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O menino e o mar
“Nascimento<br />
da Virgem”,<br />
Espanha,<br />
séc. XV<br />
Se o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo já representava a aurora da salvação do gênero humano, o<br />
mesmo se pode afirmar, de certo modo, da natividade de Nossa Senhora. Com efeito, tudo quanto Jesus<br />
trouxe ao mundo, começou a nos chegar com o nascimento d’Aquela que seria sua Mãe Santíssima.<br />
Compreende-se, pois, todas as esperanças de salvação, de indulgência, de reconciliação, de redenção e<br />
de misericórdia que se abriram, afinal, para os homens, naquele bendito dia em que Maria surgiu nesta terra de<br />
exílio. Feliz e magnífico dia, marco inicial de uma existência insondavelmente perfeita, pura, fiel, e que seria a<br />
maior glória da humanidade em todos os tempos, abaixo daquela que devemos à Encarnação do Verbo.
Sumário<br />
Na capa, o<br />
menino <strong>Plinio</strong><br />
aos 10 anos<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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4<br />
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36<br />
EDITORIAL<br />
O Doce nome de Maria sempre em seus lábios<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Setembro de 1942:<br />
Um preito de homenagem a Pio XII<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Glorifiquemos a Cruz com ufania!<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Um povo à altura do Cruzeiro do Sul<br />
DONA LUCILIA<br />
“Onde vai meu coração, vai você dentro...”<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
O menino e o mar<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Nossa Senhora das dores<br />
e o amor à incomodidade<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Deus ama a oração importuna<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Espelhos da quintessência divina<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
O arqui-vitral<br />
3
Editorial<br />
O Doce nome de Maria sempre em seus lábios<br />
AIgreja venera na sua liturgia do dia 12 de<br />
setembro o Doce Nome de Maria. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
costumava lembrar com saudade e emoção<br />
as estrofes do hino que entoava com os Congregados<br />
Marianos, ao final dos Salmos do Nome de<br />
Maria:<br />
Si quaeris caelum, anima<br />
Mariae nomen invoca<br />
Mariam invocantibus<br />
Caelestis patet ianua.<br />
Se procuras o Céu, ó alma,<br />
invoca o nome de Maria;<br />
para os que invocam Maria,<br />
abre-se a porta do Céu.<br />
Na verdade, o doce nome da Rainha jamais abandonou<br />
seus lábios. “Jesus” e “Maria” foram as duas<br />
primeiras palavras que aprendeu de Da. Lucilia, antes<br />
mesmo de saber falar “Papai” e “Mamãe”.<br />
Maria.... Ele pronunciava esse nome incontáveis<br />
vezes por dia: nos mistérios do Rosário, nos já mencionados<br />
salmos que começam com as letras desse celestial<br />
Nome, no Lembrai-vos, nas jaculatórias... Quantas<br />
e quantas vezes o utilizava para ensinar a seus filhos<br />
espirituais a via de ouro que conduz ao Coração<br />
de Jesus, que é a devoção a Maria!<br />
Na conclusão de sua momentosa Encíclica sobre<br />
o Rosário, João Paulo II cita o belo trecho do Bemaventurado<br />
Bartolo Longo:<br />
“E a última palavra dos nossos lábios há-de ser o<br />
vosso nome suave, ó Rainha do Rosário de Pompéia,<br />
ó nossa Mãe querida, ó Refúgio dos pecadores, ó Soberana<br />
consoladora dos tristes. Sede bendita em todo<br />
o lado, hoje e sempre, na terra e no céu” (Rosarium Virginis<br />
Mariae, n. 43)<br />
Quatro dias antes de enaltecer o Nome de Maria,<br />
a Igreja celebra a Natividade da Santíssima Virgem.<br />
Que misericórdia para o mundo, seu nascimento!<br />
A esse respeito comentava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>: Nossa Senhora<br />
trazia consigo todas as riquezas naturais que dentro de<br />
uma mulher possam caber. Nosso Senhor deu a Ela, se-<br />
gundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima,<br />
preciosíssima, valiosíssima. E a esse título, a presença<br />
d’Ela entre os homens representava um tesouro<br />
verdadeiramente incalculável!<br />
A denúncia profética, publicada neste número, reproduz<br />
uma conferência de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> por ocasião de<br />
uma celebração da festa da Exaltação da Santa Cruz<br />
(14 de setembro). A Cruz, que marcou profundamente<br />
a vida de Nosso Senhor é o símbolo que distingue<br />
o cristão, é sua condecoração, seu prêmio e sua<br />
glória, e não algo do qual ele se envergonha ou do<br />
qual deva fugir...<br />
No dia seguinte à festa da Exaltação da Santa Cruz,<br />
o calendário celebra Nossa Senhora das Dores. Os<br />
comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre essa data concluem<br />
o itinerário litúrgico de setembro que nos propussemos<br />
nesta edição . A liturgia é o alimento dos fiéis, e<br />
nosso intuito é de fomentar, como de costume com<br />
textos plinianos, a atitude tão louvada pelos Papas, de<br />
viver as datas da Igreja como parte integrante de nossa<br />
vida.<br />
Continuamos neste número a série de narrações<br />
auto-biográficas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> relativas a sua infância<br />
e primeira juventude. No número de agosto, nos<br />
despedíramos dele numa praia de Santos, olhando o<br />
mar e pensando...<br />
Sentado no extremo da amurada de pedras que penetrava<br />
mar adentro, em meio ao murmúrio incessante<br />
das ondas que a investiam e eram rechaçadas, o menino<br />
<strong>Plinio</strong> contemplava e meditava sobre as belezas<br />
da Criação e de seu autor, contrapondo-as aos erros<br />
e horrores de sua época. Encantava-se com a Igreja...<br />
e esse amor à esposa de Cristo lhe infundia luzes e critério<br />
para julgar todas as coisas com sabedoria.<br />
Ela era a sua bússola no mar tempestuoso do século<br />
XX.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Setembro de 1942:<br />
Um preito de homenagem a Pio XII<br />
sobre o Congresso Eucarístico”, in-<br />
“Ainda<br />
titula-se o artigo publicado a 27 de setembro<br />
de 1942 no “Legionário”. Voltamos<br />
uma vez mais a esse Congresso Eucarístico<br />
onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve notável participação, conforme<br />
vimos em números anteriores, para transcrever este<br />
excerto dedicado ao Papa Pio XII, na ocasião<br />
em que, através das ondas da Radio Vaticana, dirigiu-se,<br />
em português, à multidão de brasileiros reunidos<br />
nesse Congresso.<br />
O Santo Padre ocupa, na piedade católica, uma<br />
posição tão central e tão relevante que, de modo<br />
algum, pode deixar de nos interessar altamente<br />
tudo quanto diga respeito à intensificação dos<br />
sentimentos que lhe devem tributar os fiéis. [...]<br />
[Assim sendo,] foi intensa a emoção quando a<br />
saudação “Louvado seja Jesus Cristo!” anunciou<br />
que o Santo Padre ia começar a falar.<br />
Infelizmente, as condições atmosféricas não<br />
permitiram uma irradiação clara. Por isto, se bem<br />
que o Santo Padre falasse em nosso idioma, para a<br />
grande maioria das pessoas tornou-se dificílimo<br />
entender o que dizia. Mas precisamente aí esteve<br />
uma das mais belas notas do Congresso. Não<br />
se ouvia a palavra do Papa, mas entendia-se nítida<br />
a voz paternal e amavelmente grave do Sumo<br />
Pontífice. Tanto bastou para que aquelas centenas<br />
de milhares de pessoas se conservassem em um<br />
silêncio verdadeiramente impressionante, para recolher<br />
no coração, afetuosamente, meticulosamente,<br />
uma a uma todas as vibrações daquela voz que<br />
vinha da Roma Eterna, e era um eco fiel da própria<br />
voz do Divino Mestre. Foram longos e deleitosos<br />
minutos de um recolhimento empolgante.<br />
O mais eloqüente dos oradores, o que melhor se<br />
fizesse ouvir e compreender pelas massas, não<br />
poderia lograr, nem silêncio maior, nem atenção<br />
tão grande. Na imensa praça do Congresso, todos<br />
rezavam, meditavam ou se recolhiam enquanto<br />
o Papa falava. E quando, finalmente, Sua Santidade<br />
anunciou a bênção apostólica, foi um espetáculo<br />
emocionante ver-se todo aquele povo, tendo<br />
à testa as autoridades eclesiásticas, civis e militares,<br />
ajoelhar-se instantaneamente, para receber<br />
com profundo respeito a bênção do Pontífice.<br />
Seria impossível uma mais eloqüente manifestação<br />
de Fé, Fé viva e profunda, no Primado de<br />
São Pedro e na Infalibilidade do Papa, do que a que<br />
deu o povo, nesta grande e Gloriosa solenidade.<br />
Pela segunda vez, o Santo Padre Pio XII, sabidamente<br />
um poliglota, dirigindo-se aos brasileiros,<br />
se serve de nosso idioma. Com isto, indica o Sumo<br />
Pontífice o agrado especial com que tem os<br />
seus filhos de língua portuguesa e, ao mesmo tempo,<br />
afirma de modo muitíssimo oportuno a universalidade<br />
da Igreja.<br />
Aspecto do IV Congresso Eucarístico Nacional, realizado no Vale do Anhangabaú, em São Paulo<br />
5
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Glorifiquemos a Cruz<br />
com ufania!
D<br />
r. <strong>Plinio</strong> nunca deixou de denunciar um catolicismo sentimental<br />
que se afasta da Cruz, pretendendo que os cristãos vivam<br />
uma vida de langor que não segue as vias do Divino Mestre. A<br />
festa da Exaltação da Santa Cruz, comemorada a 14 de setembro, deulhe<br />
certa feita o ensejo para uma dessas importantes admoestações.<br />
Acruz era um instrumento de suplício, usado na<br />
antiguidade, que representava uma ignomínia<br />
para toda pessoa que fosse crucificada. Era<br />
uma vergonha tanto para o sentenciado como para sua<br />
família.<br />
Os cidadãos romanos não eram sujeitos à crucifixão,<br />
por isso São Paulo, tendo direito às honras de cidadão romano,<br />
foi em seu martírio decapitado e não crucificado.<br />
causa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não há um só católico<br />
bom que não tenha sido humilhado por causa de sua<br />
fidelidade a Nosso Senhor. Mas isso é uma honra, é exatamente<br />
uma das bem-aventuranças: ser perseguido por<br />
amor a Jesus Cristo.<br />
Nós, católicos, sofremos essas humilhações e havemos<br />
de sofrê-las até o fim do mundo, porque a impiedade<br />
nunca cessará de ultrajar a Deus.<br />
A cruz representou o auge de todas<br />
humilhações sofridas por Nosso Senhor<br />
Nosso Senhor recebeu tremendas humilhações durante<br />
sua vida terrena. Essas correspondiam a um ódio<br />
crescente contra ele, e desfecharam na maior de todas as<br />
humilhações possíveis, que foi o sacrifício da Cruz.<br />
Durante a Paixão,<br />
a intenção de humilhar<br />
a Nosso Senhor<br />
ficou evidente, por<br />
exemplo, na coroação<br />
de espinhos, na túnica<br />
de irrisão com que<br />
O cobriram e na cana<br />
que lhe puseram na<br />
mão à guisa de cetro.<br />
As pessoas que O maltratavam revelavam o desejo de<br />
atormentá-Lo na sua Alma Santíssima, e não apenas no<br />
seu Corpo Puríssimo.<br />
Sendo por fim crucificado, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
sofreu uma humilhação tremenda, pois com esse tipo de<br />
morte proclamava-se que Ele era um bandido, um ladrão,<br />
do mesmo gênero que os dois outros facínoras com os<br />
quais Ele foi crucificado.<br />
E é neste sentido que a cruz não foi uma humilhação a<br />
mais, mas foi o auge de todas as outras humilhações que<br />
Ele sofreu durante a sua existência terrena.<br />
A cruz inaugurou também todas as humilhações que<br />
até o fim do mundo os católicos haveriam de sofrer por<br />
Símbolo de glória, para reivindicar a honra<br />
de Jesus Cristo<br />
Três manifestações dos tempos de<br />
fé: a Cruz colocada no alto das<br />
coroas; a cruz como sinal heráldico<br />
das famílias nobres; a Cruz como<br />
insígnia das condecorações<br />
Mas a honra de Deus, a honra de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo foi reivindicada pela Igreja. Os católicos adotaram<br />
a Cruz como um símbolo de glória, como o símbolo de<br />
quanto há de mais sagrado e santo, e assim tivemos as<br />
três manifestações características<br />
dos tempos<br />
de Fé: a Cruz colocada<br />
no alto das coroas;<br />
a Cruz como sinal<br />
heráldico dos mais<br />
nobres galardões das<br />
famílias da alta aristocracia<br />
e a Cruz colocada<br />
como insígnia<br />
das condecorações.<br />
Foi uma exaltação da Cruz o que se deu, para revidar<br />
aquela humilhação, e revidá-la com ufania cavalheiresca,<br />
com ufania sobrenatural.<br />
A honra consiste em receber a humilhação<br />
com ufania<br />
O aparecimento da Cruz a Constantino na Ponte Mílvia<br />
e a promessa: “Com este sinal vencerás!”, significava<br />
isto: a Cruz se levantava no céu e ia definitivamente se<br />
incorporar ao horizonte do mundo, humilhando por sua<br />
vez os ímpios e os demônios.<br />
7
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
E ao mesmo tempo, a Cruz passaria a ser o sinal da<br />
honra dos católicos.<br />
Nossa honra não consiste em não sermos humilhados,<br />
mas consiste em receber<br />
a humilhação<br />
com ufania, gabando-se<br />
da humilhação<br />
e, mais ainda, com espírito<br />
de desafio. Em<br />
face daqueles que<br />
nos humilham, nós revidamos como cavalheiros e proclamamos<br />
com ufania ainda maior a Cruz de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
A exaltação é a proclamação da glória da<br />
Cruz com ufania<br />
Exaltação é propriamente isto: é a proclamação da glória<br />
da Cruz, com tal ufania que aniquila as humilhações que o<br />
adversário procura mover contra Cristo. Daí vem a palavra<br />
exaltar. Exaltare, de ex (em direção a) e altus (alto), levar<br />
para o alto, ou seja, pôr no alto aquilo que estava humilhado,<br />
que estava rebaixado.<br />
A exaltação da<br />
cruz é a glorificação<br />
da Cruz de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
A causa de Deus<br />
precisa ser defendida<br />
com espírito de Cavalaria. Portanto, se alguém injuria a<br />
Cruz diante de nós, devemos redargüir com energia. Porém,<br />
não como quem defende a própria honra, porque honra<br />
pessoal é coisa muito insignificante, mas como quem<br />
defende a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
O amor pela contínua exaltação da Cruz, com esta espécie<br />
de espírito de cavaleiro, que está lutando continuamente<br />
pela glória da Cruz, é a graça que devemos pedir<br />
na festa da Exaltação da Santa Cruz. !<br />
A causa de Deus precisa ser defendida<br />
com energia, como quem defende a<br />
honra de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
8
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Um povo à<br />
altura do<br />
Cruzeiro do Sul<br />
D<br />
iscursando<br />
numa comemoração<br />
cívica, em novembro<br />
de 1976, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
traçou, com arrebatadora<br />
eloqüência,<br />
as perspectivas<br />
históricas nas quais<br />
o Brasil modelaria<br />
sua verdadeira<br />
magnitude.<br />
Brasileiros de um espírito patriótico, alertado<br />
e atualizado! Brasileiros movidos pelo<br />
espírito cristão, indissociável de toda alma<br />
verdadeiramente brasileira!<br />
Brasileiros aqui se congregam para afirmar perante<br />
o país que é bom pensar nas grandezas do futuro,<br />
9
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
que é necessário trabalhar para que o Brasil vá adiante no<br />
caminho de potência emergente que vai trilhando neste<br />
momento. Mais do que sonhar com um futuro grandioso,<br />
é preciso trabalhar para realizar e antecipar esse futuro.<br />
Mas isso não basta. É preciso também lutar!<br />
Porque a vida não é só feita de esperanças, a vida não<br />
é só feita de anelos: ela é feita também de riscos, ela é<br />
feita de aleivosias, ela é feita de perigos.<br />
E ai do varão, ai do chefe de família, ai do chefe de empresa,<br />
ai do chefe civil, militar ou eclesiástico, que não tenha<br />
os olhos igualmente abertos para esse aspecto da realidade:<br />
o “inimicus homo” de que nos fala a Escritura, que<br />
ronda em torno de cada homem, em torno de cada setor<br />
da atividade social, em torno de cada nação do mundo contemporâneo,<br />
pronto para se atirar sobre ela, no momento<br />
em que encontre condições favoráveis para isso.<br />
Atinge verdadeira grandeza o povo<br />
que une a luta ao trabalho<br />
Nesta circunstância é bem certo que importa pensar<br />
também no perigo.<br />
Mas, não me parece que o pensar no perigo e nos prepararmos<br />
para ele, o congregarmos e o concitarmos os nossos<br />
concidadãos a lutar contra ele, seja em algo dissociado<br />
das nobres preocupações da faina diária e da construção<br />
de um Brasil sempre maior.<br />
Pelo contrário, professor de História que sou — habituado<br />
desde minha remota juventude a me debruçar sobre<br />
os fatos históricos à procura das Leis com que Deus<br />
pauta a existência, o porvir dos povos, e neles inscreve os<br />
sinais de sua Misericórdia e de sua Justiça —, sempre me<br />
chamou a atenção um fato que tem a sua projeção sobre<br />
a realidade natural, até no mundo animal, e até mesmo<br />
no vegetal.<br />
Esse fato que a História ensina é o seguinte:<br />
Não é verdade que atinge a grandeza, a grandeza efetiva,<br />
a grandeza durável, a grandeza plena, aquele povo<br />
que apenas trabalhou pela sua própria grandeza<br />
A grandeza é atingida, sim, pelos povos que trabalham,<br />
não há dúvida. A Providência não quer, nem abençoa, povos<br />
que não trabalham.<br />
O Brasil será grande,<br />
à altura de nosso povo,<br />
de nosso território, à<br />
altura do Sinal da Cruz<br />
que está esculpido nos<br />
nossos céus!<br />
As naus portuguesas com o signo<br />
da Cruz aportam em território brasileiro<br />
(Museu Paulista da USP - São Paulo)<br />
10
Mas a grandeza verdadeira se adquire quando, ademais,<br />
o homem — tomando conhecimento desta regra de<br />
que ele encontrará em seu caminho o adversário a agredi-lo<br />
na justiça de suas vias e na santidade de seus propósitos<br />
—, prepara-se para a luta, enfrenta a luta, confia na<br />
Providência e vence nessa luta!<br />
Os povos que só são trabalhadores não chegam à verdadeira<br />
grandeza. Os povos só lutadores não alcançam a<br />
verdadeira grandeza.<br />
Os povos que sabem aliar a luta ao trabalho, fazendo do<br />
trabalho uma luta e da luta um trabalho, entregando-se<br />
operosamente à luta e ardorosamente ao trabalho; os<br />
povos que sabem unir esses dois aspectos de sua atividade,<br />
esses povos, sob o signo da Cruz, tornam-se verdadeiramente<br />
grandes.<br />
As intempéries, as dificuldades, quanto maiores, tanto<br />
mais preparam uma nação para a sua grandeza, quando<br />
ela é grande ao enfrentá-las.<br />
Pensando na grandeza do Brasil<br />
E então eu penso no nosso Brasil...<br />
No nosso Brasil de proporções continentais, habitado<br />
por um povo que — é bem verdade — a imigração tornou<br />
heterogêneo, mas que vai se amalgamando numa superior<br />
unidade de espírito, na qual a inteligência, a sutileza,<br />
a capacidade de trabalho e o desejo de progredir se<br />
afirmam dia a dia mais.<br />
Eu penso nesse país e nesse povo, e penso comigo:<br />
quando o Brasil tomar para si esse dever de aliar luta e<br />
trabalho, qual será a sua grandeza ?<br />
Ninguém poderá dizê-lo.<br />
Ele terá a grandeza de alma proporcionada ao vigor da<br />
luta que, no terreno psicológico como no terreno material,<br />
as circunstâncias lhe tenham imposto e ele saiba travar.<br />
Ele terá, ao mesmo tempo, a grandeza do seu território,<br />
a grandeza de sua riqueza. Ele será um povo de lutadores,<br />
que saberá como nunca trabalhar. Ele será um povo de trabalhadores<br />
que soube provar que é formidável na luta.<br />
Sobre ele, eterno, imutável, brilhará o Cruzeiro do Sul,<br />
que já Pedro Álvares Cabral viu quando as naus com o<br />
signo de Cristo vieram aportar em nosso território.<br />
E o Brasil de hoje, voltando o olhar para o Brasil de ontem,<br />
e voltando o olhar enlevado para o Brasil de amanhã,<br />
o Brasil de hoje, creio eu que, na afirmação uníssona de<br />
todos os nossos corações, poderá exclamar:<br />
“Vivemos dias amargos. Mas, pela graça de Deus, soubemos<br />
ser grandes, à altura de nosso povo, de nosso território,<br />
à altura do Sinal da Cruz que está esculpido nos<br />
nossos céus!” !<br />
11
DONA LUCILIA<br />
“Onde vai meu coração,<br />
vai você dentro...”<br />
Dona Lucilia em fins da década de 1950<br />
Aviagem de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pela<br />
Europa, em 1952, deu ensejo<br />
a uma tocante correspondência<br />
entre ele e Dª Lucilia, na<br />
qual transparecem o entranhado afeto<br />
filial, de um lado, e o não menos intenso<br />
carinho materno, de outro. Uma<br />
dessas cartas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, escrita da<br />
Cidade Eterna, extraviou-se e só chegou<br />
às mãos de Dª Lucilia muito tempo<br />
depois de terminada a viagem.<br />
Guardou-a com cuidado junto às demais,<br />
para as ler em horas de solidão.<br />
Eis seu teor:<br />
Roma, 27 de junho de 1952.<br />
Luzinha querida de meu coração,<br />
De acordo com meu telegrama, que<br />
a Sra. deve ter recebido ontem, cheguei<br />
de Paris no dia 26, chegando de avião<br />
a Roma depois de duas horas e pouco<br />
de viagem, durante a qual sobrevoamos<br />
a Suíça passando sobre o Lago de Genebra,<br />
os Alpes, e pois o imponentíssimo<br />
Monte Branco. No mesmo dia de<br />
nossa chegada, fomos à Basílica do Vaticano,<br />
onde tivemos a ocasião de rezar<br />
junto ao altar do Bem-aventurado<br />
Pio X, já agora exposto à veneração<br />
dos fiéis, junto ao altar de São Pedro, e<br />
junto ao de Nossa Senhora da Pietá,<br />
onde está exposta a famosíssima estátua<br />
de Michelangelo, representando<br />
Nossa Senhora com o Filho morto ao<br />
colo. Depois, ficamos na praça de São<br />
Pedro, vendo, medindo, examinando e<br />
comentando, até cair a noite. Finalmente,<br />
tomamos um carro puxado a cava-<br />
12
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> parte<br />
para uma de<br />
suas viagens.<br />
Abaixo: facsímile<br />
da carta<br />
de Dª Lucilia<br />
transcrita<br />
nesta página<br />
lo, e pelas vielas sinuosas e pitorescas<br />
da Roma antiga chegamos até as avenidas<br />
mais modernas, e por elas até o<br />
hotel. Na manhã seguinte, fomos receber<br />
a Sagrada Comunhão na Basílica.<br />
E, depois, começamos a trabalhar. Ontem,<br />
ficamos pondo em ordem papéis,<br />
pois os que havíamos trazido de São<br />
Paulo precisavam de uma revisão. Hoje,<br />
comecei os primeiros contatos, e estou<br />
reservando umas horas para a correspondência,<br />
enquanto o resto da turma<br />
vai concluindo o serviço de ordenação<br />
dos papéis. Conto ficar em Roma<br />
até 15 de julho, de lá seguindo para<br />
a Espanha. Deixei recomendação<br />
para me mandarem de Paris as cartas<br />
que eventualmente venham a ter no<br />
Regina. A temperatura aqui está asfixiante,<br />
mas a italianada parece achar<br />
tudo normal. Como Paris, também Roma<br />
está muito mais animada do que<br />
em 1950. Vê-se que as cicatrizes da última<br />
guerra estão desaparecendo. Mas<br />
assim mesmo há aqui dois milhões de<br />
desempregados!<br />
Saí muito satisfeito de Paris, não só<br />
pela cidade, superior a qualquer elogio,<br />
como ainda pelo resultado dos trabalhos<br />
que ali desenvolvi. Que Nossa Senhora<br />
me auxilie para que também aqui<br />
tudo corra bem.<br />
Meu amor, gostei muito de sua carta,<br />
com a narração circunstanciada de<br />
tudo quanto faz. Mande-me outra,<br />
igualmente BEM METICULOSA,<br />
pois, como sabe, para mim no que me<br />
interessa, faço questão de pormenores.<br />
Mas há um pormenor sobre o qual<br />
quero precisão absoluta: quantas horas<br />
tem dormido por noite, Mme. la<br />
Marquise?<br />
De Paris, enviei postais a toda a família.<br />
É bom saber se receberam.<br />
Como tenho muitíssimo trabalho<br />
diante de mim, vou encerrar. Não preciso<br />
dizer-lhe, querida, quantas saudades<br />
tenho da Senhora..... São inexprimíveis!<br />
A todo momento, lembrome<br />
de minha Manguinha do coração.<br />
E, sempre que me lembro dela, faço a<br />
seguinte reflexão: a LÚ me quer bastante<br />
bem para entender que o que eu<br />
mais quero dela é que cuide de sua<br />
própria saúde.<br />
Reze por mim, querida, e dê sua bênção<br />
a este filho que lhe quer tanto quanto<br />
pode, e menos do que a Sra. merece,<br />
e que lhe manda milhões e milhões<br />
de beijos.<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Amor às tradições<br />
européias<br />
Para uma saudosa e amorável mãe,<br />
as notícias do filho que se encontrava<br />
tão distante eram sempre poucas...<br />
Ela desejava mais, e não perdia<br />
oportunidade de aparesentar-lhe suave<br />
queixa nesse sentido,<br />
como o fez na carta que<br />
lhe escreveu no início de<br />
julho daquele ano.<br />
São Paulo, 9-VII-952<br />
Filho querido de meu coração!<br />
Ansiosa, esperava desde alguns dias<br />
ser contemplada com uma dessas dádivas<br />
preciosas que é a carta de um filho<br />
que me enche o coração de saudades.....<br />
e entretanto, nada, nem mesmo<br />
um postal. Parece incrível, mas por<br />
vezes, ponho-me a pensar que talvez o<br />
meu caboclo querido não esteja suportando<br />
bem esta canícula inusitada em<br />
Roma. Todos riem quando falo, mas<br />
tudo é possível, pois és tão sensível ao<br />
calor!<br />
“Pour un en cas”¹, como dizem os<br />
franceses tão teus amigos, escrevo-te<br />
esta, na esperança de que, não te alcançando<br />
em Roma, te seja esta enviada<br />
às terras de meus bisavós, Portugal e<br />
Espanha. (...)<br />
13
DONA LUCILIA<br />
Rosée ficou visivelmente satisfeita<br />
com o teu telegrama. Jantamos lá, com<br />
minhas duas irmãs — Nestor em viagem.<br />
Adolphinho, de acordo com Rosée,<br />
jantou com... o sexto andar! Antônio<br />
deu a Rosée mais dois fios de pérolas<br />
iguais ao que já lhe deu ultimamente<br />
— mais uma linda trousse² de<br />
ouro, bem trabalhada e toda cravejada<br />
de rubis. A filha e o genro deram-lhe<br />
um anel, desses modernos, que não<br />
aprecio, — cravejados de brilhantes, e<br />
que foi muito apreciado.<br />
Com teu pai, tenho sofrido com o<br />
frio, que está duro de aturar. Durante<br />
o almoço ele abre as cortinas e o sol<br />
lhe banha em cheio as costas, e ele fica<br />
contente. E eu saudosa, procuro alguém<br />
e uma mão queridos que estão<br />
ausentes há um longo mês.<br />
Como vais de estudos, visitas a esses<br />
“mil e um” museus, e viagens? Tudo<br />
bem a teu contento? Se possível, vocês<br />
devem fazer uma excursão, a bordo, no<br />
Loire, aos castelos “intactos” que ainda<br />
conservam às suas margens. Não<br />
vais desta vez a Lourdes, ou Paray-le-<br />
Monial? Peço-te, não deixes de mandar<br />
dizer uma missa e acender uma<br />
vela a Nossa Senhora da Begoña, por<br />
O mosteiro de Paray-le-Monial<br />
(acima) e os castelos do<br />
Vale do Loire (ao lado, Chambord)<br />
são algumas das maravilhas<br />
da velha Europa que<br />
Dª Lucilia muito admirava<br />
intenção de Rosée; — sim; querido?<br />
Se não me engano, é em Valladolid.<br />
Com meu coração, recebe muitas<br />
bênçãos, abraços e beijos. De tua mãe<br />
extremosa,<br />
Lucilia<br />
Uma vez mais, transparece aqui<br />
como para Dª Lucilia a Europa — e<br />
sobretudo a França — era um escrínio<br />
onde se conservavam restos preciosos<br />
da tradição que ela tanto amava.<br />
Na volta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, esperava<br />
poder ouvir as encantadoras descrições<br />
de tais maravilhas, e assim, através<br />
dos olhos dele, peregrinar por<br />
aquele mundo de fábula.<br />
A 10 de julho, <strong>Dr</strong>. João Paulo transmite<br />
de passagem, numa carta, notícias<br />
de Dª Lucilia:<br />
...em casa tudo corre normalmente.<br />
Tua mãe vai bem. Tem ela, uma vez por<br />
outra, crises de intensa saudade. Lê,<br />
então, tuas cartas e as relê, acabando<br />
por voltar-se para aquelas intermináveis<br />
orações que bem conheces. E volta<br />
o bom tempo.<br />
Por meio de seu esposo, Dª Lucilia<br />
enviava um recado a seu filho:<br />
A propósito, ao escrever esta, Lucilia<br />
me pediu para dizer-te que deves ter<br />
o maior cuidado<br />
com automóveis,<br />
em vista do recente<br />
rapto do advogado<br />
de Berlim,<br />
que muito a impressionou...<br />
Evidentemente <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> levaria<br />
em conta a observação materna, pois<br />
comprovara, não poucas vezes, o acerto<br />
das intuições de Dª Lucilia em tudo<br />
o que a ele podia ser danoso. Porém,<br />
mais do que a própria advertência,<br />
agradava-lhe aquela incessante<br />
manifestação de solicitude.<br />
Um amor quase<br />
religioso...<br />
Devido aos atrasos do correio,<br />
passaram-se quase três semanas sem<br />
chegarem missivas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Por<br />
fim, no dia 18 de julho, o carteiro<br />
trouxe o tão esperado envio. Assim<br />
que Dª Lucilia o recebeu, todas as<br />
cordas de sua alma vibraram de intensa<br />
alegria. Com seu passo ágil dirigiu-se<br />
à escrivaninha e com uma<br />
espátula abriu cuidadosamente o envelope.<br />
Depois procurou o lugar<br />
mais luminoso da sala, e lá sentou-se<br />
tranqüila, a fim de ler a carta do “filhão”<br />
para a “querida manguinha”:<br />
Roma, 10 de julho de 52.<br />
Luzinha querida.<br />
São 3,30 da manhã. Estive tão ocupado<br />
estes dias, que resolvi ficar trabalhando<br />
até agora, para escrever relatórios,<br />
notas de viagem, cartas, etc.<br />
E como o serviço ainda está pelo meio,<br />
deliberei passar a noite em claro, e ir<br />
comungar às 5 horas.<br />
Tal seria que em meio a tanto trabalho<br />
não houvesse um pouco de tempo<br />
para escrever a<br />
minha Manguinha<br />
do coração, para lhe<br />
dizer que sinto umas<br />
saudades immmmmmmmmmmmmmmensas<br />
dela!<br />
Devo partir para<br />
Barcelona entre 15 e<br />
17. O Pessoal do 6º<br />
andar tem meu endereço<br />
na Espanha.<br />
A resposta a esta<br />
carta deverá ser enviada<br />
para lá.<br />
14
Como de costume, minha querida,<br />
desejo saber tudo a seu respeito: saúde,<br />
rezas, horários, e quero também saber<br />
se a Sra. tem tido algumas saudades<br />
de mim.<br />
Roma está de um calor canicular.<br />
Um dia destes fez 40 à sombra! À noite,<br />
a temperatura melhora. É a hora<br />
humana de Roma. Ainda hoje, terminado<br />
o jantar, fiz minhas orações todas...<br />
num carro puxado a cavalo, como<br />
no tempo em que a Lú era mocinha,<br />
e que me levou, sozinho, a passear<br />
pelo Pincio. Quando se passa o dia inteiro<br />
com gente, a solidão é uma deliciosa<br />
necessidade. Faz me lembrar a<br />
frase de São Bernardo: oh beata solitudo,<br />
oh sola beatitudo!<br />
E como vai o maravilhoso apartamento,<br />
do qual sinto tantas saudades?<br />
O que é que a Rosa andou quebrando?<br />
Mande dizê-lo, porque fico apreensivo.<br />
Minha querida, quero ainda dizer<br />
uma palavra a Papai. Para a Senhora,<br />
amor meu do fundo do coração, todo<br />
o afeto, todo o respeito, mil milhões de<br />
beijos e de saudades do filho que lhe<br />
pede a bênção<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Certamente penalizaram a Dª Lucilia<br />
as diversas dificuldades que seu<br />
filho vinha encontrando na capital italiana.<br />
Entretanto, com a alma inundada<br />
de gáudio por receber tão carinhosas<br />
palavras, ficou mais aliviada<br />
ao saber que ele passava bem de saúde.<br />
Após atenta leitura da carta, Dª<br />
Lucilia põe-se a escrever naquele mesmo<br />
dia uma resposta, cuja conclusão<br />
o cansaço da noite a obrigaria a protelar<br />
para o dia seguinte.<br />
18-VII-1952<br />
Filho querido de meu coração!<br />
Passei dezesete dias sem receber cartas<br />
tuas, tendo tido algumas ligeiras notícias<br />
através dos rapazes do sexto, que<br />
teu pai ou Adolphinho me traziam.<br />
Graças a Deus, recebi afinal, com grande<br />
alegria, tua última do dia dez deste.<br />
Meu filho, que saudades, quantas saudades<br />
de ti querido! Rosée e Zili têm<br />
procurado distrair-me, levando-me a<br />
ballets, bons concertos, alguns<br />
cinemas; têm vindo com freqüência,<br />
Maria Alice também,<br />
mas como sabes, “como<br />
sempre”, onde vai meu<br />
coração, vai você dentro.....<br />
Como deves saber, tenho<br />
comungado e rezado muito<br />
para que o Divino Espírito<br />
Santo (a quem fiz uma promessa)<br />
te guie e inspire, e Nossa<br />
Senhora Auxiliadora te proteja<br />
e auxilie.<br />
Fui com teu pai à novena no dia<br />
dezesseis na igreja do Carmo, rezar<br />
por ti, e lá estive com os teus amigos,<br />
que me fizeram muitas saudades.<br />
Rosée, Antônio, Maria Alice e<br />
Eduardo jantaram ontem aqui. Foi<br />
muito sentida tua ausência. Fiz o que<br />
pude e penso que foi tudo bem; pelo<br />
menos, foi o que me disseram, mas é<br />
preciso descontar a amabilidade de<br />
praxe. Quanto ao estouvamento da<br />
Rosa, não passou felizmente, do arrebentamento<br />
dos cordões das venezianas<br />
das salas, desarranjos da<br />
enceradeira e electrolux, e quebra<br />
do vidro na parte traseira do<br />
quadro do hall; já está tudo arranjado,<br />
felizmente.<br />
Peço-te mais uma vez para que não<br />
te esqueças de mandar dizer uma missa<br />
e acender uma vela por intenção de<br />
Rosée, no altar de Nossa Senhora da<br />
Begoña em “Valladolid”, penso.<br />
Se fores a Portugal, toma algumas<br />
informações sobre os nossos parentes<br />
do Porto. Têm um título qualquer, e<br />
moram perto da igreja dos Salesianos,<br />
pelo menos foi o que me disse o Padre<br />
salesiano, <strong>Dr</strong>. Esteves dos Santos.<br />
Quanto tempo te demoras aí na Espanha?<br />
Voltas ainda a Roma antes de<br />
ir a Paris? Escreva-me logo, e sempre<br />
que puderes. Leio, leio e releio tanto<br />
tuas cartas!<br />
Bem... até a próxima carta! Que<br />
Deus te guarde, te abençoe, e te acompanhe.<br />
Muitos e muitos beijos e abraços de<br />
tua mamãe tão saudosa e extremosa,<br />
Nossa Senhora de Begoña, sob cuja<br />
proteção Dª Lucilia colocava de modo<br />
especial sua filha Rosée<br />
Lucilia.<br />
“Onde vai meu coração, vai você<br />
dentro”... É essa atitude de amor,<br />
quase se diria religioso, uma constante<br />
em Dª Lucilia, pois mais do que<br />
um filho comum, ela via no conjunto<br />
das qualidades de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> as harmonias<br />
de um órgão, para cuja construção<br />
ela, com mãos de artista, havia<br />
contribuído.<br />
(Transcrito, com adaptações, da<br />
obra “Dona Lucilia”,<br />
de João S. Clá Dias)<br />
1 ) “Por via das dúvidas”<br />
2 ) Estojo<br />
15
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
N<br />
a primeira narração auto-biográfica<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
sobre sua meninice,<br />
publicada no número passado, deixamo-lo<br />
numa praia de Santos,<br />
contemplando o mar. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> continua<br />
aqui suas lembranças de como<br />
foi discernindo e optando pelo<br />
bem, perante as coisas que observava<br />
na infância. E como daí surgia<br />
o combate ao mal que via em si.<br />
O menino e o mar<br />
16
V<br />
isitando o mar de Santos<br />
— a praia do José Menino<br />
ou o Boqueirão — lembro-me<br />
da impressão que me causavam<br />
as ondas quando eu as olhava<br />
quebrarem-se a certa altura. Vinham<br />
aquelas toalhas de água que se estendiam<br />
sobre superfícies mais ou menos<br />
amplas, e depois, como por uma força<br />
misteriosa, eram atraídas de volta<br />
e refluíam, refluíam, refluíam.<br />
Em meu espírito elas evocavam<br />
dois outros movimentos que afetavam<br />
a sociedade em que eu vivia: o da onda<br />
enorme da influência e dos estilos<br />
de vida hollywoodianos da década de<br />
30 que avançavam, e o da onda da influência<br />
européia que retrocedia. Era<br />
a velha Europa da qual eu conservava<br />
na retina, na imaginação e no coração<br />
alguns aspectos fugazes do tempo<br />
em que, com quatro anos, eu a visitara.<br />
Era a velha Europa da qual ouvia<br />
falar sempre, nas conversas caseiras;<br />
a velha Europa que eu admirava<br />
num livro que papai trouxe da Alemanha,<br />
quando lá estivemos em 1913.<br />
Esplendores da Alemanha<br />
militar<br />
Esse livro intitulava-se “L’Alemagne<br />
Moderne”. Obra de um autor francês<br />
que escrevia sobre a Alemanha<br />
do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente<br />
ilustrado com cenas da Alemanha<br />
daquele tempo. Havia fotografias<br />
das regiões industriais e da vida<br />
econômica e capitalista da Alemanha<br />
que não me interessavam. Mas<br />
havia também fotografias dos panoramas<br />
alemães e da Alemanha artística<br />
— que maravilha! Também da<br />
Alemanha de corte — que esplendores!<br />
Eu folheava o livro longamente,<br />
embevecidamente, dez vezes, vinte vezes...<br />
Depois vinha a Alemanha militar.<br />
Eu não posso me esquecer de uma<br />
fotografia, colorida com os recursos<br />
gráficos do tempo, mas que me encantava.<br />
Retratava uma parada militar<br />
na Berlim kaiseriana, no campo<br />
chamado “Tempelhof” (o “Pátio do<br />
Templo”), nos arredores de Berlim.<br />
Era uma grande planície à maneira<br />
de tabuleiro onde as tropas do Kaiser<br />
evoluíam. O Kaiser montava um<br />
bonito cavalo, portava um capacete<br />
de aço com a águia imperial e passava<br />
o bastão de comando a um general,<br />
porque ele devia partir.<br />
Os exércitos do tempo tinham cavalarias<br />
magníficas. Não posso me esquecer<br />
de uma fotografia um pouco<br />
menor, que retratava o “hurrah” da<br />
cavalaria: o momento em que todos<br />
gritam “hurrah” e os cavalos avançam<br />
contra o adversário de parada, o adversário<br />
imaginário. Sabia-se bem que,<br />
na mente dos alemães, eram os franceses<br />
que estavam do lado oposto.<br />
Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas<br />
o embaixador francês assistia<br />
aquilo imprevidente, impávido, cético,<br />
fingindo achar que esse desfile<br />
nada tinha a ver com ele.<br />
“Un hurrah de chevalerie”, lia-se<br />
na legenda da foto, na qual a gente<br />
via avançar a cavalaria com todos os<br />
soldados empunhando espadas. Quanto<br />
eu me entusiasmava com essas perspectivas!<br />
Alemanha tradicional X<br />
Alemanha industrial<br />
Havia no livro fotografias da indústria<br />
alemã que tinha aquele quê de<br />
metálico, de mecânico, de material,<br />
de inanimado no sentido próprio da<br />
palavra, isto é, sem alma, inerente a<br />
todo ambiente industrial, ainda em<br />
nossos dias, e talvez principalmente<br />
em nossos dias.<br />
E eu analisava o contraste daquelas<br />
fotografias com as cenas de Corte<br />
e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me<br />
de uma fotografia muito bonita: o<br />
“Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz)<br />
recebendo as homenagens de seus pajens,<br />
numa sala esplendidamente iluminada.<br />
A “Kaiserin” era uma dama<br />
simpática, cheia de bondade e distinção.<br />
Os dois estavam em pé e os pajens<br />
belamente vestidos, em trajes de<br />
“Ancien Régime”, formando um<br />
quadrilátero diante do Kaiser.<br />
Olhava aquilo e achava lindo. Mas<br />
havia alguma coisa de que eu não gostava;<br />
“algo que já cheirava a indústria”:<br />
de repente, viro uma página e<br />
vejo uma fotografia do Kaiser, não<br />
mais vestido de uniforme, como se vestiam<br />
os reis daquele tempo, mas em<br />
civil, com ar galante e com uma flor<br />
no peito. Pouco depois, uma outra fotografia,<br />
da célebre, famosa, histórica<br />
catedral de Colônia, uma das mais<br />
bonitas do mundo, que foi terminada<br />
no tempo do Kaiser e que trazia,<br />
do lado de fora, entre as estátuas próprias<br />
ao edifício gótico, o Kaiser esculpido<br />
como profeta do Antigo Testamento.<br />
Ficava completamente ridículo!<br />
Era indústria de um lado, ridículo<br />
de outro, tradição no meio, formando<br />
um conjunto objetável.<br />
Quando um pouco depois disso<br />
assisti, no cinema, a cena do enterro<br />
do Imperador Francisco José, da Áustria-Hungria,<br />
fiquei deslumbrado. Tudo<br />
era como devia ser, exceto num<br />
ponto: faltava a força e o empenho<br />
que eu admirava no estilo prussiano.<br />
Eu me perguntava: “Não há jeito de<br />
juntar essas duas coisas? Quão belas,<br />
quão nobres são as coisas austríacas!<br />
Aqueles uniformes, que coisa esplêndida!<br />
Francisco José, que coisa magnífica!<br />
Mas essa gente toda, colocada<br />
em cima de cavalos, em seu “hurrah”<br />
de cavalaria não é capaz de enfrentar<br />
o “hurrah” do Kaiser.<br />
Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente<br />
bonitas quando vitoriosas;<br />
e só são vitoriosas quando heróicas;<br />
e só são heróicas quando profundamente<br />
sérias. Eu percebia que<br />
era preciso filtrar, era preciso tamisar<br />
o que me vinha dessas nações. Eu<br />
17
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
não podia aceitar aquilo como um bloco.<br />
De outro lado, que critério usar<br />
para filtrar? Que critério para tamisar?<br />
As outras nações da<br />
Europa<br />
Extasiava-me também com as outras<br />
nações da Europa, cujos produtos<br />
me chegavam em abundância, porque<br />
ainda não havia as grossas travas<br />
de alfândega que depois vieram. Por<br />
todo lado éramos penetrados pela<br />
substância européia, enquanto soprava<br />
o vento norte-americano.<br />
Nessa contradição, tomando contato<br />
com ares franceses, ao mesmo<br />
tempo que eu me maravilhava, dizia<br />
de mim para comigo: “mas falta seriedade<br />
nisso! Em todo esse mimo,<br />
em toda essa graça, falta algo”. Eu<br />
vejo que essa nação descende de cruzados,<br />
mas eu não vejo que cruzados<br />
descenderiam dessa nação. Santa Joana<br />
d’Arc, que admirável! Godofredo<br />
de Bouillon, nem sei o que dizer!<br />
Olhava Versailles cujas carruagens<br />
me tinham entusiasmado tanto; olhava<br />
o Trianon, olhava o Petit Trianon,<br />
Fontainebleau, as florestas... Como<br />
tudo ria e sorria de modo encantador!<br />
Mas eu pensava: “isto é o sorriso.<br />
Eu quero ver agora a carranca,<br />
eu quero ver a força!”<br />
Um trabalho de seleção,<br />
com base no critério<br />
católico<br />
Era preciso selecionar, era preciso<br />
tamisar; não bastava dizer “não”<br />
à influência hollywoodiana, mas era<br />
preciso rejeitar também a frivolidade<br />
francesa e recolher da Europa a<br />
pura seiva da Civilização Cristã com<br />
base no critério católico.<br />
Eu não via que as pessoas de minha<br />
época fizessem isso. Notava que,<br />
mesmo pessoas de posição na Igreja,<br />
pactuavam indolentemente com a influência<br />
yankee que entrava e olhavam<br />
sem saudades para a influência<br />
européia que recuava.<br />
Mas quando eu estava sozinho, ao<br />
lado da reflexão sobre qualquer coisa<br />
— uma concha, um caramujo... —,<br />
vinham de modo natural à tona essas<br />
considerações que eram longamente<br />
analisadas por mim. Eu pesava, comparava,<br />
admirava, censurava, e a cada<br />
passo que via algo admirável, fazia<br />
uma comparação com a Revolução<br />
anticristã que entrava e compreendia<br />
melhor como esta era rejeitável.<br />
Lembro-me que me sentava sozinho<br />
naquelas amuradas de canais que<br />
entram pelo mar de Santos. Meu pretexto,<br />
para poder me isolar, era pescar<br />
siri. Arrumava uma pedra, atavaa<br />
de um lado a um pedaço de carne<br />
crua que me davam na cozinha da<br />
casa de meus tios, e de outro lado a<br />
um barbante, e partia com um baldezinho.<br />
Era o pretexto para ficar sozinho,<br />
pensando. Voltava depois para<br />
18
Pensava eu como seria magnífico se fosse<br />
possível unir a beleza das coisas austríacas,<br />
a nobreza de Francisco José com o<br />
"hurrah" de cavalaria das tropas do Kaiser!<br />
Acima: desfile militar diante do Imperador Francisco José<br />
(também no detalhe); na página anterior: o Kaiser (detalhe) e um<br />
treinamento de carga de cavalaria prussiana<br />
casa com três, quatro, cinco siris, que<br />
eram jogados fora.<br />
Naquela amurada de pedras que<br />
invadia o mar, eu ficava cercado de<br />
ondas que vinham e voltavam. Às vezes<br />
andava pela praia vazia, ao longo<br />
da qual havia casas de família ainda<br />
dignas e antigas, e que me pareciam<br />
bonitos palacetes agradáveis de serem<br />
vistos de longe. E as reflexões começavam<br />
a me subir ao espírito.<br />
Contemplava o mar de Santos,<br />
que a meus olhos parecia grandioso.<br />
Naquela época, o mar conservava algo<br />
de ameaçador; os que navegavam<br />
pelo oceano ainda tinham medo de<br />
alguma coisa. E o medo do mar dava-lhe<br />
prestígio...<br />
A alguma distância de mim, do lado<br />
do Guarujá, havia uma ilha com<br />
uma nota de tragédia, quase colada<br />
ao continente. Uma ilha de um granito<br />
vagamente rosado, não especialmente<br />
bonita, mas agradável de se<br />
olhar. Era a ilha das Palmas, onde se<br />
dizia que havia um hospital de doenças<br />
contagiosas. Eu pensava no infortúnio<br />
daqueles que eram colocados<br />
fora do convívio humano: “fiquem<br />
longe, não queremos contato!”<br />
No extremo da terra, isolados, somente<br />
ouvindo as ondas do mar...<br />
Esse infortúnio naquele ambiente se<br />
me afigurava impressionante. Eu tinha<br />
muito medo do contágio, mas considerava<br />
fascinantes as meditações<br />
que ali se pudessem fazer.<br />
As grandezas do mar, os sorrisos<br />
do mar, o rumor do mar... O mar brilhando<br />
à luz das quatro horas da tarde,<br />
no crepúsculo das cinco ou das seis<br />
horas da tarde, e por fim, no ponto<br />
último onde no horizonte se encontrava<br />
com o céu: olhar aquilo me deixava<br />
como que intrigado.<br />
Tudo isso me parecia muito belo.<br />
E eu refletia: como isso é diferente<br />
da coisa americana! Como isso convida<br />
a pensar! Como, debaixo de<br />
vários pontos de vista, pode-se dizer<br />
que isso é profundo, é grandioso, é<br />
infatigável, é incessante, é carinhoso,<br />
é jeitoso, é discreto. Mas, também,<br />
como é solene! Oh, o mar!<br />
Como minha alma que comporta<br />
tudo isso é diferente da alma comprimida,<br />
achatada, passada na plaina<br />
pela Revolução, tão rasa, tão lisa,<br />
tão banal, tão corriqueira de tantos<br />
daqueles que eu conheço de minha<br />
idade! Que mundo está sendo preparado?!<br />
Que banalidade!<br />
Combate à tendência para<br />
o romantismo<br />
Essa constatação levava-me a deter<br />
o olhar não mais na formosura<br />
do mar e nas transcendentes belezas<br />
a que o mar conduzia, mas a me perguntar:<br />
“mas então, como sou eu?<br />
19
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Vou me descrever para mim mesmo”.<br />
E na hora de me descrever para<br />
mim mesmo, o próprio enlevo pela<br />
tradição que eu amava, e pela Igreja<br />
que eu quase diria adorava, levavame<br />
a perceber o reflexo dessas coisas<br />
na minha alma e a ser tentado de<br />
enlevar-me comigo. Era a hora exata<br />
em que os estampidos sonoros de<br />
Wagner, ou melodias ultra-melosas<br />
de Chopin me passavam pela memória.<br />
Eu tinha tendência a identificar<br />
minha pessoa com a tradição — não<br />
por minhas próprias qualidades, mas<br />
porque em mim se refletia aquela<br />
tradição que eu amava. Ora, nessa<br />
identificação, havia o convite para<br />
uma posição admirativa e lânguida a<br />
respeito de mim mesmo.<br />
Era a tentação para o romantismo:<br />
a ilusão de ótica por onde a pessoa<br />
se põe no centro de tudo, põe-se<br />
como foco da tradição, põe-se como<br />
o modelo da Contra-Revolução e já<br />
não tem interesse em olhar para o<br />
mar a não ser na medida em que o<br />
mar se reflete nela. Já não tem interesse<br />
em olhar para a História, a não<br />
ser na medida em que se sente encaixado<br />
ou relacionado, ao menos pela<br />
fantasia, com a História. Pelo peso<br />
do pecado original, a pessoa acaba<br />
considerando secundário o que antes<br />
admirava e tornando principal aquilo<br />
que o pecado original vulnerou,<br />
que é o próprio homem.<br />
O mau efeito dessa tentação era<br />
como algo lânguido que eu sentia<br />
dentro de mim, e pensava: “Não posso<br />
consentir nesses pensamentos porque<br />
neles há alguma coisa de mau. O<br />
que seja, eu saberei depois. Mas o<br />
fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço<br />
dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah’<br />
de cavalaria. E tudo o que me<br />
afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos<br />
podem ter coisas boas misturadas,<br />
mas fundamentalmente têm<br />
algo ruim dentro. Não e não!” Nunca<br />
mais ouvi as músicas que eram<br />
conexas com esse estado de espírito:<br />
nunca mais Chopin, Wagner, Liszt,<br />
“Preciso ter a serviço<br />
dos meus ideais o<br />
ímpeto do “hurrah” de<br />
cavalaria, e renunciar<br />
a tudo que me afasta<br />
deles. Nunca mais<br />
Chopin, Schumann,<br />
Brahms...”<br />
Carga de cavalaria francesa, e<br />
bustos de Schumann e Chopin
para não falar de Mendelsohn e<br />
Brahms.<br />
Essa introspecção langorosa e derretida<br />
de si próprio é a substância do<br />
romantismo. Schumann tem uma música<br />
chamada “Revêrie”. “Revêrie”<br />
quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema<br />
do sonho é ele, enquanto se admirando<br />
e tendo entusiasmo consigo.<br />
O romantismo desnorteou<br />
as melhores almas<br />
O homem reto nunca se admira a<br />
si mesmo, nunca se contempla, nunca<br />
se compara, porque sabe que isso<br />
é um poço envenenado, do qual uma<br />
gota de água que beba o intoxica.<br />
A perfeição nessa matéria, quando<br />
se contempla o mar, consiste em<br />
evitar ver o reflexos do mar em si, mas<br />
pelo contrário procurar vê-lo como<br />
simbolizando Deus Nosso Senhor, a<br />
Igreja Católica e todas as grandezas.<br />
Ah, se isso tivesse sido feito pelos<br />
românticos, quantas almas se teriam<br />
salvo e teriam dado resultados esplendorosos!<br />
Como teriam sido outras<br />
as gerações!<br />
O romantismo tomava as melhores<br />
almas daquele tempo, isto é, as<br />
que estavam ainda sujeitas à influência<br />
européia decadente, e as enleava<br />
nessas malhas da auto-contemplação.<br />
Enquanto que o dito americanismo<br />
hollywoodiano perdia os que eram<br />
menos bons. Diante de meus passos,<br />
exagerando algum tanto, eu poderia<br />
dizer que os caminhos que se abriam<br />
eram sendas de perdição.<br />
As frivolidades dos pseudotradicionalistas<br />
românticos<br />
Nossa Senhora me ajudou a fazer<br />
a escolha de tal maneira que do romantismo<br />
não ficasse nada e, espero<br />
eu, que algo tenha ficado do “hurrah”<br />
da cavalaria, da fidelidade à tradição.<br />
Aqui se tem, portanto, o que era<br />
essa batalha interna, e cada um pode<br />
fazer a si mesmo uma aplicação. Eu<br />
conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas<br />
pela tradição. Com elas acontecia<br />
por exemplo que começavam a<br />
estudar história e de repente um inventava<br />
que era conde, começava a<br />
se vestir de conde, com roupinhas,<br />
gravatinhas, colarinhos, anéis — dois,<br />
três, quatro ou mesmo cinco anéis<br />
diferentes para serem usados conforme<br />
o dia — , e adotava modos de<br />
falar em que procurava representar<br />
um papel histórico. No fundo, tratava-se<br />
do egocentrismo. Eram pessoas<br />
das quais se ria e que ninguém tomava<br />
a sério, que não atraíam ninguém,<br />
que não impressionavam ninguém,<br />
não arrastavam ninguém. Porque não<br />
era a História, não era um ideal, não<br />
era um absoluto, não era Deus que<br />
estava presente nelas.<br />
Quantas e quantas coisas desse gênero<br />
torciam os melhores. Ia-se conversar<br />
às vezes com um que tinha o<br />
ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens.<br />
Eu procurava em vão descobrir a<br />
que doutrina, a que pensamento, a<br />
que princípio queriam chegar. Nada:<br />
o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho<br />
não convence!<br />
A igrejinha do<br />
Embaré e uma<br />
vista do litoral de<br />
Santos, no início<br />
do século XX<br />
(Fotos: cortesia<br />
do jornal<br />
"Novo Milênio")<br />
Havia uma deformação análoga a<br />
essa, que era o efeito do romantismo<br />
na esfera religiosa.<br />
O que era o romantismo religioso?<br />
Era uma sentimentalidade religiosa<br />
que desvirilizava, que afrouxava e<br />
debilitava a vontade, que não formava<br />
fiéis combativos, mas propunha<br />
um ideal de caridade mal concebido,<br />
que dava no tipo humano do carola,<br />
do beato ou da beata, tão caricatos.<br />
Voltemos à praia de Santos. Em<br />
meio às reflexões naturais de um menino<br />
que se retira sob o pretexto de<br />
pescar siri, intervém a Providência.<br />
O Santuário do Embaré começava<br />
a ser construído. Uma igreja de<br />
um gótico muito provinciano, mas ainda<br />
gótico. Da praia, eu olhava para<br />
aquela construção e dizia: “Oh, Santa<br />
Igreja Católica que não mudas! Tu<br />
és fiel ao gótico, que é a morada de<br />
minha alma! Tudo muda em torno de<br />
ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio<br />
à tempestade hollywoodiana, tu ergues<br />
as tuas torres góticas aos olhos<br />
de Deus e do sol que vai nascer.”<br />
Contemplá-la ajudava-me a discernir<br />
entre o bem e o mal, e me enchia<br />
de entusiasmo. !<br />
21
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Imagem da Virgem<br />
Dolorosa, venerada na<br />
Igreja de La Merced,<br />
Cidade de Guatemala<br />
22
Nossa Senhora das dores<br />
e o amor à incomodidade<br />
A<br />
presentamos aos leitores um comentário de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> acerca de um<br />
trecho de D. Guéranger, abade beneditino de Solesmes, a propósito<br />
da festa das Sete Dores de Nossa Senhora.<br />
Assim se denominava então a comemoração do<br />
15 de setembro, que hoje se chama “Nossa Senhora<br />
das Dores”. D. Guéranger mostra como Deus envia<br />
sofrimentos àqueles a quem ama, e como entre<br />
todas as almas, depois da de Jesus Cristo, a mais<br />
amada por Deus foi a de Maria Santíssima, sujeita<br />
aos mais indizíveis padecimentos. Referindo-se às<br />
Sete Dores de Nossa Senhora, explica D. Guéranger<br />
que a Igreja se deteve no número sete pelo fato de<br />
este exprimir sempre a idéia de totalidade e universalidade,<br />
ou seja, todas as dores.<br />
Dom Guéranger<br />
Hoje é festa das Sete Dores de Nossa Senhora,<br />
colocada com muita propriedade logo depois<br />
da festa da Exaltação da Santa Cruz. Essa festa<br />
mariana foi estendida a toda a Igreja por Pio VIII, em<br />
agradecimento pela intercessão da Santíssima Virgem na<br />
libertação de Pio VII.<br />
A principal prova do amor que Deus tem<br />
por nós são os sofrimentos que nos envia<br />
São tantos os pensamentos que nos vêm a propósito do<br />
texto de D. Guéranger, que seríamos tentados a desenvolver<br />
excessivamente estas palavras. Parece-me entretanto<br />
oportuno concentrarmo-nos somente em duas idéias.<br />
A primeira delas é esta: que Deus, tendo amado com<br />
amor infinito ao seu Verbo Encarnado, a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, e tendo amado com amor inferior a este, mas<br />
superior a todos os outros amores, a Nossa Senhora, deulhes<br />
tudo quanto há de bom. E por isso, deu-lhes também<br />
aquela imensidade de cruzes que, no caso de Nossa<br />
Senhora, é representada pelo número sete. Sete dores é<br />
também o símbolo de todas as dores. E Nossa Senhora<br />
poderia ser chamada perfeitamente Nossa Senhora de Todas<br />
as Dores.<br />
23
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Por causa disso, se é verdade que todas as gerações a<br />
chamarão Bem-Aventurada, a um título menor, mas imensamente<br />
real, todas as gerações poderão também chamála<br />
“infeliz”.<br />
Se isso é assim, nós deveríamos compreender melhor<br />
que quando a dor entra em nossa vida, estamos recebendo<br />
uma prova do amor que Deus tem por nós. E que enquanto<br />
a dor não penetrar em nossa existência, nós não<br />
temos todas as provas desse amor de Deus. E eu acrescentaria<br />
que não temos a principal prova<br />
do amor de Deus para conosco.<br />
O que isto significa?<br />
Há membros de nossa família<br />
de almas para cujas fisionomias<br />
eu olho e, depois de analisá-las,<br />
sou levado a pensar: a<br />
este, falta-lhe ainda sofrer, falta<br />
no fundo uma nota de maturidade,<br />
uma nota de estabilidade,<br />
uma nota de racionalidade,<br />
uma elevação que só tem<br />
aquele que sofreu, e que sofreu<br />
muito. Quem leva uma vida sem<br />
sofrimentos, leva uma vida em que essas<br />
notas não transparecem na fisionomia. E o que é muito<br />
pior: não transparecem na alma.<br />
Nós devemos nos convencer de que isso é assim, ou seja<br />
que sofrer é um dom de Deus. E que quando começam<br />
acontecer os contratempos — as dificuldades com o<br />
apostolado, os mal-entendidos com os amigos ou com<br />
nossos superiores, a saúde que anda mal, os negócios que<br />
dão errado, as encrencas dentro de casa — não devemos<br />
tomar tudo isso como um bicho de sete cabeças. Nós não<br />
devemos, imitando a mentalidade holywoodiana, exclamar<br />
impacientes: “Como foi que uma coisa dessas pôde<br />
acontecer?”<br />
Não, essa não deve ser nossa atitude! Quando não sofremos,<br />
aí então é que devemos nos perguntar perplexos:<br />
“Como é que está acontecendo isto: eu não estou sofrendo<br />
nada!?” Pois o normal é sofrer. Aquele a quem Deus<br />
ama, aquele a quem Nossa Senhora ama, esse sofre!<br />
Deus não pode recusar a um filho a quem ama aquilo<br />
que Ele deu em abundância aos dois entes que mais<br />
amou, que são Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.<br />
Devemos pois nos imbuir bem da idéia de que o normal<br />
na vida é sofrer.<br />
Sem dúvida devemos pedir à Providência que nos livre<br />
das privações, das provações, das crises nervosas e de toda<br />
espécie de coisas penosas, mas se estiver nos planos<br />
da Providência que sejamos submetidos à prova, devemos<br />
bendizer a Deus, bendizer a Nossa Senhora por estar<br />
sofrendo.<br />
São Luís Grignion chega a dizer que quem<br />
não sofre deveria fazer peregrinações e orações<br />
pedindo o sofrimento, embora ele condicione<br />
tal pedido à aprovação de um diretor espiritual,<br />
porque se trata de uma súplica muito<br />
séria. Mas ele diz isso porque sabe que quem<br />
não sofre não vai indo tão bem na vida espiri-<br />
24
Quando a dor entra em nossa vida, recebemos<br />
uma prova do amor de Deus para conosco,<br />
pois Ele não pode recusar aos filhos que ama<br />
aquilo que deu em abundância<br />
a Nosso Senhor e a Nossa Senhora<br />
Nossa Senhora da Piedade, Alemanha, séc. XIV<br />
tual quanto poderia ir, e às vezes vai indo inteiramente<br />
mal.<br />
Todos aqueles que querem seguir a Nosso<br />
Senhor são incômodos<br />
Bossuet tem uma expressão estupenda a respeito de<br />
Nosso Senhor Menino: “Aquele Menino incômodo”, que<br />
se aplica a todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor:<br />
são incômodos eles também..<br />
Às vezes, tenho a seguinte sensação experimental: começo<br />
a dar um conselho, a dar um exemplo, a pedir um<br />
sacrifício, e no semblante do interlocutor vai aparecendo<br />
algo que revela serem incômodas as minhas palavras para<br />
ele. Como seria mais fácil para mim contar uma piada,<br />
fazer uma brincadeira, acabar a conversa com um tapinha<br />
nas costas e dispensar o outro de uma obrigação! Como o<br />
mando seria agradável se fosse isso!<br />
Mas mandar é o contrário. Mandar é estar exigindo que<br />
o subordinado tome as coisas a sério, que as olhe pelo seu<br />
lado mais profundo, mais alto e mais sublime. Que veja<br />
de frente sua própria alma, que se examine a si mesmo<br />
detidamente, procure corrigir efetivamente e seriamente<br />
seus defeitos. Mas como isso é incômodo! Pois bem, o<br />
peso de sermos incômodos é um dos maiores pesos que<br />
existe e também este nós devemos carregar.<br />
Nossa Senhora teve um filho que lhe trouxe tantos divinos<br />
incômodos. Quando meditamos sobre a dor d’Ela, sobre<br />
a seriedade e a sublimidade da existência d’Ela e de nossa<br />
própria existência, Nossa Senhora das Dores também se<br />
torna para nós maternal e estupendamente incômoda.<br />
A resignação alegre diante dessa incomodidade,<br />
a coragem de sermos incômodos em todas<br />
as circunstâncias, o amar de preferência<br />
aos nossos amigos incômodos, que nos lembram<br />
oportuna ou importunamente o dever:<br />
essas são as virtudes que no dia das Sete Dores<br />
de Nossa Senhora devemos pedir a Ela. !<br />
25
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
DEUS AMA A<br />
ORAÇÃO IMPORTUNA<br />
Religiosa em<br />
oração, no<br />
Convento de<br />
Saint-Gildard,<br />
França
N<br />
o número de agosto publicamos excertos da série de conferências<br />
que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pronunciou em 1957 sobre o livro de Santo<br />
Afonso Maria de Ligório — “A oração, o grande meio da salvação”.<br />
Continuamos com alguns outros trechos da mesma, dada a<br />
grande importância que o tema representa para a vida espiritual de todo<br />
católico.<br />
P<br />
ara obter que Nosso Senhor<br />
nos abra a porta, basta<br />
ser importuno. Isso está<br />
dito textualmente e comentado por<br />
um Doutor da Igreja do porte de<br />
Santo Afonso de Ligório.<br />
Devemos considerar, de uma vez<br />
por todas que, na oração, não são<br />
nossas misérias que entram em linha<br />
de conta.<br />
A oração não é um cheque<br />
bancário contra Deus<br />
A oração tampouco é um cheque<br />
que eu saco do fundo dos meus créditos<br />
e compro de Deus um favor. É<br />
preciso desfazer tal idéia, pois é um<br />
obstáculo para o desenvolvimento da<br />
nossa vida espiritual.<br />
Oração é algo diferente. Ainda que<br />
eu não tenha nenhuma razão para<br />
ser atendido, sê-lo-ei pela minha importunidade.<br />
A importunidade do pecador<br />
abre as portas do Céu e obtém,<br />
afinal, tudo quanto possa desejar. É<br />
frisante, nesse sentido, a palavra de<br />
Nosso Senhor.<br />
S. João Crisóstomo, grande Doutor<br />
da Igreja, comenta no mesmo sentido:<br />
A oração vale mais junto de Deus do<br />
que a amizade ¹.<br />
É uma afirmação que eu não teria<br />
coragem de fazer: estabelecer uma<br />
distinção entre a oração e a amizade<br />
com Deus, para concluir que a primeira<br />
vale mais que a segunda. Ora,<br />
isso foi dito por São João Crisóstomo,<br />
que Santo Afonso por sua vez cita.<br />
A oração vale mais diante de<br />
Deus do que a amizade. Entre uma<br />
pessoa em estado de graça, mas que<br />
não reza, e outra que reza mas não<br />
está em estado de graça, quem reza<br />
alcança mais favor diante de Deus.<br />
Outro argumento interessante, invocado<br />
por Santo Afonso para justificar<br />
a tese de ser a oração do pecador<br />
eficaz e grata diante de Deus, é a<br />
passagem evangélica em que Nosso<br />
A oração importuna<br />
e humilde abre<br />
para o pecador as<br />
portas do Céu,<br />
e alcança para<br />
ele tudo quanto<br />
possa desejar<br />
Senhor elogia a oração do publicano:<br />
“Assim é que se deve rezar!”<br />
Qual é o título que o publicano<br />
apresenta diante de Deus para ser<br />
atendido? Não é o “cheque” que os<br />
fariseus apresentam: “Agora tu, Deus,<br />
que me pões uma barreira, tu tens que<br />
me dar um prêmio, porque eu fiz algo.<br />
Aqui está o que eu fiz!”<br />
Na sua oração, pelo contrário, o<br />
publicano invoca o título de pecador:<br />
“Deus, sede-me propício, a mim que<br />
sou pecador”.<br />
Ora, tendo alegado esse título de<br />
pecador, o Evangelho acrescenta:<br />
... este (o publicano) voltou justificado<br />
para a sua casa (Lc 18,14).<br />
Quando nós alegamos o título de<br />
pecador, somos atendidos.<br />
É engano achar que devemos estar<br />
num alto grau de virtude para que<br />
nossas orações sejam atendidas por<br />
Nosso Senhor. É preciso abandonar<br />
essa idéia heterodoxa, se quisermos<br />
ter verdadeiro espírito católico.<br />
Outra frase, também muito interessante,<br />
é tirada de uma oração do Profeta<br />
Daniel:<br />
Inclinai, meu Deus, o vosso ouvido,<br />
e ouvi-me (...) porque nós, prostandonos<br />
por terra diante da vossa face, não<br />
fazemos essas deprecações fundadas<br />
em alguns merecimentos de nossa justiça,<br />
mas sim, na multidão das vossas<br />
misericórdias (Dan 9, 18).<br />
Essas palavras, ditas pelo Profeta,<br />
não constituem figura de retórica, como<br />
quem dissesse: “Vê tudo isto! eu<br />
ainda vou pôr mais um enfeite, vou<br />
dizer que não tenho nada. Mas, é para<br />
mostrar que eu sou humilde e, portanto,<br />
não digas que há contrabando<br />
na minha mercadoria. Dá-me agora<br />
aquilo que tu me prometeste!”<br />
Não se trata disso. A humildade está<br />
presente na verdade, e na oração<br />
não pode haver mentiras. O Profeta<br />
Daniel, realmente, se dirige a Deus<br />
em nome do povo judeu, carregado<br />
de pecados e prostrado por terra.<br />
27
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Esse povo judeu, prostrado pelo pecado,<br />
na condição de pecador, faz<br />
uma oração. Ele alega essa condição<br />
ao se apresentar ante Deus e<br />
é atendido.<br />
É uma oração tirada da<br />
Bíblia, inspirada pelo Espírito<br />
Santo. Assim, compreendemos<br />
quanta confiança<br />
também nós devemos ter.<br />
O pior do pecado é<br />
o desespero<br />
Santo Afonso de Ligório<br />
Há outro trecho, dessa<br />
vez tirado de São Mateus:<br />
Vinde a mim todos que<br />
andais em trabalho e vos<br />
achais carregados que eu<br />
vos aliviarei (Mt 11, 28).<br />
Segundo São Jerônimo,<br />
Santo Agostinho e outros, qual<br />
é essa categoria de gente que<br />
está em trabalhos?<br />
São os pecadores que têm algum<br />
pesar de ter cometido pecado.<br />
Esse é o sentido da palavra trabalho,<br />
neste contexto. É para esses pecadores<br />
que Nosso Senhor disse: “Vinde<br />
a mim que Eu vos aliviarei”.<br />
Quanta cordura e quanto amor ao<br />
pecador! Quanto desejo de atraí-lo!<br />
Que absurdo, que aberração comete<br />
o pecador se ele se desespera! O pior<br />
do pecado dele não é a falta, é o desespero.<br />
Enquanto ele conservar a<br />
confiança ele pode voltar, e há torrentes<br />
de razão para confiar.<br />
Outra citação, também muito interessante:<br />
“Não desejas — diz São João Crisóstomo<br />
dirigindo-se ao pecador — tanto<br />
a remissão de teus pecados quanto<br />
Deus deseja perdoar-te”.<br />
São João Crisóstomo, ao ver um<br />
pecador querendo sair do seu pecado<br />
lhe diz: “Deus deseja mais que tu<br />
te convertas, do que tu mesmo o desejas”.<br />
Compreende-se, portanto, quanta<br />
confiança deve ter um pecador quando<br />
ele pede sua conversão a Deus. Ele<br />
pede uma graça que o próprio Deus<br />
Se há lugar no<br />
mundo onde nós<br />
podemos ir, certos<br />
de não estarmos<br />
sobrando, é aos pés<br />
do Santíssimo<br />
Sacramento<br />
deseja mais do que ele. Como não<br />
ter toda a confiança?<br />
Importunidade, o principal<br />
requisito da oração<br />
Ainda São João Crisóstomo, ao<br />
comentar São Mateus, diz:<br />
“Não há o que não obtenhas pela<br />
oração, ainda que estejas carregado<br />
de mil pecados, contanto que a<br />
oração seja instante e contínua”<br />
(Hom. 23 in Matth.).<br />
Note-se bem que São João<br />
Crisóstomo é um dos grandes<br />
Doutores da Igreja.<br />
Sua frase condensa o que<br />
acima afirmávamos. “Não<br />
há o que não obtenhas pela<br />
oração”, diz ele. Ou seja,<br />
ele inclui tudo. “Ainda<br />
que estejas carregado de<br />
mil pecados...”, não de<br />
um só pecado.<br />
Para se obter o que se<br />
pede, a condição será ter<br />
firme propósito ou qualquer<br />
outra coisa? Não, não<br />
é. “Contanto que a oração<br />
seja instante e contínua”, não<br />
é necessário mais nada.<br />
É preciso ser importuno. A<br />
oração obtém tudo na medida<br />
em que é insistente, caso contrário<br />
não é boa oração. Mais claro não podia<br />
ser. Ou as palavras humanas não<br />
têm sentido, ou o sentido é esse.<br />
Mais adiante é citado um trecho<br />
de uma epístola de São Tiago:<br />
Se algum de vós necessita de sabedoria,<br />
peça-a a Deus, que a todos dá com<br />
abundância e não impropera (Tg 1, 5).<br />
Sabedoria é juízo, sabedoria é critério,<br />
sabedoria é conduzir-se bem, é<br />
não ter algum dos defeitos que levam<br />
ao pecado. Se alguém precisa disso,<br />
peça. Deus dá com abundância a qualquer<br />
um que pede.<br />
Como Deus é generoso! Como Ele<br />
é misericordioso! E como é taxativo!<br />
“Se alguém precisar, peça, Eu darei”.<br />
Ou Deus não existe, ou Ele é<br />
mentiroso, ou isso é verdade. Não há<br />
outra alternativa.<br />
Santo Afonso se pergunta o que<br />
querem dizer estas palavras: “Deus<br />
dá com abundância e não impropera”.<br />
Citando mais uma vez São João<br />
Crisóstomo em abono de suas teses,<br />
ele explica que os poderosos da Ter-<br />
28
a, quando se lhes pede algo, não dão<br />
com abundância e ainda por cima improperam.<br />
É bem verdade. Quando dão, dão<br />
pouco e de má vontade. Com Deus é<br />
diferente. Deus não impropera quando<br />
se Lhe pede. Santo Afonso demonstra<br />
que Deus impropera quando<br />
não se lhe pede. O que O ofende<br />
— contrariamente ao que se dá com<br />
os homens — é não ser importuno<br />
com Ele. Sendo importunos não O<br />
ofendemos, mas Lhe somos agradáveis.<br />
Esta é a realidade.<br />
Deus nunca nos acha<br />
“cacetes”<br />
Meu avô costumava dizer o seguinte<br />
à minha mãe, que rezava muito:<br />
— Deus deve te achar muito cacete,<br />
embora você seja uma boa menina.<br />
Porque até eu, que te quero tanto<br />
bem, se você falasse tanto comigo<br />
como fala com Deus, acabava te mandando<br />
embora e te achando cacete.<br />
E assim eu também acho que você<br />
deveria rezar menos.<br />
É o contrário! Deus nunca nos julga<br />
cacetes. Se há lugar no mundo onde<br />
nós podemos ir, certos de não estarmos<br />
sobrando, é aos pés do Santíssimo<br />
Sacramento. E onde haja uma<br />
imagem de Nossa Senhora, ali somos<br />
sempre bem recebidos, ainda que nos<br />
consideremos os piores mulambos da<br />
Terra. Em todos os outros lugares, não<br />
devemos ter dúvida nenhuma, sempre<br />
há uma determinada situação na<br />
qual nós podemos ser cacetes aos<br />
olhos de alguém.<br />
E o melhor argumento nessa linha,<br />
talvez sejam estas palavras do Evangelho<br />
de São Lucas:<br />
“Se vós, sendo maus, sabeis dar boas<br />
dádivas a vossos filhos, quanto mais<br />
vosso Pai celestial dará espírito bom<br />
aos que lho pedem” (Lc 11, 13).<br />
Se um homem qualquer sabe dar<br />
um bom presente quando o filho pede,<br />
podemos acaso conceber que<br />
Deus, quando Lhe pedimos o bom<br />
espírito, não nos atenda? Certamente<br />
atenderá! É questão de pedirmos.<br />
Nos períodos melhores,<br />
pedir graças para suportar<br />
os piores<br />
Há um ponto que eu tenho muito<br />
empenho em desenvolver: é o problema<br />
da oração de quem está em estado<br />
de graça para não cair em pecado.<br />
Santo Afonso mostra o seguinte:<br />
quem está nas alturas, animado, deve<br />
rezar pedindo graças para quando<br />
estiver na provação e no desânimo.<br />
Porque é quando este sobrevém que<br />
se corre o risco de rezar menos.<br />
O desânimo congela<br />
a vida espiritual de<br />
uma pessoa,<br />
diminuindo nela a<br />
coragem e a<br />
resolução de rezar<br />
O desânimo é um estado de alma<br />
que congela toda a vida espiritual de<br />
uma pessoa, e no qual a coragem e a<br />
resolução de rezar minguam.<br />
Deve-se fazer provisão de orações<br />
para quando vier o desânimo. Isso de<br />
dizer “eu rezo quando estiver tentado”,<br />
é mais ou menos como quem<br />
acha que vai converter-se quando estiver<br />
para morrer.<br />
No momento da agonia a pessoa<br />
estará pensando no pé que está doendo,<br />
no coração que está parando, na<br />
vista que já não está enxergando a<br />
não ser à curta distância. Ela estará<br />
vendo a morte se aproximar e estará<br />
pensando no próprio corpo. Não estará<br />
pensando na alma, ou terá muita<br />
dificuldade em pensar nela, e por<br />
isso quando se está saudável deve-se<br />
rezar pela hora da morte.<br />
O mesmo se dá conosco, quando<br />
estamos bem na vida espiritual. Devemos<br />
nessa hora rezar pedindo proteção<br />
para o momento em que vierem<br />
as tentações, pois não há homens invulneráveis<br />
em matéria de vida espiritual.<br />
E eu tenho visto diminuir o brilho<br />
das estrelas no céu!... Não quero dizer<br />
apagar-se, mas passar por temporárias<br />
eclipses. Ou porque, de repente,<br />
a pessoa é afligida por um vendaval<br />
tremendo e reage estupidamente,<br />
com uma brutalidade idiota; ou então<br />
é uma dúvida que começa a surgir,<br />
e ela pensa: se houver isto haverá<br />
aquilo, se houver aquilo haverá mais<br />
aquilo, e eu farei não sei o quê, e de<br />
repente se apega a algo a que não<br />
deveria apegar-se, e quando se vai<br />
tentar ajudar, já é tarde.<br />
Nesta hora, chegar junto de alguém<br />
e dizer: “Agora reze!”... É necessário!<br />
Mas não seria muito melhor se a<br />
pessoa tivesse aproveitado a hora do<br />
fervor para rezar?<br />
É muito ruim ser olímpico na hora<br />
em que se está num auge de vida<br />
espiritual. Devemos, isso sim, nessas<br />
horas, armazenar cargas de oração.<br />
Santo Afonso menciona um texto<br />
do Concílio de Trento (seção 6ª cap.<br />
XIII):<br />
“Não se pode obter essa graça senão<br />
d’Aquele que tem poder de conservar<br />
a quem está de pé, de sorte que persevere<br />
com fé” (Seção 6ª cap. XIII).<br />
Quem está de pé deve pedir perseverança<br />
Àquele que o conserva neste<br />
estado. O que é mais importante:<br />
rezar para nos levantarmos quando<br />
já tivermos caído, ou rezar para não<br />
cair quando estamos de pé? Evidentemente,<br />
o segundo tipo de oração é<br />
o mais importante: rezar para não<br />
cairmos.<br />
Ele menciona também outro trecho<br />
do Concílio de Trento, no qual é<br />
citado Santo Agostinho:<br />
“Esse dom de Deus, a perseverança,<br />
pode merecer-se suplicando, isto é,<br />
29
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
se pode conseguir pela oração” (De<br />
don. persev., c. 6.).<br />
Se nós queremos perseverar, por<br />
mais firmes que nos sintamos, peçamos<br />
essa graça da perseverança.<br />
Recorrendo à autoridade de São<br />
Tomás, Santo Afonso cita a seguinte<br />
afirmação do Doutor Angélico.<br />
“Depois do batismo, é necessário ao<br />
homem a oração contínua para ele poder<br />
entrar no céu”.<br />
Depois do batismo, quando todos<br />
os pecados do homem foram apagados<br />
por virtude desse sacramento, o<br />
que é preciso? Oração contínua! Não<br />
há o que justifique o não rezar.<br />
Outra citação interessante:<br />
“Vigiai, pois, e orai em todo o tempo<br />
a fim de que vos torneis dignos de<br />
evitar todos esses males que têm de suceder<br />
— quer dizer, as tentações — e de<br />
vos apresentardes com confiança diante<br />
do Filho do Homem” (Lc 21, 36).<br />
Portanto, não é sempre no tempo<br />
mau, mas em todo o tempo.<br />
Se quisermos entrar<br />
no Céu, cumpre<br />
que nossa oração<br />
seja contínua; nada<br />
há que justifique<br />
o não rezar<br />
O mesmo diz o Eclesiastes:<br />
“Nenhuma coisa te impeça de orar<br />
sempre” (Ecl 18, 22).<br />
Não há razão para não estarmos<br />
rezando sempre.<br />
Outra frase, dessa vez de Tobias:<br />
“Bendize a Deus todo o tempo e<br />
pede-lhe que dirija os teus caminhos”<br />
(Tob 4, 20).<br />
Todo o tempo, quer dizer, no tempo<br />
bom também.<br />
Ainda, numa epístola de São Paulo:<br />
“Orai sem intermissão” (1 Tes 5, 17).<br />
Não é, portanto, com as intermissões<br />
do tempo de virtude.<br />
Outra é da Epístola<br />
de São Paulo<br />
aos Colossenses:<br />
“Perseverai na<br />
oração, velando nela<br />
com ação de graças”<br />
(Col 4, 12).<br />
Perseverai sempre<br />
na oração. Não é só<br />
quando se está em<br />
pecado, ou se está<br />
sem pecado, mas é<br />
sempre.<br />
Também na Epístola<br />
a Timóteo:<br />
“Quero pois que os homens<br />
orem em todo o lugar”<br />
(1 Tim 2, 8).<br />
E o próprio Santo Afonso de Ligório<br />
comenta:<br />
Muitos pecadores com o auxílio da<br />
graça chegam a converter-se a Deus e<br />
a receber o perdão; mas, porque deixam<br />
depois de pedir a perseverança, tornam<br />
a cair e perdem tudo.<br />
Ou seja, a pessoa chegou, com a<br />
graça, a emendar-se, mas depois não<br />
pediu a sua própria perseverança. Não<br />
pediu, logo perdeu. Então, quando<br />
se está em dificuldade é preciso lembrar-se<br />
disso, e rezar para conseguir<br />
a perseverança. E quando se vai bem<br />
na vida espiritual, é de uma importância<br />
capital ter essa humildade, esse<br />
medo de cair e implorar a graça da<br />
perseverança.<br />
No Padre Nosso, Deus nos<br />
ensina a pedir a<br />
perseverança<br />
E, por fim, temos a petição do<br />
Padre-Nosso: “Não nos deixeis cair<br />
em tentação”.<br />
É súplica para, na hora da tentação,<br />
eu ter o suprimento necessário do que<br />
eu pedi quando não estava tentado.<br />
Nosso Senhor ao formular a oração<br />
perfeita estabeleceu, exatamente, esse<br />
pedido de não sermos abandonados<br />
no momento da tentação.<br />
Este momento é tremendo. É como<br />
um turbilhão pavoroso, ou como<br />
uma idéia das mais sedutoras. Nessa<br />
hora a pessoa já está, às vezes, quase<br />
impossibilitada de rezar.<br />
Dois conselhos valiosos<br />
Por isso recomendo duas coisas:<br />
Primeiro, incluir na nossa rotina<br />
uma oração para que Deus nos conserve<br />
numa perseverança perfeita.<br />
Em segundo lugar, assegurarmonos<br />
de uma outra forma, ou seja, pedindo<br />
que se celebrem missas e que<br />
se façam orações em conventos, por<br />
nós.
Deus já estabeleceu que haja freiras,<br />
religiosos contemplativos, para recitarem<br />
as orações que nós não podemos<br />
fazer. Por que não nos munirmos<br />
desses recursos incomparáveis?<br />
Se desconfiamos que não somos capazes<br />
de rezar bastante, por que não<br />
recorrer às orações de outrem? Mas,<br />
estas práticas devem constituir uma<br />
rotina, sobretudo quando se está em<br />
perigo, em situações difíceis, mas também<br />
quando se está em situações<br />
boas. Não há recurso melhor do que<br />
recorrer às orações de uma religiosa,<br />
para ter uma alma que carregue a cruz<br />
Devemos pedir o<br />
auxílio das orações<br />
de freiras e religiosos<br />
contemplativos;<br />
sobretudo, importa<br />
recorrermos à<br />
infalível intercessão<br />
da Santíssima Virgem<br />
em nosso favor<br />
conosco, e nos ajude a levar aquilo<br />
que pesa demais para nós.<br />
Mas a melhor pessoa para rezar<br />
por nós, já sabemos, é Nossa Senhora.<br />
Devemos pedir muito à Santíssima<br />
Virgem. O alfa e o ômega de tudo<br />
isso é a oração d’Ela e a oração a Ela.<br />
Nossa Senhora nos concederá tudo<br />
de que temos necessidade.<br />
1 Santo Afonso Maria de Ligório, A<br />
Oração, o Grande Meio da Salvação,<br />
Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1956,<br />
3ª edição, págs. 90 e 91.<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Espelhos da<br />
quintessência divina<br />
Ao lado da bonomia e da doçura de viver que fazem<br />
dele um dos encantos desta terra de exílio,<br />
envolto por uma natureza risonha, bela e<br />
amiga, que parece cantar ao som das célebres melodias dos<br />
seus gênios musicais, o povo austríaco se caracteriza de<br />
modo muito particular pela grandeza de alma com que<br />
conserva os esplendores aristocráticos herdados de seu<br />
passado.<br />
Como nostálgica dos gloriosos dias da monarquia dos<br />
Habsburgs, a pompa imperial ainda lateja em muitos monumentos,<br />
edifícios, costumes e instituições dessa Áustria<br />
que não nos cansamos de admirar.<br />
Palácio de<br />
Schoenbrunn<br />
32
Castelo do<br />
Belvedere<br />
Por exemplo, o Castelo do Belvedere ou o Palácio de<br />
Schoenbrunn, construções de linhas clássicas e majestosas,<br />
refletindo-se plácida e feericamente nos seus bassins,<br />
evocam a Viena das galas e requintes do Ancien Régime.<br />
Mais recuado no tempo, o Paço Municipal da metrópole<br />
austríaca ostenta sua magnífica arquitetura gótica,<br />
podendo ser contemplado através de folhagens tingidas<br />
de um verde delicado e bonito, circundado por canteiros<br />
em que flores variegadas abrem suas lindas pétalas para<br />
receberem as gotas de água que respigam de elegantes<br />
chafarizes. No secular edifício nota-se toda a força e leveza<br />
do gótico: nas torres erguidas sem dificuldades para o<br />
céu, nas janelas e arcarias ogivais, na beleza do teto, na<br />
nobreza das pedras e em muitos outros de seus extraordinários<br />
aspectos.<br />
O que há de velho e perene no prédio é harmonicamente<br />
completado pelo que há de novo e fresco em toda<br />
a vegetação e nos jorros de água ao redor dele. Enfim,<br />
Detalhe da<br />
fachada de<br />
Schoenbrunn<br />
poder-se-ia mesmo adorná-lo com este título: “Tradição<br />
sempre viva”...<br />
Mencionemos também a Hofburg, contemporânea, no<br />
seu estilo, do Belvedere e de Schoenbrunn, marcada de<br />
maneira especial pela presença de dois soberanos que,<br />
jovens, mais pareciam personagens de um conto de Fadas.<br />
Apesar dos seus defeitos e frivolidades para os quais<br />
não se deve fechar os olhos, Francisco José e a Imperatriz<br />
Elizabeth — a legendária Sissi — eram entretanto<br />
símbolos vivos do que a Civilização Cristã havia engendrado<br />
de mais excelente. Daí terem escrito uma das páginas<br />
imorredouras da história austríaca.<br />
Daí, igualmente, o aroma de suas personalidades arquetípicas<br />
ainda se fazer sentir naquele esplêndido edifício<br />
imperial, impregnando os salões que se sucedem de<br />
modo agradável e acolhedor, iluminados ora pela luz intensa<br />
que atravessa suas largas janelas, ora pela incidência<br />
tamisada dos raios de sol contidos por delicados voiles.<br />
Vastos espaços ornamentados com móveis nas cores<br />
austríacas — vermelho, branco e dourado —, harmonizando-se<br />
belamente com o ouro das molduras, das boiseries,<br />
das pinturas que cobrem seus tetos.<br />
Os assoalhos são verdadeiros mosaicos de madeira, engenhosamente<br />
traçados, formando lindo conjunto com a<br />
suntuosidade dos salões ou com a simplicidade e o bom<br />
gosto de muitas daquelas salas, apenas com suas mesas de<br />
tampo envernizado, uns poucos vasos, algumas cadeiras,<br />
castiçais dourados e, a um canto, o aquecedor revestido de<br />
porcelana branca com apliques folheados a ouro.<br />
Nada é excessivo, nada sobrecarregado nem empetecado.<br />
Nos salões mais freqüentados pela Im-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
o olhar dos personagens estáticos nas telas imensas que<br />
dominam as paredes. Quadros de tonalidades profundas,<br />
contrastando com aquilo que a sala poderia ter de etéreo<br />
e ligeiro, e lhe conferindo, por isso mesmo, a gravidade<br />
mais condizente à majestade imperial.<br />
Imagine-se uma orquestra tocando numa sala vizinha,<br />
de maneira que os seus sons harmônicos tornassem ainda<br />
mais agradável o banquete, enquanto os servidores enchiam<br />
as taças com um vinho capitoso do Reno e guarneciam<br />
os pratos com incomparáveis pâtisseries vienenses<br />
— e então nos é dado compreender que esplendor se reunia<br />
nesta sala!<br />
*<br />
Cumpre considerar como essas belezas nos falam de<br />
um poder régio, augusto, tão seguro de si que pode viver<br />
na alegria de ser o que é. Ao mesmo tempo, um poder<br />
que se encontra nas mãos de gente ultracivilizada, ultraquintessenciada,<br />
a quem fica bem a prática de todas a<br />
virtudes. Trata-se, pois, de uma forma de majestade que<br />
não é apenas o mando, mas o direito de governar por causa<br />
da posse de qualidades super-eminentes, entre as quais<br />
os predicados morais devem ter a primazia absoluta.<br />
Acima, o Paço Municipal de Viena;<br />
à direita, salão da Hofburg<br />
peratriz domina qualquer coisa de graça feminina, distinta,<br />
suave, com ornamentos bem apropriados e lustres que<br />
dão quase a idéia de uma flor de cristal suspensa ao<br />
teto... Facilmente imaginamos ali a delicada soberana,<br />
num daqueles momentos informais em que ela recebia<br />
suas amigas para o chá da tarde ou para conversar na intimidade<br />
com seu esposo, o Imperador. Este também<br />
tinha seus salões reservados, com decorações mais adequadas<br />
ao gosto masculino, sóbrias, com molduras menos<br />
trabalhadas, lustres menos floridos e o dourado mais<br />
discreto.<br />
Graça, aconchego, sobridade e majestade que iam se<br />
reunir, todas, na sala dos grandes banquetes que o casal<br />
imperial oferecia a monarcas, dignitários e personalidades<br />
da Europa e do resto do mundo. Acomodados nas cadeiras<br />
de veludo vermelho, sentavam-se à mesa reis e rainhas,<br />
ministros e chefes de Estado, cardeais e bispos, diplomatas<br />
e altas patentes militares, nos seus trajes suntuosos<br />
realçados por alamares, jóias e condecorações. A refeição<br />
solene transcorria à luz das velas cintilando em candelabros<br />
de ouro e nos imponentes lustres de cristal, sob<br />
34
E nisso vemos um reflexo da própria majestade de Deus<br />
imersa na segurança eterna de sua felicidade perpétua,<br />
inteiramente garantida na despreocupação e na alegria<br />
perfeitas do Céu.<br />
Em suma, a contemplação desses esplendores nos deve<br />
fazer pensar no tipo humano para o qual eles foram feitos.<br />
Esse tipo humano atrai a nossa atenção para a superioridade<br />
que foram chamados a representar. E esta superioridade,<br />
por sua vez, deve elevar nosso pensamento até<br />
Deus, criador e fonte de todas as majestades e belezas. !<br />
Imperador<br />
Francisco José e a<br />
Imperatriz Sissi<br />
A grande sala de jantar e outras<br />
dependências da Hofburg<br />
35
O arqui-vitral<br />
“A Virgem e<br />
o Menino”,<br />
França,<br />
séc. XIII<br />
S<br />
e os maravilhosos vitrais das catedrais góticas<br />
tanto nos deixam enlevados e admirados, incomparavelmente<br />
mais nos deve arrebatar o<br />
arqui-vitral, o vitral inimaginável, o primeiro, que é<br />
o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, concebido<br />
sem pecado original e através do qual reluz, inteiro,<br />
o divino Sol de Justiça!<br />
Pela Santíssima Virgem, cheia de graça, passam todos<br />
os dons de Deus, iluminando-a de fulgores e cintilações<br />
inexcedíveis. Ela é, na verdade, o esplendoroso<br />
vitral que filtra para os homens este convite: “Vinde,<br />
subi, penetrai em mim, e eu vos mostrarei outros horizontes<br />
e vos levarei para outros céus. Não aqueles que o<br />
olhar procura, mas os céus e horizontes que Deus revela<br />
aos eleitos de sua misericórdia...”