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Meditação junto ao Presépio
Queiram ou não queiram<br />
os homens, a graça lhes<br />
bate às portas da alma,<br />
mais sublime, mais meiga,<br />
mais insistente, neste tempo de<br />
Natal. Dir-se-ia que, apesar de<br />
tudo, paira nos ares um luz, uma<br />
paz, um alento, uma estimulo ao<br />
idealismo e dedicação, que é difícil<br />
não perceber. Ademais, em<br />
inúmeras igrejas, em muitos lares,<br />
o presépio ainda nos põe diante<br />
dos olhos a imagem do Menino<br />
Deus, que veio para romper os<br />
grilhões da morte, para calcar aos<br />
pés o pecado, para perdoar, para<br />
regenerar, para abrir aos homens<br />
novos e ilimitados horizontes<br />
de fé e de ideal, novas e ilimitadas<br />
possibilidades de virtude e<br />
de bem.
Sumário<br />
Na capa, “A<br />
adoração dos<br />
Reis Magos”,<br />
por Gentile da<br />
Fabriano<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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4<br />
5<br />
6<br />
8<br />
11<br />
16<br />
20<br />
EDITORIAL<br />
Que a paz do Natal penetre em nós<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Decisão na adolescência<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Glória a Deus no Céu, e paz na terra<br />
aos homens de boa vontade<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A grande utopia<br />
DONA LUCILIA<br />
Dias marcados pelas saudades<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Uma meditação para o homem de hoje<br />
A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />
Uma realidade mais vasta que o Estado<br />
Preços da assinatura anual<br />
Dezembro de 2002<br />
Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />
Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />
Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />
26<br />
32<br />
36<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
A atuação de Deus na grande luta<br />
da História<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Cântico da alma inocente<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Imaculada e vitoriosa<br />
3
Editorial<br />
Que a paz do Natal penetre em nós<br />
uma vez, Senhor, a Cristandade se<br />
“Mais<br />
apresta a Vos venerar na manjedoura de<br />
Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob<br />
a luz ainda mais clara e fulgente dos olhos maternais e<br />
doces de Maria. A vosso lado está São José, tão absorto<br />
em Vos contemplar que parece nem sequer perceber os<br />
animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram<br />
as nuvens e cantam, bem visíveis, no mais alto<br />
dos Céus”.<br />
Eis pequeno trecho de uma meditação de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
em noite de Natal, diante do presépio, que o<br />
encontrava pela capacidade de reviver algo daquela<br />
atmosfera indizível reinante na gruta de Belém.<br />
O primeiro presépio da história foi obra de um refulgente<br />
santo, há quase oito séculos. Conta Tomás de<br />
Celano — o biógrafo do seráfico São Francisco de<br />
Assis, e seu contemporâneo — que este, no Natal do<br />
ano da graça de 1223, desejou compor do modo mais<br />
real possível a cena vista pelos pastores na Gruta de<br />
Belém.<br />
Com seu espírito poético, voltado para o maravilhoso,<br />
sua candura e humildade, preparou uma manjedoura<br />
coberta com feno e mandou colocar de um<br />
lado um boi, e de outro um asno. Fez celebrar nesse<br />
local a Missa e, observando a cena, dirigiu-se aos assistentes,<br />
descrevendo com palavras ardentes de piedade<br />
e amor o nascimento do Homem-Deus.<br />
A partir desse fato, difundiu-se por toda a Cristandade<br />
o costume de montar presépios por ocasião do<br />
Natal. Ativando a imaginação de pequenos e adultos,<br />
eles são ocasião de incontáveis flashes — para utilizarmos<br />
um termo pliniano —, proporcionando-nos<br />
algumas das mais inesquecíveis horas de nossa vida.<br />
Considerando esse quadro, quantas e quantas vezes<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> elevou suas cogitações até aquele convívio<br />
inefável da Sagrada Família, nunca se esquecendo de recordar<br />
que essa sublime cena nos cobra uma determinada<br />
disposição de espírito: “Não basta que nos inclinemos<br />
ante Jesus Menino, ao som dos hinos litúrgicos,<br />
em uníssono com a alegria do povo fiel. É necessário que<br />
cuidemos cada qual de nossa própria reforma, e da reforma<br />
do próximo, para que a crise contemporânea tenha<br />
solução, para que a luz que brilha no presépio recobre<br />
campo livre para sua irradiação em todo o mundo”.<br />
Contudo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> destacava igualmente que, nesse<br />
dia bendito, Jesus e Maria querem especialmente<br />
de nós que nos deixemos impregnar pela doce e benigna<br />
atmosfera do acontecimento grandioso: “Deus,<br />
ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como<br />
nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe d’Ele, mas<br />
também nossa. [...] Ao contemplar isso, nossas almas<br />
crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.<br />
A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que<br />
em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado.<br />
Florescem os dons de alma. O dom do afeto.<br />
O dom do perdão. E, como símbolo, a oferta delicada e<br />
desinteressada de algum presente”.*<br />
Nessa ocasião do mais augusto de todos os aniversários,<br />
aproximemo-nos do presépio e, silenciosos e<br />
recolhidos, deixemos que nossas almas sejam inundadas<br />
por essa paz luminosa do santo Natal.<br />
* Os trechos acima transcritos foram publicados respectivamente<br />
em Legionário, 22/12/46; Catolicismo, dez/52;<br />
Folha de S. Paulo, 27/12/70.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Decisão na adolescência<br />
Em 12 de dezembro de 1920, na solene<br />
distribuição anual de prêmios no Colégio<br />
São Luís, o menino <strong>Plinio</strong> recebia<br />
quatro medalhas de ouro: pelo primeiro lugar<br />
em Comportamento e Aplicação, Religião, Francês<br />
e Inglês; além disso, menção honrosa em Português<br />
e em Latim. No dia seguinte ele faria 12<br />
anos de idade.<br />
Essa data de tanta alegria foi marcada por uma<br />
tragédia que o levou a profundas reflexões e o<br />
fez crescer em virtude.<br />
Décadas depois, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> recordaria como,<br />
naquela ocasião, encontrava-se na luta comum<br />
da adolescência para proteger sua castidade, e um<br />
dos pensamentos que mais o ajudavam era o de<br />
que, se não lutasse, seu destino poderia ser o Inferno.<br />
O triste fato que se passou mostrou-lhe de<br />
maneira muito viva esse perigo. Ouçamo-lo narrar:<br />
“Eu estava no jardim, quando vi mamãe descer<br />
as escadas e dirigir-se para mim com olhar de<br />
piedade, com mostras de querer agradar-me especialmente.<br />
Disse-me com muita pena:<br />
— Meu filho, você vai passar por uma situação<br />
que ainda não conhece. Lembra-se do Carlos<br />
Eduardo? (Era um colega de colégio e amigo.)<br />
Ele está mal à morte.<br />
— Mas o que lhe aconteceu?<br />
— Estava brincando com uns primos. Um deles<br />
brigou com ele e furou-lhe um olho com uma tesourinha.<br />
A ferida produziu uma infecção horrível,<br />
e os médicos dão-no como perdido. Esta é a<br />
primeira vez que morre uma pessoa de um círculo<br />
de relação mais próxima de você. É preciso que<br />
se prepare para isso.<br />
Embora ela me falasse com muita bondade,<br />
senti a proximidade da morte. E me veio esta<br />
idéia: ‘E você? A qualquer hora pode também<br />
levar uma tesourada em cada olho. O que lhe<br />
acontecerá? Ô, ô, ô... morrer?!... e ir parar no terrível<br />
Inferno dos poltrões... Para evitar essa desgraça<br />
irremediável, tenho de carregar a imensidade<br />
da minha fraqueza, dobrar-me, ser forte,<br />
lutar, ser um herói... Contudo, forças, eu não tenho.<br />
A saída é recorrer a Nossa Senhora’.”<br />
O jovem <strong>Plinio</strong> e<br />
alguns dos<br />
prêmios que<br />
ganhou no<br />
Colégio São Luís<br />
5
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
GLÓRIA A DEUS<br />
NO CÉU,<br />
EPAZNA<br />
TERRA AOS<br />
HOMENS<br />
DE BOA<br />
VONTADE<br />
A<br />
s reflexões sobre<br />
o Natal escritas<br />
em 1936<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> parecem<br />
feitas, de algum modo,<br />
mais para os dias de hoje<br />
do que para aquela<br />
época, tanto no tocante<br />
às nuvens negras que<br />
toldam o quadro dos<br />
acontecimentos, quanto<br />
aos raios de esperança<br />
que o perpassam.<br />
“O Nascimento de Jesus”, por Petrus Christus<br />
6
Enquanto os Anjos de nossos piedosos presépios<br />
ostentam dísticos em que se lê: “Glória a Deus<br />
nos Céus, e paz na terra aos homens de boa<br />
vontade”, a imprensa diária está cheia de notícias terríveis<br />
que destoam tristemente da promessa angélica. [...]<br />
Por toda parte só encontramos ódio, rancor, perseguição.<br />
E, no entanto, cumpre que não desanimemos. Não seríamos<br />
dignos da graça inestimável do Batismo que recebemos,<br />
se permitíssemos que o pânico se apoderasse de<br />
nós. Nem na ordem natural, nem na ordem sobrenatural,<br />
há motivos que justifiquem a inércia e o pessimismo.<br />
Cristo, como único Salvador do mundo:<br />
lição do Natal<br />
O que a Igreja espera, hoje em dia, de seus filhos, é a<br />
realização de uma tarefa ao mesmo tempo muito grande<br />
e muito simples. Ela quer que todos os católicos (os católicos<br />
dignos deste nome, e não a turbamulta dos pagãos<br />
que usam rótulo católico), com uma persuasão vigorosa e<br />
magnífica, se ergam no tumulto do mundo contemporâneo,<br />
proclamando o cristianismo como seu único Salvador.<br />
Único, dissemos. E insistimos sobre esta palavra.<br />
Erraria crassamente quem supusesse que o Cristo só veio<br />
salvar a humanidade de seu tempo. Em todos os tempos,<br />
em todos os países, para todos os povos, em todos os perigos,<br />
em todas as dificuldades, apesar de todos os pecados,<br />
Cristo é o ÚNICO Salvador.<br />
[Alguns países] pensam que podem atingir a prosperidade<br />
e a paz, por meio de pequenas receitas políticas em<br />
que misturam, em doses variáveis, a autoridade e a liberdade.<br />
Loucura e ilusão. Se eles não aceitarem as normas<br />
sociais e morais da Igreja, se não derem ao catolicismo a<br />
influência preponderante a que tem direito, não escaparão<br />
à ruína. De reforma em reforma, rolarão para o abismo.<br />
[Outros países] pensam que o braço vigoroso de um<br />
ditador lhes pode restituir a felicidade. Loucura, ainda, e<br />
ilusão. Porque o maior homem do mundo, dotado da mais<br />
lúcida inteligência, da mais alta moralidade, da mais vigorosa<br />
energia, do mais formidável poder, não conseguiria<br />
organizar convenientemente um povo que vivesse entregue<br />
à anarquia intelectual e efetiva que, fora da Igreja,<br />
é inevitável. Um povo é um conjunto de homens. Um<br />
povo disciplinado não pode ser composto de homens anarquizados<br />
no mais íntimo do seu ser, como um copo de água<br />
pura não pode constar de um conjunto de gotas de água<br />
impuras.<br />
Cristo como base da civilização, e as formas do governo<br />
como aspectos secundários e acidentais da vida de um<br />
povo, eis aí uma das grandes lições do Natal.<br />
Trabalhar, lutar, sofrer e rezar pela Igreja<br />
Mas, dirá alguém, Cristo é um Salvador ausente. Eternamente<br />
mudo, atrás da cortina de nuvens que o escondem<br />
no Céu. Ele não se mostra à humanidade aflita. E<br />
esta então corre à busca de outros pastores.<br />
É horrível dizê-lo, mas há entre católicos quem fale<br />
assim. Há ainda quem não ouse falar, mas pense assim. E<br />
há quem não ouse pensar, mas sinta assim! Daí o existirem<br />
católicos que têm mais esperança na ação da política<br />
do que na ação do Cristo.<br />
Ah! São esses os corações que recebem a visita eucarística<br />
do Cristo, mas não recebem o seu Espírito: in propria<br />
venit, et sui eum non receperunt (veio para que era seu,<br />
e os seus não o receberam).<br />
Ah! São esses os corações que ouvem a palavra do Cristo,<br />
vinda do Vaticano, e não conhecem na voz do Papa o<br />
timbre da voz de Deus. A palavra do Papa ecoa no mundo,<br />
e o mundo não a conhece: lux in tenebris lucet, et tenebrae<br />
eam non conprehenderunt (a luz brilha nas trevas, e as<br />
trevas não a envolveram).<br />
Cristo, para o bom católico, não está ausente. Na Eucaristia,<br />
Ele está tão realmente quanto esteve na Judéia.<br />
E do Vaticano fala tão verdadeiramente quanto falou ao<br />
povo de Israel. A Igreja é tão seguramente guiada por Cristo<br />
em 1936, quanto o eram os Apóstolos, antes da Ascensão.<br />
O que Cristo quer fazer, fá-lo por meio da Igreja. O que<br />
Cristo quer dizer, di-lo por meio do Papa. Logo, a Igreja<br />
em certo sentido é onipotente e onisciente porque é instrumento<br />
da onipotência e porta-voz da onisciência de<br />
Deus.<br />
Se Cristo é o Salvador único, a Salvação virá da Igreja.<br />
Trabalhar, lutar, sofrer, rezar, imolar-se ou sacrificarse<br />
alegremente pela Igreja, deve ser o fruto desta meditação<br />
de Natal. Porque todas as causas e todos os ideais<br />
devem vir depois da suprema Causa e do supremo ideal<br />
da Igreja.<br />
GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS, E PAZ NA<br />
TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE.<br />
(Excertos, com ligeiras adaptações, de artigo do<br />
Legionário nº 224, de 27/12/1936. Subtítulos nossos.)<br />
7
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A grande utopia<br />
E<br />
m todos os séculos houve gente<br />
que sonhou com um mundo no<br />
qual um dia todos se amarão, algo<br />
na linha da fábula de La Fontaine sobre<br />
a paz firmada entre os lobos e as ovelhas.<br />
Citando São Luís Maria Grignion de<br />
Montfort, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostra a vacuidade<br />
dessa esperança.<br />
Não<br />
N<br />
é deste mundo a concórdia<br />
sem jaça, a paz perfeita<br />
e eterna entre todos os<br />
homens, todas as nações e todas as<br />
doutrinas, a felicidade total. Nesta<br />
terra de exílio, as carências, as dissensões,<br />
as catástrofes são inevitáveis. E<br />
uma visão cristã da vida leva, ao mesmo<br />
tempo, a circunscrevê-las quanto<br />
possível e a resignar-se a elas porque<br />
inevitáveis.<br />
Divisão inexorável<br />
Esta dura lição, tão ingrata ao neopaganismo<br />
de nossos dias, lembro-a<br />
num texto áureo de São Luís Maria<br />
Grignion de Montfort, o incomparável<br />
apóstolo da devoção a Nossa Senhora.<br />
Dissertando sobre a eterna luta<br />
entre a Virgem e a serpente, mostranos<br />
ele a vida dos povos antes de tudo<br />
como uma grandiosa, trágica e incessante<br />
guerra entre a verdade e o<br />
erro, o bem e o mal, o belo e o feio.<br />
Batalha esta sem a qual a existência<br />
terrena do homem, desfalcada do seu<br />
significado sobrenatural, perderia sua<br />
dignidade.<br />
Comentando as palavras do Gênesis<br />
(3, 15) — “porei inimizades entre<br />
ti e a mulher e entre a tua posteridade<br />
e a posteridade dela” — observa<br />
com profundidade o grande santo:<br />
“Uma única inimizade Deus promoveu<br />
e estabeleceu, inimizade irreconciliável,<br />
que não só há de durar,<br />
mas aumentar até o fim: a inimizade<br />
entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio;<br />
entre os filhos e servos da Santíssima<br />
Virgem e os filhos e sequazes<br />
de Lúcifer; de modo que Maria é a<br />
mais terrível inimiga que Deus armou<br />
contra o demônio” (Tratado da Verdadeira<br />
Devoção à Santíssima Virgem,<br />
Vozes, Petrópolis, 6ª edição, 1961,<br />
pp. 54- 55).<br />
E ele passa em seguida a descrever<br />
a grande guerra que divide os homens<br />
inexoravelmente, até o fim da<br />
8
Evocando a eterna luta entre a Virgem<br />
e a serpente, São Luís Grignion de<br />
Montfort (acima) aponta a vida dos povos<br />
como uma grandiosa, trágica<br />
e incessante guerra entre a verdade<br />
e o erro, o bem e o mal, o belo e o feio.<br />
(Ao lado, Nossa Senhora do Apocalipse)<br />
História. Tal guerra não é senão um<br />
prolongamento da oposição entre a<br />
Virgem e a serpente, entre a progenitura<br />
espiritual daquela e a progenitura<br />
espiritual desta: “(Deus) lhe deu<br />
até, desde o Paraíso, tanto ódio a esse<br />
amaldiçoado inimigo, tanta clarividência<br />
para descobrir a malícia dessa velha<br />
serpente, tanta força para vencer,<br />
esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso,<br />
que o temor que Maria inspira ao<br />
demônio é maior que o que lhe inspiram<br />
todos os anjos e homens, e, em certo<br />
sentido, o próprio Deus” (op. cit., p. 55).<br />
Dentro deste quadro, a “clemente,<br />
piedosa, doce Virgem Maria” que<br />
o Doutor Melífluo, São Bernardo,<br />
cantou com tal suavidade na “Salve<br />
Regina”, nos é apresentada por São<br />
Luís Grignion como uma verdadeira<br />
torre de combate (Turris Davidica,<br />
exclama a Ladainha Lauretana).<br />
9
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Maria será sempre vitoriosa<br />
Ao longo da História, até o fim do<br />
mundo, os filhos de Nossa Senhora<br />
batalharão contra os filhos de Satã.<br />
E a vitória final será dos primeiros,<br />
pela interferência da Mãe de Deus:<br />
“Deus não pôs somente inimizade,<br />
mas inimizades, e não somente entre<br />
Maria e o demônio, mas também entre<br />
a posteridade da Santíssima Virgem<br />
e a posteridade do demônio. Quer dizer,<br />
Deus estabeleceu inimizades, antipatias<br />
e ódios secretos entre os verdadeiros<br />
filhos e servos da Santíssima Virgem<br />
e os filhos e escravos do demônio.<br />
Não há entre eles a menor sombra de<br />
amor, nem correspondência íntima existe<br />
entre uns e outros. Os filhos de Belial,<br />
os escravos de Satã, os amigos do<br />
mundo (pois é a mesma coisa) sempre<br />
perseguiram até hoje e perseguirão no<br />
futuro aqueles que pertencem à Santíssima<br />
Virgem, como outrora Caim perseguiu<br />
seu irmão Abel, e Esaú seu irmão<br />
Jacob, figurando os réprobos e os<br />
predestinados. Mas a humilde Maria<br />
será sempre vitoriosa na luta contra<br />
este orgulhoso, e tão grande será a vitória<br />
final que Ela chegará ao ponto de<br />
esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o<br />
orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia<br />
de serpente, desvendará suas tramas<br />
infernais, desfará seus conselhos<br />
diabólicos, e até o fim dos tempos garantirá<br />
seus fiéis servidores contra as garras<br />
de tão cruel inimigo” (op. cit., pp. 56-<br />
<strong>57</strong>).<br />
Bem entendido, nossos dias também<br />
têm sido sacudidos por esse entrechoque<br />
terrível, que não se confunde<br />
necessariamente com as guerras<br />
do século, mas tem alguma relação<br />
com elas. E sobretudo tem uma<br />
relação óbvia com as incontáveis revoluções<br />
que têm abalado o Ocidente,<br />
como fora predito por Nossa Senhora<br />
em Fátima.<br />
Utopia, ilusão e mentira<br />
A supressão dessa luta por uma reconciliação<br />
entre a raça da Virgem e<br />
a raça da serpente, rumo a uma era na<br />
qual a cessação utópica do entrechoque<br />
acarrete uma composição entre<br />
todos os direitos, todos os interesses,<br />
uma interpenetração de todas as línguas<br />
sob um governo universal que<br />
será tão-só fartura e despreocupação<br />
— eis a grande utopia contra a qual<br />
as massas se devem precaver. Eis o<br />
regresso (ou antes, o retrocesso) à<br />
orgulhosa Torre de Babel, que de todos<br />
os modos o neopaganismo procura<br />
reerguer. Eis a bandeira toda tecida<br />
de ilusão e de mentira com que, em<br />
todas as épocas, os demagogos procuram<br />
arrastar as massas insurrectas.<br />
(Transcrito do jornal<br />
“Última Hora”, Rio de Janeiro,<br />
6/3/1981. Título e subtítulos nossos.)<br />
Pretender<br />
uma utópica<br />
reconciliação<br />
entre o bem e o<br />
mal, que resulte<br />
na composição de<br />
todos os interesses,<br />
direitos e línguas<br />
sob um governo<br />
universal, onde<br />
só reinem a<br />
fartura e a<br />
despreocupação<br />
— eis o retrocesso<br />
à orgulhosa<br />
Torre de Babel...<br />
10
DONA LUCILIA<br />
Dias marcados<br />
pelas saudades<br />
Dona Lucilia no<br />
fim da década de<br />
1940; ao fundo,<br />
um dos salões<br />
de sua casa<br />
Tendo partido para a Europa<br />
às vésperas do aniversário de<br />
sua querida mãe, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
via aproximar-se o dia 22 de abril,<br />
pensando em como ela celebraria essa<br />
data tão cara aos dois. Mais um<br />
ano de Da. Lucilia ficará para trás.<br />
Na estabilidade das boas disposições<br />
e equilíbrio dela, sentia ele um sustentáculo<br />
àquela determinação de fidelidade<br />
ao bem, que tomara desde<br />
sua adolescência, no Colégio São Luís.<br />
Por seu lado, com o correr do tempo,<br />
cada vez mais Dª Lucilia ia assumin-<br />
11
DONA LUCILIA<br />
do a fisionomia bondosa, doce, afável<br />
e sofredora, mas firme, definida e categórica,<br />
facilmente discernível em<br />
suas derradeiras fotografias.<br />
Cartas afetuosas e<br />
muitas flores<br />
Logo na manhã daquele 22 de abril<br />
um telegrama chega a seu apartamento:<br />
BARCELONA – 22.04.50<br />
MILHÕES BEIJOS AFETUOSÍS-<br />
SIMOS<br />
PLINIO<br />
<strong>Dr</strong>. João Paulo à mesma hora entregou<br />
a segunda carta deixada por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, acompanhada de um belíssimo<br />
bouquet de flores. Dessa forma,<br />
ao iniciar seu dia, ela já recebia<br />
manifestações de amor e veneração<br />
de seu filho, tal como se ele não estivesse<br />
ausente. À vista do carinhoso<br />
gesto, seu coração se comoveu e não<br />
conseguiu conter as lágrimas, só que,<br />
desta vez, de puro contentamento,<br />
enquanto lia estas expressivas linhas:<br />
13 de Abril 22-IV¹<br />
Meu amorzinho querido.<br />
Quis que, logo ao acordar, minhas<br />
felicitações fossem as primeiras, com<br />
as de Papai. Mil beijos, mil abraços, carinho<br />
sem fim, um oceano de saudades.<br />
Poucas vezes fiz um sacrifício tão<br />
grande quanto o de marcar viagem nas<br />
vésperas de seu aniversário, que eu gostaria<br />
imensamente de passar com a Senhora.<br />
Mas, meu bem, foi indispensável<br />
organizar as coisas assim. A ida foi antecipada:<br />
se-lo-á implicitamente a volta.<br />
Hoje, comungarei pela Senhora, e<br />
pensarei na Senhora o dia todo.... o que<br />
aliás farei nos outros dias também!<br />
As flores da casa são todas compradas<br />
por mim.<br />
Mil felicidades, querida. Que Nossa<br />
Senhora dê tudo à Senhora.<br />
Pede sua bênção com um afeto e<br />
um respeito sem conta o seu taludíssimo<br />
e esporudíssimo ex-Pimbinche<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Alguns dias depois, ainda a propósito<br />
de seu aniversário, Dª Lucilia<br />
recebeu mais uma carta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
escrita já da Espanha e datada<br />
de 21 de abril, na qual ele manifestava<br />
o quanto lhe doía não poder estar<br />
em São Paulo no dia seguinte.<br />
Recorramos uma vez mais às cartas<br />
enviadas por <strong>Dr</strong>. João Paulo a seu<br />
filho, a fim de saber como transcorreu<br />
para Dª Lucilia esse dia.<br />
Aqui chegou no dia 22, cedo, teu<br />
telegrama de Barcelona. E logo mais,<br />
o do Adolpho. Lucilia se comoveu muito,<br />
não só com o telegrama, como com<br />
a carta que aqui ficou para lhe ser entregue<br />
naquele dia: derramou o pote<br />
após exclamações de ternura e saudade<br />
e mergulhou fundo na reza depois.<br />
Tudo correu bem no aniversário dela:<br />
tivemos um bom jantar, florida a<br />
mesa com uns magníficos cravos vermelhos;<br />
a sala de visitas teve umas lindas<br />
flores, compradas com os cem que<br />
para isso deixaste...<br />
Tendo sido aquele dia tomado por<br />
visitas, às quais, por sua inalterável<br />
benevolência, Dª Lucilia ia receber<br />
com os já conhecidos requintes de<br />
boa-acolhida, só pôde responder a seu<br />
filho na manhã seguinte. Fê-lo com<br />
palavras repassadas de ardente amor<br />
a Deus:<br />
São Paulo, 23-04-50<br />
Filho querido de meu coração!<br />
De todo o coração, de toda a minha<br />
alma, agradeço-te a carta tão afetuosa<br />
que me deixaste, e que tanto conforto<br />
me trouxe, e mais as lindas, “belíssimas<br />
mesmo” palmas brancas, rubras, amarelas<br />
e lilases, que Zili enviou-me pela<br />
manhã. Chorei é verdade, mas, “graças<br />
a Deus”, foi de felicidade por ter recebido<br />
eu, tão indigna, “liberal”, a imensa<br />
dádiva dos Sagrados Corações de Jesus<br />
e Maria Santíssima, de um filho tão<br />
santo, tão bom e carinhoso, que abençôo<br />
de todas as veras de minha alma,<br />
por quem peço toda a proteção Divi-<br />
12
na, e a Luz do Divino Espírito Santo.<br />
Destas palmas, levei duas para a capela<br />
do “sexto andar”, uma para tua imagem<br />
do Imaculado Coração de Maria<br />
em teu quarto, onde, como de costume<br />
rezei por ti, e duas outras para a imagem<br />
do Sagrado Coração de Jesus, no<br />
salão (e o resto, muitas, na jarra do imperador).<br />
Preciso dizer-te as saudades e a falta<br />
que me fizeste? Pois bem, com menos<br />
intensidade, era o que todos sentiam.<br />
(...) Fui hoje ouvir missa e comungar<br />
por ti na “minha” igreja do Sagrado Coração<br />
de Jesus, onde encomendei uma<br />
missa por tua intenção, e bom êxito em<br />
teus empreendimentos. Estou ansiosa<br />
por receber uma carta tua, trazendo-me<br />
tuas impressões do lugar. As primeiras,<br />
geralmente não são favoráveis; mas depois<br />
aos poucos, já ambientado, aprecia-se<br />
muito mais. Escreva-me sempre;<br />
sim? Vê se encomenda a missa para<br />
Nª Srª da Begoña por intenção de<br />
Rosée; sim?<br />
Com muitas saudades, “espiritualmente”<br />
faço-te uma cruzinha na testa,<br />
e... cubro-a de beijos e bênçãos. Um longo<br />
e saudoso abraço, Pimbinchen querido,<br />
de tua “manguinha” afetuosa,<br />
Lucilia<br />
Algumas impressões de<br />
viagem<br />
Finalmente, por volta de 25 de<br />
Abril, Dª Lucilia recebeu a primeira<br />
carta de seu filho com as tão ansiadas<br />
notícias e impressões de viagem.<br />
Estaria ela com certeza curiosa de<br />
saber qual a reação de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />
terra de El Cid Campeador. No entanto,<br />
sendo o povo espanhol de psicologia<br />
tão diferente da brasileira, já<br />
previa que seu filho podia sentir não<br />
pequena estranheza. Daí precavê-lo,<br />
na carta anterior, para não se deixar<br />
Na manhã do dia 22 de abril,<br />
Dona Lucilia teve a grata surpresa de receber a<br />
carta deixada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
e as muitas flores que ele encomendou para<br />
ornarem as dependências da casa. Na página<br />
anterior, fac-símile dessa carta;<br />
ao lado e acima, aspectos do apartamento florido.<br />
13
DONA LUCILIA<br />
levar pelas primeiras impressões, as<br />
quais “geralmente não são favoráveis”,<br />
mas procurasse logo se ambientar e<br />
desse modo tirar todo o proveito da<br />
viagem.<br />
Devido à formação recebida de Dª<br />
Lucilia, desde o início <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> apreciou,<br />
acima de tudo, a catolicidade<br />
militante daquele heróico povo, que<br />
empreendera, havia pouco tempo,<br />
vitoriosa cruzada contra o comunismo.<br />
Era essa virtuosa combatividade<br />
a nota mais saliente nos belos monumentos<br />
por ele visitados em companhia<br />
de cultos e vivazes amigos espanhóis,<br />
empenhados no simpático afã<br />
de lhe fazer conhecer as principais<br />
maravilhas do país.<br />
Madrid, 18-IV-50<br />
Mãezinha querida do meu coração,<br />
e querido Papai.<br />
Escrevo-lhes depois de três dias de<br />
intensas viagens, isto é, 24 horas de<br />
avião, um dia de visitas em Madrid, e<br />
um dia de Escorial. Faço-o com enormes<br />
saudades. É meia noite, hora de<br />
uma ultima conversa com minha gente<br />
do 6º andar no Fasano, e poucos<br />
minutos antes de minha conversa<br />
“tête-à-tête” com a Lú.... Como gostaria<br />
de os ter todos comigo aqui!<br />
A viagem aérea foi boa. Cerca de<br />
24hs. tocamos em Recife: aeroporto<br />
bem arranjado e calor tremendo. A cidade<br />
se percebia bem em todos os seus<br />
contornos graças à iluminação: é bem<br />
grande. Dormimos passavelmente e no<br />
dia seguinte voamos sobre o Saara, que<br />
pudemos ver muito bem e por muito<br />
tempo. O dia ainda era claro quando<br />
sobrevoamos Gibraltar, vendo bem o<br />
forte. Chegamos a Madrid entre 21 e<br />
22 horas. (...)<br />
Nosso hotel é razoavel. Encontrei<br />
logo à chegada o Cel. Barrera (filho do<br />
Marquês de Valdegamas e Conde de<br />
Miraflores) que estava à minha espera<br />
há dois dias. [Estava] com seu cunhado<br />
Olague (historiador prodigiosamente<br />
culto e inteligente, e que parece muito<br />
influente aqui). Visitei o Prado com<br />
eles. Os Murillos,<br />
Velasquez,<br />
Ticianos, Flamengos,<br />
Goyas,<br />
pululam por lá.<br />
A riqueza do Museu<br />
é indescritível.<br />
Quanto à beleza<br />
dos quadros é supérfluo<br />
dizer algo.<br />
Depois fomos à casa<br />
de Lope de Vega<br />
onde o Olague nos<br />
apresentou à Embaixatriz<br />
(notável) da França, em cuja<br />
companhia a visitamos.<br />
Hoje pela manhã, Barrera! Depois,<br />
Olague, para um passeio ao Escorial.<br />
Este – como as outras coisas que tenho<br />
visto aqui — não é descritível em<br />
palavras. Rezei junto à sepultura de<br />
Filipe II, à cama em que expirou, e à<br />
sepultura de Dom João d’Áustria, a um<br />
enorme autografo de Santa Teresa, e ao<br />
tinteiro em que ela escreveu.<br />
Amanhã, se Deus quiser, continuarão<br />
as visitas.<br />
E a Lú? Tem dormido bem? Tem<br />
dormido à hora? Tem tido energia em<br />
matéria de saudades? Tem tomado<br />
muita água Prata? Tem tomado muito<br />
taxi?<br />
E Papai? Tem tido muito trabalho<br />
com o escritório? Tem comido muito<br />
coco?<br />
Para os do 6º andar, todos os abraços<br />
possíveis.<br />
Para Papai, com abraços muito afetuosos,<br />
inúmeras saudades.<br />
E para a Senhora, minha Mãezinha,<br />
o quê? Tudo quanto pode haver neste<br />
mundo em matéria de abraços, beijos,<br />
carinho, respeito, saudades, afecto; e<br />
abençoe o seu filhão.<br />
<strong>Plinio</strong><br />
“Quantas saudades,<br />
quantas saudades...”<br />
No dia 3 de maio, um dos amigos<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> partia rumo a Paris. Embora<br />
levasse uma carta escrita poucos<br />
dias antes por Dª Lucilia, as muitas<br />
saudades dela fizeram-na escrever<br />
outra, de última hora. Por estas linhas,<br />
vê-se novamente como o que mais<br />
almejava para seu filho era um acréscimo<br />
em graça, e com empenho o<br />
pedia a Deus.<br />
Não perde a ocasião para dar pequenos<br />
conselhos ao seu “taludíssimo<br />
ex- Pimbinchen”, e encerra a missiva<br />
com mais uma tocante mostra<br />
do quanto a virtude da gratidão era<br />
sólida em sua alma:<br />
S. Paulo, 3-5-1950.<br />
Meu filho tão querido!<br />
Quantas saudades, quantas saudades.<br />
Permita Deus, que te encontres muito<br />
bem de saúde e de espírito, cada vez<br />
mais entusiasmado, curioso, e com<br />
acréscimo de fé, graças, que, como bom<br />
filho, tanto mereces. Dize a teus caros<br />
companheiros e amigos, que todos estes<br />
votos faço extensivos a eles.<br />
Fui hoje, às oito e meia, ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, onde comunguei e<br />
assisti a uma missa que havia encomendado<br />
pela tua felicidade e da de<br />
teus empreendimentos.<br />
Penso que, “uma vez, ao menos,<br />
para conhecer”, vocês deveriam ir aos<br />
teatros da “Opéra”, “Comédie Française”,<br />
e ao “Odeon”.<br />
14
Escreve-me sempre; sim? Recomenda-me<br />
ao “grupo”.<br />
Ia me esquecendo de falar-te em<br />
José Gustavo. Yayá e Dora fizeram-me<br />
ver a falta que faz no salão do “sexto”,<br />
um bom retrato (maior) de José Gustavo,<br />
com o que concordo plenamente.<br />
Lembrem-se e contentem-se com as<br />
dádivas em São Sebastião, e o bom<br />
aluguel do sexto que o Antoni fez, e<br />
quanto lhe seria grato ver lá um bom<br />
retrato do filho! Concorde comigo; sim?<br />
eu te peço!<br />
Terminando, peço-te também orações<br />
em Fátima, Lourdes e Stª. Catharina.<br />
Saudosa, abraço-te e beijo-te muito<br />
e muito!<br />
Abençoa-te, tua mãe extremosa,<br />
Lucilia<br />
(Transcrito, com adaptações, da obra<br />
“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)<br />
1) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> colocou as duas datas na<br />
carta. A primeira era do dia em que a<br />
escreveu.<br />
No dia 25 de abril Dona Lucilia<br />
recebia uma carta de seu filho,<br />
contando-lhe as primeiras<br />
impressões da viagem,<br />
especialmente as da visita ao<br />
Escorial (acima), onde ele rezou<br />
junto à sepultura de Felipe II (no<br />
detalhe). Ao lado, L’Ópera, de<br />
Paris. Na página anterior, facsímile<br />
da carta de Dona Lucilia<br />
reproduzida acima.<br />
15
DR. PLINIO COMENTA...<br />
UMA MEDITAÇÃO PARA O<br />
HOMEM DE HOJE<br />
N<br />
uma conferência para jovens, no tempo de Natal, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez duas<br />
meditações, de tipos diferentes, a fim de verificar qual delas mais tocava<br />
o coração de seus ouvintes. A primeira, seguindo o método de<br />
Santo Inácio de Loyola, com pouco apelo ao sentimento. Improvisou em seguida<br />
a outra, com pensamentos formulados mais de acordo com as novas gerações.<br />
Transcrevemos aqui o cerne da segunda meditação.<br />
Detalhe da “Adoração dos Reis Magos”, de Gentile da Fabriano<br />
16
Abordo agora o tema por um prisma inteiramente<br />
diferente do da escola de Santo Inácio<br />
de Loyola. Isso servirá para verificar que tipo<br />
de meditação mais toca a geração dos que estão aqui.<br />
Fundo de quadro<br />
Imaginem-se vendo chegar os Reis Magos com suas<br />
caravanas, os animais carregados de tesouros, a estrela,<br />
etc., e esses Reis oferecendo ao Menino Jesus, em atitude<br />
de adoração, ouro, incenso e mirra.<br />
Retendo na imaginação tal fundo de quadro, qual das<br />
cenas que vou descrever causaria a cada um dos que aqui<br />
estão mais alegria de alma? Por qual delas sentir-se-iam<br />
mais próximos do Menino Jesus?<br />
N’Ele poderíamos considerar, entre outros aspectos, a<br />
infinita grandeza, de um lado; a infinita acessibilidade,<br />
de outro lado; e também sua infinita compaixão.<br />
Grandeza do Menino Jesus e de Nossa<br />
Senhora<br />
Ao considerar a infinita grandeza, podemos imaginar<br />
uma gruta alta, grande quase como uma catedral, que<br />
não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas<br />
onde o movimento das pedras nos fizesse pressentir vagamente<br />
as ogivas de uma catedral da futura Idade Média.<br />
Podemos imaginar ainda a lapa onde ficava o berço<br />
do Menino colocada num ponto majestoso da encruzilhada<br />
dessas várias naves laterais naturais, com uma luz<br />
celeste, toda de ouro, pairando sobre Ele naquele momento.<br />
O Menino Jesus, com majestade de verdadeiro rei, embora<br />
deitado em seu presépio e sendo ainda uma criança.<br />
Ele, rei de toda majestade e de toda glória. O criador do<br />
Céu e da terra, Deus encarnado feito homem. Ele, desde<br />
o primeiro instante de seu ser — portanto já no claustro<br />
materno de Nossa Senhora —, tendo mais majestade,<br />
mais grandeza, mais manifestações de força e de poder<br />
que todos os homens que existiram e existirão na terra.<br />
Ele, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás<br />
de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão<br />
ou Alexandre. Ele, conhecedor de todas as coisas,<br />
sabendo incomparavelmente mais do que qualquer cientista<br />
moderno. Ele, manifestando na fisionomia sempre<br />
variável essa majestade feita de sabedoria, de santidade,<br />
de ciência e de poder.<br />
Imaginem-se, portanto, encontrando isso misteriosamente<br />
expresso na fisionomia desse Menino. Ele às vezes<br />
movendo-se, e no movimento aparecendo o seu lado de<br />
Rei. Abrindo os olhos, e no olhar aparecendo um fulgor<br />
de tal profundidade que fizesse ver n’Ele um grande sábio.<br />
Estando rodeado por uma atmosfera tal que nimbasse<br />
de santidade todos os que d’Ele se acercassem. Uma<br />
atmosfera de pureza tal que as pessoas não se aproximassem<br />
sem antes pedir perdão por seus pecados, mas<br />
ao mesmo tempo se sentissem atraídas a se corrigirem,<br />
pela santidade que emanava do local.<br />
Imaginem ali, ainda, Nossa Senhora aos pés do Menino<br />
Jesus, também Ela como verdadeira Rainha, com uma<br />
dignidade e imponência tais, que não precisava nem de<br />
roupas nobres nem de tecidos de qualidade para se fazer<br />
valer.<br />
Conta-se de Santa Teresinha que ela era tão imponente,<br />
que o pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro<br />
do carmelo contou, no processo de canonização,<br />
que viu certa vez uma freira, de costas, fazer alguma coisa,<br />
e essa freira era Santa Teresinha. O “advogado do diabo”<br />
então perguntou: “Como é que, vendo-a de costas, o<br />
senhor sabia que ela era Santa Teresinha?” Ele respondeu:<br />
“Pela majestade dela. Ninguém tinha a mesma majestade”.<br />
Se assim foi Santa Teresinha, o que seria Nossa Senhora?<br />
Imaginem, portanto, Nossa Senhora majestosíssima,<br />
transcendente, puríssima, rezando ao Menino Jesus. E os<br />
anjos, invisíveis, cantando hinos de glorificação, com toda<br />
a atmosfera reinante saturada de valores tais que se diria<br />
haver naquela pobreza e naquela miséria uma atmosfera<br />
de corte.<br />
Imaginem-se aproximando e sentindo a grandeza do<br />
Menino-Deus, e adorando-O pelos seus aspectos nobres,<br />
belos, santos, intransigentes e combativos. Adorando esse<br />
Menino que atrai para junto de si todas as formas de<br />
grandeza, todas as formas de pureza, todas as formas de<br />
santidade que d’Ele dimanam, e que não são senão participação<br />
da santidade d’Ele; e que, ao mesmo tempo,<br />
rechaçando para longe de si o pecado, o erro, a desordem,<br />
o caos, a Revolução¹, deixa-os no chão, de longe, sem<br />
nem sequer ousar levantar os olhos para aquela cena magnífica<br />
em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor<br />
dominam completamente.<br />
Enorme acessibilidade<br />
Imaginemos, agora, o Menino Jesus imensamente acessível.<br />
Esse Rei tão cheio de majestade em certo momento<br />
abre para nós os olhos. Notamos que seu olhar puríssimo,<br />
inteligentíssimo, lucidíssimo, penetra em nossos olhos<br />
até o mais fundo. Vê o mais fundo de nossos defeitos, como<br />
também o melhor de nossas qualidades, e toca nesse<br />
17
DR. PLINIO COMENTA...<br />
momento a nossa alma, como tocou, 33 anos depois, a de<br />
São Pedro.<br />
Conta-nos o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor<br />
para São Pedro foi tal que este saiu e chorou amargamente.<br />
Chorou a vida inteira.<br />
E esse olhar provoca em nós uma tristeza profunda<br />
por nossos pecados. Dá-nos horror aos nossos defeitos.<br />
Mas também, penetrando em nós, mostra-nos seu amor<br />
não só às nossas qualidades, mas também à condição de<br />
criaturas feitas por Ele. Um amor a nós, apesar de nossos<br />
defeitos, por sermos destinados a um grau de santidade e<br />
de perfeição que Ele conhece e ama enquanto podendo<br />
existir em nós.<br />
E, quando o pecador menos espera, por um rogo amável<br />
de Nossa Senhora, o Menino sorri. E com esse sorriso,<br />
apesar de toda a sua majestade, sentimos as distâncias<br />
desaparecerem, o perdão invadir nossa alma, uma<br />
qualquer coisa nos atrair. E, assim atraídos, caminhamos<br />
para junto d’Ele. Ele afetuosamente nos abraça e pronuncia<br />
nosso nome.<br />
— Fulano! Eu te quis tanto e te quero tanto! Desejo<br />
para ti tantas coisas e perdôo-te tantas outras. Não penses<br />
mais nos teus pecados! Pensa apenas, daqui por diante,<br />
em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida,<br />
quando tiveres alguma dúvida, lembra-te desta condescendência,<br />
desta amabilidade, deste beneplácito que agora<br />
te faço, e recorre a Mim por meio de minha Mãe, que<br />
atender-te-ei. Serei teu amparo e tua força, e esse amparo<br />
e essa força hão de te levar ao Céu para ali reinar ao<br />
meu lado por toda a Eternidade.<br />
Essa seria, portanto, a meditação enfocada pelo prisma<br />
da acessibilidade do Menino Jesus.<br />
Imaginem, agora, a misericórdia do Menino Jesus,<br />
não só enquanto visando ao nosso bem e ao que há em<br />
nós de bom e de mau, mas olhando para a condição miserável<br />
de todo homem na terra. Olhando, portanto, para<br />
nossa tristeza, para o sofrimento que cada um traz em si,<br />
passado, presente e futuro, que Ele já conhece porque é<br />
Deus. Olhando, inclusive, para o risco que nossa alma<br />
corre de ir para o Inferno. Pois o homem, enquanto está<br />
na terra, arrisca-se a se condenar.<br />
Imaginem, ainda, o Menino Jesus olhando o Purgatório<br />
e os tormentos que ali nos aguardam se não formos<br />
inteiramente fiéis.<br />
Brota n’Ele, então, um olhar de pena, de participação<br />
profunda na nossa dor, um desejo de remover esta dor<br />
em toda a medida que for possível para nossa santificação,<br />
um desejo de nos dar forças para suportar essa<br />
dor na medida em que ela for necessária para nos santificarmos.<br />
Notamos n’Ele, então, aquilo que tanto consola o homem,<br />
e que Ele não encontrou quando chegou sua hora<br />
de sofrer: a compaixão perfeita.<br />
Está na natureza humana — e é uma coisa reta — de<br />
se consolar na hora do sofrimento pelo fato de ter alguém<br />
que nos tenha pena. A pena divide o sofrimento. O<br />
homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre<br />
e comunica sua alegria, ele dobra essa alegria; quando<br />
está triste e comunica sua tristeza, divide essa tristeza.<br />
“A fortiori” somos nós assim em relação ao Menino<br />
Jesus, ao encontrarmos n’Ele a compaixão perfeita.<br />
Ao longo das<br />
vicissitudes da nossa<br />
existência<br />
quotidiana devemos<br />
reter esta tríplice<br />
lembrança: a da<br />
majestade infinita,<br />
Infinita compaixão para com todos os<br />
homens<br />
18
Em todos os sofrimentos de nossa vida, portanto,<br />
quando a taça a beber for muito amarga, devemos repetir<br />
por meio de Nossa Senhora a oração d’Ele: “Meu Pai,<br />
se for possível, afaste-se de mim este cálice; mas faça-se a<br />
vossa vontade e não a minha”. Quer dizer, em todos os<br />
momentos pediríamos que a dor passasse; mas se fosse<br />
da vontade d’Ele que ela viesse sobre nós, teríamos<br />
certeza de que durante a dor encontraríamos a dor compassível<br />
d’Ele: “Meu filho, Eu sofro contigo! Soframos<br />
juntos, porque Eu sofri por ti. Há de chegar o momento<br />
em que tu participarás eternamente de minha alegria”. E<br />
nós podemos ter a certeza de que o olhar compassível de<br />
Jesus não nos abandonará um momento sequer de nossa<br />
existência.<br />
a da acessibilidade<br />
infinita e a da<br />
compaixão sem limites do<br />
Menino Jesus em relação<br />
a nós, pelos rogos de sua<br />
Mãe Santíssima<br />
(pintura de Lochner)<br />
Ao longo das vicissitudes da existência quotidiana deveríamos<br />
reter esta tríplice lembrança: a da majestade infinita,<br />
a da acessibilidade infinita, e a da compaixão sem<br />
limites do Menino Jesus em relação a nós. E esta deveria<br />
ser uma lembrança sensível, pois procuraríamos compor<br />
em nossa imaginação o quadro tal qual ele nos toca.<br />
Uma objeção<br />
Uma objeção que se poderia fazer é que o presépio<br />
não pode conter ao mesmo tempo esses três aspectos.<br />
Não é verdade. Em Nosso Senhor, enquanto natureza<br />
humana, as perfeições, os estados de alma, também todos<br />
eles perfeitos, existiam em graus diversos ao mesmo<br />
tempo, conforme as circunstâncias de sua vida. Existiam,<br />
e Ele foi cheio de majestade, de acessibilidade, de exorabilidade,<br />
de compaixão para com os homens desde o momento<br />
em que veio à terra. É natural que, apesar de<br />
Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora<br />
aparecesse um aspecto, ora outro.<br />
Escola de pintura especializada nos<br />
olhares<br />
Seria muito bonito se numa igreja, em vez de um só,<br />
houvesse três presépios em três altares diferentes, nos<br />
quais as figuras e toda a ambientação representassem cada<br />
um desses aspectos, facilitando assim a cada alma a<br />
meditação que mais lhe tocasse.<br />
Como eu gostaria de ter entre nós pintores ou desenhistas<br />
que soubessem, por exemplo, pintar três presépios<br />
de acordo com essa concepção! Ou seja, presépio ostentando<br />
toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, ou toda<br />
a compaixão de Nosso Senhor. Como Seria bonito!<br />
O difícil seria pintar aquilo que é o centro do presépio:<br />
um Menino recém-nascido que, sem perder as características<br />
de Menino, tivesse tudo isso. E tivesse sobretudo<br />
um olhar. Como pintar um olhar infantil capaz de exprimir<br />
tais coisas? Antes de pintor, esse artista deveria<br />
ser psicólogo, para primeiro imaginar esse olhar, e depois<br />
pintá-lo.<br />
Se alguém se sente propenso a pintar olhares, esse seria<br />
o pintor que iniciaria a nossa escola. Tenho a impressão<br />
de que, no pintar expressão de olhar, nossa escola estaria<br />
largamente representada.<br />
1 Termo utilizado no sentido atribuído a ele por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no<br />
livro “Revolução e Contra-Revolução”.<br />
19
A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />
Uma realidade mais vasta<br />
que o Estado<br />
N<br />
o primeiro artigo desta seção,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> abordava<br />
um tema central de seu<br />
pensamento sociológico: a sociedade<br />
temporal não tem mera função<br />
logística, mas deve também ser ordenada<br />
de modo a auxiliar a Igreja<br />
na tarefa da salvação das almas.<br />
Hoje publicamos a conclusão da<br />
mesma conferência, quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
trata de questões relacionadas<br />
com essa tese.<br />
Um ponto que não me parece ter sido suficientemente<br />
ressaltado, mesmo entre os melhores<br />
tratadistas de Direito Natural do século<br />
XIX, é que a sociedade temporal abarca uma realidade<br />
mais vasta do que apenas o Estado. Em geral, quando se<br />
falava da sociedade temporal, focalizava-se de preferência<br />
o Estado.<br />
De fato, a ordem temporal é uma sociedade da qual o<br />
Estado é o ordenamento supremo. Contudo, ao deitarmos<br />
sobre ela nossa atenção, devemos ter em vista muitos<br />
outros valores e aspectos. O Papa Pio XII, entre outros,<br />
tem ensinamentos muito bons a esse respeito, sublinhando,<br />
por exemplo, o princípio de subsidiariedade, e mostrando<br />
que em algo a sociedade se distingue do Estado.<br />
20
Responsabilidade em todos os cargos de<br />
direção<br />
Todos os dirigentes de corpos constituídos dentro de<br />
um Estado — diretores de colégios, reitores de faculdades,<br />
pais de família, presidentes de academias de letras,<br />
dirigentes de sindicatos, de bolsas, de atividades comuns<br />
temporais — por seu próprio cargo, têm importante<br />
papel dentro da sociedade, inclusive naquele sentido<br />
que vimos estudando, do apostolado dos leigos.<br />
Se cada um deles estruturar seu ramo e seus subordinados<br />
segundo a boa organização natural e em conformidade<br />
com a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, presta<br />
o serviço simbólico a Deus, do qual falamos — a organização<br />
social refletindo as perfeições de Deus.<br />
Tomemos uma repartição pública, por exemplo, ou<br />
mesmo um escritório de datilografia, ou uma loja de fotografia.<br />
Se for bem organizado, exprimindo a ordem natural,<br />
segundo a verdadeira moral que é a Moral católica,<br />
cristã, ele tem uma perfeição e uma excelência onde a rutilação<br />
da alma humana se apresenta inteira. E, pela alma<br />
humana, sobe-se até Deus.<br />
Qualquer pessoa que seja diretor ou subordinado numa<br />
ordem dessas, e tenha o intuito de organizá-la dessa<br />
maneira, presta, do ponto de vista simbólico, um ato insigne<br />
de colaboração à Igreja na ordem do amor de Deus.<br />
Faz uma ação de apostolado.<br />
Um exemplo muito característico é o de um fazendeiro<br />
com seus colonos, seus funcionários administrativos e<br />
as respectivas famílias. Ele pode formar uma como que<br />
aldeiazinha tão católica que seja miniatura da sociedade<br />
católica ideal. É uma minúscula sociedade temporal, encaixada<br />
na sociedade muito maior; é uma célula viva da<br />
sociedade temporal.<br />
Essa miniatura da sociedade católica ideal deve procurar<br />
— e destaco este ponto — desenvolver seus aspectos<br />
simbólicos, de modo a refletir os atributos de Deus.<br />
Refiro-me especialmente aqui à questão da forma da autoridade<br />
— majestosa, paternal, justa —, muito própria a<br />
despertar o amor de Deus.<br />
O primeiro mandamento, vida dos demais<br />
Sendo o primeiro mandamento da Lei de Deus a vida<br />
dos outros mandamentos, o título de mérito do cumprimento<br />
destes últimos é o homem amar a Deus sobre todas<br />
as coisas.<br />
Uma sociedade católica ideal,<br />
estruturada em conformidade<br />
com a doutrina de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, deve refletir as<br />
perfeições de Deus e despertar nas<br />
almas o amor a Ele.<br />
(Ao lado, um castelo francês com a<br />
aldeiazinha nascida ao seu redor)<br />
21
A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />
Com seu talento iluminado<br />
pela graça, Santo Agostinho<br />
pintou a sociedade católica<br />
perfeita, símbolo de Deus,<br />
na qual todos —<br />
governantes e súditos,<br />
patrões e criados, pais e<br />
filhos — viveriam segundo<br />
os ensinamentos de Cristo<br />
(Ilustração para o livro “As duas<br />
Cidades”, de Santo Agostinho)<br />
coloca diante de uma sociedade idealmente<br />
católica, que é um símbolo de Deus.<br />
Atividade própria dos leigos<br />
Segundo São Paulo, as qualidades que não têm relação<br />
com o amor de Deus de nada valem. Assim, a tal ação<br />
simbólica deve ser orientada diretamente para o primeiro<br />
mandamento. Com essa afirmação, apresento o apostolado<br />
a ser exercido pela ordem temporal de um ângulo<br />
que não me parece ter sido muito tratado até hoje.<br />
Um trecho famoso de Santo Agostinho diz que uma<br />
nação cujo “exército [fosse] composto de soldados que observam<br />
fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também<br />
os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e<br />
os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os<br />
juízes; e até os contribuintes e os cobradores de impostos;<br />
todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo”, tal nação<br />
teria um sustentáculo inapreciável (Ep. 138 ad Marcellinum,<br />
2, 15).<br />
Não há quem leia esse trecho e não tenha uma ardente<br />
pulsação do coração. Por quê? Porque evoca, com aquele<br />
talento no qual há cintilações da graça, algo que nos<br />
Há na sociedade temporal outros apostolados<br />
a fazer. A propósito dela, há outras<br />
reflexões que também conduzem a Deus. Não<br />
é minha intenção aqui abarcar o enorme<br />
leque de questões a tal respeito.<br />
O que desejo é acentuar este ponto, que<br />
não vi comentado em outras fontes: o valor<br />
simbólico e apostólico da sociedade temporal,<br />
das sociedades que integram a sociedade<br />
temporal, da vida temporal, em ordem<br />
ao primeiro mandamento, e devendo ser atuada pelos leigos<br />
com uma intenção apostólica.<br />
Uma sociedade a qual, vista por esse ângulo, é toda<br />
ativada por leigos. Homens, portanto, na sua imensíssima<br />
maioria casados e com filhos.<br />
Se todos acionassem a sociedade temporal com intuito<br />
apostólico, quer dizer, não apenas visando fazê-la funcionar<br />
para ganharem dinheiro (é legítimo e até necessário<br />
o dinheiro, a fim de proporcionar a seus filhos e à sua<br />
mulher um status digno; porém é fim secundário), mas<br />
principalmente para que o amor de Deus se espalhe pela<br />
Terra, essa sociedade temporal viveria habitualmente em<br />
estado apostólico.<br />
O padre em face do apostolado dos leigos<br />
A tal propósito, chamo a atenção para outro ponto<br />
dessa questão, no tocante a uma igreja matriz paroquial.<br />
22
Tomemos uma imagem corriqueira: a relação do coração<br />
com o resto do corpo. A pulsação e toda irrigação<br />
vêm da matriz. E o pulsar da matriz dá a vida espiritual a<br />
toda a paróquia.<br />
Alguém poderia objetar que atribuímos um sentido<br />
tão carregado ao apostolado leigo, que não se entende<br />
bem qual é o papel do pároco: fica reduzido a algo supérfluo.<br />
Uma objeção como esta lembra uma cena na qual alguém<br />
estivesse descrevendo longamente o corpo humano,<br />
e estivesse elogiando, por exemplo, o papel dos braços.<br />
Neste momento, fosse interrompido por um cardiologista<br />
ciumento, cioso da preeminência do coração, que dissesse:<br />
“E o que faz o coração?” Mas que pergunta! Evidentemente,<br />
o coração é a vida do homem! Se lhe for tirado,<br />
ele morre!<br />
Ora, o padre também, ele “constrói” o leigo:<br />
batiza-o, forma-o, ensina-lhe, dá-lhe os<br />
princípios, confessa, dá-lhe os sacramentos,<br />
organiza associações que o ajudem. Ensina,<br />
santifica e governa as almas. Ele é a alma da<br />
vida paroquial. Sem ele, os leigos morrem<br />
de inanição!<br />
Logo, o pároco é o coração da paróquia.<br />
Mas vejamos a situação do leigo que não seja<br />
das almas felizes que freqüentam associações<br />
religiosas pertencentes à paróquia. Recebe<br />
os sacramentos, assiste à Missa aos domingos,<br />
ouve a prática do Evangelho, pode até comungar<br />
diariamente, rezar o Rosário. Não obstante, oitenta por cento<br />
de sua vida, se não mais, passa-se na sociedade temporal.<br />
É uma questão de cronometragem. Assim é a vida da<br />
maior parte dos leigos.<br />
Ele encontrará dificuldades para preservar e tornar<br />
fecundo o que tiver recebido do padre. São dificuldades<br />
nascidas na sociedade temporal.<br />
Ora, pela sabedoria da Igreja, o sacerdote não deve<br />
viver muito engolfado na ordem temporal. Segundo o espírito<br />
da Igreja, os padres devem ter contato com a sociedade,<br />
mas vivendo preferentemente num ambiente<br />
clerical. Não é nada recomendável o padre mundano, como<br />
aqueles cardeais da véspera da Revolução Francesa,<br />
que iam assistir a bailes e dançavam minueto.<br />
Possibilidades que só os leigos<br />
têm<br />
A alma da vida paroquial<br />
é o sacerdote, que<br />
“constrói” os leigos, batizaos,<br />
forma-os, santifica-os;<br />
porém, não lhe cabe viver<br />
na sociedade temporal,<br />
campo de apostolado<br />
próprio ao laicato que<br />
recebe do clero<br />
o sustento espiritual<br />
23
A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />
Uma coisa é a vida civil, com seus aspectos sociais;<br />
outra coisa é a vida eclesiástica.<br />
Sendo assim, na hora do perigo, quem poderá ajudar<br />
as almas que ali periclitam? É o amigo leigo, que está<br />
presente ali também e luta contra as mesmas dificuldades.<br />
Presilha entre a Igreja e a sociedade<br />
temporal<br />
Esse seria um apostolado que incumbiria, portanto,<br />
aos leigos, numa sociedade que fosse idealmente católica.<br />
E mais necessário ainda numa sociedade profundamente<br />
corrompida, como a de hoje.<br />
Os Papas do século XX acentuaram a necessidade de<br />
haver leigos que atuem dentro da sociedade temporal.<br />
Isso tomou vulto, junto com uma pulsação universal das<br />
almas, sobretudo no tempo de Pio XI. Passaram a florescer<br />
sociedades religiosas constituídas de leigos, obedecendo<br />
a esta idéia: não sendo clérigos, poderiam acumular<br />
os dois âmbitos, levando privadamente a vida de um religioso,<br />
mas, por suas ocupações, estar misturados a fundo<br />
na vida leiga, servindo de estímulo aos outros.<br />
Tomemos o exemplo de um apostolado tipicamente<br />
leigo. Num departamento jurídico de uma grande empresa<br />
trabalham cinqüenta advogados. Um deles é membro<br />
de uma sociedade religiosa de leigos. Sendo leigo, está no<br />
seu papel seguindo a carreira de advogado. Mas, estando<br />
ali, pode observar quais são os bons, e desenvolver um<br />
apostolado especialmente ardoroso junto a esses, de modo<br />
que façam desse departamento jurídico o que ele deve<br />
ser. Ele é uma longa manus da Hierarquia, uma extensão<br />
dos desígnios da Igreja ali dentro.<br />
Isso começou a se multiplicar largamente nas últimas<br />
décadas. É a necessidade de uma presilha, de um agrafo<br />
entre a sociedade espiritual e a temporal, para que melhor<br />
a influência da primeira possa prolongar-se dentro da segunda.<br />
Não se faz uma confusão entre ambas, mas uma ligação<br />
para um mais perfeito nexo.<br />
Como isso é diferente, por exemplo, da concepção<br />
que havia no tempo dos meus avós a respeito da relação<br />
entre clero e laicato!<br />
Mas, naquele tempo, a sociedade tinha sido muito<br />
menos devastada pela Revolução (emprego aqui este termo<br />
no sentido que lhe dei em “Revolução e Contra-Revolução”).<br />
No Brasil ela era, na sua substância, carregada<br />
de tradições católicas recebidas de Portugal. Era, ela mesma,<br />
um instrumento de salvação. Não era necessária, ou<br />
ao menos não era indispensável, ali, essa modalidade de<br />
apostolado.<br />
Na sociedade de hoje essa modalidade<br />
se torna indispensável!<br />
Permuta de “fachos de<br />
luz”<br />
A sociedade temporal, tomada<br />
como um todo, resulta do equilíbrio<br />
de duas influências: a de cada<br />
homem sobre o todo e a do todo<br />
sobre cada um.<br />
Ela é feita de homens que não<br />
são robôs. Cada homem é, ele mesmo,<br />
um pequeno universo. Tem uma<br />
certa forma de autonomia, de privacy,<br />
de privatum próprio que é ines-<br />
Os Papas do século XX acentuaram<br />
de modo particular a necessidade<br />
de haver leigos que atuem dentro<br />
da sociedade temporal.<br />
Ao lado, o Papa Pio XI recebe os<br />
cumprimentos das Damas<br />
da Associação Católica Italiana<br />
24
“Adão e Eva expulsos do Paraíso” — Bem outro seria o desenvolvimento da sociedade terrena,<br />
se não tivesse havido o Pecado Original e o mundo fosse habitado por almas inocentes<br />
gotável e insondável. É da projeção dos mil fachos de luz<br />
individuais que se forma a luz conjunta que nós chamaríamos<br />
de mentalidade da sociedade temporal.<br />
Não podemos, entretanto, considerar apenas esses fachos<br />
de luz do homem (para continuar a usar a comparação)<br />
incidindo sobre o exterior. Sim, porque o homem não<br />
apenas influencia, mas ele também vê as coisas e recebe<br />
delas uma influência. Assim, precisamos levar em conta<br />
a luz somada dos mil fachos individuais repercutindo sobre<br />
ele. Há, assim, um commercium.<br />
Essa como que “circulação de fachos” faz com que a<br />
sociedade temporal, tomada no seu conjunto, impressione<br />
profundamente o homem.<br />
Se não tivesse havido pecado original...<br />
A respeito do tema “sociedade temporal”, há certas<br />
divagações que me agrada fazer. Uma delas é sobre o<br />
que teria acontecido se Adão e Eva não tivessem pecado.<br />
Eles teriam crescido e se multiplicado, e sua progênie<br />
teria enchido a Terra. E teria havido sociedades. Não podemos<br />
imaginar, como muitas pessoas, que Adão e Eva<br />
fossem uma edição paradisíaca do “bon sauvage” de<br />
Rousseau. Eles tenderiam a construir uma civilização, a<br />
desenvolver a arte, etc.<br />
Imaginado o Paraíso habitado por homens inocentes,<br />
que amassem a Deus, qual seria o teor de relações de<br />
Deus com eles? E como seria a sociedade deles?<br />
Como tudo indica que, segundo o plano d’Ele, em determinado<br />
momento o Verbo se encarnaria, tudo leva a<br />
crer que Nosso Senhor Jesus Cristo seria o Rei visível dessa<br />
sociedade; e que, à espera desse Rei, tudo fosse sendo<br />
edificado numa ordem magnífica; e que, vindo Ele, essa<br />
ordem, já pela simples presença d’Ele, pela sabedoria e<br />
pela onipotência d’Ele, fosse galardoada ainda de maneira<br />
inimaginável, culminando em aspectos insondáveis<br />
para nós.<br />
Mas a Encarnação se daria no fim do mundo, encerrando<br />
a História? Ou se daria no meio da História? São<br />
coisas belas para imaginarmos.<br />
O homem viveria numa ordem que seria diretamente<br />
teocrática? Deus quereria conservar com todos os homens<br />
as relações que tinha com Adão? (Ele descia do<br />
Céu e conversava com Adão na brisa.) Teríamos, assim,<br />
uma teocracia direta? Como seria essa ordem?<br />
Poder-se-ia objetar que tais hipóteses não passam de<br />
mera cogitação vã e tola. Engano!<br />
Tendo-se a prudência de não transformar hipótese em<br />
tese, nem fantasia artística ou literária em hipótese,<br />
poderíamos excogitar algo de que todo homem, perceba<br />
ou não perceba, é sedento. Cada ser humano tem tendência<br />
para a sua própria perfeição, e em algo geme por<br />
não viver nela. Ser-lhe-ia muito útil imaginar como poderia<br />
ser a vida dos homens se não tivesse havido o pecado<br />
original. Isso poria um foco de alegria nesse ponto de<br />
tristeza.<br />
❖<br />
25
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
A ATUAÇÃO DE DEUS NA<br />
GRANDE LUTA DA HISTÓRIA<br />
N<br />
o último capítulo dos comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre a Carta Apostólica<br />
“Annum Ingressi”, de Leão XIII, vimos descritos os adversários<br />
da Igreja ao longo da História: o demônio, o mundo e as paixões humanas<br />
desregradas. Hoje veremos a atuação da Providência nesse combate.<br />
26
Conforme dizíamos, os efeitos<br />
do pecado original, que são desregramentos,<br />
não podem ter<br />
senão resultados desencontrados. O<br />
demônio, pelo contrário, é capaz de<br />
planos articulados. Os homens morrem,<br />
o demônio não. Em tese, nada<br />
obsta que dure séculos, em determinadas<br />
condições, o poder de influenciar<br />
a fundo o desenvolvimento de<br />
um ciclo histórico, a formação e progresso<br />
de vícios e heresias, etc.<br />
Na ordem concreta dos fatos, o<br />
mundo e o demônio formam como<br />
que uma força única, fundida num só<br />
esforço. E esse esforço consiste em<br />
oferecer ao homem, fundamentalmente<br />
egoísta, os deleites do “orgulho, cupidez<br />
e amor desenfreado dos gozos<br />
terrenos”, de que fala Leão XIII.<br />
De um lado, portanto, está a Igreja,<br />
que aponta para o Céu e pede ao<br />
homem que renuncie a seu egoísmo,<br />
a seus deleites desregrados, e obedeça<br />
à Lei. Diz o Papa que “em face da<br />
Lei e daquele que a apresenta em nome<br />
de Deus” ergue-se o mundo, “sempre<br />
o mesmo”, isto é, o conjunto dos desregramentos<br />
humanos, e o príncipe<br />
deste mundo, que o dirige e o arrasta<br />
para a luta, quer dizer, Satanás, servido<br />
por mil satélites.<br />
É a imagem agostiniana das duas<br />
cidades.<br />
A todo momento, em nós e em<br />
torno de nós, trava-se a<br />
luta entre o bem o mal, entre as<br />
“duas cidades” de que fala<br />
Santo Agostinho,<br />
entre a fé e a incredulidade.<br />
(Acima, “A Igreja triunfa das<br />
heresias”, grupo escultural<br />
na igreja do Gesù, em Roma;<br />
ao lado, “Santo Agostinho<br />
disputa com os hereges maniqueus<br />
e batiza os convertidos”,<br />
alto-relevo medieval)<br />
E a cidade do demônio “encontra<br />
na Igreja” — a cidade de Deus — “a<br />
mais poderosa barreira”. Por isso olha<br />
para esta com “ódio implacável”, cheia<br />
de revolta “em desmedido orgulho” e<br />
“espírito de independência a que não<br />
tem direito”.<br />
Luta entre a Fé e a<br />
incredulidade<br />
Presenciamos continuamente, quiçá<br />
sem lhes dar maior importância,<br />
certos fatos da vida quotidiana. Aqui<br />
é uma mãe que, acompanhada pelos<br />
seus, leva no colo seu filhinho até a<br />
igreja, para o Batismo. Além, é um<br />
propagandista protestante que discute<br />
sobre religião com um transeunte<br />
a quem ofereceu um folheto. A poucos<br />
passos, numa sala de aula, um<br />
professor dá um curso de biologia e<br />
aproveita para fazer propaganda materialista.<br />
Dentro de alguns minutos,<br />
a aula termina, e os alunos se dispersam<br />
pelas ruas. Um compra um jornal<br />
católico que está sendo apregoado<br />
na esquina. O outro abre uma revista<br />
comunista que levava debaixo<br />
do braço. E assim por diante, as influências<br />
favoráveis e hostis à Fé católica<br />
se vão exercendo ao longo de<br />
todo o dia, em qualquer lugar onde<br />
exista um grupo humano na face da<br />
terra.<br />
Como esses fatos ocorrem de permeio<br />
com mil outros de natureza diversa,<br />
passam muitas vezes despercebidos.<br />
Constituem, entretanto, episódios<br />
minúsculos e incontavelmente<br />
numerosos de uma imensa luta,<br />
que se trava por mil meios por toda<br />
parte. A luta entre a fé católica e as<br />
heresias e erros que por todos os lados<br />
a assediam.<br />
Combate entre a virtude<br />
e o vício<br />
O mesmo se poderia dizer da luta<br />
entre o bem e o mal. Ela se realiza a<br />
todo momento em nós, e em torno<br />
de nós. Em cada ato bom que fazemos,<br />
a graça e a virtude se tornam em<br />
nós mais vigorosos, o bem conquista<br />
terreno dentro de nós contra o mal.<br />
Pelo contrário, a cada capitulação a<br />
graça se retrai, a vontade se debilita,<br />
o mal ganha terreno dentro de nós<br />
contra o bem. Cada bom conselho,<br />
cada bom exemplo que damos é um<br />
ato de hostilidade do bem ao mal. A<br />
contrário sensu, cada escândalo, cada<br />
mau conselho é uma ofensiva do mal<br />
27
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
contra o bem. Um artigo de jornal<br />
difundido entre 100 mil leitores, ou um<br />
discurso ouvido no rádio por 200 mil<br />
ouvintes, equivalem a 100 mil tiros ou<br />
200 mil tiros do bem contra o mal, ou<br />
do mal contra o bem, conforme o caso.<br />
A luta entre a virtude e o vício é<br />
incessante, e se estende à terra toda.<br />
A História fala com espanto em<br />
guerras de vinte, trinta, cem anos. Essa<br />
guerra entre a Fé e a incredulidade,<br />
entre o bem e o mal, é mais antiga<br />
que o homem, pois teve início com<br />
a luta dos anjos no Céu, e só terminará<br />
com o fim do mundo.<br />
Aspectos sobrenaturais<br />
da luta<br />
Já vimos que os combatentes dessa<br />
luta são, de um lado, a Igreja militante<br />
e, de outro, as paixões desregradas<br />
do homem, o príncipe das trevas<br />
e seus satélites.<br />
Desde que admitamos essa perspectiva,<br />
não podemos fugir a uma conseqüência<br />
de importância fundamental.<br />
É que, se os dois combatentes<br />
mais fortes são Deus e o demônio —<br />
seres espirituais, superiores por natureza<br />
à ordem de coisas visível que<br />
nossos sentidos percebem — grande<br />
parte dessa luta comporta elementos<br />
sobrenaturais.<br />
Da parte de Deus, esses elementos<br />
são principalmente o governo da<br />
Providência sobre os acontecimentos<br />
humanos e as graças que concede<br />
a todos os homens.<br />
O governo da<br />
Providência e o livre<br />
arbítrio<br />
Deus criou o homem com<br />
uma alma espiritual e,<br />
portanto, dotada de inteligência e liberdade.<br />
Essa liberdade põe nas mãos<br />
do homem a faculdade de obedecer,<br />
ou não, aos preceitos promulgados<br />
pelo próprio Deus. Se o homem obedece<br />
a esses preceitos, realiza evidentemente<br />
a vontade de Deus. Se não<br />
obedece, realiza-se ainda assim a vontade<br />
de Deus, pois quis este que o homem<br />
fosse livre e pudesse escolher<br />
entre o bem e o mal. Para melhor se<br />
compreender isso, considere-se um<br />
exemplo.<br />
Um pai põe uma criança correndo<br />
livremente por um jardim, e lhe recomenda<br />
certas regras de prudência.<br />
Deixando-a em liberdade, fá-lo por<br />
sua própria vontade, sabendo que ela<br />
poderá não observar as regras de prudência<br />
que lhe prescreveu. É que seu<br />
bom senso lhe faz ver como é razoável<br />
dar liberdade à criança, ainda que<br />
ela cometa alguma pequena falta.<br />
Nesse pai podemos considerar, pois,<br />
dois atos de vontade concomitantes.<br />
Por um lado, ele quer que a criança<br />
brinque livremente, ainda que com<br />
algum risco, pois as vantagens dessa<br />
liberdade são maiores que os inconvenientes<br />
do risco; por outro, quer<br />
De incontáveis maneiras<br />
intervém Deus nos<br />
acontecimentos terrenos, seja<br />
no âmbito individual, seja no<br />
coletivo, premiando,<br />
castigando, advertindo, por<br />
meio de pessoas providenciais<br />
que Ele suscita, ou se<br />
manifestando diretamente<br />
aos homens. Ao lado, São João<br />
Batista (Hôtel-Dieu de<br />
Beaune, França); na página<br />
seguinte, “Judite corta a<br />
cabeça de Holofernes”,<br />
gravura de Gustave Doré)
que a criança brinque retamente, sem<br />
se machucar.<br />
Com Deus dá-se o mesmo. Ele nos<br />
criou com uma natureza dotada de livre<br />
arbítrio, e com isso nos fez um<br />
grande beneficio, pois só o homem livre,<br />
isto é, dotado de vontade, é capaz<br />
de amar, e só o homem capaz de amar<br />
pode alcançar o Céu, exclusivamente<br />
reservado aos que amam a Deus.<br />
Quando Deus nos criou livres, sabia<br />
que é inerente à liberdade a possibilidade<br />
de praticar o mal. Ainda assim,<br />
quis criar-nos. E quando fazemos<br />
mau uso dessa liberdade, isso não se<br />
dá sem que Ele tenha considerado tal<br />
possibilidade, e sem que, apesar disso,<br />
tenha querido criar-nos.<br />
Isso não tira, entretanto, a Deus o<br />
direito de detestar o mau uso que fizermos<br />
de nossa liberdade, e de nos<br />
punir por tal: precisamente como, no<br />
citado exemplo, o pai que previu um<br />
possível abuso de liberdade da criança<br />
no jardim não fica impedido de a<br />
castigar.<br />
Vontade de eleição e<br />
vontade de<br />
consentimento<br />
Resumindo essas considerações em<br />
linguagem escolástica, pode-se dizer<br />
que em Deus se distinguem duas vontades,<br />
uma de eleição, outra de mero<br />
consentimento. Segundo a primeira,<br />
os homens fariam, todos, um uso reto<br />
de sua liberdade, e pois obedeceriam<br />
à Lei. Conforme a segunda, alguns<br />
homens desobedecem e pecam:<br />
Deus os quis livres, e permitiu que<br />
optassem pelo pecado.<br />
Tudo isso torna bem claro que, no<br />
universo, nada se passa sem que Deus<br />
tenha querido, ou por uma vontade<br />
de eleição, ou por uma vontade de<br />
consentimento. E que a vontade de<br />
Deus é — ainda quando ela consiste<br />
em nos deixar livres — a suprema<br />
razão das coisas.<br />
Se muitas vezes a vontade de Deus<br />
consiste em deixar correr os acontecimentos<br />
ao impulso do livre arbítrio<br />
humano, muitas outras vezes Ele intervém,<br />
seja para recompensar um<br />
justo, seja para punir um pecado, seja<br />
ainda para preservar uma pessoa<br />
sobre a qual tem intenções particulares,<br />
ou tolher a ação de outra que<br />
contraria seus desígnios. Bem entendido,<br />
essas intervenções divinas não<br />
se dão apenas no plano estritamente<br />
pessoal. Como já dissemos, se Deus<br />
premia ou castiga por vezes os indivíduos<br />
já na vida terrena, fá-lo sempre<br />
com as instituições, as associações<br />
e as nações. É que estas não têm existência<br />
senão na terra: no Céu não haverá<br />
nação, nem classe, nem instituição.<br />
E, assim, já nesta vida precisam<br />
ser premiadas ou punidas.<br />
Modos de intervenção de<br />
Deus<br />
Como age Deus nesse sentido? De<br />
mil maneiras. Às vezes suscita um<br />
homem para abater um povo: foi o<br />
caso de Cyro com os caldeus. Ou uma<br />
mulher para salvar uma nação: foi o<br />
caso de Judite, no Antigo Testamento,<br />
e de Santa Joana d’Arc, na Idade<br />
Média. Outras vezes cega um homem,<br />
para o castigar com sua queda (situação<br />
tantas vezes observada ao longo<br />
da História, que foi imortalizada no<br />
provérbio latino “Quos Deus vult per-<br />
29
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
dere prius dementat”: “quem Deus quer<br />
perder, começa por privá-lo da razão”).<br />
Ou suscita um homem para regenerar<br />
um rei, uma nação, um grupo<br />
de nações: Jeremias e São João<br />
Batista, com os judeus; São Francisco<br />
de Assis e São Domingos de Gusmão,<br />
na Cristandade medieval; Santo Inácio<br />
de Loyola na crise protestante; etc.<br />
Assim age Deus por meio dos Santos,<br />
dos Confessores, dos Doutores<br />
que ele suscita.<br />
Deus age ainda de outra forma. A<br />
Igreja sempre admitiu que Ele, por<br />
vezes, ou fala diretamente aos homens,<br />
ou o faz pelo ministério de seus Anjos<br />
e de seus Santos, em visões e revelações.<br />
Exemplo disso são as aparições<br />
do Sagrado Coração de Jesus a<br />
Santa Margarida Maria Alacoque no<br />
século XVII, e as de Nossa Senhora<br />
em Lourdes, no século XIX, e em<br />
Fátima, no século XX.<br />
Nesse campo, cumpre separar o joio<br />
do trigo. Mas, por mais cuidadosos que<br />
sejamos nesse terreno, seria impossível<br />
afirmar que Deus não tem o poder de<br />
agir assim, e que historicamente nunca<br />
o tenha feito (basta lembrar como<br />
a Sagrada Escritura está repleta de<br />
fatos do gênero).<br />
O papel da graça divina<br />
Deus intervém, entretanto, muitas<br />
vezes, não para tolher a liberdade humana,<br />
mas para lhe facilitar a opção<br />
para a virtude. O meio essencial pelo<br />
qual o faz é a graça. Já falamos dela<br />
em diversas passagens. Considerada<br />
em seus efeitos sobre a alma, a graça<br />
é um auxílio sobrenatural de Deus,<br />
que ilumina a inteligência e fortifica<br />
a vontade, para que o homem conheça<br />
as verdades da Fé e pratique as<br />
virtudes necessárias à salvação.<br />
Como vimos, sem a graça não é<br />
possível ter Fé nem praticar duravelmente<br />
e em sua totalidade os Mandamentos.<br />
Bem entendido, ela nos dá<br />
possibilidades, mas não nos obriga a<br />
fazer uso dessas possibilidades. É como<br />
um tônico que nos dá forças para nos<br />
movermos, mas não nos obriga a isso.<br />
A Teologia distingue vários tipos<br />
de graça: habituais e atuais, operantes<br />
e cooperantes, suficientes e eficazes,<br />
etc.<br />
A todos os homens são concedidos<br />
os recursos sobrenaturais necessários<br />
para alcançar o Céu. Quer dizer,<br />
a graça suficiente, Deus não a nega<br />
a ninguém. Entretanto, se a graça<br />
nunca desce a um nível abaixo do suficiente,<br />
muito freqüentemente ela supera<br />
esse nível. Quando sua efusão é<br />
muito superior a ele, o número de pessoas<br />
que praticam os Mandamentos<br />
e se salvam é normalmente maior.<br />
Por esse regime de efusão da graça,<br />
Deus intervém continuamente na<br />
grande luta.<br />
“Para ser possível uma<br />
reparação proporcionada à<br />
ofensa que representou o<br />
Pecado Original, era<br />
necessária a Encarnação do<br />
Verbo: Jesus, Deus e Homem,<br />
era capaz de expiar<br />
adequadamente a<br />
humanidade pecadora”<br />
(na página seguinte,<br />
“Anunciação”, por Petrus Christus)<br />
30
A Redenção<br />
Dessa luta, já vimos o primeiro lance<br />
que envolveu o homem: a queda de<br />
Adão e Eva (Gn 3,6). Como eles continham<br />
em si todo o gênero humano,<br />
no sentido em que a semente contém<br />
a árvore, o pecado que cometeram<br />
foi do gênero humano inteiro, embora<br />
sem uma responsabilidade pessoal dos<br />
seus descendentes. Vimos também o<br />
efeito produzido pela queda.<br />
Digamos uma palavra sobre a Redenção.<br />
Para reparar junto à Justiça divina<br />
o pecado original e os demais pecados<br />
cometidos pelos homens, era necessária<br />
uma expiação que estivesse no<br />
nível da gravidade da falta.<br />
A gravidade resulta da natureza da<br />
ação faltosa, da dignidade da pessoa<br />
ofendida, e do ofensor. Uma bofetada<br />
constitui, por sua própria natureza,<br />
uma injúria mais grave do que um<br />
cumprimento distraído ou negligente.<br />
Se o agredido é um príncipe, a injúria<br />
é mais grave do que se fosse um<br />
particular. E se o agressor do príncipe<br />
é seu irmão, a injúria não é tão grave<br />
quanto se fosse um lacaio.<br />
No caso do pecado original, a não<br />
considerar senão a dignidade de Deus<br />
e sua infinita desproporção com a<br />
dignidade do homem, ser finito, como<br />
poderia este reparar a ofensa?<br />
Para se possível tal reparação era<br />
necessária a Encarnação do Verbo.<br />
Em Jesus Cristo, o Verbo humanado,<br />
há uma só Pessoa, em duas naturezas:<br />
a de Deus e a do homem. Sendo<br />
suas ações ao mesmo tempo divinas<br />
e humanas, Ele era capaz de expiar<br />
adequadamente os delitos da humanidade<br />
pecadora.<br />
Quando, do alto da cruz, Ele proferiu<br />
o “consummatum est” (Jo 19,30)<br />
e entregou sua alma, estava resgatado<br />
o gênero humano. ❖<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
^<br />
Cantico da<br />
alma inocente
Q<br />
uem ouve o canto<br />
gregoriano pela primeira<br />
vez pode ser<br />
tomado pela impressão<br />
equivocada<br />
de que se trata<br />
de uma música no<br />
seu estágio rudimentar, exprimindo,<br />
com um minimum de movimentação,<br />
estados de espírito mais comuns à condição<br />
social de uma civilização nômade,<br />
entregue sobretudo aos labores<br />
manuais, que apenas começa a dar<br />
conta de si mesma e de suas vicissitudes<br />
de alma. E que, portanto, tem necessidades<br />
muito limitadas e circunscritas<br />
para serem expressas através de<br />
melodias e cânticos.<br />
Daí uma música, enquanto sonoridade,<br />
pouco desenvolvida, um canto<br />
monótono, próprio desses espíritos<br />
primitivos e de uma liturgia igualmente<br />
elementar, sóbria, com movimentos<br />
escassos, não obstante os adornos<br />
e paramentos eclesiásticos de indiscutível<br />
beleza.<br />
Segundo essa concepção, a Igreja<br />
terá passado séculos e séculos atraindo<br />
almas neurastênicas, debilitadas ou<br />
não desenvolvidas, um beatério que<br />
correspondia à camada mais rudimentar<br />
da sociedade, a única disposta a<br />
se sentir tocada e enlevada na tediosa<br />
ambientação criada pelo canto gregoriano.<br />
Sem dúvida, uma idéia errada. No<br />
universo das maravilhas engendradas<br />
pelo espírito católico, o gregoriano<br />
aparece exatamente com predicados<br />
contrários aos do que essa falsa impressão<br />
lhe empresta.<br />
Ele surge nos albores da Idade Média,<br />
numa civilização que ainda não<br />
conhecera os poetas clássicos nem a<br />
literatura convencional, que não usou<br />
ruge nem batom, que não pretendeu<br />
ter ciências esclarecidas e modernas,<br />
mas possuía um extraordinário ímpeto<br />
para o belo e para a pulcritude.<br />
Tinha-se um vigor e uma fecundidade<br />
espiritual imensos, com uma pro-<br />
fusão de percepções, de concepções<br />
primevas, de observações e contemplações<br />
que redundava numa produção<br />
artística e social potentíssima,<br />
cada alma elevando-se no seu próprio<br />
espaço, erguendo-se como palmeiras,<br />
sem disputar terreno umas com as<br />
outras, formando uma linda e vasta<br />
floresta.<br />
Um dos produtos dessa grandeza<br />
de alma foi o canto gregoriano. E se<br />
este não apresenta os acentos retumbantes<br />
das músicas que nasceram nos<br />
séculos posteriores, é porque foi concebido<br />
com o cuidado da discrição, da<br />
humildade daquilo que precisa do seu<br />
isolamento, que evita de se expor à luz<br />
do sol do convívio com quem poderá<br />
entendê-lo mal, banalizá-lo e que, no<br />
total, não foi feito para a intimidade<br />
com ele. Íntimos, são poucos...<br />
Então, ele como que hesita em pôr<br />
a pleno som para uma igreja os seus<br />
sentimentos. Há nele uma certa retenue,<br />
assim como há, de outro lado, o<br />
receio de, à força de se exteriorizar,<br />
apegar-se vaidosamente ao seu timbre.<br />
Porque, de si, é tão inebriante a faculdade<br />
de se exprimir, que a pessoa<br />
se põe a falar e facilmente desliza para<br />
a conversa solta, pelo simples gosto<br />
da loquacidade. Cumpre refrear essa<br />
tendência, com aquela harmonia<br />
suave e cadenciada do gregoriano,<br />
onde se nota a vontade de não aparecer,<br />
de ser modesto, de conservar o<br />
frescor da humildade e da sua própria<br />
inocência.<br />
Talvez, pelo desconhecimento de<br />
algumas regras musicais adequadas,<br />
haja algo de realmente incipiente no<br />
gregoriano, que não chegou a se exprimir<br />
em seu completo desdobramento,<br />
mas que aponta para ele. Seria<br />
como a orla de uma floresta. Dentro<br />
desta estão todas as gamas do heroísmo<br />
e da ternura, da reflexão e dos esplendores<br />
da sadia despreocupação.<br />
Ele é sóbrio, e se não transpõe essa<br />
orla, carrega entretanto dentro de<br />
si a sua própria floresta, formidável,<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Abadia de Saint-<br />
Étienne (França)<br />
que é uma potencialidade quase inexaurível<br />
de gerar civilizações e maravilhas<br />
em qualquer parte do mundo.<br />
É a força da inocência aliada à<br />
graça, que transformou, por exemplo,<br />
os pântanos e vales mefíticos da antiga<br />
Europa em jardins salpicados de<br />
vida e de cor, onde, entre arvoredos<br />
e lagos lindíssimos, avantajam-se grandiosas<br />
abadias, imponentes castelos<br />
e majestosas catedrais. Uma Europa<br />
“gregorianizada”.<br />
Agora, qual é o efeito do gregoriano<br />
sobre a alma do homem contemporâneo<br />
que sabe admirá-lo? Sobre<br />
a minha própria alma, portanto?<br />
Eu diria que dele emana uma forma<br />
de temperatura que transmite todo<br />
o aconchegante do quente e todo<br />
o agradável frescor do frígido, de um<br />
frio que não corta nem maltrata, onde<br />
uma brisa tépida de vez em quando<br />
faz sorrir. Ele tem as temperaturas<br />
da vida, que estão para além das<br />
algidezes e calores do mundo mineral.<br />
É uma composição de outra natureza,<br />
que nos comunica refrigério,<br />
luz e paz; que ajuda a despertar e a<br />
dar vigor, em nossas almas, a mil ordenações<br />
da inocência que o choque<br />
com o mundo contemporâneo — no<br />
qual encontramos uma selva com macacos,<br />
tigres, cobras e javalis, que são<br />
os assuntos alheios à nossa salvação<br />
eterna — tenderia a fazer esquecer e<br />
a adormecer, desviando nosso olhar<br />
espiritual.<br />
Outro efeito que o gregoriano produz<br />
nas almas é o de tornar-lhes patente<br />
o lugar do murmúrio na expressividade<br />
do homem. É falso que este,<br />
para se exprimir por inteiro, tenha<br />
de fazê-lo nos registros mais altos de<br />
sua voz e nas ondulações maiores de<br />
seus movimentos. Não. Existem harmonias,<br />
composições, santidades por<br />
assim dizer supra-sônicas que se veriam<br />
maculadas e traídas caso fossem<br />
descritas pelo som na sua máxima<br />
intensidade. Só o murmúrio é capaz<br />
de expressar o que é supra-sônico.<br />
Por isso o gregoriano é o cântico<br />
do murmúrio.<br />
E enquanto tal, aliás, faz ele sentir<br />
que esta é a terra de exílio para a qual<br />
viemos em conseqüência do pecado<br />
original. Há nele algo de penumbra<br />
ascética, de sonoridades meio penitenciais,<br />
de almas do purgatório que<br />
passam sussurrando, gemendo e entoando<br />
canções de esperança.<br />
Se lhe prestarmos bem atenção,<br />
veremos nele a inocência que se sabe<br />
a si mesma em estado de prova, tomando<br />
todos os cuidados consigo<br />
mesma. Há um quê de mortificado,<br />
de vigilante, dentro do celeste desembaraço<br />
do gregoriano, à maneira do<br />
capuz colocado na cabeça de um frade<br />
jovem: lembra o aspecto peniten-<br />
34
cial, adverte contra o vazio das coisas terrenas,<br />
contra o mentiroso dos élans excessivos<br />
do próprio homem.<br />
Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes<br />
do Te Deum, aos recolhimentos<br />
solenes do Tantum ergo, é a música que tem<br />
essa qualidade incomparável de exprimir a<br />
atitude perfeita, o exato grau de luz da alma<br />
reta e verdadeiramente inocente quando<br />
se coloca diante de Deus. ❖<br />
Cântico do murmúrio, música da<br />
alma inocente, dessa inocência<br />
que, aliada à graça divina,<br />
construiu as maravilhas de uma<br />
civilização “gregorianizada”...<br />
Abadia de Chaâlis<br />
(França)
Imaculada e vitoriosa<br />
C<br />
onforme nos ensina a Bula<br />
“Ineffabilis Deus”, a beleza<br />
e a perfeição da Santíssima<br />
Virgem só se manifestam<br />
completas porque Ela triunfa,<br />
vence e aniquila o demônio. Satanás<br />
é um escabelo aos pés d’Ela.<br />
Sendo Maria imaculada e soberanamente<br />
formosa, não basta<br />
que todas as criaturas deste mundo,<br />
as do Céu e as do Purgatório<br />
Lhe prestem homenagem: importa<br />
que o inimigo esteja esmagado<br />
sob seu calcanhar.<br />
Uma perfeita consideração do<br />
esplendor de Nossa Senhora envolve,<br />
portanto, a idéia do demônio<br />
inteiramente subjugado<br />
e humilhado por Ela. Essa vitória<br />
sobre Satanás dá um particular<br />
brilho à celestial beleza da<br />
Imaculada Conceição.<br />
Imaculada Conceição