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Revista Dr Plinio 76

Julho de 2004

Julho de 2004

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“Aos carmelitas,<br />

dai privilégios”


De súbito, entra<br />

na sala do<br />

banquete uma<br />

mulher chorando os seus<br />

pecados, e sobre os pés divinos<br />

de Jesus derrama o<br />

bálsamo aromático que trazia<br />

numa preciosa ânfora.<br />

Era Maria Madalena<br />

que, arrependida<br />

e humilhada,<br />

torna sua alma contrita<br />

ainda mais bela do que fora<br />

quando pura, e se converte numa<br />

santa.<br />

Porque muito amou, muito foi<br />

perdoada, tendo a imensidade do<br />

perdão granjeado a ela perfeições<br />

que poucos alcançaram. E nos emociona<br />

considerarmos que, no alto do<br />

Calvário, junto à Cruz, ao lado<br />

de Maria Santíssima e de São<br />

João, maravilhas da inocência,<br />

estava também Madalena, maravilha<br />

da penitência...<br />

Sergio Hollmann<br />

Santa Maria<br />

Madalena,<br />

Museu Cluny,<br />

Paris (França)


Sumário<br />

Na capa: <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

revestido do hábito do<br />

Carmo; o título é tirado<br />

do hino medieval<br />

“Flos Carmeli”<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP <strong>76</strong>50<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6606-2409<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

16<br />

18<br />

22<br />

EDITORIAL<br />

Necessária lição de confiança<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Julho de 1939:<br />

Um marco na história do Brasil<br />

DONA LUCILIA<br />

Invariável paz de espírito<br />

A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

A arte da conversa<br />

Calendário litúrgico<br />

O SANTO DO MÊS<br />

Maravilhas do espírito da Igreja<br />

Reflexões na festa de São Pio I<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

O panorama católico na São Paulo de 1928<br />

Preços da assinatura anual<br />

Julho de 2004<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

26<br />

31<br />

36<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Pensamentos sobre o Céu<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Palco de glórias<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Modelo de santidade<br />

3


Editorial<br />

Necessária lição de confiança<br />

C<br />

orria o ano de 1251 numa Europa toda católica e cheia de fé. Nesse continente, os frades do<br />

Carmo começaram a vaguear como membros de uma Ordem quase desconhecida, mal-admirada<br />

e à beira do desaparecimento. Assemelhava-se então a um tronco seco e velho, fadado a<br />

se desmanchar em pó. Era o instante esperado por Nossa Senhora para fazer desabrochar, no alto da<br />

ressecada vara, uma flor: São Simão Stock. Esse inglês de reconhecida virtude, eleito para o cargo de<br />

Geral da Ordem, dirigiu fervorosas preces à Santíssima Virgem, implorando-Lhe não permitisse a extinção<br />

da estirpe carmelitana. E a Mãe de Deus não tardou em socorrer seu bom servo. No dia 16 de julho<br />

daquele ano, aparece Ela a São Simão e lhe entrega o Escapulário do Carmo, “como sinal distintivo daquela<br />

confraria e selo do privilégio que obteve para todos os Carmelitas”. E prometeu: “O que com ele<br />

morrer, não padecerá o fogo eterno. Este é um sinal de salvação, uma salvaguarda nos perigos e prenda<br />

de paz e de aliança eternas.”<br />

Assim nos recorda <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a misericordiosa intervenção de Nossa Senhora em favor da Ordem<br />

carmelitana a qual, a partir daquela data, refloresceu, expandiu-se e acentuou por todo o orbe católico<br />

a devoção à Santíssima Virgem.<br />

Como já tivemos oportunidade de salientar ( 1 ), o próprio <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nutriu profunda vinculação<br />

com o Carmo, sendo membro de sua Ordem Terceira, Prior do sodalício Flos Carmeli, em São Paulo,<br />

ademais de lhe prestar importantes serviços advocatícios durante vários anos. E no intuito de tornar<br />

ainda mais forte esse liame, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> procurou estimular entre seus filhos espirituais a piedosa<br />

prática de receber a imposição do Escapulário do Carmo. Dessa maneira, participariam das inestimáveis<br />

graças espargidas sobre a família carmelitana, conforme lembrou recentemente o Papa<br />

João Paulo II: “Quem veste o Escapulário é introduzido na terra do Carmelo, para que ‘coma os seus<br />

frutos e produtos’ (cf. Jr 2,7), e experimente a presença doce e materna de Maria, no empenho cotidiano<br />

de se revestir interiormente de Jesus Cristo e de O manifestar vivo em si para o bem da Igreja<br />

e de toda a humanidade” (Carta por ocasião dos 750 anos de devoção ao Escapulário, 16/7/2001).<br />

Além de nos evocar esse maravilhoso privilégio, a festa de Nossa Senhora do Carmo nos convida<br />

igualmente a admirarmos outra preciosa manifestação da solicitude de Maria para com seus filhos. É<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> quem no-lo ressalta:<br />

Ao salvar a Ordem do Carmo, Nossa Senhora, a par de sua insondável bondade, mostrava também a<br />

confiança que se deve ter n’Ela, bem como seu primordial papel nas obras que ama de modo particular.<br />

Ainda que estas cheguem ao ponto de tudo parecer perdido, cumpre esperar o momento que Maria se<br />

reserva para agir. Lição de confiança todavia mais necessária em vista do que ocorreu depois: enquanto a<br />

Ordem fundada por Santo Elias conhecia novos brilhos e novas glórias, a Cristandade que a acolhera<br />

tornava-se presa de um inexorável processo de ruína e soçobro. Séculos se passaram, até que em 1917,<br />

numa colina de Fátima, Nossa Senhora se exprimindo com as famosas palavras que guardamos em nossas<br />

almas, fez a promessa do Reinado d’Ela: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”<br />

E importa lembrar que, no ápice dessas aparições durante as quais proclamou a efetivação de sua<br />

realeza, Maria aparece revestida do traje de sua mais antiga devoção — a do Carmo. Eis uma das muitas<br />

razões pelas quais a celebração do 16 de julho nos é muito grata, a nós filhos e devotos da Santíssima<br />

Virgem.<br />

Que Maria, a Flor do Carmelo, Vinha florida, abençoe especialmente em sua festa os nossos leitores!<br />

1) Cfr. números 16 e 29.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Julho de 1939<br />

Um marco na história do Brasil<br />

P<br />

recedendo à fundação da CNBB (que<br />

teria lugar anos mais tarde), celebrouse<br />

o “Primeiro Concílio Plenário Brasileiro”,<br />

entre os dias 2 e 20 de julho de 1939, na<br />

Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Contando<br />

com a presença de 104 prelados, a assembléia<br />

foi presidida pelo Legado Papal, Cardeal Dom<br />

Sebastião Leme da Silveira Cintra, Arcebispo da<br />

então capital federal.<br />

Pelas páginas do Legionário <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> saudou<br />

o evento o qual, além de numerosos decretos e<br />

normas para a vida religiosa nacional, ensejou o<br />

lançamento de uma Pastoral Coletiva ao Povo<br />

Brasileiro:<br />

“No momento em que se iniciam os trabalhos<br />

do Primeiro Concílio Plenário do Episcopado Brasileiro,<br />

não poderia o ‘Legionário’ deixar de consagrar<br />

algumas linhas àquele grande acontecimento.<br />

(...) É óbvio que, durante o Concílio, serão discutidos<br />

e resolvidos os principais problemas concernentes<br />

à conservação, intensificação e extensão<br />

da Fé católica em nosso País. Ora, como os problemas<br />

concernentes à missão da Santa Igreja de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> por volta de 1939<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo transcendem incomensuravelmente<br />

em importância a quaisquer problemas<br />

políticos, sociais ou econômicos, pois que não<br />

há problema que se possa comparar em relevância<br />

e gravidade aos que se relacionam com a maior<br />

glória de Deus e salvação das almas, nada pode<br />

haver de mais importante no momento, para o País,<br />

do que o Concílio Plenário que ora se realizará no<br />

Rio de Janeiro. (...)<br />

Ainda mesmo sob o ponto de vista temporal, a<br />

tarefa do Concílio ocupa, no conjunto dos interesses<br />

pátrios, uma posição de relevância inigualável.<br />

(...)<br />

[Com efeito], cada povo tem uma missão histórica<br />

para a qual foi dotado pela Providência de<br />

uma estrutura psicológica particular. Sempre que a<br />

psicologia nacional se encontra na linha de progresso<br />

da estrutura psicológica do País, este estará<br />

em rumo ascendente. Sempre que, pelo contrário,<br />

a alma nacional evolui em sentido oposto à sua<br />

vocação e à sua estrutura psicológica, o declínio<br />

será inevitável.<br />

A Fé católica, longe de suprimir as características<br />

da psicologia nacional de cada povo, as acentua.<br />

A razão disto é simples. Todos os povos foram<br />

criados por Deus, e as qualidades nacionais não<br />

são senão dons naturais que Deus lhes fez. Ora, a<br />

Igreja acrescenta aos dons naturais os dons sobrenaturais.<br />

A ação dos dons sobrenaturais não destrói<br />

a natureza. Pelo contrário, a graça a eleva e<br />

aperfeiçoa. E por isto uma nação não pode jamais<br />

explicitar tanto sua própria psicologia, quanto saturando-a<br />

profundamente de espírito católico. (...)<br />

Queremos um Brasil verdadeiramente brasileiro?<br />

Façamos dele um Brasil verdadeiramente católico.<br />

Queremos matar a própria alma do Brasil?<br />

Arranquemos a sua Fé.<br />

Onde, nas grandes cidades brasileiras, vive hoje<br />

o verdadeiro Brasil? (...) [Vive], sobretudo, nessa<br />

legião de sacerdotes abnegados que desenvolvem<br />

no País a semente espiritual que Anchieta plantou.<br />

Será necessário dizer mais, para demonstrar a<br />

grandeza histórica da obra à qual se consagra o<br />

atual Concílio?”<br />

5


DONA LUCILIA<br />

Invariável paz de espírito<br />

Fotos: arquivo particular<br />

Dona Lucilia aos 92 anos; aspecto<br />

dos salões do “1º andar”<br />

Em seus últimos anos de vida, Dª Lucilia faria brilhar,<br />

ainda mais, sua afabilidade e seu modo de<br />

ser respeitoso, em contraste com a vulgaridade<br />

crescente do mundo moderno. Embora sua existência tenha<br />

transcorrido em grande parte no século XX, era ela<br />

uma característica senhora do século XIX, tendo-o, por<br />

assim dizer, prolongado em torno de si, até o fim de seus<br />

dias. Tão séria e grave quanto afável, praticava uma delicadeza<br />

em nada parecida com a amabilidade comercial<br />

contemporânea. Muito pelo contrário, tinha perfeita noção<br />

de sua própria posição e tratava cada qual segundo o<br />

modo de gentileza que a este correspondia.<br />

Por outro lado, era ela digna de veneração por uma<br />

certa grandeza, estável, segura e invulnerável às mudanças<br />

dos tempos, própria a realçar o caráter augusto de<br />

sua alma, que transparecia de modo especial nas circunstâncias<br />

mais difíceis.<br />

Resignação ante a morte<br />

Em meados de 1961, Dª Lucilia viu os deveres de<br />

apostolado levarem seu filho para um pouco mais longe...<br />

O incansável batalhador católico já não era solicitado<br />

apenas por seus discípulos de diversas cidades de nosso<br />

País, mas também de outras nações, posto que sua<br />

obra se irradiava pelos cinco continentes. Dessa feita, fora<br />

ele convidado a assistir a um congresso da revista Verbo,<br />

em Buenos Aires.<br />

Para encerrar a promissora estadia na capital portenha,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi jantar com seus amigos mais próximos<br />

— argentinos e brasileiros — num restaurante francês,<br />

onde celebraram, em ameno convívio, os resultados obtidos.<br />

Mal podia ele, entretido nessa desanuviada comemoração,<br />

suspeitar que, em São Paulo, Dª Lucilia acabava<br />

de sofrer um súbito ataque cardíaco e estava às portas<br />

da morte.<br />

De volta ao hotel, após o jantar, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> recebeu do<br />

recepcionista um telegrama. Abriu-o imediatamente. O<br />

horizonte que até há pouco lhe descortinava alvissareiras<br />

promessas ficou repentinamente toldado, pois tratava-se<br />

de uma mensagem, enviada por Dª Rosée, com esta terrível<br />

notícia: “Mamãe mal à morte, ataque de coração violentíssimo!<br />

Telefones interrompidos. Venha logo para alcançá-la<br />

ainda com vida.”<br />

Bem podemos conceber a aflição que estas curtas frases<br />

causaram a tão dedicado filho. Seu desejo, naquele<br />

instante, foi o de vencer, de um só passo, a longa distância<br />

que o separava de sua mãe queridíssima, que talvez já<br />

estivesse transpondo os umbrais da eternidade. As tentativas<br />

de obter uma ligação telefônica para São Paulo revelaram-se<br />

infrutíferas, dificuldade que aumentou o sofrimento<br />

dele.<br />

Permaneceu então, durante toda aquela noite, que passaria<br />

insone, no salão do City Hotel, onde estava hospedado.<br />

Aguardaria assim os primeiros lampejos da aurora<br />

rezando e — por que não dizê-lo? — chorando copiosa-<br />

6


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante sua viagem à Argentina, em 1956<br />

mente, até o momento em que o clarear do dia lhe indicasse<br />

ter chegado a hora de ir para o aeroporto. Tendo se<br />

dirigido para lá, foi informado de que só haveria vôo de<br />

Buenos Aires a São Paulo muito mais tarde. Não querendo<br />

esperar mais, resolveu alugar um pequeno avião particular<br />

que partiu às 5h, levando-o até Porto Alegre, de<br />

onde embarcou em avião de carreira, ato contínuo, para<br />

a capital paulista.<br />

Enquanto cruzava os ares, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sentia tremenda<br />

opressão de alma e ia preparando o espírito para o momento<br />

em que, ao desembarcar, reencontrasse seus amigos.<br />

Pela atitude destes perceberia, num relance de olhos,<br />

qual o estado de sua mãe.<br />

Assim, ao descer do avião, procurando avistar algum<br />

rosto conhecido entre as pessoas que aguardavam os passageiros,<br />

distinguiu um de seus mais antigos companheiros<br />

de luta, que logo lhe fez um grande aceno tranqüilizador.<br />

Após os cumprimentos de boas-vindas, a primeira<br />

pergunta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi obviamente sobre o estado de<br />

saúde de Dª Lucilia, recebendo do amigo esta consoladora<br />

resposta:<br />

— Graças a Deus, ela está fora de perigo. Teve um fortíssimo<br />

ataque do coração, mas recuperou-se bem e já está<br />

sentada na cama, conversando normalmente. Os próprios<br />

médicos que a atenderam estão pasmos com a reação<br />

dela. Entretanto, é bom o senhor estar prevenido para<br />

uma estranha coincidência: na hora em que chegar à<br />

sua casa, estará partindo de uma residência vizinha um<br />

enterro. Portanto, não se assuste. Estávamos muito preocupados,<br />

pois o senhor poderia pensar que se tratasse do<br />

enterro de Dª Lucilia...<br />

Transpondo afinal as portas do “1º Andar”, o último<br />

obstáculo que o separava de sua estremecida mãe, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> encontrou-a reclinada no leito, conversando calmamente<br />

com Dª Rosée e Dª Maria Alice. Aquela venerável<br />

fisionomia de anciã, emoldurada por cabelos prateados,<br />

externava tanta paz de alma, que absolutamente<br />

não se diria haver estado, poucas horas antes, a um passo<br />

da morte.<br />

Logo após os primeiros cumprimentos, ela lhe perguntou<br />

como estava de saúde.<br />

— Minha saúde está ótima! Mas o que eu quero saber<br />

é como está a da senhora!<br />

Mesmo sentindo muito a falta de seu “filhão querido”,<br />

cuja presença naquele angustioso transe lhe seria de grande<br />

consolo, suportou mais essa provação com extrema<br />

serenidade.<br />

A chegada de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> representou para ela novo<br />

alento. Embora ele não pudesse depositar em sua fronte<br />

o costumeiro ósculo, por estar fortemente resfriado, suas<br />

manifestações de carinho e afeto reconfortaram-na e incutiram<br />

ânimo naquele coração que por seu filho tanto<br />

pulsava!<br />

Rápida foi a melhora de Dª Lucilia. Já no dia seguinte,<br />

seu médico, o <strong>Dr</strong>. Brickman, deu-lhe licença para se<br />

levantar e andar pela casa. Cerca de dez dias depois retornou<br />

ele para um controle de rotina. Tendo-a examinado<br />

com o estetoscópio, voltou-se surpreso para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

e exclamou:<br />

— Mas, não é possível!<br />

E como que não acreditando em seus próprios ouvidos,<br />

auscultou-a de novo, cuidadosamente, e disse:<br />

— Olhe, o coração dela está tão bom que eu diria ser<br />

o de outra pessoa...<br />

A pronta recuperação de Dª Lucilia era o resultado de<br />

sua serena e católica resignação diante da morte. Ao longo<br />

de sua extensa caminhada por esta terra de exílio, foi<br />

se preparando, calma e resolutamente, com inteira confiança<br />

no Sagrado Coração de Jesus e no Imaculado Coração<br />

de Maria, para transpor os umbrais da eternidade.<br />

Vendo-se na iminência de comparecer perante o tribunal<br />

divino, conservou a paz que nunca a abandonou. Será<br />

talvez essa qualidade de alma uma das causas de sua<br />

longevidade. Viveria ela tranqüilamente, sem maiores<br />

preocupações de saúde, mais sete anos.<br />

7


DONA LUCILIA<br />

As despedidas no elevador<br />

A fim de, no entardecer da existência de Dª Lucilia,<br />

amenizar-lhe em algo a paciente solidão, seu filho todos<br />

os dias a entretinha com uns 40 minutos de conversa após<br />

o jantar. Ao perspicaz e diligente olhar de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não<br />

era difícil discernir as provações que afligiam a alma de<br />

sua mãe, cujo involuntário isolamento era, por certo, muito<br />

penoso. Para animá-la, costumava lhe repetir, num<br />

tom repassado de carinho:<br />

— Mãezinha! força, energia, ênfase, resolução!<br />

A tais palavras, Dª Lucilia respondia com um ligeiro<br />

sorriso de contentamento, sem nada dizer. A certa altura<br />

dessa prosinha, os inadiáveis deveres de apostolado de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> vinham pôr termo ao abençoado convívio.<br />

Embora com o coração partido por ter de deixar sua mãe<br />

apenas em companhia da boa Olga (e mais tarde na da<br />

Mirene, que a esta sucedeu), ele se levantava e, depois<br />

de se despedir dela com muito afeto, dirigia-se para o<br />

elevador. Não raras vezes Dª Lucilia o seguia até lá,<br />

querendo desfrutar até o último instante a doce companhia<br />

de seu filho. Ocasionalmente uma tocante cena podia<br />

ser observada no momento em que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> abria a<br />

porta do elevador. Com sua voz meiga e afável, esperançosa<br />

de ainda retê-lo, Dª Lucilia lhe dizia sorridente:<br />

— Filhão, você não tem pena de deixar sua mãe tão<br />

sozinha?<br />

Que esforço <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> devia fazer sobre si mesmo,<br />

para resistir a tão suave apelo! Contudo, estavam à sua<br />

espera para assistir às reuniões feitas por ele todas as<br />

noites, aqueles que a Providência lhe destinara como seguidores<br />

na Contra-Revolução. Aliás, estes talvez ignorassem<br />

que as graças ali recebidas custavam o sacrifício<br />

da penosa solidão de Dª Lucilia, ainda mais penosa depois<br />

da morte de <strong>Dr</strong>. João Paulo.<br />

Como explicar a Dª Lucilia tudo isso? Afinal, premido<br />

pelo dever, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> osculava a fronte de sua mãe e respondia:<br />

— Meu bem, lamento muito, mas agora é minha obrigação<br />

ir ter com os meus companheiros de apostolado.<br />

Depois de a oscular uma vez mais, entrava no elevador<br />

e partia.<br />

Em outras ocasiões essas despedidas davam lugar a<br />

uma encantadora manifestação de solicitude materna.<br />

Dª Lucilia procurava advertir seu filho — homem de mais<br />

de cinqüenta anos — como o fazia nos idos tempos em<br />

que ele ainda era jovem...<br />

Segundo os antigos padrões, o ascensor subia e descia<br />

num ritmo lento, demorando a atingir o andar a que fora<br />

chamado. Ora, esta lentidão contrariava o resoluto modo<br />

Dona Lucilia (à esquerda) e sua irmã, Dona Yayá — serenidade ante a perspectiva de isolamento<br />

8


de ser de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — sempre<br />

disposto a agir calma<br />

mas prontamente — em<br />

especial nos momentos<br />

em que urgia atender<br />

a seus compromissos.<br />

Decidido a ganhar tempo,<br />

ele lhe dizia:<br />

— Mãezinha, vou pela<br />

escada, pois estou com<br />

muita pressa!<br />

E sem mais demora descia,<br />

enquanto ouvia ecoar o suave mas<br />

peremptório timbre de voz materno:<br />

— Filhão, cuidado! Não corra, senão você<br />

cai!<br />

Era como se uma vigilante e carinhosa mão procurasse<br />

diminuir-lhe a cadência dos passos.<br />

As perspectivas de um completo<br />

isolamento<br />

Uma das maiores provações de Dª Lucilia, nessa avançada<br />

etapa de sua vida, foi o súbito agravamento de suas<br />

condições auditivas, ao mesmo tempo em que um aumento<br />

de catarata lhe diminuía um tanto a visão.<br />

A perspectiva futura era confrangedora, pois, a progredirem<br />

mais essas deficiências, Dª Lucilia perderia<br />

quase inteiramente a possibilidade de se comunicar com<br />

o mundo exterior. Portanto, de ter com seu filho aquele<br />

elevado convívio tão alentador para ela. Constituía-lhe<br />

igualmente não pequeno sofrimento, dado seu modo de<br />

ser tão afeito a se interessar por seus semelhantes, o não<br />

poder lhes prodigalizar caridoso auxílio.<br />

Diante dessa dolorosa possibilidade, ela não perdeu a<br />

serenidade nem a resignação. Sem embargo disso, transparecia<br />

em sua fisionomia uma tristeza mais acentuada,<br />

que bem se pode notar numa fotografia tirada por ocasião<br />

de um de seus últimos aniversários, onde a vemos ao<br />

lado de sua irmã, Dona Yayá (página anterior).<br />

Se o Sagrado Coração de Jesus, nos seus insondáveis<br />

desígnios, permitia esse sofrimento para quem tão fielmente<br />

O adorava, concedia-lhe, de outro lado, em compensação,<br />

seu misericordioso amparo.<br />

Assim, pouco tempo depois de se agravar a dificuldade<br />

de audição de Dª Lucilia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, ao ler um jornal,<br />

viu o anúncio de um aparelho que poderia suprir essa<br />

deficiência. E, como bom filho, não hesitou um instante<br />

em adquiri-lo, embora fosse elevado seu custo. Acertou<br />

com o vendedor uma ida deste ao “1º Andar” — numa<br />

hora que coincidisse com o término do almoço — a fim<br />

de proporcionar uma surpresa<br />

a Dª Lucilia. De fato<br />

o homem apareceu<br />

no momento combinado.<br />

Feito o teste, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> notou logo pela<br />

fisionomia dela a real<br />

eficácia do tal aparelho.<br />

Ainda hoje é motivo<br />

de consolação para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

lembrar-se do contentamento<br />

de sua mãe, quando ela<br />

percebeu que poderia conversar normalmente.<br />

E, sobretudo, tornar a ouvir com<br />

nitidez o timbre da voz de seu querido “Pimbinchen”...<br />

“Que belo olhar”<br />

Foi ainda na tranqüilidade de sua alma que Dª Lucilia<br />

enfrentou a crescente dificuldade de visão. Quando o incômodo<br />

aumentou, seu filho a levou a um bom oculista.<br />

Tendo-a examinado, o médico disse baixinho a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />

— Ela está com catarata muito adiantada nos dois<br />

olhos — dando a entender que poderia operá-la.<br />

Após rápida e judiciosa reflexão, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> optou por<br />

não submeter sua mãe àquela cirurgia, que poderia impressioná-la<br />

muito e infligir-lhe um sofrimento desnecessário,<br />

estando ela já tão idosa. Algum tempo depois, cessou<br />

o progresso da enfermidade, permitindo a Dª Lucilia<br />

conservar, até o fim de seus dias, suficiente clareza de visão<br />

para levar uma vida normal, em meio às condições de<br />

sua veneranda idade. Esses consoladores auxílios da Providência<br />

muito contribuíram para atenuar aquela sombra<br />

de tristeza, o que bem podemos notar em fotografias posteriores.<br />

Curiosa foi a reação de um oculista, em outra consulta,<br />

ao assestar os aparelhos a fim de examinar os olhos de<br />

Dª Lucilia. O médico, que além de exímio profissional tinha<br />

alma de artista, antes de proceder ao exame não conteve<br />

uma exclamação:<br />

— Que belo olhar!<br />

Foi para ele inesquecível o privilégio de contemplar<br />

aqueles olhos castanho-escuros. De fato, nestes se encontravam<br />

serenidade, afeto, veracidade, em síntese, uma<br />

garantia de proteção própria a tocar profundamente as<br />

almas que sabiam admirá-los.<br />

<br />

(Transcrito, com adaptações, da<br />

obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />

9


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

A arte da conversa<br />

S<br />

eguindo o conselho de São Paulo Apóstolo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não perdia ocasião<br />

de fazer bem às almas. Por vezes, seus mínimos gestos procuravam<br />

ser um incentivo à prática da virtude. Porém, um dos maiores instrumentos<br />

de seu apostolado era a palavra. Vejamos como <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a utilizava<br />

para favorecer e edificar o próximo, e aprendamos nós com ele.<br />

O<br />

tema sobre o qual passarei a<br />

tratar é um tanto fluído, dirse-ia<br />

aquoso, no sentido de<br />

que ele nos escorre pelas mãos à maneira<br />

da água: pode-se nele penetrar<br />

ou dele se sair com facilidade, porém<br />

é difícil retê-lo. Refere-se à arte de<br />

conversar.<br />

Imagine-se que alguém parasse junto<br />

a uma fila de passageiros de ônibus<br />

e perguntasse às pessoas ali presentes:<br />

“Para conversar bem é preciso ter<br />

uma arte ou se deve ser espontâneo,<br />

cada um exprimindo o que quer?”<br />

Tenho a impressão de que quase<br />

cem por cento dos interrogados responderia<br />

não ser necessário regra nenhuma,<br />

e que não há sentido falar em<br />

arte de conversar, pois cada um deve<br />

dizer o que lhe passa pela cabeça no<br />

momento. E assim se faz uma conversa.<br />

Em contrapartida, podemos alegar<br />

que Deus concedeu ao homem a<br />

possibilidade de expressar idéias utilizando<br />

a laringe, um dos mais magníficos<br />

instrumentos musicais de que<br />

temos notícia. Portanto, deu-nos Ele<br />

a capacidade de artisticamente conversar<br />

por meio desse instrumento,<br />

10


Exímio na arte da conversa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (aqui, em um dos<br />

salões de sua residência) a<br />

empregava de modo<br />

especial para fazer bem à<br />

alma de seus interlocutores<br />

Na página anterior:<br />

“Encontros no boulevard”,<br />

pintura francesa do século XIX<br />

11


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

desejoso de que o convívio humano<br />

se revestisse desse rico e encantador<br />

aspecto.<br />

No que consiste, então, a arte de<br />

conversar?<br />

Importantes elementos da<br />

conversa<br />

Em princípio, na conversa devemos<br />

distinguir alguns elementos. O<br />

primeiro é a presença de quem fala.<br />

Há pessoas interessantes de presença,<br />

outras nem tanto. Essas últimas<br />

inibem nos seus interlocutores a<br />

vontade de conversar, uma vez que a<br />

atitude do corpo delas não promete<br />

revelar qualquer coisa que mereça<br />

nossa atenção. Donde não se querer<br />

ouvi-las nem abordá-las. Às vezes,<br />

pelo contrário, vê-se uma pessoa e se<br />

pensa: “esta poderia dizer algo de<br />

valor”. Por exemplo, num aeroporto,<br />

enquanto aguardam a hora do embarque,<br />

os passageiros se aproximam<br />

uns dos outros, meio naturalmente,<br />

procurando alguém com quem teriam<br />

desejo de dialogar. Se o companheiro<br />

de viagem ao lado tem a aparência<br />

de enfadonho, dá-se logo um “jeitinho”<br />

de se esquivar, porque “antes<br />

só do que mal acompanhado”. É melhor<br />

permanecer quieto do que conversar<br />

sem interesse.<br />

Outro elemento, contido na presença,<br />

é a fisionomia. Algumas pessoas<br />

nos cativam pelo seu semblante,<br />

despertando em nós a inclinação para<br />

lhe dirigirmos a palavra. Seu olhar<br />

nos faz discernir que possuem uma<br />

compreensão mais aguçada e, portanto,<br />

são boas interlocutoras. Diferentes<br />

daquelas cujo olhar se assemelha<br />

ao do peixe, o mais inerte que tenho<br />

observado na natureza. Ele encosta<br />

no vidro do aquário, e tem-se a<br />

impressão de que ele nada vê. Aponta-se-lhe<br />

os dedos, ele não se movimenta<br />

nem reage. São olhos frios e<br />

inexpressivos. Não é difícil entender<br />

a falta de interesse em se tratar com<br />

pessoas assim...<br />

A voz, música do<br />

pensamento humano<br />

O terceiro elemento da conversa<br />

é a voz. Umas, monótonas; outras,<br />

agradáveis de se ouvir. Em geral, a<br />

Uma conversa<br />

atraente depende da<br />

presença, fisionomia<br />

e modulação de<br />

voz de quem nela<br />

toma parte<br />

voz com pouca modulação é maçante.<br />

Já aquela que apresenta variações,<br />

altos e baixos, etc., atrai. Sobretudo<br />

se a pessoa sabe pôr o timbre<br />

de acordo com o que diz, realçando<br />

desse modo o significado do<br />

seu pensamento. A verdadeira música<br />

do intelecto humano é a voz. E se<br />

existe uma arte de usá-la de maneira<br />

a poder cantar, tal será que não haja<br />

uma arte de utilizá-la para conversar.<br />

Poderíamos ainda considerar outros<br />

elementos da conversa, muito<br />

mais nobres, porque tocam menos<br />

no corpo e mais na alma. Então, pessoas<br />

que sabem visualizar um assunto<br />

e expô-lo de forma atraente, indivíduos<br />

que aprendem coisas úteis para<br />

abordá-las num encontro, ao contrário<br />

de outros que nada aproveitam<br />

para tornar mais rico seu convívio<br />

com os amigos. Por exemplo, um<br />

homem cuja função no trabalho seja<br />

receber ratos mortos e entregá-los<br />

ao laboratório para um cientista fazer<br />

experiência. Durante trinta anos<br />

ele manuseou oitenta ratos por dia e,<br />

Com seus famosos salões (acima, o de Mme. Geoffrin), o Ancien Régime foi uma das<br />

12


ao cabo desse tempo, aposenta-se.<br />

Relativamente a essa tarefa, nada de<br />

interessante terá para conversar.<br />

Há pessoas que teriam coisas curiosíssimas<br />

a contar, mas nada podem<br />

dizer: os confessores. Quantas situações<br />

e fatos dignos da maior atenção<br />

nos poderiam descrever, revelando<br />

as grandezas e misérias da alma humana,<br />

etc. Porém, não podem! Seus<br />

lábios estão cerrados com um lacre<br />

eterno.<br />

Épocas da arte de<br />

conversar<br />

Pessoas há<br />

que teriam coisas<br />

muito interesantes a<br />

contar, mas nada<br />

podem dizer:<br />

os confessores...<br />

E assim nos seria dado multiplicar<br />

indefinidamente os exemplos que<br />

corroboram a existência da arte de<br />

conversar. Houve épocas em que esta<br />

foi cultivada de modo extraordinário,<br />

notadamente no Ancien Régime<br />

— período que se estende da Renascença<br />

até 1789 .<br />

Vestígio muito interessante dessa<br />

arte é encontrado numa coleção do<br />

início do século XIX, o Dictionnaire<br />

de la conversation et de la lecture, onde<br />

se arrolam termos, nomes de pessoas,<br />

de lugares e coisas que podem<br />

alimentar uma conversação. Assim,<br />

suponhamos que um advogado ou<br />

um médico precise visitar um bom<br />

épocas da História em que se cultivou de modo extraordinário a arte da conversa<br />

cliente seu, idoso e muito cacete, que<br />

faz aniversário. É necessário manter<br />

com ele uma prosa animada, e para<br />

alimentá-la convém levar um projeto<br />

de conversa.<br />

Digamos que o ancião se chame<br />

Pafúncio. O nosso visitante consulta<br />

o Dictionnaire e nele encontra alguns<br />

dados sobre este nome. Imaginemos<br />

que houve três reis na Ásia Menor,<br />

um Bispo santo na Abissínia e um famoso<br />

cantor chamados Pafúncio. O<br />

advogado pensa: “O que vou dizer<br />

para o meu cliente?”<br />

Conforme a fisionomia do ancião,<br />

e se este gostar de assuntos religiosos,<br />

pode estabelecer o seguinte diálogo:<br />

— Não me esqueci que hoje é dia<br />

de São Pafúncio!<br />

— Ahh, muito bem! Não sabia.<br />

— É, o São Pafúncio é seu padroeiro,<br />

que está rezando pelo senhor<br />

no Céu.<br />

— Ahh!<br />

Como é o patrono dele, o homem<br />

se interessa porque só pensa em si<br />

mesmo. O visitante, então, começa a<br />

discorrer sobre a vida de São Pafúncio,<br />

etc. Agora, se o idoso for metido<br />

a recordações históricas, poder-se-ia<br />

lhe dizer:<br />

— Seu nome me faz recordar que<br />

houve reis chamados Pafúncio. Qual<br />

deles o senhor julga maior?<br />

Como ele não sabe nada sobre isso,<br />

o advogado o ajuda um pouco,<br />

perguntando:<br />

— O primeiro, o segundo ou o terceiro?<br />

O velho joga a esmo e responde:<br />

— O terceiro!<br />

— O senhor tem razão, porque<br />

Pafúncio III, Rei da Abissínia, fez isto,<br />

aquilo, e aquilo outro, etc.<br />

E assim se conversa com o homem<br />

sobremodo cacete. É um jeito<br />

de se tocar a vida. E o exemplo imaginário<br />

serve para mostrar como esse<br />

Dictionnaire pode ser de grande auxílio<br />

para se adquirir e desenvolver a<br />

arte da conversação.<br />

13


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

A conversa, meio de<br />

apostolado<br />

A importância dessa arte<br />

toma maior vulto se considerarmos<br />

que o primeiro instrumento<br />

do apostolado é a<br />

conversa. Quem a utiliza bem,<br />

alcançará bons frutos em sua<br />

lide apostólica, ao contrário<br />

daquele que não a emprega<br />

satisfatoriamente.<br />

São Paulo diz: Fides ex auditu<br />

— a Fé nos vem pelo ouvido.<br />

Quer dizer, pela voz humana;<br />

sobretudo, pela conversa.<br />

É conversando que se<br />

instrui, forma, declara, afirma,<br />

proclama. Tomando-se<br />

em conta o mundo dos sentidos,<br />

é pela voz que o melhor<br />

da ação da graça penetra em<br />

nossas almas. Portanto, pela<br />

conversa. Cumpre saber utilizá-la.<br />

Servem-nos de incentivo<br />

diversos exemplos de apóstolos<br />

que alcançaram inestimáveis<br />

resultados em sua obra,<br />

através do bom uso da sua<br />

conversação. Houve um santo<br />

missionário no século XVI,<br />

no norte da Argentina e no<br />

Peru, que se chamava Francisco<br />

Solano. Essas regiões<br />

eram habitadas por índios ferozes,<br />

diante dos quais ele tocava<br />

violino. Em pouco tempo<br />

os nativos se tranqüilizavam,<br />

tornavam-se amáveis e<br />

era possível dialogar com eles,<br />

catequizá-los, formá-los.<br />

Outro grande santo, São<br />

Francisco de Sales, exercia intensa<br />

ação de presença. Viveu<br />

no século XVII, era Bispo<br />

e Príncipe de Genebra.<br />

Homem muito fino, discreto,<br />

agradável, doce, amável, inteligente<br />

(é Doutor da Igreja),<br />

muito conversador... Todos<br />

eram ávidos por ouvi-lo,<br />

Timothy Ring<br />

e quando se dirigia à corte, as<br />

pessoas enxameavam em torno<br />

dele. São Francisco empreendia<br />

assim seu apostolado.<br />

Eis dois exemplos de santos<br />

homens que nos precederam e<br />

possuíram a arte da conversa,<br />

aos quais podemos pedir que<br />

nos favoreçam e auxiliem a desenvolver<br />

a mesma qualidade.<br />

A chave da arte de<br />

conversar: não ser<br />

egoísta<br />

Na procura desse objetivo, é<br />

preciso ter em vista que a arte<br />

de conversar supõe uma primeira<br />

disposição de espírito,<br />

sem a qual ela não existe: devemos<br />

nos interessar pelos outros<br />

para saber conversar. Se o indivíduo<br />

é um egoísta, preocupando-se<br />

apenas consigo mesmo,<br />

não despertará o interesse de<br />

ninguém. Há um saboroso ditado<br />

francês que afirma: “Se quero<br />

reter meu visitante, falo sobre<br />

ele; se quero que ele saia<br />

logo, falo sobre mim”. Essa é a<br />

chave da boa conversa: saber<br />

entreter o outro sobre ele próprio,<br />

dando-lhe a impressão de<br />

que não existimos, como se nos<br />

esquecêssemos de nós, posto<br />

que inteiramente tomados pelo<br />

tema que lhe diz respeito. Além<br />

disso, demonstrando grande<br />

atenção por ele, empenho em<br />

que entenda bem e goste da<br />

conversa. Assim se faz apostolado.<br />

Doutor da Igreja, homem fino e<br />

discreto, São Francisco de Sales<br />

é exemplo de como utilizar<br />

a arte da conversa como meio<br />

de apostolado<br />

Vitral da igreja de<br />

Nossa Senhora da Consolação,<br />

em São Paulo<br />

14


Então, ao nos prepararmos para o<br />

contato com uma determinada pessoa,<br />

com a qual procuraremos desenvolver<br />

a arte da conversa para lhe fazer<br />

bem, comecemos por nos perguntar<br />

se nossa atenção está mais voltada<br />

para ela do que para nós mesmos.<br />

Como tornar uma<br />

interlocução atraente?<br />

Vale ponderar, ainda, que as pessoas<br />

mais desprovidas de graça podem<br />

se tornar interessantes.<br />

Para tanto, devemos considerar o<br />

interlocutor cacete como uma fortaleza<br />

a ser dominada. Digamos a Nossa<br />

Senhora: “Minha Mãe, por efeito<br />

do pecado original, esse coitado —<br />

que no Paraíso seria ótima companhia<br />

para uma conversa — é uma<br />

pessoa maçante. Eu tenho de trazer<br />

essa alma para Vós. Então vou tratar<br />

de saber como ele é, fazer toda espécie<br />

de esforços para penetrar um pouco<br />

na sua psicologia, a fim de que ele<br />

se interesse pela conversa e fique<br />

atraído para Vós. Ajudai-me, minha<br />

Mãe, porque não é tarefa fácil!”<br />

A partir desse momento começo a<br />

jogar com o outro uma partida de<br />

xadrez cujo objetivo é a conquista da<br />

alma dele. Avanço uma pedra, ou seja,<br />

um assunto. O indivíduo empurra<br />

um comentário insípido que arruinaria<br />

o tema. Em geral o enfadonho é<br />

um “mata-temas” de primeira ordem.<br />

Então, introduzo nova matéria. E<br />

assim como no xadrez algumas<br />

pedras têm maior valor, também<br />

na conversa com a pessoa mais cacete<br />

do mundo alguns temas atraem mais<br />

e outros menos.<br />

Numa conversa,<br />

o homem mais<br />

sem graça do mundo<br />

se anima quando<br />

o assunto<br />

diz respeito a ele<br />

Permitam-me dar aqui um conselho:<br />

com o homem mais sem graça da Terra,<br />

falem sempre sobre ele, porque<br />

nesse caso ele se anima. E saibam continuar<br />

a conversa de maneira a que seu<br />

interlocutor tenha uma certa noção<br />

de que o tema importa a ele. Se tal não<br />

se verifica, é preciso perceber qual o<br />

tema que desperta seu interesse,<br />

com o qual tem afinidade, e assim<br />

atraí-lo para o assunto a ser tratado.<br />

Para isso, deve-se prestar atenção<br />

nas coisas e pensar sobre elas. Do<br />

contrário, não se tem o que conversar.<br />

Outrora se empregava uma expressão<br />

para indicar um estado de<br />

espírito irrefletido de quem considera<br />

algo e não o entende: “Ficou<br />

olhando como boi para um palácio”.<br />

Há uma linda construção, e diante<br />

dela se acha o boi. De repente o animal<br />

muge. Ele é irracional, o comentário<br />

dele não pode ser diferente.<br />

Nós, porém, homens dotados de<br />

inteligência, não podemos olhar para<br />

as coisas da vida como bois para<br />

palácios. Devemos prestar atenção<br />

nelas e saber analisá-las. Dessa maneira<br />

aprenderemos a fazer o relacionamento<br />

entre a psicologia da pessoa<br />

que desejamos atrair para Jesus Cristo,<br />

e o tema que será abordado. <br />

Uma disposição<br />

prévia à boa<br />

conversa é o não ser<br />

egoísta, dando inteira<br />

atenção ao nosso<br />

interlocutor<br />

15


CALENDÁRIO LITÚRGICO * JULHO<br />

C<br />

ALENDÁRIO<br />

Fotos: S. Hollmann e T. Ring<br />

1. Santo Aarão. Irmão de Moisés<br />

e primeiro Sumo Sacerdote do povo<br />

eleito.<br />

2. São Bernardino Realino, Presbítero,<br />

da Companhia de Jesus, séc.<br />

XVII.<br />

3. São Tomé, Apóstolo. “Introduz<br />

aqui o teu dedo, e vê as minhas<br />

mãos. Põe a tua mão no meu lado.<br />

Não sejas incrédulo, mas homem<br />

de Fé” — disse Jesus a São Tomé. E<br />

assim este se tornou objeto da infinita<br />

misericórdia divina, alcançando<br />

a graça de tocar nas chagas do<br />

Senhor Ressuscitado.<br />

São Tomé encosta o dedo nas<br />

chagas de Jesus<br />

4. XIV Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Isabel de Portugal, séc.<br />

XIV. Casada com o Rei D. Diniz,<br />

sofreu muito com as infidelidades e<br />

os ciúmes do marido, sendo também<br />

vítima das calúnias de um cortesão.<br />

Depois de enviuvar, tornouse<br />

terciária franciscana, vivendo na<br />

pobreza e em mortificações até o<br />

fim dos seus dias, em 1336.<br />

(Este ano, no Brasil, transfere-se<br />

para este domingo a festa de São Pedro<br />

e São Paulo, Apóstolos)<br />

5. Santo Antônio Maria Zaccaria,<br />

Presbítero, séc. XVI. Fundador<br />

da Ordem dos Clérigos Regulares<br />

de São Paulo, os Barnabitas.<br />

6. Santa Maria Goretti, Virgem<br />

e Mártir, séc. XX. Ainda não completara<br />

12 anos, quando sofreu o<br />

ataque de um vizinho. Lutou heroicamente<br />

em defesa de sua virtude,<br />

preferindo morrer apunhalada a perder<br />

a virgindade.<br />

7. São Vilibaldo, Bispo e Missionário,<br />

séc. VIII.<br />

8. Santo Adriano III, Papa, séc. IX.<br />

9. Santa Paulina do Coração Agonizante<br />

de Jesus, Fundadora, séc.<br />

XX. Natural da Itália, passou a maior<br />

parte de sua vida no Brasil, onde<br />

fundou a Congregação das Filhas<br />

da Imaculada Conceição, em Nova<br />

Trento (SC). É a primeira santa brasileira,<br />

canonizada em maio de 2002<br />

pelo Papa João Paulo II.<br />

10. Santas Rufina e Segunda,<br />

Mártires, séc. III.<br />

11. XV Domingo do Tempo Comum.<br />

São Bento, Abade, séc. VI. Fundador<br />

da vida monástica ocidental<br />

e da Ordem Beneditina. É considerado<br />

o patriarca da civilização cristã<br />

medieval, tendo os seus religiosos<br />

exercido papel primordial na<br />

evangelização dos povos bárbaros.<br />

Seu lema era Ora et Labora — reza<br />

e trabalha.<br />

São Pio I, Papa e Mártir, séc. II.<br />

(Ver artigo na página 18)<br />

12. São João Gualberto, Abade,<br />

séc. XI. Fundador dos monges beneditinos<br />

Valombrosanos (pelo Mosteiro<br />

de Vallombrosa, na Itália.)<br />

Santa Paulina<br />

13. Santo Henrique II, séc. XI.<br />

Duque da Baviera e Imperador do<br />

Sacro Império Romano-Alemão.<br />

14. São Camilo de Lellis, Presbítero,<br />

séc. XVII. Nascido de família<br />

nobre, fundou a Ordem dos Clérigos<br />

Regulares e Ministros dos Enfermos,<br />

os camilianos, também conhecidos<br />

como os “Padres da Boa<br />

Morte”. É patrono dos doentes e<br />

dos hospitais. Morreu em 1614.<br />

15. São Boaventura, Cardeal,<br />

Bispo e Doutor da Igreja, séc. XIII.<br />

Aos 39 anos foi nomeado Superior<br />

Geral dos Franciscanos. Ao lado de<br />

São Tomás de Aquino, promoveu valente<br />

e genialmente a Teologia católica<br />

na Universidade de Paris, e combateu<br />

os erros de sua época. Chamado<br />

o Doutor Seráfico, morreu em<br />

1274.<br />

16. Nossa Senhora do Carmo. No<br />

Monte Carmelo teve o Profeta Elias<br />

a visão da nuvenzinha que simbolizava<br />

a futura Mãe de Deus. A Festa<br />

de Nossa Senhora do Carmo foi instituída<br />

para celebrar a entrega do<br />

escapulário, pelas mãos de Maria<br />

Santíssima, a São Simão Stock, em<br />

1251.<br />

16


17. Bem-aventurado Inácio de<br />

Azevedo e 39 companheiros, Mártires,<br />

séc. XVI. Ao largo das Ilhas<br />

Canárias, o navio que transportava<br />

esses religiosos jesuítas para o Brasil<br />

foi atacado por piratas huguenotes,<br />

os quais massacraram impiedosamente<br />

todos aqueles discípulos de<br />

Santo Inácio. São venerados como<br />

os Quarenta Mártires do Brasil.<br />

18. XVI Domingo do Tempo Comum.<br />

São Frederico de Utrecht, Bispo,<br />

séc. IX.<br />

19. Santa Áurea, Virgem e Mártir,<br />

séc. IX.<br />

20. Santo Elias, Profeta. Extraordinária<br />

figura do Antigo Testamento<br />

— viveu 900 anos antes de Jesus<br />

Cristo —, empreendeu vigorosa luta<br />

contra a corrupção e a idolatria,<br />

operando diversos e portentosos milagres.<br />

Entre outros títulos, é considerado<br />

o precursor da devoção a<br />

Nossa Senhora e o pai espiritual da<br />

Ordem do Carmo. Como narra a Escritura,<br />

foi arrebatado num carro de<br />

fogo, à vista de seu discípulo Santo<br />

Eliseu.<br />

21. São Lourenço de Bríndisi,<br />

Presbítero e Doutor da Igreja, séc.<br />

XVII. Capuchinho italiano, destacou-se<br />

pelo invulgar denodo com<br />

que defendeu a causa da Santa Igreja<br />

contra seus adversários.<br />

22. Santa Maria Madalena. Depois<br />

de uma vida pouco louvável,<br />

arrependeu-se e se converteu, tornando-se<br />

fervorosa seguidora de Jesus.<br />

Foi-lhe concedida a inapreciável<br />

graça de ser a primeira a reconhecer<br />

o Divino Mestre ressuscitado.<br />

Segundo a tradição, viveu perto<br />

de Marselha, onde é muito venerada.<br />

23. Santa Brígida, Religiosa, séc.<br />

XIV. Fundadora da Ordem de São<br />

Salvador, na Suécia.<br />

Nossa Senhora entrega o<br />

Escapulário a São Simão Stock<br />

24. São Charbel Makhlouf, Presbítero<br />

e Religioso da Ordem Maronita,<br />

séc. XIX. Libanês, órfão desde<br />

criança, ingressou aos 23 anos<br />

no noviciado do Convento de Nossa<br />

Senhora de Mayfouq. Mais tarde,<br />

realizando entranhado desejo<br />

de sua alma, tornou-se eremita, vivendo<br />

assim até o fim de seus dias.<br />

Faleceu em 1898 e foi canonizado<br />

em 1977.<br />

25. XVII Domingo do Tempo Comum.<br />

São Tiago, o Maior, Apóstolo. Irmão<br />

de São João Evangelista e, como<br />

este, um dos primeiros a atender<br />

o chamado de Jesus. Foi o Apóstolo<br />

da Espanha, martirizado por<br />

ordem do Rei Herodes Agripa I, no<br />

ano 44. Seus restos mortais repousam<br />

no célebre Santuário de Compostela.<br />

26. São Joaquim e Sant’Ana, pais<br />

da Santíssima Virgem. Após longa<br />

esterilidade, Sant’Ana concebeu a<br />

criatura destinada desde toda a<br />

eternidade para ser a Mãe do Verbo<br />

Encarnado. Assim, São Joaquim<br />

e Sant’Ana tornar-se-iam avós do<br />

próprio Deus feito homem.<br />

27. São Pantaleão, Médico e Mártir,<br />

séc. IV.<br />

28. São Vitório I, Papa e Mártir,<br />

séc. II.<br />

29. Santa Marta. Irmã de São Lázaro.<br />

Teve a honra de receber várias<br />

vezes em sua casa de Betânia o Filho<br />

de Deus.<br />

30. São Pedro Crisólogo, Bispo e<br />

Doutor da Igreja, séc. V. Nascido<br />

em Ímola, Itália, foi Bispo de Ravena<br />

e mereceu o título de Crisólogo,<br />

isto é, “palavra de ouro”, por ser autor<br />

de magníficos sermões ricos em<br />

doutrina. Faleceu em 451.<br />

31. Santo Inácio de Loyola, Presbítero,<br />

séc. XVI. Oriundo da nobreza<br />

basca (Espanha), ingressou na<br />

carreira militar desejoso de grandes<br />

feitos. Na batalha de Pamplona foi<br />

ferido gravemente, tendo de se submeter<br />

a dolorosas intervenções cirúrgicas<br />

e demorada convalescença.<br />

Durante esse período de repouso,<br />

ao ler algumas vidas de Santos,<br />

deixou-se tocar pela graça divina e<br />

se converteu. Fundador da Companhia<br />

de Jesus, autor dos célebres<br />

“Exercícios Espirituais”, tinha por divisa<br />

a máxima Para a maior glória de<br />

Deus. Faleceu em Roma, em 1556.<br />

São Tiago<br />

Apóstolo


O SANTO DO MÊS<br />

Maravilhas do espírito da I<br />

Reflexões na festa<br />

de São Pio<br />

Enquanto as areias dos circos romanos se embebiam do sangue dos<br />

mártires, os desertos se povoavam de eremitas e penitentes. Assim<br />

era nos tempos do Papa São Pio I, ele mesmo imolado por ódio à Fé cristã.<br />

Ao comentar a vida deste Sumo Pontífice, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos faz admirar a santidade<br />

da Igreja a qual, em meio às maiores vicissitudes, sempre triunfou<br />

sobre as portas do inferno, conforme lhe prometeu o Divino Salvador.<br />

N<br />

o dia 11 deste mês, celebra-se a festa de São<br />

Pio I, Papa e mártir do século II. Sobre ele<br />

encontramos alguns interessantes dados biográficos,<br />

extraídos da obra Vie des Saints, do Padre J. E.<br />

Darras. Narra-nos este:<br />

São Pio I nasceu na cidade de Aquiléia [Itália], e sucedeu<br />

a Santo Higino na Sé Apostólica. Foi amigo de São<br />

Policarpo e São Justino, o Apologista, lutando com eles<br />

contra a heresia gnóstica que assolava a Igreja. Fez um especial<br />

decreto para que o sacerdote, ao celebrar, cuidasse<br />

18


greja<br />

LIbertada por Constantino, a Igreja abandona as catacumbas<br />

e surge inteiramente organizada, com sabedoria e critério<br />

Basílica do Vaticano; imagem de Papa<br />

na fachada da Catedral de Notre-Dame de Paris<br />

I<br />

Ricardo C. Branco e L. Werner<br />

das espécies sagradas. Por exemplo,<br />

se por negligência deixasse cair uma<br />

gota do sangue de Nosso Senhor,<br />

deveria penitenciar-se por quarenta<br />

dias. Se o sangue caísse sobre o altar,<br />

e não no solo, a penitência seria<br />

somente de três, quatro ou nove<br />

dias, conforme a quantidade derramada.<br />

Prescreveu o máximo respeito<br />

ao vinho e ao pão consagrados,<br />

exigindo que neles não se permitisse<br />

a mínima profanação. Testemunhava<br />

assim a grande fé da Igreja na<br />

presença real de Nosso Senhor na<br />

Eucaristia.


O SANTO DO MÊS<br />

Consagrou ainda a igreja de Santa Pudenciana, no palácio<br />

onde São Pedro e São Paulo haviam trabalhado.<br />

Depois de ter governado a Igreja por nove anos, São Pio I<br />

foi martirizado sob o Imperador Marco Aurélio.<br />

Nas catacumbas, um perfeito trabalho de<br />

estruturação<br />

Trata-se, portanto, de um papa que exerceu suas funções<br />

ainda no período das perseguições, e em pleno apuro<br />

que cercava os católicos fez este trabalho admirável —<br />

ao qual muitos papas estiveram associados — de organização<br />

interna da Igreja.<br />

A epopéia de São Pio I nos leva, assim, a considerar<br />

um fato muito importante e talvez pouco apreciado, que<br />

é o seguinte. Durante o período catacumbal a Igreja se<br />

viu perseguida, pisada, calcada aos pés, deitando sangue<br />

por todas as vertentes e por todos os poros. Quando<br />

Constantino a liberta, ela sai das catacumbas e passa a<br />

viver à luz do dia, apresentando desde logo uma organização<br />

perfeita e acabada. Possui uma hierarquia estruturada,<br />

um direito próprio, uma liturgia definida, um depósito<br />

estabelecido de doutrina, etc.<br />

Quer dizer, desde a chegada de São Pedro a Roma e<br />

das viagens dos apóstolos — especialmente as de São<br />

Paulo — até o momento em que a Igreja adquire a emancipação,<br />

houve dentro das catacumbas um imenso trabalho<br />

de organização. E surge uma entidade se declarando<br />

e sendo imortal, de caráter universal, a primeira até então<br />

existente. Estruturada com sabedoria, critério e acerto<br />

tais que, quando abandona os subterrâneos de Roma,<br />

basta-lhe continuar a viver.<br />

Vê-se por esse fato a maravilha de serenidade e sapiência<br />

que foi a Igreja em relação ao perigo. Dir-se-ia<br />

que uma obra tão delicada quanto a de fazer germinar a<br />

estrutura eclesiástica de dentro de suas próprias sementes<br />

pediria, normalmente, uma situação de calma e tranqüilidade<br />

invulgares, pois os homens atormentados com<br />

a perseguição não poderiam cogitar em outra coisa. Porém,<br />

o contrário é a verdade. Durante todo aquele período<br />

em que se achavam acuados, acossados, no risco de<br />

caírem de um momento para outro nas mãos do carrasco,<br />

tais homens continuavam a pensar, a rezar, e nas catacumbas,<br />

entre as invasões dos soldados romanos, aperfeiçoavam<br />

uma parte da liturgia, estruturavam um ponto<br />

da doutrina, criavam um costume novo.<br />

Havia, pois, essa calma e essa serenidade extraordinárias<br />

na perseguição, conjugando-se harmonicamente com<br />

a paz de alma da qual os cristãos davam provas na arena.<br />

Aquela sobranceria e tranqüilidade diante da morte não<br />

se manifestavam apenas na hora patética em que eram<br />

postos na presença das feras e dos verdugos, mas constituía<br />

todo um estado de espírito sapiencial. Esta sabedoria<br />

os levava a se conservarem confiantes e plácidos ante<br />

os perigos que sentiam, cuja profundidade às vezes lhes<br />

fazia vibrar o instinto de conservação. Mas, apesar de tudo,<br />

fazia-os também construir, pedra por pedra, o edifício<br />

admirável da Igreja.<br />

Timothy Ring e Sergio Hollmann<br />

Ao mesmo tempo em que floresciam os mártires no Coliseu, nascia o eremitismo nos desertos<br />

20


Florescimento do eremitismo<br />

Ainda nessa época de São Pio I teve início uma das<br />

realizações mais belas da Igreja, como aspecto positivo<br />

de sua organização: o eremitismo.<br />

Apavorados diante das crueldades e perseguições nos<br />

circos romanos, muitos cristãos fugiam para o deserto a<br />

fim de não serem presos pela polícia do imperador. Principiavam<br />

então uma vida isolada, a existência eremítica<br />

de contemplação. Desta sorte, o estado contemplativo começou<br />

a nascer dentro da Igreja ao mesmo tempo em<br />

que floresciam os mártires.<br />

Vê-se por aí quantas riquezas desabrochavam na Igreja<br />

e que panorama admirável de sua gesta naquele período<br />

nos é dado observar. Os mártires se multiplicavam, o<br />

apostolado crescia e a Esposa Mística de Cristo penetrava<br />

por toda parte. De outro lado, ela se enclausurava e o<br />

estado contemplativo se expandia. Tudo isso a uma vez,<br />

como produto, expressão, fruto de uma germinação admirável!<br />

Ação do Espírito Santo na Igreja ao longo<br />

dos séculos<br />

Poder-se-ia perguntar o que há por trás de todo esse<br />

espetacular desenvolvimento. E a resposta recairia sobre<br />

algo para o qual é preciso sempre chamar a atenção: a<br />

presença do Espírito Santo na Igreja Católica Apostólica<br />

Romana.<br />

O que constitui propriamente a Igreja não é apenas o<br />

fato de ela ser uma sociedade de pessoas definidas, isto<br />

é, o Papa, os bispos, os clérigos e os fiéis. Além desse elemento<br />

humano, há algo que se chama o espírito da<br />

Igreja. E este espírito é a continuidade, dentro<br />

dela, de uma determinada mentalidade, de uma<br />

sabedoria, da fé e da virtude que existem na<br />

Igreja, não por obra do homem, mas devido a<br />

um fator sobre-humano.<br />

Trata-se dessa ação do Espírito Santo pela<br />

qual, através dos séculos, em todos os<br />

lugares os bons católicos se entendem,<br />

se conhecem, se apóiam. Eles são um<br />

só, e quando morrem, outros lhes<br />

sucedem com a mesma mentalidade,<br />

o mesmo espírito e até mais característicos<br />

que seus antecessores.<br />

Por exemplo, tenho a satisfação<br />

de me dirigir a pessoas provenientes<br />

de alguns países hispânicos,<br />

bem como a brasileiros de todos<br />

os quadrantes que receberam<br />

a hereditariedade de inúmeros<br />

contingentes de imigração. Entretanto, nos entusiasmamos<br />

por formas de pensar e sentir, estilos de vida,<br />

pelo espírito de uma era que não conhecemos, que é a da<br />

Igreja do século II. E temos entusiasmo porque isto não<br />

foi inventado por nós, mas resultou de uma tradição<br />

transmitida por nossos maiores. É o espírito da Igreja, ou<br />

seja, é o Divino Espírito Santo, que realiza essa continuidade<br />

entre nós e aqueles que “nos precederam com o sinal<br />

da Fé”, marcados com a mesma cruz.<br />

Somos fagulhas da fogueira da Igreja<br />

A esse propósito, lembro-me de que certa vez um sacerdote<br />

me ouviu com fisionomia muito embevecida quando<br />

lhe falei a respeito de nosso grupo. Percebendo-o tão<br />

agradado, perguntei-lhe.<br />

— Padre, o que o senhor está apreciando nesses meus<br />

comentários?<br />

E ele me disse:<br />

— É o lado teológico da coisa, porque na efervescência<br />

desse espírito e dessa atividade dos senhores está a vida<br />

da Igreja. É exatamente o espírito dela que os orienta<br />

e os move a essas realizações.<br />

Portanto, nós não somos senão rebentos da Igreja Católica<br />

Apostólica Romana.<br />

Sem dúvida, todos já tiveram oportunidade de observar<br />

uma fogueira acesa durante a noite. E verificaram<br />

este fato: de vez em quando se desprende uma fagulha,<br />

eleva-se pelos ares e cai de novo no meio do fogo. Assim<br />

também, somos fagulhas que se evolam da Igreja Católica,<br />

porém sempre ligados a ela. Não somos senão pedras<br />

do seu edifício, amorosas e encantadas de pertencerem a<br />

ela. E qualquer coisa que em nós possa haver de bom, é<br />

fruto dessa pertencença à Igreja, templo do Espírito Santo,<br />

do qual nascem todas as formas de boas disposições,<br />

de virtudes, de Contra-Revolução, etc. Esse é o processo<br />

espiritual pelo qual se forma um movimento como o nosso.<br />

E vale dizer, existe uma semelhança de situação entre<br />

os fiéis do tempo de São Pio I e o nosso grupo. Certo, não<br />

sofremos em nossos países a perseguição cruenta, mas<br />

sim a incruenta, manifestada pelo fato de sermos muito<br />

combatidos. Contudo, Nossa Senhora nos ajuda para, em<br />

plena luta, irmos construindo pedra por pedra nossa<br />

obra, a qual vamos estruturando, explicitando sua doutrina,<br />

estabelecendo uma organização, tornando cada vez<br />

mais protuberante um determinado espírito, a fim de que,<br />

quando chegar o dia do triunfo do Imaculado Coração<br />

de Maria, a Igreja tenha recebido um contributo de filhos<br />

que a serviram com dedicação.<br />

Estas são algumas reflexões que a festa de São Pio I<br />

nos deve sugerir.<br />

<br />

21


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Igreja do Sagrado<br />

Coração de Jesus,<br />

em São Paulo<br />

Fotos: Arquivo particular<br />

O panorama católico<br />

na São Paulo de 1928<br />

Ao longo dos artigos desta revista nos tem sido apresentada a gesta<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e o seu intenso desejo de ver realizados sobre a Terra<br />

os pedidos que elevamos a Deus na oração do Pai-Nosso. Importa, pois,<br />

conhecermos o ambiente social no qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> iniciou seu apostolado,<br />

para assim compreendermos melhor os perigos e dificuldades que teve de<br />

enfrentar, exercitando sua Fé e confiança inquebrantável no auxílio do Céu.<br />

22


A<br />

época da minha mocidade e a de hoje são muito<br />

diferentes. Entretanto, por alguns lados continuam<br />

sendo semelhantes.<br />

Para abordar o assunto que me foi proposto, começo<br />

por traçar um quadro geral do que era o aspecto religioso<br />

da São Paulo de 1928, para em seguida mostrar como<br />

se desenvolveu, dentro dele, o movimento católico.<br />

Catolicismo e sociedade se condicionavam<br />

Este, na verdade, representava uma gota de azeite no<br />

interior da sociedade de então. Quando se verte um<br />

pouco de azeite num copo d’água, ele toma uma determinada<br />

forma — a qual imagino esférica — em virtude<br />

da pressão que a água imprime, de todos os lados, sobre<br />

a bolha. Assim também as minorias se configuram em<br />

geral, não pela pressão que fazem sobre a maioria, mas<br />

por aquela que a maioria exerce sobre elas.<br />

Ora, o movimento católico constituía uma minoria, e<br />

era a pressão da maioria que em boa parte o conformava.<br />

Não in totum, porque, como<br />

era católico, tinha de dentro<br />

para fora um certo dinamismo.<br />

Porém, era circunscrito e<br />

condicionado pelo dinamismo<br />

de fora para dentro. E do encontro<br />

desses dois dinamismos<br />

opostos resultavam muitas das<br />

características do movimento<br />

católico. Assim, não posso descrever bem a sua vida e<br />

atuação internas, sem explicar aquilo que de fora para<br />

dentro o condicionava.<br />

No momento em que ingressei no movimento católico,<br />

este influenciava pouco o conjunto da sociedade brasileira.<br />

Mas, já em 1943, quando se completavam 15 anos<br />

de minha participação nos fatos, a situação havia mudado<br />

e o movimento católico condicionava em larga medida<br />

o ambiente brasileiro, embora fosse, por sua vez, condicionado<br />

por este último.<br />

Tradições que existiam por hábito<br />

Era necessário abrir os tapaventos<br />

das igrejas, lotadas,<br />

para que todos os fiéis<br />

pudessem assistir à Missa<br />

Deitemos um rápido olhar sobre a situação religiosa<br />

do Brasil, e mais especialmente de São Paulo, naquela<br />

época.<br />

As tradições e os hábitos católicos existiam em proporções<br />

muito maiores do que hoje. Por exemplo, em<br />

1928, nas classes alta, média, e mesmo nas camadas mais<br />

modestas da população, toda moça solteira era pura, e<br />

quando se unia a seu esposo, estava íntegra. Não se cogitava<br />

na possibilidade do contrário.Claro, havia as pessoas<br />

extraviadas, mas essas constituíam um mundo completamente<br />

à parte, com ruas e lugares de perdição<br />

próprios, aonde iam aqueles que desejavam freqüentar<br />

maus ambientes e, portanto, perder-se. Era o bairro horroroso<br />

da cidade, separado dos demais por barreiras invisíveis.<br />

E nesse bairro a perdição se ostentava com uma<br />

brutalidade e uma radicalidade espantosas. Esse mundo,<br />

porém, significava uma mancha pequena na metrópole<br />

grande.<br />

Quanto às senhoras casadas, a quase totalidade permanecia<br />

fiel a seus maridos. Falava-se, na altíssima sociedade,<br />

de uma ou outra que tomava alguma atitude escandalosa,<br />

e, apesar da fortuna, da situação prestigiosa,<br />

etc., passavam a ser vistas com horror. Não eram recebidas<br />

nas casas de famílias sérias, e ao se encontrarem<br />

com pessoas conhecidas na rua, apenas se dirigiam uma<br />

pequena saudação, sem se deterem para conversar. Elas<br />

mesmas sabiam em que conta eram tidas. Quer dizer, senhora<br />

de família é fiel ao marido, e a tal respeito não havia<br />

dúvida nenhuma.<br />

Ademais, quase todas as senhoras<br />

de boa formação freqüentavam<br />

os Sacramentos,<br />

iam às Missas aos domingos,<br />

e muitas comungavam de três<br />

a quatro vezes por ano. Outras<br />

até mais. Para se ter idéia<br />

de como era a assistência às<br />

Missas naqueles tempos, tomemos em consideração o<br />

seguinte: no grupo de bairros em que eu me movia, existiam<br />

as igrejas do Coração de Jesus, de Santa Cecília, do<br />

Coração de Maria e de Santa Teresinha. Nessa área a população<br />

era muito menor do que agora, pois não havia<br />

prédios de apartamentos. Além disso, muitas casas cultivavam<br />

grandes jardins, e portanto a parte habitada era<br />

pequena.<br />

Nos domingos comuns, na hora da Missa, essas igrejas<br />

se enchiam a ponto de, às vezes, ser preciso abrir os tapaventos<br />

para facilitar o cumprimento do preceito às pessoas<br />

que não conseguiam entrar. Hoje, a população se<br />

multiplicou nessas áreas: não se construiu nenhuma igreja<br />

nova e as antigas já não se enchem como outrora. Isso<br />

nos torna palpável como, naquela época, os templos católicos<br />

eram mais freqüentados do que nos dias atuais.<br />

Uma religiosidade irrefletida<br />

Qual era a mentalidade dessas senhoras face à religião?<br />

23


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Feitas as exceções de estilo, a maior parte desse público<br />

feminino era o que eu chamaria de católicas irrefletidas.<br />

Ou seja, eram católicas porque tinham “nascido católicas”.<br />

E assim como se nasce com cinco dedos na mão,<br />

elas como que “nasciam com fé”. E nunca se tinham posto<br />

o problema se se podia não ser católico. Consideravase<br />

feio o fato de alguma mulher não praticar a religião. A<br />

esse propósito, conta-se que Cândido de Figueiredo, autor<br />

português de um famoso dicionário, ao ser perguntado<br />

sobre qual era o feminino de ateu, afirmou: “É à-toa”.<br />

Para ele, portanto, a mulher atéia é uma estouvada.<br />

Então, essas senhoras levavam uma vida tranqüila, despreocupada,<br />

poucas trabalhavam, vivendo normalmente<br />

o seu quotidiano no lar. Não havia ainda televisão, e poucas<br />

eram as estações de rádio, o que reduzia as recreações<br />

caseiras ao gramofone tocado à mão, às prosinhas,<br />

duas ou três que saíam para conversar ou algo semelhante.<br />

Aliás, as senhoras casadas nunca eram vistas sozinhas<br />

na rua, mas acompanhadas por alguém da família,<br />

e as moças saíam sempre com uma pessoa mais velha.<br />

Distraíam-se também em casa na leitura de romances, na<br />

elaboração de pratos e de doces, aprendendo a tocar algum<br />

instrumento musical, bordando almofadas, cuidando<br />

de um pássaro, etc., preenchendo com isso o seu tempo.<br />

Claro, sobrava-lhes espaço para a recitação do Rosário<br />

e outras orações.<br />

Não se podia afirmar, entretanto, que elas tivessem<br />

uma estrutura de espírito definidamente católica, nem<br />

que soubessem explicar porque criam na sua religião ou<br />

definir qual o espírito da Igreja Católica.<br />

Então, imbuída dessa religiosidade superficial, uma senhora<br />

se dirigia à igreja para rezar pelo marido que estava<br />

resfriado ou cujos negócios iam mal, para pedir por<br />

ela mesma que sentia uma dor e acordava à noite: se não<br />

passasse aquele transtorno, teria de ir ao médico durante<br />

a semana, etc., etc. Ela levava essa “vidinha” assim, na irreflexão<br />

completa. Era raro, portanto, que uma senhora<br />

tomasse a deliberação de praticar ações contrárias ao hábito<br />

e modo dominantes, em obediência a um princípio<br />

ditado pela Igreja.<br />

A idéia de um ensinamento doutrinário oriundo do<br />

catolicismo, que é norma de pensamento ou de ação à<br />

qual se deve submeter, ainda que não se entenda ou não<br />

se queira — essa idéia estava afastada da cabeça delas.<br />

Julgava-se que a correnteza geral dos bons hábitos, dos<br />

bons ambientes, dos bons costumes, levava lenta e molemente<br />

para o Céu . Se é que molemente se pode alcançar<br />

a bem-aventurança eterna...<br />

Família tradicional de São Paulo — A idéia dominante era a de que a influência dos bons costumes<br />

levava lenta e molemente para o Céu...<br />

24


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (ao fundo, no centro) no início de sua atuação no movimento católico:<br />

“Considerava-se medonho para um homem o se dizer religioso; a maior parte não rezava,<br />

e ter um Rosário era inimaginável”<br />

De maneira que essas senhoras proporcionavam a mesma<br />

formação às filhas, mas viam-nas se modernizarem<br />

sob a ação do cinema, e tomarem atitudes de liberdade<br />

com os rapazes, embora se mantivessem ainda na linha<br />

da pureza. Porém, não era mais a super-pureza que as<br />

mães tinham aprendido. Estas sorriam, porque não possuíam<br />

essa idéia dos limites postos pela moral: “até aqui<br />

se vai, até lá não”. Tudo era habitual, consuetudinário. O<br />

que os costumes mandassem fazer, se fazia; o que considerassem<br />

bom, era bom. E os costumes faziam as vezes<br />

de religião. Então, quando o marido era ateu — o que se<br />

verificava na maioria dos casos — elas não se afligiam.<br />

Quando um filho concluía o curso secundário, entrava<br />

para uma faculdade e se tornava igualmente ateu, elas<br />

também não tomavam esse fato como drama.<br />

Os homens... livres pensadores<br />

Por seu lado, o homem em geral era um livre pensador.<br />

Assim como ficava feio para uma mulher não ser religiosa,<br />

pois dava idéia de masculinizada e, portanto, desagradável,<br />

era mal-visto para o homem mostrar-se religioso,<br />

porque passava a impressão de efeminado. Justificavam-se,<br />

alegando que a religião era uma “coisa de mulher”.<br />

Assim, a maior parte dos homens se dizia ateu. E mesmo<br />

se um deles se afirmasse católico, não freqüentava os<br />

Sacramentos, porque isso se considerava medonho. Portanto,<br />

o homem também não rezava; ter Rosário era inimaginável,<br />

ainda que guardado na gaveta de sua mesa de<br />

cabeceira. Acima da cama dele havia, geralmente, um crucifixo<br />

que a mãe mandava fixar na parede, e que ele deixava<br />

ali ficar. Talvez, antes de se deitar à noite, ele enlambuzasse<br />

uma pequena oração, porém não o faria todos os<br />

dias.<br />

Quanto aos rapazes, os da classe média para cima,<br />

quase diariamente freqüentavam bares suspeitos e muitas<br />

vezes saíam destes para visitar os antros de perdição.<br />

De maneira que era comum um rapaz chegar em casa às<br />

três ou quatro horas da manhã. E, não raro, bêbado.<br />

A mãe não podia ignorar onde o rapaz se encontrava<br />

àquelas horas tardias. Se lhe restasse qualquer dúvida, perguntava<br />

ao esposo. E ela tinha de saber que aquilo era pecado.<br />

Vendo o filho abandonar as orações, os Sacramentos,<br />

ela deveria rezar, a exemplo da mãe de Santo Agostinho,<br />

chorar como Santa Mônica chorou e orou para que<br />

seu filho se convertesse. Sem embargo, no total elas não<br />

se incomodavam muito com os desmandos dos filhos.<br />

Entretanto, os mesmos homens libertinos também<br />

achavam horrível a mulher ser impura. Se a esposa, a filha<br />

ou a irmã cometesse alguma infidelidade, a censura e<br />

a indignação podia chegar até o uso do revólver. Portanto,<br />

eles tinham em alta conta, para as mulheres, certas<br />

virtudes que não apreciavam para si próprios... <br />

(Continua em próximo número)<br />

25


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Pensamentos sobre o Céu<br />

V<br />

ivendo neste “vale de lágrimas”, por vezes levantamos nossos olhos<br />

para o Céu, e a esperança de alcançar a felicidade eterna nos consola<br />

e anima. Entretanto, não raro, uma dúvida nos assalta: como serão essas<br />

alegrias perenes?<br />

Certa feita, diante de um auditório repleto de jovens ouvintes, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

se dispôs a elucidar essa interessante questão, tecendo ricas e belas<br />

considerações sobre as alegrias celestiais.<br />

Sempre tive uma impressão singular a<br />

respeito de certas descrições ou representações<br />

do Céu. Pela fé, eu sabia<br />

tratar-se de um lugar onde existem todas<br />

as delícias, mas quando estas me eram delineadas,<br />

tinha a sensação de serem deleitosas<br />

para os outros e não para mim.<br />

Uma iconografia incompleta<br />

Por exemplo, alguns quadros retratavam<br />

o Céu muito azul, com uma nuvem branca<br />

Fotos: Sergio Hollmann<br />

Anjos músicos,<br />

Catedral de<br />

Strasbourg, França<br />

26


em forma de sofá no qual se achava<br />

sentado um anjo tocando violino.<br />

Claro, no Céu não há nuvem material,<br />

mas essa forma de pintá-lo mostra<br />

um símbolo da realidade celeste.<br />

Essa não é, entretanto, a realidade<br />

inteira: seria necessário acrescentar<br />

outros elementos para se ter uma noção<br />

completa sobre ele.<br />

Compreendo que aquelas pinturas<br />

apresentavam algo de mais agradável<br />

do que este vale de lágrimas.<br />

Mesmo assim, se eu tivesse de passar<br />

a eternidade num Céu azul, sentado<br />

em uma nuvem branca e tocando<br />

violino, confesso que não sentiria<br />

esse lugar como sendo a pátria de<br />

minha alma.<br />

Também me causava estranheza a<br />

idéia pouco feliz de esboçar o Céu<br />

imerso numa espécie de imobilidade.<br />

Conforme a doutrina católica, no<br />

Paraíso o homem não pode crescer<br />

em grau de glória. Ele permanece ali<br />

por toda a eternidade como foi premiado<br />

após a sua morte, gozando de<br />

felicidade plena.<br />

Eu tinha, então, a sensação de que<br />

no Céu tudo parou para sempre, e<br />

todos os eleitos estão olhando para<br />

um Deus igualmente imóvel. Ora,<br />

posto que o movimento e a comunicação<br />

fazem parte de nosso modo de<br />

ser, deparava-me com a dificuldade<br />

em compreender a atração de um<br />

Céu assim parado.<br />

Essas eram algumas impressões<br />

equivocadas as quais, não fossem<br />

corrigidas, podiam diminuir minha<br />

esperança e interesse pelos bens celestes.<br />

Movimento no Céu pelos<br />

acréscimos da felicidade<br />

acidental<br />

Passei então a empreender um<br />

trabalho de análise do Céu, baseado<br />

em comentários de santos, a fim de<br />

formar uma verdadeira imagem dele<br />

e torná-lo mais apetecível.<br />

Tratemos mais especialmente daquilo<br />

que se poderia chamar a imobilidade<br />

celeste.<br />

É exato afirmar que, na eterna<br />

bem-aventurança, a felicidade de uma<br />

alma não é passível de aumento, e<br />

por essa razão tudo ali se encontra<br />

tão parado quanto se é levado a imaginar?<br />

Ou há acréscimos de intensidade<br />

dessa alegria?<br />

Em outros termos, haverá no Céu<br />

movimento e vida — e até vigorosíssimos<br />

— como não fazemos idéia?<br />

Como será isso?<br />

Para construirmos de maneira paulatina<br />

uma imagem real do Céu, consideremos<br />

que quando um homem<br />

pratica determinado ato bom ou<br />

mau, mesmo depois de julgado e ter<br />

recebido seu prêmio ou castigo, esse<br />

ato às vezes continua a produzir repercussões<br />

até o fim do mundo.<br />

Tomemos, por exemplo, um religioso<br />

que atrai uma pessoa para pertencer<br />

à sua congregação. Parece algo<br />

tão simples e banal. Mas o atraído<br />

pode trazer outro, o qual por sua vez<br />

chamará um terceiro e assim sucessivamente,<br />

de modo que até o fim dos<br />

tempos haverá um veio de filhos, netos,<br />

bisnetos, tataranetos espirituais<br />

“Se eu tivesse de passar a eternidade num<br />

Céu azul, sentado em uma nuvem e<br />

tocando violino, não sentiria esse lugar<br />

como a pátria de minha alma...”<br />

27


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

daquele religioso que trouxe o primeiro.<br />

À medida que os séculos vão passando,<br />

do alto do Céu ele pode ver o<br />

efeito da boa ação que praticou e<br />

com isso experimentará renovadas<br />

alegrias. Ainda que esteja inundado<br />

de felicidade, contemplando Deus face<br />

a face, ao olhar para a Terra e perceber<br />

as conseqüências do bem que<br />

praticou, seu júbilo por assim dizer<br />

aumenta.<br />

A felicidade de uma alma pode,<br />

portanto, crescer acidentalmente pela<br />

multiplicação, ao longo dos tempos,<br />

dos efeitos da boa ação que ela<br />

realizou. Essa verdade, aliás, sempre<br />

me anima quando me disponho a escrever<br />

um livro: a obra poderá produzir<br />

bons frutos até o fim do mundo,<br />

e no Céu minha alegria aumentará<br />

por ver que, digamos, daqui a<br />

mil anos esse livro fez bem a alguma<br />

alma e deu glória a Deus.<br />

Consideremos ainda outro exemplo.<br />

Imaginemos uma rainha casada<br />

com um rei muito poderoso, desfrutando<br />

junto dele toda felicidade que<br />

sua condição lhe granjeia. Suponhamos<br />

que em seu aniversário um grupo<br />

de camponeses se apresenta a dançar<br />

diante da janela de seu quarto,<br />

por amor a ela e para lhe fazer uma<br />

homenagem.<br />

Se os camponeses não vierem, a<br />

rainha não deixará de ser feliz, pois<br />

tem o convívio com o rei, que constitui<br />

a felicidade essencial dela. Porém,<br />

uma vez que aqueles súditos aparecem<br />

para presenteá-la, a soberana<br />

sente uma alegria acidental a mais.<br />

Ela vai para o terraço, olha, se compraz<br />

com os camponeses e depois<br />

manda servir-lhes doces e dirige uma<br />

palavra amável para cada um. Eles<br />

ficam radiantes, e ela, comprazida.<br />

Portanto, esse fato aumentou, acidentalmente<br />

e não essencialmente, o<br />

contentamento da rainha, assim como<br />

as franjas do tapete que, sem fazerem<br />

parte dele, servem-lhe contudo<br />

de prolongamento.<br />

Analogamente, muitos acontecimentos<br />

na Terra podem aumentar a<br />

nossa alegria no Céu, pois há uma relação<br />

entre ambos pela qual as felicidades<br />

do Paraíso se movem de acordo<br />

com as situações neste mundo.<br />

De passagem, vale lembrar que a<br />

regra se aplica também ao inferno:<br />

sempre que o condenado contempla<br />

o mal que ele fez afetando a outros<br />

no tempo, seu tormento pode, em certo<br />

sentido acidental, aumentar.<br />

Isso nos leva a refletir, pois tudo<br />

aquilo que realizamos nessa vida terrena<br />

está repercutindo em glória no<br />

Céu ou em tristeza no inferno. Se<br />

soubéssemos contemplar assim cada<br />

ato de nossa existência, como ela seria<br />

diferente! Se também concebêssemos<br />

o Céu como uma arquibancada<br />

da Terra, com possibilidades de os<br />

Santos intervirem ativamente pelos<br />

que estão aqui embaixo, através das<br />

suas orações e inspirações, como sentiríamos<br />

o Paraíso de um modo diverso!<br />

Santa Teresinha do Menino Jesus<br />

dizia que desejava passar o<br />

Céu dela fazendo o bem sobre<br />

a Terra. É um lindo programa,<br />

que nos prova, uma<br />

vez mais, a realidade<br />

desse intercâmbio entre<br />

a bem-aventurança<br />

eterna e o tempo.<br />

Deus e os eleitos no Céu:<br />

vida intensa<br />

Alguém poderia indagar: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

concordo, mas quando acabar a<br />

história humana na Terra e todos os<br />

eleitos estiverem no Céu, tudo então<br />

ficará parado?”<br />

Para respondê-lo, evoco uma bela<br />

passagem da vida de Santa Gertrudes.<br />

Conta-se que, certo dia, quando<br />

ela e suas religiosas cantavam a “Ave-<br />

Maria” durante o ofício de Matinas,<br />

a Santa foi arrebatada em êxtase.<br />

28


Viu então jorrarem do seio da Santíssima<br />

Trindade três fachos de luz<br />

— simbolizando o poder do Pai, a sabedoria<br />

do Filho e a ternura misericordiosa<br />

do Espírito Santo — que<br />

penetravam no coração de Nossa Senhora,<br />

para deste retornar à fonte,<br />

isto é, à Trindade Beatíssima.<br />

Essa visão tornava patente como<br />

a Mãe de Deus se regozija em seu<br />

coração, e como neste há novas expansões<br />

da Santíssima Trindade, cada<br />

vez que uma alma na Terra recita<br />

devotamente a Ave-Maria.<br />

Ora, a fortiori, quando um bemaventurado<br />

no Céu elogia Nossa Senhora,<br />

há um aumento de comunicação<br />

d’Ela com a Santíssima Trindade<br />

e vice-versa. Assim como há<br />

um acréscimo acidental de gáudio<br />

no Paraíso, por onde, na medida em<br />

que os Santos se amam, conversam,<br />

convivem, intensifica-se o relacionamento<br />

de todos com Deus.<br />

Existe, portanto, uma espécie de<br />

interação recíproca à qual Deus se<br />

associa. É a movimentação do Céu, à<br />

maneira de uma imensa, santíssima<br />

e inocentíssima política, em que todos<br />

se empenham, sem cansaço, para<br />

aumentar o próprio gáudio e o dos<br />

outros, nadando, por assim dizer, nas<br />

gentilezas e na felicidade mútuas.<br />

Sob esse ponto de vista, o Céu poderia<br />

ser comparado a uma corte esplêndida,<br />

perfeita, onde os cortesãos,<br />

quando se encontram, inclinam-se<br />

profundamente uns diante dos outros,<br />

com imenso amor; cumprimentam-se<br />

diante do Rei que, ao perceber<br />

esse afeto, alegra-se e concede<br />

um galardão a cada um.<br />

Eles agradecem a munificência<br />

do Monarca, o qual<br />

lhes oferece mais prêmios.<br />

E assim se caminha<br />

sempre, de galardão<br />

em galardão, enriquecidos com<br />

algo de novo.<br />

Essa vida e essa movimentação no<br />

Céu se verifica, sobretudo, no progresso<br />

que fazem os eleitos no conhecimento<br />

de Deus, infinitamente interessante.<br />

Sendo Ele a meiguice, a afabilidade,<br />

revela-nos em sua essência<br />

todas as coisas, com uma expressão<br />

de charme, com encanto, com aquilo<br />

que se poderia chamar de verve divina,<br />

como não podemos imaginar...<br />

De maneira que, ao longo de todas<br />

as suas infinitudes, veremos a<br />

Deus sempre diferente e nunca acabaremos<br />

de conhecê-Lo. Ele será para<br />

nós uma novidade contínua, cujos<br />

variados aspectos os Anjos e os Santos<br />

comentarão entre si, pois cada um<br />

deles contempla e adora a Deus por<br />

diversos ângulos. Essa conversação a<br />

respeito das excelências divinas será<br />

cantada, e esse cântico eterno do<br />

Céu induzirá os justos a um progresso<br />

constante, sem fadiga, porque<br />

é movimento e repouso ao mesmo<br />

tempo.<br />

Como imaginaria o meu<br />

Céu<br />

Por fim, atendendo à amável solicitação<br />

dos meus ouvintes, diria então<br />

como imagino o Céu para mim,<br />

se até lá me conduzir a misericórdia<br />

de Deus. Compreendendo que, a rogos<br />

de Maria, Nosso Senhor pode<br />

me destinar coisa muito diferente da<br />

concebida por minha imaginação. O<br />

que direi é apenas um esboço feito<br />

do “lado de cá”, implorando a Nossa<br />

Senhora que me alcance algo ainda<br />

melhor.<br />

Mas, tendo em consideração o<br />

feitio de minha alma, imagino que<br />

Na medida em que os Santos se amam<br />

e convivem no Céu, instensifica-se<br />

o relacionamento de todos com Deus<br />

e Nossa Senhora<br />

Pórtico de Nossa Senhora,<br />

Catedral de Notre-Dame de Paris<br />

29


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

“Imagino que eu contemplaria a<br />

Santíssima Trindade e Nossa<br />

Senhora numa altura prodigiosa,<br />

de tal maneira que me<br />

sentisse um grão de poeira<br />

em relação a Eles;<br />

mas encantado ...<br />

... de ser um grão de<br />

poeira, e por Eles serem<br />

o que são”<br />

Detalhe da foto<br />

das pp. 28-29<br />

eu veria a Deus Pai, Deus Filho,<br />

Deus Espírito Santo e, logo abaixo,<br />

Nossa Senhora. Contempla-los-ia numa<br />

altura prodigiosa, infinitamente<br />

superiores a mim, de tal maneira que<br />

me sentisse um grão de poeira em<br />

comparação com Eles. Mas, encantado<br />

de ser um grão de poeira e<br />

por Eles serem o que são.<br />

Ao mesmo tempo, por um<br />

paradoxo, tão perto d’Eles<br />

que Os visse e me considerasse<br />

em condições de<br />

amar tudo exatamente<br />

como Eles amam. Entre<br />

Deus, Nossa Senhora e<br />

eu, gostaria de contem-<br />

plar uma hierarquia esplendorosa e<br />

harmônica de pessoas, sucessivamente<br />

superiores, com perfeições e ordenações<br />

que vão aumentando, através<br />

das quais me fosse dado conhecer melhor<br />

a Deus.<br />

E eu me imagino encantado nessa<br />

hierarquia, pequeno dentro dela, mas<br />

enlevadíssimo, tendo a impressão de<br />

que todas essas excelências me inundariam<br />

e se refletiriam em mim como<br />

algo de gravíssimo, seríssimo, majestosíssimo,<br />

de um lado; de outro, afabilíssimo,<br />

cheio de sorriso e de condescendência<br />

para comigo, de modo<br />

que eu exclamasse: “Cheguei afinal à<br />

pátria de minha alma!”<br />

Essa concepção do Céu não estaria<br />

completa sem a idéia de uma relação<br />

particular com Nossa Senhora.<br />

Um relacionamento que, se não fosse<br />

audácia, eu ambicionaria muito especial,<br />

como o de um grão de poeira<br />

junto ao trono da Rainha Celeste,<br />

bem perto d’Ela, e — por que não<br />

ousar imaginá-lo? — até mesmo no<br />

próprio coração da Santíssima Virgem.<br />

Esse é o meu desejo. Assim seria o<br />

Céu que concebo para mim.


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

PALCO DE GLÓRIAS<br />

Fotos: Sergio Hollmann<br />

Castelo de Segóvia,<br />

Espanha<br />

Do cimo do monte que lhe<br />

serve de pedestal, ele contempla,<br />

sobranceiro e elegante,<br />

a aldeia que o circunda, o vale<br />

e as vastidões de terra que se estendem<br />

à sua frente.<br />

Suas torres de variegadas proporções,<br />

em gracioso movimento para o<br />

céu, conferem ao seu todo o signo da<br />

leveza, enquanto seus vigorosos panos<br />

de muro, maciços, apenas atenuados<br />

por janelas e arcos ogivais, dãolhe<br />

a nota da majestade grandiosa e<br />

forte.<br />

Deixa-se ver entre folhagens ou<br />

brandamente refletido no espelho das<br />

águas que correm um pouco abaixo<br />

de seus alicerces. Numa e noutra visão,<br />

aparece recuado nos tempos de<br />

heróicas epopéias, de lutas e de glórias<br />

em que cravou raízes naquela<br />

paisagem espanhola.<br />

Apesar de reconstituído em sua<br />

maior parte no século XIX, o lindo<br />

Castelo de Segóvia conserva ainda a<br />

atmosfera dos seus dias de batalhas e<br />

triunfos. Ao visitá-lo, sem muito esforço<br />

nossa imaginação viaja pela<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

história, e nos achamos na presença<br />

de um rei santo, São Fernando III,<br />

que o utilizou como uma espécie de<br />

posto avançado em seus vitoriosos<br />

combates.<br />

Podemos figurá-lo ali, na sala do<br />

trono, ou na sala de estar, — com<br />

suas paredes de pedras rudes e tetos<br />

ricamente lavorados — séria, solene,<br />

bonita, onde o soberano vivia na intimidade<br />

com a rainha. A distração<br />

mais repousante de ambos era se dirigirem<br />

para junto de alguma das largas<br />

aberturas em ogiva, através das<br />

quais perlustravam os campos e as<br />

pradarias que se desdobravam além.<br />

Então, o casal régio sentado em cadeiras<br />

de madeira com espaldar alto,<br />

com almofadas de um conforto discutível,<br />

olhava para aquela imensidão<br />

na qual nada se erguia, a não ser<br />

uma pequena fortificação de Templários,<br />

distante algumas centenas de<br />

metros do castelo. Observar a movimentação<br />

dos cavaleiros que entravam<br />

e saíam de seu reduto, constituía,<br />

assim, um motivo de entretenimento<br />

para o rei e sua esposa.<br />

São Fernando, porém, sabia que<br />

os momentos de lazer não deviam<br />

ser o preponderante da existência<br />

para a qual fora suscitado por Deus.<br />

Sua missão providencial exigia dele a<br />

disposição para o sacrifício e para a<br />

luta. E foi esse mesmo Castelo de<br />

Segóvia o palco de um dos episódios


mais eloqüentes da gesta que o santo<br />

monarca empreendeu de forma magnífica.<br />

Ainda hoje é mostrado aos visitantes<br />

o lugar em que São Fernando almoçava,<br />

quando lhe foi avisado que<br />

Sevilha, a metrópole dos invasores, a<br />

cidade cuja conquista proporcionaria<br />

o êxito em todas as demais batalhas,<br />

estava prestes a ceder diante das investidas<br />

das tropas espanholas. E o<br />

mensageiro lhe dirigiu o apelo: “Vinde,<br />

Majestade, auxiliar os vossos, e<br />

hoje à noite entrareis em Sevilha!”<br />

Mais não era preciso para aquele<br />

coração de herói e de santo. No mesmo<br />

instante o Rei interrompeu a refeição,<br />

mandou preparar suas armas<br />

“Aparece recuado nos<br />

tempos de heróicas<br />

epopéias, de lutas e de<br />

glórias em que cravou<br />

raízes naquela<br />

paisagem espanhola...”<br />

e seu cavalo, e se dirigiu à brida solta<br />

até a cidade sitiada, onde já seus intrépidos<br />

soldados empreendiam os<br />

assaltos finais. Ao verem o soberano<br />

que se aproximava, os inimigos compreenderam<br />

que nada mais lhes restava<br />

senão se render e entregar a<br />

praça.<br />

Naquela noite, São Fernando se<br />

lembraria das torres e grossas pare-<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

des do Castelo de Segóvia sem nostalgias<br />

nem tristezas. Ele já dormia<br />

em Sevilha, olhando para o próximo<br />

campo de batalha. Pois assim fazem<br />

os Santos. Não contemporizam, não<br />

deixam para daqui a pouco, e, quando<br />

é necessário, interrompem a refeição,<br />

sem consumi-la até o último<br />

bocado, nem beber o último trago de<br />

vinho. Se chegou o momento do combate,<br />

que venham as armas e o cavalo,<br />

façamos uma jaculatória a Nossa<br />

Senhora, um Nome do Pai, e corramos...<br />

de encontro ao quê?<br />

À esquerda, detalhe dos tetos<br />

lavorados; acima, janelas de ogivas;<br />

abaixo, friso com esculturas de<br />

reis e rainhas de Espanha<br />

(entre eles, São Fernando III)<br />

Ao que poderia ser para São Fernando<br />

a morte, ou a vitória e a glória...<br />

Pouco lhe importava que fosse<br />

a vitória, a glória ou a morte. Importava,<br />

sim, que Maria Santíssima triunfasse<br />

e que a Espanha novamente<br />

Lhe pertencesse.


Deixa-se ver entre<br />

folhagens ou brandamente<br />

refletido no espelho das<br />

águas que correm abaixo<br />

dos seus alicerces...


Modelo de santidade<br />

Paulo Miguel<br />

Nossa Senhora é para nós o exemplo<br />

perfeito de santidade. Ou seja, se nos<br />

modelarmos inteiramente segundo<br />

Ela, alcançaremos a completa semelhança<br />

com Nosso Senhor Jesus Cristo. Se A tomarmos<br />

como ideal, acreditarmos na eficácia da devoção<br />

a Ela, e tudo fizermos em estreita união com<br />

Maria, a Ela nos assemelharemos.<br />

Assim, devemos pedir a Nossa Senhora, com todo<br />

o empenho, a graça de uma profunda compreensão<br />

de suas altíssimas virtudes, as quais havemos<br />

de imitar. E que Ela nos faça participar, em grau<br />

sempre crescente, da sua insondável fortaleza.<br />

Maria é a Virgem forte e combativa, a Virgem intransigente<br />

e absolutamente inflexível diante do<br />

demônio, do mundo e da carne. Supliquemos a Ela<br />

essa intransigência, antes de tudo contra o que há<br />

de mal em nosso interior; em segundo lugar, contra<br />

o que há de mal fora de nós — tendo em vista<br />

nossa própria santificação.

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