17.10.2016 Views

Revista Dr Plinio 44

Novembro de 2001

Novembro de 2001

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Os homens de destaque de outrora coincidiam na convicção<br />

de que, em substância, o mais alto valor de um homem<br />

consiste em ser santo. Um guerreiro, um sábio, um monarca, ou<br />

um papa, só dariam toda a sua medida quando sua sabedoria,<br />

seu heroísmo, sua capacidade de governar as almas ou as nações,<br />

fossem levadas ao zênite pela inigualável força de propulsão da<br />

santidade.<br />

Carlos Magno no trono, entre o Papa São Leão III, à sua direita, e o Bispo<br />

Turpin de Reims (detalhe do sarcófago do Imperador, em Aix-la-Chapelle)


Sumário<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> diante<br />

do portão do<br />

Palais de Justice,<br />

em Paris, vendose<br />

ao fundo a<br />

torre da Sainte<br />

Chapelle<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

Preços da assinatura anual<br />

Novembro de 2001<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

4<br />

5<br />

6<br />

11<br />

13<br />

15<br />

20<br />

26<br />

31<br />

36<br />

EDITORIAL<br />

Espelho das perfeições de Deus<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Alegrias da inocência<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Santidade, o ideal de todo homem<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A restauração do mundo<br />

só pode vir da Igreja<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Franqueza apostólica<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

“O meu mundo de sonhos existe no Céu...”<br />

O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

A ordem temporal sacral,<br />

“ministra” da Igreja<br />

DONA LUCILIA<br />

Incansável solicitude materna<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Harmonioso cântico de matizes<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Céu de virtudes<br />

3


Editorial<br />

Espelho das perfeições<br />

Q<br />

uem nunca sentiu, algum dia, o coração<br />

comover-se, ao contemplar um límpido<br />

céu noturno semeado de estrelas, ou a<br />

grandeza majestosa do oceano, ou ainda o reluzir<br />

de um vitral atravessado pelos raios do sol?<br />

E muitas vezes era o próprio Deus que, por meio<br />

desses elementos, nos falava à alma. De fato, “a<br />

beleza da criação reflete a infinita beleza do Criador”<br />

— ensina o Catecismo da Igreja Católica —,<br />

pois “Deus criou o mundo para manifestar e para<br />

comunicar a sua glória” (nº 2500).<br />

Mas quis o Altíssimo que, em relação à sua obra,<br />

o homem não tivesse um papel meramente passivo.<br />

Por isso confiou-lhe a tarefa de completá-la,<br />

dando-lhe luzes e discernimento para imaginar um<br />

mundo o mais formoso possível e para saber trabalhar<br />

na sua edificação, de tal modo que as produções<br />

belas e boas do engenho humano pudessem<br />

também espelhar as perfeições do Autor da<br />

Criação.<br />

Segundo a feliz expressão de Dante, as obras<br />

saídas das mãos do homem são “netas de Deus”.<br />

Ora, estava nos planos divinos que suas “netas”<br />

fossem numerosas e esplêndidas, e por isso instilou<br />

nas almas o desejo insaciável de procurar o<br />

belo — o pulchrum — em todas as coisas e de<br />

querer multiplicá-lo pela face da terra. As provas<br />

de que essa busca do belo é incessante na história<br />

da humanidade estão nos incontáveis monumentos<br />

e outras produções que nossos maiores<br />

nos legaram.<br />

de Deus<br />

Com este tema tocamos em cheio na vida e nas<br />

vias de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Com efeito, é elemento fundamental<br />

da escola de espiritualidade pliniana explicitar<br />

e traduzir na prática tudo o que se relaciona<br />

com o papel do pulchrum na Criação.<br />

Ele considerava uma tarefa vital tornar claro a<br />

seus semelhantes a importância do belo na nossa<br />

existência, não apenas do ponto de vista da Estética<br />

ou da Psicologia, mas principalmente da<br />

Teologia. Isto porque — dizia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — se o<br />

belo suscita emoções e sentimentos nobres, ele<br />

sobretudo eleva os corações a Deus, servindo assim<br />

de poderoso instrumento de santificação.<br />

Cumpre ainda ressaltar que, quanto mais os homens<br />

observam os Mandamentos do Decálogo,<br />

tanto mais são capazes de procurar o pulchrum,<br />

admirá-lo e difundi-lo. Razão pela qual a maior<br />

parte do patrimônio artístico, arquitetônico, paisagístico<br />

e urbanístico da humanidade foi edificado<br />

nas eras de particular fervor católico.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> concluía essa linha de reflexões mostrando<br />

que, se a humanidade contemporânea voltar<br />

a corresponder de modo exímio às graças divinas<br />

e deixar-se vivificar e inspirar pela Santa Igreja<br />

— Mãe e Mestra das nações —, terá a capacidade<br />

de erigir uma ordem temporal esplendorosa<br />

e inteiramente sacral, ainda mais perfeita do que<br />

aquela que um dia começou a construir.<br />

É para essas considerações que o conjunto da<br />

matéria do presente número o convida, caro leitor.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Alegrias da inocência<br />

Em 19 de novembro de<br />

1917, o pequeno <strong>Plinio</strong><br />

recebia pela primeira<br />

vez a Sagrada Eucaristia.<br />

Naquele tempo – narra ele –,<br />

os meninos faziam a Primeira<br />

Comunhão com um traje solene,<br />

inspirado no uniforme de<br />

um dos colégios mais famosos<br />

do mundo, o Eaton, da Inglaterra.<br />

No braço esquerdo levavam<br />

um laço de fita branca, com<br />

pingentes dourados. O branco<br />

simbolizava a castidade e a virgindade;<br />

o dourado lembrava<br />

a fé.<br />

Lembro-me particularmente<br />

dessa fita da Primeira Comunhão,<br />

e do pensamento que<br />

ela sugeriu à minha alma: “Oh!<br />

A inocência é uma coisa branca.<br />

Eu vou defendê-la, vou guardá-la!”<br />

A fita se perdeu, mas<br />

esta lembrança, eu a conservei:<br />

a inocência é uma coisa branca...<br />

O problema da restauração da<br />

inocência — entendida no sentido<br />

literal do termo, de ter o<br />

coração puro em relação a qualquer<br />

pecado (e não apenas em<br />

questão de castidade), além de<br />

ter um enlevo por tudo o que seja<br />

maravilhoso — era considerado<br />

fundamental por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para<br />

qualquer programa que vise a<br />

estimular a santificação das almas.<br />

Certa vez comentou:<br />

A graça da inocência vem em toques passageiros,<br />

convidando a alma para morar num alto patamar.<br />

É convite para a vida inteira, e dá-se de modo<br />

habitual na infância, principalmente por ocasião da<br />

Primeira Comunhão, ou quando vemos um belo<br />

vitral, ou nas mil oportunidades em que a Providência<br />

vai visitando a alma e dizendo: “Meu filho,<br />

vem! Eu tenho para ti isto, tenho para ti aquilo”.<br />

São momentos de uma alegria, de um enlevo,<br />

de um estado de alma que não se pode repetir. O<br />

<strong>Plinio</strong> com o traje de Primeira Comunhão; no braço esquerdo,<br />

a fita branca, símbolo da inocência e da fé da criança<br />

que recebia Nosso Senhor Sacramentado<br />

nosso Gonçalves Dias se referia a esse tempo,<br />

dizendo: “Ah! que saudades que eu tenho da aurora<br />

da minha vida, da minha infância querida, que<br />

os anos não trazem mais...”<br />

Saudades do quê?<br />

Daquela alegria que nada pode exprimir adequadamente.<br />

Alegria da inocência. Felizes os que<br />

não a tenham perdido! Felizes também os que a recuperaram!<br />

Mais felizes ainda os que subiram ao<br />

Céu com ela.<br />

5


DR. PLINIO COMENTA...<br />

“Os coros dos<br />

Santos no Céu”,<br />

afrescos de<br />

Fra Angelico<br />

e outros<br />

pintores, no<br />

teto da Catedral<br />

de Orvieto<br />

S<br />

antidade,<br />

o ideal de todo homem<br />

6


De que aproveitará ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder<br />

a sua alma?” (Mt 16, 26) — é a advertência, repassada de solicitude,<br />

que nos faz o Divino Mestre. Na verdade, riquezas e glórias terrenas, reconhecimento<br />

e aplausos nesta vida, de nada nos valerão para a eternidade,<br />

se não procurarmos a perfeição. Por isso <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tomava<br />

tanto a peito formar seus filhos e discípulos no<br />

maior e mais belo dos ideais: a santidade.<br />

N<br />

este mundo em que o existir humano se volta, cada<br />

dia mais, para os interesses meramente terrenos,<br />

é muito importante termos bem claro qual<br />

o verdadeiro fim a que o homem deve aspirar na sua vida.<br />

A felicidade da perfeita realização<br />

Em primeiro lugar, consideremos que a criatura humana,<br />

por sua natureza, é dotada de valores e possibilidades<br />

que ela deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se<br />

realizar por inteiro.<br />

Para me valer de uma comparação, tomemos por exemplo<br />

um vidro de perfume aberto numa sala. Ele contém<br />

uma fragrância da qual o próprio é evaporar-se e impregnar<br />

com seu envolvente aroma o ambiente em que se encontra.<br />

Suponhamos que o perfume, posto no frasco, pudesse<br />

pensar. E imaginemos que ele permanecesse tampado<br />

no seu invólucro de cristal sem que ninguém jamais o<br />

cheirasse, guardado numa gaveta, esquecido, durante 100,<br />

150 anos, até que alguém, ao arranjar um armário velho,<br />

numa velha casa de família, o achasse, o destampasse, e<br />

dissesse: “Isto é um perfume antigo que não vale para nada”.<br />

E logo em seguida o espalhasse pelo jardim, deixando<br />

que seu cheiro deteriorado e repelente espante as minhocas<br />

e bichinhos que vivem dentro da terra.<br />

Se esse perfume pensasse, ele julgaria que sua existência<br />

foi bem sucedida?<br />

Reflitamos um momento. Dentro de um vidro de cristal<br />

que abafa, colocado na semi-obscuridade de uma gaveta<br />

segura, ele teria todo o conforto e a tranqüilidade das coisas<br />

nas quais ninguém mexe, que não passam por nenhum<br />

susto, que não trabalham, das coisas que, afinal de contas,<br />

são zero. Ele estaria ali cercado de toda comodidade. Um<br />

perfume não come, não bebe, não dorme; um perfume<br />

simplesmente se limita a existir, e existir dentro de um vidro.<br />

Um bonito frasco de cristal é um palácio para um perfume,<br />

com todas as facilidades de uma boa existência.<br />

Entretanto, algo nele lhe é motivo de sofrimento. É que<br />

está na natureza dele perfumar, e ele preferiria qualquer<br />

coisa a não poder fazê-lo, pois esta lacuna é contrária à sua<br />

essência.<br />

Semelhante raciocínio se aplicaria, por exemplo, às águas<br />

que correm sob a terra. Existem rios, fontes subterrâneas


DR. PLINIO COMENTA...<br />

que não chegam a aflorar na superfície, e vêem<br />

suas águas caudalosas, abundantes, viverem numa<br />

perpétua obscuridade. Essas águas poderiam<br />

pensar o seguinte: “Felizes somos nós, que<br />

não temos bichos, que não precisamos suportar<br />

o peso de nenhum barco, e não temos de<br />

fazer outra coisa senão deixar a força da gravidade<br />

nos ir levando para onde for. Para nós é<br />

o ideal!”<br />

Mas, imaginemos que uma dessas águas, de<br />

repente, passasse por uma fenda qualquer, encontrasse<br />

finalmente a luz do sol e começasse a<br />

longa travessia de uma massa líquida desde a<br />

sua nascente até o oceano onde ela deve sumir.<br />

É uma epopéia que atravessa mil vicissitudes:<br />

um pouco dessa água é absorvida pela terra,<br />

outro tanto se evapora, forma-se em nuvem e<br />

vai cobrir os céus de algum lugar distante do<br />

mundo; um pouco dessa água é derramada aos<br />

pés de uma flor, transforma-se em matéria que<br />

fará desabrochar uma linda magnólia ou uma<br />

bela rosa...<br />

A água passará por mil vicissitudes, mas<br />

quando ela saísse da terra e começasse a sua<br />

movimentada trajetória, se ela pudesse pensar,<br />

se ela pudesse cantar, ela cantaria depois de ter<br />

pensado, e diria: “Chegou a minha vez de ser<br />

flor, de ser bebida pelos homens e pelos animais,<br />

chegou a minha vez de ser nuvem, chegou<br />

a minha vez de ser tudo! Afinal, realizarei aquilo<br />

que está na minha natureza ser!”<br />

E por mais aventurosa que fosse a existência daquela<br />

água, nisto ela encontraria uma felicidade que não lhe seria<br />

dada em nenhuma outra condição.<br />

Todo homem procura um ideal<br />

Se essa necessidade da existência realizada parece tão<br />

evidente nos seres inanimados quando nós os imaginamos<br />

vivos, como não o será para o homem? Ao procurar a sua<br />

felicidade, a sua realização, o que ele deseja? Ficar engarrafado?<br />

Ser um curso de água subterrâneo? Ele procura<br />

não ter história, nem vencer dificuldades?<br />

Não. Inteligente, dotado de uma alma espiritual, a primeira<br />

coisa que o homem procura, pela sua natureza, é ter<br />

um ideal: uma verdade suprema de onde ele deduza todas<br />

as outras verdades; uma beleza suprema da qual ele deduza<br />

todas as outras belezas; uma santidade suprema em<br />

cuja luz ele contemple todas as outras santidades. Isto o<br />

homem deseja, sem que lhe baste ficar apenas no pensamento.<br />

Depois de pensar, ele quer agir, quer ter uma vida<br />

em que mexa as coisas e as faça andar num determinado<br />

rumo, ainda que isto lhe custe muito.<br />

E ao atingir o anoitecer da existência, o homem se perguntará<br />

sobre seus dias neste mundo. E terá imensa alegria<br />

se compreender que ele foi um perfume que se evaporou,<br />

foi uma água que fecundou terras ou se transformou<br />

em flor; se ele compreender, sobretudo, que foi um herói,<br />

enfrentando riscos, realizando seu ideal. Então, feliz, ele<br />

pode encarar de frente o pouco tempo que lhe resta, e dizer:<br />

“Eu fiz o que eu deveria ter feito, a minha vida está realizada!<br />

Vivi! E agora só me resta a coroação da vida: é morrer.”<br />

Ser santo, a mais bela ambição humana<br />

Trata-se de um impulso interno existente em todo homem,<br />

e que se reveste de particular riqueza se considerarmos<br />

o seguinte: quando uma criatura humana procura se<br />

realizar, procura ser “perfume”, procura ser “água”, procura<br />

ser herói, ela não pode ter ambição mais bela e mais<br />

nobre diante de si, do que a de ser santa.<br />

Enganar-se-ia quem pensasse que o ideal de santidade<br />

não está ao alcance de qualquer um, mas apenas para<br />

aqueles expoentes da humanidade que um dia chegam à<br />

glória dos altares.<br />

Na verdade, segundo a doutrina católica, sabemos que,<br />

pela ação da graça, dom sobrenatural de Deus, todos nós<br />

podemos ter uma participação criada na existência incriada<br />

do Altíssimo. Com isto, algo de divino penetra em nós,<br />

8


e recebemos uma força para conhecer e crer em coisas as<br />

quais nossa inteligência, por maior que fosse, não teria capacidade<br />

de compreender sem esse auxílio da graça. Assim<br />

como à nossa vontade é comunicado um vigor para fazer e<br />

conseguir coisas que, sem a ajuda sobrenatural, não faria<br />

nem conseguiria.<br />

Quer dizer, a graça eleva o homem a uma tal condição<br />

que o menor indivíduo — como capacidade, como apresentação,<br />

como cultura, como tudo —, sob o influxo da vida<br />

sobrenatural vale mais do que o maior dos homens sem<br />

aquele dom divino.<br />

Convidados para a corte celestial<br />

E o primeiro convite que Deus Nosso Senhor nos dirige,<br />

quando a Providência d’Ele nos encaminha para o batismo,<br />

é este: “Meu filho, Eu te dei a condição de homem;<br />

não queres mais? Não queres ser um príncipe na minha<br />

Criação? Eu te concedo uma participação criada na minha<br />

própria vida. Com isso Eu habitarei em ti, e tu serás o templo<br />

no qual Eu viverei. Far-te-ei meu herdeiro.”<br />

É um chamado maravilhoso, que se desdobra em outros<br />

não menos extraordinários. Depois de ser dado ao<br />

homem o Batismo, após ser infundida nele esta virtualidade<br />

incomparável que é a graça, a própria graça o<br />

impele para coisas inauditas, superiores à sua estatura,<br />

coisas em que o homem galgue acima de si<br />

mesmo e realize feitos de heróis de sonho, de heróis<br />

de paraíso, numa palavra, de heróis do Céu.<br />

O verdadeiro católico no qual vive a vida sobrenatural<br />

deseja, portanto, o maior. E se ele não chegar ao maior,<br />

não chega a nada. Ele quer o quê? Ser um cortesão de<br />

Deus no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça,<br />

imorredoura, na contemplação e no diálogo contínuo com<br />

o Ser Supremo, Perfeito, que é Deus Nosso Senhor, por toda<br />

a eternidade.<br />

Ali teremos esse convívio perpétuo com o Criador, no<br />

qual Ele nunca se cansa de nós, e nós nunca nos cansamos<br />

d’Ele: Verdade, Bondade, Virtude, Santidade e Beleza<br />

personificadas, recompensa demasiadamente grande que<br />

encontraremos no fim desta altíssima escada que todos<br />

subimos, degrau após degrau, passando por aventuras, batalhas,<br />

sacrifícios e privações. Ali, Deus se revela a nós na<br />

sua eternidade, com todo o atrativo daquilo que existiu<br />

sempre e daquilo que sempre existirá — o passado no seu<br />

esplendor, o futuro na sua magnificência.<br />

C<br />

om a proteção e pela<br />

misericórdia de Nossa Senhora,<br />

Rainha e Mãe de todos os Santos,<br />

depois de purificarmos e<br />

embelezarmos nossa alma,<br />

poderemos tomar o assento que nos<br />

está reservado na corte celestial<br />

(Na página anterior, a Virgem de Todos os Santos;<br />

acima e ao lado, imagens que compõem o passo<br />

processional d’Ela, em Sevilha)<br />

9


DR. PLINIO COMENTA...<br />

É uma situação simplesmente admirável a que somos<br />

chamados, fazendo-nos santos, postos na visão e na adoração<br />

contínuas da Trindade Santíssima.<br />

Então, compreendamos que um homem de fé não se<br />

sente talhado para a vida insípida do perfume engarrafado,<br />

que envelhece e em determinado momento é jogado<br />

fora. Ele se sente, sim, feito para uma imensa, criteriosa,<br />

sábia, mas ousada aventura, aquela em que ele ordena sua<br />

alma para Deus, a purifica e embeleza, preparando-a para<br />

o salto dentro da morte. E com a proteção de Nossa Senhora,<br />

Mãe e Rainha de Misericórdia, este salto será para<br />

a bem-aventurança eterna, para a corte celestial onde um<br />

assento nos está reservado.<br />

Julgados e premiados segundo o amor<br />

Para concluir, é oportuno lembrarmos ainda que Deus<br />

tem seus mistérios, e não há quem possa afirmar com toda<br />

a certeza que tal bem-aventurado é maior que outro aos<br />

olhos do Senhor. Quem poderá conhecer os arcanos da<br />

maravilhosa história das almas? Quem poderá ter exata<br />

noção de quantas pessoas se sacrificaram pela Fé nos desertos<br />

da África e da Ásia, nas vastidões das Américas, em<br />

meio a populações bárbaras e indígenas, aqui, lá e acolá?<br />

E com quanto amor essas pessoas aceitaram esse sacrifício?<br />

Ora, é pelo amor que somos grandes aos olhos de Deus.<br />

E se alguém, apagado e obscuro no entender do mundo,<br />

entretanto fez um imenso sacrifício com imenso amor,<br />

quando forem reveladas todas as coisas no Juízo Final, o<br />

maior será esse.<br />

Donde, também, não devemos nos pôr a pergunta se os<br />

homens reconhecerão nossas realizações e nossas grandezas.<br />

Importa sabermos que Deus nos assiste a todo momento,<br />

perscrutando no fundo das almas o amor com que<br />

O servimos. E se é verdade o ensinamento de São João da<br />

Cruz, segundo o qual “no entardecer desta vida, seremos<br />

julgados segundo o amor”, o amor que tivemos a Deus, é<br />

verdade então que Ele olhará para quem mais O adorou e<br />

glorificou, de forma notória ou oculta, e lhe dirá: “Este me<br />

amou de modo extraordinário e merece a maior recompensa!”<br />

Por sua vez, este homem que santificou sua alma, no<br />

instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer<br />

as palavras mais magníficas que imagino postas nos<br />

lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Eu percorri<br />

toda a extensão que deveria percorrer; combati por<br />

Vós o bom combate, o combate pelo bem; dai-me Senhor,<br />

agora, o prêmio de vossa glória!”<br />

É na esperança de podermos viver, de batalhar pela<br />

nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes<br />

em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve<br />

graças para nos tornarmos outros heróis da Fé e príncipes<br />

do Céu, que devemos atravessar nossos dias nesta terra de<br />

exílio.<br />

v<br />

“No entardecer desta vida,<br />

sereis julgados segundo o amor” —<br />

Importa que sejamos grandes<br />

aos olhos de Deus,<br />

e o seremos se O amarmos<br />

de todo o nosso coração<br />

(São João da Cruz, imagem venerada por Santa<br />

Teresinha do Menino Jesus, no Carmelo de Lisieux)


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A RESTAURAÇÃO<br />

DO MUNDO<br />

SÓ PODE VIR<br />

DA IGREJA<br />

Lembrando a<br />

soberania espiritual e<br />

moralizadora da Santa<br />

Igreja, a Catedral de<br />

Notre-Dame de Paris<br />

sobressai no<br />

panorama urbano da<br />

capital francesa


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Acrise generalizada na qual se debate a sociedade contemporânea tem como<br />

causa central a decadência do próprio homem. Uma reforma durável não<br />

ocorrerá senão por obra da Igreja Católica, "fator inigualável de moralização<br />

dos povos". Esta tese, defendida por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> há cerca de setenta anos numa entrevista<br />

para a "Folha da Noite", torna-se mais verdadeira do que nunca neste caótico início<br />

do terceiro milênio.<br />

Oséculo XX vota um culto<br />

supersticioso ao Estado, de<br />

quem espera a solução para<br />

a crise contemporânea. Por esta razão,<br />

não costuma ser atribuída à ação<br />

social dos católicos a importância e o<br />

alcance que, na realidade, tem.<br />

Sem querer diminuir a importância<br />

do papel do Estado, que tem na<br />

hora presente gravíssimas responsabilidades,<br />

cumpre notar que o Estado,<br />

por si só, não está em condições<br />

de solucionar a crise contemporânea.<br />

Efetivamente, é suficiente um<br />

exame sucinto da situação moral,<br />

social e política do mundo moderno,<br />

para nos persuadir disto.<br />

O estado de luta parece ter-se<br />

tornado habitual para os homens e<br />

as nações hodiernas. Na família, a<br />

luta se estabelece entre os cônjuges,<br />

esquecidos de seus deveres recíprocos,<br />

e desejosos de direitos sempre<br />

maiores. Entre pais e filhos, também<br />

não reina harmonia, pois que<br />

a autoridade paterna parece, para a<br />

mocidade de hoje, um jugo cada<br />

vez mais pesado. Lutam entre si as<br />

classes, que formulam, umas contras<br />

as outras, reivindicações sempre<br />

maiores, procurando ao mesmo tempo<br />

subtrair-se ao cumprimento dos<br />

respectivos deveres. Enfim, lutam nações<br />

contra nações, estimuladas pelo<br />

orgulho nacional e pelo desejo de<br />

maior expansão econômica.<br />

A razão deste estado de coisas deve<br />

ser procurada muito menos nas leis<br />

modernas do que na mentalidade do<br />

homem contemporâneo. Um desejo<br />

imoderado de prazeres e o horror ao<br />

cumprimento do dever são suas duas<br />

grandes características. E ambas as<br />

características derivam do egoísmo<br />

que domina hoje toda a humanidade.<br />

Enquanto o homem continuar aferrado<br />

a este individualismo sem limites,<br />

não será possível estabelecer qualquer<br />

reforma durável na sociedade contemporânea.<br />

Ora, a ação do Estado é totalmente<br />

impotente para operar a reforma dos<br />

caracteres. É certo que o Estado pode<br />

defender a moralidade pública. Não é<br />

menos certo, porém, que ele não pode<br />

edificar a moralidade pública ou<br />

privada.<br />

Os que desejam<br />

restaurar a civilização<br />

cristã devem abraçar<br />

resoluta e<br />

exclusivamente o<br />

Catolicismo, única<br />

expressão autêntica<br />

e completa da doutrina<br />

de Cristo.<br />

Ora, enquanto o Estado é impotente<br />

para esta tarefa indispensável, a<br />

Igreja é um fator inigualável de moralização<br />

dos povos. Realmente, ela os<br />

submete a uma disciplina intelectual e<br />

moral perfeita, que, ao contrário do<br />

protestantismo, submete os atos de cada<br />

homem não ao julgamento sempre<br />

suspeito de suas próprias consciências,<br />

mas a um tribunal superior cheio de<br />

austeridade e ao mesmo tempo rico<br />

em benignidade. Por outro lado, pelos<br />

motivos que a Religião Católica dá ao<br />

homem de amar a Deus e de desejar a<br />

felicidade eterna, bem como pelo temor<br />

da condenação, ela proporciona<br />

ao espírito humano os estímulos mais<br />

eficientes que se possam conceber para<br />

induzi-lo à prática do bem. Assim,<br />

a Igreja é a grande moralizadora dos<br />

povos. E ela o provou em inúmeros<br />

episódios históricos como, por exemplo,<br />

quando encaminhou ao martírio<br />

na antiguidade legiões de virgens, ao<br />

passo que o culto da Vesta pagã perecia<br />

porque o paganismo não podia mais<br />

suscitar em Roma o número de virgens<br />

necessário ao culto do fogo sagrado.<br />

Por outro lado, o Estado tem<br />

uma atuação meramente nacional.<br />

E a reedificação da ordem social<br />

não pode depender da ação de um<br />

país, mas de uma atuação supernacional,<br />

afetando simultaneamente<br />

o mundo inteiro e agindo com uma<br />

inteira unidade de pensamento e<br />

de direção.<br />

E não é do protestantismo que<br />

se deve esperar tal ação supernacional.<br />

Também dos cismáticos nada<br />

se pode esperar. Alguns procuram<br />

estabelecer um modus vivendi,<br />

doutrinário com o comunismo e outros<br />

tendem ao catolicismo. Por outro<br />

lado, negando a supremacia do<br />

Bispo de Roma, as igrejas cismáticas<br />

renunciaram implicitamente à<br />

possibilidade de desenvolverem qualquer<br />

ação mundial, porque nenhum<br />

de seus bispos reconhece qualquer autoridade<br />

espiritual que lhe seja superior.<br />

Assim, se aqueles que desejam restaurar<br />

a civilização cristã querem alcançar<br />

a vitória, não devem limitar-se<br />

a aceitar um vago pan-cristianismo,<br />

mas devem abraçar resoluta e exclusivamente<br />

o Catolicismo, única expressão<br />

autêntica e completa da doutrina<br />

de Cristo.<br />

(Transcrito da “Folha da Noite”, São<br />

Paulo, de 1/10/1935. Título nosso.)<br />

12


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Imagens dos<br />

Apóstolos, na<br />

fachada da<br />

Catedral de<br />

Amiens<br />

FRANQUEZA<br />

APOSTÓLICA


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

C<br />

ontinuando uma série de artigos que vinha escrevendo no<br />

“Legionário”, sobre formação espiritual, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> trata da<br />

Fortaleza, uma das “virtudes cardiais cuja carência mais se<br />

faz sentir hoje”.<br />

E<br />

Em brilhante artigo, não há muito publicado em<br />

uma folha francesa, o Cardeal Baudrillard acentuou<br />

que, graças aos rudes tempos em que vivemos,<br />

a alma contemporânea é sedenta de heroísmo. As<br />

ideologias de panos-quentes, os programas minimalistas,<br />

as atitudes ecléticas, já não são capazes de empolgar, arrastar<br />

e edificar. Só as posições nítidas, que exigem dedicação<br />

heróica, encontram no espírito das massas aquelas<br />

repercussões profundas que são os únicos mananciais de<br />

um entusiasmo durável e fecundo.<br />

Regra fundamental do proselitismo católico<br />

Disse muito bem Santo Agostinho que a Igreja Católica<br />

não pede aos seus adversários outra coisa senão o direito<br />

de não ser julgada sem antes ser conhecida. Muitos deduzem<br />

daí que se deve supor que todas as pessoas que condenam<br />

a Igreja, só o fazem porque não a conhecem. Esta<br />

afirmação, verdadeira em determinados casos particulares,<br />

se generalizada não corresponde absolutamente à realidade.<br />

Jesus Cristo e sua Igreja serão sempre uma pedra de<br />

contradição entre os povos, e o mesmo conhecimento exato<br />

do Catolicismo, que em muitos gera o amor, em outros<br />

causa oposição. Se a Igreja deseja sempre ser conhecida<br />

antes de julgada, fá-lo não só para evitar os efeitos da ignorância<br />

de alguns, mas ainda para que fique bem patente o<br />

cunho irracional da oposição de outros.<br />

Assim, a franqueza apostólica foi sempre uma regra fundamental<br />

de todo proselitismo católico. Excetuadas certas<br />

situações especias, o interesse da Igreja consiste em fazer<br />

com que seus arautos a proclamem sem desfiguramentos.<br />

Se em todos os tempos esta foi a regra, hoje, mais do<br />

que nunca, esta atitude se impõe. Ela já não constitui só<br />

um ato de coerência com nossos princípios, mas uma medida<br />

de soberana sabedoria estratégica. A adaptação de nossos<br />

processos de propaganda aos dias atuais consiste em<br />

mostrar o Catolicismo em todo o seu esplendor.<br />

Inspiram, pois, compaixão os espíritos que julgam, à moda<br />

de certos católicos do século passado, que o único meio<br />

de fazer circular as idéias católicas consiste em apresentálas<br />

diluídas em dinamizações tanto melhores quanto mais<br />

tênues.<br />

(Excertos com adaptações de artigo<br />

publicado no “Legionário”, nº 478, de 9/11/1941.<br />

Título e subtítulo nossos.)<br />

“Nosso Senhor Jesus Cristo e<br />

sua Igreja serão sempre<br />

uma pedra de contradição<br />

entre os povos, e o mesmo<br />

conhecimento exato do<br />

Catolicismo, que em muitos<br />

gera o amor, em outros<br />

causa oposição.”<br />

(Ao lado, imagem da Catedral de Chartres)<br />

14


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Uma alma eminentemente contemplativa,<br />

tanto no tocante<br />

às realidades sobrenaturais quanto<br />

às naturais. Este é, sem dúvida,<br />

um traço fundamental da personalidade<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, que não pode faltar<br />

em nenhuma biografia que pretenda<br />

retratá-lo com fidelidade.<br />

Quando, já avançado em anos, falava<br />

da importância de uma contemplação<br />

do "pulchrum" do universo —<br />

reflexo das infinitas perfeições de<br />

Deus — acumulava uma longa experiência<br />

neste campo. Ainda criança,<br />

extasiava-se com a diversidade e<br />

beleza das cores que encontrava...<br />

Vaso cor-de-rosa<br />

diante do qual o<br />

pequeno <strong>Plinio</strong> (no<br />

destaque, fantasiado<br />

de marajá)<br />

costumava passar<br />

longos minutos,<br />

pensando no seu<br />

mundo de sonhos...


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Lembro-me<br />

L<br />

de algo que me<br />

acontecia muito, como a todo<br />

menino, sobretudo durante a<br />

hora de estudo. No colégio São Luís,<br />

da minha sala de aula era possível ver<br />

o céu. E, muitas vezes, os meus olhos<br />

fugiam para as pontas das árvores verdes,<br />

balouçando com os ventos, e depois<br />

para o imenso azul. Era natural.<br />

Com o vôo do urubu,<br />

imersão num mundo de<br />

sonhos<br />

Em certas ocasiões eu via um urubu<br />

cortando o firmamento e não sabia<br />

tratar-se de um bicho feio como notei<br />

anos depois. Desse pássaro eu conhecia<br />

apenas o lindo perfil, seu vôo gracioso<br />

e seu esplêndido jogo de asas. É<br />

verdade que dele se vê apenas a silhueta,<br />

mas as silhuetas têm suas elegâncias<br />

e o urubu era uma, deslisando pelo<br />

ar. De vez em quando voava com<br />

uma asa que parecia curta e a outra<br />

longa, ou então se virava e era a outra<br />

asa que crescia e a anterior parecia<br />

menor.<br />

Quando percebia que ele planava e<br />

não batia as asas, eu pensava: “Como<br />

deve ser gostoso ser urubu! E como<br />

seria agradável se eu, a esta hora, pudesse<br />

desprender-me desta carteira,<br />

deste papel onde, com uma letra perenemente<br />

feia, estou rabiscando coisas<br />

e sobre o qual, brincando com a<br />

bomba da caneta-tinteiro, deixo cair<br />

gotas de tinta e fico aborrecido...”<br />

Então eu imaginava algo diferente.<br />

Como era menino, não sabia dar formulação<br />

ao meu próprio pensamento,<br />

mas o que me ia no espírito era: “Ah!<br />

Se eu pudesse sair voando pela janela,<br />

cortar o ar como o urubu, e morar dentro<br />

do azul muito tempo, sentar-me sobre<br />

as nuvens, dormir um pouco sobre<br />

elas e brincar com o vento de tal maneira<br />

que ele me levasse delicadamente<br />

para onde eu queria; ou se eu tivesse<br />

o prazer de fendê-lo sem grande esforço<br />

— isso seria uma diversão muito<br />

agradável, num mundo de sonho,<br />

mundo que não existe!”<br />

Pedras, vitrais, olhares: a<br />

vida num ambiente mítico<br />

Na mesma época, acontecia-me com<br />

freqüência outra situação que passo a<br />

descrever.<br />

Aqui no Brasil é comum encontrar<br />

pedras que nada têm de precioso, mas<br />

cujo colorido é muito bonito. Desde cedo,<br />

em passeios pelo campo, habitueime<br />

a notar essas pedrinhas e a catálas.<br />

Minha idéia era a seguinte: como<br />

seria gostoso morar dentro de um ambiente<br />

que fosse todo da cor daquela<br />

pedra, da consistência que ela parecia<br />

ter, onde eu pudesse respirar e ficar sossegado,<br />

sem ter de falar com ninguém,<br />

nem ninguém falar comigo. E colocando<br />

meu temperamento nas condições<br />

da pedra, assimilando tudo quanto tem<br />

na pedra, e por assim dizer, “esmeraldando-me”,<br />

“rubificando-me”, “safirizando-me”,<br />

de maneira que algo daquilo<br />

como que se entranhasse em mim e<br />

me enriquecesse com aquilo. Era para<br />

mim uma história de fadas sem fadas,<br />

em que a fada era o puro ambiente,<br />

era a pura cor dentro da qual eu moraria<br />

e, durante algum tempo, encontraria<br />

meu contentamento.<br />

Daí o gosto que sempre conservei<br />

por esses tipos de pedras.<br />

E daí, também, meu verdadeiro êxtase<br />

quando descobri que os vitrais de<br />

algum modo me satisfaziam esse desejo.<br />

Depois, quando descobri que<br />

certos olhares indicavam que determinadas<br />

almas como que vivem numa<br />

pedra ou numa água interior, ou num<br />

ar interior e que elas habitam em algo<br />

ou algo habita nelas — metaforicamente<br />

— que é como um líquido no<br />

qual elas existem e que traz fecundidade,<br />

força, serenidade, inspirações,<br />

vôos, que constituem uma espécie de<br />

redoma dentro da qual a pessoa vive.<br />

E essa idéia do viver em algo que não<br />

é o real, mas que poderia ser o real algum<br />

dia e no qual minha alma quereria<br />

viver, passou a constituir uma espécie<br />

de tendência freqüente no meu espírito.<br />

O rio Arno, uma pedra<br />

líquida<br />

Décadas depois, fui jantar num restaurante<br />

ao longo do rio Arno, em Florença.<br />

Os italianos, com muito bom<br />

gosto, fizeram um restaurante quase<br />

lacustre, porque a maior parte dele<br />

não estava construída em terra, mas<br />

num tablado cravado sobre o Arno.<br />

Tão perto da água, que se podia ouvir<br />

o ruído da correnteza bem abaixo de<br />

nossos pés. E, descuido bem latino,<br />

num certo lugar a prancha do chão estava<br />

meio rachada e os responsáveis<br />

se esqueceram de substituí-la. Então,<br />

pela fenda eu via o rio passar sob o<br />

piso do estabelecimento.<br />

A água do Arno parece uma pedra<br />

líquida, não é transparente como podem<br />

imaginar uma pedra preciosa,<br />

mas opaca, de um verde que seria da<br />

cor de um azinhavre, pouco escura.<br />

Era como um rio de azinhavre correndo<br />

ali por baixo, que me dava uma impressão<br />

ultradeleitável.<br />

16


As pedras que eu admirava,<br />

os vitrais com que me extasiava,<br />

eram para mim uma história de fadas<br />

sem fadas, eram as puras cores dentro das<br />

quais eu moraria e encontraria meu<br />

contentamento...


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

E eu, jantando sobre o Arno, um<br />

rio com sua densa história, com sua<br />

tradição, vendo- o correr e admirando<br />

aquela substância líquida, veio-me de<br />

imediato o pensamento: “Como seria<br />

bom morar dentro do Arno, quer dizer,<br />

num ambiente que fosse como o Arno!”<br />

Excelências simbolizadas no<br />

“jarro do Imperador”<br />

Ainda uma reminiscência de menino.<br />

Havia em casa um vaso de alabastro,<br />

com alças e base de bronze, que<br />

pertencera ao Imperador D. Pedro II,<br />

donde o chamarmos de “jarro do Imperador”.<br />

Eu gostava imensamente de<br />

ficar admirando esse objeto, sobretudo<br />

o colorido dele que, ao menos para<br />

a minha ótica, situa-se numa posição<br />

dentro do mundo das cores que se presta<br />

muito bem a uma espécie de carrefour,<br />

de cruzamento a partir do qual<br />

se parte para toda espécie de contrastes<br />

harmônicos. Então, das cores<br />

de tonalidades mais carregadas para<br />

as cores de tons mais leves, diáfanos,<br />

das cores simples para as cores compostas,<br />

etc. Contemplando os matizes<br />

cromáticos daquele alabastro, eu podia<br />

imaginar toda sorte de cores possíveis.<br />

E, na linha dos meus sonhos de<br />

criança, também toda sorte de mundos,<br />

de realidades, de perfeições possíveis.<br />

O cor-de-rosa e o branco se mesclavam<br />

noutro jarro, de um nacarado muito<br />

parecido com o das conchinhas que<br />

eu encontrava e admirava nas praias<br />

de Santos e Guarujá. Ele tinha isso de<br />

próprio: fazia pensar em certas qualidades<br />

da matéria, pelas quais esta às<br />

vezes é mais excelente porque é dúctil,<br />

é mais excelente porque é flexível,<br />

é mais excelente porque é transparen-<br />

“ A água do rio Arno parece uma<br />

pedra líquida; vendo-o correr e o<br />

admirando, veio-me de imediato o<br />

pensamento: como seria bom morar<br />

num ambiente que fosse como o Arno!”<br />

18


S<br />

e um mero jarro de<br />

alabastro, se algumas<br />

tantas pedras semipreciosas,<br />

se as cores dos<br />

vitrais ou das águas de<br />

um rio podem ser motivos<br />

de profundo deleite, qual<br />

será a satisfação no<br />

contato com Aquele que é<br />

tudo, e com a Mãe<br />

Santíssima d’Ele, obraprima<br />

da criação?<br />

(Ao lado, o “jarro do Imperador”)<br />

te. Ou, por oposição, será excelente porque<br />

é indúctil, é inflexível e é opaca.<br />

São formas de excelências diferentes<br />

da matéria. Podemos imaginar então<br />

um objeto cuja perfeição estivesse na<br />

flexibilidade e leveza de um “quase não<br />

ser”, como podemos também pensar<br />

numa linda pedra, cuja excelência está<br />

exatamente no seu compacto magnífico.<br />

O mundo de sonhos existe<br />

no Paraíso Celeste<br />

Agora, essa manifestação de excelências<br />

contida naquele nacarado, transposta<br />

para a ordem dos seres vivos,<br />

levar-me-ia a pensar na possibilidade<br />

de existirem almas com uma força pétrea,<br />

e almas com uma ductilidade e<br />

uma transparência de zéfiro. E na<br />

possibilidade de haver puros espíritos<br />

diversos entre si, como são diversos<br />

entre si os mil estados da matéria.<br />

Ora, estes são os Anjos, habitantes do<br />

Céu.<br />

E então aquele meu mundo de sonhos,<br />

aquele ambiente mítico onde eu<br />

desejava morar não é quimera nem fantasia.<br />

É o Paraíso Celeste. Lugar que<br />

supera qualquer imaginação, lugar de<br />

inconcebíveis delícias, onde poderemos<br />

passear pelos coros angélicos, povoados<br />

de espíritos “multicoloridos”, dotados<br />

de excelências das quais as da<br />

matéria são simples imagens. Que coisa<br />

mais delicada e magnífica do que<br />

um ser que é magnífico enquanto delicado,<br />

ou, por outro lado, que é magnífico<br />

enquanto duro e rijo como o melhor<br />

dos aços?<br />

No Céu encontraremos todos esses<br />

seres, e no contato com eles nos será<br />

dada uma satisfação indizível. Porque<br />

se um mero jarro de alabastro, se algumas<br />

tantas pedras semi-preciosas,<br />

se as cores dos vitrais ou das águas de<br />

um rio, uma vez analisados e admirados,<br />

podem nos ser motivo de profundo<br />

deleite, a quanto deleite pode prestar-se,<br />

então, o conhecimento de um<br />

espírito que eles simbolizam?<br />

E qual será o deleite do contato<br />

com Aquele que é tudo? E qual será o<br />

deleite do contato com Aquele que é<br />

tudo e é Homem? E com a Mãe Santíssima<br />

d’Ele, obra-prima de sua criação?<br />

Não se tem palavras para dizer... v<br />

19


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

A ORDEM<br />

TEMPORAL SACRAL,<br />

“MINISTRA” DA IGREJA<br />

Vista da cidade de Assis, cujas<br />

tradições evocam uma época<br />

áurea da Cristandade, quando a<br />

ordem temporal procurava cumprir<br />

seus deveres para com a Igreja e<br />

a salvação das almas


Segundo o Papa João Paulo II, é vocação própria dos fiéis leigos “procurar<br />

o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo<br />

Deus” (Novo Millennio Ineunte, 46). Na série de artigos que hoje<br />

concluímos, reproduzindo um trabalho inédito escrito em 1960 por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, ele<br />

mostra o papel auxiliar em relação à Igreja, mas indispensável, da sociedade<br />

temporal cristã na preparação do homem para a visão beatífica.<br />

V ejamos,<br />

em suas mútuas relações,<br />

os aspectos espirituais<br />

e materiais da vida<br />

temporal. De que maneira se relacionam<br />

entre si as atividades atinentes à<br />

formação da civilização, da cultura, do<br />

estilo, do ambiente, com as demais atividades<br />

cuja contextura forma a vida<br />

quotidiana dos homens e das sociedades?<br />

Indispensável harmonia<br />

entre a vida mental e a<br />

material<br />

Consideremos o assunto na esfera<br />

limitada de uma família. Por mais ambiente<br />

que ela tenha, por mais que<br />

sua vida social-espiritual seja intensa,<br />

seria um erro imaginar que cada uma<br />

de suas atividades é dirigida pela preocupação<br />

inteiramente<br />

consciente, intencional,<br />

de formar um estado<br />

de espírito, e de o definir.<br />

Ela age em geral<br />

com a mesma naturalidade e a despreocupação<br />

com a qual o corpo respira<br />

ou o sangue circula nas veias. Ao<br />

adquirir um móvel, fazer uma cortina<br />

ou escolher um quadro, as preocupações<br />

conscientes de ordem absolutamente<br />

prática, de caráter inteiramente<br />

circunstancial, podem até ter um<br />

papel preponderante. Não obstante,<br />

as forças mais profundas da alma cooperarão<br />

também, e deixarão sua marca<br />

no ato, sem que muitas vezes a própria<br />

pessoa que adquire o móvel, que<br />

escolhe a cortina ou o quadro o perceba.<br />

São afinidades naturais, vigorosas,<br />

mas tão discretas — entre os vários<br />

bens adquiridos pelas sucessivas<br />

gerações de uma família, e que coexistem<br />

numa mesma casa —, que por vezes<br />

só as pessoas estranhas ao lar são<br />

capazes de notar as características da<br />

atmosfera doméstica.<br />

É o que explica a formação dos estilos.<br />

Nenhum deles resulta de um planejamento<br />

de gabinete, mas é obra de<br />

uma sociedade inteira. Os artistas não<br />

são propriamente os criadores do estilo<br />

em uso em uma sociedade, mas<br />

seus intérpretes, seus propulsores na<br />

linha em que se vai desenvolvendo a<br />

mentalidade social.<br />

É o que explica também que, nos estilos<br />

verdadeiramente produzidos por<br />

uma sociedade, o prático e o belo, os<br />

elementos de utilidade física e as características<br />

de expressão mental se fundam<br />

tão harmoniosamente.<br />

A vida propriamente mental se entrelaça<br />

tão intimamente, se embebe tão<br />

profundamente, se entranha tão indissociavelmente<br />

na vida material, como<br />

a alma no corpo. E é nesta interpenetração<br />

que está a garantia da sanidade<br />

e da autenticidade de uma e de outra.<br />

Na decoração de<br />

um ambiente<br />

familiar<br />

transparece, em<br />

geral, a harmonia<br />

entre os aspectos<br />

práticos e o<br />

“estilo” peculiar<br />

das almas que,<br />

com naturalidade<br />

e despreocupação,<br />

o constituíram<br />

21


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

Superioridade dos<br />

benefícios espirituais<br />

Entre o prático e o belo, qual é o mais<br />

importante na vida temporal? Levantar<br />

esta questão, quando uma família<br />

adquire um guarda-roupa, por exemplo,<br />

equivaleria a perguntar se o mais<br />

importante é que ele sirva para guardar<br />

roupa, ou para que, por seu aspecto,<br />

acentue o poder de expressão do<br />

ambiente material do lar. Ou se, em um<br />

país, ao se edificar um Palácio da Justiça,<br />

o que mais importa é sua utilidade<br />

prática para o funcionamento dos<br />

órgãos da judicatura, ou a majestade<br />

e gravidade que deve penetrar o ambiente<br />

judiciário, exprimindo a natureza<br />

mais íntima da função de julgar.<br />

Quando um objeto, por sua natureza,<br />

deve ter dois atributos essenciais,<br />

se um desses lhe falta, ele não tem valor<br />

algum. Em vez de escolher entre o<br />

guarda-roupa materialmente útil e o<br />

“espiritualmente” útil; em vez de escolher<br />

entre o Palácio só materialmente<br />

adequado, e o Palácio só “espiritualmente” adequado,<br />

seria o caso de começar por rejeitar um<br />

e outro.<br />

O homem tem o direito e o dever de ser suficientemente<br />

exigente para não se contentar<br />

O serviço prestado à alma vale mais do<br />

que o prestado ao corpo; por isso, em certo<br />

sentido, é mais importante a função<br />

educativa de um móvel ou de um edifício<br />

público, do que os seus aspectos práticos<br />

(Acima, o Paço Municipal de Viena; ao lado,<br />

artesão florentino)<br />

22


com um objeto que preste maus serviços<br />

à sua alma ou ao seu corpo.<br />

Não queremos, porém, fugir à questão<br />

que há pouco havíamos formulado.<br />

O fim imediato, próprio, natural de<br />

um guarda-roupa não consiste em ser<br />

como que uma condensação de doutrina<br />

ou de mentalidade. Neste sentido,<br />

mais lhe importa guardar convenientemente<br />

roupa. Mas como o serviço<br />

prestado à alma vale mais do que<br />

o que se presta ao corpo, em certo sentido<br />

é mais importante a função educativa<br />

de um mobiliário do que seu<br />

aspecto prático.<br />

O mesmo se deve<br />

dizer da sociedade<br />

temporal, considerada<br />

como um todo. Sua<br />

situação não pode ser<br />

tida por normal, senão<br />

quando fornece<br />

condições de existência<br />

e de progresso satisfatórios<br />

tanto para<br />

a alma quanto para o<br />

corpo. A recíproca influência<br />

entre as duas<br />

esferas levará mesmo<br />

os progressos obtidos<br />

em cada uma a repercutir<br />

favoravelmente<br />

no dinamismo próprio<br />

à outra. Qualitativamente,<br />

entretanto, é<br />

bem verdade que os<br />

benefícios do espírito<br />

importam mais que<br />

os da matéria. E por<br />

isso, em que pese a<br />

certa mentalidade moderna,<br />

importa mais a<br />

um país ter uma cultura<br />

própria, um estilo<br />

próprio, costumes,<br />

instituições, leis, em<br />

consonância com o ambiente nacional,<br />

do que uma perfeita canalização<br />

de águas e esgotos, por exemplo. A<br />

Atenas do tempo de Péricles brilhará<br />

para sempre no firmamento da história.<br />

A Atenas de hoje, incomparavelmente<br />

superior à outra em comodidade<br />

material, que lembrança deixará<br />

de si no futuro?<br />

Posição ministerial do<br />

que é temporal em<br />

relação ao eterno<br />

Trata-se agora de definir as relações<br />

entre as funções da sociedade temporal,<br />

que acabamos de descrever, e a Religião.<br />

Acima, mulheres bretãs<br />

com seus trajes<br />

característicos; ao lado,<br />

praça de Graz, na<br />

Áustria — culturas,<br />

instituições, costumes e<br />

estilos próprios,<br />

um conjunto de valores<br />

que é superior<br />

ao progresso técnico<br />

A Igreja ensina que a vida<br />

terrena deve ser comparada<br />

a um noviciado. O noviço deve<br />

adquirir os conhecimentos<br />

e as virtudes que o tornem<br />

apto para a vida religiosa.<br />

O homem deve adquirir,<br />

na vida terrena, os conhecimentos<br />

e as virtudes que o<br />

tornem apto para o Céu. Por<br />

virtude se entende o hábito de operar<br />

segundo a reta razão. O que supõe<br />

um conhecimento dos ditames desta<br />

última. As operações a que se referem<br />

esses ditames não são apenas as exteriores,<br />

mas as interiores. Qualquer ato<br />

meramente interior do homem, desde<br />

que tenha o consentimento da vontade,<br />

é suscetível de ser virtuoso ou não,<br />

23


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

conforme esteja em acordo ou desacordo<br />

com a reta razão. A sociedade temporal-espiritual<br />

é dotada de uma ação<br />

poderosa sobre o homem para o levar<br />

a pôr atos interiores ou exteriores<br />

conformes à razão. Ela pode, pois, ser<br />

meio útil para salvar ou para perder.<br />

As mais altas manifestações da vida<br />

temporal se inserem, por sua própria<br />

natureza, no âmago do problema<br />

da salvação, e não podem ficar de nenhum<br />

modo alheias. Não é só pelo<br />

concurso das leis com que favorece a<br />

Igreja verdadeira e reprime o erro, que<br />

a sociedade temporal pode servir à salvação.<br />

É pelas mil atividades espirituais<br />

que constituem o que ela tem de<br />

melhor, isto é, o fato de ser uma sociedade<br />

de almas, sem o que nem sequer<br />

ela seria sociedade¹.<br />

Dá-se, pois, com a sociedade temporal<br />

— mutatis mutandis — o mesmo<br />

que com a família, sociedade também<br />

ela natural, temporal, mas destinada<br />

pelo que ela tem de mais visceral a<br />

atividades que coincidem<br />

com as da Igreja.<br />

Dada esta interpenetração<br />

profunda<br />

de campos, desejada pela Providência,<br />

seria absurdo supor que Deus não quisesse<br />

uma cooperação entre a sociedade<br />

temporal e a Igreja. Igualmente seria<br />

absurdo entender que nessa cooperação<br />

entre duas sociedades intrinsecamente<br />

desiguais, aquilo que é temporal,<br />

natural, perecível, não estivesse<br />

em posição ministerial em relação ao<br />

espiritual, sobrenatural, eterno; o fim<br />

próximo em relação ao fim último.<br />

Há nestas considerações base suficiente<br />

para se ir mais longe, sustentando-se<br />

que a sociedade temporal, máxime<br />

enquanto sociedade de almas, não<br />

alcança a sua perfeição senão mediante<br />

o magistério e a graça de que a<br />

Igreja é depositária. Mas isto nos levaria<br />

longe do nosso tema.<br />

Santidade e sacralidade<br />

da ordem temporal<br />

A sociedade temporal tem, pois,<br />

tanto quanto a família, embora a seu<br />

modo próprio, uma função de apostolado<br />

a exercer na própria esfera temporal,<br />

sob a inspiração e a orientação<br />

do magistério da Igreja.<br />

Qual a importância real de sua contribuição<br />

na obra da salvação? Tratase,<br />

é claro, de uma contribuição de caráter<br />

meramente natural, pois só a Igreja<br />

é uma sociedade sobrenatural. Isto<br />

posto, pode-se entretanto sustentar que<br />

tal importância é imensa. A Providência<br />

quis que o ambiente de uma família,<br />

de uma sociedade cultural, profissional,<br />

recreativa ou qualquer outra,<br />

ou de uma cidade, de uma província,<br />

de um país, exercesse sobre o homem<br />

uma influência natural profunda, da<br />

qual, é certo, ele pode libertar-se com<br />

o auxílio da graça, caso tal influência<br />

seja má, mas que, em todo caso, atua<br />

em seu íntimo poderosamente. A prova<br />

disso está na evidência dos fatos.<br />

Onde as leis, as instituições, os costumes,<br />

a cultura, o estilo, a civilização<br />

constituem um ambiente profundamente<br />

católico, a ação específica da<br />

Hierarquia eclesiástica logra habitualmente<br />

grandes frutos, e a ação dos<br />

Sacramentos, da pregação, a irradiação<br />

da santidade dos Ministros de Deus<br />

move as multidões. Onde, pelo contrário,<br />

tudo se lhe opõe, as dificuldades<br />

para a ação da Hierarquia se tornam<br />

A<br />

ssim como a família, a sociedade<br />

temporal tem uma função<br />

de apostolado a exercer na<br />

sua própria esfera, sob a<br />

inspiração e a orientação<br />

do magistério da Igreja<br />

(Vista de Zurique, Suíça)<br />

24


imensas. São vencíveis, é certo, pois para<br />

Deus nada é impossível. Mas atuam<br />

em si mesmas de modo desfavorável.<br />

É o que explica que países inteiros<br />

tenham caído repentinamente na heresia,<br />

como a Inglaterra, ou as nações<br />

escandinavas: todo o ambiente tinha<br />

uma nota apenas aparente de catolicidade.<br />

O que era verdadeiramente dominante<br />

era a indiferença, a tibieza.<br />

Em sentido contrário, poder-se-ia<br />

argumentar com a expansão da Igreja<br />

sob as perseguições e seu afrouxamento<br />

depois de Constantino. O argumento<br />

é intrinsecamente tão fraco que faz<br />

sorrir. Quem pode admitir que a Esposa<br />

Mística de Cristo só seja fecunda<br />

quando tratada a chibatadas? Que seus<br />

verdadeiros benfeitores sejam os Neros<br />

e os Dioclecianos, e seus verdadeiros<br />

perseguidores um São Luís de França,<br />

um São Fernando de Castela ou um<br />

Santo Henrique da Alemanha?<br />

A sociedade temporal, querida por<br />

Deus, ordenada para Ele, realizando<br />

em si mesma uma obra que é de santificação,<br />

é uma sociedade santa, que<br />

tem uma função sagrada. Sociedade<br />

inteiramente natural como a família,<br />

mas como ela trabalhada a fundo pela<br />

vida sobrenatural que borbulha em<br />

seus membros. Sociedade santa e sagrada<br />

como o é a família cristã, à qual<br />

convém tão bem a designação de santa,<br />

que até seu vínculo constitutivo é<br />

um Sacramento instituído pelo próprio<br />

Jesus Cristo.<br />

Santo Império, Santa Rússia, Santa<br />

França eram antigamente designações<br />

correntes e perfeitamente legítimas.<br />

E ninguém estranhava que o óleo sagrado<br />

servisse como um sacramental<br />

para ungir os reis, que sua investidura<br />

no poder temporal supremo se desse<br />

durante a Missa, numa função essencialmente<br />

religiosa, com a participação<br />

do clero; que a Cruz de Cristo brilhasse<br />

no alto do símbolo do poder temporal,<br />

que era a coroa; ou que o título<br />

mais honroso do detentor supremo<br />

do poder temporal fosse um título religioso:<br />

Sacra Majestas, Rex Apostolicus,<br />

Rex Christianissimus, Rex Catholicus,<br />

Rex Fidelissimus, Defensor Fidei.<br />

Que os duques da Lorena — que se<br />

presumiam reis de Jerusalém — cingissem<br />

uma coroa cujo diadema era<br />

feito de espinhos, ou que o Rei da Lombardia<br />

tivesse em sua Coroa de Ferro<br />

um cravo da Paixão de Cristo. Todos esses<br />

fatos atestavam a sacralidade da<br />

sociedade temporal e, portanto, do poder<br />

temporal, embora este fosse distinto<br />

da Hierarquia eclesiástica.<br />

Chegamos assim à noção da sociedade<br />

temporal ministra da Igreja, que<br />

abre amplas perspectivas para a noção<br />

da sociedade temporal sacral.<br />

Parece-nos que, se todos os que se<br />

interessam pelo problema das relações<br />

entre a sociedade temporal e a<br />

Igreja tivessem bem claro no espírito<br />

que a palavra “temporal” inclui, a título<br />

capital, imensos valores espirituais,<br />

e quais sejam eles, mais fácil lhes seria<br />

compreender a “ministerialidade”<br />

do temporal.<br />

1 São Tomás, De Regimine Principum, ensina<br />

que a sociedade humana só é realmente<br />

sociedade porque constituída de<br />

homens, isto é, de seres dotados de alma.<br />

Um formigueiro ou uma colméia<br />

não são sociedades.<br />

25


DONA LUCILIA<br />

Dª Lucilia (à direita)<br />

e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (de pé,<br />

à esquerda), na<br />

inauguração das<br />

novas máquinas<br />

do “Legionário”<br />

Incansável<br />

solicitude materna<br />

26


Encerrado o mandato de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Assembléia<br />

Nacional Constituinte, em 1934, seu retorno<br />

ao convívio doméstico foi motivo de imenso<br />

regozijo para Dª Lucilia, sempre saudosa da presença<br />

do filho que ela tanto amava.<br />

Entretanto, novas eleições foram convocadas, agora<br />

não só para a Câmara Federal como também para as Câmaras<br />

Estaduais. Se <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se candidatasse a deputado<br />

federal e fosse eleito — cogitava com certa apreensão Dª<br />

Lucilia — isso motivaria nova e bem mais longa separação.<br />

No entanto, estava ela disposta a quaisquer sacrifícios.<br />

Desta vez, porém, as intenções apostólicas dele foram favoráveis<br />

aos maternos anseios. Dado o lugar de destaque<br />

que ocupava nas Congregações Marianas de São<br />

Paulo, não queria afastar-se do que era seu<br />

campo de ação por excelência. E aqui<br />

se candidatou a deputado estadual,<br />

com grande alívio para sua mãe.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve de enfrentar<br />

sérias dificuldades, porque as<br />

circunstâncias não eram tão<br />

propícias como por ocasião<br />

da eleição anterior.<br />

O Arcebispo de São Paulo,<br />

D. Duarte, determinara<br />

a dissolução da<br />

LEC, não havendo, portanto,<br />

candidatos oficialmente<br />

indicados pela<br />

Igreja. Grande desvantagem<br />

para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

pois o seu público<br />

era o católico. Apesar<br />

de tantas adversidades,<br />

ele decidiu se apresentar<br />

como candidato avulso, em<br />

vista de seu prestígio de líder<br />

mariano, comprovado no<br />

último pleito, e dos benefícios<br />

que daí poderia auferir para o<br />

apostolado.<br />

Ao fazer o orçamento da despesa de<br />

campanha, ele viu que custaria exatamente<br />

a quantia recebida por Dª Lucilia como herança de<br />

uma tia dela. Depois de bem ponderar os prós e contras,<br />

procurou sua mãe a fim de lhe comunicar a decisão de<br />

pugnar em defesa da Igreja, como deputado estadual:<br />

— Mãezinha, eu creio que na verdade o melhor para<br />

mim seria não me candidatar, mas assumir minha cátedra<br />

na Faculdade de Direito e, algum tempo depois, abrir um<br />

escritório de advocacia. Com nossa casa razoavelmente arranjada,<br />

iríamos normalizando nossa situação. Mas a vantagem<br />

da Causa Católica consiste em candidatar-me como<br />

deputado avulso. Nessas condições, peço à senhora lançar<br />

D. Duarte Leopoldo e Silva,<br />

Arcebispo de São Paulo<br />

mão do dinheiro que recebeu para cobrir as despesas de<br />

minha campanha.<br />

Dª Lucilia via bem o quanto arriscava nisso, mas sua deliberação<br />

também de há muito estava tomada. Com a mesma<br />

serenidade de sempre, respondeu:<br />

— O que você quiser, você terá! Todo o meu dinheiro,<br />

tudo quanto é meu, você disponha como quiser...<br />

Na difícil situação financeira em que a família se encontrava,<br />

Dª Lucilia dava um magnífico exemplo de desprendimento<br />

em favor dos interesses da Santa Igreja, e de confiança<br />

total na Providência.<br />

Mas, por superiores desígnios da mesma Providência,<br />

realizadas as eleições, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não logrou sair-se vitorioso<br />

nas urnas. Os candidatos avulsos eram quatro<br />

ou cinco, e o mais votado deles fora <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>. Nenhum, porém, atingira um número<br />

suficiente de votos para obter<br />

uma cadeira.<br />

Nova mudança: a<br />

casa da rua<br />

Itacolomy<br />

Dª Lucilia participou<br />

profundamente do pesar<br />

que essa sucessão<br />

de fatos haveria de<br />

causar a seu filho, mas<br />

nem por isso deixou de<br />

ter esperança no Sagrado<br />

Coração de Jesus.<br />

“Afinal — terá com<br />

certeza pensado — as<br />

vias da Providência são<br />

insondáveis, e destas provações<br />

não deixará Deus de<br />

tirar proveito”. Ao menos a<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> restaria mais tempo<br />

para se dedicar à vida intelectual<br />

e ao apostolado, e para estar junto<br />

de sua mãe, tão saudosa de seu “filhão<br />

querido” quando este se ausentava.<br />

E assim foi. Assumida a cátedra de História da<br />

Civilização no Colégio Universitário da famosa Faculdade<br />

de Direito do Largo de São Francisco, bem como, mais<br />

tarde, as cátedras das Faculdades de Filosofia Ciências e<br />

Letras de São Bento e Sedes Sapientiae (posteriormente<br />

incorporadas à Universidade Católica), <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> entregou-se<br />

a fundo aos estudos históricos e às atividades das<br />

Congregações Marianas, passando também a dedicar mais<br />

tempo ao semanário católico “O Legionário” — do qual já<br />

era diretor — que nos anos subseqüentes alcançaria repercussão<br />

nacional.<br />

27


DONA LUCILIA<br />

O tempo livre para fazer companhia a Dª Lucilia, no entanto,<br />

com o correr dos anos tornar-se-ia cada vez mais escasso,<br />

o que ela aceitará com toda a resignação de uma alma<br />

autenticamente católica.<br />

Após todos esses vaivéns, era preciso, enfim, cuidar da<br />

decoração do lar, ou mudar para uma residência melhor.<br />

Tendo Dona Rosée encontrado uma casa, em boas condições,<br />

próxima à dela, foi radiante de alegria dar a notícia a<br />

Dª Lucilia. Pouco menor que a anterior, porém muito mais<br />

bem arranjada pelo proprietário, a moradia era um verdadeiro<br />

mimo, decorada com belos papéis de parede e vitrais<br />

de boa qualidade, e o aluguel bastante em conta. Por tudo<br />

isso, para lá se mudaram.<br />

O novo lar — na Rua Itacolomy, 625, no bairro de Higienópolis<br />

— agradou enormemente a Dª Lucilia. Dona<br />

Rosée encarregou-se da decoração, de forma que em pouco<br />

tempo estava tudo pronto, e muito adequado ao modo<br />

de ser de sua mãe.<br />

Os hábitos de Dª Lucilia variavam de acordo com a casa<br />

e com os imponderáveis do ambiente. Entre as diversas recordações<br />

de sua passagem por essa residência, conta-se<br />

que, dos cômodos do andar superior, ela escolhera um para<br />

quarto de toilette, onde, com tranqüilidade e distinção,<br />

todas as tardes tomava chá, servido numa bandeja preparada<br />

com esmero por uma fidelíssima empregada portuguesa.<br />

Desvelos pelo “filhão” doente<br />

Dª Lucilia, conquanto em nada descurasse as prescrições<br />

médicas, nunca impunha um tratamento a quem tinha<br />

idade para se governar a si próprio. Seu desvelo por seu filho<br />

não diminuíra, pelo contrário, requintara-se ao longo<br />

dos anos, passando a representar para ele um autêntico re-<br />

Não tendo alcançado a<br />

reeleição para deputado,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> passou a lecionar<br />

na Faculdade de Direito do<br />

Largo São Francisco, bem<br />

como nas de São Bento e<br />

Sedes Sapientiae...<br />

28


... e pôde, ainda, dedicar mais tempo ao seu apostolado, como líder católico e diretor do “Legionário”<br />

pouso e encorajador consolo, em meio à luta que ele conduzia<br />

pela ortodoxia católica. Disso é ilustrativo o episódio<br />

seguinte:<br />

Certo dia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi acometido por fortíssima indisposição.<br />

Dª Lucilia percebeu imediatamente e lhe perguntou:<br />

— Filhão, você está indisposto, não está?<br />

A pergunta, muito afetuosa mas incisiva, deixava claro<br />

que ela notara o estado dele e não adiantava esconder. <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> respondeu com sua característica franqueza filial:<br />

— Meu bem, realmente estou indisposto, mas detesto<br />

medicar-me. Eu não queria contar nada, a fim de evitar<br />

que a senhora insistisse comigo para tomar remédios e —<br />

pior do que tudo — me recomendasse alguma dieta. Por<br />

isso não quero dizer não à senhora, mas sobretudo não<br />

quero dizer sim...<br />

A situação era bem difícil para Dª Lucilia. Queria ajudar<br />

o filho, porém, não desejava contrariá-lo. Mas nem por<br />

isso perdeu a calma. Aproximou-se da cama dele e colocou<br />

a mão sobre sua fronte para verificar se ele estava com febre.<br />

Nesse pequeno gesto caseiro, já estava dado o primeiro<br />

passo para a cura, pois o frescor de suas mãos transmitia<br />

uma benfazeja serenidade, reflexo de sua imperturbável<br />

paz de alma.<br />

Ela então lhe disse:<br />

— Você está com febre.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> certamente pensou: “Ela agora vai me pôr o<br />

termômetro, e este vai indicar 38 ou 39. Ficará preocupada<br />

e vou me meter numa engrenagem que detesto...”<br />

Dito e feito. Com seus pequenos mas ágeis passos, saiu<br />

ela do quarto, voltando alguns instantes depois com o fatídico<br />

instrumento. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, para não a contrariar, colocou-o<br />

e, passado o tempo necessário, controlado minuciosamente<br />

no relógio por Dª Lucilia, o devolveu a sua mãe.<br />

Na penumbra do quarto, ela olhou, com certa dificuldade,<br />

a temperatura. Porém, em vez de proferir uma sentença,<br />

como fazia quando ele era menino, apenas lhe disse:<br />

— Não é nada. O que você quer fazer, meu filho?<br />

Afastada, para alívio dele, a tortura, respondeu:<br />

— Meu bem, eu quero passar o tempo, deitado e quieto.<br />

Dª Lucilia, então, trazendo uma cadeira do quarto dela,<br />

colocou-se ao lado da cama do filho e pôs-se a rezar tranqüilamente.<br />

Ficou assim algumas horas, até chegar a noite.<br />

Em certo momento, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lhe disse:<br />

— Meu bem, estou com muita fome e a senhora certamente<br />

vai querer que eu coma algo.<br />

— Diga o que você quer, que sua mãe lhe traz — foi a<br />

pronta resposta dela.<br />

Em seguida, ela mesma saiu a preparar o prato que seu<br />

filho pedira. Levou a refeição ao quarto, fez questão de<br />

servi-lo e no fim disse:<br />

29


DONA LUCILIA<br />

Com sua inesgotável<br />

solicitude materna, Dª<br />

Lucilia nunca tomava por<br />

“bagatela” os pequenos males<br />

que acometiam <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

“Se eu morresse”, dizia este,<br />

“ela também morreria.<br />

Uma coisa é certa: ela<br />

preferiria igualmente<br />

partir desta vida...”<br />

— De outras vezes não esconda nada a sua mãe,<br />

porque ela percebe e não vai lhe impor nada.<br />

A saúde que, a rogos de Nossa Senhora, a Providência<br />

dera a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, era excelente, e assim<br />

na manhã seguinte ele já estava bom. Logo<br />

após se levantar, foi ao quarto de Dª Lucilia.<br />

Ao vê-lo entrar, lhe perguntou:<br />

— Filhão, como vai?<br />

E a vida de todos os dias recomeçou.<br />

Muitos e muitos anos mais tarde, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, ao se referir a este pequeno episódio,<br />

comentou que só quando sua mãe lhe fez o<br />

pedido de nada esconder, percebeu como,<br />

para ela, aquele pequeno mal não era uma<br />

bagatela. Se a doença se agravasse, Dª Lucilia<br />

cuidaria dele com extremos de zelo, até o<br />

fim. E — concluiu <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — “é provável<br />

que, se eu morresse, ela também morreria.<br />

Uma coisa é certa: ela preferiria igualmente<br />

partir desta vida”.<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra<br />

“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />

30


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Harmonioso<br />

cântico<br />

de matizes


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

ASainte Chapelle (Santa Capela), mandada construir<br />

pelo rei São Luís de França, é um desses<br />

tesouros da arte católica, inspirado por uma Fé<br />

tão rica e tão florescente, que sempre encontramos algo<br />

de novo a se dizer e se comentar a respeito dela.<br />

Por exemplo, acerca de seus magníficos vitrais.<br />

Quando os conheci, tive a impressão de estar ouvindo<br />

um fabuloso coro cantando, no qual cada vitral era uma<br />

voz, e que entoava uma melodia entendida de maneira peculiar<br />

por mim, assim como era compreendido de modo diverso<br />

pelas diferentes almas que o “escutavam”. E como é<br />

o próprio da interlocução, deram-me oportunidade de discernir,<br />

no meu interior, mil virtualidades, anseios, sedes<br />

que eu tinha e que só percebi no momento de “beber a<br />

água”, ou seja, “ao ouvir” aquele cântico feérico dos vitrais<br />

da Sainte Chapelle. Supérfluo dizer que me encantaram ao<br />

ponto do indizível. A partir desse momento, ao pé da letra,<br />

vários espaços de minha alma começaram a viver.<br />

Que lembranças guardo do que eles me diziam com suas<br />

“vozes” que não emitiam sons, mas fabulosos coloridos?<br />

Eu não imaginava que daquelas cores — digamos, de<br />

um azul, de um vermelho, de um verde, etc. — fosse pos-<br />

sível obter tantos matizes, finos, suaves, fazendo aparecer<br />

o que essas cores têm de mais delicado, sem se transformarem<br />

em cor-de-rosa, azul claro ou verde-água triviais que<br />

por aí existem.<br />

Por outro lado, desmentiam para mim uma idéia primitiva,<br />

segundo a qual essas cores muito delicadas só eram obteníveis<br />

com matérias-primas raras e com elas apenas se<br />

podiam pintar superfícies pequenas, deteriorando-se logo. E<br />

que, portanto, havia um irremediável divórcio entre a grandeza<br />

e aquela forma de delicadeza matizada que estava lá.<br />

Ora, diante de mim reluziam vitrais enormes, apresentando<br />

matizes de extrema suavidade, sem serem homogêneos,<br />

com uma agradável variedade de tons dentro de cada<br />

painel. E então este instantâneo da delicadeza fixada, tornada<br />

grandeza, e o débil que se apresenta rei, deu-me a impressão<br />

de uma vitória da alma justa, de uma vitória de tudo<br />

quanto é frágil, reto, inocente, sobre o que é ruim, uma<br />

impressão de fato extraordinária, que produziu no meu espírito<br />

um “tressaillement” de contentamento.<br />

Agora, num misto de análise artística e psicológica, notei<br />

também que esses matizes que assim se ostentavam não venciam<br />

com a arrogância de um boxeur que derruba o adver-


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

sário, põe o pé em cima dele e depois acena para a platéia.<br />

Nada disso. Essa delicadeza de matizes vencia com uma<br />

espécie de dignidade, com folga tal que ela não sentia sequer<br />

a necessidade de esmagar o adversário. Este não se<br />

encontrava estirado ao solo: estava eliminado do panorama.<br />

Assim, criava-se a idéia de um mundo onde, desde o começo,<br />

só ele, vitral, existira. Algo parecido com aquela Sabedoria<br />

que, no princípio dos séculos, brincava com todas as<br />

coisas...<br />

Percebi que na delicadeza de cores daqueles<br />

vitrais havia a candura e a como<br />

que inexperiência do virginal, aliada à<br />

estabilidade e à dignidade da experiência<br />

de uma matriarca no auge<br />

mais dourado de sua vida, na plena<br />

lucidez e no pleno conhecimento<br />

das realidades da nossa existência<br />

terrena.<br />

Ainda nessa linha de impressões,<br />

imaginando que cada vitral era como<br />

que alguém que tivesse a alma construída<br />

daquele jeito, imaginando que esses “alguéns”<br />

do mundo dos possíveis foram sonhados<br />

pela Idade Média e tiveram começos de realização<br />

em milhares de almas, então eu pensava em São Luís,<br />

nos artistas dele que edificaram essa maravilha da arte<br />

católica, na multidão de súditos que amavam seu monarca<br />

santo e admiravam nele as suas semelhanças com o Rei<br />

dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu pensava nisso e<br />

entendia ainda melhor o que foi a época áurea da Cristandade.<br />

Essa é a análise dos matizes.<br />

Agora, a impressão que tive do conjunto de todos os vitrais<br />

foi a de uma harmonia constituindo uma espécie de figura<br />

não-expressa, ideal, de um vitral arquidelicado, de um vitral<br />

perfeito contendo em si todas as cores arqui-suaves naquele<br />

estado que acabei de descrever. Trazendo consigo<br />

a noção de que essa delicadeza assim<br />

apresentada — longe de ser inimiga<br />

dos tons mais fortes, na linha dos<br />

estados de alma como na linha<br />

das cores e na dos sons — fazia<br />

pensar no desfile sem fim<br />

de todos os coloridos possíveis,<br />

mesmo os mais<br />

antitéticos, em todos os<br />

estados de espírito possíveis,<br />

mesmo os mais diversos,<br />

dentro daquela harmonia.<br />

E dessas impressões se desprende,<br />

afinal, uma idéia de perfeição<br />

enquanto perfeição, de harmonia<br />

enquanto harmonia, de santidade enquanto<br />

santidade — portanto, de verdade enquanto verdade, e de<br />

beleza enquanto beleza — reluzindo neste píncaro da<br />

montanha da delicadeza, a partir do qual se percebe toda a<br />

cordilheira dos sentimentos opostos e afins que constituem<br />

o espírito indizivelmente rico da Igreja Católica. v<br />

34


Matizes de extrema suavidade, com uma agradável variedade de<br />

tons; o débil que se apresenta rei, dando a impressão de uma vitória<br />

da alma justa, e de tudo quanto é frágil, reto e inocente sobre o que<br />

é ruim. Vitória com folga e dignidade, como se desde o começo só ele, vitral,<br />

existira. Algo parecido com a Sabedoria que, no princípio dos séculos, brincava<br />

com todas as coisas...


Céu de<br />

virtudes<br />

A<br />

lma de uma imensidade<br />

inefável,<br />

alma na qual todas as<br />

formas de virtude e de<br />

beleza existem com<br />

uma perfeição supereminente,<br />

da qual nenhum<br />

de nós pode ter uma<br />

idéia exata, Nossa Senhora<br />

é bem aquele<br />

mar, aquele céu de virtudes<br />

diante do qual o<br />

homem deve ficar estarrecido<br />

e enlevado, e que,<br />

com todas as suas<br />

forças, deve procurar<br />

amar e imitar.<br />

Virgem de<br />

Marfim,<br />

da Sainte<br />

Chapelle

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!