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Revista Dr Plinio 57

Dezembro de 2002

Dezembro de 2002

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Meditação junto ao Presépio


Queiram ou não queiram<br />

os homens, a graça lhes<br />

bate às portas da alma,<br />

mais sublime, mais meiga,<br />

mais insistente, neste tempo de<br />

Natal. Dir-se-ia que, apesar de<br />

tudo, paira nos ares um luz, uma<br />

paz, um alento, uma estimulo ao<br />

idealismo e dedicação, que é difícil<br />

não perceber. Ademais, em<br />

inúmeras igrejas, em muitos lares,<br />

o presépio ainda nos põe diante<br />

dos olhos a imagem do Menino<br />

Deus, que veio para romper os<br />

grilhões da morte, para calcar aos<br />

pés o pecado, para perdoar, para<br />

regenerar, para abrir aos homens<br />

novos e ilimitados horizontes<br />

de fé e de ideal, novas e ilimitadas<br />

possibilidades de virtude e<br />

de bem.


Sumário<br />

Na capa, “A<br />

adoração dos<br />

Reis Magos”,<br />

por Gentile da<br />

Fabriano<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5<strong>57</strong>1-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2<strong>57</strong>9<br />

4<br />

5<br />

6<br />

8<br />

11<br />

16<br />

20<br />

EDITORIAL<br />

Que a paz do Natal penetre em nós<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Decisão na adolescência<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Glória a Deus no Céu, e paz na terra<br />

aos homens de boa vontade<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A grande utopia<br />

DONA LUCILIA<br />

Dias marcados pelas saudades<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Uma meditação para o homem de hoje<br />

A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

Uma realidade mais vasta que o Estado<br />

Preços da assinatura anual<br />

Dezembro de 2002<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

26<br />

32<br />

36<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

A atuação de Deus na grande luta<br />

da História<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Cântico da alma inocente<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Imaculada e vitoriosa<br />

3


Editorial<br />

Que a paz do Natal penetre em nós<br />

uma vez, Senhor, a Cristandade se<br />

“Mais<br />

apresta a Vos venerar na manjedoura de<br />

Belém, sob a cintilação da estrela, ou sob<br />

a luz ainda mais clara e fulgente dos olhos maternais e<br />

doces de Maria. A vosso lado está São José, tão absorto<br />

em Vos contemplar que parece nem sequer perceber os<br />

animais que Vos rodeiam, e os coros de Anjos que rasgaram<br />

as nuvens e cantam, bem visíveis, no mais alto<br />

dos Céus”.<br />

Eis pequeno trecho de uma meditação de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

em noite de Natal, diante do presépio, que o<br />

encontrava pela capacidade de reviver algo daquela<br />

atmosfera indizível reinante na gruta de Belém.<br />

O primeiro presépio da história foi obra de um refulgente<br />

santo, há quase oito séculos. Conta Tomás de<br />

Celano — o biógrafo do seráfico São Francisco de<br />

Assis, e seu contemporâneo — que este, no Natal do<br />

ano da graça de 1223, desejou compor do modo mais<br />

real possível a cena vista pelos pastores na Gruta de<br />

Belém.<br />

Com seu espírito poético, voltado para o maravilhoso,<br />

sua candura e humildade, preparou uma manjedoura<br />

coberta com feno e mandou colocar de um<br />

lado um boi, e de outro um asno. Fez celebrar nesse<br />

local a Missa e, observando a cena, dirigiu-se aos assistentes,<br />

descrevendo com palavras ardentes de piedade<br />

e amor o nascimento do Homem-Deus.<br />

A partir desse fato, difundiu-se por toda a Cristandade<br />

o costume de montar presépios por ocasião do<br />

Natal. Ativando a imaginação de pequenos e adultos,<br />

eles são ocasião de incontáveis flashes — para utilizarmos<br />

um termo pliniano —, proporcionando-nos<br />

algumas das mais inesquecíveis horas de nossa vida.<br />

Considerando esse quadro, quantas e quantas vezes<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> elevou suas cogitações até aquele convívio<br />

inefável da Sagrada Família, nunca se esquecendo de recordar<br />

que essa sublime cena nos cobra uma determinada<br />

disposição de espírito: “Não basta que nos inclinemos<br />

ante Jesus Menino, ao som dos hinos litúrgicos,<br />

em uníssono com a alegria do povo fiel. É necessário que<br />

cuidemos cada qual de nossa própria reforma, e da reforma<br />

do próximo, para que a crise contemporânea tenha<br />

solução, para que a luz que brilha no presépio recobre<br />

campo livre para sua irradiação em todo o mundo”.<br />

Contudo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> destacava igualmente que, nesse<br />

dia bendito, Jesus e Maria querem especialmente<br />

de nós que nos deixemos impregnar pela doce e benigna<br />

atmosfera do acontecimento grandioso: “Deus,<br />

ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como<br />

nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe d’Ele, mas<br />

também nossa. [...] Ao contemplar isso, nossas almas<br />

crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.<br />

A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que<br />

em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado.<br />

Florescem os dons de alma. O dom do afeto.<br />

O dom do perdão. E, como símbolo, a oferta delicada e<br />

desinteressada de algum presente”.*<br />

Nessa ocasião do mais augusto de todos os aniversários,<br />

aproximemo-nos do presépio e, silenciosos e<br />

recolhidos, deixemos que nossas almas sejam inundadas<br />

por essa paz luminosa do santo Natal.<br />

* Os trechos acima transcritos foram publicados respectivamente<br />

em Legionário, 22/12/46; Catolicismo, dez/52;<br />

Folha de S. Paulo, 27/12/70.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Decisão na adolescência<br />

Em 12 de dezembro de 1920, na solene<br />

distribuição anual de prêmios no Colégio<br />

São Luís, o menino <strong>Plinio</strong> recebia<br />

quatro medalhas de ouro: pelo primeiro lugar<br />

em Comportamento e Aplicação, Religião, Francês<br />

e Inglês; além disso, menção honrosa em Português<br />

e em Latim. No dia seguinte ele faria 12<br />

anos de idade.<br />

Essa data de tanta alegria foi marcada por uma<br />

tragédia que o levou a profundas reflexões e o<br />

fez crescer em virtude.<br />

Décadas depois, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> recordaria como,<br />

naquela ocasião, encontrava-se na luta comum<br />

da adolescência para proteger sua castidade, e um<br />

dos pensamentos que mais o ajudavam era o de<br />

que, se não lutasse, seu destino poderia ser o Inferno.<br />

O triste fato que se passou mostrou-lhe de<br />

maneira muito viva esse perigo. Ouçamo-lo narrar:<br />

“Eu estava no jardim, quando vi mamãe descer<br />

as escadas e dirigir-se para mim com olhar de<br />

piedade, com mostras de querer agradar-me especialmente.<br />

Disse-me com muita pena:<br />

— Meu filho, você vai passar por uma situação<br />

que ainda não conhece. Lembra-se do Carlos<br />

Eduardo? (Era um colega de colégio e amigo.)<br />

Ele está mal à morte.<br />

— Mas o que lhe aconteceu?<br />

— Estava brincando com uns primos. Um deles<br />

brigou com ele e furou-lhe um olho com uma tesourinha.<br />

A ferida produziu uma infecção horrível,<br />

e os médicos dão-no como perdido. Esta é a<br />

primeira vez que morre uma pessoa de um círculo<br />

de relação mais próxima de você. É preciso que<br />

se prepare para isso.<br />

Embora ela me falasse com muita bondade,<br />

senti a proximidade da morte. E me veio esta<br />

idéia: ‘E você? A qualquer hora pode também<br />

levar uma tesourada em cada olho. O que lhe<br />

acontecerá? Ô, ô, ô... morrer?!... e ir parar no terrível<br />

Inferno dos poltrões... Para evitar essa desgraça<br />

irremediável, tenho de carregar a imensidade<br />

da minha fraqueza, dobrar-me, ser forte,<br />

lutar, ser um herói... Contudo, forças, eu não tenho.<br />

A saída é recorrer a Nossa Senhora’.”<br />

O jovem <strong>Plinio</strong> e<br />

alguns dos<br />

prêmios que<br />

ganhou no<br />

Colégio São Luís<br />

5


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

GLÓRIA A DEUS<br />

NO CÉU,<br />

EPAZNA<br />

TERRA AOS<br />

HOMENS<br />

DE BOA<br />

VONTADE<br />

A<br />

s reflexões sobre<br />

o Natal escritas<br />

em 1936<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> parecem<br />

feitas, de algum modo,<br />

mais para os dias de hoje<br />

do que para aquela<br />

época, tanto no tocante<br />

às nuvens negras que<br />

toldam o quadro dos<br />

acontecimentos, quanto<br />

aos raios de esperança<br />

que o perpassam.<br />

“O Nascimento de Jesus”, por Petrus Christus<br />

6


Enquanto os Anjos de nossos piedosos presépios<br />

ostentam dísticos em que se lê: “Glória a Deus<br />

nos Céus, e paz na terra aos homens de boa<br />

vontade”, a imprensa diária está cheia de notícias terríveis<br />

que destoam tristemente da promessa angélica. [...]<br />

Por toda parte só encontramos ódio, rancor, perseguição.<br />

E, no entanto, cumpre que não desanimemos. Não seríamos<br />

dignos da graça inestimável do Batismo que recebemos,<br />

se permitíssemos que o pânico se apoderasse de<br />

nós. Nem na ordem natural, nem na ordem sobrenatural,<br />

há motivos que justifiquem a inércia e o pessimismo.<br />

Cristo, como único Salvador do mundo:<br />

lição do Natal<br />

O que a Igreja espera, hoje em dia, de seus filhos, é a<br />

realização de uma tarefa ao mesmo tempo muito grande<br />

e muito simples. Ela quer que todos os católicos (os católicos<br />

dignos deste nome, e não a turbamulta dos pagãos<br />

que usam rótulo católico), com uma persuasão vigorosa e<br />

magnífica, se ergam no tumulto do mundo contemporâneo,<br />

proclamando o cristianismo como seu único Salvador.<br />

Único, dissemos. E insistimos sobre esta palavra.<br />

Erraria crassamente quem supusesse que o Cristo só veio<br />

salvar a humanidade de seu tempo. Em todos os tempos,<br />

em todos os países, para todos os povos, em todos os perigos,<br />

em todas as dificuldades, apesar de todos os pecados,<br />

Cristo é o ÚNICO Salvador.<br />

[Alguns países] pensam que podem atingir a prosperidade<br />

e a paz, por meio de pequenas receitas políticas em<br />

que misturam, em doses variáveis, a autoridade e a liberdade.<br />

Loucura e ilusão. Se eles não aceitarem as normas<br />

sociais e morais da Igreja, se não derem ao catolicismo a<br />

influência preponderante a que tem direito, não escaparão<br />

à ruína. De reforma em reforma, rolarão para o abismo.<br />

[Outros países] pensam que o braço vigoroso de um<br />

ditador lhes pode restituir a felicidade. Loucura, ainda, e<br />

ilusão. Porque o maior homem do mundo, dotado da mais<br />

lúcida inteligência, da mais alta moralidade, da mais vigorosa<br />

energia, do mais formidável poder, não conseguiria<br />

organizar convenientemente um povo que vivesse entregue<br />

à anarquia intelectual e efetiva que, fora da Igreja,<br />

é inevitável. Um povo é um conjunto de homens. Um<br />

povo disciplinado não pode ser composto de homens anarquizados<br />

no mais íntimo do seu ser, como um copo de água<br />

pura não pode constar de um conjunto de gotas de água<br />

impuras.<br />

Cristo como base da civilização, e as formas do governo<br />

como aspectos secundários e acidentais da vida de um<br />

povo, eis aí uma das grandes lições do Natal.<br />

Trabalhar, lutar, sofrer e rezar pela Igreja<br />

Mas, dirá alguém, Cristo é um Salvador ausente. Eternamente<br />

mudo, atrás da cortina de nuvens que o escondem<br />

no Céu. Ele não se mostra à humanidade aflita. E<br />

esta então corre à busca de outros pastores.<br />

É horrível dizê-lo, mas há entre católicos quem fale<br />

assim. Há ainda quem não ouse falar, mas pense assim. E<br />

há quem não ouse pensar, mas sinta assim! Daí o existirem<br />

católicos que têm mais esperança na ação da política<br />

do que na ação do Cristo.<br />

Ah! São esses os corações que recebem a visita eucarística<br />

do Cristo, mas não recebem o seu Espírito: in propria<br />

venit, et sui eum non receperunt (veio para que era seu,<br />

e os seus não o receberam).<br />

Ah! São esses os corações que ouvem a palavra do Cristo,<br />

vinda do Vaticano, e não conhecem na voz do Papa o<br />

timbre da voz de Deus. A palavra do Papa ecoa no mundo,<br />

e o mundo não a conhece: lux in tenebris lucet, et tenebrae<br />

eam non conprehenderunt (a luz brilha nas trevas, e as<br />

trevas não a envolveram).<br />

Cristo, para o bom católico, não está ausente. Na Eucaristia,<br />

Ele está tão realmente quanto esteve na Judéia.<br />

E do Vaticano fala tão verdadeiramente quanto falou ao<br />

povo de Israel. A Igreja é tão seguramente guiada por Cristo<br />

em 1936, quanto o eram os Apóstolos, antes da Ascensão.<br />

O que Cristo quer fazer, fá-lo por meio da Igreja. O que<br />

Cristo quer dizer, di-lo por meio do Papa. Logo, a Igreja<br />

em certo sentido é onipotente e onisciente porque é instrumento<br />

da onipotência e porta-voz da onisciência de<br />

Deus.<br />

Se Cristo é o Salvador único, a Salvação virá da Igreja.<br />

Trabalhar, lutar, sofrer, rezar, imolar-se ou sacrificarse<br />

alegremente pela Igreja, deve ser o fruto desta meditação<br />

de Natal. Porque todas as causas e todos os ideais<br />

devem vir depois da suprema Causa e do supremo ideal<br />

da Igreja.<br />

GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS, E PAZ NA<br />

TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE.<br />

(Excertos, com ligeiras adaptações, de artigo do<br />

Legionário nº 224, de 27/12/1936. Subtítulos nossos.)<br />

7


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A grande utopia<br />

E<br />

m todos os séculos houve gente<br />

que sonhou com um mundo no<br />

qual um dia todos se amarão, algo<br />

na linha da fábula de La Fontaine sobre<br />

a paz firmada entre os lobos e as ovelhas.<br />

Citando São Luís Maria Grignion de<br />

Montfort, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostra a vacuidade<br />

dessa esperança.<br />

Não<br />

N<br />

é deste mundo a concórdia<br />

sem jaça, a paz perfeita<br />

e eterna entre todos os<br />

homens, todas as nações e todas as<br />

doutrinas, a felicidade total. Nesta<br />

terra de exílio, as carências, as dissensões,<br />

as catástrofes são inevitáveis. E<br />

uma visão cristã da vida leva, ao mesmo<br />

tempo, a circunscrevê-las quanto<br />

possível e a resignar-se a elas porque<br />

inevitáveis.<br />

Divisão inexorável<br />

Esta dura lição, tão ingrata ao neopaganismo<br />

de nossos dias, lembro-a<br />

num texto áureo de São Luís Maria<br />

Grignion de Montfort, o incomparável<br />

apóstolo da devoção a Nossa Senhora.<br />

Dissertando sobre a eterna luta<br />

entre a Virgem e a serpente, mostranos<br />

ele a vida dos povos antes de tudo<br />

como uma grandiosa, trágica e incessante<br />

guerra entre a verdade e o<br />

erro, o bem e o mal, o belo e o feio.<br />

Batalha esta sem a qual a existência<br />

terrena do homem, desfalcada do seu<br />

significado sobrenatural, perderia sua<br />

dignidade.<br />

Comentando as palavras do Gênesis<br />

(3, 15) — “porei inimizades entre<br />

ti e a mulher e entre a tua posteridade<br />

e a posteridade dela” — observa<br />

com profundidade o grande santo:<br />

“Uma única inimizade Deus promoveu<br />

e estabeleceu, inimizade irreconciliável,<br />

que não só há de durar,<br />

mas aumentar até o fim: a inimizade<br />

entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio;<br />

entre os filhos e servos da Santíssima<br />

Virgem e os filhos e sequazes<br />

de Lúcifer; de modo que Maria é a<br />

mais terrível inimiga que Deus armou<br />

contra o demônio” (Tratado da Verdadeira<br />

Devoção à Santíssima Virgem,<br />

Vozes, Petrópolis, 6ª edição, 1961,<br />

pp. 54- 55).<br />

E ele passa em seguida a descrever<br />

a grande guerra que divide os homens<br />

inexoravelmente, até o fim da<br />

8


Evocando a eterna luta entre a Virgem<br />

e a serpente, São Luís Grignion de<br />

Montfort (acima) aponta a vida dos povos<br />

como uma grandiosa, trágica<br />

e incessante guerra entre a verdade<br />

e o erro, o bem e o mal, o belo e o feio.<br />

(Ao lado, Nossa Senhora do Apocalipse)<br />

História. Tal guerra não é senão um<br />

prolongamento da oposição entre a<br />

Virgem e a serpente, entre a progenitura<br />

espiritual daquela e a progenitura<br />

espiritual desta: “(Deus) lhe deu<br />

até, desde o Paraíso, tanto ódio a esse<br />

amaldiçoado inimigo, tanta clarividência<br />

para descobrir a malícia dessa velha<br />

serpente, tanta força para vencer,<br />

esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso,<br />

que o temor que Maria inspira ao<br />

demônio é maior que o que lhe inspiram<br />

todos os anjos e homens, e, em certo<br />

sentido, o próprio Deus” (op. cit., p. 55).<br />

Dentro deste quadro, a “clemente,<br />

piedosa, doce Virgem Maria” que<br />

o Doutor Melífluo, São Bernardo,<br />

cantou com tal suavidade na “Salve<br />

Regina”, nos é apresentada por São<br />

Luís Grignion como uma verdadeira<br />

torre de combate (Turris Davidica,<br />

exclama a Ladainha Lauretana).<br />

9


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Maria será sempre vitoriosa<br />

Ao longo da História, até o fim do<br />

mundo, os filhos de Nossa Senhora<br />

batalharão contra os filhos de Satã.<br />

E a vitória final será dos primeiros,<br />

pela interferência da Mãe de Deus:<br />

“Deus não pôs somente inimizade,<br />

mas inimizades, e não somente entre<br />

Maria e o demônio, mas também entre<br />

a posteridade da Santíssima Virgem<br />

e a posteridade do demônio. Quer dizer,<br />

Deus estabeleceu inimizades, antipatias<br />

e ódios secretos entre os verdadeiros<br />

filhos e servos da Santíssima Virgem<br />

e os filhos e escravos do demônio.<br />

Não há entre eles a menor sombra de<br />

amor, nem correspondência íntima existe<br />

entre uns e outros. Os filhos de Belial,<br />

os escravos de Satã, os amigos do<br />

mundo (pois é a mesma coisa) sempre<br />

perseguiram até hoje e perseguirão no<br />

futuro aqueles que pertencem à Santíssima<br />

Virgem, como outrora Caim perseguiu<br />

seu irmão Abel, e Esaú seu irmão<br />

Jacob, figurando os réprobos e os<br />

predestinados. Mas a humilde Maria<br />

será sempre vitoriosa na luta contra<br />

este orgulhoso, e tão grande será a vitória<br />

final que Ela chegará ao ponto de<br />

esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o<br />

orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia<br />

de serpente, desvendará suas tramas<br />

infernais, desfará seus conselhos<br />

diabólicos, e até o fim dos tempos garantirá<br />

seus fiéis servidores contra as garras<br />

de tão cruel inimigo” (op. cit., pp. 56-<br />

<strong>57</strong>).<br />

Bem entendido, nossos dias também<br />

têm sido sacudidos por esse entrechoque<br />

terrível, que não se confunde<br />

necessariamente com as guerras<br />

do século, mas tem alguma relação<br />

com elas. E sobretudo tem uma<br />

relação óbvia com as incontáveis revoluções<br />

que têm abalado o Ocidente,<br />

como fora predito por Nossa Senhora<br />

em Fátima.<br />

Utopia, ilusão e mentira<br />

A supressão dessa luta por uma reconciliação<br />

entre a raça da Virgem e<br />

a raça da serpente, rumo a uma era na<br />

qual a cessação utópica do entrechoque<br />

acarrete uma composição entre<br />

todos os direitos, todos os interesses,<br />

uma interpenetração de todas as línguas<br />

sob um governo universal que<br />

será tão-só fartura e despreocupação<br />

— eis a grande utopia contra a qual<br />

as massas se devem precaver. Eis o<br />

regresso (ou antes, o retrocesso) à<br />

orgulhosa Torre de Babel, que de todos<br />

os modos o neopaganismo procura<br />

reerguer. Eis a bandeira toda tecida<br />

de ilusão e de mentira com que, em<br />

todas as épocas, os demagogos procuram<br />

arrastar as massas insurrectas.<br />

(Transcrito do jornal<br />

“Última Hora”, Rio de Janeiro,<br />

6/3/1981. Título e subtítulos nossos.)<br />

Pretender<br />

uma utópica<br />

reconciliação<br />

entre o bem e o<br />

mal, que resulte<br />

na composição de<br />

todos os interesses,<br />

direitos e línguas<br />

sob um governo<br />

universal, onde<br />

só reinem a<br />

fartura e a<br />

despreocupação<br />

— eis o retrocesso<br />

à orgulhosa<br />

Torre de Babel...<br />

10


DONA LUCILIA<br />

Dias marcados<br />

pelas saudades<br />

Dona Lucilia no<br />

fim da década de<br />

1940; ao fundo,<br />

um dos salões<br />

de sua casa<br />

Tendo partido para a Europa<br />

às vésperas do aniversário de<br />

sua querida mãe, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

via aproximar-se o dia 22 de abril,<br />

pensando em como ela celebraria essa<br />

data tão cara aos dois. Mais um<br />

ano de Da. Lucilia ficará para trás.<br />

Na estabilidade das boas disposições<br />

e equilíbrio dela, sentia ele um sustentáculo<br />

àquela determinação de fidelidade<br />

ao bem, que tomara desde<br />

sua adolescência, no Colégio São Luís.<br />

Por seu lado, com o correr do tempo,<br />

cada vez mais Dª Lucilia ia assumin-<br />

11


DONA LUCILIA<br />

do a fisionomia bondosa, doce, afável<br />

e sofredora, mas firme, definida e categórica,<br />

facilmente discernível em<br />

suas derradeiras fotografias.<br />

Cartas afetuosas e<br />

muitas flores<br />

Logo na manhã daquele 22 de abril<br />

um telegrama chega a seu apartamento:<br />

BARCELONA – 22.04.50<br />

MILHÕES BEIJOS AFETUOSÍS-<br />

SIMOS<br />

PLINIO<br />

<strong>Dr</strong>. João Paulo à mesma hora entregou<br />

a segunda carta deixada por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, acompanhada de um belíssimo<br />

bouquet de flores. Dessa forma,<br />

ao iniciar seu dia, ela já recebia<br />

manifestações de amor e veneração<br />

de seu filho, tal como se ele não estivesse<br />

ausente. À vista do carinhoso<br />

gesto, seu coração se comoveu e não<br />

conseguiu conter as lágrimas, só que,<br />

desta vez, de puro contentamento,<br />

enquanto lia estas expressivas linhas:<br />

13 de Abril 22-IV¹<br />

Meu amorzinho querido.<br />

Quis que, logo ao acordar, minhas<br />

felicitações fossem as primeiras, com<br />

as de Papai. Mil beijos, mil abraços, carinho<br />

sem fim, um oceano de saudades.<br />

Poucas vezes fiz um sacrifício tão<br />

grande quanto o de marcar viagem nas<br />

vésperas de seu aniversário, que eu gostaria<br />

imensamente de passar com a Senhora.<br />

Mas, meu bem, foi indispensável<br />

organizar as coisas assim. A ida foi antecipada:<br />

se-lo-á implicitamente a volta.<br />

Hoje, comungarei pela Senhora, e<br />

pensarei na Senhora o dia todo.... o que<br />

aliás farei nos outros dias também!<br />

As flores da casa são todas compradas<br />

por mim.<br />

Mil felicidades, querida. Que Nossa<br />

Senhora dê tudo à Senhora.<br />

Pede sua bênção com um afeto e<br />

um respeito sem conta o seu taludíssimo<br />

e esporudíssimo ex-Pimbinche<br />

<strong>Plinio</strong><br />

Alguns dias depois, ainda a propósito<br />

de seu aniversário, Dª Lucilia<br />

recebeu mais uma carta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

escrita já da Espanha e datada<br />

de 21 de abril, na qual ele manifestava<br />

o quanto lhe doía não poder estar<br />

em São Paulo no dia seguinte.<br />

Recorramos uma vez mais às cartas<br />

enviadas por <strong>Dr</strong>. João Paulo a seu<br />

filho, a fim de saber como transcorreu<br />

para Dª Lucilia esse dia.<br />

Aqui chegou no dia 22, cedo, teu<br />

telegrama de Barcelona. E logo mais,<br />

o do Adolpho. Lucilia se comoveu muito,<br />

não só com o telegrama, como com<br />

a carta que aqui ficou para lhe ser entregue<br />

naquele dia: derramou o pote<br />

após exclamações de ternura e saudade<br />

e mergulhou fundo na reza depois.<br />

Tudo correu bem no aniversário dela:<br />

tivemos um bom jantar, florida a<br />

mesa com uns magníficos cravos vermelhos;<br />

a sala de visitas teve umas lindas<br />

flores, compradas com os cem que<br />

para isso deixaste...<br />

Tendo sido aquele dia tomado por<br />

visitas, às quais, por sua inalterável<br />

benevolência, Dª Lucilia ia receber<br />

com os já conhecidos requintes de<br />

boa-acolhida, só pôde responder a seu<br />

filho na manhã seguinte. Fê-lo com<br />

palavras repassadas de ardente amor<br />

a Deus:<br />

São Paulo, 23-04-50<br />

Filho querido de meu coração!<br />

De todo o coração, de toda a minha<br />

alma, agradeço-te a carta tão afetuosa<br />

que me deixaste, e que tanto conforto<br />

me trouxe, e mais as lindas, “belíssimas<br />

mesmo” palmas brancas, rubras, amarelas<br />

e lilases, que Zili enviou-me pela<br />

manhã. Chorei é verdade, mas, “graças<br />

a Deus”, foi de felicidade por ter recebido<br />

eu, tão indigna, “liberal”, a imensa<br />

dádiva dos Sagrados Corações de Jesus<br />

e Maria Santíssima, de um filho tão<br />

santo, tão bom e carinhoso, que abençôo<br />

de todas as veras de minha alma,<br />

por quem peço toda a proteção Divi-<br />

12


na, e a Luz do Divino Espírito Santo.<br />

Destas palmas, levei duas para a capela<br />

do “sexto andar”, uma para tua imagem<br />

do Imaculado Coração de Maria<br />

em teu quarto, onde, como de costume<br />

rezei por ti, e duas outras para a imagem<br />

do Sagrado Coração de Jesus, no<br />

salão (e o resto, muitas, na jarra do imperador).<br />

Preciso dizer-te as saudades e a falta<br />

que me fizeste? Pois bem, com menos<br />

intensidade, era o que todos sentiam.<br />

(...) Fui hoje ouvir missa e comungar<br />

por ti na “minha” igreja do Sagrado Coração<br />

de Jesus, onde encomendei uma<br />

missa por tua intenção, e bom êxito em<br />

teus empreendimentos. Estou ansiosa<br />

por receber uma carta tua, trazendo-me<br />

tuas impressões do lugar. As primeiras,<br />

geralmente não são favoráveis; mas depois<br />

aos poucos, já ambientado, aprecia-se<br />

muito mais. Escreva-me sempre;<br />

sim? Vê se encomenda a missa para<br />

Nª Srª da Begoña por intenção de<br />

Rosée; sim?<br />

Com muitas saudades, “espiritualmente”<br />

faço-te uma cruzinha na testa,<br />

e... cubro-a de beijos e bênçãos. Um longo<br />

e saudoso abraço, Pimbinchen querido,<br />

de tua “manguinha” afetuosa,<br />

Lucilia<br />

Algumas impressões de<br />

viagem<br />

Finalmente, por volta de 25 de<br />

Abril, Dª Lucilia recebeu a primeira<br />

carta de seu filho com as tão ansiadas<br />

notícias e impressões de viagem.<br />

Estaria ela com certeza curiosa de<br />

saber qual a reação de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />

terra de El Cid Campeador. No entanto,<br />

sendo o povo espanhol de psicologia<br />

tão diferente da brasileira, já<br />

previa que seu filho podia sentir não<br />

pequena estranheza. Daí precavê-lo,<br />

na carta anterior, para não se deixar<br />

Na manhã do dia 22 de abril,<br />

Dona Lucilia teve a grata surpresa de receber a<br />

carta deixada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

e as muitas flores que ele encomendou para<br />

ornarem as dependências da casa. Na página<br />

anterior, fac-símile dessa carta;<br />

ao lado e acima, aspectos do apartamento florido.<br />

13


DONA LUCILIA<br />

levar pelas primeiras impressões, as<br />

quais “geralmente não são favoráveis”,<br />

mas procurasse logo se ambientar e<br />

desse modo tirar todo o proveito da<br />

viagem.<br />

Devido à formação recebida de Dª<br />

Lucilia, desde o início <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> apreciou,<br />

acima de tudo, a catolicidade<br />

militante daquele heróico povo, que<br />

empreendera, havia pouco tempo,<br />

vitoriosa cruzada contra o comunismo.<br />

Era essa virtuosa combatividade<br />

a nota mais saliente nos belos monumentos<br />

por ele visitados em companhia<br />

de cultos e vivazes amigos espanhóis,<br />

empenhados no simpático afã<br />

de lhe fazer conhecer as principais<br />

maravilhas do país.<br />

Madrid, 18-IV-50<br />

Mãezinha querida do meu coração,<br />

e querido Papai.<br />

Escrevo-lhes depois de três dias de<br />

intensas viagens, isto é, 24 horas de<br />

avião, um dia de visitas em Madrid, e<br />

um dia de Escorial. Faço-o com enormes<br />

saudades. É meia noite, hora de<br />

uma ultima conversa com minha gente<br />

do 6º andar no Fasano, e poucos<br />

minutos antes de minha conversa<br />

“tête-à-tête” com a Lú.... Como gostaria<br />

de os ter todos comigo aqui!<br />

A viagem aérea foi boa. Cerca de<br />

24hs. tocamos em Recife: aeroporto<br />

bem arranjado e calor tremendo. A cidade<br />

se percebia bem em todos os seus<br />

contornos graças à iluminação: é bem<br />

grande. Dormimos passavelmente e no<br />

dia seguinte voamos sobre o Saara, que<br />

pudemos ver muito bem e por muito<br />

tempo. O dia ainda era claro quando<br />

sobrevoamos Gibraltar, vendo bem o<br />

forte. Chegamos a Madrid entre 21 e<br />

22 horas. (...)<br />

Nosso hotel é razoavel. Encontrei<br />

logo à chegada o Cel. Barrera (filho do<br />

Marquês de Valdegamas e Conde de<br />

Miraflores) que estava à minha espera<br />

há dois dias. [Estava] com seu cunhado<br />

Olague (historiador prodigiosamente<br />

culto e inteligente, e que parece muito<br />

influente aqui). Visitei o Prado com<br />

eles. Os Murillos,<br />

Velasquez,<br />

Ticianos, Flamengos,<br />

Goyas,<br />

pululam por lá.<br />

A riqueza do Museu<br />

é indescritível.<br />

Quanto à beleza<br />

dos quadros é supérfluo<br />

dizer algo.<br />

Depois fomos à casa<br />

de Lope de Vega<br />

onde o Olague nos<br />

apresentou à Embaixatriz<br />

(notável) da França, em cuja<br />

companhia a visitamos.<br />

Hoje pela manhã, Barrera! Depois,<br />

Olague, para um passeio ao Escorial.<br />

Este – como as outras coisas que tenho<br />

visto aqui — não é descritível em<br />

palavras. Rezei junto à sepultura de<br />

Filipe II, à cama em que expirou, e à<br />

sepultura de Dom João d’Áustria, a um<br />

enorme autografo de Santa Teresa, e ao<br />

tinteiro em que ela escreveu.<br />

Amanhã, se Deus quiser, continuarão<br />

as visitas.<br />

E a Lú? Tem dormido bem? Tem<br />

dormido à hora? Tem tido energia em<br />

matéria de saudades? Tem tomado<br />

muita água Prata? Tem tomado muito<br />

taxi?<br />

E Papai? Tem tido muito trabalho<br />

com o escritório? Tem comido muito<br />

coco?<br />

Para os do 6º andar, todos os abraços<br />

possíveis.<br />

Para Papai, com abraços muito afetuosos,<br />

inúmeras saudades.<br />

E para a Senhora, minha Mãezinha,<br />

o quê? Tudo quanto pode haver neste<br />

mundo em matéria de abraços, beijos,<br />

carinho, respeito, saudades, afecto; e<br />

abençoe o seu filhão.<br />

<strong>Plinio</strong><br />

“Quantas saudades,<br />

quantas saudades...”<br />

No dia 3 de maio, um dos amigos<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> partia rumo a Paris. Embora<br />

levasse uma carta escrita poucos<br />

dias antes por Dª Lucilia, as muitas<br />

saudades dela fizeram-na escrever<br />

outra, de última hora. Por estas linhas,<br />

vê-se novamente como o que mais<br />

almejava para seu filho era um acréscimo<br />

em graça, e com empenho o<br />

pedia a Deus.<br />

Não perde a ocasião para dar pequenos<br />

conselhos ao seu “taludíssimo<br />

ex- Pimbinchen”, e encerra a missiva<br />

com mais uma tocante mostra<br />

do quanto a virtude da gratidão era<br />

sólida em sua alma:<br />

S. Paulo, 3-5-1950.<br />

Meu filho tão querido!<br />

Quantas saudades, quantas saudades.<br />

Permita Deus, que te encontres muito<br />

bem de saúde e de espírito, cada vez<br />

mais entusiasmado, curioso, e com<br />

acréscimo de fé, graças, que, como bom<br />

filho, tanto mereces. Dize a teus caros<br />

companheiros e amigos, que todos estes<br />

votos faço extensivos a eles.<br />

Fui hoje, às oito e meia, ao Sagrado<br />

Coração de Jesus, onde comunguei e<br />

assisti a uma missa que havia encomendado<br />

pela tua felicidade e da de<br />

teus empreendimentos.<br />

Penso que, “uma vez, ao menos,<br />

para conhecer”, vocês deveriam ir aos<br />

teatros da “Opéra”, “Comédie Française”,<br />

e ao “Odeon”.<br />

14


Escreve-me sempre; sim? Recomenda-me<br />

ao “grupo”.<br />

Ia me esquecendo de falar-te em<br />

José Gustavo. Yayá e Dora fizeram-me<br />

ver a falta que faz no salão do “sexto”,<br />

um bom retrato (maior) de José Gustavo,<br />

com o que concordo plenamente.<br />

Lembrem-se e contentem-se com as<br />

dádivas em São Sebastião, e o bom<br />

aluguel do sexto que o Antoni fez, e<br />

quanto lhe seria grato ver lá um bom<br />

retrato do filho! Concorde comigo; sim?<br />

eu te peço!<br />

Terminando, peço-te também orações<br />

em Fátima, Lourdes e Stª. Catharina.<br />

Saudosa, abraço-te e beijo-te muito<br />

e muito!<br />

Abençoa-te, tua mãe extremosa,<br />

Lucilia<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra<br />

“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)<br />

1) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> colocou as duas datas na<br />

carta. A primeira era do dia em que a<br />

escreveu.<br />

No dia 25 de abril Dona Lucilia<br />

recebia uma carta de seu filho,<br />

contando-lhe as primeiras<br />

impressões da viagem,<br />

especialmente as da visita ao<br />

Escorial (acima), onde ele rezou<br />

junto à sepultura de Felipe II (no<br />

detalhe). Ao lado, L’Ópera, de<br />

Paris. Na página anterior, facsímile<br />

da carta de Dona Lucilia<br />

reproduzida acima.<br />

15


DR. PLINIO COMENTA...<br />

UMA MEDITAÇÃO PARA O<br />

HOMEM DE HOJE<br />

N<br />

uma conferência para jovens, no tempo de Natal, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez duas<br />

meditações, de tipos diferentes, a fim de verificar qual delas mais tocava<br />

o coração de seus ouvintes. A primeira, seguindo o método de<br />

Santo Inácio de Loyola, com pouco apelo ao sentimento. Improvisou em seguida<br />

a outra, com pensamentos formulados mais de acordo com as novas gerações.<br />

Transcrevemos aqui o cerne da segunda meditação.<br />

Detalhe da “Adoração dos Reis Magos”, de Gentile da Fabriano<br />

16


Abordo agora o tema por um prisma inteiramente<br />

diferente do da escola de Santo Inácio<br />

de Loyola. Isso servirá para verificar que tipo<br />

de meditação mais toca a geração dos que estão aqui.<br />

Fundo de quadro<br />

Imaginem-se vendo chegar os Reis Magos com suas<br />

caravanas, os animais carregados de tesouros, a estrela,<br />

etc., e esses Reis oferecendo ao Menino Jesus, em atitude<br />

de adoração, ouro, incenso e mirra.<br />

Retendo na imaginação tal fundo de quadro, qual das<br />

cenas que vou descrever causaria a cada um dos que aqui<br />

estão mais alegria de alma? Por qual delas sentir-se-iam<br />

mais próximos do Menino Jesus?<br />

N’Ele poderíamos considerar, entre outros aspectos, a<br />

infinita grandeza, de um lado; a infinita acessibilidade,<br />

de outro lado; e também sua infinita compaixão.<br />

Grandeza do Menino Jesus e de Nossa<br />

Senhora<br />

Ao considerar a infinita grandeza, podemos imaginar<br />

uma gruta alta, grande quase como uma catedral, que<br />

não tivesse evidentemente uma arquitetura definida, mas<br />

onde o movimento das pedras nos fizesse pressentir vagamente<br />

as ogivas de uma catedral da futura Idade Média.<br />

Podemos imaginar ainda a lapa onde ficava o berço<br />

do Menino colocada num ponto majestoso da encruzilhada<br />

dessas várias naves laterais naturais, com uma luz<br />

celeste, toda de ouro, pairando sobre Ele naquele momento.<br />

O Menino Jesus, com majestade de verdadeiro rei, embora<br />

deitado em seu presépio e sendo ainda uma criança.<br />

Ele, rei de toda majestade e de toda glória. O criador do<br />

Céu e da terra, Deus encarnado feito homem. Ele, desde<br />

o primeiro instante de seu ser — portanto já no claustro<br />

materno de Nossa Senhora —, tendo mais majestade,<br />

mais grandeza, mais manifestações de força e de poder<br />

que todos os homens que existiram e existirão na terra.<br />

Ele, incomparavelmente mais inteligente do que São Tomás<br />

de Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno, Napoleão<br />

ou Alexandre. Ele, conhecedor de todas as coisas,<br />

sabendo incomparavelmente mais do que qualquer cientista<br />

moderno. Ele, manifestando na fisionomia sempre<br />

variável essa majestade feita de sabedoria, de santidade,<br />

de ciência e de poder.<br />

Imaginem-se, portanto, encontrando isso misteriosamente<br />

expresso na fisionomia desse Menino. Ele às vezes<br />

movendo-se, e no movimento aparecendo o seu lado de<br />

Rei. Abrindo os olhos, e no olhar aparecendo um fulgor<br />

de tal profundidade que fizesse ver n’Ele um grande sábio.<br />

Estando rodeado por uma atmosfera tal que nimbasse<br />

de santidade todos os que d’Ele se acercassem. Uma<br />

atmosfera de pureza tal que as pessoas não se aproximassem<br />

sem antes pedir perdão por seus pecados, mas<br />

ao mesmo tempo se sentissem atraídas a se corrigirem,<br />

pela santidade que emanava do local.<br />

Imaginem ali, ainda, Nossa Senhora aos pés do Menino<br />

Jesus, também Ela como verdadeira Rainha, com uma<br />

dignidade e imponência tais, que não precisava nem de<br />

roupas nobres nem de tecidos de qualidade para se fazer<br />

valer.<br />

Conta-se de Santa Teresinha que ela era tão imponente,<br />

que o pai a chamava “minha pequena rainha”. O jardineiro<br />

do carmelo contou, no processo de canonização,<br />

que viu certa vez uma freira, de costas, fazer alguma coisa,<br />

e essa freira era Santa Teresinha. O “advogado do diabo”<br />

então perguntou: “Como é que, vendo-a de costas, o<br />

senhor sabia que ela era Santa Teresinha?” Ele respondeu:<br />

“Pela majestade dela. Ninguém tinha a mesma majestade”.<br />

Se assim foi Santa Teresinha, o que seria Nossa Senhora?<br />

Imaginem, portanto, Nossa Senhora majestosíssima,<br />

transcendente, puríssima, rezando ao Menino Jesus. E os<br />

anjos, invisíveis, cantando hinos de glorificação, com toda<br />

a atmosfera reinante saturada de valores tais que se diria<br />

haver naquela pobreza e naquela miséria uma atmosfera<br />

de corte.<br />

Imaginem-se aproximando e sentindo a grandeza do<br />

Menino-Deus, e adorando-O pelos seus aspectos nobres,<br />

belos, santos, intransigentes e combativos. Adorando esse<br />

Menino que atrai para junto de si todas as formas de<br />

grandeza, todas as formas de pureza, todas as formas de<br />

santidade que d’Ele dimanam, e que não são senão participação<br />

da santidade d’Ele; e que, ao mesmo tempo,<br />

rechaçando para longe de si o pecado, o erro, a desordem,<br />

o caos, a Revolução¹, deixa-os no chão, de longe, sem<br />

nem sequer ousar levantar os olhos para aquela cena magnífica<br />

em que a ordem, a hierarquia, a pompa e o esplendor<br />

dominam completamente.<br />

Enorme acessibilidade<br />

Imaginemos, agora, o Menino Jesus imensamente acessível.<br />

Esse Rei tão cheio de majestade em certo momento<br />

abre para nós os olhos. Notamos que seu olhar puríssimo,<br />

inteligentíssimo, lucidíssimo, penetra em nossos olhos<br />

até o mais fundo. Vê o mais fundo de nossos defeitos, como<br />

também o melhor de nossas qualidades, e toca nesse<br />

17


DR. PLINIO COMENTA...<br />

momento a nossa alma, como tocou, 33 anos depois, a de<br />

São Pedro.<br />

Conta-nos o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor<br />

para São Pedro foi tal que este saiu e chorou amargamente.<br />

Chorou a vida inteira.<br />

E esse olhar provoca em nós uma tristeza profunda<br />

por nossos pecados. Dá-nos horror aos nossos defeitos.<br />

Mas também, penetrando em nós, mostra-nos seu amor<br />

não só às nossas qualidades, mas também à condição de<br />

criaturas feitas por Ele. Um amor a nós, apesar de nossos<br />

defeitos, por sermos destinados a um grau de santidade e<br />

de perfeição que Ele conhece e ama enquanto podendo<br />

existir em nós.<br />

E, quando o pecador menos espera, por um rogo amável<br />

de Nossa Senhora, o Menino sorri. E com esse sorriso,<br />

apesar de toda a sua majestade, sentimos as distâncias<br />

desaparecerem, o perdão invadir nossa alma, uma<br />

qualquer coisa nos atrair. E, assim atraídos, caminhamos<br />

para junto d’Ele. Ele afetuosamente nos abraça e pronuncia<br />

nosso nome.<br />

— Fulano! Eu te quis tanto e te quero tanto! Desejo<br />

para ti tantas coisas e perdôo-te tantas outras. Não penses<br />

mais nos teus pecados! Pensa apenas, daqui por diante,<br />

em servir-Me. E em todas as ocasiões de tua vida,<br />

quando tiveres alguma dúvida, lembra-te desta condescendência,<br />

desta amabilidade, deste beneplácito que agora<br />

te faço, e recorre a Mim por meio de minha Mãe, que<br />

atender-te-ei. Serei teu amparo e tua força, e esse amparo<br />

e essa força hão de te levar ao Céu para ali reinar ao<br />

meu lado por toda a Eternidade.<br />

Essa seria, portanto, a meditação enfocada pelo prisma<br />

da acessibilidade do Menino Jesus.<br />

Imaginem, agora, a misericórdia do Menino Jesus,<br />

não só enquanto visando ao nosso bem e ao que há em<br />

nós de bom e de mau, mas olhando para a condição miserável<br />

de todo homem na terra. Olhando, portanto, para<br />

nossa tristeza, para o sofrimento que cada um traz em si,<br />

passado, presente e futuro, que Ele já conhece porque é<br />

Deus. Olhando, inclusive, para o risco que nossa alma<br />

corre de ir para o Inferno. Pois o homem, enquanto está<br />

na terra, arrisca-se a se condenar.<br />

Imaginem, ainda, o Menino Jesus olhando o Purgatório<br />

e os tormentos que ali nos aguardam se não formos<br />

inteiramente fiéis.<br />

Brota n’Ele, então, um olhar de pena, de participação<br />

profunda na nossa dor, um desejo de remover esta dor<br />

em toda a medida que for possível para nossa santificação,<br />

um desejo de nos dar forças para suportar essa<br />

dor na medida em que ela for necessária para nos santificarmos.<br />

Notamos n’Ele, então, aquilo que tanto consola o homem,<br />

e que Ele não encontrou quando chegou sua hora<br />

de sofrer: a compaixão perfeita.<br />

Está na natureza humana — e é uma coisa reta — de<br />

se consolar na hora do sofrimento pelo fato de ter alguém<br />

que nos tenha pena. A pena divide o sofrimento. O<br />

homem é feito de tal maneira que, quando ele está alegre<br />

e comunica sua alegria, ele dobra essa alegria; quando<br />

está triste e comunica sua tristeza, divide essa tristeza.<br />

“A fortiori” somos nós assim em relação ao Menino<br />

Jesus, ao encontrarmos n’Ele a compaixão perfeita.<br />

Ao longo das<br />

vicissitudes da nossa<br />

existência<br />

quotidiana devemos<br />

reter esta tríplice<br />

lembrança: a da<br />

majestade infinita,<br />

Infinita compaixão para com todos os<br />

homens<br />

18


Em todos os sofrimentos de nossa vida, portanto,<br />

quando a taça a beber for muito amarga, devemos repetir<br />

por meio de Nossa Senhora a oração d’Ele: “Meu Pai,<br />

se for possível, afaste-se de mim este cálice; mas faça-se a<br />

vossa vontade e não a minha”. Quer dizer, em todos os<br />

momentos pediríamos que a dor passasse; mas se fosse<br />

da vontade d’Ele que ela viesse sobre nós, teríamos<br />

certeza de que durante a dor encontraríamos a dor compassível<br />

d’Ele: “Meu filho, Eu sofro contigo! Soframos<br />

juntos, porque Eu sofri por ti. Há de chegar o momento<br />

em que tu participarás eternamente de minha alegria”. E<br />

nós podemos ter a certeza de que o olhar compassível de<br />

Jesus não nos abandonará um momento sequer de nossa<br />

existência.<br />

a da acessibilidade<br />

infinita e a da<br />

compaixão sem limites do<br />

Menino Jesus em relação<br />

a nós, pelos rogos de sua<br />

Mãe Santíssima<br />

(pintura de Lochner)<br />

Ao longo das vicissitudes da existência quotidiana deveríamos<br />

reter esta tríplice lembrança: a da majestade infinita,<br />

a da acessibilidade infinita, e a da compaixão sem<br />

limites do Menino Jesus em relação a nós. E esta deveria<br />

ser uma lembrança sensível, pois procuraríamos compor<br />

em nossa imaginação o quadro tal qual ele nos toca.<br />

Uma objeção<br />

Uma objeção que se poderia fazer é que o presépio<br />

não pode conter ao mesmo tempo esses três aspectos.<br />

Não é verdade. Em Nosso Senhor, enquanto natureza<br />

humana, as perfeições, os estados de alma, também todos<br />

eles perfeitos, existiam em graus diversos ao mesmo<br />

tempo, conforme as circunstâncias de sua vida. Existiam,<br />

e Ele foi cheio de majestade, de acessibilidade, de exorabilidade,<br />

de compaixão para com os homens desde o momento<br />

em que veio à terra. É natural que, apesar de<br />

Menino, conforme as almas que d’Ele se acercassem, ora<br />

aparecesse um aspecto, ora outro.<br />

Escola de pintura especializada nos<br />

olhares<br />

Seria muito bonito se numa igreja, em vez de um só,<br />

houvesse três presépios em três altares diferentes, nos<br />

quais as figuras e toda a ambientação representassem cada<br />

um desses aspectos, facilitando assim a cada alma a<br />

meditação que mais lhe tocasse.<br />

Como eu gostaria de ter entre nós pintores ou desenhistas<br />

que soubessem, por exemplo, pintar três presépios<br />

de acordo com essa concepção! Ou seja, presépio ostentando<br />

toda a grandeza, ou toda a acessibilidade, ou toda<br />

a compaixão de Nosso Senhor. Como Seria bonito!<br />

O difícil seria pintar aquilo que é o centro do presépio:<br />

um Menino recém-nascido que, sem perder as características<br />

de Menino, tivesse tudo isso. E tivesse sobretudo<br />

um olhar. Como pintar um olhar infantil capaz de exprimir<br />

tais coisas? Antes de pintor, esse artista deveria<br />

ser psicólogo, para primeiro imaginar esse olhar, e depois<br />

pintá-lo.<br />

Se alguém se sente propenso a pintar olhares, esse seria<br />

o pintor que iniciaria a nossa escola. Tenho a impressão<br />

de que, no pintar expressão de olhar, nossa escola estaria<br />

largamente representada.<br />

1 Termo utilizado no sentido atribuído a ele por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no<br />

livro “Revolução e Contra-Revolução”.<br />

19


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

Uma realidade mais vasta<br />

que o Estado<br />

N<br />

o primeiro artigo desta seção,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> abordava<br />

um tema central de seu<br />

pensamento sociológico: a sociedade<br />

temporal não tem mera função<br />

logística, mas deve também ser ordenada<br />

de modo a auxiliar a Igreja<br />

na tarefa da salvação das almas.<br />

Hoje publicamos a conclusão da<br />

mesma conferência, quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

trata de questões relacionadas<br />

com essa tese.<br />

Um ponto que não me parece ter sido suficientemente<br />

ressaltado, mesmo entre os melhores<br />

tratadistas de Direito Natural do século<br />

XIX, é que a sociedade temporal abarca uma realidade<br />

mais vasta do que apenas o Estado. Em geral, quando se<br />

falava da sociedade temporal, focalizava-se de preferência<br />

o Estado.<br />

De fato, a ordem temporal é uma sociedade da qual o<br />

Estado é o ordenamento supremo. Contudo, ao deitarmos<br />

sobre ela nossa atenção, devemos ter em vista muitos<br />

outros valores e aspectos. O Papa Pio XII, entre outros,<br />

tem ensinamentos muito bons a esse respeito, sublinhando,<br />

por exemplo, o princípio de subsidiariedade, e mostrando<br />

que em algo a sociedade se distingue do Estado.<br />

20


Responsabilidade em todos os cargos de<br />

direção<br />

Todos os dirigentes de corpos constituídos dentro de<br />

um Estado — diretores de colégios, reitores de faculdades,<br />

pais de família, presidentes de academias de letras,<br />

dirigentes de sindicatos, de bolsas, de atividades comuns<br />

temporais — por seu próprio cargo, têm importante<br />

papel dentro da sociedade, inclusive naquele sentido<br />

que vimos estudando, do apostolado dos leigos.<br />

Se cada um deles estruturar seu ramo e seus subordinados<br />

segundo a boa organização natural e em conformidade<br />

com a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, presta<br />

o serviço simbólico a Deus, do qual falamos — a organização<br />

social refletindo as perfeições de Deus.<br />

Tomemos uma repartição pública, por exemplo, ou<br />

mesmo um escritório de datilografia, ou uma loja de fotografia.<br />

Se for bem organizado, exprimindo a ordem natural,<br />

segundo a verdadeira moral que é a Moral católica,<br />

cristã, ele tem uma perfeição e uma excelência onde a rutilação<br />

da alma humana se apresenta inteira. E, pela alma<br />

humana, sobe-se até Deus.<br />

Qualquer pessoa que seja diretor ou subordinado numa<br />

ordem dessas, e tenha o intuito de organizá-la dessa<br />

maneira, presta, do ponto de vista simbólico, um ato insigne<br />

de colaboração à Igreja na ordem do amor de Deus.<br />

Faz uma ação de apostolado.<br />

Um exemplo muito característico é o de um fazendeiro<br />

com seus colonos, seus funcionários administrativos e<br />

as respectivas famílias. Ele pode formar uma como que<br />

aldeiazinha tão católica que seja miniatura da sociedade<br />

católica ideal. É uma minúscula sociedade temporal, encaixada<br />

na sociedade muito maior; é uma célula viva da<br />

sociedade temporal.<br />

Essa miniatura da sociedade católica ideal deve procurar<br />

— e destaco este ponto — desenvolver seus aspectos<br />

simbólicos, de modo a refletir os atributos de Deus.<br />

Refiro-me especialmente aqui à questão da forma da autoridade<br />

— majestosa, paternal, justa —, muito própria a<br />

despertar o amor de Deus.<br />

O primeiro mandamento, vida dos demais<br />

Sendo o primeiro mandamento da Lei de Deus a vida<br />

dos outros mandamentos, o título de mérito do cumprimento<br />

destes últimos é o homem amar a Deus sobre todas<br />

as coisas.<br />

Uma sociedade católica ideal,<br />

estruturada em conformidade<br />

com a doutrina de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, deve refletir as<br />

perfeições de Deus e despertar nas<br />

almas o amor a Ele.<br />

(Ao lado, um castelo francês com a<br />

aldeiazinha nascida ao seu redor)<br />

21


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

Com seu talento iluminado<br />

pela graça, Santo Agostinho<br />

pintou a sociedade católica<br />

perfeita, símbolo de Deus,<br />

na qual todos —<br />

governantes e súditos,<br />

patrões e criados, pais e<br />

filhos — viveriam segundo<br />

os ensinamentos de Cristo<br />

(Ilustração para o livro “As duas<br />

Cidades”, de Santo Agostinho)<br />

coloca diante de uma sociedade idealmente<br />

católica, que é um símbolo de Deus.<br />

Atividade própria dos leigos<br />

Segundo São Paulo, as qualidades que não têm relação<br />

com o amor de Deus de nada valem. Assim, a tal ação<br />

simbólica deve ser orientada diretamente para o primeiro<br />

mandamento. Com essa afirmação, apresento o apostolado<br />

a ser exercido pela ordem temporal de um ângulo<br />

que não me parece ter sido muito tratado até hoje.<br />

Um trecho famoso de Santo Agostinho diz que uma<br />

nação cujo “exército [fosse] composto de soldados que observam<br />

fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também<br />

os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e<br />

os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os<br />

juízes; e até os contribuintes e os cobradores de impostos;<br />

todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo”, tal nação<br />

teria um sustentáculo inapreciável (Ep. 138 ad Marcellinum,<br />

2, 15).<br />

Não há quem leia esse trecho e não tenha uma ardente<br />

pulsação do coração. Por quê? Porque evoca, com aquele<br />

talento no qual há cintilações da graça, algo que nos<br />

Há na sociedade temporal outros apostolados<br />

a fazer. A propósito dela, há outras<br />

reflexões que também conduzem a Deus. Não<br />

é minha intenção aqui abarcar o enorme<br />

leque de questões a tal respeito.<br />

O que desejo é acentuar este ponto, que<br />

não vi comentado em outras fontes: o valor<br />

simbólico e apostólico da sociedade temporal,<br />

das sociedades que integram a sociedade<br />

temporal, da vida temporal, em ordem<br />

ao primeiro mandamento, e devendo ser atuada pelos leigos<br />

com uma intenção apostólica.<br />

Uma sociedade a qual, vista por esse ângulo, é toda<br />

ativada por leigos. Homens, portanto, na sua imensíssima<br />

maioria casados e com filhos.<br />

Se todos acionassem a sociedade temporal com intuito<br />

apostólico, quer dizer, não apenas visando fazê-la funcionar<br />

para ganharem dinheiro (é legítimo e até necessário<br />

o dinheiro, a fim de proporcionar a seus filhos e à sua<br />

mulher um status digno; porém é fim secundário), mas<br />

principalmente para que o amor de Deus se espalhe pela<br />

Terra, essa sociedade temporal viveria habitualmente em<br />

estado apostólico.<br />

O padre em face do apostolado dos leigos<br />

A tal propósito, chamo a atenção para outro ponto<br />

dessa questão, no tocante a uma igreja matriz paroquial.<br />

22


Tomemos uma imagem corriqueira: a relação do coração<br />

com o resto do corpo. A pulsação e toda irrigação<br />

vêm da matriz. E o pulsar da matriz dá a vida espiritual a<br />

toda a paróquia.<br />

Alguém poderia objetar que atribuímos um sentido<br />

tão carregado ao apostolado leigo, que não se entende<br />

bem qual é o papel do pároco: fica reduzido a algo supérfluo.<br />

Uma objeção como esta lembra uma cena na qual alguém<br />

estivesse descrevendo longamente o corpo humano,<br />

e estivesse elogiando, por exemplo, o papel dos braços.<br />

Neste momento, fosse interrompido por um cardiologista<br />

ciumento, cioso da preeminência do coração, que dissesse:<br />

“E o que faz o coração?” Mas que pergunta! Evidentemente,<br />

o coração é a vida do homem! Se lhe for tirado,<br />

ele morre!<br />

Ora, o padre também, ele “constrói” o leigo:<br />

batiza-o, forma-o, ensina-lhe, dá-lhe os<br />

princípios, confessa, dá-lhe os sacramentos,<br />

organiza associações que o ajudem. Ensina,<br />

santifica e governa as almas. Ele é a alma da<br />

vida paroquial. Sem ele, os leigos morrem<br />

de inanição!<br />

Logo, o pároco é o coração da paróquia.<br />

Mas vejamos a situação do leigo que não seja<br />

das almas felizes que freqüentam associações<br />

religiosas pertencentes à paróquia. Recebe<br />

os sacramentos, assiste à Missa aos domingos,<br />

ouve a prática do Evangelho, pode até comungar<br />

diariamente, rezar o Rosário. Não obstante, oitenta por cento<br />

de sua vida, se não mais, passa-se na sociedade temporal.<br />

É uma questão de cronometragem. Assim é a vida da<br />

maior parte dos leigos.<br />

Ele encontrará dificuldades para preservar e tornar<br />

fecundo o que tiver recebido do padre. São dificuldades<br />

nascidas na sociedade temporal.<br />

Ora, pela sabedoria da Igreja, o sacerdote não deve<br />

viver muito engolfado na ordem temporal. Segundo o espírito<br />

da Igreja, os padres devem ter contato com a sociedade,<br />

mas vivendo preferentemente num ambiente<br />

clerical. Não é nada recomendável o padre mundano, como<br />

aqueles cardeais da véspera da Revolução Francesa,<br />

que iam assistir a bailes e dançavam minueto.<br />

Possibilidades que só os leigos<br />

têm<br />

A alma da vida paroquial<br />

é o sacerdote, que<br />

“constrói” os leigos, batizaos,<br />

forma-os, santifica-os;<br />

porém, não lhe cabe viver<br />

na sociedade temporal,<br />

campo de apostolado<br />

próprio ao laicato que<br />

recebe do clero<br />

o sustento espiritual<br />

23


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

Uma coisa é a vida civil, com seus aspectos sociais;<br />

outra coisa é a vida eclesiástica.<br />

Sendo assim, na hora do perigo, quem poderá ajudar<br />

as almas que ali periclitam? É o amigo leigo, que está<br />

presente ali também e luta contra as mesmas dificuldades.<br />

Presilha entre a Igreja e a sociedade<br />

temporal<br />

Esse seria um apostolado que incumbiria, portanto,<br />

aos leigos, numa sociedade que fosse idealmente católica.<br />

E mais necessário ainda numa sociedade profundamente<br />

corrompida, como a de hoje.<br />

Os Papas do século XX acentuaram a necessidade de<br />

haver leigos que atuem dentro da sociedade temporal.<br />

Isso tomou vulto, junto com uma pulsação universal das<br />

almas, sobretudo no tempo de Pio XI. Passaram a florescer<br />

sociedades religiosas constituídas de leigos, obedecendo<br />

a esta idéia: não sendo clérigos, poderiam acumular<br />

os dois âmbitos, levando privadamente a vida de um religioso,<br />

mas, por suas ocupações, estar misturados a fundo<br />

na vida leiga, servindo de estímulo aos outros.<br />

Tomemos o exemplo de um apostolado tipicamente<br />

leigo. Num departamento jurídico de uma grande empresa<br />

trabalham cinqüenta advogados. Um deles é membro<br />

de uma sociedade religiosa de leigos. Sendo leigo, está no<br />

seu papel seguindo a carreira de advogado. Mas, estando<br />

ali, pode observar quais são os bons, e desenvolver um<br />

apostolado especialmente ardoroso junto a esses, de modo<br />

que façam desse departamento jurídico o que ele deve<br />

ser. Ele é uma longa manus da Hierarquia, uma extensão<br />

dos desígnios da Igreja ali dentro.<br />

Isso começou a se multiplicar largamente nas últimas<br />

décadas. É a necessidade de uma presilha, de um agrafo<br />

entre a sociedade espiritual e a temporal, para que melhor<br />

a influência da primeira possa prolongar-se dentro da segunda.<br />

Não se faz uma confusão entre ambas, mas uma ligação<br />

para um mais perfeito nexo.<br />

Como isso é diferente, por exemplo, da concepção<br />

que havia no tempo dos meus avós a respeito da relação<br />

entre clero e laicato!<br />

Mas, naquele tempo, a sociedade tinha sido muito<br />

menos devastada pela Revolução (emprego aqui este termo<br />

no sentido que lhe dei em “Revolução e Contra-Revolução”).<br />

No Brasil ela era, na sua substância, carregada<br />

de tradições católicas recebidas de Portugal. Era, ela mesma,<br />

um instrumento de salvação. Não era necessária, ou<br />

ao menos não era indispensável, ali, essa modalidade de<br />

apostolado.<br />

Na sociedade de hoje essa modalidade<br />

se torna indispensável!<br />

Permuta de “fachos de<br />

luz”<br />

A sociedade temporal, tomada<br />

como um todo, resulta do equilíbrio<br />

de duas influências: a de cada<br />

homem sobre o todo e a do todo<br />

sobre cada um.<br />

Ela é feita de homens que não<br />

são robôs. Cada homem é, ele mesmo,<br />

um pequeno universo. Tem uma<br />

certa forma de autonomia, de privacy,<br />

de privatum próprio que é ines-<br />

Os Papas do século XX acentuaram<br />

de modo particular a necessidade<br />

de haver leigos que atuem dentro<br />

da sociedade temporal.<br />

Ao lado, o Papa Pio XI recebe os<br />

cumprimentos das Damas<br />

da Associação Católica Italiana<br />

24


“Adão e Eva expulsos do Paraíso” — Bem outro seria o desenvolvimento da sociedade terrena,<br />

se não tivesse havido o Pecado Original e o mundo fosse habitado por almas inocentes<br />

gotável e insondável. É da projeção dos mil fachos de luz<br />

individuais que se forma a luz conjunta que nós chamaríamos<br />

de mentalidade da sociedade temporal.<br />

Não podemos, entretanto, considerar apenas esses fachos<br />

de luz do homem (para continuar a usar a comparação)<br />

incidindo sobre o exterior. Sim, porque o homem não<br />

apenas influencia, mas ele também vê as coisas e recebe<br />

delas uma influência. Assim, precisamos levar em conta<br />

a luz somada dos mil fachos individuais repercutindo sobre<br />

ele. Há, assim, um commercium.<br />

Essa como que “circulação de fachos” faz com que a<br />

sociedade temporal, tomada no seu conjunto, impressione<br />

profundamente o homem.<br />

Se não tivesse havido pecado original...<br />

A respeito do tema “sociedade temporal”, há certas<br />

divagações que me agrada fazer. Uma delas é sobre o<br />

que teria acontecido se Adão e Eva não tivessem pecado.<br />

Eles teriam crescido e se multiplicado, e sua progênie<br />

teria enchido a Terra. E teria havido sociedades. Não podemos<br />

imaginar, como muitas pessoas, que Adão e Eva<br />

fossem uma edição paradisíaca do “bon sauvage” de<br />

Rousseau. Eles tenderiam a construir uma civilização, a<br />

desenvolver a arte, etc.<br />

Imaginado o Paraíso habitado por homens inocentes,<br />

que amassem a Deus, qual seria o teor de relações de<br />

Deus com eles? E como seria a sociedade deles?<br />

Como tudo indica que, segundo o plano d’Ele, em determinado<br />

momento o Verbo se encarnaria, tudo leva a<br />

crer que Nosso Senhor Jesus Cristo seria o Rei visível dessa<br />

sociedade; e que, à espera desse Rei, tudo fosse sendo<br />

edificado numa ordem magnífica; e que, vindo Ele, essa<br />

ordem, já pela simples presença d’Ele, pela sabedoria e<br />

pela onipotência d’Ele, fosse galardoada ainda de maneira<br />

inimaginável, culminando em aspectos insondáveis<br />

para nós.<br />

Mas a Encarnação se daria no fim do mundo, encerrando<br />

a História? Ou se daria no meio da História? São<br />

coisas belas para imaginarmos.<br />

O homem viveria numa ordem que seria diretamente<br />

teocrática? Deus quereria conservar com todos os homens<br />

as relações que tinha com Adão? (Ele descia do<br />

Céu e conversava com Adão na brisa.) Teríamos, assim,<br />

uma teocracia direta? Como seria essa ordem?<br />

Poder-se-ia objetar que tais hipóteses não passam de<br />

mera cogitação vã e tola. Engano!<br />

Tendo-se a prudência de não transformar hipótese em<br />

tese, nem fantasia artística ou literária em hipótese,<br />

poderíamos excogitar algo de que todo homem, perceba<br />

ou não perceba, é sedento. Cada ser humano tem tendência<br />

para a sua própria perfeição, e em algo geme por<br />

não viver nela. Ser-lhe-ia muito útil imaginar como poderia<br />

ser a vida dos homens se não tivesse havido o pecado<br />

original. Isso poria um foco de alegria nesse ponto de<br />

tristeza.<br />

❖<br />

25


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

A ATUAÇÃO DE DEUS NA<br />

GRANDE LUTA DA HISTÓRIA<br />

N<br />

o último capítulo dos comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre a Carta Apostólica<br />

“Annum Ingressi”, de Leão XIII, vimos descritos os adversários<br />

da Igreja ao longo da História: o demônio, o mundo e as paixões humanas<br />

desregradas. Hoje veremos a atuação da Providência nesse combate.<br />

26


Conforme dizíamos, os efeitos<br />

do pecado original, que são desregramentos,<br />

não podem ter<br />

senão resultados desencontrados. O<br />

demônio, pelo contrário, é capaz de<br />

planos articulados. Os homens morrem,<br />

o demônio não. Em tese, nada<br />

obsta que dure séculos, em determinadas<br />

condições, o poder de influenciar<br />

a fundo o desenvolvimento de<br />

um ciclo histórico, a formação e progresso<br />

de vícios e heresias, etc.<br />

Na ordem concreta dos fatos, o<br />

mundo e o demônio formam como<br />

que uma força única, fundida num só<br />

esforço. E esse esforço consiste em<br />

oferecer ao homem, fundamentalmente<br />

egoísta, os deleites do “orgulho, cupidez<br />

e amor desenfreado dos gozos<br />

terrenos”, de que fala Leão XIII.<br />

De um lado, portanto, está a Igreja,<br />

que aponta para o Céu e pede ao<br />

homem que renuncie a seu egoísmo,<br />

a seus deleites desregrados, e obedeça<br />

à Lei. Diz o Papa que “em face da<br />

Lei e daquele que a apresenta em nome<br />

de Deus” ergue-se o mundo, “sempre<br />

o mesmo”, isto é, o conjunto dos desregramentos<br />

humanos, e o príncipe<br />

deste mundo, que o dirige e o arrasta<br />

para a luta, quer dizer, Satanás, servido<br />

por mil satélites.<br />

É a imagem agostiniana das duas<br />

cidades.<br />

A todo momento, em nós e em<br />

torno de nós, trava-se a<br />

luta entre o bem o mal, entre as<br />

“duas cidades” de que fala<br />

Santo Agostinho,<br />

entre a fé e a incredulidade.<br />

(Acima, “A Igreja triunfa das<br />

heresias”, grupo escultural<br />

na igreja do Gesù, em Roma;<br />

ao lado, “Santo Agostinho<br />

disputa com os hereges maniqueus<br />

e batiza os convertidos”,<br />

alto-relevo medieval)<br />

E a cidade do demônio “encontra<br />

na Igreja” — a cidade de Deus — “a<br />

mais poderosa barreira”. Por isso olha<br />

para esta com “ódio implacável”, cheia<br />

de revolta “em desmedido orgulho” e<br />

“espírito de independência a que não<br />

tem direito”.<br />

Luta entre a Fé e a<br />

incredulidade<br />

Presenciamos continuamente, quiçá<br />

sem lhes dar maior importância,<br />

certos fatos da vida quotidiana. Aqui<br />

é uma mãe que, acompanhada pelos<br />

seus, leva no colo seu filhinho até a<br />

igreja, para o Batismo. Além, é um<br />

propagandista protestante que discute<br />

sobre religião com um transeunte<br />

a quem ofereceu um folheto. A poucos<br />

passos, numa sala de aula, um<br />

professor dá um curso de biologia e<br />

aproveita para fazer propaganda materialista.<br />

Dentro de alguns minutos,<br />

a aula termina, e os alunos se dispersam<br />

pelas ruas. Um compra um jornal<br />

católico que está sendo apregoado<br />

na esquina. O outro abre uma revista<br />

comunista que levava debaixo<br />

do braço. E assim por diante, as influências<br />

favoráveis e hostis à Fé católica<br />

se vão exercendo ao longo de<br />

todo o dia, em qualquer lugar onde<br />

exista um grupo humano na face da<br />

terra.<br />

Como esses fatos ocorrem de permeio<br />

com mil outros de natureza diversa,<br />

passam muitas vezes despercebidos.<br />

Constituem, entretanto, episódios<br />

minúsculos e incontavelmente<br />

numerosos de uma imensa luta,<br />

que se trava por mil meios por toda<br />

parte. A luta entre a fé católica e as<br />

heresias e erros que por todos os lados<br />

a assediam.<br />

Combate entre a virtude<br />

e o vício<br />

O mesmo se poderia dizer da luta<br />

entre o bem e o mal. Ela se realiza a<br />

todo momento em nós, e em torno<br />

de nós. Em cada ato bom que fazemos,<br />

a graça e a virtude se tornam em<br />

nós mais vigorosos, o bem conquista<br />

terreno dentro de nós contra o mal.<br />

Pelo contrário, a cada capitulação a<br />

graça se retrai, a vontade se debilita,<br />

o mal ganha terreno dentro de nós<br />

contra o bem. Cada bom conselho,<br />

cada bom exemplo que damos é um<br />

ato de hostilidade do bem ao mal. A<br />

contrário sensu, cada escândalo, cada<br />

mau conselho é uma ofensiva do mal<br />

27


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

contra o bem. Um artigo de jornal<br />

difundido entre 100 mil leitores, ou um<br />

discurso ouvido no rádio por 200 mil<br />

ouvintes, equivalem a 100 mil tiros ou<br />

200 mil tiros do bem contra o mal, ou<br />

do mal contra o bem, conforme o caso.<br />

A luta entre a virtude e o vício é<br />

incessante, e se estende à terra toda.<br />

A História fala com espanto em<br />

guerras de vinte, trinta, cem anos. Essa<br />

guerra entre a Fé e a incredulidade,<br />

entre o bem e o mal, é mais antiga<br />

que o homem, pois teve início com<br />

a luta dos anjos no Céu, e só terminará<br />

com o fim do mundo.<br />

Aspectos sobrenaturais<br />

da luta<br />

Já vimos que os combatentes dessa<br />

luta são, de um lado, a Igreja militante<br />

e, de outro, as paixões desregradas<br />

do homem, o príncipe das trevas<br />

e seus satélites.<br />

Desde que admitamos essa perspectiva,<br />

não podemos fugir a uma conseqüência<br />

de importância fundamental.<br />

É que, se os dois combatentes<br />

mais fortes são Deus e o demônio —<br />

seres espirituais, superiores por natureza<br />

à ordem de coisas visível que<br />

nossos sentidos percebem — grande<br />

parte dessa luta comporta elementos<br />

sobrenaturais.<br />

Da parte de Deus, esses elementos<br />

são principalmente o governo da<br />

Providência sobre os acontecimentos<br />

humanos e as graças que concede<br />

a todos os homens.<br />

O governo da<br />

Providência e o livre<br />

arbítrio<br />

Deus criou o homem com<br />

uma alma espiritual e,<br />

portanto, dotada de inteligência e liberdade.<br />

Essa liberdade põe nas mãos<br />

do homem a faculdade de obedecer,<br />

ou não, aos preceitos promulgados<br />

pelo próprio Deus. Se o homem obedece<br />

a esses preceitos, realiza evidentemente<br />

a vontade de Deus. Se não<br />

obedece, realiza-se ainda assim a vontade<br />

de Deus, pois quis este que o homem<br />

fosse livre e pudesse escolher<br />

entre o bem e o mal. Para melhor se<br />

compreender isso, considere-se um<br />

exemplo.<br />

Um pai põe uma criança correndo<br />

livremente por um jardim, e lhe recomenda<br />

certas regras de prudência.<br />

Deixando-a em liberdade, fá-lo por<br />

sua própria vontade, sabendo que ela<br />

poderá não observar as regras de prudência<br />

que lhe prescreveu. É que seu<br />

bom senso lhe faz ver como é razoável<br />

dar liberdade à criança, ainda que<br />

ela cometa alguma pequena falta.<br />

Nesse pai podemos considerar, pois,<br />

dois atos de vontade concomitantes.<br />

Por um lado, ele quer que a criança<br />

brinque livremente, ainda que com<br />

algum risco, pois as vantagens dessa<br />

liberdade são maiores que os inconvenientes<br />

do risco; por outro, quer<br />

De incontáveis maneiras<br />

intervém Deus nos<br />

acontecimentos terrenos, seja<br />

no âmbito individual, seja no<br />

coletivo, premiando,<br />

castigando, advertindo, por<br />

meio de pessoas providenciais<br />

que Ele suscita, ou se<br />

manifestando diretamente<br />

aos homens. Ao lado, São João<br />

Batista (Hôtel-Dieu de<br />

Beaune, França); na página<br />

seguinte, “Judite corta a<br />

cabeça de Holofernes”,<br />

gravura de Gustave Doré)


que a criança brinque retamente, sem<br />

se machucar.<br />

Com Deus dá-se o mesmo. Ele nos<br />

criou com uma natureza dotada de livre<br />

arbítrio, e com isso nos fez um<br />

grande beneficio, pois só o homem livre,<br />

isto é, dotado de vontade, é capaz<br />

de amar, e só o homem capaz de amar<br />

pode alcançar o Céu, exclusivamente<br />

reservado aos que amam a Deus.<br />

Quando Deus nos criou livres, sabia<br />

que é inerente à liberdade a possibilidade<br />

de praticar o mal. Ainda assim,<br />

quis criar-nos. E quando fazemos<br />

mau uso dessa liberdade, isso não se<br />

dá sem que Ele tenha considerado tal<br />

possibilidade, e sem que, apesar disso,<br />

tenha querido criar-nos.<br />

Isso não tira, entretanto, a Deus o<br />

direito de detestar o mau uso que fizermos<br />

de nossa liberdade, e de nos<br />

punir por tal: precisamente como, no<br />

citado exemplo, o pai que previu um<br />

possível abuso de liberdade da criança<br />

no jardim não fica impedido de a<br />

castigar.<br />

Vontade de eleição e<br />

vontade de<br />

consentimento<br />

Resumindo essas considerações em<br />

linguagem escolástica, pode-se dizer<br />

que em Deus se distinguem duas vontades,<br />

uma de eleição, outra de mero<br />

consentimento. Segundo a primeira,<br />

os homens fariam, todos, um uso reto<br />

de sua liberdade, e pois obedeceriam<br />

à Lei. Conforme a segunda, alguns<br />

homens desobedecem e pecam:<br />

Deus os quis livres, e permitiu que<br />

optassem pelo pecado.<br />

Tudo isso torna bem claro que, no<br />

universo, nada se passa sem que Deus<br />

tenha querido, ou por uma vontade<br />

de eleição, ou por uma vontade de<br />

consentimento. E que a vontade de<br />

Deus é — ainda quando ela consiste<br />

em nos deixar livres — a suprema<br />

razão das coisas.<br />

Se muitas vezes a vontade de Deus<br />

consiste em deixar correr os acontecimentos<br />

ao impulso do livre arbítrio<br />

humano, muitas outras vezes Ele intervém,<br />

seja para recompensar um<br />

justo, seja para punir um pecado, seja<br />

ainda para preservar uma pessoa<br />

sobre a qual tem intenções particulares,<br />

ou tolher a ação de outra que<br />

contraria seus desígnios. Bem entendido,<br />

essas intervenções divinas não<br />

se dão apenas no plano estritamente<br />

pessoal. Como já dissemos, se Deus<br />

premia ou castiga por vezes os indivíduos<br />

já na vida terrena, fá-lo sempre<br />

com as instituições, as associações<br />

e as nações. É que estas não têm existência<br />

senão na terra: no Céu não haverá<br />

nação, nem classe, nem instituição.<br />

E, assim, já nesta vida precisam<br />

ser premiadas ou punidas.<br />

Modos de intervenção de<br />

Deus<br />

Como age Deus nesse sentido? De<br />

mil maneiras. Às vezes suscita um<br />

homem para abater um povo: foi o<br />

caso de Cyro com os caldeus. Ou uma<br />

mulher para salvar uma nação: foi o<br />

caso de Judite, no Antigo Testamento,<br />

e de Santa Joana d’Arc, na Idade<br />

Média. Outras vezes cega um homem,<br />

para o castigar com sua queda (situação<br />

tantas vezes observada ao longo<br />

da História, que foi imortalizada no<br />

provérbio latino “Quos Deus vult per-<br />

29


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

dere prius dementat”: “quem Deus quer<br />

perder, começa por privá-lo da razão”).<br />

Ou suscita um homem para regenerar<br />

um rei, uma nação, um grupo<br />

de nações: Jeremias e São João<br />

Batista, com os judeus; São Francisco<br />

de Assis e São Domingos de Gusmão,<br />

na Cristandade medieval; Santo Inácio<br />

de Loyola na crise protestante; etc.<br />

Assim age Deus por meio dos Santos,<br />

dos Confessores, dos Doutores<br />

que ele suscita.<br />

Deus age ainda de outra forma. A<br />

Igreja sempre admitiu que Ele, por<br />

vezes, ou fala diretamente aos homens,<br />

ou o faz pelo ministério de seus Anjos<br />

e de seus Santos, em visões e revelações.<br />

Exemplo disso são as aparições<br />

do Sagrado Coração de Jesus a<br />

Santa Margarida Maria Alacoque no<br />

século XVII, e as de Nossa Senhora<br />

em Lourdes, no século XIX, e em<br />

Fátima, no século XX.<br />

Nesse campo, cumpre separar o joio<br />

do trigo. Mas, por mais cuidadosos que<br />

sejamos nesse terreno, seria impossível<br />

afirmar que Deus não tem o poder de<br />

agir assim, e que historicamente nunca<br />

o tenha feito (basta lembrar como<br />

a Sagrada Escritura está repleta de<br />

fatos do gênero).<br />

O papel da graça divina<br />

Deus intervém, entretanto, muitas<br />

vezes, não para tolher a liberdade humana,<br />

mas para lhe facilitar a opção<br />

para a virtude. O meio essencial pelo<br />

qual o faz é a graça. Já falamos dela<br />

em diversas passagens. Considerada<br />

em seus efeitos sobre a alma, a graça<br />

é um auxílio sobrenatural de Deus,<br />

que ilumina a inteligência e fortifica<br />

a vontade, para que o homem conheça<br />

as verdades da Fé e pratique as<br />

virtudes necessárias à salvação.<br />

Como vimos, sem a graça não é<br />

possível ter Fé nem praticar duravelmente<br />

e em sua totalidade os Mandamentos.<br />

Bem entendido, ela nos dá<br />

possibilidades, mas não nos obriga a<br />

fazer uso dessas possibilidades. É como<br />

um tônico que nos dá forças para nos<br />

movermos, mas não nos obriga a isso.<br />

A Teologia distingue vários tipos<br />

de graça: habituais e atuais, operantes<br />

e cooperantes, suficientes e eficazes,<br />

etc.<br />

A todos os homens são concedidos<br />

os recursos sobrenaturais necessários<br />

para alcançar o Céu. Quer dizer,<br />

a graça suficiente, Deus não a nega<br />

a ninguém. Entretanto, se a graça<br />

nunca desce a um nível abaixo do suficiente,<br />

muito freqüentemente ela supera<br />

esse nível. Quando sua efusão é<br />

muito superior a ele, o número de pessoas<br />

que praticam os Mandamentos<br />

e se salvam é normalmente maior.<br />

Por esse regime de efusão da graça,<br />

Deus intervém continuamente na<br />

grande luta.<br />

“Para ser possível uma<br />

reparação proporcionada à<br />

ofensa que representou o<br />

Pecado Original, era<br />

necessária a Encarnação do<br />

Verbo: Jesus, Deus e Homem,<br />

era capaz de expiar<br />

adequadamente a<br />

humanidade pecadora”<br />

(na página seguinte,<br />

“Anunciação”, por Petrus Christus)<br />

30


A Redenção<br />

Dessa luta, já vimos o primeiro lance<br />

que envolveu o homem: a queda de<br />

Adão e Eva (Gn 3,6). Como eles continham<br />

em si todo o gênero humano,<br />

no sentido em que a semente contém<br />

a árvore, o pecado que cometeram<br />

foi do gênero humano inteiro, embora<br />

sem uma responsabilidade pessoal dos<br />

seus descendentes. Vimos também o<br />

efeito produzido pela queda.<br />

Digamos uma palavra sobre a Redenção.<br />

Para reparar junto à Justiça divina<br />

o pecado original e os demais pecados<br />

cometidos pelos homens, era necessária<br />

uma expiação que estivesse no<br />

nível da gravidade da falta.<br />

A gravidade resulta da natureza da<br />

ação faltosa, da dignidade da pessoa<br />

ofendida, e do ofensor. Uma bofetada<br />

constitui, por sua própria natureza,<br />

uma injúria mais grave do que um<br />

cumprimento distraído ou negligente.<br />

Se o agredido é um príncipe, a injúria<br />

é mais grave do que se fosse um<br />

particular. E se o agressor do príncipe<br />

é seu irmão, a injúria não é tão grave<br />

quanto se fosse um lacaio.<br />

No caso do pecado original, a não<br />

considerar senão a dignidade de Deus<br />

e sua infinita desproporção com a<br />

dignidade do homem, ser finito, como<br />

poderia este reparar a ofensa?<br />

Para se possível tal reparação era<br />

necessária a Encarnação do Verbo.<br />

Em Jesus Cristo, o Verbo humanado,<br />

há uma só Pessoa, em duas naturezas:<br />

a de Deus e a do homem. Sendo<br />

suas ações ao mesmo tempo divinas<br />

e humanas, Ele era capaz de expiar<br />

adequadamente os delitos da humanidade<br />

pecadora.<br />

Quando, do alto da cruz, Ele proferiu<br />

o “consummatum est” (Jo 19,30)<br />

e entregou sua alma, estava resgatado<br />

o gênero humano. ❖<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

^<br />

Cantico da<br />

alma inocente


Q<br />

uem ouve o canto<br />

gregoriano pela primeira<br />

vez pode ser<br />

tomado pela impressão<br />

equivocada<br />

de que se trata<br />

de uma música no<br />

seu estágio rudimentar, exprimindo,<br />

com um minimum de movimentação,<br />

estados de espírito mais comuns à condição<br />

social de uma civilização nômade,<br />

entregue sobretudo aos labores<br />

manuais, que apenas começa a dar<br />

conta de si mesma e de suas vicissitudes<br />

de alma. E que, portanto, tem necessidades<br />

muito limitadas e circunscritas<br />

para serem expressas através de<br />

melodias e cânticos.<br />

Daí uma música, enquanto sonoridade,<br />

pouco desenvolvida, um canto<br />

monótono, próprio desses espíritos<br />

primitivos e de uma liturgia igualmente<br />

elementar, sóbria, com movimentos<br />

escassos, não obstante os adornos<br />

e paramentos eclesiásticos de indiscutível<br />

beleza.<br />

Segundo essa concepção, a Igreja<br />

terá passado séculos e séculos atraindo<br />

almas neurastênicas, debilitadas ou<br />

não desenvolvidas, um beatério que<br />

correspondia à camada mais rudimentar<br />

da sociedade, a única disposta a<br />

se sentir tocada e enlevada na tediosa<br />

ambientação criada pelo canto gregoriano.<br />

Sem dúvida, uma idéia errada. No<br />

universo das maravilhas engendradas<br />

pelo espírito católico, o gregoriano<br />

aparece exatamente com predicados<br />

contrários aos do que essa falsa impressão<br />

lhe empresta.<br />

Ele surge nos albores da Idade Média,<br />

numa civilização que ainda não<br />

conhecera os poetas clássicos nem a<br />

literatura convencional, que não usou<br />

ruge nem batom, que não pretendeu<br />

ter ciências esclarecidas e modernas,<br />

mas possuía um extraordinário ímpeto<br />

para o belo e para a pulcritude.<br />

Tinha-se um vigor e uma fecundidade<br />

espiritual imensos, com uma pro-<br />

fusão de percepções, de concepções<br />

primevas, de observações e contemplações<br />

que redundava numa produção<br />

artística e social potentíssima,<br />

cada alma elevando-se no seu próprio<br />

espaço, erguendo-se como palmeiras,<br />

sem disputar terreno umas com as<br />

outras, formando uma linda e vasta<br />

floresta.<br />

Um dos produtos dessa grandeza<br />

de alma foi o canto gregoriano. E se<br />

este não apresenta os acentos retumbantes<br />

das músicas que nasceram nos<br />

séculos posteriores, é porque foi concebido<br />

com o cuidado da discrição, da<br />

humildade daquilo que precisa do seu<br />

isolamento, que evita de se expor à luz<br />

do sol do convívio com quem poderá<br />

entendê-lo mal, banalizá-lo e que, no<br />

total, não foi feito para a intimidade<br />

com ele. Íntimos, são poucos...<br />

Então, ele como que hesita em pôr<br />

a pleno som para uma igreja os seus<br />

sentimentos. Há nele uma certa retenue,<br />

assim como há, de outro lado, o<br />

receio de, à força de se exteriorizar,<br />

apegar-se vaidosamente ao seu timbre.<br />

Porque, de si, é tão inebriante a faculdade<br />

de se exprimir, que a pessoa<br />

se põe a falar e facilmente desliza para<br />

a conversa solta, pelo simples gosto<br />

da loquacidade. Cumpre refrear essa<br />

tendência, com aquela harmonia<br />

suave e cadenciada do gregoriano,<br />

onde se nota a vontade de não aparecer,<br />

de ser modesto, de conservar o<br />

frescor da humildade e da sua própria<br />

inocência.<br />

Talvez, pelo desconhecimento de<br />

algumas regras musicais adequadas,<br />

haja algo de realmente incipiente no<br />

gregoriano, que não chegou a se exprimir<br />

em seu completo desdobramento,<br />

mas que aponta para ele. Seria<br />

como a orla de uma floresta. Dentro<br />

desta estão todas as gamas do heroísmo<br />

e da ternura, da reflexão e dos esplendores<br />

da sadia despreocupação.<br />

Ele é sóbrio, e se não transpõe essa<br />

orla, carrega entretanto dentro de<br />

si a sua própria floresta, formidável,<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Abadia de Saint-<br />

Étienne (França)<br />

que é uma potencialidade quase inexaurível<br />

de gerar civilizações e maravilhas<br />

em qualquer parte do mundo.<br />

É a força da inocência aliada à<br />

graça, que transformou, por exemplo,<br />

os pântanos e vales mefíticos da antiga<br />

Europa em jardins salpicados de<br />

vida e de cor, onde, entre arvoredos<br />

e lagos lindíssimos, avantajam-se grandiosas<br />

abadias, imponentes castelos<br />

e majestosas catedrais. Uma Europa<br />

“gregorianizada”.<br />

Agora, qual é o efeito do gregoriano<br />

sobre a alma do homem contemporâneo<br />

que sabe admirá-lo? Sobre<br />

a minha própria alma, portanto?<br />

Eu diria que dele emana uma forma<br />

de temperatura que transmite todo<br />

o aconchegante do quente e todo<br />

o agradável frescor do frígido, de um<br />

frio que não corta nem maltrata, onde<br />

uma brisa tépida de vez em quando<br />

faz sorrir. Ele tem as temperaturas<br />

da vida, que estão para além das<br />

algidezes e calores do mundo mineral.<br />

É uma composição de outra natureza,<br />

que nos comunica refrigério,<br />

luz e paz; que ajuda a despertar e a<br />

dar vigor, em nossas almas, a mil ordenações<br />

da inocência que o choque<br />

com o mundo contemporâneo — no<br />

qual encontramos uma selva com macacos,<br />

tigres, cobras e javalis, que são<br />

os assuntos alheios à nossa salvação<br />

eterna — tenderia a fazer esquecer e<br />

a adormecer, desviando nosso olhar<br />

espiritual.<br />

Outro efeito que o gregoriano produz<br />

nas almas é o de tornar-lhes patente<br />

o lugar do murmúrio na expressividade<br />

do homem. É falso que este,<br />

para se exprimir por inteiro, tenha<br />

de fazê-lo nos registros mais altos de<br />

sua voz e nas ondulações maiores de<br />

seus movimentos. Não. Existem harmonias,<br />

composições, santidades por<br />

assim dizer supra-sônicas que se veriam<br />

maculadas e traídas caso fossem<br />

descritas pelo som na sua máxima<br />

intensidade. Só o murmúrio é capaz<br />

de expressar o que é supra-sônico.<br />

Por isso o gregoriano é o cântico<br />

do murmúrio.<br />

E enquanto tal, aliás, faz ele sentir<br />

que esta é a terra de exílio para a qual<br />

viemos em conseqüência do pecado<br />

original. Há nele algo de penumbra<br />

ascética, de sonoridades meio penitenciais,<br />

de almas do purgatório que<br />

passam sussurrando, gemendo e entoando<br />

canções de esperança.<br />

Se lhe prestarmos bem atenção,<br />

veremos nele a inocência que se sabe<br />

a si mesma em estado de prova, tomando<br />

todos os cuidados consigo<br />

mesma. Há um quê de mortificado,<br />

de vigilante, dentro do celeste desembaraço<br />

do gregoriano, à maneira do<br />

capuz colocado na cabeça de um frade<br />

jovem: lembra o aspecto peniten-<br />

34


cial, adverte contra o vazio das coisas terrenas,<br />

contra o mentiroso dos élans excessivos<br />

do próprio homem.<br />

Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes<br />

do Te Deum, aos recolhimentos<br />

solenes do Tantum ergo, é a música que tem<br />

essa qualidade incomparável de exprimir a<br />

atitude perfeita, o exato grau de luz da alma<br />

reta e verdadeiramente inocente quando<br />

se coloca diante de Deus. ❖<br />

Cântico do murmúrio, música da<br />

alma inocente, dessa inocência<br />

que, aliada à graça divina,<br />

construiu as maravilhas de uma<br />

civilização “gregorianizada”...<br />

Abadia de Chaâlis<br />

(França)


Imaculada e vitoriosa<br />

C<br />

onforme nos ensina a Bula<br />

“Ineffabilis Deus”, a beleza<br />

e a perfeição da Santíssima<br />

Virgem só se manifestam<br />

completas porque Ela triunfa,<br />

vence e aniquila o demônio. Satanás<br />

é um escabelo aos pés d’Ela.<br />

Sendo Maria imaculada e soberanamente<br />

formosa, não basta<br />

que todas as criaturas deste mundo,<br />

as do Céu e as do Purgatório<br />

Lhe prestem homenagem: importa<br />

que o inimigo esteja esmagado<br />

sob seu calcanhar.<br />

Uma perfeita consideração do<br />

esplendor de Nossa Senhora envolve,<br />

portanto, a idéia do demônio<br />

inteiramente subjugado<br />

e humilhado por Ela. Essa vitória<br />

sobre Satanás dá um particular<br />

brilho à celestial beleza da<br />

Imaculada Conceição.<br />

Imaculada Conceição

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