
do "pulchrum" do universo —<br />
reflexo das infinitas perfeições de<br />
Deus — acumulava uma longa experiência<br />
neste campo. Ainda criança,<br />
extasiava-se com a diversidade e<br />
beleza das cores que encontrava...<br />
Vaso cor-de-rosa<br />
diante do qual o<br />
pequeno <strong>Plinio</strong> (no<br />
destaque, fantasiado<br />
de marajá)<br />
costumava passar<br />
longos minutos,<br />
pensando no seu<br />
mundo de sonhos...
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Lembro-me<br />
L<br />
de algo que me<br />
acontecia muito, como a todo<br />
menino, sobretudo durante a<br />
hora de estudo. No colégio São Luís,<br />
da minha sala de aula era possível ver<br />
o céu. E, muitas vezes, os meus olhos<br />
fugiam para as pontas das árvores verdes,<br />
balouçando com os ventos, e depois<br />
para o imenso azul. Era natural.<br />
Com o vôo do urubu,<br />
imersão num mundo de<br />
sonhos<br />
Em certas ocasiões eu via um urubu<br />
cortando o firmamento e não sabia<br />
tratar-se de um bicho feio como notei<br />
anos depois. Desse pássaro eu conhecia<br />
apenas o lindo perfil, seu vôo gracioso<br />
e seu esplêndido jogo de asas. É<br />
verdade que dele se vê apenas a silhueta,<br />
mas as silhuetas têm suas elegâncias<br />
e o urubu era uma, deslisando pelo<br />
ar. De vez em quando voava com<br />
uma asa que parecia curta e a outra<br />
longa, ou então se virava e era a outra<br />
asa que crescia e a anterior parecia<br />
menor.<br />
Quando percebia que ele planava e<br />
não batia as asas, eu pensava: “Como<br />
deve ser gostoso ser urubu! E como<br />
seria agradável se eu, a esta hora, pudesse<br />
desprender-me desta carteira,<br />
deste papel onde, com uma letra perenemente<br />
feia, estou rabiscando coisas<br />
e sobre o qual, brincando com a<br />
bomba da caneta-tinteiro, deixo cair<br />
gotas de tinta e fico aborrecido...”<br />
Então eu imaginava algo diferente.<br />
Como era menino, não sabia dar formulação<br />
ao meu próprio pensamento,<br />
mas o que me ia no espírito era: “Ah!<br />
Se eu pudesse sair voando pela janela,<br />
cortar o ar como o urubu, e morar dentro<br />
do azul muito tempo, sentar-me sobre<br />
as nuvens, dormir um pouco sobre<br />
elas e brincar com o vento de tal maneira<br />
que ele me levasse delicadamente<br />
para onde eu queria; ou se eu tivesse<br />
o prazer de fendê-lo sem grande esforço<br />
— isso seria uma diversão muito<br />
agradável, num mundo de sonho,<br />
mundo que não existe!”<br />
Pedras, vitrais, olhares: a<br />
vida num ambiente mítico<br />
Na mesma época, acontecia-me com<br />
freqüência outra situação que passo a<br />
descrever.<br />
Aqui no Brasil é comum encontrar<br />
pedras que nada têm de precioso, mas<br />
cujo colorido é muito bonito. Desde cedo,<br />
em passeios pelo campo, habitueime<br />
a notar essas pedrinhas e a catálas.<br />
Minha idéia era a seguinte: como<br />
seria gostoso morar dentro de um ambiente<br />
que fosse todo da cor daquela<br />
pedra, da consistência que ela parecia<br />
ter, onde eu pudesse respirar e ficar sossegado,<br />
sem ter de falar com ninguém,<br />
nem ninguém falar comigo. E colocando<br />
meu temperamento nas condições<br />
da pedra, assimilando tudo quanto tem<br />
na pedra, e por assim dizer, “esmeraldando-me”,<br />
“rubificando-me”, “safirizando-me”,<br />
de maneira que algo daquilo<br />
como que se entranhasse em mim e<br />
me enriquecesse com aquilo. Era para<br />
mim uma história de fadas sem fadas,<br />
em que a fada era o puro ambiente,<br />
era a pura cor dentro da qual eu moraria<br />
e, durante algum tempo, encontraria<br />
meu contentamento.<br />
Daí o gosto que sempre conservei<br />
por esses tipos de pedras.<br />
E daí, também, meu verdadeiro êxtase<br />
quando descobri que os vitrais de<br />
algum modo me satisfaziam esse desejo.<br />
Depois, quando descobri que<br />
certos olhares indicavam que determinadas<br />
almas como que vivem numa<br />
pedra ou numa água interior, ou num<br />
ar interior e que elas habitam em algo<br />
ou algo habita nelas — metaforicamente<br />
— que é como um líquido no<br />
qual elas existem e que traz fecundidade,<br />
força, serenidade, inspirações,<br />
vôos, que constituem uma espécie de<br />
redoma dentro da qual a pessoa vive.<br />
E essa idéia do viver em algo que não<br />
é o real, mas que poderia ser o real algum<br />
dia e no qual minha alma quereria<br />
viver, passou a constituir uma espécie<br />
de tendência freqüente no meu espírito.<br />
O rio Arno, uma pedra<br />
líquida<br />
Décadas depois, fui jantar num restaurante<br />
ao longo do rio Arno, em Florença.<br />
Os italianos, com muito bom<br />
gosto, fizeram um restaurante quase<br />
lacustre, porque a maior parte dele<br />
não estava construída em terra, mas<br />
num tablado cravado sobre o Arno.<br />
Tão perto da água, que se podia ouvir<br />
o ruído da correnteza bem abaixo de<br />
nossos pés. E, descuido bem latino,<br />
num certo lugar a prancha do chão estava<br />
meio rachada e os responsáveis<br />
se esqueceram de substituí-la. Então,<br />
pela fenda eu via o rio passar sob o<br />
piso do estabelecimento.<br />
A água do Arno parece uma pedra<br />
líquida, não é transparente como podem<br />
imaginar uma pedra preciosa,<br />
mas opaca, de um verde que seria da<br />
cor de um azinhavre, pouco escura.<br />
Era como um rio de azinhavre correndo<br />
ali por baixo, que me dava uma impressão<br />
ultradeleitável.<br />
16
As pedras que eu admirava,<br />
os vitrais com que me extasiava,<br />
eram para mim uma história de fadas<br />
sem fadas, eram as puras cores dentro das<br />
quais eu moraria e encontraria meu<br />
contentamento...
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
E eu, jantando sobre o Arno, um<br />
rio com sua densa história, com sua<br />
tradição, vendo- o correr e admirando<br />
aquela substância líquida, veio-me de<br />
imediato o pensamento: “Como seria<br />
bom morar dentro do Arno, quer dizer,<br />
num ambiente que fosse como o Arno!”<br />
Excelências simbolizadas no<br />
“jarro do Imperador”<br />
Ainda uma reminiscência de menino.<br />
Havia em casa um vaso de alabastro,<br />
com alças e base de bronze, que<br />
pertencera ao Imperador D. Pedro II,<br />
donde o chamarmos de “jarro do Imperador”.<br />
Eu gostava imensamente de<br />
ficar admirando esse objeto, sobretudo<br />
o colorido dele que, ao menos para<br />
a minha ótica, situa-se numa posição<br />
dentro do mundo das cores que se presta<br />
muito bem a uma espécie de carrefour,<br />
de cruzamento a partir do qual<br />
se parte para toda espécie de contrastes<br />
harmônicos. Então, das cores<br />
de tonalidades mais carregadas para<br />
as cores de tons mais leves, diáfanos,<br />
das cores simples para as cores compostas,<br />
etc. Contemplando os matizes<br />
cromáticos daquele alabastro, eu podia<br />
imaginar toda sorte de cores possíveis.<br />
E, na linha dos meus sonhos de<br />
criança, também toda sorte de mundos,<br />
de realidades, de perfeições possíveis.<br />
O cor-de-rosa e o branco se mesclavam<br />
noutro jarro, de um nacarado muito<br />
parecido com o das conchinhas que<br />
eu encontrava e admirava nas praias<br />
de Santos e Guarujá. Ele tinha isso de<br />
próprio: fazia pensar em certas qualidades<br />
da matéria, pelas quais esta às<br />
vezes é mais excelente porque é dúctil,<br />
é mais excelente porque é flexível,<br />
é mais excelente porque é transparen-<br />
“ A água do rio Arno parece uma<br />
pedra líquida; vendo-o correr e o<br />
admirando, veio-me de imediato o<br />
pensamento: como seria bom morar<br />
num ambiente que fosse como o Arno!”<br />
18
S<br />
e um mero jarro de<br />
alabastro, se algumas<br />
tantas pedras semipreciosas,<br />
se as cores dos<br />
vitrais ou das águas de<br />
um rio podem ser motivos<br />
de profundo deleite, qual<br />
será a satisfação no<br />
contato com Aquele que é<br />
tudo, e com a Mãe<br />
Santíssima d’Ele, obraprima<br />
da criação?<br />
(Ao lado, o “jarro do Imperador”)<br />
te. Ou, por oposição, será excelente porque<br />
é indúctil, é inflexível e é opaca.<br />
São formas de excelências diferentes<br />
da matéria. Podemos imaginar então<br />
um objeto cuja perfeição estivesse na<br />
flexibilidade e leveza de um “quase não<br />
ser”, como podemos também pensar<br />
numa linda pedra, cuja excelência está<br />
exatamente no seu compacto magnífico.<br />
O mundo de sonhos existe<br />
no Paraíso Celeste<br />
Agora, essa manifestação de excelências<br />
contida naquele nacarado, transposta<br />
para a ordem dos seres vivos,<br />
levar-me-ia a pensar na possibilidade<br />
de existirem almas com uma força pétrea,<br />
e almas com uma ductilidade e<br />
uma transparência de zéfiro. E na<br />
possibilidade de haver puros espíritos<br />
diversos entre si, como são diversos<br />
entre si os mil estados da matéria.<br />
Ora, estes são os Anjos, habitantes do<br />
Céu.<br />
E então aquele meu mundo de sonhos,<br />
aquele ambiente mítico onde eu<br />
desejava morar não é quimera nem fantasia.<br />
É o Paraíso Celeste. Lugar que<br />
supera qualquer imaginação, lugar de<br />
inconcebíveis delícias, onde poderemos<br />
passear pelos coros angélicos, povoados<br />
de espíritos “multicoloridos”, dotados<br />
de excelências das quais as da<br />
matéria são simples imagens. Que coisa<br />
mais delicada e magnífica do que<br />
um ser que é magnífico enquanto delicado,<br />
ou, por outro lado, que é magnífico<br />
enquanto duro e rijo como o melhor<br />
dos aços?<br />
No Céu encontraremos todos esses<br />
seres, e no contato com eles nos será<br />
dada uma satisfação indizível. Porque<br />
se um mero jarro de alabastro, se algumas<br />
tantas pedras semi-preciosas,<br />
se as cores dos vitrais ou das águas de<br />
um rio, uma vez analisados e admirados,<br />
podem nos ser motivo de profundo<br />
deleite, a quanto deleite pode prestar-se,<br />
então, o conhecimento de um<br />
espírito que eles simbolizam?<br />
E qual será o deleite do contato<br />
com Aquele que é tudo? E qual será o<br />
deleite do contato com Aquele que é<br />
tudo e é Homem? E com a Mãe Santíssima<br />
d’Ele, obra-prima de sua criação?<br />
Não se tem palavras para dizer... v<br />
19
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
A ORDEM<br />
TEMPORAL SACRAL,<br />
“MINISTRA” DA IGREJA<br />
Vista da cidade de Assis, cujas<br />
tradições evocam uma época<br />
áurea da Cristandade, quando a<br />
ordem temporal procurava cumprir<br />
seus deveres para com a Igreja e<br />
a salvação das almas
Segundo o Papa João Paulo II, é vocação própria dos fiéis leigos “procurar<br />
o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo<br />
Deus” (Novo Millennio Ineunte, 46). Na série de artigos que hoje<br />
concluímos, reproduzindo um trabalho inédito escrito em 1960 por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, ele<br />
mostra o papel auxiliar em relação à Igreja, mas indispensável, da sociedade<br />
temporal cristã na preparação do homem para a visão beatífica.<br />
V ejamos,<br />
em suas mútuas relações,<br />
os aspectos espirituais<br />
e materiais da vida<br />
temporal. De que maneira se relacionam<br />
entre si as atividades atinentes à<br />
formação da civilização, da cultura, do<br />
estilo, do ambiente, com as demais atividades<br />
cuja contextura forma a vida<br />
quotidiana dos homens e das sociedades?<br />
Indispensável harmonia<br />
entre a vida mental e a<br />
material<br />
Consideremos o assunto na esfera<br />
limitada de uma família. Por mais ambiente<br />
que ela tenha, por mais que<br />
sua vida social-espiritual seja intensa,<br />
seria um erro imaginar que cada uma<br />
de suas atividades é dirigida pela preocupação<br />
inteiramente<br />
consciente, intencional,<br />
de formar um estado<br />
de espírito, e de o definir.<br />
Ela age em geral<br />
com a mesma naturalidade e a despreocupação<br />
com a qual o corpo respira<br />
ou o sangue circula nas veias. Ao<br />
adquirir um móvel, fazer uma cortina<br />
ou escolher um quadro, as preocupações<br />
conscientes de ordem absolutamente<br />
prática, de caráter inteiramente<br />
circunstancial, podem até ter um<br />
papel preponderante. Não obstante,<br />
as forças mais profundas da alma cooperarão<br />
também, e deixarão sua marca<br />
no ato, sem que muitas vezes a própria<br />
pessoa que adquire o móvel, que<br />
escolhe a cortina ou o quadro o perceba.<br />
São afinidades naturais, vigorosas,<br />
mas tão discretas — entre os vários<br />
bens adquiridos pelas sucessivas<br />
gerações de uma família, e que coexistem<br />
numa mesma casa —, que por vezes<br />
só as pessoas estranhas ao lar são<br />
capazes de notar as características da<br />
atmosfera doméstica.<br />
É o que explica a formação dos estilos.<br />
Nenhum deles resulta de um planejamento<br />
de gabinete, mas é obra de<br />
uma sociedade inteira. Os artistas não<br />
são propriamente os criadores do estilo<br />
em uso em uma sociedade, mas<br />
seus intérpretes, seus propulsores na<br />
linha em que se vai desenvolvendo a<br />
mentalidade social.<br />
É o que explica também que, nos estilos<br />
verdadeiramente produzidos por<br />
uma sociedade, o prático e o belo, os<br />
elementos de utilidade física e as características<br />
de expressão mental se fundam<br />
tão harmoniosamente.<br />
A vida propriamente mental se entrelaça<br />
tão intimamente, se embebe tão<br />
profundamente, se entranha tão indissociavelmente<br />
na vida material, como<br />
a alma no corpo. E é nesta interpenetração<br />
que está a garantia da sanidade<br />
e da autenticidade de uma e de outra.<br />
Na decoração de<br />
um ambiente<br />
familiar<br />
transparece, em<br />
geral, a harmonia<br />
entre os aspectos<br />
práticos e o<br />
“estilo” peculiar<br />
das almas que,<br />
com naturalidade<br />
e despreocupação,<br />
o constituíram<br />
21
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
Superioridade dos<br />
benefícios espirituais<br />
Entre o prático e o belo, qual é o mais<br />
importante na vida temporal? Levantar<br />
esta questão, quando uma família<br />
adquire um guarda-roupa, por exemplo,<br />
equivaleria a perguntar se o mais<br />
importante é que ele sirva para guardar<br />
roupa, ou para que, por seu aspecto,<br />
acentue o poder de expressão do<br />
ambiente material do lar. Ou se, em um<br />
país, ao se edificar um Palácio da Justiça,<br />
o que mais importa é sua utilidade<br />
prática para o funcionamento dos<br />
órgãos da judicatura, ou a majestade<br />
e gravidade que deve penetrar o ambiente<br />
judiciário, exprimindo a natureza<br />
mais íntima da função de julgar.<br />
Quando um objeto, por sua natureza,<br />
deve ter dois atributos essenciais,<br />
se um desses lhe falta, ele não tem valor<br />
algum. Em vez de escolher entre o<br />
guarda-roupa materialmente útil e o<br />
“espiritualmente” útil; em vez de escolher<br />
entre o Palácio só materialmente<br />
adequado, e o Palácio só “espiritualmente” adequado,<br />
seria o caso de começar por rejeitar um<br />
e outro.<br />
O homem tem o direito e o dever de ser suficientemente<br />
exigente para não se contentar<br />
O serviço prestado à alma vale mais do<br />
que o prestado ao corpo; por isso, em certo<br />
sentido, é mais importante a função<br />
educativa de um móvel ou de um edifício<br />
público, do que os seus aspectos práticos<br />
(Acima, o Paço Municipal de Viena; ao lado,<br />
artesão florentino)<br />
22
com um objeto que preste maus serviços<br />
à sua alma ou ao seu corpo.<br />
Não queremos, porém, fugir à questão<br />
que há pouco havíamos formulado.<br />
O fim imediato, próprio, natural de<br />
um guarda-roupa não consiste em ser<br />
como que uma condensação de doutrina<br />
ou de mentalidade. Neste sentido,<br />
mais lhe importa guardar convenientemente<br />
roupa. Mas como o serviço<br />
prestado à alma vale mais do que<br />
o que se presta ao corpo, em certo sentido<br />
é mais importante a função educativa<br />
de um mobiliário do que seu<br />
aspecto prático.<br />
O mesmo se deve<br />
dizer da sociedade<br />
temporal, considerada<br />
como um todo. Sua<br />
situação não pode ser<br />
tida por normal, senão<br />
quando fornece<br />
condições de existência<br />
e de progresso satisfatórios<br />
tanto para<br />
a alma quanto para o<br />
corpo. A recíproca influência<br />
entre as duas<br />
esferas levará mesmo<br />
os progressos obtidos<br />
em cada uma a repercutir<br />
favoravelmente<br />
no dinamismo próprio<br />
à outra. Qualitativamente,<br />
entretanto, é<br />
bem verdade que os<br />
benefícios do espírito<br />
importam mais que<br />
os da matéria. E por<br />
isso, em que pese a<br />
certa mentalidade moderna,<br />
importa mais a<br />
um país ter uma cultura<br />
própria, um estilo<br />
próprio, costumes,<br />
instituições, leis, em<br />
consonância com o ambiente nacional,<br />
do que uma perfeita canalização<br />
de águas e esgotos, por exemplo. A<br />
Atenas do tempo de Péricles brilhará<br />
para sempre no firmamento da história.<br />
A Atenas de hoje, incomparavelmente<br />
superior à outra em comodidade<br />
material, que lembrança deixará<br />
de si no futuro?<br />
Posição ministerial do<br />
que é temporal em<br />
relação ao eterno<br />
Trata-se agora de definir as relações<br />
entre as funções da sociedade temporal,<br />
que acabamos de descrever, e a Religião.<br />
Acima, mulheres bretãs<br />
com seus trajes<br />
característicos; ao lado,<br />
praça de Graz, na<br />
Áustria — culturas,<br />
instituições, costumes e<br />
estilos próprios,<br />
um conjunto de valores<br />
que é superior<br />
ao progresso técnico<br />
A Igreja ensina que a vida<br />
terrena deve ser comparada<br />
a um noviciado. O noviço deve<br />
adquirir os conhecimentos<br />
e as virtudes que o tornem<br />
apto para a vida religiosa.<br />
O homem deve adquirir,<br />
na vida terrena, os conhecimentos<br />
e as virtudes que o<br />
tornem apto para o Céu. Por<br />
virtude se entende o hábito de operar<br />
segundo a reta razão. O que supõe<br />
um conhecimento dos ditames desta<br />
última. As operações a que se referem<br />
esses ditames não são apenas as exteriores,<br />
mas as interiores. Qualquer ato<br />
meramente interior do homem, desde<br />
que tenha o consentimento da vontade,<br />
é suscetível de ser virtuoso ou não,<br />
23
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
conforme esteja em acordo ou desacordo<br />
com a reta razão. A sociedade temporal-espiritual<br />
é dotada de uma ação<br />
poderosa sobre o homem para o levar<br />
a pôr atos interiores ou exteriores<br />
conformes à razão. Ela pode, pois, ser<br />
meio útil para salvar ou para perder.<br />
As mais altas manifestações da vida<br />
temporal se inserem, por sua própria<br />
natureza, no âmago do problema<br />
da salvação, e não podem ficar de nenhum<br />
modo alheias. Não é só pelo<br />
concurso das leis com que favorece a<br />
Igreja verdadeira e reprime o erro, que<br />
a sociedade temporal pode servir à salvação.<br />
É pelas mil atividades espirituais<br />
que constituem o que ela tem de<br />
melhor, isto é, o fato de ser uma sociedade<br />
de almas, sem o que nem sequer<br />
ela seria sociedade¹.<br />
Dá-se, pois, com a sociedade temporal<br />
— mutatis mutandis — o mesmo<br />
que com a família, sociedade também<br />
ela natural, temporal, mas destinada<br />
pelo que ela tem de mais visceral a<br />
atividades que coincidem<br />
com as da Igreja.<br />
Dada esta interpenetração<br />
profunda<br />
de campos, desejada pela Providência,<br />
seria absurdo supor que Deus não quisesse<br />
uma cooperação entre a sociedade<br />
temporal e a Igreja. Igualmente seria<br />
absurdo entender que nessa cooperação<br />
entre duas sociedades intrinsecamente<br />
desiguais, aquilo que é temporal,<br />
natural, perecível, não estivesse<br />
em posição ministerial em relação ao<br />
espiritual, sobrenatural, eterno; o fim<br />
próximo em relação ao fim último.<br />
Há nestas considerações base suficiente<br />
para se ir mais longe, sustentando-se<br />
que a sociedade temporal, máxime<br />
enquanto sociedade de almas, não<br />
alcança a sua perfeição senão mediante<br />
o magistério e a graça de que a<br />
Igreja é depositária. Mas isto nos levaria<br />
longe do nosso tema.<br />
Santidade e sacralidade<br />
da ordem temporal<br />
A sociedade temporal tem, pois,<br />
tanto quanto a família, embora a seu<br />
modo próprio, uma função de apostolado<br />
a exercer na própria esfera temporal,<br />
sob a inspiração e a orientação<br />
do magistério da Igreja.<br />
Qual a importância real de sua contribuição<br />
na obra da salvação? Tratase,<br />
é claro, de uma contribuição de caráter<br />
meramente natural, pois só a Igreja<br />
é uma sociedade sobrenatural. Isto<br />
posto, pode-se entretanto sustentar que<br />
tal importância é imensa. A Providência<br />
quis que o ambiente de uma família,<br />
de uma sociedade cultural, profissional,<br />
recreativa ou qualquer outra,<br />
ou de uma cidade, de uma província,<br />
de um país, exercesse sobre o homem<br />
uma influência natural profunda, da<br />
qual, é certo, ele pode libertar-se com<br />
o auxílio da graça, caso tal influência<br />
seja má, mas que, em todo caso, atua<br />
em seu íntimo poderosamente. A prova<br />
disso está na evidência dos fatos.<br />
Onde as leis, as instituições, os costumes,<br />
a cultura, o estilo, a civilização<br />
constituem um ambiente profundamente<br />
católico, a ação específica da<br />
Hierarquia eclesiástica logra habitualmente<br />
grandes frutos, e a ação dos<br />
Sacramentos, da pregação, a irradiação<br />
da santidade dos Ministros de Deus<br />
move as multidões. Onde, pelo contrário,<br />
tudo se lhe opõe, as dificuldades<br />
para a ação da Hierarquia se tornam<br />
A<br />
ssim como a família, a sociedade<br />
temporal tem uma função<br />
de apostolado a exercer na<br />
sua própria esfera, sob a<br />
inspiração e a orientação<br />
do magistério da Igreja<br />
(Vista de Zurique, Suíça)<br />
24
imensas. São vencíveis, é certo, pois para<br />
Deus nada é impossível. Mas atuam<br />
em si mesmas de modo desfavorável.<br />
É o que explica que países inteiros<br />
tenham caído repentinamente na heresia,<br />
como a Inglaterra, ou as nações<br />
escandinavas: todo o ambiente tinha<br />
uma nota apenas aparente de catolicidade.<br />
O que era verdadeiramente dominante<br />
era a indiferença, a tibieza.<br />
Em sentido contrário, poder-se-ia<br />
argumentar com a expansão da Igreja<br />
sob as perseguições e seu afrouxamento<br />
depois de Constantino. O argumento<br />
é intrinsecamente tão fraco que faz<br />
sorrir. Quem pode admitir que a Esposa<br />
Mística de Cristo só seja fecunda<br />
quando tratada a chibatadas? Que seus<br />
verdadeiros benfeitores sejam os Neros<br />
e os Dioclecianos, e seus verdadeiros<br />
perseguidores um São Luís de França,<br />
um São Fernando de Castela ou um<br />
Santo Henrique da Alemanha?<br />
A sociedade temporal, querida por<br />
Deus, ordenada para Ele, realizando<br />
em si mesma uma obra que é de santificação,<br />
é uma sociedade santa, que<br />
tem uma função sagrada. Sociedade<br />
inteiramente natural como a família,<br />
mas como ela trabalhada a fundo pela<br />
vida sobrenatural que borbulha em<br />
seus membros. Sociedade santa e sagrada<br />
como o é a família cristã, à qual<br />
convém tão bem a designação de santa,<br />
que até seu vínculo constitutivo é<br />
um Sacramento instituído pelo próprio<br />
Jesus Cristo.<br />
Santo Império, Santa Rússia, Santa<br />
França eram antigamente designações<br />
correntes e perfeitamente legítimas.<br />
E ninguém estranhava que o óleo sagrado<br />
servisse como um sacramental<br />
para ungir os reis, que sua investidura<br />
no poder temporal supremo se desse<br />
durante a Missa, numa função essencialmente<br />
religiosa, com a participação<br />
do clero; que a Cruz de Cristo brilhasse<br />
no alto do símbolo do poder temporal,<br />
que era a coroa; ou que o título<br />
mais honroso do detentor supremo<br />
do poder temporal fosse um título religioso:<br />
Sacra Majestas, Rex Apostolicus,<br />
Rex Christianissimus, Rex Catholicus,<br />
Rex Fidelissimus, Defensor Fidei.<br />
Que os duques da Lorena — que se<br />
presumiam reis de Jerusalém — cingissem<br />
uma coroa cujo diadema era<br />
feito de espinhos, ou que o Rei da Lombardia<br />
tivesse em sua Coroa de Ferro<br />
um cravo da Paixão de Cristo. Todos esses<br />
fatos atestavam a sacralidade da<br />
sociedade temporal e, portanto, do poder<br />
temporal, embora este fosse distinto<br />
da Hierarquia eclesiástica.<br />
Chegamos assim à noção da sociedade<br />
temporal ministra da Igreja, que<br />
abre amplas perspectivas para a noção<br />
da sociedade temporal sacral.<br />
Parece-nos que, se todos os que se<br />
interessam pelo problema das relações<br />
entre a sociedade temporal e a<br />
Igreja tivessem bem claro no espírito<br />
que a palavra “temporal” inclui, a título<br />
capital, imensos valores espirituais,<br />
e quais sejam eles, mais fácil lhes seria<br />
compreender a “ministerialidade”<br />
do temporal.<br />
1 São Tomás, De Regimine Principum, ensina<br />
que a sociedade humana só é realmente<br />
sociedade porque constituída de<br />
homens, isto é, de seres dotados de alma.<br />
Um formigueiro ou uma colméia<br />
não são sociedades.<br />
25
DONA LUCILIA<br />
Dª Lucilia (à direita)<br />
e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (de pé,<br />
à esquerda), na<br />
inauguração das<br />
novas máquinas<br />
do “Legionário”<br />
Incansável<br />
solicitude materna<br />
26
Encerrado o mandato de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Assembléia<br />
Nacional Constituinte, em 1934, seu retorno<br />
ao convívio doméstico foi motivo de imenso<br />
regozijo para Dª Lucilia, sempre saudosa da presença<br />
do filho que ela tanto amava.<br />
Entretanto, novas eleições foram convocadas, agora<br />
não só para a Câmara Federal como também para as Câmaras<br />
Estaduais. Se <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se candidatasse a deputado<br />
federal e fosse eleito — cogitava com certa apreensão Dª<br />
Lucilia — isso motivaria nova e bem mais longa separação.<br />
No entanto, estava ela disposta a quaisquer sacrifícios.<br />
Desta vez, porém, as intenções apostólicas dele foram favoráveis<br />
aos maternos anseios. Dado o lugar de destaque<br />
que ocupava nas Congregações Marianas de São<br />
Paulo, não queria afastar-se do que era seu<br />
campo de ação por excelência. E aqui<br />
se candidatou a deputado estadual,<br />
com grande alívio para sua mãe.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve de enfrentar<br />
sérias dificuldades, porque as<br />
circunstâncias não eram tão<br />
propícias como por ocasião<br />
da eleição anterior.<br />
O Arcebispo de São Paulo,<br />
D. Duarte, determinara<br />
a dissolução da<br />
LEC, não havendo, portanto,<br />
candidatos oficialmente<br />
indicados pela<br />
Igreja. Grande desvantagem<br />
para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
pois o seu público<br />
era o católico. Apesar<br />
de tantas adversidades,<br />
ele decidiu se apresentar<br />
como candidato avulso, em<br />
vista de seu prestígio de líder<br />
mariano, comprovado no<br />
último pleito, e dos benefícios<br />
que daí poderia auferir para o<br />
apostolado.<br />
Ao fazer o orçamento da despesa de<br />
campanha, ele viu que custaria exatamente<br />
a quantia recebida por Dª Lucilia como herança de<br />
uma tia dela. Depois de bem ponderar os prós e contras,<br />
procurou sua mãe a fim de lhe comunicar a decisão de<br />
pugnar em defesa da Igreja, como deputado estadual:<br />
— Mãezinha, eu creio que na verdade o melhor para<br />
mim seria não me candidatar, mas assumir minha cátedra<br />
na Faculdade de Direito e, algum tempo depois, abrir um<br />
escritório de advocacia. Com nossa casa razoavelmente arranjada,<br />
iríamos normalizando nossa situação. Mas a vantagem<br />
da Causa Católica consiste em candidatar-me como<br />
deputado avulso. Nessas condições, peço à senhora lançar<br />
D. Duarte Leopoldo e Silva,<br />
Arcebispo de São Paulo<br />
mão do dinheiro que recebeu para cobrir as despesas de<br />
minha campanha.<br />
Dª Lucilia via bem o quanto arriscava nisso, mas sua deliberação<br />
também de há muito estava tomada. Com a mesma<br />
serenidade de sempre, respondeu:<br />
— O que você quiser, você terá! Todo o meu dinheiro,<br />
tudo quanto é meu, você disponha como quiser...<br />
Na difícil situação financeira em que a família se encontrava,<br />
Dª Lucilia dava um magnífico exemplo de desprendimento<br />
em favor dos interesses da Santa Igreja, e de confiança<br />
total na Providência.<br />
Mas, por superiores desígnios da mesma Providência,<br />
realizadas as eleições, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não logrou sair-se vitorioso<br />
nas urnas. Os candidatos avulsos eram quatro<br />
ou cinco, e o mais votado deles fora <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>. Nenhum, porém, atingira um número<br />
suficiente de votos para obter<br />
uma cadeira.<br />
Nova mudança: a<br />
casa da rua<br />
Itacolomy<br />
Dª Lucilia participou<br />
profundamente do pesar<br />
que essa sucessão<br />
de fatos haveria de<br />
causar a seu filho, mas<br />
nem por isso deixou de<br />
ter esperança no Sagrado<br />
Coração de Jesus.<br />
“Afinal — terá com<br />
certeza pensado — as<br />
vias da Providência são<br />
insondáveis, e destas provações<br />
não deixará Deus de<br />
tirar proveito”. Ao menos a<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> restaria mais tempo<br />
para se dedicar à vida intelectual<br />
e ao apostolado, e para estar junto<br />
de sua mãe, tão saudosa de seu “filhão<br />
querido” quando este se ausentava.<br />
E assim foi. Assumida a cátedra de História da<br />
Civilização no Colégio Universitário da famosa Faculdade<br />
de Direito do Largo de São Francisco, bem como, mais<br />
tarde, as cátedras das Faculdades de Filosofia Ciências e<br />
Letras de São Bento e Sedes Sapientiae (posteriormente<br />
incorporadas à Universidade Católica), <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> entregou-se<br />
a fundo aos estudos históricos e às atividades das<br />
Congregações Marianas, passando também a dedicar mais<br />
tempo ao semanário católico “O Legionário” — do qual já<br />
era diretor — que nos anos subseqüentes alcançaria repercussão<br />
nacional.<br />
27
DONA LUCILIA<br />
O tempo livre para fazer companhia a Dª Lucilia, no entanto,<br />
com o correr dos anos tornar-se-ia cada vez mais escasso,<br />
o que ela aceitará com toda a resignação de uma alma<br />
autenticamente católica.<br />
Após todos esses vaivéns, era preciso, enfim, cuidar da<br />
decoração do lar, ou mudar para uma residência melhor.<br />
Tendo Dona Rosée encontrado uma casa, em boas condições,<br />
próxima à dela, foi radiante de alegria dar a notícia a<br />
Dª Lucilia. Pouco menor que a anterior, porém muito mais<br />
bem arranjada pelo proprietário, a moradia era um verdadeiro<br />
mimo, decorada com belos papéis de parede e vitrais<br />
de boa qualidade, e o aluguel bastante em conta. Por tudo<br />
isso, para lá se mudaram.<br />
O novo lar — na Rua Itacolomy, 625, no bairro de Higienópolis<br />
— agradou enormemente a Dª Lucilia. Dona<br />
Rosée encarregou-se da decoração, de forma que em pouco<br />
tempo estava tudo pronto, e muito adequado ao modo<br />
de ser de sua mãe.<br />
Os hábitos de Dª Lucilia variavam de acordo com a casa<br />
e com os imponderáveis do ambiente. Entre as diversas recordações<br />
de sua passagem por essa residência, conta-se<br />
que, dos cômodos do andar superior, ela escolhera um para<br />
quarto de toilette, onde, com tranqüilidade e distinção,<br />
todas as tardes tomava chá, servido numa bandeja preparada<br />
com esmero por uma fidelíssima empregada portuguesa.<br />
Desvelos pelo “filhão” doente<br />
Dª Lucilia, conquanto em nada descurasse as prescrições<br />
médicas, nunca impunha um tratamento a quem tinha<br />
idade para se governar a si próprio. Seu desvelo por seu filho<br />
não diminuíra, pelo contrário, requintara-se ao longo<br />
dos anos, passando a representar para ele um autêntico re-<br />
Não tendo alcançado a<br />
reeleição para deputado,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> passou a lecionar<br />
na Faculdade de Direito do<br />
Largo São Francisco, bem<br />
como nas de São Bento e<br />
Sedes Sapientiae...<br />
28
... e pôde, ainda, dedicar mais tempo ao seu apostolado, como líder católico e diretor do “Legionário”<br />
pouso e encorajador consolo, em meio à luta que ele conduzia<br />
pela ortodoxia católica. Disso é ilustrativo o episódio<br />
seguinte:<br />
Certo dia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi acometido por fortíssima indisposição.<br />
Dª Lucilia percebeu imediatamente e lhe perguntou:<br />
— Filhão, você está indisposto, não está?<br />
A pergunta, muito afetuosa mas incisiva, deixava claro<br />
que ela notara o estado dele e não adiantava esconder. <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> respondeu com sua característica franqueza filial:<br />
— Meu bem, realmente estou indisposto, mas detesto<br />
medicar-me. Eu não queria contar nada, a fim de evitar<br />
que a senhora insistisse comigo para tomar remédios e —<br />
pior do que tudo — me recomendasse alguma dieta. Por<br />
isso não quero dizer não à senhora, mas sobretudo não<br />
quero dizer sim...<br />
A situação era bem difícil para Dª Lucilia. Queria ajudar<br />
o filho, porém, não desejava contrariá-lo. Mas nem por<br />
isso perdeu a calma. Aproximou-se da cama dele e colocou<br />
a mão sobre sua fronte para verificar se ele estava com febre.<br />
Nesse pequeno gesto caseiro, já estava dado o primeiro<br />
passo para a cura, pois o frescor de suas mãos transmitia<br />
uma benfazeja serenidade, reflexo de sua imperturbável<br />
paz de alma.<br />
Ela então lhe disse:<br />
— Você está com febre.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> certamente pensou: “Ela agora vai me pôr o<br />
termômetro, e este vai indicar 38 ou 39. Ficará preocupada<br />
e vou me meter numa engrenagem que detesto...”<br />
Dito e feito. Com seus pequenos mas ágeis passos, saiu<br />
ela do quarto, voltando alguns instantes depois com o fatídico<br />
instrumento. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, para não a contrariar, colocou-o<br />
e, passado o tempo necessário, controlado minuciosamente<br />
no relógio por Dª Lucilia, o devolveu a sua mãe.<br />
Na penumbra do quarto, ela olhou, com certa dificuldade,<br />
a temperatura. Porém, em vez de proferir uma sentença,<br />
como fazia quando ele era menino, apenas lhe disse:<br />
— Não é nada. O que você quer fazer, meu filho?<br />
Afastada, para alívio dele, a tortura, respondeu:<br />
— Meu bem, eu quero passar o tempo, deitado e quieto.<br />
Dª Lucilia, então, trazendo uma cadeira do quarto dela,<br />
colocou-se ao lado da cama do filho e pôs-se a rezar tranqüilamente.<br />
Ficou assim algumas horas, até chegar a noite.<br />
Em certo momento, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lhe disse:<br />
— Meu bem, estou com muita fome e a senhora certamente<br />
vai querer que eu coma algo.<br />
— Diga o que você quer, que sua mãe lhe traz — foi a<br />
pronta resposta dela.<br />
Em seguida, ela mesma saiu a preparar o prato que seu<br />
filho pedira. Levou a refeição ao quarto, fez questão de<br />
servi-lo e no fim disse:<br />
29
DONA LUCILIA<br />
Com sua inesgotável<br />
solicitude materna, Dª<br />
Lucilia nunca tomava por<br />
“bagatela” os pequenos males<br />
que acometiam <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
“Se eu morresse”, dizia este,<br />
“ela também morreria.<br />
Uma coisa é certa: ela<br />
preferiria igualmente<br />
partir desta vida...”<br />
— De outras vezes não esconda nada a sua mãe,<br />
porque ela percebe e não vai lhe impor nada.<br />
A saúde que, a rogos de Nossa Senhora, a Providência<br />
dera a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, era excelente, e assim<br />
na manhã seguinte ele já estava bom. Logo<br />
após se levantar, foi ao quarto de Dª Lucilia.<br />
Ao vê-lo entrar, lhe perguntou:<br />
— Filhão, como vai?<br />
E a vida de todos os dias recomeçou.<br />
Muitos e muitos anos mais tarde, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, ao se referir a este pequeno episódio,<br />
comentou que só quando sua mãe lhe fez o<br />
pedido de nada esconder, percebeu como,<br />
para ela, aquele pequeno mal não era uma<br />
bagatela. Se a doença se agravasse, Dª Lucilia<br />
cuidaria dele com extremos de zelo, até o<br />
fim. E — concluiu <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — “é provável<br />
que, se eu morresse, ela também morreria.<br />
Uma coisa é certa: ela preferiria igualmente<br />
partir desta vida”.<br />
(Transcrito, com adaptações, da obra<br />
“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />
30
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Harmonioso<br />
cântico<br />
de matizes
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
ASainte Chapelle (Santa Capela), mandada construir<br />
pelo rei São Luís de França, é um desses<br />
tesouros da arte católica, inspirado por uma Fé<br />
tão rica e tão florescente, que sempre encontramos algo<br />
de novo a se dizer e se comentar a respeito dela.<br />
Por exemplo, acerca de seus magníficos vitrais.<br />
Quando os conheci, tive a impressão de estar ouvindo<br />
um fabuloso coro cantando, no qual cada vitral era uma<br />
voz, e que entoava uma melodia entendida de maneira peculiar<br />
por mim, assim como era compreendido de modo diverso<br />
pelas diferentes almas que o “escutavam”. E como é<br />
o próprio da interlocução, deram-me oportunidade de discernir,<br />
no meu interior, mil virtualidades, anseios, sedes<br />
que eu tinha e que só percebi no momento de “beber a<br />
água”, ou seja, “ao ouvir” aquele cântico feérico dos vitrais<br />
da Sainte Chapelle. Supérfluo dizer que me encantaram ao<br />
ponto do indizível. A partir desse momento, ao pé da letra,<br />
vários espaços de minha alma começaram a viver.<br />
Que lembranças guardo do que eles me diziam com suas<br />
“vozes” que não emitiam sons, mas fabulosos coloridos?<br />
Eu não imaginava que daquelas cores — digamos, de<br />
um azul, de um vermelho, de um verde, etc. — fosse pos-<br />
sível obter tantos matizes, finos, suaves, fazendo aparecer<br />
o que essas cores têm de mais delicado, sem se transformarem<br />
em cor-de-rosa, azul claro ou verde-água triviais que<br />
por aí existem.<br />
Por outro lado, desmentiam para mim uma idéia primitiva,<br />
segundo a qual essas cores muito delicadas só eram obteníveis<br />
com matérias-primas raras e com elas apenas se<br />
podiam pintar superfícies pequenas, deteriorando-se logo. E<br />
que, portanto, havia um irremediável divórcio entre a grandeza<br />
e aquela forma de delicadeza matizada que estava lá.<br />
Ora, diante de mim reluziam vitrais enormes, apresentando<br />
matizes de extrema suavidade, sem serem homogêneos,<br />
com uma agradável variedade de tons dentro de cada<br />
painel. E então este instantâneo da delicadeza fixada, tornada<br />
grandeza, e o débil que se apresenta rei, deu-me a impressão<br />
de uma vitória da alma justa, de uma vitória de tudo<br />
quanto é frágil, reto, inocente, sobre o que é ruim, uma<br />
impressão de fato extraordinária, que produziu no meu espírito<br />
um “tressaillement” de contentamento.<br />
Agora, num misto de análise artística e psicológica, notei<br />
também que esses matizes que assim se ostentavam não venciam<br />
com a arrogância de um boxeur que derruba o adver-
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
sário, põe o pé em cima dele e depois acena para a platéia.<br />
Nada disso. Essa delicadeza de matizes vencia com uma<br />
espécie de dignidade, com folga tal que ela não sentia sequer<br />
a necessidade de esmagar o adversário. Este não se<br />
encontrava estirado ao solo: estava eliminado do panorama.<br />
Assim, criava-se a idéia de um mundo onde, desde o começo,<br />
só ele, vitral, existira. Algo parecido com aquela Sabedoria<br />
que, no princípio dos séculos, brincava com todas as<br />
coisas...<br />
Percebi que na delicadeza de cores daqueles<br />
vitrais havia a candura e a como<br />
que inexperiência do virginal, aliada à<br />
estabilidade e à dignidade da experiência<br />
de uma matriarca no auge<br />
mais dourado de sua vida, na plena<br />
lucidez e no pleno conhecimento<br />
das realidades da nossa existência<br />
terrena.<br />
Ainda nessa linha de impressões,<br />
imaginando que cada vitral era como<br />
que alguém que tivesse a alma construída<br />
daquele jeito, imaginando que esses “alguéns”<br />
do mundo dos possíveis foram sonhados<br />
pela Idade Média e tiveram começos de realização<br />
em milhares de almas, então eu pensava em São Luís,<br />
nos artistas dele que edificaram essa maravilha da arte<br />
católica, na multidão de súditos que amavam seu monarca<br />
santo e admiravam nele as suas semelhanças com o Rei<br />
dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu pensava nisso e<br />
entendia ainda melhor o que foi a época áurea da Cristandade.<br />
Essa é a análise dos matizes.<br />
Agora, a impressão que tive do conjunto de todos os vitrais<br />
foi a de uma harmonia constituindo uma espécie de figura<br />
não-expressa, ideal, de um vitral arquidelicado, de um vitral<br />
perfeito contendo em si todas as cores arqui-suaves naquele<br />
estado que acabei de descrever. Trazendo consigo<br />
a noção de que essa delicadeza assim<br />
apresentada — longe de ser inimiga<br />
dos tons mais fortes, na linha dos<br />
estados de alma como na linha<br />
das cores e na dos sons — fazia<br />
pensar no desfile sem fim<br />
de todos os coloridos possíveis,<br />
mesmo os mais<br />
antitéticos, em todos os<br />
estados de espírito possíveis,<br />
mesmo os mais diversos,<br />
dentro daquela harmonia.<br />
E dessas impressões se desprende,<br />
afinal, uma idéia de perfeição<br />
enquanto perfeição, de harmonia<br />
enquanto harmonia, de santidade enquanto<br />
santidade — portanto, de verdade enquanto verdade, e de<br />
beleza enquanto beleza — reluzindo neste píncaro da<br />
montanha da delicadeza, a partir do qual se percebe toda a<br />
cordilheira dos sentimentos opostos e afins que constituem<br />
o espírito indizivelmente rico da Igreja Católica. v<br />
34
Matizes de extrema suavidade, com uma agradável variedade de<br />
tons; o débil que se apresenta rei, dando a impressão de uma vitória<br />
da alma justa, e de tudo quanto é frágil, reto e inocente sobre o que<br />
é ruim. Vitória com folga e dignidade, como se desde o começo só ele, vitral,<br />
existira. Algo parecido com a Sabedoria que, no princípio dos séculos, brincava<br />
com todas as coisas...
Céu de<br />
virtudes<br />
A<br />
lma de uma imensidade<br />
inefável,<br />
alma na qual todas as<br />
formas de virtude e de<br />
beleza existem com<br />
uma perfeição supereminente,<br />
da qual nenhum<br />
de nós pode ter uma<br />
idéia exata, Nossa Senhora<br />
é bem aquele<br />
mar, aquele céu de virtudes<br />
diante do qual o<br />
homem deve ficar estarrecido<br />
e enlevado, e que,<br />
com todas as suas<br />
forças, deve procurar<br />
amar e imitar.<br />
Virgem de<br />
Marfim,<br />
da Sainte<br />
Chapelle