17.10.2016 Views

Revista Dr Plinio 71

Fevereiro de 2004

Fevereiro de 2004

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Solidões<br />

em bonde


A<br />

s maiores alegrias que houve na História não foram as dos homens que organizaram<br />

festas fabulosas ou que tiveram notáveis triunfos, mas, sim, as dos<br />

grandes místicos. Aqueles que, levando intensa e perfeita vida espiritual,<br />

agradaram tanto a Deus que se viram favorecidos por um contato direto com Ele, por<br />

meio de visões e revelações extraordinárias.<br />

Que pensar, então, das santas alegrias que inundaram as almas de Nosso Senhor e<br />

de Nossa Senhora, por ocasião dos fatos gozosos meditados no Rosário?<br />

Por exemplo, na Apresentação de Jesus no Templo, imensa terá sido a felicidade com<br />

que o Menino-Deus se comunicou aos homens, de tal maneira que o Profeta Simeão<br />

cantou a glória d’Ele, profetizando tudo quanto Ele seria. E Nosso Senhor, frágil<br />

criança, na aparência sem entender, compreendia e inspirava aquele cântico...<br />

“Apresentação no Templo” — Catedral de Notre-Dame de Paris, França


Sumário<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

na década de 1980;<br />

ao fundo, vista<br />

do centro de<br />

São Paulo em 1916<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 55<strong>71</strong>-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

4<br />

5<br />

6<br />

11<br />

14<br />

20<br />

26<br />

EDITORIAL<br />

Luz para iluminar as nações<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

20 de fevereiro de 1919:<br />

Ingresso no Colégio São Luís<br />

DONA LUCILIA<br />

Admirável equilíbrio de alma<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Beatos Jacinta e Francisco,<br />

modelos de aceitação do sofrimento<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

“Solidões em bonde...”<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

A gota d’água no cálice de vinho<br />

O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

O senso comum e a procura do absoluto<br />

Preços da assinatura anual<br />

Fevereiro de 2004<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

31<br />

36<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

“Gustate et videte...”<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

... Para vos glorificar, ó Mãe<br />

3


Editorial<br />

Luz para iluminar as nações<br />

E<br />

Entre as festas litúrgicas deste mês, destaca-se<br />

com especial relevância a Solenidade<br />

da Apresentação do Senhor no Templo,<br />

a 2 de fevereiro. Situada quarenta dias após o<br />

Natal, celebra ela o fato narrado pelo Evangelista<br />

São Lucas. Cumprido esse prazo fixado na Lei, Nossa<br />

Senhora e São José se dirigiram a Jerusalém para<br />

resgatar Jesus — sem contudo estarem obrigados a<br />

isso — com o pagamento estipulado para os mais<br />

pobres: duas rolas. Era o rito determinado por<br />

Deus, a fim de que os israelitas se lembrassem de<br />

como Ele os libertara da escravidão do Egito.<br />

A propósito da Liturgia desta Festa, comenta o<br />

Papa João Paulo II:<br />

“Neste dia vive [a Igreja] o evento da Apresentação<br />

do Senhor no Templo, procurando aprofundar<br />

o mistério que ela encerra. Num certo sentido, porém,<br />

todos os dias a Igreja bebe deste evento da vida<br />

de Cristo, meditando o seu significado espiritual.<br />

Todas as tardes, de fato, nas igrejas e nos mosteiros,<br />

nas capelas e nas casas ressoam no mundo inteiro as<br />

palavras do velho Simeão, há pouco proclamadas:<br />

‘Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz,<br />

segundo a Tua palavra,<br />

porque os meus olhos viram a Salvação,<br />

que preparaste em favor de todos os povos:<br />

Luz para iluminar as nações<br />

e glória de Israel, Teu povo’ (Lc 2, 29-32). (...)<br />

“No misterioso encontro entre Simeão e Maria,<br />

unem-se o Antigo e o Novo Testamento. Juntos, o<br />

profeta ancião e a jovem Mãe dão graças por esta<br />

Luz que impediu a prevalência das trevas. É a Luz<br />

que brilha no coração da existência humana: Cristo,<br />

Salvador e Redentor do mundo, ‘luz para iluminar<br />

as nações e glória de Israel, Teu povo’ (Homilia de 2-<br />

2-1998).<br />

Luz para iluminar as nações! Essa definição de<br />

Nosso Senhor, inspirada pelo Espírito Santo, deve<br />

ser também a característica distintiva de todos os católicos<br />

no mundo de hoje. Christianus alter Christus:<br />

cumpre que sejamos, no seguimento de Jesus Cristo,<br />

verdadeiras tochas de luz, sobretudo nas circunstâncias<br />

e nos ambientes em que a descristianização<br />

progressiva nos obriga a dar testemunho d’Ele, indicando<br />

o caminho da fidelidade a Deus.<br />

A cada exemplar de nossa revista, torna-se patente<br />

o quanto <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sob a proteção de Maria Santíssima,<br />

correspondeu à sua missão de ser essa “luz”!<br />

Quando, nos mais variados aspectos da vida, a sociedade<br />

é impelida para a feiúra, e às vezes até a sordície,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se apresenta como um farol a irradiar<br />

a luz da beleza, daquele pulchrum que é o esplendor<br />

da verdade e do bem.<br />

Quando os próprios católicos se sentem tentados<br />

ao desânimo face à maré montante da irreligiosidade,<br />

ele é uma labareda de entusiasmo a lhes comunicar<br />

alento com suas palavras e exemplo.<br />

Quando o tédio das grandes cidades leva certas almas<br />

a um estado próximo do desespero, é ainda <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> um facho luminoso a lhes transmitir a palavra<br />

quase esquecida: “Confiança!” — no momento da hesitação;<br />

“Coragem!”— na hora da incerteza trêmula.<br />

Ser luz para iluminar as vias dos nossos semelhantes!<br />

Como esse chamamento é atual!<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

20 de fevereiro de 1919:<br />

Ingresso no Colégio São Luís<br />

Seguindo o costume vigente em algumas tradicionais<br />

famílias da São Paulo de outrora,<br />

<strong>Plinio</strong> iniciara a formação escolar em<br />

sua própria casa, tendo como excelente professora<br />

a Fräulein Mathilde, governanta alemã que<br />

Dª Lucilia trouxera da Europa. Chegado o momento<br />

de prosseguir seus estudos num estabelecimento<br />

de ensino, escolheu o Colégio São Luís,<br />

dos padres jesuítas. A diferença de ambientes<br />

não podia deixar de causar certa impressão no<br />

espírito conservador e analítico do menino <strong>Plinio</strong>.<br />

“Quando fiz dez anos — recordava ele — pedi<br />

a meus pais que me matriculassem no Colégio São<br />

Luís, levado a tal solicitação pelas mentiras de um<br />

primo. Este, já aluno dos jesuítas, insistiu comigo<br />

para que eu também me inscrevesse ali, dando-me<br />

razões muito convincentes. Entre outras coisas, assegurou-me<br />

da existência de árvores no pátio de<br />

recreio, nas quais os alunos podiam subir para comer<br />

frutas. Idéia que me pareceu bem atraente...<br />

Indaguei-lhe:<br />

— Quais são as frutas?<br />

Ele, esperto, em vez de responder, perguntou-me:<br />

— Quais você imagina?<br />

— Há cerejas?<br />

— Claro!<br />

— Então eu entro para o São Luís!<br />

Logo no primeiro dia de aula, porém, descobri<br />

que não existiam as frutas tão cobiçadas por mim...<br />

Havia, sim, um mundo novo no qual eu ingressara,<br />

sob muitos aspectos diferente daquele com o qual<br />

estava habituado...”<br />

Cumpre assinalar que uma preciosa vantagem<br />

adveio para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> do seu contato com os<br />

padres jesuítas, como ele próprio afirmou: “Um<br />

dos inestimáveis frutos que colhi no convívio com<br />

a Companhia de Jesus foi a grande influência da<br />

mentalidade de Santo Inácio de Loyola, que me<br />

penetrou fundo na alma, robustecendo em mim a<br />

personalidade católica militante, a lógica, o raciocínio,<br />

a perspicácia, etc.”<br />

No São Luís, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> estudou quatro anos<br />

(1919-1922) como aluno semi-interno, tendo aulas<br />

de manhã e à tarde (exceto nas tardes de sábado<br />

e de quarta-feira), intercaladas com períodos<br />

de estudo individual no próprio colégio. Saiu<br />

em 1923, para retornar em 1924, então como aluno<br />

do externato.<br />

<strong>Plinio</strong> (o primeiro à<br />

esquerda) quando aluno<br />

do Colégio São Luís; ao<br />

lado, a antiga fachada<br />

desse estabelecimento<br />

5


DONA LUCILIA<br />

Admirável equilíbrio<br />

de alma<br />

Salões da casa de Dona Lucilia:<br />

o bom gosto e a categoria da<br />

decoração refletem o requinte de<br />

espírito daquela que a orientou<br />

6


Dona Lucilia<br />

no início<br />

da década<br />

de 1960<br />

As cogitações de Dª<br />

Lucilia atingiam o ápice<br />

nos momentos em que<br />

ela se dirigia ao Sagrado Coração de<br />

Jesus. No restante do dia ela mantinha<br />

os olhos postos em elevadas considerações,<br />

e precisamente por isso<br />

podia descer com facilidade aos pequenos<br />

assuntos domésticos, sem se<br />

deixar por eles absorver.<br />

Vistos assim por Dª Lucilia, os fatos<br />

do acontecer quotidiano faziam da<br />

vida tranqüila e miúda do lar uma espécie<br />

de despretensioso observatório<br />

do alto do qual se podiam ver as estrelas.<br />

Sua atitude de alma nos traz à lembrança<br />

um singelo exemplo, que Nosso<br />

Senhor tornou sublime ao incluílo<br />

em suas belas e terríveis palavras<br />

sobre a infidelidade de Jerusalém:<br />

“Jerusalém, Jerusalém, que matas os<br />

profetas e apedrejas os que te são enviados,<br />

quantas vezes eu quis juntar os<br />

teus filhos, como a galinha recolhe<br />

os seus pintainhos debaixo das asas,<br />

e tu não quiseste?” (Lc 13, 34-35).<br />

Nosso Senhor, dando esse exemplo<br />

para exprobrar a infidelidade da<br />

Cidade Santa, teve entre outros intuitos<br />

o de mostrar que algo tão simples<br />

como a maternalidade de uma galinha<br />

em relação a seus pintainhos, deve<br />

servir aos homens de elemento para<br />

meditação sobre a grandeza do próprio<br />

Deus.<br />

Elevação de alma nos<br />

episódios diários<br />

Nas sendas do modelo divino, Dª<br />

Lucilia elevava a mente a altos pensamentos,<br />

impregnados de sobrenatural,<br />

a partir dos pequenos fatos do<br />

dia-a-dia. Exemplo disso era o encanto<br />

dela pelas manifestações de amor<br />

materno que sua empregada Olga<br />

tinha pela filha.<br />

Olga servia dedicadamente<br />

Dª Lucilia havia já muitos anos.<br />

Trouxera consigo sua filha Carlota,<br />

em cuja educação se empenhava com<br />

todo o esmero. Na época em que a<br />

menina fazia seus estudos secundários,<br />

sua mãe matriculou-a num curso<br />

de datilografia, e era com grande<br />

alegria que seguia de perto, passo a<br />

passo, seus progressos.<br />

Dona Lucilia observava comprazida<br />

o desvelo de Olga por Carlota. E,<br />

na primeira oportunidade, contava a<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> alguns episódios que mais<br />

lhe haviam tocado o coração materno.<br />

Um deles era o retorno diário de<br />

Carlota a casa, vinda do colégio. Dona<br />

Lucilia, pela porta da sala de jantar<br />

entreaberta, acompanhava discretamente<br />

o que se passava na copa,<br />

onde a doméstica trabalhava. À medida<br />

que a hora do regresso de Carlota<br />

se aproximava, Olga ia ficando<br />

inquieta, até mesmo um pouco agitada.<br />

Olhava repetidas vezes para o relógio<br />

de parede, parecendo querer<br />

apressar os ponteiros do mostrador,<br />

7


DONA LUCILIA<br />

que ao ritmo do tic-tac prosseguiam<br />

seu lento caminhar, insensíveis à expectativa<br />

materna. Se ocorria algum<br />

atraso, ela passava para um estado<br />

de ligeiro nervosismo, indo até o terraço<br />

para ver se dali descortinava a<br />

menina na rua.<br />

Quando finalmente Carlota despontava<br />

ao longe, as apreensões de<br />

Olga se desvaneciam como fumo. Ela<br />

corria alegremente até a entrada do<br />

prédio para esperar a chegada da filha;<br />

ambas se beijavam e se acariciavam<br />

efusivamente, como se Carlota estivesse<br />

voltando de uma longa viagem.<br />

Depois a mãe recuava um pouco<br />

para melhor ver a filha e certificar-se<br />

de que ela estava perfeitamente bem.<br />

A menina, ao contentamento de ver<br />

a mãe, somava o comprazimento por<br />

se sentir objeto de tanta atenção. Quase<br />

sem dirigirem palavra uma à outra,<br />

iam para o quarto de Olga, no fundo<br />

do apartamento, onde esta ouvia o<br />

Relógio da copa da casa<br />

de Dona Lucilia, objeto dos olhares<br />

aflitos da empregada Olga...<br />

relato de como correra o dia, do que<br />

a filha aprendera de novo... Era a<br />

hora das confidências.<br />

Dona Lucilia se encantava vendo<br />

tanto afeto e fazia o possível para que<br />

nada perturbasse esses momentos de<br />

convívio entre mãe e filha, chegando<br />

a atender, ela própria, ao telefone e<br />

à porta. Pouco depois, Olga voltava<br />

ao serviço e Carlota se entregava às<br />

suas obrigações escolares.<br />

Dona Lucilia nunca tomava a iniciativa<br />

de interferir no modo de Olga<br />

conduzir a educação da filha, mas<br />

sempre que a empregada lhe pedia<br />

opinião sobre algum ponto, jamais<br />

recusava um bom conselho.<br />

À noite, muitas vezes <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> iniciava<br />

a “prosinha” perguntando como<br />

fora a chegada de Carlota. Se havia<br />

algum detalhe a assinalar, Dª Lucilia<br />

o contava. Um dia, por exemplo, Carlota<br />

comprou um gorro, de modelo<br />

certamente sugerido pela própria mãe.<br />

Dona Lucilia descreveu todo o<br />

encantamento de Olga ao ver<br />

chegar a filha tão contente com<br />

seu novo adorno.<br />

Pequenas<br />

discrepâncias sobre<br />

decoração<br />

Até o avant- guerre 1 , o progresso<br />

da cultura, o gosto do ornato,<br />

o requinte alcançado nos<br />

mais variados aspectos da existência,<br />

davam à vida uma elevação<br />

e um atrativo que os avanços<br />

técnicos e materiais da humanidade,<br />

nos períodos seguintes,<br />

não puderam substituir nem<br />

superar.<br />

Tendo Dª Lucilia assimilado<br />

o que havia de bom nos usos e<br />

costumes daqueles remotos tempos,<br />

conservou-os durante toda<br />

a vida. Ao considerar, por exemplo,<br />

qual deveria ser a decoração<br />

ideal de sua própria casa,<br />

seguia os critérios de bom gosto<br />

dos idos anos de sua mocidade. Por<br />

isso, embora seu apartamento estivesse<br />

tão apropriado a seu modo de<br />

ser, em alguns detalhes ela certamente<br />

o teria ordenado de modo um<br />

pouco diverso.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sempre desejoso de conhecer<br />

as preferências de sua mãe para<br />

melhor discernir e amar sua bela<br />

alma, estando certo dia a conversar<br />

com ela no “Salão Azul”, amenamente<br />

perguntou:<br />

— Mamãe, tomando em consideração<br />

o gosto de seu tempo, a senhora<br />

não estranha nada nesta sala?<br />

— Sim, estranho!<br />

— Mas, o que estranha a senhora?<br />

— Filhão, este arco (que abre o<br />

“Salão Azul” para a “Saleta Cor-de-<br />

Rosa”), ficaria mais bonito se tivesse,<br />

pendentes de cada lado, uns lindos<br />

tecidos antigos, franzidos, à maneira<br />

de cortinas.<br />

Para o modo de ver de Dª Lucilia,<br />

não era compreensível que aquele arco<br />

estivesse desprovido de algum elemento<br />

decorativo. As cortinas, além<br />

de criar uma divisão psicológica entre<br />

as duas salas, dariam mais aconchego<br />

ao ambiente e quebrariam a frieza do<br />

arco.<br />

Seu filho então afetuosamente lhe<br />

disse:<br />

— Meu bem, a senhora não nota<br />

que isto tornaria muito fechadinha<br />

esta sala?<br />

De fato, Dª Rosée e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

cujo modo de ser era mais inclinado<br />

a ressaltar as grandes perspectivas<br />

visuais, haviam preferido sacrificar o<br />

imaginado adorno a fim de dar maior<br />

amplitude ao salão. Porém, não era<br />

assim que Dª Lucilia via o assunto.<br />

Suavemente, mas com determinação,<br />

ela concluiu:<br />

— De qualquer maneira é uma coisa<br />

que não se poderia dispensar!...<br />

Se de um lado Dª Lucilia mostrava<br />

essa preferência pelo ornato, por<br />

outro sabia encontrar o equilíbrio no<br />

gosto pela simplicidade. Viajando<br />

pela Europa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> decidiu com-<br />

8


Detalhe do “Salão Azul”, com o arco que abre para o “Salão Rosa”. Na parede da direita vê-se a gravura<br />

da Duquesa de Nemours; abaixo dela, o fino busto de mármore<br />

prar uma bela gravura que representa<br />

a Duquesa de Nemours. Ao retornar,<br />

mandou colocá-la no “Salão<br />

Azul”. Para Dª Lucilia, porém, esse<br />

quadro, apesar de muito bonito, não<br />

fazia falta, pois ali mesmo já havia<br />

um fino busto de mármore. Quando<br />

apareceu uma oportunidade, durante<br />

uma de suas tão apreciadas prosinhas,<br />

externou serenamente a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

o seu modo de pensar. Ele respondeu:<br />

— Meu bem, indispensável o quadro<br />

não é, mas melhora o arranjo da<br />

sala.<br />

— Mas, para quê? Nós vivemos<br />

tão bem sem ele...<br />

Manifestando assim, de modo suave,<br />

sua opinião, insinuava discretamente<br />

sua perplexidade. No entanto,<br />

deixava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à vontade para tudo<br />

dispor como achasse mais conveniente.<br />

Em todo o caso, por sua grande<br />

consonância de alma com seu filho,<br />

ainda que não compreendesse as<br />

razões de algumas atitudes dele, considerava-as<br />

sempre boas. Como de<br />

costume, ela estava pronta a renunciar<br />

às suas próprias preferências em<br />

favor das alheias.<br />

Equilíbrio entre a<br />

placidez e a presteza<br />

A facilidade com que Dª Lucilia<br />

se adaptava à vontade dos outros tinha<br />

como causa sua grandeza de alma.<br />

Nada havia que lhe pudesse abalar o<br />

ordenado equilíbrio interior.<br />

Aqueles que mais proximamente<br />

conviveram com Dª Lucilia nunca a<br />

viram ter um só movimento de impaciência,<br />

por menor que fosse. Se a vida<br />

lhe trazia algum grave revés, como<br />

foi o caso do incêndio de um de seus<br />

imóveis, ou da doença que a atingira<br />

com dores agudas, a confiança na Providência<br />

lhe dava o consolo para manter<br />

a paz interior sem se afligir com o<br />

futuro. E, até no governo da casa, jamais<br />

permitia que os diminutos —<br />

mas não raro absorventes — problemas<br />

domésticos lhe turbassem o espírito,<br />

mantendo-se sempre calma como<br />

a superfície cristalina de um lago<br />

de montanha.<br />

Seu filho, que a acompanhou de<br />

perto até o fim de seus dias, pôde<br />

afirmar sem receio: “Em 60 anos de<br />

convívio com mamãe, nunca a vi ter<br />

um capricho”.<br />

Quanta renúncia de si mesma,<br />

quanto domínio da vontade não lhe<br />

foi necessário, durante sua longa existência,<br />

para que alguém pudesse fazer<br />

dela esse comentário tão simples,<br />

mas testemunho de tão grande equilíbrio<br />

de alma!<br />

❖<br />

9


DONA LUCILIA<br />

Alegrias e tristezas<br />

A par das não pequenas cruzes que<br />

Dª Lucilia pacientemente carregava,<br />

duas grandes alegrias a acompanharam<br />

até o fim de seus dias.<br />

A primeira delas provinha da Fé,<br />

que lhe dava a segurança de estar no<br />

bom caminho — o da Igreja Católica<br />

Apostólica Romana — e ao mesmo<br />

tempo a esperança inquebrantável da<br />

salvação eterna. Essa confiança de,<br />

após as tristezas presentes, vir a alcançar<br />

o Céu, pelos infinitos méritos do<br />

Salvador, era a alegria fundamental<br />

que iluminava como um luar sua existência.<br />

A segunda era a vida familiar, e<br />

no seio desta, de modo particular, o<br />

fato de ter um filho — um “filhão” —<br />

ao qual ela queria muitíssimo bem e<br />

que com indizível afeto lhe retribuía.<br />

Foi esta uma das causas mais patentes<br />

de sua longevidade, surpreendente,<br />

apesar da frágil saúde e dos sofrimentos<br />

que suportou durante toda a<br />

vida.<br />

Tanto as grandes alegrias e tristezas<br />

quanto as menores, Dª Lucilia, seguindo<br />

o insuperável e sublime exemplo<br />

da Santíssima Virgem, conservava-as<br />

como preciosa lembrança, meditando-as<br />

em seu coração. Por sua seriedade<br />

de alma, considerava todo o alcance<br />

dos fatos, e ia passo a passo fazendo<br />

da vida um severo exame, pois<br />

para ela tudo tinha uma dimensão<br />

grandiosa. Com essa profundidade<br />

de espírito encarava ela o falecimento<br />

de seus familiares, como o de seu<br />

genro Antônio de Castro Magalhães,<br />

ocorrido após uma fria madrugada<br />

de inverno.<br />

Na região onde se situava sua fazenda,<br />

no norte do Paraná, a baixa<br />

temperatura fazia prever uma forte<br />

geada que comprometeria toda a plantação.<br />

Antônio, diante de perspectiva<br />

tão ruinosa, passou a noite inteira<br />

a cavalo, orientando os empregados<br />

na insana tarefa de espalhar pelo cafezal<br />

certas bombas de fumaça, as<br />

quais, segundo os entendidos, preservariam<br />

do desastre a imensa cultura<br />

cafeeira. Com o amanhecer passou<br />

definitivamente o perigo de geada e<br />

Antônio recolheu-se à sua residência<br />

para descansar. Algumas horas mais<br />

tarde, aparentando inteira normalidade,<br />

dirigiu-se à casa do capataz para<br />

ordenar algumas providências. Mas<br />

o esforço daquela afanosa e gélida noite<br />

fora-lhe fatal: ao cruzar o limiar da<br />

porta, caiu fulminado por um ataque<br />

cardíaco. Era 6 de agosto de 1955.<br />

A inesperada notícia provocou<br />

profunda consternação na família.<br />

Imediatamente <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> viajou para<br />

Cornélio Procópio a fim de cuidar<br />

da transladação do cadáver.<br />

Nessa ocasião, Dª Lucilia, apesar<br />

da tão avançada idade, manteve um<br />

perfeito domínio de si, procurando<br />

ao mesmo tempo consolar sua filha e<br />

sua neta com doces palavras de esperança,<br />

para o que ela, como ninguém,<br />

sabia encontrar os termos mais<br />

adequados.<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra<br />

“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />

O equilíbrio de alma de Dona Lucilia era ainda mais admirável nos momentos<br />

de provação, como foi o da inesperada morte do seu genro. Nessa<br />

ocasião, encontrou ela as acertadas palavras para consolar sua filha<br />

e sua neta (na foto, à direita e à esquerda dela, respectivamente)<br />

1 ) “Antes da guerra”, como os franceses<br />

chamam o período imediatamente<br />

anterior à Primeira Guerra Mundial.<br />

10


DR. PLINIO COMENTA...<br />

BEATOS JACINTA E FRANCISCO,<br />

modelos de aceitação do sofrimento<br />

V<br />

inte de fevereiro, dia da morte de Jacinta Marto, foi a data escolhida pelo Papa João<br />

Paulo II para que a Igreja celebrasse a festa da jovem pastora de Fátima e do seu irmão,<br />

Francisco, aos quais Nossa Senhora apareceu em 1917. Ao recordar essa<br />

piedosíssima morte, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teceu valiosos comentários sobre o papel do sofrimento na existência<br />

humana.<br />

Como se sabe, dos três videntes, dois morreram<br />

pouco depois das aparições, conforme a promessa<br />

da Santíssima Virgem: Francisco e Jacinta. Ambos<br />

deviam ir para o Céu. Antes disso, porém, haveriam de<br />

cumprir nesta Terra duas missões diferentes. A de Jacinta<br />

era rezar e sofrer pela conversão dos pecadores, enquanto<br />

a de Francisco consistia numa reparação ante a<br />

tristeza de Nosso Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados<br />

do mundo, que tinham motivado a mensagem de Fátima.<br />

11


DR. PLINIO COMENTA...<br />

A importância do sofrimento humano nas<br />

grandes obras de Deus<br />

A missão de Jacinta nos revela a necessidade de vítimas<br />

expiatórias que contribuíssem com a sua dor e o sacrifício<br />

de sua vida — as duas crianças morreram em circunstâncias<br />

extraordinariamente difíceis e dolorosas — para<br />

que as palavras de Nossa Senhora encontrassem terreno<br />

fértil nos corações dos homens, dando todos os frutos<br />

por Ela desejados.<br />

Compreende-se, pois, como esse apostolado do sofrimento<br />

é verdadeiramente insubstituível, e como abre os caminhos<br />

para a Igreja. Todas as grandes obras de Deus, máxime<br />

as que tratam da salvação das almas, em geral se fazem<br />

com a participação de outras almas que lutaram, sofreram<br />

e rezaram para que essas obras de fato se realizassem.<br />

Sempre é preciso a participação do sofrimento humano.<br />

Sem ele, nada de grande se faz.<br />

Certa vez, um talentoso pintor expôs um de seus quadros<br />

que retratava Nosso Senhor como Bom Pastor batendo<br />

à porta de uma choupana. A pintura, tocante e piedosa,<br />

atraía muitas atenções. Em determinado momento, um<br />

visitante julgou notar um defeito no quadro, e disse ao<br />

artista: “O senhor cometeu um erro de execução, pois a<br />

porta dessa cabana não tem fechadura”. Sorrindo, o pintor<br />

lhe respondeu: “É verdade. Isto, porém, não foi um erro.<br />

Esta porta simboliza a porta do coração humano, onde<br />

Nosso Senhor vem bater. Ela não possui fechadura no lado<br />

de fora, mas somente no de dentro, para significar<br />

que há certos tipos de abertura de alma onde ninguém<br />

consegue intervir: ou a alma toma a iniciativa de se abrir,<br />

ou permanecerá fechada”.<br />

Ora, o modo de se obter que as almas fechadas se abram<br />

é exatamente por meio da oração, dos sacrifícios e das dores<br />

que a Providência dispõe em nossas vidas. É por meio<br />

do carregar amorosamente a Cruz de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, compreendendo que assim se cumpre a superior<br />

vontade divina. Essas são as almas decisivas na<br />

História, e que levam<br />

a cabo as grandes obras<br />

de Deus.<br />

Claro está que não<br />

se trata de um sofrer<br />

meramente passivo, mas<br />

também de um sofrer<br />

ativo. O que significa<br />

muitas vezes tomar a<br />

iniciativa da luta, rompendo<br />

com aqueles que<br />

prejudicam nossa alma.<br />

Significa arrostar a opinião dos outros, aceitando ser<br />

posto em situações difíceis e contrafeitas. Significa, enfim,<br />

todo o sofrimento da batalha mais intrépida, mais ousada<br />

e mais repleta de determinação. Tudo isso é sofrer, e<br />

até sofrer por excelência.<br />

O contrário do mito do happy end<br />

Sofrimento significa,<br />

muitas vezes, tomar a iniciativa<br />

da luta, rompendo com<br />

aqueles que prejudicam a salvação<br />

de nossa alma<br />

Nosso Senhor bate à porta do coração humano,<br />

esperando que este O deixe entrar<br />

(Quadro pintado por Santa Teresinha)<br />

Não nos esqueçamos, porém, de que, se todas as formas<br />

de sacrifícios são<br />

agradáveis a Nossa Senhora,<br />

o que mais deseja<br />

Ela receber dos homens<br />

é virtude. Acima<br />

dos sofrimentos, Lhe<br />

compraz oferecermos a<br />

Ela a retidão e a pureza<br />

de nossa alma. Se quisermos<br />

de fato pesar nas<br />

deliberações da Providência,<br />

devemos apresentar<br />

a Ela almas contritas e humilhadas, almas que se<br />

tornem pequenas diante de Deus, renunciando a toda<br />

12


forma de orgulho, vanglória e vaidade, para se mostrarem<br />

diante d’Ele como realmente são. Reconhecendo a<br />

sua própria impotência, pelas vias naturais, para corrigir<br />

os seus defeitos; e, portanto, implorando o auxílio de<br />

Maria, para que Ela por nós interceda e nos alcance a tão<br />

esperada conversão.<br />

E isto exatamente<br />

nos é dito pelo sacrifício<br />

de Jacinta. Devemos,<br />

portanto, pedir a ela que<br />

nos obtenha de Nossa<br />

Senhora esse senso de<br />

sofrimento, indispensável<br />

para que qualquer<br />

católico seja verdadeiramente um fiel generoso e dedicado.<br />

Essa aceitação da cruz é contrária ao mito do homem<br />

moderno, que se reflete na mentalidade do happy end,<br />

segundo a qual tudo é alegria, tudo é luz, e o padecimento<br />

é uma espécie de bicho de sete cabeças irrompendo estouvadamente<br />

na vida das pessoas.<br />

A verdade é outra: uma existência sem cruzes, pouco<br />

vale. São Luís Grignion de Montfort chega mesmo a afirmar<br />

que, vendo-se alguém poupado pelos sofrimentos,<br />

deve — após judiciosa orientação de seu diretor espiritual<br />

— pedi-los a Deus, fazer romarias e rezar com empenho<br />

nessa intenção, pois sua salvação eterna pode estar<br />

correndo um risco não pequeno.<br />

Mais do que nunca, a necessidade de<br />

sacrifícios<br />

Se a ofensa a Deus não faz senão<br />

crescer, mais intensa deve ser<br />

também nossa disposição para o<br />

sacrifício, a fim de desagravá-Lo<br />

Análogas considerações poderiam ser feitas a propósito<br />

da missão de Francisco, isto é, a de reparar os Sacratíssimos<br />

Corações de Jesus<br />

e de Maria pelos pecados<br />

e ofensas contra<br />

Eles cometidos na face<br />

da Terra.<br />

Ora, de 1917 até nossos<br />

dias, a maré montante<br />

dos pecados não<br />

fez senão crescer de modo<br />

incomensurável: pecados individuais, pecados públicos,<br />

pecados das nações, pecados das instituições, etc.<br />

Tal constatação nos obriga a concluir que, se a ofensa<br />

cresceu, a reparação também se faz mais necessária e<br />

mais intensa no que ela tem de mais excelente, ou seja,<br />

alimentar em nossas almas a indignação pelos ultrajes<br />

que são feitos ao Coração Imaculado de Maria; acrisolar<br />

nosso desejo de sermos instrumentos de Nossa Senhora<br />

para a implantação de seu Reino sobre a Terra.<br />

Devemos pedir ao Francisco que nos obtenha esse espírito,<br />

esse ardoroso anelo de assim reparar o Coração<br />

Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado<br />

de Jesus.<br />

❖<br />

Os pastorinhos de Fátima e o Imaculado Coração<br />

de Maria cercado de espinhos


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

“Solidões em bonde...”<br />

A<br />

observação e análise da realidade com os critérios da Fé estavam na<br />

base do pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Não era ele um filósofo<br />

abstrato, e sabia, no dia-a-dia, mesmo passeando de bonde, elevar-se<br />

do criado ao mundo dos arquétipos, com a ajuda da graça. Eis a transcrição<br />

de uma de suas reflexões acerca do valor da lógica e do raciocínio.<br />

No meu tempo de menino e adolescente, isto é,<br />

de 1908 a 1928, costumava-se desdenhar a<br />

potência da alma que, de modo primordial, faz<br />

a verdadeira grandeza do homem — a vontade.<br />

Como se sabe, a inteligência é um dom natural, passível<br />

de se aprimorar, porém não ultrapassando um determinado<br />

limite. A vontade,<br />

pelo contrário, em certo<br />

sentido da palavra é<br />

ilimitada, pois é a capacidade<br />

que temos de<br />

amar, como também de<br />

odiar. É segundo ela, e<br />

não pela inteligência,<br />

que seremos julgados.<br />

Com efeito, o homem<br />

bom possui vontade reta,<br />

e o mérito de nossa vida, com vistas à existência eterna,<br />

deriva da retidão da vontade e não da maior ou menor<br />

inteligência.<br />

Nem tudo se reduz ao raciocínio<br />

Ora, chamava-me a atenção o fato de os homens da geração<br />

anterior à minha realçarem muito o valor da inteligência<br />

e do raciocínio. Se, de um lado, essa atitude me<br />

entusiasmava (pois me encantava raciocinar), de outro,<br />

percebia que nem tudo podia se reduzir às excogitações,<br />

posto ser dado ao homem adquirir muitos conhecimentos<br />

não provenientes de sua faculdade intelectiva.<br />

Entretanto, não me atrevia a fazer aos meus professores,<br />

que exaltavam o raciocínio, a seguinte pergunta:<br />

“Em meu isolamento durante<br />

os trajetos de bonde, raciocinava e<br />

pensava em diversos problemas,<br />

procurando na Doutrina Católica<br />

a solução e a verdade”<br />

“Existe o silogismo: todo homem é mortal; Pedro é homem;<br />

logo, Pedro é mortal. Mas, se o conhecimento vem<br />

do raciocínio, como posso saber que todo homem é mortal?<br />

Em segundo lugar, como sei que Pedro é homem? E,<br />

sobretudo, a questão mais delicada: como sei que Pedro<br />

é mortal também? Só pelo raciocínio? Ó razão! Se for<br />

para te apanhar com<br />

tuas próprias garras, onde<br />

estás? Qual é o ponto<br />

de partida?<br />

“Em outros termos:<br />

se da premissa todo homem<br />

é mortal, aliada à<br />

premissa Pedro é homem,<br />

eu concluo que<br />

Pedro é mortal, então<br />

eu cheguei a esta conclusão<br />

a partir de duas premissas derivadas de onde?”<br />

Perguntava-me, assim, qual seria o primeiro pensamento<br />

que justificava todos os outros, e qual a razão prévia<br />

que fundamentava a ponderação inicial. Esse é um problema<br />

pertencente à parte da filosofia chamada criteriologia.<br />

Lembro-me de que, em meu tranqüilo isolamento durante<br />

os trajetos de bonde, olhando para as coisas da rua<br />

sem prestar muita atenção, eu ficava pensando, pensando,<br />

pensando... “Solidões em bonde” — quantas recordações<br />

poderia escrever sob esse título! Momentos nos<br />

quais me vinham à mente raciocínios semelhantes ao<br />

evocado acima. E, como sempre, pela graça de Deus, reportava-me<br />

à Doutrina Católica para aprender a verdade.<br />

14


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

O interessante de uma “problemoteca”<br />

Assim, durante anos mantive em meu espírito uma espécie<br />

de arquivo de perguntas e de problemas para os<br />

quais não tinha respostas. Quando surgiam fatos ou dados<br />

novos, relacionava-os com o arquivo, e pensava: “Isto<br />

está resolvido; aquilo ainda não...”. Era uma “problemoteca”,<br />

quase tão interessante quanto a “solucionoteca”.<br />

As dificuldades desse gênero tornam a vida atraente,<br />

pois um problema é como um licor que se começa a tomar,<br />

ou como uma flor cujo perfume nos acaricia. Quando<br />

se tem Fé, e sabe-se que a Igreja nos oferece a solução<br />

para qualquer dúvida relacionada com ela, não devemos<br />

nos furtar de sorver o perfume da flor, com receio de encontrar<br />

um verme escondido na corola. Não! Respira-se<br />

a plenos pulmões, porque essa corola se reveste do carisma<br />

da infalibilidade, que jamais cessará de atender inteiramente<br />

o nosso desejo da verdade.<br />

Portanto, o problema não é uma charada, e sim uma primeira<br />

abordagem, no fim da qual a Igreja nos sorrirá e<br />

dirá: “Meu filho, a verdade é esta”. E nós repousaremos<br />

na posse da verdade. Nesse sentido, a “problemoteca” é<br />

mais um conjunto de botões a desabrocharem do que<br />

caroços a serem descartados.<br />

Na minha “problemoteca”, a pergunta acerca do raciocínio<br />

e da lógica ficou guardada por longo tempo...<br />

Segundo o Doutor Angélico, existem os transcendentais<br />

e os primeiros princípios do ser, caso contrário ninguém<br />

poderia construir a base na qual se assenta o raciocínio.<br />

Entre esses conceitos fundamentais está, exatamente,<br />

o senso do ser, por meio do qual sabemos que existimos,<br />

nós e os nossos semelhantes, e que somos distintos uns<br />

dos outros. A partir dessas noções iniciais, é possível fazer<br />

um ato de confiança na verdade que nos é dita de fora<br />

para dentro.<br />

Assim, fito o céu e digo: “É azul”. Alguém perguntará:<br />

— Como sabe que é azul?<br />

— Porque eu sei que a palavra “azul” indica a mesma<br />

cor de muitas outras coisas. E se me perguntarem como<br />

sei que esta cor está presente nessas outras coisas, respondo:<br />

porque eu vi, e sei que conheci a verdade por<br />

causa do senso do ser arraigado em minha alma.<br />

Portanto, há uma convicção primeira, um lumen concedido<br />

por Deus à nossa inteligência, o qual nos confere<br />

esse senso do ser e a capacidade de sabermos de muitas<br />

coisas, pelo próprio fato de sermos homens. É esse senso<br />

do ser que nos faz conhecer e amar a ordem do universo.<br />

E percebendo esta, não podemos deixar de notar — sem<br />

que seja necessária uma aula de filosofia — que todas as<br />

formas de ordem são conexas, irmãs umas das outras, como<br />

as notas de uma música. A música é uma ordem de<br />

notas. O universo é uma música de realidade.<br />

O senso do ser, base do conhecimento<br />

Até encontrar a resposta em São Tomás de Aquino. Folheei-o<br />

nas minhas poucas horas vagas, e ele me forneceu<br />

a explicação perfeita para o assunto.<br />

As harmonias da criação,<br />

como a existente entre o céu<br />

e o mar, nos fazem apreciar<br />

a ordem do universo...<br />

16


A felicidade de admirar a ordem do<br />

universo<br />

A natureza — e muito mais a graça — nos convida a<br />

nos maravilharmos ao contemplá-la, e a ter aquela forma<br />

de felicidade que o admirar a ordem traz consigo:<br />

“Que beleza! E percebendo que ainda poderia ser<br />

mais belo e melhor, minha alma gostaria de contemplar o<br />

que está acima e por detrás do que vejo. O quê e como<br />

será? Oh! Como é agradável olhar para o ponto em que o<br />

mar se encosta no céu, sabendo entretanto que esse encontro<br />

não se realiza, pois há outros mares, outros mares<br />

e outros mares! E há outros céus e outros céus! Como seria<br />

bonito se, nesse ponto de união imaginário, houvesse<br />

uma escada conduzindo àquele lugar além do mar e além<br />

do céu!”<br />

Essa alegria da admiração é despertada não apenas a<br />

propósito das realidades inanimadas, mas também em relação<br />

às pessoas. Às vezes discernimos nas diferentes almas,<br />

ora uma tradição que corusca, ora um ato de fé que<br />

reluz, ora uma forma de retidão que se manifesta. E somos<br />

levados a dizer: “Como são belas as almas vistas nesses<br />

momentos! Como é agradável olhá-las! Como é nobre<br />

considerá-las! Como seria uma alma que só tivesse momentos<br />

assim!? Como seria admirável o mundo se as almas<br />

fossem perfeitas, como percebo que devem ser! Como<br />

tudo isto me eleva, pois me conduz ao conhecimento de<br />

uma harmonia muito mais valiosa do que as harmonias<br />

do universo inanimado, pois as almas são os símbolos espirituais<br />

do próprio Deus. Oh! maravilha! Oh! beleza!”<br />

Compreendemos, assim, que a ordem do universo encerra<br />

esplendores que constituem um Céu na Terra. Sentir<br />

essa ordem, analisá-la e, a partir dela, formular um conceito<br />

que aponta para Deus onipotente, faz com que as<br />

partes mais nobres de nossa alma tendam para o infinito.<br />

Harmonias e desarmonias<br />

... enquanto o gosto pelas<br />

desarmonias — como o ulular<br />

cacofônico do jazz band —<br />

revela uma sede<br />

inconfessada de caos<br />

É interessante notar que o gosto pela ordem do universo<br />

é similar àquele que experimentamos com as harmonias<br />

musicais, por exemplo. Alguém pode apreciar muito<br />

a nota “dó”, ou a “ré”, mas nunca levará essa preferência<br />

ao extremo de não querer ouvir as outras notas, reunidas<br />

para compor uma melodia. Assim também, devemos nos<br />

comprazer com as coisas cada qual em seu próprio âmbito,<br />

porém completadas por outras, à maneira das notas<br />

numa música.<br />

A esse propósito, lembro-me de que, no meu tempo de<br />

menino, os valores que nos vinham da velha tradição européia<br />

eram, em geral, todos feitos de afinidades. Tinhase<br />

a noção de que o afim era uma regra da vida. E mesmo<br />

quando algo parecia desarmônico, por detrás se encontrava<br />

uma harmonia oculta. Como era o caso de uma composição<br />

de um músico europeu, na qual ele tocava duas notas<br />

dissonantes. Entretanto, eu percebi que o artista vibrava<br />

aquelas notas à maneira de uma espièglerie, ou seja,<br />

como gracejo de alguém esperto que comete um erro e<br />

logo o repara, para demonstrar destreza.<br />

Assim, a música passeava harmonicamente, retornando<br />

de quando em quando àquela cacofonia, consertada em<br />

guirlandas de acordes, para em seguida desafinar outra<br />

vez. Eu pensei: “Como é inteligente esse jogo, e como o<br />

autor faz malabarismos com as notas!”<br />

Mas, apesar de tudo, essa música não me agradava,<br />

porque continha uma gota de desarmonia. E por menor<br />

que esta seja, eu a rejeito. Lembro-me de meu horror ao<br />

escutar as primeiras músicas de jazz band, verdadeiro ulular<br />

da cacofonia. Entrei numa sala onde alguns homens<br />

as tocavam, um deles manobrando o saxofone, como faria<br />

um bêbabdo com sua garrafa: voltava o instrumento para<br />

trás e depois se balançava para a frente, com todos os<br />

meneios do ébrio. Do outro lado, o trombonista esticava<br />

e encolhia a vara do seu trombone, de metal niquelado.<br />

17


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Minha impressão era a de estar dentro de um circo de palhaços.<br />

Mas aí havia senhoras dignas, sentadas com toda<br />

a calma, como se aquilo não as desagradasse. Presentes<br />

também casais que, dançando ao ritmo daquelas músicas,<br />

pareciam enlouquecer. Era bem o que eu não queria!<br />

Ora, a música com aquela espièglerie (mencionada anteriormente),<br />

com seu pingo de desarmonia, era a bisavó<br />

do jazz band. Alguém poderá objetar: “Mas essa espièglerie<br />

é muito engraçadinha...”. Eu respondo: passou de contrabando<br />

algo que não deveria ter entrado na arte musical.<br />

Quando um indivíduo sente o desejo de beber uma<br />

gota de desarmonia, ele conserva no fundo da alma uma<br />

inconfessada sede de caos.<br />

Se, no meu tempo, eu afirmasse não gostar do jazz,<br />

“desabaria a casa” sobre minha cabeça. Era prematuro.<br />

Então, tomei um ar de naturalidade diante daquela execução<br />

musical, mas nos meus círculos de amigos eu procurava<br />

manter toda a polidez antiga, como meio de preservar<br />

e aperfeiçoar a harmonia de minha alma. Comecei<br />

a me deslumbrar com o Ancien Régime 1 , percebendo<br />

que neste ainda estava presente a Idade Média. Pus-me<br />

à procura de uma luz mais ou menos como quem caminhasse<br />

rumo ao sol, no ocaso, com a esperança de que, à<br />

força de andar para trás, encontrá-lo-ia ao meio-dia!<br />

Harmonias que governam e movem outras<br />

harmonias<br />

Encantava-me também outra forma de harmonia, não<br />

já de caráter horizontal (como a que acabo de descrever),<br />

mas oblíqua. Eram, então, diversas coisas iguais entre si,<br />

tendo como causa primeira uma harmonia superior que<br />

as ordenava e movia. Um ponto mais alto, mais nobre,<br />

mais excelente, que possuía a força de gerar uma órbita<br />

em torno de si.<br />

Nesse sentido, deleitava-me apreciar, por exemplo, a<br />

influência boa de um professor inteligente dentro da sala<br />

de aula. Ele transmitia determinado ensinamento que<br />

atraía a atenção dos inteligentes, e o aluno medíocre,<br />

sem vistas para notar a qualidade do professor, acabava<br />

percebendo-o, por causa do companheiro inteligente.<br />

Assim é a vida: o olhar do medíocre alcança discernir o<br />

colega sagaz, porém não chega a reconhecer o mestre<br />

sábio, que paira acima deles. O medíocre confunde o<br />

bom professor com aquele que demonstra facilidade de<br />

expressão. Coisa bem distinta da inteligência...<br />

O professor de categoria ensina o aluno inteligente e<br />

este, sem se dar conta, eleva o colega medíocre. Este,<br />

por sua vez, à procura de claque, arrasta atrás de si os<br />

mais fracos, e desse modo a classe inteira cresce culturalmente.<br />

Essa espécie de regra de três que ressoa como uma<br />

nota com os seus vários ecos ao longo das vastidões de<br />

um país, de uma cidade, de uma família ou de uma sala<br />

de aula, sempre me encantou.<br />

Infalibilidade papal, princípio ordenador<br />

de tudo<br />

Ora, em meio a esses embevecimentos, eu sentia o<br />

choque com o mundo moderno, e percebia que, em geral,<br />

os maus elementos detinham o prestígio nas salas<br />

de aula. Para contra-arrestar a sua má influência, eu preparava<br />

argumentos lógicos e os soltava nas discussões<br />

com eles. Então eu notava que os alunos ruins recebiam<br />

aplausos de todos, e a lógica não persuadia, ou o fazia<br />

em escala mínima, não chegando a mudar a mentalidade<br />

de ninguém.<br />

“Mas, se a lógica não convence, quem convencerá?”<br />

— perguntava-me. Tudo era jazz band para esses meus<br />

colegas. Jazz band de idéias, de sentimentos, de música,<br />

de negócios! Como Deus podia permitir que o homem,<br />

rei da Criação, vivesse no caos enquanto passeava num<br />

jardim mais ordenado do que o de Versailles, ou seja, em<br />

meio à natureza feita por Ele? Não era possível!<br />

Então, qual é o princípio que ordenaria<br />

tudo?<br />

Em certo momento, fiat lux, ficou-me<br />

claro: é a infalibilidade papal.<br />

Aquela infalibilidade que comecei a<br />

amar na Igreja do Sagrado Coração de<br />

Jesus, nas suas imagens, na sua liturgia,<br />

nas suas cores, no órgão e em tantos<br />

de seus outros aspectos. Tudo o que eu<br />

examinava nela só produzia em mim a<br />

sensação de unum e de harmonia. Impressões<br />

que me falavam sempre da ordem<br />

universal. Passei inclusive a perceber<br />

que meu amor a essa ordem do universo<br />

vinha do fato de eu ser uma célula<br />

viva daquela Igreja. Ela era, de<br />

modo magnífico, o exemplo, o padrão,<br />

a geradora da ordem.<br />

Entusiasmava-me saber que a<br />

Igreja é infalível, e que no seu comando<br />

existe um homem capaz<br />

de reunir os bispos do mundo inteiro<br />

num concílio e proclamar: “Eu,<br />

presidindo o concílio, sou infalível.<br />

Mas sem o concílio sou também infalível!<br />

E, invocando o carisma da<br />

infalibilidade, em nome do Apósto-<br />

18


“Afinal, encontrei o princípio ordenador de tudo, aquilo<br />

sem o quê eu ficaria louco: a infalibilidade pontifícia!”<br />

Sessão do Concílio<br />

Vaticano II e imagem<br />

de Papa, em Roma<br />

lo Pedro, do qual sou sucessor, eu defino um dogma e todos<br />

acertam o seu pensamento comigo!”<br />

Oh! Que maravilha! Encontrei aquilo sem o quê eu ficaria<br />

louco, e o mundo inteiro — não se sujeitando a essa<br />

inerrância — cairia em desvario.<br />

Alguém dirá: “Mas, não havia na época do senhor, milhões<br />

de brasileiros que acreditavam na infabilidade papal?”<br />

Eu respondo: Claro, havia. Ainda há. Mas quantos<br />

levavam as conseqüências dessa crença a um extremo de<br />

veneração e de entusiasmo, compreendendo que os dogmas<br />

que o Papa define são sóis dentro do firmamento das<br />

verdades que a Igreja ensina, das quais decorrem, por via<br />

de conseqüência, inúmeras outras verdades que regem a<br />

ordem temporal?<br />

Um ensina e outros obedecem. Em torno daquele gravita<br />

o mundo. Unidade e harmonia. Estava encontrado!<br />

1) Período da História da França que precede a Revolução<br />

Francesa.<br />

19


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

A gota<br />

d’água<br />

no cálice<br />

de vinho<br />

20


A<br />

inda sobre o papel do nosso sofrimento (que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aborda<br />

neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima),<br />

mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à<br />

Paixão redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais<br />

abundantíssimos.<br />

Embora os merecimentos da<br />

Paixão de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo sejam superabundantes,<br />

dispôs a vontade divina<br />

que deles se aproveitassem os homens,<br />

em muitas circunstâncias, unindo<br />

seus próprios sacrifícios aos do nosso<br />

Redentor. Assim nos ensina a Santa<br />

Igreja.<br />

Donde, para conseguir tocar e converter<br />

determinada alma, por exemplo,<br />

seriam suficientes os méritos infinitos<br />

alcançados por Jesus, sem os<br />

quais nada obteríamos. Porém, é do<br />

superior desejo de Deus que essa conversão<br />

se efetue mediante o concurso<br />

dos nossos sofrimentos, associados<br />

aos de Nosso Senhor.<br />

E se almejamos, portanto, uma<br />

imensa transformação moral para a<br />

sociedade contemporânea, ou um renouveau<br />

da vida da Igreja, cumpre<br />

que soframos todo o necessário, nos<br />

consumindo nesse sofrimento como<br />

uma tocha ardente. Tais são os desígnios<br />

de nosso divino Salvador, para<br />

que, de fato, a dolorosíssima Paixão<br />

d’Ele se verificasse útil a essa alma,<br />

àquele grupo social, ou mesmo<br />

àquele ciclo de civilização.<br />

A essa necessidade de unir nossas<br />

dores às de Jesus, costuma-se<br />

aplicar um dos muitos e lindos simbolismos<br />

da liturgia eclesiástica. Trata-se<br />

da gota d’água que o sacerdote<br />

verte no cálice com vinho, durante<br />

o Ofertório, a qual representaria<br />

o sofrimento humano depositado no<br />

oceano do sofrimento divino, para,<br />

Se desejamos a<br />

transformação<br />

moral do mundo,<br />

cumpre unirmos<br />

nossas dores às do<br />

Divino Redentor<br />

juntos, serem imolados ao Padre Eterno.<br />

Quiçá esse simbolismo não tenha<br />

fundamento na história litúrgica, porém<br />

exprime ele adequadamente um<br />

pensamento piedoso suscitado por<br />

esse ritual da celebração eucarística.<br />

E sempre que observo o padre<br />

fazer essa mistura da água com<br />

o vinho, lembro-me dessa<br />

idéia muito formativa: é a<br />

gota do nosso sofrimento<br />

no mar das dores de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Por outro lado, reveste-se<br />

de extrema beleza o<br />

fato de essa gota d´água,<br />

uma vez dissolvida no vinho,<br />

ser também transubstanciada.<br />

Quer dizer, o que não era matéria<br />

para consagração, acaba se<br />

tornando uma só coisa com a espécie<br />

do vinho e se transubstancia<br />

no Sangue preciosíssimo de Cristo.<br />

Isto manifesta bem o valor descomunal<br />

de nossos méritos, de si tão minguados,<br />

quando unidos aos méritos<br />

infinitamente valiosos de Nosso Senhor.<br />

O sofrimento humano<br />

completa o desenho da<br />

Criação<br />

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão<br />

de ser desse vínculo entre o nosso<br />

sacrifício e o de Jesus. Considerando<br />

os desígnios divinos, chegaríamos<br />

à conclusão de que, tendo Deus criado<br />

seres inteligentes e dotados de vontade,<br />

intencionalmente deixou que


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

uma parte da beleza da criação fosse<br />

completada por esses seres. Daí uma<br />

série de coisas lindas da natureza surgirem<br />

graças ao engenho humano. Por<br />

exemplo, o casulo do bicho-da-seda<br />

é uma obra saída das mãos do Onipotente,<br />

com a manifesta intenção<br />

de que o homem o utilizasse para fabricar<br />

o rico tecido com que orna mobílias,<br />

decora ambientes ou confecciona<br />

magníficas peças de vestuário.<br />

De si feios, o verme e o casulo oferecem<br />

ao talento dos artífices a matéria<br />

para realizarem maravilhas.<br />

E assim, mil outros elementos se<br />

encontram na criação, tornando-a semelhante<br />

a esses desenhos pontilhados<br />

no seu contorno geral, feitos para<br />

serem completados e coloridos pelas<br />

crianças.<br />

Sem o concurso do<br />

nosso sofrimento,<br />

Jesus poderia<br />

recusar a aplicação<br />

dos méritos<br />

de sua Paixão para<br />

algum ambiente<br />

ou uma alma<br />

O homem, entendendo a criação,<br />

amando-a e aperfeiçoando-a, recebe<br />

de Deus a honra incomparável de ser<br />

elevado à dignidade de continuador<br />

d’Ele no seu plano para o mundo.<br />

Ora, tendo acontecido que Deus,<br />

além de Criador, se fez Redentor,<br />

dispondo que Jesus Cristo padecesse<br />

e morresse na Cruz para nos salvar,<br />

era natural que o homem também<br />

fosse associado a essa obra-prima da<br />

criação, que é a Redenção. E que ele,<br />

portanto, tivesse um sofrimento complementar<br />

a oferecer ao Padre Eterno,<br />

unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.<br />

Grandeza das almas que<br />

sofrem pelas outras<br />

Temos, então, as mais diversas e<br />

tocantes formas de padecimento do<br />

homem nesta terra de exílio.<br />

É belo o sofrimento do apóstolo,<br />

com seu caráter expiatório ou imprecatório,<br />

como um ato de amor e de<br />

holocausto desinteressado, tantas vezes<br />

misturado a lutas e dificuldades<br />

de toda ordem. É belo, quando ele<br />

precisa levar a bom termo sua faina<br />

apostólica num determinado meio, e<br />

surgem as incompreensões, as calúnias,<br />

os motejos, precipitando-se sobre<br />

o apóstolo. Ele enfrenta todos os<br />

obstáculos, parecendo abandonado<br />

por Deus. Por quê?<br />

Porque é preciso que ele sofra, assim<br />

como é necessário que ele atue e<br />

22


Assim como foi dado ao homem,<br />

pelo seu talento, continuar o<br />

plano de Deus na Criação,<br />

aperfeiçoando-a, assim foi ele<br />

chamado a se associar à obra da<br />

Redenção, pelo seu sacrifício<br />

unido ao do Verbo Encarnado<br />

Na página anterior, casulo do<br />

bicho-da-seda e tecidos feitos<br />

a partir do fio extraído dele<br />

reze. Sem esse sacrifício do apóstolo,<br />

Nosso Senhor poderia recusar a aplicação<br />

dos méritos da Paixão d’Ele<br />

para aquele ambiente, para aquele<br />

meio, para aquela alma.<br />

Belo é, igualmente, o padecer daqueles<br />

dos quais a graça divina se serve<br />

para atuar, pela primeira vez, junto<br />

a um determinado grupo social. Esses<br />

instrumentos suscitados por Deus<br />

são como que fundadores, e devem<br />

ter um sofrimento mais intenso do<br />

que os outros. De fato, o homem que<br />

inicia uma obra possui a glória de têla<br />

começado. Mas essa glória traz para<br />

ele o peso tremendo de sofrer pela<br />

obra inteira. E se esta for chamada a<br />

perdurar até o fim do mundo, produzindo<br />

frutos que o tornarão ainda<br />

mais engrandecido, é natural que ele<br />

irrigue com suas dores a existência<br />

inteira dessa fundação.<br />

Para suprir a debilidade dos homens<br />

no oferecimento de seu sacrifício,<br />

existem na Igreja as almas que<br />

têm a vocação de sofrer pelas outras.<br />

Diante dessas pessoas desejosas e<br />

capazes de padecer pelo próximo,<br />

teria vontade de me ajoelhar e lhes<br />

dizer — servatis servandis — como<br />

São João Batista a Nosso Senhor:<br />

“Não sou digno de desatar as correias<br />

de seu sapato”. De tal maneira me<br />

empolga e entusiasma essa forma de<br />

apostolado, merecedora de meu respeito<br />

e profunda veneração.<br />

Nada é mais nobre e mais bonito,<br />

nada revela maior integridade de alma<br />

e maior sinceridade em todos os<br />

propósitos, nada é mais eficiente em<br />

seu gênero próprio, do que a alma que<br />

Quando uma alma<br />

abraça a dor,<br />

barreiras se abatem,<br />

caem preconceitos<br />

e as dificuldades<br />

são resolvidas<br />

aceita sofrer pelos outros. Barreiras<br />

enormes se abatem, preconceitos tremendos<br />

caem, dificuldades fabulosas<br />

se resolvem quando uma determinada<br />

alma decide ser conseqüente e<br />

abraçar a dor até onde o permita a<br />

vontade de Nosso Senhor. Não tenho<br />

palavras para exprimir a gratidão<br />

emocionada, o sentimento de culpa<br />

e de vergonha que me toma diante<br />

de uma alma que realmente seja capaz<br />

de levar essa vocação até o fim.<br />

“De culpa e de vergonha”, digo,<br />

porque sempre me fica a impressão<br />

de que, na raiz do êxito admirável de<br />

nosso apostolado, existem almas que<br />

sofreram e talvez já morreram — ou<br />

ainda estejam vivas — padecendo para<br />

nos alcançar tudo o que a nós foi<br />

concedido por Nossa Senhora.<br />

Se me fosse dada a felicidade de<br />

conhecer uma alma assim, sem dúvida<br />

me ajoelharia e lhe beijaria os<br />

pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria<br />

diante da causa verdadeira da<br />

nossa grandeza, da razão primeira<br />

de nossos sucessos, da minha perseverança<br />

e do que possa haver de virtude<br />

em mim. Com efeito, se alguém<br />

não tivesse tomado a cruz às costas e<br />

subido ao alto do Calvário, imolando-<br />

23


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

se por nós, não creio que eu pudesse<br />

realizar a obra que me foi confiada.<br />

Portanto, essa alma sofredora é o<br />

sustentáculo de minha fraqueza, o<br />

remédio para as minhas lacunas, enfim,<br />

é o fator preponderante para que<br />

nossas atividades progridam e frutifiquem.<br />

Nada se faz sem os “micro-<br />

Cristos”<br />

Claro está que as almas mais especialmente<br />

chamadas por Nosso Senhor<br />

para se associar ao sofrimento<br />

d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam<br />

a algo que poucos têm coragem<br />

de abraçar. Muitos estão prontos<br />

para agir, alguns para rezar. Onde<br />

estão os dispostos a sofrer? Onde<br />

encontraremos alguém que deseje se<br />

sacrificar, com este sentimento: “Eu<br />

sofro, peço à Nossa Senhora que conforte<br />

a minha fraqueza, mas aceito e<br />

dou esse passo”?<br />

É natural que em nossa obra a Providência<br />

suscitasse almas dispostas a<br />

sofrer e a fazer do padecimento seu<br />

primeiro apostolado. Essas almas seriam<br />

as principais entre nós, incumbidas<br />

da missão mais difícil, mais necessária,<br />

mais urgente.<br />

Para se compreender o mérito dessa<br />

vocação particular, devemos tomar<br />

em consideração que o sofrimento<br />

não é só se flagelar ou se martirizar.<br />

Não. Antes de tudo, é aceitar bem as<br />

diversas provações que Deus permite<br />

em nossa existência diária. Devemos<br />

recebê-las de frente e dizer: “É<br />

verdade, eu sofro. Posso até agir para<br />

eliminar essa dor. Mas, enquanto<br />

não for evitada, acolho-a de bom grado,<br />

porque é algo inapreciável para a<br />

minha alma e para a dos meus semelhantes.<br />

É preciso que alguém se<br />

imole por eles.”<br />

Penso não existir expressão mais<br />

vil do que esta: “Vê lá se eu sou um<br />

Cristo para agüentar tal coisa!”. Embora<br />

seja de uma sordície inominável,<br />

ela tem um pressuposto curioso:<br />

existem micro-Cristos, digamos, que<br />

aqui, lá e acolá se deixam crucificar<br />

para que as realizações humanas cheguem<br />

a bom termo. E sem esses micro-Cristos,<br />

nada se faz. Eles são a<br />

honra, a glória, a alegria, a vitória<br />

dos ambientes pelos quais sofreram.<br />

É deveras inapreciável essa condição<br />

de sofredores dentro da Igreja.<br />

Almas que devemos amar entranhadamente,<br />

porque foram corajosas o<br />

bastante para oferecerem a Nosso<br />

Senhor sua própria imolação: “Quero<br />

unir meu sofrimento ao vosso. Se<br />

tenho de ser como uma azeitona a<br />

ser espremida para dela tirardes o<br />

óleo, ou como a uva da qual extraíreis<br />

o vinho, ou como o grão de trigo<br />

triturado para dar a hóstia, é este o<br />

meu desejo!”<br />

Tenho a impressão de que eu diria<br />

com o Salmo: “meus ossos humilha-<br />

Por trás e acima das belezas e alegrias de um Santuário<br />

de Lourdes, estão as dores e aflições de almas heróicas que resolveram<br />

padecer pelo próximo<br />

Procissão das Velas, em Lourdes; e Santa Teresinha do<br />

Menino Jesus, em seu leito de sofrimento<br />

24


dos exultam”, se visse em nosso movimento<br />

almas chamadas por Nossa<br />

Senhora para o sofrimento e a dor.<br />

Holocausto digno de<br />

admiração e gratidão<br />

inteiras<br />

Em um de seus famosos escritos,<br />

Huysmans nos conta que há em Lourdes<br />

um Carmelo cujas freiras têm por<br />

missão sofrer e expiar para conseguir<br />

conversões e curas no Santuário. Porém,<br />

no momento daquelas lindas<br />

“procissões das velas”, daquelas curas<br />

miraculosas, daquelas grandes transformações<br />

morais, daquela glorificação<br />

de Nossa Senhora em meio à<br />

felicidade do povo, ninguém está se<br />

lembrando do convento das carmelitas,<br />

onde existem religiosas doentes,<br />

morrendo, sofrendo aridezes interiores<br />

e desolações tremendas, para que<br />

os outros estejam na alegria ou sendo<br />

objeto da benevolência divina. Não<br />

importa: aos olhos de Nossa Senhora,<br />

a fonte de toda essa alegria está<br />

naquele Carmelo.<br />

O mais bonito é que as freiras assumem<br />

o compromisso de não pedir<br />

a própria cura. Pergunto: haverá na<br />

Terra algo mais digno de admiração<br />

do que essa forma de holocausto?<br />

A esse respeito, vale recordar um<br />

lindo fato da vida de Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente<br />

ser tudo na Igreja: missionário,<br />

padre, apóstolo leigo... E essa<br />

vontade intensa chegava a constituir<br />

para ela um verdadeiro suplício. Mas,<br />

a partir do instante em que entendeu<br />

o valor do sofrimento, através do<br />

qual poderia obter graças para as almas<br />

que cumpriam essas vocações, e,<br />

desse modo, atender o seu anelo de<br />

fazer tudo em todos os lugares ao<br />

mesmo tempo — ela então encontrou<br />

ânimo para sofrer e achou paz<br />

para a sua alma.<br />

É compreensível que, diante de<br />

uma pessoa assim, nos emocionemos<br />

até o extremo que nos seja possível.<br />

E que a veneremos, respeitemos e<br />

lhe externemos nossa gratidão, em<br />

toda a medida que nos seja dado<br />

agradecer.<br />

❖<br />

25


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

Castelo de<br />

Versailles:<br />

janela da<br />

Galeria<br />

dos Espelhos,<br />

abrindo-se<br />

para o parque<br />

O senso<br />

comum e a<br />

procura<br />

do absoluto


A forma<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se elevar de píncaro em píncaro, das<br />

criaturas até Deus, não o conduzia a raciocinar exageradamente<br />

acerca das coisas que observava, nem a fazer<br />

uma análise descabida das próprias impressões. Numa conversa informal,<br />

explica-nos ele o papel desempenhado pelo senso comum<br />

para alcançar o equilíbrio nesse itinerário.<br />

Nunca<br />

N<br />

será supérfluo ressaltar<br />

que a grande felicidade<br />

e a principal fonte de<br />

equilíbrio interior na vida consiste<br />

na apreciação e fruição dos bens espirituais.<br />

Como também não é desnecessário<br />

fazer notar que um dos<br />

maiores enganos da existência moderna<br />

é dar a ilusão de que os valores<br />

materiais são a nossa finalidade<br />

neste mundo, devendo o homem procurar<br />

sempre ser dono de algo e se<br />

garantir contra as adversidades de<br />

qualquer espécie.<br />

Uma atitude errada, pois na realidade<br />

o homem vive para os bens de<br />

caráter espiritual. E toda alegria que<br />

lhe é proporcionado alcançar nesta<br />

Terra, ao mesmo tempo que dispõe<br />

sua alma para o Céu, provém do conhecimento<br />

e degustação dos ditos<br />

bens espirituais.<br />

O primeiro passo: sentir<br />

Como saboreá-los?<br />

Não se trata apenas, ou sempre, de<br />

fazer a explicitação das coisas percebidas<br />

pelos sentidos. O passo inicial,<br />

indispensável, é uma espécie de sentir<br />

do qual nascerá mais tarde a explicitação.<br />

Esta seria o segundo estágio,<br />

menos imprescindível, enquanto<br />

o primeiro é o mais precioso, pois dele<br />

depende o resto do processo. De<br />

fato, o simples olhar e sentir a coisa<br />

é o ponto com o qual habitualmente<br />

nos contentamos, e só passamos a<br />

explicitar em certos casos.<br />

Trata-se, portanto, de perceber o<br />

objeto, vivenciá-lo e em seguida —<br />

se necessário — entregar-se à explicitação.<br />

Porém, não é preciso estar<br />

explicitando a todo propósito e a todo<br />

momento.<br />

A vivência completa<br />

daquilo que<br />

os nossos sentidos<br />

apreendem nos<br />

permite chegar<br />

à explicitação<br />

Insisto na importância desse primeiro<br />

sentir: sem uma espécie de<br />

vivência (palavra perigosa, mas adequada<br />

às nossas reflexões) muito rica<br />

do objeto ou situação apreendidos pelos<br />

sentidos, as etapas posteriores serão<br />

nulas. Cumpre termos antes essa<br />

vivência completa da coisa percebida,<br />

por assim dizer nos “enchermos”<br />

com ela, para podermos atingir aquela<br />

explicitação que é a mesma vivência<br />

considerada numa ordem superior.<br />

Cabe agora, então, sabermos como<br />

essa vivência deve ser compreendida.<br />

O senso comum<br />

Em psicologia cuida-se de algo fundamental<br />

que se chama “senso comum”,<br />

diferente do que na linguagem<br />

quotidiana costumamos denominar<br />

de “bom senso”.<br />

Para explicá-lo, exemplifico. Digamos<br />

que alguém esteja assistindo a<br />

uma peça de teatro. Enquanto ele tem<br />

notícia da música através dos sons que<br />

lhe chegam aos ouvidos, seus olhos<br />

discernem o que acontece no palco,<br />

a movimentação dos atores, o desenrolar<br />

das cenas, etc. Portanto, audição<br />

e visão estão engajadas. Suponhamos,<br />

ademais, tratar-se de um teatro freqüentado<br />

por pessoas extremamente<br />

finas, e que paire na sala o suave aroma<br />

dos ótimos perfumes que usam: é<br />

a participação do olfato. E suponhamos,<br />

ainda, que o nosso expectador<br />

se ache muito bem instalado numa<br />

confortável poltrona, deliciando-se<br />

com um saboroso bombom francês<br />

— tato e paladar. Essa pessoa estaria,<br />

assim, cercada pela realidade exterior<br />

de todas as formas, através dos<br />

seus cinco sentidos.<br />

Há, então, um senso — o senso<br />

comum — por onde a pessoa estabelece<br />

uma correlação de todas essas<br />

sensações experimentadas por ela, que<br />

lhe dá uma idéia conjunta do ambiente<br />

e da cena ali interpretada. Digamos,<br />

a representação do banquete ofere-<br />

27


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

res claras, saudáveis, graciosa, fina, toda<br />

feita de tules e mousselines, daquela<br />

sala de Versailles?<br />

Uma pessoa bem constituída<br />

sentiria imediatamente estranheza,<br />

porque essa dissonância<br />

não teria nenhum propósito,<br />

contrária que é<br />

àquela impressão una,<br />

àquela destilação de<br />

cido por Luiz XV no Palácio de Versailles,<br />

a Maria Antonieta, Arquiduquesa<br />

d’Áustria, vinda para se casar<br />

com o futuro Luiz XVI.<br />

A impressão que esse banquete<br />

nos causaria é uma conjunção de todas<br />

essas sensações que nos entraram<br />

pelos vários sentidos, as quais, antes<br />

mesmo de serem analisadas e explicitadas<br />

pela inteligência, encontram<br />

uma espécie de harmonia interior, de<br />

imbricação que redunda num bemestar<br />

elevado e nobre.<br />

Essa percepção geral favorecida pelo<br />

senso comum é sumamente ordenada<br />

e, sobretudo, una. Eis o mais precioso<br />

alcançado pelo senso comum: essa<br />

unidade no entendimento, proveniente<br />

das impressões<br />

dos cinco sentidos.<br />

Não é difícil provar esse<br />

caráter de unicidade. Imagine-se<br />

que na cena acima descrita<br />

houvesse uma orquestra tocando<br />

minueto, música própria daquele<br />

ambiente. Acharíamos a melodia<br />

muito harmoniosa com o conjunto<br />

do quadro. Agora, se interrompessem<br />

o minueto e passassem a entoar<br />

uma canção assim: “Ai que saudades<br />

que eu tenho da minha casinha pequenina,<br />

onde meu amor nasceu, tinha<br />

um coqueiro ao lado...” — ficaríamos<br />

espantados. O que esse canto choroso<br />

tem a ver com a alegria leve, de cotodas<br />

as impressões recebidas pelos<br />

seus cinco sentidos.<br />

Do sentir para o<br />

compreender<br />

Analisemos, agora, como o indivíduo<br />

passa desse sentir aquela cena<br />

para a operação intelectiva.<br />

28


Ele o faz através de um esforço de<br />

atenção, ao mesmo tempo fora e dentro<br />

de si. Fora, porque capta impressões<br />

externas. Dentro, porque começa<br />

a observar a atuação do senso comum,<br />

e a experimentar no seu íntimo<br />

a harmonia resultante da conjugação<br />

de todos aqueles dados dos<br />

sentidos. Ele aprecia e degusta essa<br />

harmonia, quase que contemplativamente,<br />

como alguém pode inalar o<br />

perfume que se evola de um frasco,<br />

para se impregnar dele. Assim também<br />

fazemos com o senso comum interior:<br />

“sorvemos” a conjugação desses<br />

valores harmoniosos, saboreando<br />

aquilo que sentimos.<br />

Em seguida, vem a explicitação.<br />

Pois em determinado momento essa<br />

degustação é tão clara, tão definida,<br />

que a pessoa encontra a palavra, o<br />

“O mais precioso alcançado pelo<br />

senso comum é a unidade no<br />

entendimento, proveniente<br />

das impressões captadas pelos<br />

cinco sentidos”<br />

termo, o vocábulo para explicar o que<br />

percebeu. Então, das sensações se passa<br />

para algo que, uma vez apreendido,<br />

transformou-se em valor de espírito.<br />

Caminhou-se do sentir ao compreender.<br />

A inteligência e a alma funcionaram:<br />

proferiu-se uma análise,<br />

fez-se uma crítica intelectiva.<br />

Entretanto, vícios existem pelos<br />

quais a pessoa não se consagra a esse<br />

trabalho do espírito.<br />

O primeiro deles, muito freqüente<br />

em nossos dias, poderia ser chamado<br />

de “interiorização”. Diante de<br />

algo que conhece, a pessoa sofre uma<br />

espécie de trauma, de desequilíbrio<br />

interno, e se põe a prestar atenção<br />

em si, ao invés de considerar aquilo<br />

que lhe foi apresentado. Então surge<br />

daí uma interiorização tola, inútil e<br />

descabida.<br />

Outro vício é a exteriorização errada.Retornemos<br />

à cena no Palácio<br />

de Versailles. Digamos que pela sala<br />

do banquete passe uma marquesa, revestida<br />

de seus mais preciosos adornos.<br />

O olhar do nosso expectador recai<br />

sobre o penteado dela, no qual se<br />

destaca uma flor cor-de-rosa. Ao perceber<br />

esse colorido, a pessoa irrompe<br />

logo em comentários... Ou imaginemos<br />

que ela veja um lacaio superiormente<br />

bem vestido, conduzindo<br />

um sorvete montado em forma de castelo:<br />

sem se conter, aproxima-se e arranca<br />

um pedaço da iguaria.<br />

São impressões fragmentárias violentas,<br />

desordenadas, excedendo-se<br />

tumultuosamente.<br />

Em qualquer dos dois vícios, quer<br />

na “interiorização” equivocada, quer<br />

na dispersão, está presente a influência<br />

pavorosa do egoísmo. E o<br />

efeito? Após a introspecção frívola,<br />

a “extropecção” bárbara, a mania de<br />

aparecer e de se colocar no centro<br />

das coisas. E ambas podem se alter-<br />

Na página anterior: teatro do Castelo<br />

de Versailles e detalhe do quadro<br />

“A taça de chocolate”, ambientado<br />

num dos salões deste palácio<br />

29


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

nar de modo violento, como um turbilhão.<br />

No fim do dia, quando a pessoa<br />

retorna ao lar, encontra-se numa<br />

desordem interior extrema, lanhada,<br />

excitadíssima, cansadíssima, ao mesmo<br />

tempo com prodigiosa vontade de<br />

dormir e intenso desejo de não fazêlo.<br />

Resultado, conversas soltas, maçantes,<br />

ou brigas fúteis, etc.<br />

Surge a verdadeira<br />

procura do absoluto<br />

Não. Nada de se entregar a introspecções<br />

nem “extropecções” desnecessárias.<br />

Não se emocione sem medida.<br />

Não há razão para aquele desequilibrado:<br />

“Ah! que cor-de-rosa!”<br />

ao ver a flor no penteado da marquesa.<br />

Sente-se um pouco, observe o<br />

quadro à distância. Ponha-se de fora,<br />

de longe, para conseguir penetrar<br />

naquela realidade. Procure sentir a<br />

harmonia das impressões experimentadas<br />

pelos seus sentidos, que é exatamente<br />

o rico e esplêndido legado do<br />

senso comum. Em seguida, recolha<br />

uma compreensão e um ato de amor.<br />

Só então aparecerá uma procura<br />

verdadeira do absoluto.<br />

Sim, porque de todos aqueles aspectos<br />

percebidos pelo meu senso<br />

“Das impressões percebidas pelo<br />

nosso senso comum se depreende<br />

a palavra indicadora de um valor<br />

que, em Deus, é absoluto”<br />

comum — na cena de Versailles, por<br />

exemplo — se desprende uma palavra<br />

indicadora de um valor que, em<br />

Deus, é absoluto. Assim, os termos<br />

“elegância”, “leveza”, “graça”, “charme”,<br />

etc., nos fazem conhecer um<br />

predicado moral que apreciamos por<br />

tê-lo discernido naquelas almas. Ora,<br />

essas qualidades são reflexos da infinita<br />

perfeição de Deus, que é a Graça,<br />

a Leveza, a Elegância. Desse modo,<br />

o processo intelectivo que teve<br />

início nas operações dos nossos cinco<br />

sentidos, termina nos elevando a<br />

uma categoria superior de valores.<br />

Portanto, essa primeira procura<br />

do sentir as coisas com distância e<br />

ordenação, sem se dissipar, prestando<br />

ouvidos ao nosso senso comum,<br />

é o que devemos cultivar com especial<br />

empenho. Pois as coisas só se<br />

vivem ordenadamente, ou, do contrário,<br />

é melhor não vivê-las. ❖<br />

30


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

“Gustate et videte...”<br />

C<br />

omo a maioria dos monumentos medievais, o Mont-<br />

Saint-Michel nos arrebata para uma espécie de clave<br />

única, apanágio das maravilhas da Idade Média. E´<br />

o reflexo daquela inocência católica que pervadia as<br />

almas e a sociedade dessa época dominada pela Fé.<br />

Candura batismal, luminosa, ponto de partida para a<br />

realização de belezas que aspiravam o Céu.<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Não duvido que algo de sobrenatural pode pairar<br />

sobre uma paisagem abençoada, envolver e<br />

penetrar os que nela vivem, assim como a unção de uma<br />

imagem da Santíssima Virgem pode impregnar a linda flor<br />

que depositamos aos seus pés.<br />

Imagine-se o Mont-Saint-Michel imerso num lindo pôrde-sol.<br />

O entardecer transforma o ar numa espécie de<br />

matéria fofa, sutil, delicada, leve, dentro da qual tudo<br />

vai se evanescendo. Um imenso repouso se estende sobre<br />

os largos horizontes, enquanto nossa mente é embalada<br />

por este pensamento: “Felizes os homens que habitam entre<br />

essas paredes e aos quais é dado admirar continuamente<br />

esse maravilhoso panorama.”<br />

A eles de nos convidarem: “Gustate et videte quam<br />

suavis est Dominum” — vinde ver aqui quão bom é o<br />

convívio do Senhor... (Sl 33, 8-9)<br />

32


Sim, uma natureza quase inteiramente absorvida pelo<br />

sobrenatural. E pairando acima de tudo, dominador,<br />

o Arcanjo — não a imagem na ponta da agulha, mas o<br />

próprio São Miguel —, que transmite a impressão<br />

fantástica de grandeza celeste, diante da qual todo o resto<br />

nos parece pequeno. Muito pequeno.<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

H<br />

á nele qualquer coisa de ordenativo<br />

do espírito, sem nada de<br />

cartesiano. Sobretudo, a meu ver, no<br />

claustro interno. Poder-se-ia ponderar<br />

se este não será ainda mais medieval<br />

que a própria silhueta completa do<br />

Mont-Saint-Michel, coroada pela abadia. Pois ali, entre as<br />

ogivas e as colunatas góticas, encontra-se a manifestação<br />

em pedra da razão, da lógica, do bom senso e da sabedoria<br />

extraordinárias que reluziram no auge da Cristandade. Ou<br />

seja, nas almas trabalhadas pela graça, as quais, por ação<br />

desta, tornaram-se capazes do equilíbrio e da logicidade total<br />

expressos na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Assim<br />

como capazes da atitude de espírito contemplativa, admirativa,<br />

enlevada, tranqüila, pronta a rugir como o leão ou a cantar<br />

como um anjo, conforme o exijam as<br />

circunstâncias que encontre diante<br />

de si.


Linda posição, meio ilha, meio terra firme. De maneira<br />

que, em certas horas, é totalmente ilha, entregue às<br />

cóleras e aos furores do mar. Noutro momento, o tempo<br />

serena, o oceano reflui, e vê-se uma mulher com criancinhas<br />

atravessar a pé enxuto aquelas areias, galgar as pedras e<br />

as escadarias para, lá no alto, render seu preito reconhecido<br />

pela graça que o Arcanjo lhe alcançou.<br />

Dali a pouco, quando as sombras do entardecer se<br />

projetam sobre ele, o Mont-Saint-Michel se conserva<br />

altaneiro no meio de uma paisagem onde só há crepúsculo e<br />

águas que o cercam...<br />

35


... Para Vos glorificar, ó Mãe!<br />

Sabemos, ó Mãe boníssima, não sermos<br />

dignos de nos aproximar de<br />

vosso Filho Divino, posto o incomensurável<br />

abismo de indignidade que d’Ele<br />

nos separa. Porém, maiores do que<br />

esse abismo, ó Mãe, são a vossa<br />

misericórdia e o vosso amor por<br />

todos e cada um dos filhos que<br />

tendes sobre a face da Terra, e<br />

em especial pelos batalhadores<br />

do bom combate que, desde há<br />

muito, desejastes lutassem por<br />

Vós e vosso adorável Filho<br />

nos dias amargos em que<br />

vivemos.<br />

Assim, Mãe Santíssima,<br />

vida, doçura e esperança<br />

nossa, rogamo-Vos: que a<br />

vossa misericórdia preencha<br />

esses abismos e faça descer<br />

até nós a plenitude da<br />

clemência de Cristo Jesus; que<br />

a vossa onipotente intercessão<br />

nos alcance a perfeição moral, a<br />

integridade de doação e o inteiro<br />

cumprimento de nossa vocação<br />

— para, desse modo,<br />

Vos rendermos a excelsa glória<br />

que tanto vos devemos!<br />

Virgem com o Menino -<br />

Museu Cluny, Paris

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!