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Revista Dr Plinio 66

Setembro de 2003

Setembro de 2003

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O menino e o mar


“Nascimento<br />

da Virgem”,<br />

Espanha,<br />

séc. XV<br />

Se o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo já representava a aurora da salvação do gênero humano, o<br />

mesmo se pode afirmar, de certo modo, da natividade de Nossa Senhora. Com efeito, tudo quanto Jesus<br />

trouxe ao mundo, começou a nos chegar com o nascimento d’Aquela que seria sua Mãe Santíssima.<br />

Compreende-se, pois, todas as esperanças de salvação, de indulgência, de reconciliação, de redenção e<br />

de misericórdia que se abriram, afinal, para os homens, naquele bendito dia em que Maria surgiu nesta terra de<br />

exílio. Feliz e magnífico dia, marco inicial de uma existência insondavelmente perfeita, pura, fiel, e que seria a<br />

maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo daquela que devemos à Encarnação do Verbo.


Sumário<br />

Na capa, o<br />

menino <strong>Plinio</strong><br />

aos 10 anos<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

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02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

Preços da assinatura anual<br />

Setembro de 2003<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

4<br />

5<br />

6<br />

9<br />

12<br />

16<br />

23<br />

26<br />

32<br />

36<br />

EDITORIAL<br />

O Doce nome de Maria sempre em seus lábios<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Setembro de 1942:<br />

Um preito de homenagem a Pio XII<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Glorifiquemos a Cruz com ufania!<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Um povo à altura do Cruzeiro do Sul<br />

DONA LUCILIA<br />

“Onde vai meu coração, vai você dentro...”<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

O menino e o mar<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Nossa Senhora das dores<br />

e o amor à incomodidade<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Deus ama a oração importuna<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Espelhos da quintessência divina<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

O arqui-vitral<br />

3


Editorial<br />

O Doce nome de Maria sempre em seus lábios<br />

AIgreja venera na sua liturgia do dia 12 de<br />

setembro o Doce Nome de Maria. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

costumava lembrar com saudade e emoção<br />

as estrofes do hino que entoava com os Congregados<br />

Marianos, ao final dos Salmos do Nome de<br />

Maria:<br />

Si quaeris caelum, anima<br />

Mariae nomen invoca<br />

Mariam invocantibus<br />

Caelestis patet ianua.<br />

Se procuras o Céu, ó alma,<br />

invoca o nome de Maria;<br />

para os que invocam Maria,<br />

abre-se a porta do Céu.<br />

Na verdade, o doce nome da Rainha jamais abandonou<br />

seus lábios. “Jesus” e “Maria” foram as duas<br />

primeiras palavras que aprendeu de Da. Lucilia, antes<br />

mesmo de saber falar “Papai” e “Mamãe”.<br />

Maria.... Ele pronunciava esse nome incontáveis<br />

vezes por dia: nos mistérios do Rosário, nos já mencionados<br />

salmos que começam com as letras desse celestial<br />

Nome, no Lembrai-vos, nas jaculatórias... Quantas<br />

e quantas vezes o utilizava para ensinar a seus filhos<br />

espirituais a via de ouro que conduz ao Coração<br />

de Jesus, que é a devoção a Maria!<br />

Na conclusão de sua momentosa Encíclica sobre<br />

o Rosário, João Paulo II cita o belo trecho do Bemaventurado<br />

Bartolo Longo:<br />

“E a última palavra dos nossos lábios há-de ser o<br />

vosso nome suave, ó Rainha do Rosário de Pompéia,<br />

ó nossa Mãe querida, ó Refúgio dos pecadores, ó Soberana<br />

consoladora dos tristes. Sede bendita em todo<br />

o lado, hoje e sempre, na terra e no céu” (Rosarium Virginis<br />

Mariae, n. 43)<br />

Quatro dias antes de enaltecer o Nome de Maria,<br />

a Igreja celebra a Natividade da Santíssima Virgem.<br />

Que misericórdia para o mundo, seu nascimento!<br />

A esse respeito comentava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>: Nossa Senhora<br />

trazia consigo todas as riquezas naturais que dentro de<br />

uma mulher possam caber. Nosso Senhor deu a Ela, se-<br />

gundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima,<br />

preciosíssima, valiosíssima. E a esse título, a presença<br />

d’Ela entre os homens representava um tesouro<br />

verdadeiramente incalculável!<br />

A denúncia profética, publicada neste número, reproduz<br />

uma conferência de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> por ocasião de<br />

uma celebração da festa da Exaltação da Santa Cruz<br />

(14 de setembro). A Cruz, que marcou profundamente<br />

a vida de Nosso Senhor é o símbolo que distingue<br />

o cristão, é sua condecoração, seu prêmio e sua<br />

glória, e não algo do qual ele se envergonha ou do<br />

qual deva fugir...<br />

No dia seguinte à festa da Exaltação da Santa Cruz,<br />

o calendário celebra Nossa Senhora das Dores. Os<br />

comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre essa data concluem<br />

o itinerário litúrgico de setembro que nos propussemos<br />

nesta edição . A liturgia é o alimento dos fiéis, e<br />

nosso intuito é de fomentar, como de costume com<br />

textos plinianos, a atitude tão louvada pelos Papas, de<br />

viver as datas da Igreja como parte integrante de nossa<br />

vida.<br />

Continuamos neste número a série de narrações<br />

auto-biográficas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> relativas a sua infância<br />

e primeira juventude. No número de agosto, nos<br />

despedíramos dele numa praia de Santos, olhando o<br />

mar e pensando...<br />

Sentado no extremo da amurada de pedras que penetrava<br />

mar adentro, em meio ao murmúrio incessante<br />

das ondas que a investiam e eram rechaçadas, o menino<br />

<strong>Plinio</strong> contemplava e meditava sobre as belezas<br />

da Criação e de seu autor, contrapondo-as aos erros<br />

e horrores de sua época. Encantava-se com a Igreja...<br />

e esse amor à esposa de Cristo lhe infundia luzes e critério<br />

para julgar todas as coisas com sabedoria.<br />

Ela era a sua bússola no mar tempestuoso do século<br />

XX.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Setembro de 1942:<br />

Um preito de homenagem a Pio XII<br />

sobre o Congresso Eucarístico”, in-<br />

“Ainda<br />

titula-se o artigo publicado a 27 de setembro<br />

de 1942 no “Legionário”. Voltamos<br />

uma vez mais a esse Congresso Eucarístico<br />

onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve notável participação, conforme<br />

vimos em números anteriores, para transcrever este<br />

excerto dedicado ao Papa Pio XII, na ocasião<br />

em que, através das ondas da Radio Vaticana, dirigiu-se,<br />

em português, à multidão de brasileiros reunidos<br />

nesse Congresso.<br />

O Santo Padre ocupa, na piedade católica, uma<br />

posição tão central e tão relevante que, de modo<br />

algum, pode deixar de nos interessar altamente<br />

tudo quanto diga respeito à intensificação dos<br />

sentimentos que lhe devem tributar os fiéis. [...]<br />

[Assim sendo,] foi intensa a emoção quando a<br />

saudação “Louvado seja Jesus Cristo!” anunciou<br />

que o Santo Padre ia começar a falar.<br />

Infelizmente, as condições atmosféricas não<br />

permitiram uma irradiação clara. Por isto, se bem<br />

que o Santo Padre falasse em nosso idioma, para a<br />

grande maioria das pessoas tornou-se dificílimo<br />

entender o que dizia. Mas precisamente aí esteve<br />

uma das mais belas notas do Congresso. Não<br />

se ouvia a palavra do Papa, mas entendia-se nítida<br />

a voz paternal e amavelmente grave do Sumo<br />

Pontífice. Tanto bastou para que aquelas centenas<br />

de milhares de pessoas se conservassem em um<br />

silêncio verdadeiramente impressionante, para recolher<br />

no coração, afetuosamente, meticulosamente,<br />

uma a uma todas as vibrações daquela voz que<br />

vinha da Roma Eterna, e era um eco fiel da própria<br />

voz do Divino Mestre. Foram longos e deleitosos<br />

minutos de um recolhimento empolgante.<br />

O mais eloqüente dos oradores, o que melhor se<br />

fizesse ouvir e compreender pelas massas, não<br />

poderia lograr, nem silêncio maior, nem atenção<br />

tão grande. Na imensa praça do Congresso, todos<br />

rezavam, meditavam ou se recolhiam enquanto<br />

o Papa falava. E quando, finalmente, Sua Santidade<br />

anunciou a bênção apostólica, foi um espetáculo<br />

emocionante ver-se todo aquele povo, tendo<br />

à testa as autoridades eclesiásticas, civis e militares,<br />

ajoelhar-se instantaneamente, para receber<br />

com profundo respeito a bênção do Pontífice.<br />

Seria impossível uma mais eloqüente manifestação<br />

de Fé, Fé viva e profunda, no Primado de<br />

São Pedro e na Infalibilidade do Papa, do que a que<br />

deu o povo, nesta grande e Gloriosa solenidade.<br />

Pela segunda vez, o Santo Padre Pio XII, sabidamente<br />

um poliglota, dirigindo-se aos brasileiros,<br />

se serve de nosso idioma. Com isto, indica o Sumo<br />

Pontífice o agrado especial com que tem os<br />

seus filhos de língua portuguesa e, ao mesmo tempo,<br />

afirma de modo muitíssimo oportuno a universalidade<br />

da Igreja.<br />

Aspecto do IV Congresso Eucarístico Nacional, realizado no Vale do Anhangabaú, em São Paulo<br />

5


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Glorifiquemos a Cruz<br />

com ufania!


D<br />

r. <strong>Plinio</strong> nunca deixou de denunciar um catolicismo sentimental<br />

que se afasta da Cruz, pretendendo que os cristãos vivam<br />

uma vida de langor que não segue as vias do Divino Mestre. A<br />

festa da Exaltação da Santa Cruz, comemorada a 14 de setembro, deulhe<br />

certa feita o ensejo para uma dessas importantes admoestações.<br />

Acruz era um instrumento de suplício, usado na<br />

antiguidade, que representava uma ignomínia<br />

para toda pessoa que fosse crucificada. Era<br />

uma vergonha tanto para o sentenciado como para sua<br />

família.<br />

Os cidadãos romanos não eram sujeitos à crucifixão,<br />

por isso São Paulo, tendo direito às honras de cidadão romano,<br />

foi em seu martírio decapitado e não crucificado.<br />

causa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não há um só católico<br />

bom que não tenha sido humilhado por causa de sua<br />

fidelidade a Nosso Senhor. Mas isso é uma honra, é exatamente<br />

uma das bem-aventuranças: ser perseguido por<br />

amor a Jesus Cristo.<br />

Nós, católicos, sofremos essas humilhações e havemos<br />

de sofrê-las até o fim do mundo, porque a impiedade<br />

nunca cessará de ultrajar a Deus.<br />

A cruz representou o auge de todas<br />

humilhações sofridas por Nosso Senhor<br />

Nosso Senhor recebeu tremendas humilhações durante<br />

sua vida terrena. Essas correspondiam a um ódio<br />

crescente contra ele, e desfecharam na maior de todas as<br />

humilhações possíveis, que foi o sacrifício da Cruz.<br />

Durante a Paixão,<br />

a intenção de humilhar<br />

a Nosso Senhor<br />

ficou evidente, por<br />

exemplo, na coroação<br />

de espinhos, na túnica<br />

de irrisão com que<br />

O cobriram e na cana<br />

que lhe puseram na<br />

mão à guisa de cetro.<br />

As pessoas que O maltratavam revelavam o desejo de<br />

atormentá-Lo na sua Alma Santíssima, e não apenas no<br />

seu Corpo Puríssimo.<br />

Sendo por fim crucificado, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

sofreu uma humilhação tremenda, pois com esse tipo de<br />

morte proclamava-se que Ele era um bandido, um ladrão,<br />

do mesmo gênero que os dois outros facínoras com os<br />

quais Ele foi crucificado.<br />

E é neste sentido que a cruz não foi uma humilhação a<br />

mais, mas foi o auge de todas as outras humilhações que<br />

Ele sofreu durante a sua existência terrena.<br />

A cruz inaugurou também todas as humilhações que<br />

até o fim do mundo os católicos haveriam de sofrer por<br />

Símbolo de glória, para reivindicar a honra<br />

de Jesus Cristo<br />

Três manifestações dos tempos de<br />

fé: a Cruz colocada no alto das<br />

coroas; a cruz como sinal heráldico<br />

das famílias nobres; a Cruz como<br />

insígnia das condecorações<br />

Mas a honra de Deus, a honra de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo foi reivindicada pela Igreja. Os católicos adotaram<br />

a Cruz como um símbolo de glória, como o símbolo de<br />

quanto há de mais sagrado e santo, e assim tivemos as<br />

três manifestações características<br />

dos tempos<br />

de Fé: a Cruz colocada<br />

no alto das coroas;<br />

a Cruz como sinal<br />

heráldico dos mais<br />

nobres galardões das<br />

famílias da alta aristocracia<br />

e a Cruz colocada<br />

como insígnia<br />

das condecorações.<br />

Foi uma exaltação da Cruz o que se deu, para revidar<br />

aquela humilhação, e revidá-la com ufania cavalheiresca,<br />

com ufania sobrenatural.<br />

A honra consiste em receber a humilhação<br />

com ufania<br />

O aparecimento da Cruz a Constantino na Ponte Mílvia<br />

e a promessa: “Com este sinal vencerás!”, significava<br />

isto: a Cruz se levantava no céu e ia definitivamente se<br />

incorporar ao horizonte do mundo, humilhando por sua<br />

vez os ímpios e os demônios.<br />

7


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

E ao mesmo tempo, a Cruz passaria a ser o sinal da<br />

honra dos católicos.<br />

Nossa honra não consiste em não sermos humilhados,<br />

mas consiste em receber<br />

a humilhação<br />

com ufania, gabando-se<br />

da humilhação<br />

e, mais ainda, com espírito<br />

de desafio. Em<br />

face daqueles que<br />

nos humilham, nós revidamos como cavalheiros e proclamamos<br />

com ufania ainda maior a Cruz de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

A exaltação é a proclamação da glória da<br />

Cruz com ufania<br />

Exaltação é propriamente isto: é a proclamação da glória<br />

da Cruz, com tal ufania que aniquila as humilhações que o<br />

adversário procura mover contra Cristo. Daí vem a palavra<br />

exaltar. Exaltare, de ex (em direção a) e altus (alto), levar<br />

para o alto, ou seja, pôr no alto aquilo que estava humilhado,<br />

que estava rebaixado.<br />

A exaltação da<br />

cruz é a glorificação<br />

da Cruz de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

A causa de Deus<br />

precisa ser defendida<br />

com espírito de Cavalaria. Portanto, se alguém injuria a<br />

Cruz diante de nós, devemos redargüir com energia. Porém,<br />

não como quem defende a própria honra, porque honra<br />

pessoal é coisa muito insignificante, mas como quem<br />

defende a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O amor pela contínua exaltação da Cruz, com esta espécie<br />

de espírito de cavaleiro, que está lutando continuamente<br />

pela glória da Cruz, é a graça que devemos pedir<br />

na festa da Exaltação da Santa Cruz. !<br />

A causa de Deus precisa ser defendida<br />

com energia, como quem defende a<br />

honra de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

8


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Um povo à<br />

altura do<br />

Cruzeiro do Sul<br />

D<br />

iscursando<br />

numa comemoração<br />

cívica, em novembro<br />

de 1976, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

traçou, com arrebatadora<br />

eloqüência,<br />

as perspectivas<br />

históricas nas quais<br />

o Brasil modelaria<br />

sua verdadeira<br />

magnitude.<br />

Brasileiros de um espírito patriótico, alertado<br />

e atualizado! Brasileiros movidos pelo<br />

espírito cristão, indissociável de toda alma<br />

verdadeiramente brasileira!<br />

Brasileiros aqui se congregam para afirmar perante<br />

o país que é bom pensar nas grandezas do futuro,<br />

9


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

que é necessário trabalhar para que o Brasil vá adiante no<br />

caminho de potência emergente que vai trilhando neste<br />

momento. Mais do que sonhar com um futuro grandioso,<br />

é preciso trabalhar para realizar e antecipar esse futuro.<br />

Mas isso não basta. É preciso também lutar!<br />

Porque a vida não é só feita de esperanças, a vida não<br />

é só feita de anelos: ela é feita também de riscos, ela é<br />

feita de aleivosias, ela é feita de perigos.<br />

E ai do varão, ai do chefe de família, ai do chefe de empresa,<br />

ai do chefe civil, militar ou eclesiástico, que não tenha<br />

os olhos igualmente abertos para esse aspecto da realidade:<br />

o “inimicus homo” de que nos fala a Escritura, que<br />

ronda em torno de cada homem, em torno de cada setor<br />

da atividade social, em torno de cada nação do mundo contemporâneo,<br />

pronto para se atirar sobre ela, no momento<br />

em que encontre condições favoráveis para isso.<br />

Atinge verdadeira grandeza o povo<br />

que une a luta ao trabalho<br />

Nesta circunstância é bem certo que importa pensar<br />

também no perigo.<br />

Mas, não me parece que o pensar no perigo e nos prepararmos<br />

para ele, o congregarmos e o concitarmos os nossos<br />

concidadãos a lutar contra ele, seja em algo dissociado<br />

das nobres preocupações da faina diária e da construção<br />

de um Brasil sempre maior.<br />

Pelo contrário, professor de História que sou — habituado<br />

desde minha remota juventude a me debruçar sobre<br />

os fatos históricos à procura das Leis com que Deus<br />

pauta a existência, o porvir dos povos, e neles inscreve os<br />

sinais de sua Misericórdia e de sua Justiça —, sempre me<br />

chamou a atenção um fato que tem a sua projeção sobre<br />

a realidade natural, até no mundo animal, e até mesmo<br />

no vegetal.<br />

Esse fato que a História ensina é o seguinte:<br />

Não é verdade que atinge a grandeza, a grandeza efetiva,<br />

a grandeza durável, a grandeza plena, aquele povo<br />

que apenas trabalhou pela sua própria grandeza<br />

A grandeza é atingida, sim, pelos povos que trabalham,<br />

não há dúvida. A Providência não quer, nem abençoa, povos<br />

que não trabalham.<br />

O Brasil será grande,<br />

à altura de nosso povo,<br />

de nosso território, à<br />

altura do Sinal da Cruz<br />

que está esculpido nos<br />

nossos céus!<br />

As naus portuguesas com o signo<br />

da Cruz aportam em território brasileiro<br />

(Museu Paulista da USP - São Paulo)<br />

10


Mas a grandeza verdadeira se adquire quando, ademais,<br />

o homem — tomando conhecimento desta regra de<br />

que ele encontrará em seu caminho o adversário a agredi-lo<br />

na justiça de suas vias e na santidade de seus propósitos<br />

—, prepara-se para a luta, enfrenta a luta, confia na<br />

Providência e vence nessa luta!<br />

Os povos que só são trabalhadores não chegam à verdadeira<br />

grandeza. Os povos só lutadores não alcançam a<br />

verdadeira grandeza.<br />

Os povos que sabem aliar a luta ao trabalho, fazendo do<br />

trabalho uma luta e da luta um trabalho, entregando-se<br />

operosamente à luta e ardorosamente ao trabalho; os<br />

povos que sabem unir esses dois aspectos de sua atividade,<br />

esses povos, sob o signo da Cruz, tornam-se verdadeiramente<br />

grandes.<br />

As intempéries, as dificuldades, quanto maiores, tanto<br />

mais preparam uma nação para a sua grandeza, quando<br />

ela é grande ao enfrentá-las.<br />

Pensando na grandeza do Brasil<br />

E então eu penso no nosso Brasil...<br />

No nosso Brasil de proporções continentais, habitado<br />

por um povo que — é bem verdade — a imigração tornou<br />

heterogêneo, mas que vai se amalgamando numa superior<br />

unidade de espírito, na qual a inteligência, a sutileza,<br />

a capacidade de trabalho e o desejo de progredir se<br />

afirmam dia a dia mais.<br />

Eu penso nesse país e nesse povo, e penso comigo:<br />

quando o Brasil tomar para si esse dever de aliar luta e<br />

trabalho, qual será a sua grandeza ?<br />

Ninguém poderá dizê-lo.<br />

Ele terá a grandeza de alma proporcionada ao vigor da<br />

luta que, no terreno psicológico como no terreno material,<br />

as circunstâncias lhe tenham imposto e ele saiba travar.<br />

Ele terá, ao mesmo tempo, a grandeza do seu território,<br />

a grandeza de sua riqueza. Ele será um povo de lutadores,<br />

que saberá como nunca trabalhar. Ele será um povo de trabalhadores<br />

que soube provar que é formidável na luta.<br />

Sobre ele, eterno, imutável, brilhará o Cruzeiro do Sul,<br />

que já Pedro Álvares Cabral viu quando as naus com o<br />

signo de Cristo vieram aportar em nosso território.<br />

E o Brasil de hoje, voltando o olhar para o Brasil de ontem,<br />

e voltando o olhar enlevado para o Brasil de amanhã,<br />

o Brasil de hoje, creio eu que, na afirmação uníssona de<br />

todos os nossos corações, poderá exclamar:<br />

“Vivemos dias amargos. Mas, pela graça de Deus, soubemos<br />

ser grandes, à altura de nosso povo, de nosso território,<br />

à altura do Sinal da Cruz que está esculpido nos<br />

nossos céus!” !<br />

11


DONA LUCILIA<br />

“Onde vai meu coração,<br />

vai você dentro...”<br />

Dona Lucilia em fins da década de 1950<br />

Aviagem de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pela<br />

Europa, em 1952, deu ensejo<br />

a uma tocante correspondência<br />

entre ele e Dª Lucilia, na<br />

qual transparecem o entranhado afeto<br />

filial, de um lado, e o não menos intenso<br />

carinho materno, de outro. Uma<br />

dessas cartas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, escrita da<br />

Cidade Eterna, extraviou-se e só chegou<br />

às mãos de Dª Lucilia muito tempo<br />

depois de terminada a viagem.<br />

Guardou-a com cuidado junto às demais,<br />

para as ler em horas de solidão.<br />

Eis seu teor:<br />

Roma, 27 de junho de 1952.<br />

Luzinha querida de meu coração,<br />

De acordo com meu telegrama, que<br />

a Sra. deve ter recebido ontem, cheguei<br />

de Paris no dia 26, chegando de avião<br />

a Roma depois de duas horas e pouco<br />

de viagem, durante a qual sobrevoamos<br />

a Suíça passando sobre o Lago de Genebra,<br />

os Alpes, e pois o imponentíssimo<br />

Monte Branco. No mesmo dia de<br />

nossa chegada, fomos à Basílica do Vaticano,<br />

onde tivemos a ocasião de rezar<br />

junto ao altar do Bem-aventurado<br />

Pio X, já agora exposto à veneração<br />

dos fiéis, junto ao altar de São Pedro, e<br />

junto ao de Nossa Senhora da Pietá,<br />

onde está exposta a famosíssima estátua<br />

de Michelangelo, representando<br />

Nossa Senhora com o Filho morto ao<br />

colo. Depois, ficamos na praça de São<br />

Pedro, vendo, medindo, examinando e<br />

comentando, até cair a noite. Finalmente,<br />

tomamos um carro puxado a cava-<br />

12


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> parte<br />

para uma de<br />

suas viagens.<br />

Abaixo: facsímile<br />

da carta<br />

de Dª Lucilia<br />

transcrita<br />

nesta página<br />

lo, e pelas vielas sinuosas e pitorescas<br />

da Roma antiga chegamos até as avenidas<br />

mais modernas, e por elas até o<br />

hotel. Na manhã seguinte, fomos receber<br />

a Sagrada Comunhão na Basílica.<br />

E, depois, começamos a trabalhar. Ontem,<br />

ficamos pondo em ordem papéis,<br />

pois os que havíamos trazido de São<br />

Paulo precisavam de uma revisão. Hoje,<br />

comecei os primeiros contatos, e estou<br />

reservando umas horas para a correspondência,<br />

enquanto o resto da turma<br />

vai concluindo o serviço de ordenação<br />

dos papéis. Conto ficar em Roma<br />

até 15 de julho, de lá seguindo para<br />

a Espanha. Deixei recomendação<br />

para me mandarem de Paris as cartas<br />

que eventualmente venham a ter no<br />

Regina. A temperatura aqui está asfixiante,<br />

mas a italianada parece achar<br />

tudo normal. Como Paris, também Roma<br />

está muito mais animada do que<br />

em 1950. Vê-se que as cicatrizes da última<br />

guerra estão desaparecendo. Mas<br />

assim mesmo há aqui dois milhões de<br />

desempregados!<br />

Saí muito satisfeito de Paris, não só<br />

pela cidade, superior a qualquer elogio,<br />

como ainda pelo resultado dos trabalhos<br />

que ali desenvolvi. Que Nossa Senhora<br />

me auxilie para que também aqui<br />

tudo corra bem.<br />

Meu amor, gostei muito de sua carta,<br />

com a narração circunstanciada de<br />

tudo quanto faz. Mande-me outra,<br />

igualmente BEM METICULOSA,<br />

pois, como sabe, para mim no que me<br />

interessa, faço questão de pormenores.<br />

Mas há um pormenor sobre o qual<br />

quero precisão absoluta: quantas horas<br />

tem dormido por noite, Mme. la<br />

Marquise?<br />

De Paris, enviei postais a toda a família.<br />

É bom saber se receberam.<br />

Como tenho muitíssimo trabalho<br />

diante de mim, vou encerrar. Não preciso<br />

dizer-lhe, querida, quantas saudades<br />

tenho da Senhora..... São inexprimíveis!<br />

A todo momento, lembrome<br />

de minha Manguinha do coração.<br />

E, sempre que me lembro dela, faço a<br />

seguinte reflexão: a LÚ me quer bastante<br />

bem para entender que o que eu<br />

mais quero dela é que cuide de sua<br />

própria saúde.<br />

Reze por mim, querida, e dê sua bênção<br />

a este filho que lhe quer tanto quanto<br />

pode, e menos do que a Sra. merece,<br />

e que lhe manda milhões e milhões<br />

de beijos.<br />

<strong>Plinio</strong><br />

Amor às tradições<br />

européias<br />

Para uma saudosa e amorável mãe,<br />

as notícias do filho que se encontrava<br />

tão distante eram sempre poucas...<br />

Ela desejava mais, e não perdia<br />

oportunidade de aparesentar-lhe suave<br />

queixa nesse sentido,<br />

como o fez na carta que<br />

lhe escreveu no início de<br />

julho daquele ano.<br />

São Paulo, 9-VII-952<br />

Filho querido de meu coração!<br />

Ansiosa, esperava desde alguns dias<br />

ser contemplada com uma dessas dádivas<br />

preciosas que é a carta de um filho<br />

que me enche o coração de saudades.....<br />

e entretanto, nada, nem mesmo<br />

um postal. Parece incrível, mas por<br />

vezes, ponho-me a pensar que talvez o<br />

meu caboclo querido não esteja suportando<br />

bem esta canícula inusitada em<br />

Roma. Todos riem quando falo, mas<br />

tudo é possível, pois és tão sensível ao<br />

calor!<br />

“Pour un en cas”¹, como dizem os<br />

franceses tão teus amigos, escrevo-te<br />

esta, na esperança de que, não te alcançando<br />

em Roma, te seja esta enviada<br />

às terras de meus bisavós, Portugal e<br />

Espanha. (...)<br />

13


DONA LUCILIA<br />

Rosée ficou visivelmente satisfeita<br />

com o teu telegrama. Jantamos lá, com<br />

minhas duas irmãs — Nestor em viagem.<br />

Adolphinho, de acordo com Rosée,<br />

jantou com... o sexto andar! Antônio<br />

deu a Rosée mais dois fios de pérolas<br />

iguais ao que já lhe deu ultimamente<br />

— mais uma linda trousse² de<br />

ouro, bem trabalhada e toda cravejada<br />

de rubis. A filha e o genro deram-lhe<br />

um anel, desses modernos, que não<br />

aprecio, — cravejados de brilhantes, e<br />

que foi muito apreciado.<br />

Com teu pai, tenho sofrido com o<br />

frio, que está duro de aturar. Durante<br />

o almoço ele abre as cortinas e o sol<br />

lhe banha em cheio as costas, e ele fica<br />

contente. E eu saudosa, procuro alguém<br />

e uma mão queridos que estão<br />

ausentes há um longo mês.<br />

Como vais de estudos, visitas a esses<br />

“mil e um” museus, e viagens? Tudo<br />

bem a teu contento? Se possível, vocês<br />

devem fazer uma excursão, a bordo, no<br />

Loire, aos castelos “intactos” que ainda<br />

conservam às suas margens. Não<br />

vais desta vez a Lourdes, ou Paray-le-<br />

Monial? Peço-te, não deixes de mandar<br />

dizer uma missa e acender uma<br />

vela a Nossa Senhora da Begoña, por<br />

O mosteiro de Paray-le-Monial<br />

(acima) e os castelos do<br />

Vale do Loire (ao lado, Chambord)<br />

são algumas das maravilhas<br />

da velha Europa que<br />

Dª Lucilia muito admirava<br />

intenção de Rosée; — sim; querido?<br />

Se não me engano, é em Valladolid.<br />

Com meu coração, recebe muitas<br />

bênçãos, abraços e beijos. De tua mãe<br />

extremosa,<br />

Lucilia<br />

Uma vez mais, transparece aqui<br />

como para Dª Lucilia a Europa — e<br />

sobretudo a França — era um escrínio<br />

onde se conservavam restos preciosos<br />

da tradição que ela tanto amava.<br />

Na volta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, esperava<br />

poder ouvir as encantadoras descrições<br />

de tais maravilhas, e assim, através<br />

dos olhos dele, peregrinar por<br />

aquele mundo de fábula.<br />

A 10 de julho, <strong>Dr</strong>. João Paulo transmite<br />

de passagem, numa carta, notícias<br />

de Dª Lucilia:<br />

...em casa tudo corre normalmente.<br />

Tua mãe vai bem. Tem ela, uma vez por<br />

outra, crises de intensa saudade. Lê,<br />

então, tuas cartas e as relê, acabando<br />

por voltar-se para aquelas intermináveis<br />

orações que bem conheces. E volta<br />

o bom tempo.<br />

Por meio de seu esposo, Dª Lucilia<br />

enviava um recado a seu filho:<br />

A propósito, ao escrever esta, Lucilia<br />

me pediu para dizer-te que deves ter<br />

o maior cuidado<br />

com automóveis,<br />

em vista do recente<br />

rapto do advogado<br />

de Berlim,<br />

que muito a impressionou...<br />

Evidentemente <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> levaria<br />

em conta a observação materna, pois<br />

comprovara, não poucas vezes, o acerto<br />

das intuições de Dª Lucilia em tudo<br />

o que a ele podia ser danoso. Porém,<br />

mais do que a própria advertência,<br />

agradava-lhe aquela incessante<br />

manifestação de solicitude.<br />

Um amor quase<br />

religioso...<br />

Devido aos atrasos do correio,<br />

passaram-se quase três semanas sem<br />

chegarem missivas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Por<br />

fim, no dia 18 de julho, o carteiro<br />

trouxe o tão esperado envio. Assim<br />

que Dª Lucilia o recebeu, todas as<br />

cordas de sua alma vibraram de intensa<br />

alegria. Com seu passo ágil dirigiu-se<br />

à escrivaninha e com uma<br />

espátula abriu cuidadosamente o envelope.<br />

Depois procurou o lugar<br />

mais luminoso da sala, e lá sentou-se<br />

tranqüila, a fim de ler a carta do “filhão”<br />

para a “querida manguinha”:<br />

Roma, 10 de julho de 52.<br />

Luzinha querida.<br />

São 3,30 da manhã. Estive tão ocupado<br />

estes dias, que resolvi ficar trabalhando<br />

até agora, para escrever relatórios,<br />

notas de viagem, cartas, etc.<br />

E como o serviço ainda está pelo meio,<br />

deliberei passar a noite em claro, e ir<br />

comungar às 5 horas.<br />

Tal seria que em meio a tanto trabalho<br />

não houvesse um pouco de tempo<br />

para escrever a<br />

minha Manguinha<br />

do coração, para lhe<br />

dizer que sinto umas<br />

saudades immmmmmmmmmmmmmmensas<br />

dela!<br />

Devo partir para<br />

Barcelona entre 15 e<br />

17. O Pessoal do 6º<br />

andar tem meu endereço<br />

na Espanha.<br />

A resposta a esta<br />

carta deverá ser enviada<br />

para lá.<br />

14


Como de costume, minha querida,<br />

desejo saber tudo a seu respeito: saúde,<br />

rezas, horários, e quero também saber<br />

se a Sra. tem tido algumas saudades<br />

de mim.<br />

Roma está de um calor canicular.<br />

Um dia destes fez 40 à sombra! À noite,<br />

a temperatura melhora. É a hora<br />

humana de Roma. Ainda hoje, terminado<br />

o jantar, fiz minhas orações todas...<br />

num carro puxado a cavalo, como<br />

no tempo em que a Lú era mocinha,<br />

e que me levou, sozinho, a passear<br />

pelo Pincio. Quando se passa o dia inteiro<br />

com gente, a solidão é uma deliciosa<br />

necessidade. Faz me lembrar a<br />

frase de São Bernardo: oh beata solitudo,<br />

oh sola beatitudo!<br />

E como vai o maravilhoso apartamento,<br />

do qual sinto tantas saudades?<br />

O que é que a Rosa andou quebrando?<br />

Mande dizê-lo, porque fico apreensivo.<br />

Minha querida, quero ainda dizer<br />

uma palavra a Papai. Para a Senhora,<br />

amor meu do fundo do coração, todo<br />

o afeto, todo o respeito, mil milhões de<br />

beijos e de saudades do filho que lhe<br />

pede a bênção<br />

<strong>Plinio</strong><br />

Certamente penalizaram a Dª Lucilia<br />

as diversas dificuldades que seu<br />

filho vinha encontrando na capital italiana.<br />

Entretanto, com a alma inundada<br />

de gáudio por receber tão carinhosas<br />

palavras, ficou mais aliviada<br />

ao saber que ele passava bem de saúde.<br />

Após atenta leitura da carta, Dª<br />

Lucilia põe-se a escrever naquele mesmo<br />

dia uma resposta, cuja conclusão<br />

o cansaço da noite a obrigaria a protelar<br />

para o dia seguinte.<br />

18-VII-1952<br />

Filho querido de meu coração!<br />

Passei dezesete dias sem receber cartas<br />

tuas, tendo tido algumas ligeiras notícias<br />

através dos rapazes do sexto, que<br />

teu pai ou Adolphinho me traziam.<br />

Graças a Deus, recebi afinal, com grande<br />

alegria, tua última do dia dez deste.<br />

Meu filho, que saudades, quantas saudades<br />

de ti querido! Rosée e Zili têm<br />

procurado distrair-me, levando-me a<br />

ballets, bons concertos, alguns<br />

cinemas; têm vindo com freqüência,<br />

Maria Alice também,<br />

mas como sabes, “como<br />

sempre”, onde vai meu<br />

coração, vai você dentro.....<br />

Como deves saber, tenho<br />

comungado e rezado muito<br />

para que o Divino Espírito<br />

Santo (a quem fiz uma promessa)<br />

te guie e inspire, e Nossa<br />

Senhora Auxiliadora te proteja<br />

e auxilie.<br />

Fui com teu pai à novena no dia<br />

dezesseis na igreja do Carmo, rezar<br />

por ti, e lá estive com os teus amigos,<br />

que me fizeram muitas saudades.<br />

Rosée, Antônio, Maria Alice e<br />

Eduardo jantaram ontem aqui. Foi<br />

muito sentida tua ausência. Fiz o que<br />

pude e penso que foi tudo bem; pelo<br />

menos, foi o que me disseram, mas é<br />

preciso descontar a amabilidade de<br />

praxe. Quanto ao estouvamento da<br />

Rosa, não passou felizmente, do arrebentamento<br />

dos cordões das venezianas<br />

das salas, desarranjos da<br />

enceradeira e electrolux, e quebra<br />

do vidro na parte traseira do<br />

quadro do hall; já está tudo arranjado,<br />

felizmente.<br />

Peço-te mais uma vez para que não<br />

te esqueças de mandar dizer uma missa<br />

e acender uma vela por intenção de<br />

Rosée, no altar de Nossa Senhora da<br />

Begoña em “Valladolid”, penso.<br />

Se fores a Portugal, toma algumas<br />

informações sobre os nossos parentes<br />

do Porto. Têm um título qualquer, e<br />

moram perto da igreja dos Salesianos,<br />

pelo menos foi o que me disse o Padre<br />

salesiano, <strong>Dr</strong>. Esteves dos Santos.<br />

Quanto tempo te demoras aí na Espanha?<br />

Voltas ainda a Roma antes de<br />

ir a Paris? Escreva-me logo, e sempre<br />

que puderes. Leio, leio e releio tanto<br />

tuas cartas!<br />

Bem... até a próxima carta! Que<br />

Deus te guarde, te abençoe, e te acompanhe.<br />

Muitos e muitos beijos e abraços de<br />

tua mamãe tão saudosa e extremosa,<br />

Nossa Senhora de Begoña, sob cuja<br />

proteção Dª Lucilia colocava de modo<br />

especial sua filha Rosée<br />

Lucilia.<br />

“Onde vai meu coração, vai você<br />

dentro”... É essa atitude de amor,<br />

quase se diria religioso, uma constante<br />

em Dª Lucilia, pois mais do que<br />

um filho comum, ela via no conjunto<br />

das qualidades de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> as harmonias<br />

de um órgão, para cuja construção<br />

ela, com mãos de artista, havia<br />

contribuído.<br />

(Transcrito, com adaptações, da<br />

obra “Dona Lucilia”,<br />

de João S. Clá Dias)<br />

1 ) “Por via das dúvidas”<br />

2 ) Estojo<br />

15


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

N<br />

a primeira narração auto-biográfica<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

sobre sua meninice,<br />

publicada no número passado, deixamo-lo<br />

numa praia de Santos,<br />

contemplando o mar. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> continua<br />

aqui suas lembranças de como<br />

foi discernindo e optando pelo<br />

bem, perante as coisas que observava<br />

na infância. E como daí surgia<br />

o combate ao mal que via em si.<br />

O menino e o mar<br />

16


V<br />

isitando o mar de Santos<br />

— a praia do José Menino<br />

ou o Boqueirão — lembro-me<br />

da impressão que me causavam<br />

as ondas quando eu as olhava<br />

quebrarem-se a certa altura. Vinham<br />

aquelas toalhas de água que se estendiam<br />

sobre superfícies mais ou menos<br />

amplas, e depois, como por uma força<br />

misteriosa, eram atraídas de volta<br />

e refluíam, refluíam, refluíam.<br />

Em meu espírito elas evocavam<br />

dois outros movimentos que afetavam<br />

a sociedade em que eu vivia: o da onda<br />

enorme da influência e dos estilos<br />

de vida hollywoodianos da década de<br />

30 que avançavam, e o da onda da influência<br />

européia que retrocedia. Era<br />

a velha Europa da qual eu conservava<br />

na retina, na imaginação e no coração<br />

alguns aspectos fugazes do tempo<br />

em que, com quatro anos, eu a visitara.<br />

Era a velha Europa da qual ouvia<br />

falar sempre, nas conversas caseiras;<br />

a velha Europa que eu admirava<br />

num livro que papai trouxe da Alemanha,<br />

quando lá estivemos em 1913.<br />

Esplendores da Alemanha<br />

militar<br />

Esse livro intitulava-se “L’Alemagne<br />

Moderne”. Obra de um autor francês<br />

que escrevia sobre a Alemanha<br />

do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente<br />

ilustrado com cenas da Alemanha<br />

daquele tempo. Havia fotografias<br />

das regiões industriais e da vida<br />

econômica e capitalista da Alemanha<br />

que não me interessavam. Mas<br />

havia também fotografias dos panoramas<br />

alemães e da Alemanha artística<br />

— que maravilha! Também da<br />

Alemanha de corte — que esplendores!<br />

Eu folheava o livro longamente,<br />

embevecidamente, dez vezes, vinte vezes...<br />

Depois vinha a Alemanha militar.<br />

Eu não posso me esquecer de uma<br />

fotografia, colorida com os recursos<br />

gráficos do tempo, mas que me encantava.<br />

Retratava uma parada militar<br />

na Berlim kaiseriana, no campo<br />

chamado “Tempelhof” (o “Pátio do<br />

Templo”), nos arredores de Berlim.<br />

Era uma grande planície à maneira<br />

de tabuleiro onde as tropas do Kaiser<br />

evoluíam. O Kaiser montava um<br />

bonito cavalo, portava um capacete<br />

de aço com a águia imperial e passava<br />

o bastão de comando a um general,<br />

porque ele devia partir.<br />

Os exércitos do tempo tinham cavalarias<br />

magníficas. Não posso me esquecer<br />

de uma fotografia um pouco<br />

menor, que retratava o “hurrah” da<br />

cavalaria: o momento em que todos<br />

gritam “hurrah” e os cavalos avançam<br />

contra o adversário de parada, o adversário<br />

imaginário. Sabia-se bem que,<br />

na mente dos alemães, eram os franceses<br />

que estavam do lado oposto.<br />

Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas<br />

o embaixador francês assistia<br />

aquilo imprevidente, impávido, cético,<br />

fingindo achar que esse desfile<br />

nada tinha a ver com ele.<br />

“Un hurrah de chevalerie”, lia-se<br />

na legenda da foto, na qual a gente<br />

via avançar a cavalaria com todos os<br />

soldados empunhando espadas. Quanto<br />

eu me entusiasmava com essas perspectivas!<br />

Alemanha tradicional X<br />

Alemanha industrial<br />

Havia no livro fotografias da indústria<br />

alemã que tinha aquele quê de<br />

metálico, de mecânico, de material,<br />

de inanimado no sentido próprio da<br />

palavra, isto é, sem alma, inerente a<br />

todo ambiente industrial, ainda em<br />

nossos dias, e talvez principalmente<br />

em nossos dias.<br />

E eu analisava o contraste daquelas<br />

fotografias com as cenas de Corte<br />

e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me<br />

de uma fotografia muito bonita: o<br />

“Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz)<br />

recebendo as homenagens de seus pajens,<br />

numa sala esplendidamente iluminada.<br />

A “Kaiserin” era uma dama<br />

simpática, cheia de bondade e distinção.<br />

Os dois estavam em pé e os pajens<br />

belamente vestidos, em trajes de<br />

“Ancien Régime”, formando um<br />

quadrilátero diante do Kaiser.<br />

Olhava aquilo e achava lindo. Mas<br />

havia alguma coisa de que eu não gostava;<br />

“algo que já cheirava a indústria”:<br />

de repente, viro uma página e<br />

vejo uma fotografia do Kaiser, não<br />

mais vestido de uniforme, como se vestiam<br />

os reis daquele tempo, mas em<br />

civil, com ar galante e com uma flor<br />

no peito. Pouco depois, uma outra fotografia,<br />

da célebre, famosa, histórica<br />

catedral de Colônia, uma das mais<br />

bonitas do mundo, que foi terminada<br />

no tempo do Kaiser e que trazia,<br />

do lado de fora, entre as estátuas próprias<br />

ao edifício gótico, o Kaiser esculpido<br />

como profeta do Antigo Testamento.<br />

Ficava completamente ridículo!<br />

Era indústria de um lado, ridículo<br />

de outro, tradição no meio, formando<br />

um conjunto objetável.<br />

Quando um pouco depois disso<br />

assisti, no cinema, a cena do enterro<br />

do Imperador Francisco José, da Áustria-Hungria,<br />

fiquei deslumbrado. Tudo<br />

era como devia ser, exceto num<br />

ponto: faltava a força e o empenho<br />

que eu admirava no estilo prussiano.<br />

Eu me perguntava: “Não há jeito de<br />

juntar essas duas coisas? Quão belas,<br />

quão nobres são as coisas austríacas!<br />

Aqueles uniformes, que coisa esplêndida!<br />

Francisco José, que coisa magnífica!<br />

Mas essa gente toda, colocada<br />

em cima de cavalos, em seu “hurrah”<br />

de cavalaria não é capaz de enfrentar<br />

o “hurrah” do Kaiser.<br />

Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente<br />

bonitas quando vitoriosas;<br />

e só são vitoriosas quando heróicas;<br />

e só são heróicas quando profundamente<br />

sérias. Eu percebia que<br />

era preciso filtrar, era preciso tamisar<br />

o que me vinha dessas nações. Eu<br />

17


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

não podia aceitar aquilo como um bloco.<br />

De outro lado, que critério usar<br />

para filtrar? Que critério para tamisar?<br />

As outras nações da<br />

Europa<br />

Extasiava-me também com as outras<br />

nações da Europa, cujos produtos<br />

me chegavam em abundância, porque<br />

ainda não havia as grossas travas<br />

de alfândega que depois vieram. Por<br />

todo lado éramos penetrados pela<br />

substância européia, enquanto soprava<br />

o vento norte-americano.<br />

Nessa contradição, tomando contato<br />

com ares franceses, ao mesmo<br />

tempo que eu me maravilhava, dizia<br />

de mim para comigo: “mas falta seriedade<br />

nisso! Em todo esse mimo,<br />

em toda essa graça, falta algo”. Eu<br />

vejo que essa nação descende de cruzados,<br />

mas eu não vejo que cruzados<br />

descenderiam dessa nação. Santa Joana<br />

d’Arc, que admirável! Godofredo<br />

de Bouillon, nem sei o que dizer!<br />

Olhava Versailles cujas carruagens<br />

me tinham entusiasmado tanto; olhava<br />

o Trianon, olhava o Petit Trianon,<br />

Fontainebleau, as florestas... Como<br />

tudo ria e sorria de modo encantador!<br />

Mas eu pensava: “isto é o sorriso.<br />

Eu quero ver agora a carranca,<br />

eu quero ver a força!”<br />

Um trabalho de seleção,<br />

com base no critério<br />

católico<br />

Era preciso selecionar, era preciso<br />

tamisar; não bastava dizer “não”<br />

à influência hollywoodiana, mas era<br />

preciso rejeitar também a frivolidade<br />

francesa e recolher da Europa a<br />

pura seiva da Civilização Cristã com<br />

base no critério católico.<br />

Eu não via que as pessoas de minha<br />

época fizessem isso. Notava que,<br />

mesmo pessoas de posição na Igreja,<br />

pactuavam indolentemente com a influência<br />

yankee que entrava e olhavam<br />

sem saudades para a influência<br />

européia que recuava.<br />

Mas quando eu estava sozinho, ao<br />

lado da reflexão sobre qualquer coisa<br />

— uma concha, um caramujo... —,<br />

vinham de modo natural à tona essas<br />

considerações que eram longamente<br />

analisadas por mim. Eu pesava, comparava,<br />

admirava, censurava, e a cada<br />

passo que via algo admirável, fazia<br />

uma comparação com a Revolução<br />

anticristã que entrava e compreendia<br />

melhor como esta era rejeitável.<br />

Lembro-me que me sentava sozinho<br />

naquelas amuradas de canais que<br />

entram pelo mar de Santos. Meu pretexto,<br />

para poder me isolar, era pescar<br />

siri. Arrumava uma pedra, atavaa<br />

de um lado a um pedaço de carne<br />

crua que me davam na cozinha da<br />

casa de meus tios, e de outro lado a<br />

um barbante, e partia com um baldezinho.<br />

Era o pretexto para ficar sozinho,<br />

pensando. Voltava depois para<br />

18


Pensava eu como seria magnífico se fosse<br />

possível unir a beleza das coisas austríacas,<br />

a nobreza de Francisco José com o<br />

"hurrah" de cavalaria das tropas do Kaiser!<br />

Acima: desfile militar diante do Imperador Francisco José<br />

(também no detalhe); na página anterior: o Kaiser (detalhe) e um<br />

treinamento de carga de cavalaria prussiana<br />

casa com três, quatro, cinco siris, que<br />

eram jogados fora.<br />

Naquela amurada de pedras que<br />

invadia o mar, eu ficava cercado de<br />

ondas que vinham e voltavam. Às vezes<br />

andava pela praia vazia, ao longo<br />

da qual havia casas de família ainda<br />

dignas e antigas, e que me pareciam<br />

bonitos palacetes agradáveis de serem<br />

vistos de longe. E as reflexões começavam<br />

a me subir ao espírito.<br />

Contemplava o mar de Santos,<br />

que a meus olhos parecia grandioso.<br />

Naquela época, o mar conservava algo<br />

de ameaçador; os que navegavam<br />

pelo oceano ainda tinham medo de<br />

alguma coisa. E o medo do mar dava-lhe<br />

prestígio...<br />

A alguma distância de mim, do lado<br />

do Guarujá, havia uma ilha com<br />

uma nota de tragédia, quase colada<br />

ao continente. Uma ilha de um granito<br />

vagamente rosado, não especialmente<br />

bonita, mas agradável de se<br />

olhar. Era a ilha das Palmas, onde se<br />

dizia que havia um hospital de doenças<br />

contagiosas. Eu pensava no infortúnio<br />

daqueles que eram colocados<br />

fora do convívio humano: “fiquem<br />

longe, não queremos contato!”<br />

No extremo da terra, isolados, somente<br />

ouvindo as ondas do mar...<br />

Esse infortúnio naquele ambiente se<br />

me afigurava impressionante. Eu tinha<br />

muito medo do contágio, mas considerava<br />

fascinantes as meditações<br />

que ali se pudessem fazer.<br />

As grandezas do mar, os sorrisos<br />

do mar, o rumor do mar... O mar brilhando<br />

à luz das quatro horas da tarde,<br />

no crepúsculo das cinco ou das seis<br />

horas da tarde, e por fim, no ponto<br />

último onde no horizonte se encontrava<br />

com o céu: olhar aquilo me deixava<br />

como que intrigado.<br />

Tudo isso me parecia muito belo.<br />

E eu refletia: como isso é diferente<br />

da coisa americana! Como isso convida<br />

a pensar! Como, debaixo de<br />

vários pontos de vista, pode-se dizer<br />

que isso é profundo, é grandioso, é<br />

infatigável, é incessante, é carinhoso,<br />

é jeitoso, é discreto. Mas, também,<br />

como é solene! Oh, o mar!<br />

Como minha alma que comporta<br />

tudo isso é diferente da alma comprimida,<br />

achatada, passada na plaina<br />

pela Revolução, tão rasa, tão lisa,<br />

tão banal, tão corriqueira de tantos<br />

daqueles que eu conheço de minha<br />

idade! Que mundo está sendo preparado?!<br />

Que banalidade!<br />

Combate à tendência para<br />

o romantismo<br />

Essa constatação levava-me a deter<br />

o olhar não mais na formosura<br />

do mar e nas transcendentes belezas<br />

a que o mar conduzia, mas a me perguntar:<br />

“mas então, como sou eu?<br />

19


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Vou me descrever para mim mesmo”.<br />

E na hora de me descrever para<br />

mim mesmo, o próprio enlevo pela<br />

tradição que eu amava, e pela Igreja<br />

que eu quase diria adorava, levavame<br />

a perceber o reflexo dessas coisas<br />

na minha alma e a ser tentado de<br />

enlevar-me comigo. Era a hora exata<br />

em que os estampidos sonoros de<br />

Wagner, ou melodias ultra-melosas<br />

de Chopin me passavam pela memória.<br />

Eu tinha tendência a identificar<br />

minha pessoa com a tradição — não<br />

por minhas próprias qualidades, mas<br />

porque em mim se refletia aquela<br />

tradição que eu amava. Ora, nessa<br />

identificação, havia o convite para<br />

uma posição admirativa e lânguida a<br />

respeito de mim mesmo.<br />

Era a tentação para o romantismo:<br />

a ilusão de ótica por onde a pessoa<br />

se põe no centro de tudo, põe-se<br />

como foco da tradição, põe-se como<br />

o modelo da Contra-Revolução e já<br />

não tem interesse em olhar para o<br />

mar a não ser na medida em que o<br />

mar se reflete nela. Já não tem interesse<br />

em olhar para a História, a não<br />

ser na medida em que se sente encaixado<br />

ou relacionado, ao menos pela<br />

fantasia, com a História. Pelo peso<br />

do pecado original, a pessoa acaba<br />

considerando secundário o que antes<br />

admirava e tornando principal aquilo<br />

que o pecado original vulnerou,<br />

que é o próprio homem.<br />

O mau efeito dessa tentação era<br />

como algo lânguido que eu sentia<br />

dentro de mim, e pensava: “Não posso<br />

consentir nesses pensamentos porque<br />

neles há alguma coisa de mau. O<br />

que seja, eu saberei depois. Mas o<br />

fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço<br />

dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah’<br />

de cavalaria. E tudo o que me<br />

afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos<br />

podem ter coisas boas misturadas,<br />

mas fundamentalmente têm<br />

algo ruim dentro. Não e não!” Nunca<br />

mais ouvi as músicas que eram<br />

conexas com esse estado de espírito:<br />

nunca mais Chopin, Wagner, Liszt,<br />

“Preciso ter a serviço<br />

dos meus ideais o<br />

ímpeto do “hurrah” de<br />

cavalaria, e renunciar<br />

a tudo que me afasta<br />

deles. Nunca mais<br />

Chopin, Schumann,<br />

Brahms...”<br />

Carga de cavalaria francesa, e<br />

bustos de Schumann e Chopin


para não falar de Mendelsohn e<br />

Brahms.<br />

Essa introspecção langorosa e derretida<br />

de si próprio é a substância do<br />

romantismo. Schumann tem uma música<br />

chamada “Revêrie”. “Revêrie”<br />

quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema<br />

do sonho é ele, enquanto se admirando<br />

e tendo entusiasmo consigo.<br />

O romantismo desnorteou<br />

as melhores almas<br />

O homem reto nunca se admira a<br />

si mesmo, nunca se contempla, nunca<br />

se compara, porque sabe que isso<br />

é um poço envenenado, do qual uma<br />

gota de água que beba o intoxica.<br />

A perfeição nessa matéria, quando<br />

se contempla o mar, consiste em<br />

evitar ver o reflexos do mar em si, mas<br />

pelo contrário procurar vê-lo como<br />

simbolizando Deus Nosso Senhor, a<br />

Igreja Católica e todas as grandezas.<br />

Ah, se isso tivesse sido feito pelos<br />

românticos, quantas almas se teriam<br />

salvo e teriam dado resultados esplendorosos!<br />

Como teriam sido outras<br />

as gerações!<br />

O romantismo tomava as melhores<br />

almas daquele tempo, isto é, as<br />

que estavam ainda sujeitas à influência<br />

européia decadente, e as enleava<br />

nessas malhas da auto-contemplação.<br />

Enquanto que o dito americanismo<br />

hollywoodiano perdia os que eram<br />

menos bons. Diante de meus passos,<br />

exagerando algum tanto, eu poderia<br />

dizer que os caminhos que se abriam<br />

eram sendas de perdição.<br />

As frivolidades dos pseudotradicionalistas<br />

românticos<br />

Nossa Senhora me ajudou a fazer<br />

a escolha de tal maneira que do romantismo<br />

não ficasse nada e, espero<br />

eu, que algo tenha ficado do “hurrah”<br />

da cavalaria, da fidelidade à tradição.<br />

Aqui se tem, portanto, o que era<br />

essa batalha interna, e cada um pode<br />

fazer a si mesmo uma aplicação. Eu<br />

conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas<br />

pela tradição. Com elas acontecia<br />

por exemplo que começavam a<br />

estudar história e de repente um inventava<br />

que era conde, começava a<br />

se vestir de conde, com roupinhas,<br />

gravatinhas, colarinhos, anéis — dois,<br />

três, quatro ou mesmo cinco anéis<br />

diferentes para serem usados conforme<br />

o dia — , e adotava modos de<br />

falar em que procurava representar<br />

um papel histórico. No fundo, tratava-se<br />

do egocentrismo. Eram pessoas<br />

das quais se ria e que ninguém tomava<br />

a sério, que não atraíam ninguém,<br />

que não impressionavam ninguém,<br />

não arrastavam ninguém. Porque não<br />

era a História, não era um ideal, não<br />

era um absoluto, não era Deus que<br />

estava presente nelas.<br />

Quantas e quantas coisas desse gênero<br />

torciam os melhores. Ia-se conversar<br />

às vezes com um que tinha o<br />

ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens.<br />

Eu procurava em vão descobrir a<br />

que doutrina, a que pensamento, a<br />

que princípio queriam chegar. Nada:<br />

o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho<br />

não convence!<br />

A igrejinha do<br />

Embaré e uma<br />

vista do litoral de<br />

Santos, no início<br />

do século XX<br />

(Fotos: cortesia<br />

do jornal<br />

"Novo Milênio")<br />

Havia uma deformação análoga a<br />

essa, que era o efeito do romantismo<br />

na esfera religiosa.<br />

O que era o romantismo religioso?<br />

Era uma sentimentalidade religiosa<br />

que desvirilizava, que afrouxava e<br />

debilitava a vontade, que não formava<br />

fiéis combativos, mas propunha<br />

um ideal de caridade mal concebido,<br />

que dava no tipo humano do carola,<br />

do beato ou da beata, tão caricatos.<br />

Voltemos à praia de Santos. Em<br />

meio às reflexões naturais de um menino<br />

que se retira sob o pretexto de<br />

pescar siri, intervém a Providência.<br />

O Santuário do Embaré começava<br />

a ser construído. Uma igreja de<br />

um gótico muito provinciano, mas ainda<br />

gótico. Da praia, eu olhava para<br />

aquela construção e dizia: “Oh, Santa<br />

Igreja Católica que não mudas! Tu<br />

és fiel ao gótico, que é a morada de<br />

minha alma! Tudo muda em torno de<br />

ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio<br />

à tempestade hollywoodiana, tu ergues<br />

as tuas torres góticas aos olhos<br />

de Deus e do sol que vai nascer.”<br />

Contemplá-la ajudava-me a discernir<br />

entre o bem e o mal, e me enchia<br />

de entusiasmo. !<br />

21


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Imagem da Virgem<br />

Dolorosa, venerada na<br />

Igreja de La Merced,<br />

Cidade de Guatemala<br />

22


Nossa Senhora das dores<br />

e o amor à incomodidade<br />

A<br />

presentamos aos leitores um comentário de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> acerca de um<br />

trecho de D. Guéranger, abade beneditino de Solesmes, a propósito<br />

da festa das Sete Dores de Nossa Senhora.<br />

Assim se denominava então a comemoração do<br />

15 de setembro, que hoje se chama “Nossa Senhora<br />

das Dores”. D. Guéranger mostra como Deus envia<br />

sofrimentos àqueles a quem ama, e como entre<br />

todas as almas, depois da de Jesus Cristo, a mais<br />

amada por Deus foi a de Maria Santíssima, sujeita<br />

aos mais indizíveis padecimentos. Referindo-se às<br />

Sete Dores de Nossa Senhora, explica D. Guéranger<br />

que a Igreja se deteve no número sete pelo fato de<br />

este exprimir sempre a idéia de totalidade e universalidade,<br />

ou seja, todas as dores.<br />

Dom Guéranger<br />

Hoje é festa das Sete Dores de Nossa Senhora,<br />

colocada com muita propriedade logo depois<br />

da festa da Exaltação da Santa Cruz. Essa festa<br />

mariana foi estendida a toda a Igreja por Pio VIII, em<br />

agradecimento pela intercessão da Santíssima Virgem na<br />

libertação de Pio VII.<br />

A principal prova do amor que Deus tem<br />

por nós são os sofrimentos que nos envia<br />

São tantos os pensamentos que nos vêm a propósito do<br />

texto de D. Guéranger, que seríamos tentados a desenvolver<br />

excessivamente estas palavras. Parece-me entretanto<br />

oportuno concentrarmo-nos somente em duas idéias.<br />

A primeira delas é esta: que Deus, tendo amado com<br />

amor infinito ao seu Verbo Encarnado, a Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, e tendo amado com amor inferior a este, mas<br />

superior a todos os outros amores, a Nossa Senhora, deulhes<br />

tudo quanto há de bom. E por isso, deu-lhes também<br />

aquela imensidade de cruzes que, no caso de Nossa<br />

Senhora, é representada pelo número sete. Sete dores é<br />

também o símbolo de todas as dores. E Nossa Senhora<br />

poderia ser chamada perfeitamente Nossa Senhora de Todas<br />

as Dores.<br />

23


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Por causa disso, se é verdade que todas as gerações a<br />

chamarão Bem-Aventurada, a um título menor, mas imensamente<br />

real, todas as gerações poderão também chamála<br />

“infeliz”.<br />

Se isso é assim, nós deveríamos compreender melhor<br />

que quando a dor entra em nossa vida, estamos recebendo<br />

uma prova do amor que Deus tem por nós. E que enquanto<br />

a dor não penetrar em nossa existência, nós não<br />

temos todas as provas desse amor de Deus. E eu acrescentaria<br />

que não temos a principal prova<br />

do amor de Deus para conosco.<br />

O que isto significa?<br />

Há membros de nossa família<br />

de almas para cujas fisionomias<br />

eu olho e, depois de analisá-las,<br />

sou levado a pensar: a<br />

este, falta-lhe ainda sofrer, falta<br />

no fundo uma nota de maturidade,<br />

uma nota de estabilidade,<br />

uma nota de racionalidade,<br />

uma elevação que só tem<br />

aquele que sofreu, e que sofreu<br />

muito. Quem leva uma vida sem<br />

sofrimentos, leva uma vida em que essas<br />

notas não transparecem na fisionomia. E o que é muito<br />

pior: não transparecem na alma.<br />

Nós devemos nos convencer de que isso é assim, ou seja<br />

que sofrer é um dom de Deus. E que quando começam<br />

acontecer os contratempos — as dificuldades com o<br />

apostolado, os mal-entendidos com os amigos ou com<br />

nossos superiores, a saúde que anda mal, os negócios que<br />

dão errado, as encrencas dentro de casa — não devemos<br />

tomar tudo isso como um bicho de sete cabeças. Nós não<br />

devemos, imitando a mentalidade holywoodiana, exclamar<br />

impacientes: “Como foi que uma coisa dessas pôde<br />

acontecer?”<br />

Não, essa não deve ser nossa atitude! Quando não sofremos,<br />

aí então é que devemos nos perguntar perplexos:<br />

“Como é que está acontecendo isto: eu não estou sofrendo<br />

nada!?” Pois o normal é sofrer. Aquele a quem Deus<br />

ama, aquele a quem Nossa Senhora ama, esse sofre!<br />

Deus não pode recusar a um filho a quem ama aquilo<br />

que Ele deu em abundância aos dois entes que mais<br />

amou, que são Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.<br />

Devemos pois nos imbuir bem da idéia de que o normal<br />

na vida é sofrer.<br />

Sem dúvida devemos pedir à Providência que nos livre<br />

das privações, das provações, das crises nervosas e de toda<br />

espécie de coisas penosas, mas se estiver nos planos<br />

da Providência que sejamos submetidos à prova, devemos<br />

bendizer a Deus, bendizer a Nossa Senhora por estar<br />

sofrendo.<br />

São Luís Grignion chega a dizer que quem<br />

não sofre deveria fazer peregrinações e orações<br />

pedindo o sofrimento, embora ele condicione<br />

tal pedido à aprovação de um diretor espiritual,<br />

porque se trata de uma súplica muito<br />

séria. Mas ele diz isso porque sabe que quem<br />

não sofre não vai indo tão bem na vida espiri-<br />

24


Quando a dor entra em nossa vida, recebemos<br />

uma prova do amor de Deus para conosco,<br />

pois Ele não pode recusar aos filhos que ama<br />

aquilo que deu em abundância<br />

a Nosso Senhor e a Nossa Senhora<br />

Nossa Senhora da Piedade, Alemanha, séc. XIV<br />

tual quanto poderia ir, e às vezes vai indo inteiramente<br />

mal.<br />

Todos aqueles que querem seguir a Nosso<br />

Senhor são incômodos<br />

Bossuet tem uma expressão estupenda a respeito de<br />

Nosso Senhor Menino: “Aquele Menino incômodo”, que<br />

se aplica a todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor:<br />

são incômodos eles também..<br />

Às vezes, tenho a seguinte sensação experimental: começo<br />

a dar um conselho, a dar um exemplo, a pedir um<br />

sacrifício, e no semblante do interlocutor vai aparecendo<br />

algo que revela serem incômodas as minhas palavras para<br />

ele. Como seria mais fácil para mim contar uma piada,<br />

fazer uma brincadeira, acabar a conversa com um tapinha<br />

nas costas e dispensar o outro de uma obrigação! Como o<br />

mando seria agradável se fosse isso!<br />

Mas mandar é o contrário. Mandar é estar exigindo que<br />

o subordinado tome as coisas a sério, que as olhe pelo seu<br />

lado mais profundo, mais alto e mais sublime. Que veja<br />

de frente sua própria alma, que se examine a si mesmo<br />

detidamente, procure corrigir efetivamente e seriamente<br />

seus defeitos. Mas como isso é incômodo! Pois bem, o<br />

peso de sermos incômodos é um dos maiores pesos que<br />

existe e também este nós devemos carregar.<br />

Nossa Senhora teve um filho que lhe trouxe tantos divinos<br />

incômodos. Quando meditamos sobre a dor d’Ela, sobre<br />

a seriedade e a sublimidade da existência d’Ela e de nossa<br />

própria existência, Nossa Senhora das Dores também se<br />

torna para nós maternal e estupendamente incômoda.<br />

A resignação alegre diante dessa incomodidade,<br />

a coragem de sermos incômodos em todas<br />

as circunstâncias, o amar de preferência<br />

aos nossos amigos incômodos, que nos lembram<br />

oportuna ou importunamente o dever:<br />

essas são as virtudes que no dia das Sete Dores<br />

de Nossa Senhora devemos pedir a Ela. !<br />

25


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

DEUS AMA A<br />

ORAÇÃO IMPORTUNA<br />

Religiosa em<br />

oração, no<br />

Convento de<br />

Saint-Gildard,<br />

França


N<br />

o número de agosto publicamos excertos da série de conferências<br />

que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pronunciou em 1957 sobre o livro de Santo<br />

Afonso Maria de Ligório — “A oração, o grande meio da salvação”.<br />

Continuamos com alguns outros trechos da mesma, dada a<br />

grande importância que o tema representa para a vida espiritual de todo<br />

católico.<br />

P<br />

ara obter que Nosso Senhor<br />

nos abra a porta, basta<br />

ser importuno. Isso está<br />

dito textualmente e comentado por<br />

um Doutor da Igreja do porte de<br />

Santo Afonso de Ligório.<br />

Devemos considerar, de uma vez<br />

por todas que, na oração, não são<br />

nossas misérias que entram em linha<br />

de conta.<br />

A oração não é um cheque<br />

bancário contra Deus<br />

A oração tampouco é um cheque<br />

que eu saco do fundo dos meus créditos<br />

e compro de Deus um favor. É<br />

preciso desfazer tal idéia, pois é um<br />

obstáculo para o desenvolvimento da<br />

nossa vida espiritual.<br />

Oração é algo diferente. Ainda que<br />

eu não tenha nenhuma razão para<br />

ser atendido, sê-lo-ei pela minha importunidade.<br />

A importunidade do pecador<br />

abre as portas do Céu e obtém,<br />

afinal, tudo quanto possa desejar. É<br />

frisante, nesse sentido, a palavra de<br />

Nosso Senhor.<br />

S. João Crisóstomo, grande Doutor<br />

da Igreja, comenta no mesmo sentido:<br />

A oração vale mais junto de Deus do<br />

que a amizade ¹.<br />

É uma afirmação que eu não teria<br />

coragem de fazer: estabelecer uma<br />

distinção entre a oração e a amizade<br />

com Deus, para concluir que a primeira<br />

vale mais que a segunda. Ora,<br />

isso foi dito por São João Crisóstomo,<br />

que Santo Afonso por sua vez cita.<br />

A oração vale mais diante de<br />

Deus do que a amizade. Entre uma<br />

pessoa em estado de graça, mas que<br />

não reza, e outra que reza mas não<br />

está em estado de graça, quem reza<br />

alcança mais favor diante de Deus.<br />

Outro argumento interessante, invocado<br />

por Santo Afonso para justificar<br />

a tese de ser a oração do pecador<br />

eficaz e grata diante de Deus, é a<br />

passagem evangélica em que Nosso<br />

A oração importuna<br />

e humilde abre<br />

para o pecador as<br />

portas do Céu,<br />

e alcança para<br />

ele tudo quanto<br />

possa desejar<br />

Senhor elogia a oração do publicano:<br />

“Assim é que se deve rezar!”<br />

Qual é o título que o publicano<br />

apresenta diante de Deus para ser<br />

atendido? Não é o “cheque” que os<br />

fariseus apresentam: “Agora tu, Deus,<br />

que me pões uma barreira, tu tens que<br />

me dar um prêmio, porque eu fiz algo.<br />

Aqui está o que eu fiz!”<br />

Na sua oração, pelo contrário, o<br />

publicano invoca o título de pecador:<br />

“Deus, sede-me propício, a mim que<br />

sou pecador”.<br />

Ora, tendo alegado esse título de<br />

pecador, o Evangelho acrescenta:<br />

... este (o publicano) voltou justificado<br />

para a sua casa (Lc 18,14).<br />

Quando nós alegamos o título de<br />

pecador, somos atendidos.<br />

É engano achar que devemos estar<br />

num alto grau de virtude para que<br />

nossas orações sejam atendidas por<br />

Nosso Senhor. É preciso abandonar<br />

essa idéia heterodoxa, se quisermos<br />

ter verdadeiro espírito católico.<br />

Outra frase, também muito interessante,<br />

é tirada de uma oração do Profeta<br />

Daniel:<br />

Inclinai, meu Deus, o vosso ouvido,<br />

e ouvi-me (...) porque nós, prostandonos<br />

por terra diante da vossa face, não<br />

fazemos essas deprecações fundadas<br />

em alguns merecimentos de nossa justiça,<br />

mas sim, na multidão das vossas<br />

misericórdias (Dan 9, 18).<br />

Essas palavras, ditas pelo Profeta,<br />

não constituem figura de retórica, como<br />

quem dissesse: “Vê tudo isto! eu<br />

ainda vou pôr mais um enfeite, vou<br />

dizer que não tenho nada. Mas, é para<br />

mostrar que eu sou humilde e, portanto,<br />

não digas que há contrabando<br />

na minha mercadoria. Dá-me agora<br />

aquilo que tu me prometeste!”<br />

Não se trata disso. A humildade está<br />

presente na verdade, e na oração<br />

não pode haver mentiras. O Profeta<br />

Daniel, realmente, se dirige a Deus<br />

em nome do povo judeu, carregado<br />

de pecados e prostrado por terra.<br />

27


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Esse povo judeu, prostrado pelo pecado,<br />

na condição de pecador, faz<br />

uma oração. Ele alega essa condição<br />

ao se apresentar ante Deus e<br />

é atendido.<br />

É uma oração tirada da<br />

Bíblia, inspirada pelo Espírito<br />

Santo. Assim, compreendemos<br />

quanta confiança<br />

também nós devemos ter.<br />

O pior do pecado é<br />

o desespero<br />

Santo Afonso de Ligório<br />

Há outro trecho, dessa<br />

vez tirado de São Mateus:<br />

Vinde a mim todos que<br />

andais em trabalho e vos<br />

achais carregados que eu<br />

vos aliviarei (Mt 11, 28).<br />

Segundo São Jerônimo,<br />

Santo Agostinho e outros, qual<br />

é essa categoria de gente que<br />

está em trabalhos?<br />

São os pecadores que têm algum<br />

pesar de ter cometido pecado.<br />

Esse é o sentido da palavra trabalho,<br />

neste contexto. É para esses pecadores<br />

que Nosso Senhor disse: “Vinde<br />

a mim que Eu vos aliviarei”.<br />

Quanta cordura e quanto amor ao<br />

pecador! Quanto desejo de atraí-lo!<br />

Que absurdo, que aberração comete<br />

o pecador se ele se desespera! O pior<br />

do pecado dele não é a falta, é o desespero.<br />

Enquanto ele conservar a<br />

confiança ele pode voltar, e há torrentes<br />

de razão para confiar.<br />

Outra citação, também muito interessante:<br />

“Não desejas — diz São João Crisóstomo<br />

dirigindo-se ao pecador — tanto<br />

a remissão de teus pecados quanto<br />

Deus deseja perdoar-te”.<br />

São João Crisóstomo, ao ver um<br />

pecador querendo sair do seu pecado<br />

lhe diz: “Deus deseja mais que tu<br />

te convertas, do que tu mesmo o desejas”.<br />

Compreende-se, portanto, quanta<br />

confiança deve ter um pecador quando<br />

ele pede sua conversão a Deus. Ele<br />

pede uma graça que o próprio Deus<br />

Se há lugar no<br />

mundo onde nós<br />

podemos ir, certos<br />

de não estarmos<br />

sobrando, é aos pés<br />

do Santíssimo<br />

Sacramento<br />

deseja mais do que ele. Como não<br />

ter toda a confiança?<br />

Importunidade, o principal<br />

requisito da oração<br />

Ainda São João Crisóstomo, ao<br />

comentar São Mateus, diz:<br />

“Não há o que não obtenhas pela<br />

oração, ainda que estejas carregado<br />

de mil pecados, contanto que a<br />

oração seja instante e contínua”<br />

(Hom. 23 in Matth.).<br />

Note-se bem que São João<br />

Crisóstomo é um dos grandes<br />

Doutores da Igreja.<br />

Sua frase condensa o que<br />

acima afirmávamos. “Não<br />

há o que não obtenhas pela<br />

oração”, diz ele. Ou seja,<br />

ele inclui tudo. “Ainda<br />

que estejas carregado de<br />

mil pecados...”, não de<br />

um só pecado.<br />

Para se obter o que se<br />

pede, a condição será ter<br />

firme propósito ou qualquer<br />

outra coisa? Não, não<br />

é. “Contanto que a oração<br />

seja instante e contínua”, não<br />

é necessário mais nada.<br />

É preciso ser importuno. A<br />

oração obtém tudo na medida<br />

em que é insistente, caso contrário<br />

não é boa oração. Mais claro não podia<br />

ser. Ou as palavras humanas não<br />

têm sentido, ou o sentido é esse.<br />

Mais adiante é citado um trecho<br />

de uma epístola de São Tiago:<br />

Se algum de vós necessita de sabedoria,<br />

peça-a a Deus, que a todos dá com<br />

abundância e não impropera (Tg 1, 5).<br />

Sabedoria é juízo, sabedoria é critério,<br />

sabedoria é conduzir-se bem, é<br />

não ter algum dos defeitos que levam<br />

ao pecado. Se alguém precisa disso,<br />

peça. Deus dá com abundância a qualquer<br />

um que pede.<br />

Como Deus é generoso! Como Ele<br />

é misericordioso! E como é taxativo!<br />

“Se alguém precisar, peça, Eu darei”.<br />

Ou Deus não existe, ou Ele é<br />

mentiroso, ou isso é verdade. Não há<br />

outra alternativa.<br />

Santo Afonso se pergunta o que<br />

querem dizer estas palavras: “Deus<br />

dá com abundância e não impropera”.<br />

Citando mais uma vez São João<br />

Crisóstomo em abono de suas teses,<br />

ele explica que os poderosos da Ter-<br />

28


a, quando se lhes pede algo, não dão<br />

com abundância e ainda por cima improperam.<br />

É bem verdade. Quando dão, dão<br />

pouco e de má vontade. Com Deus é<br />

diferente. Deus não impropera quando<br />

se Lhe pede. Santo Afonso demonstra<br />

que Deus impropera quando<br />

não se lhe pede. O que O ofende<br />

— contrariamente ao que se dá com<br />

os homens — é não ser importuno<br />

com Ele. Sendo importunos não O<br />

ofendemos, mas Lhe somos agradáveis.<br />

Esta é a realidade.<br />

Deus nunca nos acha<br />

“cacetes”<br />

Meu avô costumava dizer o seguinte<br />

à minha mãe, que rezava muito:<br />

— Deus deve te achar muito cacete,<br />

embora você seja uma boa menina.<br />

Porque até eu, que te quero tanto<br />

bem, se você falasse tanto comigo<br />

como fala com Deus, acabava te mandando<br />

embora e te achando cacete.<br />

E assim eu também acho que você<br />

deveria rezar menos.<br />

É o contrário! Deus nunca nos julga<br />

cacetes. Se há lugar no mundo onde<br />

nós podemos ir, certos de não estarmos<br />

sobrando, é aos pés do Santíssimo<br />

Sacramento. E onde haja uma<br />

imagem de Nossa Senhora, ali somos<br />

sempre bem recebidos, ainda que nos<br />

consideremos os piores mulambos da<br />

Terra. Em todos os outros lugares, não<br />

devemos ter dúvida nenhuma, sempre<br />

há uma determinada situação na<br />

qual nós podemos ser cacetes aos<br />

olhos de alguém.<br />

E o melhor argumento nessa linha,<br />

talvez sejam estas palavras do Evangelho<br />

de São Lucas:<br />

“Se vós, sendo maus, sabeis dar boas<br />

dádivas a vossos filhos, quanto mais<br />

vosso Pai celestial dará espírito bom<br />

aos que lho pedem” (Lc 11, 13).<br />

Se um homem qualquer sabe dar<br />

um bom presente quando o filho pede,<br />

podemos acaso conceber que<br />

Deus, quando Lhe pedimos o bom<br />

espírito, não nos atenda? Certamente<br />

atenderá! É questão de pedirmos.<br />

Nos períodos melhores,<br />

pedir graças para suportar<br />

os piores<br />

Há um ponto que eu tenho muito<br />

empenho em desenvolver: é o problema<br />

da oração de quem está em estado<br />

de graça para não cair em pecado.<br />

Santo Afonso mostra o seguinte:<br />

quem está nas alturas, animado, deve<br />

rezar pedindo graças para quando<br />

estiver na provação e no desânimo.<br />

Porque é quando este sobrevém que<br />

se corre o risco de rezar menos.<br />

O desânimo congela<br />

a vida espiritual de<br />

uma pessoa,<br />

diminuindo nela a<br />

coragem e a<br />

resolução de rezar<br />

O desânimo é um estado de alma<br />

que congela toda a vida espiritual de<br />

uma pessoa, e no qual a coragem e a<br />

resolução de rezar minguam.<br />

Deve-se fazer provisão de orações<br />

para quando vier o desânimo. Isso de<br />

dizer “eu rezo quando estiver tentado”,<br />

é mais ou menos como quem<br />

acha que vai converter-se quando estiver<br />

para morrer.<br />

No momento da agonia a pessoa<br />

estará pensando no pé que está doendo,<br />

no coração que está parando, na<br />

vista que já não está enxergando a<br />

não ser à curta distância. Ela estará<br />

vendo a morte se aproximar e estará<br />

pensando no próprio corpo. Não estará<br />

pensando na alma, ou terá muita<br />

dificuldade em pensar nela, e por<br />

isso quando se está saudável deve-se<br />

rezar pela hora da morte.<br />

O mesmo se dá conosco, quando<br />

estamos bem na vida espiritual. Devemos<br />

nessa hora rezar pedindo proteção<br />

para o momento em que vierem<br />

as tentações, pois não há homens invulneráveis<br />

em matéria de vida espiritual.<br />

E eu tenho visto diminuir o brilho<br />

das estrelas no céu!... Não quero dizer<br />

apagar-se, mas passar por temporárias<br />

eclipses. Ou porque, de repente,<br />

a pessoa é afligida por um vendaval<br />

tremendo e reage estupidamente,<br />

com uma brutalidade idiota; ou então<br />

é uma dúvida que começa a surgir,<br />

e ela pensa: se houver isto haverá<br />

aquilo, se houver aquilo haverá mais<br />

aquilo, e eu farei não sei o quê, e de<br />

repente se apega a algo a que não<br />

deveria apegar-se, e quando se vai<br />

tentar ajudar, já é tarde.<br />

Nesta hora, chegar junto de alguém<br />

e dizer: “Agora reze!”... É necessário!<br />

Mas não seria muito melhor se a<br />

pessoa tivesse aproveitado a hora do<br />

fervor para rezar?<br />

É muito ruim ser olímpico na hora<br />

em que se está num auge de vida<br />

espiritual. Devemos, isso sim, nessas<br />

horas, armazenar cargas de oração.<br />

Santo Afonso menciona um texto<br />

do Concílio de Trento (seção 6ª cap.<br />

XIII):<br />

“Não se pode obter essa graça senão<br />

d’Aquele que tem poder de conservar<br />

a quem está de pé, de sorte que persevere<br />

com fé” (Seção 6ª cap. XIII).<br />

Quem está de pé deve pedir perseverança<br />

Àquele que o conserva neste<br />

estado. O que é mais importante:<br />

rezar para nos levantarmos quando<br />

já tivermos caído, ou rezar para não<br />

cair quando estamos de pé? Evidentemente,<br />

o segundo tipo de oração é<br />

o mais importante: rezar para não<br />

cairmos.<br />

Ele menciona também outro trecho<br />

do Concílio de Trento, no qual é<br />

citado Santo Agostinho:<br />

“Esse dom de Deus, a perseverança,<br />

pode merecer-se suplicando, isto é,<br />

29


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

se pode conseguir pela oração” (De<br />

don. persev., c. 6.).<br />

Se nós queremos perseverar, por<br />

mais firmes que nos sintamos, peçamos<br />

essa graça da perseverança.<br />

Recorrendo à autoridade de São<br />

Tomás, Santo Afonso cita a seguinte<br />

afirmação do Doutor Angélico.<br />

“Depois do batismo, é necessário ao<br />

homem a oração contínua para ele poder<br />

entrar no céu”.<br />

Depois do batismo, quando todos<br />

os pecados do homem foram apagados<br />

por virtude desse sacramento, o<br />

que é preciso? Oração contínua! Não<br />

há o que justifique o não rezar.<br />

Outra citação interessante:<br />

“Vigiai, pois, e orai em todo o tempo<br />

a fim de que vos torneis dignos de<br />

evitar todos esses males que têm de suceder<br />

— quer dizer, as tentações — e de<br />

vos apresentardes com confiança diante<br />

do Filho do Homem” (Lc 21, 36).<br />

Portanto, não é sempre no tempo<br />

mau, mas em todo o tempo.<br />

Se quisermos entrar<br />

no Céu, cumpre<br />

que nossa oração<br />

seja contínua; nada<br />

há que justifique<br />

o não rezar<br />

O mesmo diz o Eclesiastes:<br />

“Nenhuma coisa te impeça de orar<br />

sempre” (Ecl 18, 22).<br />

Não há razão para não estarmos<br />

rezando sempre.<br />

Outra frase, dessa vez de Tobias:<br />

“Bendize a Deus todo o tempo e<br />

pede-lhe que dirija os teus caminhos”<br />

(Tob 4, 20).<br />

Todo o tempo, quer dizer, no tempo<br />

bom também.<br />

Ainda, numa epístola de São Paulo:<br />

“Orai sem intermissão” (1 Tes 5, 17).<br />

Não é, portanto, com as intermissões<br />

do tempo de virtude.<br />

Outra é da Epístola<br />

de São Paulo<br />

aos Colossenses:<br />

“Perseverai na<br />

oração, velando nela<br />

com ação de graças”<br />

(Col 4, 12).<br />

Perseverai sempre<br />

na oração. Não é só<br />

quando se está em<br />

pecado, ou se está<br />

sem pecado, mas é<br />

sempre.<br />

Também na Epístola<br />

a Timóteo:<br />

“Quero pois que os homens<br />

orem em todo o lugar”<br />

(1 Tim 2, 8).<br />

E o próprio Santo Afonso de Ligório<br />

comenta:<br />

Muitos pecadores com o auxílio da<br />

graça chegam a converter-se a Deus e<br />

a receber o perdão; mas, porque deixam<br />

depois de pedir a perseverança, tornam<br />

a cair e perdem tudo.<br />

Ou seja, a pessoa chegou, com a<br />

graça, a emendar-se, mas depois não<br />

pediu a sua própria perseverança. Não<br />

pediu, logo perdeu. Então, quando<br />

se está em dificuldade é preciso lembrar-se<br />

disso, e rezar para conseguir<br />

a perseverança. E quando se vai bem<br />

na vida espiritual, é de uma importância<br />

capital ter essa humildade, esse<br />

medo de cair e implorar a graça da<br />

perseverança.<br />

No Padre Nosso, Deus nos<br />

ensina a pedir a<br />

perseverança<br />

E, por fim, temos a petição do<br />

Padre-Nosso: “Não nos deixeis cair<br />

em tentação”.<br />

É súplica para, na hora da tentação,<br />

eu ter o suprimento necessário do que<br />

eu pedi quando não estava tentado.<br />

Nosso Senhor ao formular a oração<br />

perfeita estabeleceu, exatamente, esse<br />

pedido de não sermos abandonados<br />

no momento da tentação.<br />

Este momento é tremendo. É como<br />

um turbilhão pavoroso, ou como<br />

uma idéia das mais sedutoras. Nessa<br />

hora a pessoa já está, às vezes, quase<br />

impossibilitada de rezar.<br />

Dois conselhos valiosos<br />

Por isso recomendo duas coisas:<br />

Primeiro, incluir na nossa rotina<br />

uma oração para que Deus nos conserve<br />

numa perseverança perfeita.<br />

Em segundo lugar, assegurarmonos<br />

de uma outra forma, ou seja, pedindo<br />

que se celebrem missas e que<br />

se façam orações em conventos, por<br />

nós.


Deus já estabeleceu que haja freiras,<br />

religiosos contemplativos, para recitarem<br />

as orações que nós não podemos<br />

fazer. Por que não nos munirmos<br />

desses recursos incomparáveis?<br />

Se desconfiamos que não somos capazes<br />

de rezar bastante, por que não<br />

recorrer às orações de outrem? Mas,<br />

estas práticas devem constituir uma<br />

rotina, sobretudo quando se está em<br />

perigo, em situações difíceis, mas também<br />

quando se está em situações<br />

boas. Não há recurso melhor do que<br />

recorrer às orações de uma religiosa,<br />

para ter uma alma que carregue a cruz<br />

Devemos pedir o<br />

auxílio das orações<br />

de freiras e religiosos<br />

contemplativos;<br />

sobretudo, importa<br />

recorrermos à<br />

infalível intercessão<br />

da Santíssima Virgem<br />

em nosso favor<br />

conosco, e nos ajude a levar aquilo<br />

que pesa demais para nós.<br />

Mas a melhor pessoa para rezar<br />

por nós, já sabemos, é Nossa Senhora.<br />

Devemos pedir muito à Santíssima<br />

Virgem. O alfa e o ômega de tudo<br />

isso é a oração d’Ela e a oração a Ela.<br />

Nossa Senhora nos concederá tudo<br />

de que temos necessidade.<br />

1 Santo Afonso Maria de Ligório, A<br />

Oração, o Grande Meio da Salvação,<br />

Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1956,<br />

3ª edição, págs. 90 e 91.<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Espelhos da<br />

quintessência divina<br />

Ao lado da bonomia e da doçura de viver que fazem<br />

dele um dos encantos desta terra de exílio,<br />

envolto por uma natureza risonha, bela e<br />

amiga, que parece cantar ao som das célebres melodias dos<br />

seus gênios musicais, o povo austríaco se caracteriza de<br />

modo muito particular pela grandeza de alma com que<br />

conserva os esplendores aristocráticos herdados de seu<br />

passado.<br />

Como nostálgica dos gloriosos dias da monarquia dos<br />

Habsburgs, a pompa imperial ainda lateja em muitos monumentos,<br />

edifícios, costumes e instituições dessa Áustria<br />

que não nos cansamos de admirar.<br />

Palácio de<br />

Schoenbrunn<br />

32


Castelo do<br />

Belvedere<br />

Por exemplo, o Castelo do Belvedere ou o Palácio de<br />

Schoenbrunn, construções de linhas clássicas e majestosas,<br />

refletindo-se plácida e feericamente nos seus bassins,<br />

evocam a Viena das galas e requintes do Ancien Régime.<br />

Mais recuado no tempo, o Paço Municipal da metrópole<br />

austríaca ostenta sua magnífica arquitetura gótica,<br />

podendo ser contemplado através de folhagens tingidas<br />

de um verde delicado e bonito, circundado por canteiros<br />

em que flores variegadas abrem suas lindas pétalas para<br />

receberem as gotas de água que respigam de elegantes<br />

chafarizes. No secular edifício nota-se toda a força e leveza<br />

do gótico: nas torres erguidas sem dificuldades para o<br />

céu, nas janelas e arcarias ogivais, na beleza do teto, na<br />

nobreza das pedras e em muitos outros de seus extraordinários<br />

aspectos.<br />

O que há de velho e perene no prédio é harmonicamente<br />

completado pelo que há de novo e fresco em toda<br />

a vegetação e nos jorros de água ao redor dele. Enfim,<br />

Detalhe da<br />

fachada de<br />

Schoenbrunn<br />

poder-se-ia mesmo adorná-lo com este título: “Tradição<br />

sempre viva”...<br />

Mencionemos também a Hofburg, contemporânea, no<br />

seu estilo, do Belvedere e de Schoenbrunn, marcada de<br />

maneira especial pela presença de dois soberanos que,<br />

jovens, mais pareciam personagens de um conto de Fadas.<br />

Apesar dos seus defeitos e frivolidades para os quais<br />

não se deve fechar os olhos, Francisco José e a Imperatriz<br />

Elizabeth — a legendária Sissi — eram entretanto<br />

símbolos vivos do que a Civilização Cristã havia engendrado<br />

de mais excelente. Daí terem escrito uma das páginas<br />

imorredouras da história austríaca.<br />

Daí, igualmente, o aroma de suas personalidades arquetípicas<br />

ainda se fazer sentir naquele esplêndido edifício<br />

imperial, impregnando os salões que se sucedem de<br />

modo agradável e acolhedor, iluminados ora pela luz intensa<br />

que atravessa suas largas janelas, ora pela incidência<br />

tamisada dos raios de sol contidos por delicados voiles.<br />

Vastos espaços ornamentados com móveis nas cores<br />

austríacas — vermelho, branco e dourado —, harmonizando-se<br />

belamente com o ouro das molduras, das boiseries,<br />

das pinturas que cobrem seus tetos.<br />

Os assoalhos são verdadeiros mosaicos de madeira, engenhosamente<br />

traçados, formando lindo conjunto com a<br />

suntuosidade dos salões ou com a simplicidade e o bom<br />

gosto de muitas daquelas salas, apenas com suas mesas de<br />

tampo envernizado, uns poucos vasos, algumas cadeiras,<br />

castiçais dourados e, a um canto, o aquecedor revestido de<br />

porcelana branca com apliques folheados a ouro.<br />

Nada é excessivo, nada sobrecarregado nem empetecado.<br />

Nos salões mais freqüentados pela Im-<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

o olhar dos personagens estáticos nas telas imensas que<br />

dominam as paredes. Quadros de tonalidades profundas,<br />

contrastando com aquilo que a sala poderia ter de etéreo<br />

e ligeiro, e lhe conferindo, por isso mesmo, a gravidade<br />

mais condizente à majestade imperial.<br />

Imagine-se uma orquestra tocando numa sala vizinha,<br />

de maneira que os seus sons harmônicos tornassem ainda<br />

mais agradável o banquete, enquanto os servidores enchiam<br />

as taças com um vinho capitoso do Reno e guarneciam<br />

os pratos com incomparáveis pâtisseries vienenses<br />

— e então nos é dado compreender que esplendor se reunia<br />

nesta sala!<br />

*<br />

Cumpre considerar como essas belezas nos falam de<br />

um poder régio, augusto, tão seguro de si que pode viver<br />

na alegria de ser o que é. Ao mesmo tempo, um poder<br />

que se encontra nas mãos de gente ultracivilizada, ultraquintessenciada,<br />

a quem fica bem a prática de todas a<br />

virtudes. Trata-se, pois, de uma forma de majestade que<br />

não é apenas o mando, mas o direito de governar por causa<br />

da posse de qualidades super-eminentes, entre as quais<br />

os predicados morais devem ter a primazia absoluta.<br />

Acima, o Paço Municipal de Viena;<br />

à direita, salão da Hofburg<br />

peratriz domina qualquer coisa de graça feminina, distinta,<br />

suave, com ornamentos bem apropriados e lustres que<br />

dão quase a idéia de uma flor de cristal suspensa ao<br />

teto... Facilmente imaginamos ali a delicada soberana,<br />

num daqueles momentos informais em que ela recebia<br />

suas amigas para o chá da tarde ou para conversar na intimidade<br />

com seu esposo, o Imperador. Este também<br />

tinha seus salões reservados, com decorações mais adequadas<br />

ao gosto masculino, sóbrias, com molduras menos<br />

trabalhadas, lustres menos floridos e o dourado mais<br />

discreto.<br />

Graça, aconchego, sobridade e majestade que iam se<br />

reunir, todas, na sala dos grandes banquetes que o casal<br />

imperial oferecia a monarcas, dignitários e personalidades<br />

da Europa e do resto do mundo. Acomodados nas cadeiras<br />

de veludo vermelho, sentavam-se à mesa reis e rainhas,<br />

ministros e chefes de Estado, cardeais e bispos, diplomatas<br />

e altas patentes militares, nos seus trajes suntuosos<br />

realçados por alamares, jóias e condecorações. A refeição<br />

solene transcorria à luz das velas cintilando em candelabros<br />

de ouro e nos imponentes lustres de cristal, sob<br />

34


E nisso vemos um reflexo da própria majestade de Deus<br />

imersa na segurança eterna de sua felicidade perpétua,<br />

inteiramente garantida na despreocupação e na alegria<br />

perfeitas do Céu.<br />

Em suma, a contemplação desses esplendores nos deve<br />

fazer pensar no tipo humano para o qual eles foram feitos.<br />

Esse tipo humano atrai a nossa atenção para a superioridade<br />

que foram chamados a representar. E esta superioridade,<br />

por sua vez, deve elevar nosso pensamento até<br />

Deus, criador e fonte de todas as majestades e belezas. !<br />

Imperador<br />

Francisco José e a<br />

Imperatriz Sissi<br />

A grande sala de jantar e outras<br />

dependências da Hofburg<br />

35


O arqui-vitral<br />

“A Virgem e<br />

o Menino”,<br />

França,<br />

séc. XIII<br />

S<br />

e os maravilhosos vitrais das catedrais góticas<br />

tanto nos deixam enlevados e admirados, incomparavelmente<br />

mais nos deve arrebatar o<br />

arqui-vitral, o vitral inimaginável, o primeiro, que é<br />

o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, concebido<br />

sem pecado original e através do qual reluz, inteiro,<br />

o divino Sol de Justiça!<br />

Pela Santíssima Virgem, cheia de graça, passam todos<br />

os dons de Deus, iluminando-a de fulgores e cintilações<br />

inexcedíveis. Ela é, na verdade, o esplendoroso<br />

vitral que filtra para os homens este convite: “Vinde,<br />

subi, penetrai em mim, e eu vos mostrarei outros horizontes<br />

e vos levarei para outros céus. Não aqueles que o<br />

olhar procura, mas os céus e horizontes que Deus revela<br />

aos eleitos de sua misericórdia...”

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