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Revista Dr Plinio 63

Junho de 2003

Junho de 2003

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Arauto<br />

da Eucaristia


Um dos meios mais belos de conhecer algo do<br />

Imaculado Coração de Nossa Senhora consiste<br />

em contemplar a vida de São João Batista.<br />

Ele foi santificado no seio materno, assim<br />

que ouviu a voz de Maria saudando Santa Isabel.<br />

Vê-se que, naquele momento, a Mãe de Deus comunicou<br />

misteriosamente o espírito d’Ela à criatura chamada<br />

a preparar os caminhos do Messias. E tudo<br />

quanto São João Batista realizou e cumpriu foi uma<br />

decorrência desta graça inicial que ele recebeu ainda<br />

antes de nascer. Graça esta que, pelos rogos de<br />

Nossa Senhora, foi constantemente intensificada,<br />

até atingir o auge na hora em que ele morreu.<br />

Então podemos ver São João Batista enquanto<br />

asceta austero, enquanto pregador<br />

do Cordeiro de Deus que viria, e depois como<br />

herói que enfrenta Herodes e morre como<br />

mártir, sublime de grandeza e de<br />

serenidade. São facetas do espírito de Nossa<br />

Senhora.<br />

São João Batista e<br />

Nossa Senhora do<br />

Rosário (Paróquia da<br />

Trindade, Veneza - Itália)


Sumário<br />

Na capa, detalhe de “A<br />

Última Ceia”, Basílica da<br />

Estrela - Lisboa, Portugal<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

Preços da assinatura anual<br />

Junho de 2003<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

14<br />

22<br />

28<br />

32<br />

36<br />

EDITORIAL<br />

Arauto da Eucaristia e do Coração de Jesus<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Grande provação<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

“Tende piedade de mim, ó Deus...”<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

O espírito do mundo e a mentalidade<br />

das nações<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Contemplando o Sagrado Coração de Jesus<br />

DR. PLINIO, ARAUTO DA EUCARISTIA<br />

A presença de Cristo entre os homens<br />

na sua vida terrena e na Eucaristia<br />

DONA LUCILIA<br />

“Casa de Dona Lucilia Corrêa<br />

de Oliveira”<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Esplendores da piedade eucarística<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Intercessora junto ao Divino Esposo<br />

3


Arauto da Eucaristia e do<br />

Coração de Jesus<br />

Editorial<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi um arauto da Eucaristia, à<br />

qual devotou um amor inefável. Como<br />

anunciamos no número anterior, desejamos<br />

comemorar nesta edição a publicação da encíclica<br />

Ecclesia de Eucharistia, do Papa João Paulo II,<br />

com um belo comentario de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre a bondade<br />

ilimitada de Deus em deixar-nos o Sacramento<br />

do Amor.<br />

Todos quantos conheceram a veneração singular<br />

com que ele fixava seu olhar na santa Hóstia exposta<br />

num ostensório, a compenetração séria e amorosa<br />

que seu rosto irradiava, na santa Missa, no momento<br />

da consagração, a reverência com que se dirigia ao<br />

Divino Mestre recolhido nos Sacrários, verão nas palavras<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> publicadas neste número, a coerência<br />

completa entre seu pensamento e seu testemunho<br />

de vida.<br />

Foi “na escola de Maria”, como recomenda o Papa<br />

em sua encíclica, que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> adquiriu sua piedade<br />

eucarística. Era pelas mãos d’Ela que ele recebia Jesus-Eucaristia<br />

na Comunhão, e por meio d’Ela apresentava<br />

seus atos de adoração, agradecimento, reparação<br />

e súplica.<br />

A jaculatória Coração Eucarístico de Jesus, tende<br />

piedade de nós, brotava de seus lábios sempre seguida<br />

desta outra: Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento,<br />

rogai por nós.<br />

Tinha ele presente em seu espírito estes ensinamentos<br />

do Santo Padre na encíclica Ecclesia de Eucharistia:<br />

Ao longo de toda a sua existência ao lado de<br />

Cristo, e não apenas no Calvário, Maria viveu a dimensão<br />

sacrificial da Eucaristia. Quando levou o<br />

menino Jesus ao templo de Jerusalém, “para O apresentar<br />

ao Senhor”, ouviu o velho Simeão anunciar<br />

que aquele Menino seria “sinal de contradição” e que<br />

uma espada havia de trespassar também a alma<br />

d’Ela (n. 56).<br />

* * *<br />

A seção “Luzes da Civilização Cristã” apresenta<br />

um comentário sobre outro ponto saliente deste<br />

momentoso documento do Sumo Pontífice: a necessidade<br />

do esplendor no culto eucarístico. Longe de<br />

considerá-lo como uma mera formalidade ou exterioridade,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, entretanto, julgava indispensáveis<br />

o brilho e a pompa na Liturgia como uma forma<br />

absolutamente adequada de refletir o amor a Jesus-Hóstia,<br />

dedicando-Lhe o melhor da criação e da<br />

arte dos filhos de Deus.<br />

Neste mês em que a Igreja festeja o Sagrado<br />

Coração de Jesus, estampamos também trechos de<br />

uma conferência de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre um dos aspectos<br />

centrais dessa devoção: o conhecimento daquilo<br />

que se poderia chamar a “mentalidade” humano-divina<br />

de Nosso Salvador.<br />

Neles, poderá o leitor avaliar o profundo amor de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ao Divino Redentor, além de encontrar<br />

matéria para fazer uma “composição de lugar” —<br />

como ensina Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais<br />

— viva e coruscante a respeito de Jesus Cristo<br />

enquanto Verbo de Deus feito carne e habitando entre<br />

nós (Jo 1, 14). Ao mesmo tempo, verá como sua<br />

católica alma se deleitava na consideração das insondabilidades<br />

do universo criado por Deus, uma das caraterísticas<br />

principias de seu pensamento e de sua via<br />

de santificação.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1<strong>63</strong>1, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Grande provação<br />

No<br />

N<br />

dia 20 de junho de 1929, a “Linha de<br />

Tiro nº 52” (unidade de serviço militar<br />

para alunos da Faculdade de Direito)<br />

realizou a prova de tiro, na qual <strong>Dr</strong>. Plínio<br />

foi aprovado com o grau “Bom” e recebeu seu<br />

certificado de reservista do Exército.<br />

Foi na época em que fez o treinamento de<br />

tiro que se deu um fato importante em sua vida,<br />

narrado por ele várias décadas depois:<br />

Um dia, terminado o exercício militar feito no<br />

próprio pátio interno da Faculdade de Direito, eu<br />

reuni alguns colegas e lhes disse:<br />

— Vamos conhecer outras salas da faculdade?<br />

Eles concordaram comigo e fomos, todos fardados,<br />

para uma parte da Faculdade aonde se ia<br />

em ocasiões muito raras, e não conhecíamos o que<br />

havia lá. Entramos num grande salão, mobiliado<br />

em estilo antigo mas sem beleza, onde se realizavam<br />

as festas de formatura.<br />

Notei uma porta e fui com passo ligeiro abri-la.<br />

Ela dava diretamente para uma janela interior da<br />

igreja de São Francisco, anexa ao prédio da Faculdade.<br />

Vi então uma cena com a qual qualquer católico<br />

está habituado, mas que naquele momento<br />

me causou uma impressão profunda.<br />

Estava sendo celebrada uma Missa. Eu tinha<br />

deixado há pouco de freqüentar os ambientes<br />

mundanos e me entregado às atividades religiosas,<br />

e aí começaram a aparecer problemas, suscitados<br />

pelo demônio, que me davam receio. A vida espiritual<br />

pode complicar-se em certas ocasiões, quando<br />

Nossa Senhora quer nos provar. E eu estava passando<br />

uns dos dias de maior aflição de minha vida,<br />

por causa de uma grande provação.<br />

No instante em que abri a porta e olhei para<br />

dentro da igreja, era justamente a hora da elevação<br />

do cálice. Eu fiquei profundamente emocionado<br />

com a cena.<br />

Depois olhei um pouco mais para o alto, e vi<br />

um conjunto de imagens de origem bávara muito<br />

bonitas, representando o Padre Eterno no mais alto<br />

dos céus, abrindo os braços, como se fosse para o<br />

sacerdote que celebrava embaixo. E entre o Padre<br />

Eterno e o celebrante, havia um espaço com anjos<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com a farda da “Linha de Tiro 52”<br />

muito bem esculpidos, em atitude de profundo respeito.<br />

Senti o ambiente sagrado, ungido, cheio de bênçãos<br />

e notei como estas caíam aos borbotões sobre<br />

as pessoas que lá estavam, embora elas não percebessem,<br />

e também sobre mim.<br />

Isso me animou muitíssimo na provação que<br />

estava me atormentando.<br />

Naquele momento, tive a sensação de estar vendo<br />

aquelas imagens como vivas e respirando. E imediatamente<br />

me pus a rezar, pedindo a Nosso Senhor<br />

e a Nossa Senhora que tivessem pena de mim, me<br />

atendessem na minha aflição e me ajudassem a<br />

seguir o caminho que, por graça d’Eles, eu tinha resolvido<br />

seguir, e a não deixar esse caminho até os últimos<br />

dias de minha vida.<br />

Enquanto eu pedia isto tudo, enchia-me uma<br />

tal unção, uma tal doçura, uma tal satisfação interior,<br />

como nunca tinha eu sentido. Eu não sabia<br />

como é que isso se chamava, mas era o que mais<br />

tarde eu denominaria um “flash”.<br />

5


DR. PLINIO COMENTA...<br />

O Rei David<br />

reza ao Senhor<br />

(Iluminura<br />

medieval para<br />

uma seqüência<br />

dos Salmos<br />

Penitenciais)<br />

“Tende piedade de mim,<br />

ó Deus...”<br />

6


D r.<br />

<strong>Plinio</strong> fez uma série de palestras a respeito dos Salmos<br />

Penitenciais, que se habituara a rezar desde quando era jovem<br />

congregado mariano. Iniciamos neste número a publicação<br />

da série, apresentando aos leitores os comentários sobre o<br />

salmo 50, o Miserere.<br />

Para saborearmos convenientemente o Salmo 50<br />

— e a palavra saborear nada tem de exagerado,<br />

porque a Sagrada Escritura tem o santo sabor<br />

da obra do Espírito Santo — convém, antes, ter em vista<br />

alguns pontos.<br />

Os Salmos Penitenciais exprimem uma<br />

mentalidade<br />

O Miserere pertence ao grupo de sete salmos chamados<br />

“penitenciais”. O qué é um salmo penitencial? Evidentemente,<br />

é um canto a Deus no qual o autor exprime a sua<br />

penitência. E a penitência pressupõe que ele pecou; que,<br />

depois de ter pecado, se arrependeu; e que, uma vez vitorioso<br />

nele esse sentimento de arrependimento, ele reflete<br />

sobre a falta cometida.<br />

Nos Salmos Penitenciais, como coisa mais importante, o<br />

Salmista considera a gravidade de seu pecado, como esse<br />

ato ofende a majestade<br />

de Deus, e salienta<br />

o mal que<br />

existe nele. Para<br />

mostrar esse sentimento,<br />

realça a divindade<br />

de Deus e,<br />

portanto, sua suprema<br />

grandeza,<br />

sua suprema dignidade,<br />

sublinhando<br />

ainda mais a torpeza da ação que cometeu e não deveria<br />

ter cometido.<br />

Daí nasce um pedido de perdão com expressão de dor,<br />

com consideração da justiça divina, acentuando como seria<br />

Deus justo se punisse o pecado de acordo com sua gravidade.<br />

Mas, em segundo lugar, o pecador considera também a<br />

bondade de Deus, suprema e infinita, e, ainda que transido<br />

de santo temor diante da sua justiça, pede a Ele que atenue<br />

o castigo, que aplaque em algo o rigor da pena que merece<br />

receber.<br />

Vem então um agradecimento, pois o pecador reconhece<br />

que Deus o perdoou e restabeleceu com ele — punindo<br />

ou não — a amizade de outrora.<br />

São esses os vários elementos da contrição perfeita, expostos<br />

numa linguagem que, sem nada ter de exagerado,<br />

exprime uma mentalidade contrária daquela de que o homem<br />

moderno gosta. Os Salmos Penitenciais são muito radicais,<br />

exprimem com grande energia o mal que há no pecado,<br />

e um arrependimento intenso, que mostra a ótima qualidade<br />

da contrição do Salmista.<br />

Um Salmo para recitação diária<br />

Que beleza seria que o Salmo 50 fosse rezado todos os<br />

dias nas igrejas e oratorios! Ele é muito próprio a regenerar<br />

almas maculadas pelo pecado.<br />

Analisemos o seu texto:<br />

Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia.<br />

A idéia expressa<br />

por esta frase inicial,<br />

é a do pecador<br />

falando com Deus.<br />

Trata-se, no caso,<br />

do Rei David, que<br />

pecou e se dirige a<br />

Deus, pedindo misericórdia<br />

e perdão.<br />

Mas ele não se limita a pedir perdão segundo a misericórdia<br />

de Deus. Ele o pede segundo a “grande misericórdia”<br />

de Deus. Como quem dá a entender que seu pecado é<br />

tão grave que, sem uma misericórdia insigne, não pode ser<br />

perdoado. É o modo pelo qual o pecador se humilha e declara<br />

saber que só por uma bondade excepcional será perdoado.<br />

E segundo a multidão das tuas clemências, apaga a minha<br />

iniqüidade.<br />

Que bonita expressão “a multidão das tuas clemências”!<br />

Deus é clemente e tem latentes em Si multidões de cle-<br />

O salmista patenteia a enormidade<br />

do seu pecado e considera que, sem a<br />

insígne misericórdia de Deus,<br />

não poderá ser perdoado<br />

7


DR. PLINIO COMENTA...<br />

mências. Diante do pecador contrito, ajoelhado na sua presença,<br />

Deus vê tudo quanto se passa na sua alma. E o faltoso,<br />

sabendo disso, diz a Ele:<br />

“Não é segundo uma clemência comum, não é segundo<br />

a clemência com a<br />

qual habitualmente<br />

Vós, que sois infinitamente<br />

bom, tratais<br />

as criaturas,<br />

meu Deus, que eu<br />

me dirijo a Vós. Eu<br />

o faço pois sei que<br />

vossas clemências<br />

— note-se o bonito da palavra ‘clemências’ no plural —<br />

hão de apagar a minha iniqüidade.”<br />

Imagem<br />

do Rei<br />

David -<br />

Palácio do<br />

Escorial,<br />

Espanha<br />

A palavra “iniqüidade” — quase que por seu simples<br />

som — carrega uma nota de execração especial ao pecado<br />

cometido. No caso de David, é o pecado de adultério,<br />

sobrecarregado de pormenores muito censuráveis. O termo<br />

“iniqüidade” dá<br />

a entender que o<br />

pecador reconhece<br />

ser portador de<br />

muitos pecados.<br />

É o contraste:<br />

Deus que tem uma<br />

multidão de clemências,<br />

e o pecador<br />

que tem muitas iniqüidades. As muitas iniqüidades<br />

— por assim dizer — não serão absolvidas em vista só de<br />

um certo arrependimento do pecador, porque isto pareceria<br />

não bastar, não teria proporção com a ofensa feita a<br />

Deus. O perdão virá segundo a multidão das clemências<br />

d’Ele.<br />

David parece dizer a Deus:<br />

“Eu noto em mim um certo pesar. Mas quando considero<br />

o pesar que deveria ter e o comparo com o que tenho,<br />

meu Deus, que pesarzinho de segunda o meu! Que pesarzinho<br />

insignificante! Se não fosse a multidão de vossas<br />

clemências, a minha iniqüidade não seria apagada.<br />

A palavra “apagar” nos lembra o que faz o apagador<br />

com o que está escrito no quadro-negro. Pode este estar<br />

cheio de acusações contra o pecador, mas se alguém passar<br />

o apagador sobre tudo aquilo escrito em giz, tudo se<br />

desfaz em pó e o quadro-negro fica como antes.<br />

Assim é também a situação do pecador. Ofendeu a<br />

Deus. Mas se Deus “passar o apagador” sobre<br />

aquilo, sua alma ficará como se ele nunca<br />

houvesse pecado.<br />

O que o Salmista pede, propriamente, é<br />

isso, que a situação da alma dele, diante de<br />

Deus, fique como se nunca tivesse havido<br />

pecado.<br />

Como quem diz:<br />

“Eu sei, meu Deus, que fiz tudo isso, mas<br />

Vós tendes multidões de clemências e há algo<br />

que só Vós podeis fazer: apagar o meu pecado,<br />

com um perdão tão completo, tão radical como se<br />

eu nunca tivesse cometido essa ignomínia na vossa<br />

presença.<br />

“Meu Deus, tomando em consideração vossa<br />

bondade, dobro os joelhos e Vos peço: aqueles dias<br />

de maldição e pecado, meu Deus, sejam arrancados do<br />

caderno de minha vida. Não sejam julgados por Vós<br />

quando eu comparecer diante de Vós como meu justo<br />

Juiz. Sejam eles incinerados, queimados pelos raios de<br />

“Que os dias de maldição e pecado<br />

sejam arrancados do caderno<br />

de minha vida, ó Deus, e não sejam<br />

julgados por Vós”


vossa bondade, e que eu fique diante de Vós<br />

como se jamais tivesse pecado.”<br />

O mundo se converterá, se disser a<br />

Deus o que o Salmo 50 exprime<br />

Lava-me mais e mais da minha iniqüidade, e<br />

purifica-me do meu pecado.<br />

Lava-me mais e mais, quer dizer:<br />

“Meu Deus, compreendo que estou tão<br />

imundo, compreendo que a ação que pratiquei<br />

é tão péssima, dói-me tanto, meu Deus, de Vos<br />

ter ofendido desta maneira, que para readquirir<br />

vossa graça, para que vosso sorriso brilhe de<br />

novo sobre mim, e eu seja novamente David, o<br />

vosso predileto — e não o vosso traidor — Vós<br />

deveis tirar a ganga asquerosa do meu pecado.<br />

Vós podeis tudo. A água que passar pelas vossas<br />

mãos, correndo sobre o meu corpo impuro<br />

e infectado, há de lavar-me, e ficarei limpo.<br />

“É preciso, Senhor, que me deis vários perdões,<br />

que concedais várias misericórdias, para<br />

que, afinal de contas, me veja livre do meu pecado.<br />

Ele é tão horrível quanto o seria uma lepra<br />

que estivese aderida a mim e não me largasse;<br />

mas se Vós derdes a ela uma ordem, ela fugirá<br />

e então eu ficarei lavado.”<br />

Porque conheço a minha maldade, e o meu<br />

pecado está sempre diante de mim.<br />

Uma bela frase na qual ele reconhece a maldade,<br />

o errado, o criminoso, da ação que praticou,<br />

de tal maneira que, durante o dia inteiro —<br />

como um fantasma — o persegue a idéia do<br />

mal que fez. O pecado está o tempo inteiro<br />

diante dele, como acusador diante do acusado.<br />

Como se o autor do Salmo ouvisse o pecado<br />

lhe dizer:<br />

“Tu és como eu. Tu me praticaste, e por<br />

causa disto aderi a ti, fiquei como que fazendo<br />

parte de ti. Como a lepra no corpo do leproso,<br />

assim eu, pecado, estou colado em ti. Sou o<br />

adultério, sou a falta de fidelidade à fé prometida,<br />

sou a sensualidade, o desbragamento; sou o<br />

que induz os homens a ações péssimas, como a de enviar<br />

para a morte o general Urias, esposo de Betsabé... Sou o<br />

pecado, e tu, David, és meu escravo. Eu moro em ti, eu te<br />

domino!”<br />

Mas diz então o pecador:<br />

“É verdade, o pecado está o dia inteiro me increpando,<br />

e tem razão. Mas, ó Deus, Vós podeis limpar-me. E no<br />

"A água que passar por vossas mãos<br />

há de lavar-me e ficarei limpo..."<br />

"O filho pródigo" - Museu do Prado, Madri<br />

momento em que eu esteja limpo, direi ao pecado: Fui<br />

como tu, mas hoje sou teu inimigo capital. Fora!”<br />

O mundo de hoje, se pudesse ter uma voz coletiva para<br />

falar a Deus, deveria dizer o que o Salmo 50 exprime. E se<br />

o dissesse, se converteria.<br />

[Continuará no próximo número]<br />

9


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

O ESPÍRITO DO MUNDO<br />

e a mentalidade das nações<br />

N a<br />

introdução de uma série de palestras para jovens<br />

que se preparavam para fazer a consagração a Nossa<br />

Senhora, segundo o método de São Luís de Montfort,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teceu interessantes considerações sobre o espírito do<br />

mundo, e a formação da psicologia dos povos e nações. Nas páginas<br />

a seguir, o leitor poderá degustar alguns excertos desses<br />

comentários.


O que é o mundo?<br />

Na primeira parte de sua preparação<br />

para a Consagração, São Luís Maria<br />

Grignion de Montfort deseja que<br />

as pessoas façam uma operação de<br />

esvaziamento do espírito do mundo.<br />

Para esvaziar-se do espírito do<br />

mundo, devemos começar por saber<br />

como ele é.<br />

O mundo é a sociedade temporal<br />

na qual o indivíduo vive. Em todo país<br />

católico, como o Brasil, existem duas<br />

sociedades: a espiritual e a temporal.<br />

Num certo sentido, a sociedade temporal<br />

vive na espiritual e, em certo outro<br />

sentido, a espiritual vive na temporal.<br />

Habitualmente, o mundo tem um<br />

determinado modo de pensar, de agir<br />

e de viver, que todos os seus habitantes<br />

— ou pelo menos uma boa parcela<br />

deles — reputa verdadeiro, exato,<br />

conforme a suas tradições, a seus<br />

costumes, a seu modo de ser, a sua cultura,<br />

etc., e querem conservá-lo.<br />

O mundo considerado assim, ou é<br />

definidamente católico, e neste caso<br />

é um colaborador da Igreja, ou não é<br />

inteiramente católico mas, em parte<br />

ou no todo de sua mentalidade, é<br />

construído de um modo oposto ao<br />

que a Igreja ensina e, neste segundo<br />

caso, é adversário da Igreja.<br />

Isso supõe o princípio de que cada<br />

sociedade temporal tem uma mentalidade,<br />

ou seja, um conjunto de princípios,<br />

de modos de viver e de sentir,<br />

uma cultura, uns costumes, uma tradição,<br />

esperanças, preferências, etc.,<br />

e esse conjunto representa as aspirações<br />

de todos os seus integrantes.<br />

O indivíduo que tem a mentalidade<br />

do mundo vive muito bem nesse<br />

ambiente no qual ele tem o consenso<br />

geral, pois ele está de acordo com esse<br />

consenso. Acontece que se esse consenso<br />

não é inteiramente católico, o<br />

homem que vive nesse ambiente sofre<br />

uma solicitação contínua para deixar<br />

a mentalidade da Igreja e tomar a do<br />

mundo. E, nesse sentido, o mundo,<br />

então, é o grande inimigo da alma.<br />

Nesse caso, a Igreja adverte seus<br />

filhos: “Não tomem a mentalidade<br />

do mundo, que é má!”<br />

Ter uma idéia bem clara<br />

do espírito do mundo<br />

Nossa defesa contra o espírito do<br />

mundo, então, tem de ser termos uma<br />

idéia bem clara do que é esse espírito,<br />

como ele se estrutura, qual é a sua<br />

força e como se pode produzir a sua<br />

derrota.<br />

Alguém dirá: “Isso é impossível”.<br />

Eu lhe perguntaria: “Você examinou?<br />

Você tem sequer idéia de qual é<br />

o adversário que estamos combatendo?<br />

Como é que você diz ser impossível<br />

uma coisa que você não conhece?”<br />

É claro que todas as coisas que não<br />

conhecemos podem nos parecer impossíveis.<br />

Mas, na realidade, são francamente<br />

possíveis se as conhecermos<br />

bem.<br />

Derrotar o espírito do mundo é<br />

possível em duas dimensões: individual<br />

e coletiva. Individualmente, apontando<br />

a um indivíduo bem precisamente<br />

o que é o espírito do mundo,<br />

para ele o combater em si. Pois se ele<br />

não sabe o que é, não poderá combatê-lo;<br />

no máximo, fará uns combates<br />

esporádicos contra um aspecto<br />

ou outro, mas não arrancará o monstro<br />

inteiro de dentro de si.<br />

No início, a Igreja tinha<br />

diante de si “mundos”<br />

diferentes<br />

Se tomarmos a História da Igreja<br />

nos primeiros séculos — em face dos<br />

povos do Mediterrâneo, onde ela se<br />

desenvolveu inicialmente, e do Oriente<br />

Próximo — veremos que ela encontrava<br />

mundos diferentes, porque<br />

as estradas eram muito pouco transitáveis,<br />

as comunicações eram difíceis,<br />

e por isso cada país tinha sua<br />

mentalidade, sua cultura, e formava<br />

um “mundo” próprio. Ora podia um<br />

determinado “mundo” — neste sentido<br />

da palavra — estar mais próximo<br />

da Igreja, ora podia estar mais longínquo<br />

dela.<br />

Por exemplo, os romanos eram<br />

muito primitivos quando a Grécia estava<br />

no seu apogeu. Por sua vez,<br />

quando Roma chegou a seu apogeu, a<br />

Grécia era um conjunto de decadentes,<br />

mas a cultura grega tinha sido<br />

inteiramente assimilada pelos romanos,<br />

os quais passaram a viver segundo<br />

a mentalidade dos gregos.<br />

A cultura grega tinha-se espalhado<br />

por um “mundo” que abrangia,<br />

além da Grécia propriamente dita,<br />

parte da Península Balcânica, Bizâncio,<br />

e parte da Península Itálica, inclusive<br />

Roma. Mas uma parte desse<br />

mundo era bárbara ainda.<br />

Do outro lado do Mediterrâneo estava<br />

o Egito, com uma cultura sensivelmente<br />

diferente da cultura grega.<br />

Em cada país a Igreja tinha uma<br />

posição diferente perante o mundo.<br />

Como a mentalidade<br />

gera o estilo<br />

Antigamente, via-se como uma nação<br />

era diferente da outra considerando<br />

os monumentos, a literatura,<br />

e tudo o que havia sido legado pela<br />

tradição. Isso foi assim desde o<br />

antigo Egito até a Revolução Francesa<br />

e as grandes invenções. Até o século<br />

XIX, as nações ainda eram muito<br />

diferenciadas umas das outras; cada<br />

uma com sua mentalidade, com seu<br />

modo de ser, com sua filosofia, constituía<br />

um mundo à parte.<br />

Por exemplo, o estilo arquitetônico<br />

clássico grego, superconhecido, superlouvado,<br />

como é que se formou?<br />

Houve tempo em que os gregos viviam<br />

em choupanas. Em certo momento,<br />

eles começam a construir, e<br />

começam a aparecer obras monumentais,<br />

extraordinárias, não pelo tamanho,<br />

mas pelo gosto, pela harmonia,<br />

pela simetria.<br />

Como se chegou da barraca de um<br />

povo de pescadores mais ou menos<br />

11


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

ignorantes, ao Parthenon de Atenas,<br />

por exemplo?<br />

Alguém me dirá: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, é muito<br />

simples. Um belo dia, apareceu um<br />

homem com talento, e havia outro homem<br />

que queria construir um templo<br />

e lhe deu o dinheiro necessário.<br />

Aquele, então, o construiu. Pronto.”<br />

Não é assim. O estilo clássico grego,<br />

quando apareceu, encontrou o apoio<br />

entusiástico de toda a população, porque<br />

um estilo apresenta sempre a imagem<br />

de uma mentalidade. Era preciso,<br />

pois, que essa mentalidade já estivesse<br />

meio incubada nos atenienses<br />

para que, quando aparecesse o estilo,<br />

eles exclamassem: “É isto!” Quer<br />

dizer, houve, em primeiro lugar, uma<br />

elaboração do estilo no subconsciente<br />

dos atenienses.<br />

Não é que eles estivessem o tempo<br />

inteiro à sua procura, pois há certas<br />

coisas que o homem só encontra<br />

quando não pensa muito nelas.<br />

O conjunto dos habitantes de Atenas<br />

tinha uma espécie de avidez daquele<br />

estilo. Quando apareceu um homem<br />

especialmente capaz de sentir<br />

em si — por ser um ateniense muito<br />

típico — aquela avidez coletiva, e dotado<br />

dos meios artísticos para dar expressão<br />

arquitetônica a esses sentimentos,<br />

ele fez o Parthenon. Mas


quando o fez, ele agiu como um porta-voz<br />

de todos os moradores da cidade,<br />

de tal maneira que houve uma<br />

aclamação geral por sua obra.<br />

Estilo, aqui, não é só o estilo arquitetônico.<br />

No caso grego, é toda uma<br />

mentalidade ateniense, todo um espírito<br />

que, em alguma medida — sem<br />

exagerar nada — os filósofos de Atenas<br />

e seus grandes intelectuais exprimiram.<br />

Duas mentalidades<br />

refletidas num pequeno<br />

episódio<br />

Por exemplo. Conta uma lenda que<br />

houve um concurso de escultura em<br />

Atenas, para o qual se admitiu toda<br />

espécie de escultores que quisessem<br />

concorrer. E as duas estátuas<br />

mais avaliadas foram<br />

uma deusa esculpida<br />

por um grego e<br />

uma rainha esculpida<br />

por um persa.<br />

O escultor persa<br />

talhou sua estátua com<br />

um vestido riquíssimo, à<br />

maneira dos potentados<br />

persas. A Pérsia, sendo um<br />

rico império, tinha todo o<br />

luxo, todo o esplendor da corte<br />

imperial. Por isso, aparecia<br />

neles a preocupação de<br />

apresentar nas esculturas<br />

o esplendor da corte, como um elemento<br />

integrante da mentalidade nacional.<br />

Por sua vez, os gregos em Atenas<br />

constituíam uma república que se tornou<br />

célebre. O fato concreto é que o<br />

grego esculpiu uma deusa muito bonita,<br />

mas vestida de uma túnica simplicísima.<br />

O juri, constituído por gregos, fez<br />

uma apreciação entre as duas obras<br />

de arte e deu a vitória à estátua grega.<br />

O escultor persa, naturalmente, ficou<br />

indignado — é clássica a oposição<br />

entre os dois povos — e protestou:<br />

— Por que é que a minha escultura<br />

não ganhou? Ela está tão ricamente<br />

adornada!<br />

Os membros do juri lhe responderam:<br />

— Tu a esculpiste rica porque não<br />

a soubeste esculpir bela.<br />

Os senhores estão vendo que, num<br />

pequeno episódio, são duas filosofias<br />

e duas mentalidades que se deixam<br />

ver.<br />

A consonância atrai, a<br />

dissonância repele<br />

Numa cidade antiga havia bairros,<br />

havia estrangeiros, havia tudo o que<br />

há nas cidades de hoje. Nas cidades,<br />

hoje como antigamente, os vários bairros<br />

entram numa espécie de contato<br />

mudo uns com os outros, muito mais<br />

A simplicidade<br />

aliada à beleza<br />

tornou célebre o<br />

estilo clássico<br />

grego, reflexo da<br />

mentalidade de um<br />

grande povo<br />

pelo olhar e pela convivência do que<br />

pela conversa. E o modo pelo qual<br />

um bairro influencia outro, cria nele<br />

uma mentalidade de conjunto que é<br />

propriamente a sua “filosofia”.<br />

Desta maneira, cada bairro tem sua<br />

filosofiazinha própria e acaba tendo<br />

um certo contato — mais próximo<br />

ou mais remoto — com outro bairro.<br />

Forma-se, assim, uma espécie de “bolsa<br />

de filosofias”. Essas filosofias são<br />

afins, por causa da vizinhança. E, postas<br />

numa mesma bolsa, engendram<br />

uma “filosofia comum”, a qual é uma<br />

filosofia ampla, abrangendo todos os<br />

aspectos da vida, e constituem uma<br />

mentalidade total.<br />

Em geral, quando um indivíduo é<br />

político e quer ser esperto, ele percebe<br />

que quanto mais suas opiniões forem<br />

características de um certo ambiente,<br />

mais ele atrairá esse ambiente<br />

em torno de si. E que quanto mais,<br />

em vez de características, suas opiniões<br />

forem dissonantes, mais ele repelirá<br />

o ambiente que o rodeia.<br />

Qual é o resultado disso?<br />

É que o ser humano, desde menino,<br />

vai instintivamente procurando<br />

ficar parecido com os outros e tomar<br />

a mentalidade dos outros, para ter<br />

um convívio agradável com eles. Percebe,<br />

às vezes, as dissonâncias de um<br />

modo muito vivo, e aceita algumas<br />

coisas, mas recusa outras. A maior<br />

parte das pessoas aceita tudo, e forma<br />

esse “bolo” que, no seu conjunto,<br />

se chama “opinião pública”.<br />

Portanto, se alguém quiser ter um<br />

rumo na vida, precisa perceber que<br />

efeito está causando e julgá-lo: se for<br />

um efeito razoável, aceitar; se for de<br />

acordo com a fé, aceitar; se for bom,<br />

aceitar ainda muito mais. Se for contrário<br />

em algo ao espírito, sobretudo,<br />

à doutrina da Igreja, recusar. E<br />

fazê-lo a qualquer preço. Se a pessoa<br />

assim não proceder, se ela não exercer<br />

uma vigilância contínua sobre si<br />

mesma nesse ponto, acabará se tornando<br />

peteca nas mãos dos circunstantes.<br />

❖<br />

13


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Contemplando o<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

J<br />

unho é o mês do Coração de Jesus. <strong>Dr</strong> Plino tinha essa devoção<br />

arraigada em sua alma desde a mais remota infância,<br />

e a desenvolveu ao longo de toda a sua vida, como se pode ver<br />

no texto da conferência que transcrevemos a seguir.<br />

Adevoção ao Sagrado Coração<br />

de Jesus é tão antiga<br />

em mim que — como já<br />

contei aos senhores — antes mesmo<br />

de eu saber dizer “papai” ou “mamãe”,<br />

quando minha mãe me perguntava:<br />

“Onde está o Sagrado Coração<br />

de Jesus?”, eu apontava para a imagem<br />

d’Ele.<br />

Conhecer uma devoção é, sem<br />

dúvida nenhuma, debaixo de certo<br />

ponto de vista, degustá-la. E o degustar<br />

alguma coisa, para o meu modo<br />

de ser, nunca é completo enquanto eu<br />

não conhecer essa coisa até ao fundo.<br />

Uma das razões que me empolgaram<br />

tanto no livro de São Luís<br />

Maria Grignion de Montfort, “Tratado<br />

da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />

Virgem”, é que ele toma o assunto<br />

central e vai até onde se pode e<br />

se deve ir para ter conhecimento da<br />

questão. Vendo a montagem racional<br />

desse assunto, em função da doutrina<br />

católica, eu o compreendi. E comprendi<br />

bem, como gosto de compreender.<br />

Entendendo desse modo, eu me<br />

sinto muito mais eu mesmo, sinto-me<br />

muito mais em casa para amar, porque<br />

a mente humana gosta de ver a<br />

insondabilidade das coisas, se compraz<br />

em de ver a força do raciocínio,<br />

se alegra em sondar palmo a palmo<br />

uma questão e ir até ao fundo dela.<br />

É assim que o homem ama. Ao menos<br />

é assim que eu sei amar. Não sou,<br />

nem um pouco, amigo desses espíritos<br />

cartesianos que pensam que tudo se<br />

resume em compreender e que, uma<br />

vez compreendido, está tudo acabado.<br />

Não. É preciso ter o raciocínio, mas<br />

também o sentimento. Por que fazer a<br />

escolha entre o raciocínio e o sentimento?<br />

Se Deus fez o homem capaz<br />

de raciocínio e sentimento, tenhamos<br />

ambas as coisas, para fazer a vontade<br />

de Deus e para sermos nós mesmos.<br />

O que se deve entender por<br />

“coração”?<br />

Tomo os elementos que me parecem<br />

fundamentais nesse grande e<br />

misterioso assunto que é a devoção ao<br />

Sagrado Coração de Jesus.<br />

Por “coração” os antigos entendiam<br />

não precisamente o que se entende<br />

hoje, mas algo que é ao mesmo<br />

tempo mais vasto e, em certo sentido,<br />

diferente.<br />

Em nossos dias, o coração é quase o<br />

símbolo do sentimento desacompanhado<br />

da razão. Diz-se que o coração<br />

de uma pessoa vibra quando ela sente<br />

um certo enternecimento, quando é<br />

alvo de um ato de bondade, ou quan-<br />

14


Desde a mais tenra infância <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

costumava rezar diante desta imagem do<br />

Sagrado Coração de Jesus, exposta na igreja a<br />

Ele consagrada em São Paulo


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

do tem uma condescendência com algo.<br />

Mas coração é só isso?<br />

Para os antigos, não era assim. Eles<br />

tomavam o coração como o órgão que<br />

nós conhecemos, que pulsa, que tem<br />

"A Natividade",<br />

Museu do<br />

Escorial (Espanha)<br />

aurículas, ventrículos, faz sístoles e<br />

diástoles, e em razão de cujo funcionamento<br />

— uns mais solidamente na<br />

sua jovem idade, outros mais precariamente<br />

nas idades avançadas — todos<br />

estamos vivos. Mas coração significava<br />

para eles algo mais. Era o conjunto<br />

das coisas que o homem vê, ama<br />

e guarda na sua mente, por assim dizer,<br />

como se fosem “slides”, porque<br />

lhe falaram mais.<br />

A palavra coração representa esse<br />

conjunto de coisas enquanto amadas<br />

pelo homem com um amor que não é<br />

apenas uma conaturalidade ou uma<br />

O coração é<br />

símbolo de tudo o<br />

que o homem vê,<br />

ama e guarda na<br />

sua mente<br />

simpatia, mas é um ato racional. As<br />

coisas que foram julgadas segundo<br />

certa doutrina verdadeira — que é o<br />

ponto de referência de tudo — e foram<br />

encontradas conformes a essa<br />

doutrina, e, por isso mesmo, amadas.<br />

A sensibilidade é um eco harmonioso,<br />

delicado e nobre, desse amor.<br />

Mas, é preciso ter compreendido<br />

bem e ter chegado bem até ao fim no<br />

julgamento, para amar inteiramente.<br />

É necesario compreender até ao fundo,<br />

para admirar e amar de corpo inteiro,<br />

de coração inteiro.<br />

O coração do católico. O<br />

Coração de Jesus<br />

O verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós: a partir de então<br />

a natureza divina e a humana passaram a conviver...<br />

O coração do católico representa,<br />

nesse sentido, a mentalidade dele,<br />

que inclui a sua sensibilidade, mas indica<br />

sobretudo aquilo que — estando<br />

de acordo com a doutrina católica, a-<br />

postólica, romana — ele conhece<br />

pela Fé como verdadeiro. Aquilo que<br />

ele ama acima de tudo e toma como<br />

uma linha rectrix de todas as outras<br />

coisas, porque é conforme à verdade<br />

verdadeiríssima, à verdade soberana,<br />

à verdade padrão, segundo a qual todas<br />

as outras verdades são de fato ver-<br />

16


dades, e contra a qual todas as aparências<br />

de verdade não são senão erros<br />

enganosos.<br />

Em todo caso, tendo já como presuposto<br />

que o coração é o símbolo da<br />

mentalidade, nós podemos nos perguntar<br />

como era a mentalidade de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo. É um tema<br />

audacioso, é uma navegação tão alta<br />

que o homem tem medo de chegar até<br />

lá. Mas, de outro lado, esse ar atrai.<br />

Quanto mais alto se voa nele, mais se<br />

tem vontade de subir, e medo de ser<br />

obrigado a descer. É o contrário da<br />

aviação terrena.<br />

O que nos é dado entrever daquilo<br />

que seria a mentalidade de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo em algum de seus<br />

aspectos?<br />

Devemos considerar essa mentalidade<br />

muito mais na sua Humanidade<br />

Santíssima do que na sua Divindade.<br />

Nesta última, o tema subiria tanto que<br />

não seria fácil, pelo menos a um leigo,<br />

tratar da questão. Mas a Humanidade<br />

santísima d’Ele está mais perto<br />

de nós. Um “perto” cuja distância vai<br />

de uma ponta a outra do universo, porque<br />

a perfeição d’Ele não tem comparação<br />

com nada e com ninguém.<br />

A Fé nos ensina que o Verbo se encarnou<br />

e habitou entre nós. A natureza<br />

humana d’Ele está ligada pela<br />

união hipostática à natureza divina. A<br />

Segunda Pessoa da Santíssima Trindade<br />

encarnou-se e desse acontecimento<br />

único resultou Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo. Essa dualidade de naturezas<br />

numa só pessoa significa que a sua<br />

Humanidade santíssima tinha com a<br />

Divindade um contacto mais íntimo<br />

que que teria com Deus o Santo mais<br />

perfeito.<br />

de Jesus teve uma como que treva,<br />

uma como que noite escura, em relação<br />

à natureza divina, de maneira que<br />

Ele se sentiu abandonado e rezou:<br />

— Meu Pai, se for possível afastese<br />

de Mim este cálice.<br />

E veio um Anjo que o consolou, e<br />

Ele se reanimou.<br />

Também, no alto da Cruz, Ele teve<br />

uma exclamação que parece lançar<br />

uma luz especial sobre o mistério das<br />

relações entre a sua natureza humana<br />

e a natureza divina. Ele bradou:<br />

—Meu Pai, meu Pai, porque Me<br />

abandonastes?<br />

É verdade que este é o primeiro<br />

versículo de um salmo que prenuncia<br />

a sua vitória, e, recitando-o, afirmava<br />

que ia ressuscitar. Mas, de qualquer<br />

forma, havia ali um brado de<br />

abandono.<br />

Foi tão grande esse abandono que<br />

pouco depois Ele disse: “Consummatum<br />

est!” E entregou o seu Espírito.<br />

Os senhores estão vendo, por aí,<br />

que havia mistérios, havia dores e pa-<br />

Mistérios da união<br />

hipostática<br />

Essa união, porém, não deixa de ter<br />

aspectos misteriosos para nós. Por<br />

exemplo, na Oração do Horto das Oliveiras,<br />

parece que a natureza humana<br />

“A Crucifixão”,<br />

Catedral de<br />

Béziers (França)<br />

... envoltas por aspectos misteriosos cuja profundidade se pode medir<br />

em episódios como a Oração no Horto e a Crucifixão no Calvário<br />

17


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

decimentos nesta humana natureza<br />

tão ligada à natureza divina. E como<br />

nesta vida há uma certa proporção entre<br />

os sofrimentos e as alegrias, que<br />

tremendos padecimentos devem ter<br />

sido os d’Ele, uma vez que devem ter<br />

sido tão extraordinárias suas alegrias!<br />

Os senhores podem imaginar, numa<br />

alma unida a Deus, formando com<br />

Deus uma só Pessoa, a alegria que isso<br />

pode dar! Nenhum Anjo do Céu<br />

tem essa alegria! Ele tinha e tem no<br />

Jesus passou pelos<br />

sofrimentos mais<br />

pasmosos que<br />

ser algum<br />

jamais padeceu<br />

Céu. Mas, de outro lado, se há uma<br />

proporção das alegrias com as dores,<br />

que dores, e que dores, e que dores<br />

Ele deveria sofrer!<br />

“Tudo está consumado”: a<br />

dor do inexplicável<br />

Poucas coisas fazem sofrer tanto o<br />

homem quanto a dor do inexplicável.<br />

Quando ele tem explicação para a<br />

sua dor, ele sofre menos. Mas, quando<br />

a dor é inexplicável e cai sobre ele<br />

como algo que ele não entende... Não<br />

é porque ele queira tomar satisfações<br />

de Deus, mas é que do não-entender<br />

lhe vem o medo de que aquilo seja um<br />

castigo por alguma culpa, que aquilo<br />

seja algo fora dos desígnios divinos.<br />

Nosso Senhor não podia ter culpa,<br />

e Ele sabia disso, e nada para ele era<br />

inexplicável. Porém, que misteriosos<br />

sofrimentos Ele teve? Nós não o sabemos.<br />

Só sabemos uma coisa: é que Ele<br />

passou pelos tormentos mais pasmosos<br />

que jamais um ser tenha padecido<br />

na História. Esses sofrimentos de alma<br />

eram tão extraordinários que deixariam<br />

qualquer homem com a saúde<br />

arrasada em poucas horas: poderiam<br />

sobrevir enfartes, derrames cerebrais,<br />

e tudo o que os senhores possam imaginar.<br />

Ele agüentou até o fim, e seu último<br />

ato foi um ato de lucidez: “Consummatum<br />

est — Tudo está consumado”.<br />

Depois de criar o universo, Deus<br />

o viu em seu conjunto e considerou<br />

que cada coisa era bela, boa e verdadeira,<br />

mas que o conjunto era mais belo<br />

do que cada uma das coisas em particular.<br />

Tem-se a impressão de que<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, ao morrer,<br />

considerou tudo o que sofreu e viu<br />

que tinha sofrido tudo o que devia padecer,<br />

e que era uma beleza, uma torrente<br />

de sangue e de dores, como nenhum<br />

oceano poderia conter. A última<br />

gota de sangue estava derramada,<br />

a última dor, a mais inexplicável, a<br />

mais pungente, estava sofrida. Estava<br />

tudo pronto. Ele contemplou a formosura<br />

deste horror e disse: “Está<br />

tudo oferecido pela Redenção do gênero<br />

humano: Consummatum est. Eu<br />

sofri tudo o que tinha que sofrer, e<br />

tudo o que se pode sofrer, Eu sofri de<br />

maneira a minha tarefa redentora estar<br />

inteiramente pronta: Consummatum<br />

est. Só me falta o último lance,<br />

que é a separação da alma do corpo.<br />

Depois disso, cessarei de sofrer. Mas<br />

esse último lance, Eu ainda tenho que<br />

dar: morrerei!”<br />

E morreu... Que coisa maravilhosa!<br />

Com que sensibilidade, mas com<br />

que compreensão profunda de sua<br />

missão, com que força e continuidade<br />

Ele sofreu aquilo tudo! É algo que<br />

não se pode medir suficientemente.<br />

Harmonia de perfeições<br />

Ora, devemos imaginar o Homem-<br />

Deus com todas essas forças e grandezas<br />

implícitas na alma, imaginá-Lo<br />

assim, vivendo os vários aspectos de<br />

sua vida terrena.<br />

Por exemplo, quando Ele acariciou<br />

as crianças que vieram falar com Ele<br />

e disse: “Deixai vir a Mim os pe-<br />

“Deixai vir a Mim os<br />

pequeninos....” (imagem<br />

venerada no Santuário do<br />

Caraça, MG) — Nosso<br />

Senhor possuía esse<br />

universo de perfeições<br />

harmônicas, em que a força,<br />

a grandeza e a majestade<br />

incomparáveis se aliavam à<br />

misericórdia e à bondade<br />

acessíveis aos menores<br />

18


queninos, porque deles é o Reino do<br />

Céu”. Os senhores estão vendo o afeto,<br />

a bondade, a doçura... Não há homem<br />

de qualquer idade que vendo-O<br />

dizer: “Deixai vir a Mim os pequeninos”,<br />

não pense: “Bem, então há um<br />

lugarzinho para mim também, por<br />

mais que eu seja um pequenino, porque,<br />

em comparação com Ele, todo<br />

mundo é pequenino. Eu vou me aproximar”.<br />

Que doçura nessas palavras! Essa é<br />

a suavidade de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, o qual era ao mesmo tempo<br />

tão forte e, no sentido mais sublime<br />

da palavra, tão decidido. Resolveu sofrer,<br />

sofreu até ao fim e até ao ápice<br />

tudo, e de bom grado, sem excluir nada.<br />

Tão terrível e tão misericordioso,<br />

a ponto de dirigir-se ao bom ladrão e<br />

fazer a primeira canonização na Igreja<br />

Católica:<br />

— Tu hoje estarás comigo no Paraíso.<br />

Os senhores podem imaginar como<br />

o bom ladrão se sentiu reconfortado<br />

e animado com essa promessa. Ficase<br />

com inveja dele. Cada um de nós<br />

que, na hora da morte, ouvisse essas<br />

palavras: “Hoje estarás comigo no Paraíso”,<br />

se levantaria da cama para glorificar<br />

a Deus e dizer: “Mas então, Senhor,<br />

o que esperais? Vamos! Vamos,<br />

levai-me!”<br />

Mas como pode uma alma humana<br />

compor esses quadros de conjunto, de<br />

maneira a, quando vir Nosso Senhor<br />

expulsando os vendilhões do templo,<br />

pensar n’Ele acariciando uma criancinha<br />

ou contando a parábola do Bom<br />

Samaritano; imaginá-Lo, com uma<br />

bondade indizível, curando este, aquele,<br />

e aquele outro, espargindo em torno<br />

de Si alegria, consolação, tranqüilidade,<br />

saúde; pensar n’Ele encantando<br />

os Apóstolos que O ouviam enlevadíssimos?<br />

Como conjugar essas duas visões:<br />

Ele tão forte, tão incomparável, tão<br />

único, e, ao mesmo tempo, tão misericordioso<br />

e tão acessível aos pequeninos?<br />

É preciso lembrar-se d’Ele como<br />

está no Santo Sudário, e aí se compreenderá<br />

como Ele era, no sentido<br />

mais nobre da palavra, o atleta de<br />

Deus, o herói de Deus! Siegfrid, Lohengrin,<br />

toda espécie de “heróis” dessa<br />

ordem, sublimados por Wagner,<br />

aqueles homens da mitologia antiga,<br />

tudo isso é quinquilharia em comparação<br />

com o Varão do Santo Sudário!<br />

O Homem-Deus é<br />

uma maravilha que,<br />

ou O consideramos<br />

por partes, ou não<br />

O conseguimos<br />

considerar<br />

Como imaginar no Menino Jesus,<br />

apenas nascido em Belém, como imaginar<br />

que nessa Criança, cuja alma<br />

contém todas as canduras e inocências<br />

imagináveis e excogitáveis, estava<br />

o Herói que iria sofrer de maneira a<br />

impressionar os homens até ao fim do<br />

mundo?!<br />

N’Ele todas essas perfeições se<br />

ajustavam de maneira a não se poder<br />

compreender. Ele é muito maior do<br />

que o campo de nossa visão. Ele é uma<br />

maravilha que, ou nós O consideramos<br />

por partes, ou não O conseguimos<br />

considerar.<br />

Adorar todas as perfeições<br />

do Sagrado Coração de<br />

Jesus<br />

Cada um adora Nosso Senhor como<br />

foi chamado a adorá-Lo. Como<br />

sou eu quem está falando, tenho de<br />

dizer o que me vai na alma. É meu<br />

modo de ser.<br />

Eu nunca me contentaria de adorar<br />

só um desses aspectos sem procurar<br />

reuni-lo a todos os outros e, ao<br />

19


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

menos muito sumariamente, fazer a<br />

idéia de como seria o conjunto. Eu tenho<br />

a impressão de que, se eu O conhecesse<br />

nesta vida terrena, uma das<br />

coisas que eu mais gostaria era de admirar<br />

e de adorar as transições de estados<br />

de espírito d’Ele, o como Ele<br />

passava de uma disposição para outra.<br />

De modo que eu pudesse compreender<br />

como é que uma disposição se encaixava<br />

na outra. E nessas transições,<br />

adorar a harmonia desses estados de<br />

espírito tão diversos. Parece-me que,<br />

com isso, o meu desejo das correlações,<br />

das reversibilidades e das harmonias,<br />

das ordenações em tudo, encontraria<br />

algo que o saciasse.<br />

Há no teto da igreja do Coração de<br />

Jesus, em São Paulo, um afresco que é<br />

uma pintura boa, ao estilo do século<br />

XIX. Esses quadros habituais de Nosso<br />

Senhor, muito respeitáveis e veneráveis,<br />

satisfazem muito a piedade,<br />

mas em geral fixam a atenção do homem<br />

num determinado estado de espírito<br />

de Nosso Senhor. Nos quadros<br />

do Sagrado Coração de Jesus, os autores<br />

fixam sempre — e a justo título,<br />

muito fundadamente — a sua misericórdia<br />

infinita. Mas a sua misericórdia<br />

infinita era só uma de suas perfeições.<br />

Não podemos sustentar que<br />

Ele não tinha outras perfeições, uma<br />

vez que Ele as tinha todas.<br />

Como é belo esse afresco! Como<br />

é ótimo, como me tem feito bem ao<br />

longo de minha vida! Mas eu gostaria<br />

que outros quadros pintassem Jesus<br />

em outros estados de espírito.<br />

Por exemplo, Ele meditando. O<br />

olhar absorvido, enlevado e contemplativo<br />

d’Ele, sozinho no deserto, durante<br />

quarenta dias de jejum. Gostaria<br />

de imaginá-Lo junto de uma pedra,<br />

no deserto árido, ou com uma vegetaçãozinha<br />

ordinária e muito rasteira,<br />

que seria o contrário da sublimidade<br />

da cena. Ou com uma bonita areia<br />

que se estende ao longe. No fundo,<br />

um pôr-de-sol em brasa e seu divino<br />

perfil se recortando sobre ele... Jesus<br />

meditando e orando. Portanto, sua<br />

natureza humana, por assim dizer, fazendo<br />

filosofia e teologia. Como é que<br />

seria a sua expressão fisionômica nessas<br />

ocasiões?<br />

Se Ele já se tinha deleitado na contemplação<br />

do universo, quanto mais se<br />

deleitaria na contemplação daquilo<br />

que é mais do que todo o universo,<br />

Nossa Senhora! Gostaria de imaginá-<br />

Lo, então, na sua Humanidade e na<br />

sua Divindade juntas, olhando para<br />

dentro dos olhos de Nossa Senhora.<br />

Ela, enlevadíssima, num êxtase altíssimo.<br />

E Ele, enquanto Deus, pensando:<br />

“A minha obra-prima!”; e enquanto<br />

“Eis o Coração que<br />

tanto amou os<br />

homens, e foi por<br />

eles tão<br />

pouco amado!”<br />

Filho e Homem pensando: “Minha<br />

Mãe! Que perfeição!”<br />

O que um de nós daria para estar<br />

do lado de fora da porta e olhar pelo<br />

buraco da fechadura? Se nos exigissem<br />

como preço disso fazer qualquer<br />

sacrificio depois, nós faríamos. Morrer<br />

depois, não nos importaria! Ter visto<br />

essa cena e morrer... para que viver<br />

mais? E, de fato, me pergunto: haveria<br />

ânimo para viver, depois de ter visto<br />

isso? De que adiantaria, por exemplo,<br />

depois disso ver a beleza do mar? Eu<br />

gosto tanto do mar, mas depois de ter<br />

visto Maria, o que é ver o mar?...<br />

Eis o Coração que amou<br />

tanto os homens!<br />

Voltando àquele afresco da igreja<br />

do Coração de Jesus. Está Ele aparecendo<br />

a Santa Margarida Maria. O lugar<br />

da aparição está todo iluminado.<br />

Ele fala a ela com uma expressão de<br />

muita bondade, muito comprazimento,<br />

muita misericórdia. E ela está muito<br />

enlevada, naturalmente. A cena é<br />

ainda completada com as palavras tocantes<br />

de Jesus. Ele aponta o seu próprio<br />

Coração e lhe diz: “Eis aqui o Coração<br />

que tanto amou os homens e foi<br />

por eles tão pouco amado!”<br />

Os senhores compreendem que é<br />

de cortar o coração! Que um tal Coração<br />

tenha amado tanto e tenha sido<br />

tão pouco amado, não se sabe o que dizer!<br />

Evidentemente, nós fomos amados<br />

por Ele muito mais do que nós O<br />

amamos, porque Ele é tão maior do<br />

que nós, que um ato de amor d’Ele<br />

deixa os nossos pobres amores muito<br />

atrás... Entretanto, o problema é que<br />

nós não O amamos até onde podemos,<br />

e era o que nós deveríamos fazer.<br />

Ele diz essas palavras com misericórdia<br />

e bondade. Mas eu gostaria de<br />

perceber ali todos os outros estados<br />

de espírito; gostaria de perceber essa<br />

correlação e de, por assim dizer, pela<br />

admiração, pela adoração — que é a<br />

palavra adequada quando se trata<br />

d’Ele — pela adesão, de algum modo<br />

tentar viver isso em mim. Enternecer-me<br />

como Ele, adorar como Ele,<br />

resistir como Ele, sofrer como Ele!<br />

Por que não?! Isso todos nós gostaríamos<br />

de fazer.<br />

Uma coleção fabulosa<br />

Se nós pudéssemos fazer uma coleção<br />

dos timbres de voz de Jesus ensinando<br />

como Mestre!... Ninguém foi<br />

mestre como Ele, que é o Divino Mestre!<br />

Explicando com clareza, com sabedoria,<br />

com profundidade, horizontes<br />

extraordinários, mas com uma simplicidade<br />

de desconcertar. Seu ensino<br />

é tão simples e, ao mesmo tempo,<br />

tão profundo! Santo Agostinho dizia<br />

que o ensinamento d’Ele era como<br />

um rio no qual um elefante se afogaria<br />

e um cordeiro passaria sem molhar<br />

senão os pés.<br />

Como nós gostaríamos também de,<br />

por exemplo, colecionar os seus sucessivos<br />

olhares! Para não falar senão<br />

20


E por isso é belo pensar como a mente<br />

e o Coração d’Ele, numa união, viveram<br />

todos esses acontecimentos da<br />

sua vida terrena. Até ao fim do mundo<br />

haverá gente que adorará esses vários<br />

aspectos de Jesus.<br />

Oração a fazer ao Sagrado<br />

Coração de Jesus<br />

em dois : o olhar para São Pedro, que o<br />

converteu e o fez chorar a vida inteira,<br />

e um olhar para Nossa Senhora. Escolham<br />

o momento. Talvez o momento<br />

do último olhar nesta vida. Com certeza,<br />

antes de morrer, Eles trocaram<br />

um olhar em que transpareciam o carinho<br />

e a adoração da parte d’Ela, e<br />

o amor indizível, o apreço extraordinário<br />

e o carinho da parte d’Ele, ao<br />

se separarem.<br />

Afresco no teto da igreja<br />

do Sagrado Coração<br />

de Jesus, em São Paulo<br />

Como seria a história de todos os<br />

seus olhares? E como seria o olhar<br />

d’Ele expulsando os vendilhões do<br />

Templo? Para Pilatos, desprezando<br />

toda a covardia do Procurador Romano?<br />

E o olhar de repreensão aguda e<br />

severa para Anás e Caifás?<br />

Tudo isso era um reflexo do seu Coração.<br />

Esse Coração pulsou, ora com<br />

mais, ora com menos intensidade, ao<br />

longo de todos esses acontecimentos.<br />

Que oração fazer a esse Divino Coração?<br />

Nós podemos repetir, olhando<br />

para Nosso Senhor crucificado, com<br />

seu Coração chagado pela lança do<br />

centurião, a jaculatória que está na<br />

Ladainha do Sagrado Coração de Jesus<br />

e que me encanta:<br />

“Cor Jesu lancea perforatum, miserere<br />

nobis. — Coração de Jesus perfurado<br />

por uma lança, tende compaixão<br />

de nós. Vós que levastes a pena de<br />

mim a ponto de quererdes que, depois<br />

de morto, vosso Coração ainda recebesse<br />

essa ferida, e que o resto de água<br />

misturado com sangue saísse de vosso<br />

lado por meu amor, tende pena de<br />

mim!”<br />

E rezar também: “Anima Christi,<br />

sanctifica me. — Alma de Cristo, santificai-me”.<br />

Nada há de mais santo do<br />

que a Alma de Cristo... Que a Alma<br />

de Cristo, por assim dizer, toque em<br />

mim e me torne um Santo! Eu não<br />

quero outra coisa.<br />

“Corpus Christi, salva me. — Corpo<br />

de Cristo, salvai-me. Sangue de Cristo<br />

inebriai-me. Água do lado de Cristo,<br />

lavai-me... e lavai-me mais ainda!<br />

Paixão de Cristo, dai-me forças. Olhai<br />

para minha miséria, minha moleza e<br />

minhas insuficiências. Dai-me força<br />

na luta contra os vossos inimigos. Ó<br />

Bom Jesus, ouvi-me, pelos rogos de<br />

Maria. Escondei-me nas vossas feridas.<br />

Cobri-me, com vossas feridas, da<br />

justa cólera do Padre Eterno. Na hora<br />

de minha morte, chamai-me e mandai-me<br />

ir para junto de Vós, para que<br />

Vos louve com os vossos Santos, com<br />

a Santa das Santas, por todos os séculos<br />

dos séculos. Amém.” ❖<br />

21


DR. PLINIO, ARAUTO DA EUCARISTIA<br />

A presença de Cristo<br />

entre os homens<br />

Na sua vida terrena e na Eucaristia<br />

"A Última Ceia", Basílica da<br />

Estrela - Lisboa, Portugal


E<br />

m palestra feita numa Quinta-Feira Santa, dia da instituição<br />

do Santíssimo Sacramento do Altar, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

salienta nosso dever de agradecimento a Jesus e a Maria<br />

por esse dom de valor infinito.<br />

Hoje é o dia da instituição da Santíssima Eucaristia.<br />

Os senhores devem tomar em consideração<br />

a propósito da Santa Ceia, o seguinte<br />

pensamento que me ocorreu certa vez.<br />

Uma pessoa que tivesse Fé e soubesse que Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo era Deus, assistisse à sua Crucifixão e estivesse<br />

informada de que depois viriam a Resurreição e a<br />

Ascensão, essa pessoa poderia se perguntar: “Depois da<br />

Ascensão, nunca mais virá Ele à Terra? Então, até o fim<br />

do mundo Ele estará ausente? Seria isto arquitetônico? Seria<br />

razoável, tendo Ele feito pela humanidade tudo quanto<br />

fez?”<br />

Jesus Cristo imolou sua vida de um modo dolorosíssimo<br />

e resgatou todo o gênero humano. Ele quis condescender<br />

em contrair com os homens que Ele salvou essa relação<br />

tão especial, de ser Ele a cabeça do Corpo Místico,<br />

que é a Igreja. E<br />

quis, pela graça, estar<br />

continuamente<br />

com todos os homens<br />

até o fim do<br />

mundo, de maneira<br />

a, por ela, vir a<br />

ser a alma de nossa<br />

própria alma, o<br />

princípio motor de<br />

nossa vida sobrenatural.<br />

Poderia, então, haver deste lado tanta união com<br />

Ele e, uma vez Ele morto, uma tão completa, tão prolongada,<br />

tão irremediável separação? Seria possível que Jesus<br />

subisse aos Céus e cessasse assim a presença real<br />

d’Ele na Terra?<br />

Tudo clamava pela instituição da<br />

Eucaristia<br />

Não quero dizer que a Redenção e o sacrifício da Cruz<br />

impusessem a Deus, em rigor de lógica, a instituição da<br />

Sagrada Eucaristia. Mas pode-se dizer que tudo clamava,<br />

Mesmo sabendo da Ascensão,<br />

eu começaria a procurar<br />

Jesus Cristo pela Terra, pois Ele<br />

não poderia ter deixado de conviver<br />

com os homens<br />

tudo bradava, tudo suplicava por que Nosso Senhor não se<br />

separasse assim dos homens.<br />

E uma pessoa com senso arquitetônico deveria entrever<br />

que Nosso Senhor arranjaria um meio de estar sempre<br />

presente, junto a cada um dos homens por Ele remidos. De<br />

forma tal que, depois da Ascensão, Ele estivesse sempre<br />

no Céu, no trono de glória que Lhe é devido, mas ao<br />

mesmo tempo acompanhasse passo a passo a via dolorosa<br />

de cada homem aqui na Terra, até o momento extremo em<br />

que cada um dissesse, por sua vez: “Consummatum est”<br />

(Jo 19,30).<br />

Como se faria essa maravilha?<br />

Essa hipotética pessoa não poderia adivinhá-la, mas deveria<br />

ficar sumamente suspeitosa de que, de algum modo,<br />

ela se realizaria. De tal maneira está nas mais altas conveniências<br />

da qualidade de Redentor de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo — o<br />

qual é nosso Protetor,<br />

nosso Médico,<br />

nosso divino Amigo<br />

— que seria próprio<br />

d’Ele fazer por<br />

nós esse prodígio.<br />

Eu creio que se<br />

eu assistisse à Crucifixão<br />

e soubesse<br />

da Ascensão, ainda<br />

que não soubesse da Eucaristia, eu começaria a procurar<br />

Jesus Cristo pela Terra, porque não conseguiria me convencer<br />

de que Ele tivesse deixado de conviver com os homens.<br />

Presente em todos os lugares, em todos os<br />

momentos<br />

Esse convívio verdadeiramente maravilhoso de Jesus<br />

Cristo com os homes se faz, exatamente, por meio da Eucaristia.<br />

23


DR. PLINIO, ARAUTO DA EUCARISTIA<br />

Em todos os lugares da Terra, em todos os momentos,<br />

Ele está realmente presente, nas catedrais opulentas e<br />

nas igrejinhas pobres. Quantas vezes, viajando em estradas<br />

de rodagem, encontramos umas capelinhas minúsculas,<br />

pobres, que dão para acolher apenas umas vinte ou<br />

trinta pessoas. Passamos por uma delas e comovemo-nos,<br />

pensando que nela Nosso Senhor Jesus Cristo esteve, está<br />

ou estará realmente presente — com toda a glória do<br />

Tabor, com toda a sublimidade do Gólgota, com todo o esplendor<br />

da Divindade — de tal maneira Ele multiplicou<br />

pela Terra a sua presença adorável!<br />

Olhamos para as pessoas que encontramos numa igreja,<br />

e pensamos: “Nosso Senhor Jesus Cristo está presente<br />

neste homem que comunga. Naquele outro, estará ainda<br />

nesta semana, talvez hoje mesmo, talvez amanhã. Estará<br />

"O Triunfo da<br />

Eucaristia" — pintura<br />

no altar da Igreja de<br />

Santa Madalena,<br />

Granada (Espanha)<br />

Aquele que é a própria pureza<br />

e a própia perfeição se<br />

submete às disposições da<br />

criatura humana;<br />

o Infinito se sujeita ao finito<br />

presente tantas e tantas vezes! Eis um homem que vai ser<br />

transformado, embora por algum tempo, num sacrário<br />

vivo. Muito mais do que num sacrário, porque o tabernáculo<br />

contém as espécies eucarísticas, mas não comunga.”<br />

Aí nós podemos medir bem a prodigiosa obra de misericórdia<br />

realizada por Nosso Senhor, com a instituição<br />

da sagrada Eucaristia. Tanto quanto a presença d’Ele tem<br />

um valor infinito, tanto assim também tem valor infinito<br />

o fato de Ele estar realmente presente sob as sagradas espécies<br />

por toda a Terra, e em todos os homens que queiram<br />

condescender em O receber.<br />

É muito bom, também, imaginarmos as horas e horas<br />

e horas que Ele passa abandonado nos sacrários, adorado<br />

apenas por Nossa Senhora, pelos Anjos e Santos do Céu.<br />

Pensar nos homens ausentes e distantes, e Ele à espera<br />

de que um deles queira vir recebê-Lo. De tal maneira o<br />

Infinito se sujeita ao que é finito, Aquele que é a própria<br />

pureza e a própria perfeição, se sujeita às boas disposições<br />

e, mais ainda, às vezes às más disposições daqueles que<br />

bem mal O querem receber.<br />

Enlevo e gratidão<br />

Por pouco que se pense nisto tudo, nossa alma não pode<br />

deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo, de<br />

gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Última<br />

24


Ceia. Só uma inteligência divina poderia excogitar a sagrada<br />

Eucaristia, poderia imaginar esse meio de estar presente<br />

por toda parte e de entrar em todos os homens. E só<br />

mesmo um Deus podia realizá-lo!<br />

Por mais que essas verdades sejam sabidas, é imperioso<br />

que nós detenhamos sobre elas nossa atenção e, por intermédio<br />

de Nossa Senhora, demos graças enormes a Deus,<br />

pela instituição da sagrada Eucaristia.<br />

Simplesmente agradecer “por intermédio” de Nossa Senhora?<br />

Se é verdade que todo dom vindo do Céu para os homens<br />

foi pedido por Ela — porque sem seu pedido o dom<br />

não teria sido dado — é verdade que Nossa Senhora pediu<br />

a instituição da sagrada Eucaristia, e foi pelos rogos d’Ela<br />

que Nosso Senhor Jesus Cristo a instituiu. Portanto, não<br />

devemos utilizá-La apenas como intermediária desse agradecimento,<br />

mas devemos agradecer também “a Ela” a sagrada<br />

Eucaristia.<br />

Devemos agradecer a Jesus, que condescendeu em instituí-la,<br />

e a Maria que, movida pela graça, pediu a Deus<br />

esse favor transcendentalíssimo, e o obteve para nós.<br />

Só uma inteligência divina, a<br />

rogos de Maria, poderia<br />

excogitar a Sagrada Eucaristia<br />

e torná-la realidade<br />

É este pensamento que não pode deixar de estar presente<br />

nos nossos espíritos nesta Quinta-Feira Santa.<br />

A maravilha da Missa<br />

Há um pensamento trascendental, que também devemos<br />

ter em vista hoje, e que diz respeito ao santo Sacrificio<br />

da Missa. Os senhores sabem bem que a transubstanciação<br />

se opera no próprio ato em que Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo renova a sua Paixão. A essência da Missa, que<br />

é a renovação da Paixão e Morte de Jesus Cristo, está na<br />

transubstanciação, que é o prodígio pelo qual o pão e o vinho<br />

se fazem Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

pelas palavras sacramentais pronunciadas pelo sacerdote.<br />

A Missa, que é ao mesmo tempo oferecimento e imolação,<br />

é também o ato determinante da presença real de Jesus<br />

sob as espécies que depois se conservam nos sacrários.<br />

Então, aquele homem que estivesse presente no<br />

Calvário, depois do “Consummatum est”, depois que as<br />

santas mulheres receberam o corpo descido da Cruz, de-<br />

25


DR. PLINIO, ARAUTO DA EUCARISTIA<br />

pois que Nossa Senhora chorou sobre Ele e foi embalsamado,<br />

depois que Ele foi levado até o sepulcro, depois que<br />

a Cruz ficou sozinha no alto do Gólgota e todo mundo foi<br />

embora — aquele homem ali solitário, com o espírito cheio<br />

de Fé, compreenderia ser aquela Cruz o símbolo de um ato<br />

que tinha que se renovar,<br />

de um ato<br />

que, pela mesma lógica,<br />

convinha enormemente<br />

que se<br />

multiplicasse.<br />

Esse ato, de fato,<br />

se renovou de um<br />

modo prodigioso por toda a Terra, e continuará se renovando<br />

até o fim do mundo, na Missa.<br />

Os teólogos dizem que o Sacrifício da Missa tem um<br />

valor tão inapreciável e infinito, ao pé da letra, que se em<br />

um determinado dia ela deixasse de ser celebrada, a justiça<br />

de Deus cairia sobre o mundo, dando-lhe fim.<br />

Se um dia o Sacrifício da Missa<br />

deixasse de ser celebrado, a justiça<br />

divina acabaria com o mundo<br />

Houve um pintor — não me lembro qual — que pintou<br />

um quadro muito bonito, representando a última<br />

Missa sobre a Terra. Mostra ele, no meio do caos e da<br />

desordem, um padre que celebra a Missa, oferecendo a<br />

Deus o Sacrifício do Altar. Nesse momento, estão todos<br />

os Anjos prontos<br />

para cair sobre<br />

a Terra para executar<br />

a justiça de<br />

Deus e desencadear<br />

o fim do mundo.<br />

Mas eles todos<br />

estão parados, ainda,<br />

à espera de que a última Missa tenha sido celebrada.<br />

Porque tal é a reverência de Deus Padre para<br />

com o sacrifício de seu próprio Filho, a Ele oferecido<br />

na Missa, que nem o desígnio de acabar com o mundo<br />

O faria precipitar sua mão, antes desse sacrifício ser<br />

concluído.<br />

Na Quinta-feira Feira, além da Eucaristia, Nosso Senhor instituiu também o sacerdócio<br />

(A comunhão dos Apóstolos, Catedral de Vicenza, Itália)<br />

26


Sacerdócio e bondade de Deus<br />

Nós devemos considerar ainda que a Quinta-Feira Santa<br />

foi o dia da instituição do sacerdócio. O poder de consagrar<br />

foi conferido aos apóstolos nesta ocasião. Houve<br />

nesse dia, portanto, três maravilhas, conexas entre si: o Sacrifício,<br />

o Sacramento e o Sacerdócio, às quais se deve juntar<br />

o insigne ato do lava-pés.<br />

Entretanto, o dia da instituição da Eucaristia, que deveria<br />

ser um dia de alegria, um dia de júbilo, é um dia de júbilo<br />

misturado com tristeza. Tristeza por causa da Paixão<br />

que se aproxima. Tristeza por causa do ódio satânico que<br />

fervia em torno mesmo do Cenáculo, onde Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo estava por essa forma consumando a sua obra.<br />

Tristeza por causa da tibieza dos apóstolos, da fraqueza<br />

daqueles que eram, entretanto, os primeiros e os mais imediatos<br />

beneficiários de todas essas maravilhas. Tristeza por<br />

causa do filho da perdição, que estava sentado entre os a-<br />

póstolos e ia executar o crime nefando, o pior crime da<br />

História, o de vender por trinta dinheiros Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

E Ele, sendo Deus, tendo conhecimento de todas as coisas<br />

que iam acontecer, entretanto não trepidou em acumular<br />

tantas maravilhas sobre as pessoas desses pobres miseráveis<br />

que daí a pouco iam fazer tudo quanto fizeram,<br />

e do traidor por excelência, que fez tudo quanto fez.<br />

Os senhores estão vendo o que é a vocação. Os senhores<br />

estão vendo o que é a misericórdia de Deus, a qual nada<br />

consegue abalar ou demover. Jesus Cristo tinha intuito<br />

de construir o seu Reino sobre a Terra, tinha o intuito de<br />

fazer daqueles apóstolos os pilares desse Reino. De fato,<br />

Ele cumulou de dons esses apóstolos. Eles foram infiéis,<br />

Quantas razões para batermos<br />

no peito, para considerarmos os<br />

momentos em que estivemos<br />

abaixo de nossa vocação!<br />

mas esses dons não se perderam. Os apóstolos acabaram<br />

sendo fiéis e as intenções de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

acabaram se realizando.<br />

Graça a pedir na Quinta-Feira Santa<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (assinalado por um círculo) acompanha<br />

o Santíssimo Sacramento,<br />

durante procissão num Congresso Eucarístico<br />

Aqui nós temos um argumento para nos estimularmos<br />

no meio de nossas incontáveis fraquezas.<br />

Quantas razões para nós batermos no peito! Quantas<br />

razões para considerarmos as nossas confissões apressadas,<br />

as nossas comunhões mecânicas e sem piedade verdadeira!<br />

Quantas razões para pensar nas mil ocasiões em<br />

que estivemos abaixo de nossa vocação!<br />

Entretanto, Nossa Senhora continua a nos proteger,<br />

continua a nos ajudar, continua a nos conceder graças de<br />

toda ordem. Podemos esperar que Ela tenha a intenção<br />

misericordiosa de nos conservar como seus apóstolos para<br />

todo o sempre, para a criação do Reino de Maria, apesar de<br />

todas as nossas insuficiências, de nossas carências, de nossas<br />

infidelidades.<br />

E assim devemos nos inclinar a seus pés e pedir que<br />

Ela nos trate como tratou os apóstolos e obtenha para nós<br />

um trato análogo da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Quer dizer, pedir-Lhe que — fechando os olhos às nossas<br />

fraquezas e misérias passadas e presentes, e até mesmo<br />

àquelas que de futuro nós possamos ter — Ela queira não<br />

romper esse pacto de misericórdia que Ela estabeleceu<br />

conosco. Que Ela queira manter esse pacto e fazer chegar<br />

logo o dia mil vezes feliz em que nos confirme na fidelidade.<br />

E em que nós possamos, afinal, ser para Ela razão de<br />

uma alegria estável, permanente, durável, sólida e séria,<br />

por nossa grande fidelidade.<br />

Esta é a graça que na Quinta-feira Santa devemos especialmente<br />

pedir.<br />

❖<br />

27


DONA LUCILIA<br />

“Casa de Dona Lucilia<br />

Corrêa de Oliveira”<br />

Em abril de 1952, mês em que Dª Lucilia completava<br />

76 anos, ela, seu esposo e seu filho se instalaram<br />

no espaçoso, aprazível e acolhedor apartamento<br />

recém-comprado por este último, no 1º andar<br />

da Rua Alagoas, 350, no bairro paulistano de Higienópolis.<br />

A satisfação pelo novo lar, vemo-la expressa nas palavras<br />

que, algum tempo depois, escreveria ela a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />

Com teu pai, estamos os dois agasalhadinhos na nossa<br />

“casa gostosa” que o filho querido preparou para consolo<br />

de nossa velhice.<br />

Quarto de<br />

Dona Lucilia no<br />

apartamento<br />

da Rua Alagoas<br />

28


Cenário ideal do derradeiro período<br />

de vida<br />

A residência da Rua Alagoas como que abria nova fase<br />

na vida dela, correspondente a seus últimos dezesseis<br />

anos de existência.<br />

As cartas de Dª Lucilia que temos contemplado são<br />

portadoras das suaves brisas de afeto doméstico e familiar<br />

que, ao longo de sua existência, não fizeram senão requintar-se<br />

e aprimorar-se. Tão preciosos documentos constituem<br />

uma das melhores manifestações da silenciosa e<br />

contínua elevação de suas virtudes.<br />

Como nas cartas que escreveu, deixaria Dª Lucilia um<br />

testemunho imponderável de sua presença nesses aposentos<br />

e salas, onde iria transcorrer o derradeiro período de<br />

sua vida. Transformar-se-ia assim o apartamento na perfeita<br />

moldura daquele alcandorado convívio, que ali atingiria<br />

seu ápice, em especial – é óbvio – no que diz respeito<br />

ao relacionamento com o “filho querido de seu coração”.<br />

Nesse local cada objeto teria uma história a contar, evocaria<br />

um passado próximo ou longínquo, seria portador da<br />

recordação de uma alegria ou de uma tristeza. Em tudo isso<br />

haveria de meditar Dª Lucilia em suas extensas horas<br />

de reflexão, nas quais analisaria, não raras vezes, os acontecimentos<br />

do passado e do presente, tirando conseqüências<br />

e fazendo deles um juízo, antes de partir para a<br />

eternidade.<br />

Essa seria, por excelência, a casa de Dª Lucilia a qual ela<br />

marcaria de forma indelével. Como uma flor que, mesmo<br />

depois de retirada do vaso, deixasse a atmosfera impregnada<br />

do suave aroma generosamente exalado por suas<br />

pétalas, ainda hoje, tantos anos após sua morte, ao transpormos<br />

a soleira da porta temos a impressão viva de estarmos<br />

entrando em sua residência.<br />

Abandonemos, pois, as turbulências deste século, atravessemos<br />

os umbrais do 1º andar da Rua Alagoas, e façamos<br />

uma visita “em espírito” à nova casa de Dª Lucilia,<br />

deixando-nos envolver pela atmosfera de serenidade e<br />

distinção que marca aquelas abençoadas paredes, antes<br />

de entrarmos no relato de seus últimos anos de vida.<br />

Acompanhando um cicerone da<br />

natureza<br />

Outro aspecto do quarto de Dona Lucilia<br />

Seguindo o peregrinar dos raios solares pelo apartamento<br />

de Dª Lucilia, logo ao amanhecer encontrá-losemos<br />

esgueirando-se entre as discretas penumbras do<br />

quarto dela. Dois oratórios — o do Sagrado Coração de<br />

Jesus e o da Imaculada Conceição — a presidir o ambiente,<br />

são como os dois extremos de um arco-íris imaginário,<br />

que sobre sua cama reluz. Daí, ora contemplava ela, manhã<br />

adentro, os Sagrados Corações de Jesus e Maria através<br />

das imagens de sua devoção, ora tecia elevadas considerações<br />

sobre os aspectos evocativos de alguns objetos:<br />

um pequeno relógio de alabastro, bronze e esmalte, presente<br />

de <strong>Dr</strong>. João Paulo; uma elegante jarra e um conjunto<br />

de toilette, de prata; ou um gracioso bibelot de porcelana<br />

que representa uma raposa, além de pequenos quadros<br />

com fotografias de familiares.<br />

Saindo do quarto de Dª Lucilia, a primeira porta no corredor,<br />

à esquerda, nos conduz a um living, reservado por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para seus pais conviverem na recordação do passado<br />

e na esperança da eternidade. A seguinte dá acesso<br />

a outro aposento: o quarto de dormir do invicto batalhador.<br />

Aí, diante de uma pequena imagem do Imaculado Coração<br />

de Maria, Dª Lucilia rezava durante o dia, e mais especialmente<br />

nas longas ausências de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, implorando<br />

a Maria Santíssima que o acompanhasse.<br />

Atentos e enlevados, prosseguimos o percurso e, em<br />

certo momento, nos detemos ao ouvirmos as melodiosas e<br />

suaves badaladas de um relógio, que bem simbolizam<br />

aquele aprazível ambiente. Atraídos, entramos num escritório<br />

de acolhedora atmosfera, banhada por discreta luz.<br />

A digna e sóbria cadeira de balanço faz recordar as incontáveis<br />

horas nas quais Dª Lucilia, tecendo crochet ou<br />

entregando-se às suas orações, marcava com sua presença<br />

29


DONA LUCILIA<br />

esse local. A seu lado costumava trabalhar, num sofá de<br />

couro vermelho, seu “filhão”.<br />

Era nesse escritório que Dª Lucilia, sentada à escrivaninha<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, fazia as contas de sua administração<br />

doméstica, as pequenas listas de compras do dia, ou anotava<br />

as providências e ordens que daria às empregadas.<br />

Quando queria reservar alguma quantia para uma finalidade<br />

futura, apontava numa pequena folha de papel o destino<br />

do dinheiro, e o enrolava cuidadosamente; guardavao<br />

depois numa gaveta onde se iam juntando, em perfeita<br />

ordem, os vários rolinhos.<br />

Recolhimento, distinção e harmonia<br />

À saída do escritório, podemos contemplar, no início da<br />

tarde, o sol que, caudaloso, penetra na sala mais nobre do<br />

apartamento. Aí, uma bela imagem do Sagrado Coração<br />

de Jesus, de alabastro branco, domina o elevado ambiente.<br />

Do azul profundo do veludo do sofá e das poltronas, e<br />

do azul variado de um autêntico e imaginativo tapete<br />

persa, tirou seu nome esse solene e afável local: “Salão<br />

Azul”.<br />

Elegante e singela, a escrivaninha de mogno que Dª Lucilia<br />

adquirira em Paris nos traz à memória suas eloqüentes<br />

cartas. Sobre esse móvel, dois exóticos negrinhos de<br />

porcelana, lindamente trajados segundo o gosto veneziano<br />

do século XVIII, seguram cada qual uma cúpula de<br />

abat-jour, proporcionando agradável e acolhedora iluminação.<br />

Dos quadros de antepassados, nenhum caberia melhor,<br />

no ambiente de seriedade criado pela imagem do Sagrado<br />

Coração de Jesus, do que o da avó paterna de Dª<br />

Lucilia, que tão jovem deixou esta vida.<br />

No outro lado do salão, encimada por um grande espelho,<br />

uma console dourada com tampo de mármore creme.<br />

Sobre este um belo vaso cor-de-rosa, que fazia os encantos<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> já em sua meninice.<br />

Outros objetos, como uma gravura da duquesa de Nemours,<br />

mãe do Conde d’Eu, o gracioso bibelot de uma chinezinha<br />

e um dos lustres de bronze resgatados por Dª Lucilia<br />

ao voltar da Europa, ressaltam a distinção do lugar.<br />

Ao lado do “Salão Azul”, quase como prolongamento<br />

dele, mas formando outro ambiente, fica a “Saleta Rosa”.<br />

Os mesmos raios de luz que acentuavam a nobreza e gravidade<br />

do “Salão Azul”, parecem agora transformar-se em<br />

sorriso e intimidade, quando incidem sobre o cor-de-rosa<br />

do tapete ou do damasco do sofá. A nota de cerimônia,<br />

nunca alheia à família, é dada especialmente pelo quadro<br />

da grande matriarca, Dª Gabriela, como também pelo evocativo<br />

vaso que fizera parte do mobiliário do Palácio Imperial.<br />

Nosso olhar se detém sobre uma peanha onde, dentro<br />

de uma redoma de cristal, um pequeno boneco representa<br />

o <strong>Dr</strong>. Gabriel José Rodrigues dos Santos. Trajado<br />

com a farda de deputado geral do Império, traz à memória<br />

um dos mais ilustres antepassados de Dª Lucilia.<br />

Com o entardecer, os últimos raios de sol repousam sobre<br />

a prataria na sala de jantar, após o que, lentamente cedem<br />

lugar às penumbras da noite. Se algum convidado de<br />

cerimônia é esperado, a gala reluz nos cristais, pratas e porcelanas.<br />

Por fim, ao transpormos a porta de saída, levamos conosco<br />

a lembrança da tranqüila, digna e elevada atmosfera<br />

que deixamos, tão frontalmente oposta à agitação e vulgaridade<br />

da rua...<br />

Embora aquele não seja senão um apartamento, ficamos<br />

com a impressão de termos abandonado um nobre palácio.<br />

Ao mesmo tempo, somos tomados pela sensação de<br />

havermos contemplado mil coloridos cambiantes de vitrais<br />

imaginários; ou de termos ouvido inúmeras harmonias que<br />

o silêncio e o recolhimento da residência de Dª Lucilia fazem<br />

vibrar suavemente na alma, como ressonâncias da personalidade<br />

dela...<br />

Mas, reencontremo-la naqueles saudosos tempos.<br />

No ambiente ideal, a dona-de-casa<br />

perfeita<br />

A consonância de alma de Dª Lucilia com <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era<br />

tal que, tendo seu filho dirigido a mudança da Rua Vieira<br />

de Carvalho para o atual apartamento da Rua Alagoas, ela<br />

se sentiu atendida em suas preferências, ao ver a ordenação<br />

dos móveis e a disposição dos cômodos adequarem-se<br />

perfeitamente aos seus próprios pendores. Quanto à decoração,<br />

fê-la Dª Rosée, com o seu bem conhecido talento. E,<br />

é claro, a gosto de sua mãe.<br />

O governo do lar ficava a cargo de Dª Lucilia, a quem<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> considerava de fato a senhora da casa. Muitas<br />

vezes, conversando com ela, dizia-lhe afetuosamente que<br />

se não fossem suas obrigações de representatividade social,<br />

mandaria atender o telefone dizendo:<br />

“Casa de Dona Lucilia Corrêa de Oliveira”.<br />

Dª Lucilia, apesar de sua avançada idade, continuava a<br />

exercer de modo exímio as funções de dona-de-casa, orientando<br />

diretamente os trabalhos do dia-a-dia. Mantinha o<br />

apartamento numa ordem impecável — sem nada de rígido<br />

— na qual transpareciam reflexos de sua bela alma.<br />

Aos poucos, o peso dos anos passou a tornar cada vez<br />

mais penoso seu esforço, e ela foi deixando de lado o que já<br />

não conseguia abarcar. A oração conquistou, então, ainda<br />

maior espaço em sua vida.<br />

Entre seus primeiros cuidados figurava sempre o do<br />

menu de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Dª Lucilia tinha um modo muito peculiar, melhor<br />

diríamos, sapiencial, de tocar os pequenos afazeres domés-<br />

30


À esquerda, aspecto do “Salão Azul”; à direita, a sala de jantar<br />

ticos. Hoje em dia é corrente encontrarmos pessoas que se<br />

deixam absorver intensamente por suas ocupações. Como<br />

não desejam de modo algum ser interrompidas, reagem<br />

não raras vezes com acidez para afastar quem as perturbe.<br />

Dª Lucilia era diferente. Por mais que uma tarefa exigisse<br />

atenção, nunca se deixava tomar por ela a ponto de<br />

perder o fôlego e sobretudo a serenidade. Se alguém a interrompia,<br />

não perdia a calma. Conforme o caso, apenas<br />

dizia: “Agora não posso parar, espere um pouquinho...”,<br />

como quem convida o interlocutor a ficar uns instantes ali,<br />

perto dela. Era um modo especial de agir, com uma doçura<br />

difícil de ser descrita.<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra<br />

“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />

À esquerda e à direita, os “negrinhos” da escrivaninha (que aparece na foto central)


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Esplendores da<br />

piedade eucarística<br />

Procissão de Corpus Christi<br />

em Sevilha, século XIX<br />

32


Em sua divina sabedoria, a Igreja sempre soube<br />

fazer face de modo admirável aos ataques de<br />

seus adversários, mormente quando estes incidiram<br />

sobre valores fundamentais da piedade católica.<br />

Ela assim procedeu, por exemplo, no século XVI, diante<br />

da heresia que negava a presença real de Nosso Senhor<br />

no Santíssimo Sacramento.<br />

A condenação desse erro no campo doutrinário, foi<br />

complementada por um surto de entusiasmo e fervor na<br />

celebração do culto eucarístico. Surgiram as grandes cerimônias<br />

e procissões em louvor ao Santíssimo Sacramento<br />

no mundo inteiro.<br />

A data mais apropriada para tais manifestações de<br />

devoção era, sem dúvida, a festa de Corpus Christi, instituída<br />

na Idade Média. Ganhou ela, assim, um novo incentivo<br />

e um novo porte, revestindo-se de todas as pompas e riquezas<br />

que a Liturgia gerou especialmente para essa extraordinária<br />

forma de revanche aos ataques das heresias.<br />

Levar-se-ia triunfalmente pelas ruas o próprio Deus, presente<br />

na hóstia consagrada, como quem afirma: “Vamos<br />

proclamar desta forma nossa fé no Santíssimo Sacramento.<br />

Proclamamos tão ostensiva e magnificamente para sobrepujar<br />

a cacofonia do erro com as melodias, as fanfarras<br />

e a presença da população católica”.<br />

E como não conservar na lembrança as procissões das<br />

quais participamos no entusiasmo de nossa alma, quando<br />

o bulício das agitações cotidianas cedia lugar à paz e quietude<br />

de um feriado religioso, onde o silêncio da rua era interrompido<br />

apenas pelos cânticos e invocações de louvor<br />

ao Santíssimo Sacramento!<br />

As ruas artisticamente atapetadas de flores, formando<br />

desenhos de hóstias, cordeiros e outros símbolos eucarísticos,<br />

indicavam o trajeto da procissão. As calçadas apinhadas<br />

de gente enlevada e piedosa, que se ajoelhava à passagem<br />

do Divino Homenageado, conduzido pelo bispo ou<br />

sacerdote no seu ostensório de ouro cravejado de pedras<br />

preciosas, sob um dossel ou uma umbrela que lhe servia ao<br />

mesmo tempo de proteção e ornamento.<br />

A cena se repete nos mais variados recantos da Terra,<br />

desde pequenas cidades interioranas até a Praça de São<br />

Pedro, em Roma, onde o próprio Sumo Pontífice leva o<br />

adorável Corpo de Cristo à frente de uma imensa multidão<br />

de fiéis que o seguem pelas famosas colunatas de Bernini,<br />

sob o repicar festivo dos sinos.<br />

O mesmo se vê em ruas seculares de cidades européias<br />

— como, por exemplo, Toledo e Sevilha, na Espanha —<br />

com requintes de solenidade e esplendor que só a piedade<br />

católica seria capaz de conceber para honrar dignamente a<br />

Sagrada Eucaristia.<br />

Assim era também nas ruas da Viena imperial, onde as<br />

procissões em louvor do Santíssimo alcançaram um ápice<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

de magnificência, na época em que o poder temporal se<br />

curvava diante do Rei dos reis e Senhor dos senhores.<br />

Abaixo, o leitor poderá beneficiar-se com a narração de<br />

uma dessas esplêndidas celebrações, realizada na bela Capital<br />

austríaca em 1912, por ocasião do Congresso Eucarístico<br />

de Viena. Dela participaram o Imperador Francisco<br />

José à frente dos grandes dignitários do Império, tropas<br />

militares com suas bandas e fanfarras, e centenas de milhares<br />

de fiéis.<br />

Às oito horas, a tropa já tinha tomado posição. O cortejo,<br />

composto exclusivamente de homens, saía do átrio da catedral<br />

de Santo Estevão, enquanto 150 mil mulheres e moças<br />

formavam-se em duas alas desde a catedral até a porta monumental<br />

que dava acesso ao palácio imperial.<br />

Primeiramente avançam as paróquias de Viena, em seguida<br />

os magnatas húngaros, os tiroleses em número de oito<br />

mil, os bósnios, os tchecos, os moravos, os rutenos e os romenos.<br />

Eis a seguir as delegações estrangeiras: os franceses, os<br />

espanhóis, os italianos, os ingleses, os alemães, etc.<br />

São onze horas e meia. O clero vai entrar em cena. Compõe-se<br />

de cinco mil sacerdotes e religiosos ordenados hierarquicamente:<br />

simples padres, párocos, monges de todas as<br />

Ordens, cônegos e, encerrando o bloco, duzentos bispos com<br />

capa, mitra e báculo.<br />

Fanfarras de trompetes anunciam o terceiro cortejo — do<br />

Santíssimo Sacramento — atrás do qual seguirá o do Imperador-Rei.<br />

Na primeira linha estão escudeiros vestidos de<br />

vermelho rutilante; em seguida, militares da corte, com “panache”<br />

branco, montados em cavalos cinzas; os dragões e<br />

os hussardos. Ainda um esquadrão de cavalaria e eis que<br />

surgem os cardeais.<br />

Fanfarras ressoam, sinos tocam por toda parte e — precedida<br />

por oficiais, camareiros e pelo grande marechal da<br />

Corte — penetra na Helden Platz (Praça dos Heróis), a carruagem<br />

da coroação de Maria Teresa, pintada por Rubens,<br />

A procissão do<br />

Santíssimo<br />

percorre as ruas<br />

da Viena<br />

imperial,<br />

acompanhada<br />

pelo soberano<br />

Francisco José<br />

(acima)<br />

34


atrelada por oito cavalos negros. A parte alta é quase toda de<br />

vidro e pode-se ver comodamente o legado papal, ajoelhado<br />

ante um altar no qual está o ostensório.<br />

A chuva cessa por um momento e o sol deixa entrever alguns<br />

pálidos raios. Muitos caem de joelhos, sem se preocuparem<br />

com a lama. Aí então, num silêncio dos mais comoventes,<br />

passa o Deus da Eucaristia. Como Nosso Senhor deve<br />

ter abençoado estes humildes que se inclinam ante sua passagem,<br />

e ouvido os ecos de sua comovida piedade!<br />

Depois da carruagem de Nosso Senhor, eis agora a do<br />

Imperador. Numa carruagem atrelada por oito cavalos brancos,<br />

trajando uniforme azul, Francisco José olha fixamente o<br />

Santíssimo Sacramento, que ele acompanha. A seu lado está<br />

o arquiduque herdeiro.<br />

O cortejo termina por uma soberba cavalgada da guarda<br />

montada austríaca, da guarda montada húngara e pelas carruagens<br />

dos arquiduques. Desenvolve-se conforme o itinerário<br />

prescrito, mas é impossível celebrar a Missa, e mesmo<br />

dar a Bênção, no lugar onde está montado o altar. Uma feliz<br />

idéia é enunciada pelo legado papal: ele se volta em direção à<br />

multidão perfilada e seu carro percorre de novo a imensa praça.<br />

Através da vidraça da carruagem aparece nitidamente o<br />

prelado elevando o ostensório e abençoando a multidão. Todos<br />

ficam consolados por esta bênção suprema.<br />

Precedendo ou seguindo o Santíssimo Sacramento, os bispos,<br />

os cardeais e o Imperador entram então na capela do palácio<br />

imperial, onde o cardeal legado celebra a santa Missa,<br />

à qual assistem piedosamente o Soberano e toda a Corte.<br />

É uma hora da tarde: a imensa multidão se dispersa.<br />

Estão felizes por terem honrado a Sagrada Eucaristia, apesar<br />

da hostilidade dos elementos da natureza.<br />

Uma dama austríaca dizia: “Nosso Senhor quer nos<br />

mostrar que é preciso fazer face às dificuldades para segui-<br />

Lo”.<br />

É um pensamento dos melhores. O Deus da Eucaristia<br />

quis permanecer o Deus escondido, mas, sem dúvida, quis receber<br />

estas homenagens dos grandes e dos humildes.<br />

* * *<br />

Na verdade, tais são as vinculações e as harmonias insondáveis<br />

estabelecidas por Deus na sua obra que isto é assim:<br />

o Santíssimo Sacramento — Jesus Cristo em corpo,<br />

sangue, alma e divindade, que se encontra no alto dos Céus<br />

cercado por legiões de anjos que O adoram ininterruptamente<br />

— desce para percorrer as ruas, para estar com os filhos<br />

dos homens e fazer sua alegria neste convívio com cada<br />

um de nós.<br />

Assim como na Comunhão em que O recebemos no<br />

íntimo de nosso coração, Ele ali está, paterno, manso,<br />

cheio de bondade, e repetindo de um modo ou de outro<br />

a sua frase imortal: “Aprendei de Mim que sou manso e<br />

humilde de coração, e encontrareis paz para as vossas almas...”<br />

❖<br />

Procissão e bênção com o Santíssimo pelos campos de Artois, interior da França<br />

35


Intercessora<br />

junto ao<br />

Divino Esposo<br />

C<br />

omo Esposa do Divino Espírito<br />

Santo, Maria possui um título<br />

especial para nossa devoção a Ela. Com<br />

efeito, tudo quanto diz respeito à Fé<br />

católica, à ortodoxia e à manutenção<br />

da fidelidade à Igreja deve ser considerado<br />

como fruto e obra da Terceira<br />

Pessoa da Santíssima Trindade em nós.<br />

Ora, enquanto Esposa do Espírito<br />

Santo, Nossa Senhora tem sobre Ele<br />

aquele poder que, no Antigo Testamento,<br />

tinha Ester sobre o rei Assuero.<br />

Assim como esta, por suas súplicas,<br />

tudo conseguiu do monarca em favor<br />

dos judeus, assim a Virgem Bendita<br />

pode nos alcançar de seu Divino Consorte<br />

um tal grau de união com Ele,<br />

uma tal abundância de graças das<br />

quais Ele é a fonte, que, sem a intercessão<br />

d’Ela, ser-nos-ia inteiramente<br />

impossível obter.

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