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contos lauro ferrao

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Notas<br />

Dedico este livro ao meu pai José Laura (Fiíco) e à<br />

minha mãe Josina Rodrigues (Xirica). Aos meus filhos<br />

e filhas: Luiz Leandro, Verônica Silva, Francislaine<br />

Cardoso, Thierry Roberto e Anyta Laura.<br />

Agradeço, primeiramente, a Deus com quem<br />

mantenho contato todos os dias nas minhas meditações.<br />

Inclusive, perguntei-lhe se poderia publicar este livro,<br />

Ele ficou calado e quem cala consente.<br />

E finalmente, ao Google um companheiro de<br />

todas as horas; ao publicitário, escritor e artista plástico<br />

Júlio Quinan que ilustrou o livro; ao odontólogo Dr.<br />

Getúlio Lima que muito me incentivou e à minha irmã<br />

Edith e irmãos Waldemar, Walter e Edson.


2ª Edição


© Copyright 2014, Lauro Ferrão<br />

Meu coração ficou<br />

na curva do Rio<br />

Paranaíba<br />

Ilustração: Júlio Quinan<br />

Texto: Lauro Ferrão<br />

Revisão ortográfica: Maria Marly Dantas de O. Silva<br />

Foto: Barbosa Andrade Fotografias<br />

Diagramação: Cristiano A. Pricinote (Fábrica de Ideias)<br />

ISBN: 978-85-917889-0-3<br />

Registro BN: 646859, em 22/07/2014<br />

Todos os direitos reservados a Lauro Ferrão<br />

Editado por: ???<br />

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização dos autores<br />

Contatos: e-mail: <strong>lauro</strong><strong>ferrao</strong>@hotmail.com<br />

facebook: Lauro Ferrão Ferrão


“Um país se faz com<br />

homens e livros”.<br />

Monteiro Lobato


O escritor e suas vítimas<br />

Lauro Ferrão é um escritor<br />

raro. Ele tem o dom de nos prender,<br />

pobres leitores desavisados. Falo por<br />

experiência própria. Pensei comigo:<br />

vou ler um pouquinho, antes de<br />

dormir. Que nada! Fui fisgado como surubim, e só parei<br />

quando o livro acabou.<br />

“Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba” tem<br />

histórias fantásticas. Várias delas entrariam sem favor em<br />

qualquer antologia. Eu amei “Agosto”. Nela, um doente<br />

terminal chega em casa e... O final você vai descobrir<br />

sozinho. Daria uma peça de teatro. “E agora?” É um achado<br />

criativo de 1ª linha. Quem não gostaria de ter nas mãos,<br />

indefeso, o agressor cruel de sua família? Poderia citar, a<br />

esmo, vários outros <strong>contos</strong>: “Eu não sou cachorro não”,<br />

“Toninho Dondoca”, “Paranaíba, eu te amo”, “As paixões<br />

de Tiãozinho”.<br />

Muitos <strong>contos</strong> ficam tentando ser crônicas. A linha<br />

entre um gênero e outro é tênue. Na maioria das narrativas<br />

há, claro, traços de crônica, mas o DNA nega. Crônica é uma<br />

prima bonita, mas sem dinheiro, dentro da literatura, e este<br />

não será o caso aqui.<br />

Todas as histórias, mesmo as assentadas em casos<br />

reais, têm uma dimensão maior, só possível num conto.<br />

Você vai encontrar, também, poesia da melhor qualidade.<br />

“Você” e “Estrelas felizes” são emocionantes. Daquelas de<br />

se recortar e pôr numa moldura. Agora, esqueça o prefácio e<br />

leia “Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba”. Só um<br />

aviso: eu não começaria se tivesse de acordar cedo.<br />

Carlos Antônio Jordão<br />

Publicitário e escritor


Sempre tive uma queda pelas<br />

crônicas, aquelas que falam do dia a<br />

dia, dos acontecimentos verídicos e<br />

inventados, causos alegres e descontraídos<br />

e causos curiosos.<br />

A crônica nos dá uma maior<br />

dimensão da leitura, pois ela é mais<br />

dinâmica, objetiva, engloba os fatos, a<br />

mentira, os causos alegres e tristes e, por si só, tem a força de<br />

falar de um grande acontecimento, de um grande fato, de<br />

coisas corriqueiras em pouco mais de trinta linhas.<br />

Em 1976, Lauro me procurou para que eu lesse uma<br />

de suas crônicas e observei que tinha uma forma peculiar<br />

para abordar temas relacionados à política. É importante<br />

mencionar que vivíamos um período de pouca liberdade<br />

na imprensa, mas assim mesmo, como se usasse um ferrão,<br />

Lauro conseguia, com uma dose de ironia e humor, escrever<br />

sobre o tema. Assim, passei a chamá-lo de Lauro Ferrão.<br />

Naquela época, eu era presidente do “Jornal da<br />

Cidade”, convidei-o a participar da coluna “Tema Livre”<br />

que publicava todas as semana <strong>contos</strong> e crônicas. Posteriormente,<br />

o semanário passou a ser “Jornal de Itumbiara” e o<br />

Lauro Ferrão foi nomeado editor-chefe.<br />

Após algumas décadas, ele reúne várias crônicas<br />

publicadas, ao longo desses anos, em seu primeiro livro “O<br />

meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba”, narrando<br />

fatos engraçados ou que, historicamente, tornaram-se<br />

lendas, como os relatos de quando aqui havia uma aldeia<br />

indígena passando para vila, povoado, Santa Rita até chegar<br />

a Itumbiara.<br />

O autor traz, ainda, para suas crônicas as conversas da<br />

praça, os bate-papos do bar, as discussões sobre futebol e<br />

política, uma mistura de ficção e realidade, sempre acompanhada<br />

de uma boa dose de humor.<br />

Prezado leitor, o livro “O meu coração ficou na curva<br />

do Rio Paranaíba é uma obra de entretenimento, mas<br />

também um registro histórico e uma homenagem às pessoas<br />

que fizeram e fazem parte da sociedade itumbiarense.<br />

Getúlio Lima<br />

Cadeira nº 13 | AILA – Academia Itumbiarense de Letras e Artes


Sumário<br />

CRÔNICAS E CONTOS..............................................13<br />

O retrato da morta...................................................15<br />

O mal que não tem cura...........................................18<br />

Pedaço de carvão......................................................21<br />

Linhas cruzadas.........................................................23<br />

Pérolas da política....................................................26<br />

As cartas não mentem..............................................28<br />

As paixões de Tiãozinho............................................30<br />

As peripécias de Fontenelle...................................33<br />

Caryl Chessman.........................................................35<br />

Dona Santa..................................................................37<br />

Quem ri por último, ri atrasado.............................40<br />

Toninho Dondoca.......................................................42<br />

A vingança dos pássaros..........................................46<br />

Cada cidade tem os seus loucos............................48<br />

Um corpo na praça....................................................51<br />

Analfabeto político ..................................................53<br />

O tal de jet sky...........................................................56<br />

Dinamite ou Zico.........................................................59<br />

Eu não sou cachorro não.......................................62<br />

Meio gol.......................................................................65<br />

O dito pelo não dito..................................................68<br />

Paranaíba eu te amo!.................................................70<br />

O jogo econômico ....................................................73<br />

O mundo é uma escola..............................................75


Eu conheço Jesus......................................................77<br />

Deu bandeira...............................................................79<br />

Entre o céu e a terra...............................................81<br />

Carona pra sogra......................................................84<br />

Um homem chamado Denise .....................................86<br />

Salvo pelo Jacaré.....................................................88<br />

O fim do mundo...........................................................90<br />

Agosto.........................................................................93<br />

Esquecido....................................................................96<br />

Pesadelo atômico......................................................99<br />

E agora?....................................................................101<br />

Pão-duro....................................................................103<br />

Tolerância zero.......................................................105<br />

Sofia e a Flor............................................................107<br />

Solua .........................................................................109<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba.112<br />

Dia da criança............................................................114<br />

POESIAS.....................................................................115<br />

Estrelas felizes.......................................................117<br />

O presente do passado..........................................118<br />

Dia sem mãe................................................................119<br />

Você ...........................................................................120<br />

Andarilho..................................................................122<br />

Desculpas pela minha existência..........................124<br />

Ser gente..................................................................125<br />

Foi Deus quem fez você..........................................127


CRÔNICAS<br />

E<br />

CONTOS


CRÔNICAS E CONTOS 17<br />

O retrato da morta<br />

José Laura era muito esperto e inteligente. Na carpintaria,<br />

era profissional respeitado, fazia uma canga de boi<br />

como ninguém, aparava o tronco com machado e depois<br />

ia formando a peça com enchó até surgir a principal ferramenta<br />

para o boi puxar, o carro. Ele estava até fazendo<br />

roda d’água, era só ver uma peça que ele fazia igual e toda<br />

máquina que ele desmontava, montava novamente, funcionando<br />

em perfeita condições. Em Cascalho Rico, essas<br />

pessoas eram chamadas de Mestre, foi assim que surgiu<br />

Mestre Zé Laura.<br />

Nos anos 1940, ele inventou de ir a São Paulo conhecer<br />

a tal de penicilina. Ficou sabendo de um doutor que estava<br />

vendendo e ensinando a aplicar injeção. Foi lá, aprendeu<br />

e salvou muita gente doente. Descobriu que achava a<br />

penicilina mais barata no Porto de Santos. Ela vinha em<br />

caixa de madeira com serragem e gelo para conservar.


18<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Depois de comprá-la, o Mestre Zé Laura renovava o gelo e<br />

seguia de trem para aplicar nos doentes em Cascalho Rico.<br />

A sua vontade de conhecer as coisas era muito<br />

aguçada, mas na sua juventude era muito mais. Contam<br />

que, naquela época, chegou à cidade um retratista em seu<br />

cavalo, vinha puxando uma mula com toda a tralha que era<br />

uma novidade espetacular. Mestre Zé Laura ficou fascinado<br />

com a tecnologia de registrar a imagem de pessoas em um<br />

papel. Foi logo especular o retratista, que lhe ofereceu<br />

emprego, pois precisava de um ajudante. O Mestre não<br />

pensou duas vezes, arreou o cavalo, pegou uma trouxa<br />

de roupa, seguindo viagem com o retratista e a grande<br />

novidade.<br />

Durante a longa jornada, iam parando nas fazendas,<br />

oferecendo os serviços de colocar no papel o presente que<br />

serviria no futuro como prova da existência. O Mestre Zé<br />

Laura levava dois embornais atravessados no pescoço,<br />

do lado esquerdo, os chassis de negativos virgens e do<br />

lado direito os já usados e prontos para revelar. Depois<br />

de revelados, era só entregar as fotografias e receber pelo<br />

trabalho.<br />

Certo dia, eles seguiram para uma fazenda, pois<br />

souberam que haveria a realização do casamento de um<br />

fazendeiro, viúvo, rico com uma linda jovem. O momento<br />

exigia um registro especial.<br />

Depois de fotografado o casal, o Mestre fez o seu<br />

erro fatal, colocou o chassi usado para a foto no embornal<br />

esquerdo, junto com os virgens. Na próxima parada, havia<br />

um enterro de uma mulher. Prontamente, os parentes<br />

pediram que registrassem a última imagem da falecida.<br />

Não é que foi usado, justamente, o chassi que continha a<br />

foto do casamento o que acarretou uma sobreposição, ou<br />

seja, duas fotos no mesmo negativo.<br />

Na hora de revelar, o retratista ficou contrariado por<br />

ter perdido o trabalho realizado. Na fotografia, saiu o casal<br />

de noivos e o caixão atravessado no meio. Pronto, perdera o<br />

serviço. Agora, tinha que se desculpar com as famílias.<br />

Ao chegar à fazenda, do ex-viúvo e casadinho de<br />

novo, encontrou todas as famílias ansiosas para ver o


CRÔNICAS E CONTOS 19<br />

retrato. Antes de falar qualquer coisa, o retratista tirou a<br />

fotografia, mostrando-a para tentar justificar o erro. Foi o<br />

maior alvoroço. Começaram a se assustar afirmando que<br />

a esposa morta veio do além para impedir o casamento,<br />

saindo atravessada na foto do casal. O retratista ficou sem<br />

graça e, sem se justificar, saiu até sem cobrar os serviços.<br />

O dia ainda não tinha findado, quando, à porta da<br />

pensão onde estavam hospedados, já havia uma grande<br />

aglomeração de gente interessada para ver e comprar a<br />

prova de que a morta veio para atrapalhar a vida do novo<br />

casal.<br />

O retratista, que era mais ganancioso do que honesto,<br />

foi só vendendo as cópias, aproveitando que nem todos<br />

entendiam o que ocorrera verdadeiramente com a foto.<br />

O Mestre Zé Laura, para não perder o emprego, ficou<br />

caladinho. Assim, a fotografia da morta foi guardada por<br />

muita gente que ficou impressionada com o sobrenatural.


20<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O mal que não tem cura<br />

O Rio Paranaíba e seus afluentes guardam, em suas<br />

margens, o marco de uma história cheia de aventuras, de<br />

um passado glorioso, revestido pelas culturas populares.<br />

Hoje os nossos avós, em um bom papo, revelam-nos as<br />

cenas que ficaram na memória do povo e que nem sempre<br />

são fatos alegres.<br />

Na revolução de 1930, dizem os mais velhos, não<br />

existia rádio na região e as notícias vinham de boca em boca<br />

e, muitas vezes, chegavam, ao destino, distorcidas. Um dia,<br />

chegou a Rio das Pedras, povoado mineiro, a notícia de que<br />

uma coluna de milícia estava pegando gente para servir em<br />

combate. O corre-corre foi geral, os homens armazenavam<br />

mantimentos para vários meses e escondiam na Cana<br />

Brava, um mato que ficava perto do barranco mineiro do<br />

Rio Paranaíba.


CRÔNICAS E CONTOS 21<br />

Os canoeiros, que faziam a travessia dos viajantes no<br />

Paranaíba, sempre encontravam os desertores, que pediam<br />

segredo das suas passagens. Logo atrás, vinham as colunas<br />

de milícia indagando o paradeiro dos fugitivos, passavam e<br />

não encontravam ninguém, partindo para outro local.<br />

Bem cedo, já sem perigo para os fugitivos do Campo<br />

de Meio, os impertinentes viam a fumacinha aparecendo<br />

entre as copas das árvores, identificando a presença dos<br />

desertores amoitados e gritavam bem alto:<br />

– Corre que a coluna já vem!<br />

Pouco tempo depois, a fumaça dissipava-se, evidenciando<br />

que o medo fora mais forte que a fome. Os desertores<br />

fugiam para outro local, pois quem foge não tem sossego.<br />

Com a ditadura de Getúlio Vargas, em 1945, o então<br />

Ministro da Saúde decretou o recolhimento de todos que<br />

sofriam hanseníase, para uma colônia em Bambuí, cidade<br />

perto de Belo Horizonte. As famílias não abriam mão dos<br />

entes queridos doentes, mas a polícia ia às fazendas e levava<br />

os leprosos à força, deixando os familiares aos gritos de<br />

desespero. Até João Felipe, que já apresentava um quadro<br />

clínico sob controle, foi levado na mira de fuzil.<br />

As pessoas que tinham um caso de hanseníase na<br />

família sentiam como se a morte estivesse rondando a<br />

região, achavam que os parentes doentes seriam fuzilados e<br />

pediam para deixá-los morrerem em paz.<br />

Com o tempo, os internos ganhavam licença de 15<br />

dias ao ano, para visitarem as famílias que esqueciam a<br />

ideia do fuzilamento. Às vezes, na paz das manhãs de<br />

verão, os convalescentes tomavam sol nas varandas dos<br />

casarões, ouvindo o sabiá nas laranjeiras e o mugir das<br />

vacas à procura dos bezerros.<br />

Os impertinentes novamente entravam em cena<br />

e, ao passarem pela estrada, guiando seus carros de<br />

bois gemedores, ofendiam os doentes, chamando-os de<br />

macutena.<br />

Quase sempre, alguém replicava tomando as dores<br />

para si:<br />

– Não faça isso, Deus castiga! Deixa o doente na paz<br />

do Divino Pai Eterno. Ofender é pecado.


22<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O passar dos anos foi acompanhado de muitos avanços<br />

científicos, possibilitando um tratamento humanizado para<br />

quem sofre de hanseníase. No entanto, o estigma em relação<br />

a essa doença é tão grande que muitos deixam de procurar<br />

tratamento especializado para não se tornarem vítimas do<br />

preconceito. Infelizmente, para esse mal ainda não encontraram<br />

a cura.


CRÔNICAS E CONTOS 23<br />

Pedaço de carvão<br />

Como uma flecha ele passou correndo à procura de<br />

abrigo. Acomodou-se logo abaixo do viaduto, estendeu<br />

umas folhas de jornais e sentou-se. O neguinho se sentia<br />

esperto, acomodou também a sua bagagem. Era tudo<br />

produto de roubo realizado pelo trombadinha naquele dia.<br />

Escurecia e foi obrigado a acender uma fogueira<br />

para iluminar e aquecer. Fez o balanço do dia, abriu uma<br />

sacola que continha blusas e lenços e foi estrategicamente<br />

esquecida. Em uma bolsa, havia maquiagem, isqueiro,<br />

cigarros e muito pouco dinheiro. Separou o dinheiro e<br />

escondeu o resto.<br />

Essa sacola foi fácil, foi tomada de uma velhinha, tinha<br />

uma estampa com a imagem de Jesus Cristo com uma coroa<br />

de espinhos na cabeça. Olhou com detalhes e não gostou.<br />

Achou-a muito triste, mas havia outra estampa diferente,


24<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

em que aparecia Jesus Cristo em um banco de jardim e, em<br />

sua volta, várias crianças lourinhas pulando e se divertindo,<br />

logo abaixo a frase: “Vinde a mim as criançinhas”. Achou<br />

bonito, até interessante.<br />

Ficou ali olhando, à luz da fogueira, aquele cenário<br />

bem diferente do seu. Começou então a ficar triste com a<br />

realidade. Pegou um chiclete que mascava, foi até o paredão<br />

de concreto do viaduto e pregou a estampa. Afastou-se e<br />

ficou triste conferindo a imagem.<br />

Foi até a fogueira, pegou um pequeno pedaço de<br />

carvão, seguiu até a estampa e pintou todas as crianças<br />

loirinhas de preto.<br />

Afastou-se e conferiu, Jesus Cristo sentado em um<br />

banco de jardim sorrindo e cheio de negrinhos pulando em<br />

sua volta.<br />

Ficou feliz, sorriu, foi deitar e dormiu.


CRÔNICAS E CONTOS 25<br />

Linhas cruzadas<br />

A cidade de Anápolis sempre foi destaque no estado<br />

de Goiás devido às indústrias e a sua aproximação de<br />

Goiânia e Brasília. Na década de 1960, os serviços de<br />

telefone já apresentavam alguns avanços. Tirava-se o fone<br />

do gancho e, automaticamente, do outro lado, atendia<br />

uma prestativa telefonista. A gente pedia o número e ela<br />

completava a ligação.<br />

O próximo avanço tecnológico foi o telefone<br />

automático, as telefonistas foram dispensadas e bastava<br />

ligar para o número desejado, usando um pequeno disco<br />

perfurado e numerado. Ficamos maravilhados com a nova<br />

tecnologia e, a partir daí, surgiu o trote.<br />

Eu tinha um colega que trabalhava em um escritório<br />

de engenharia e ficava o dia todo esperando o tempo<br />

passar. Então, tivemos a ideia de ligar para qualquer<br />

número somente para constatar que do outro lado alguém<br />

atendia. Tudo isso sem ajuda de ninguém.<br />

Começamos então a conversar e pedir detalhes do<br />

interlocutor e a criatividade foi dando corda à imaginação.<br />

– Alô!<br />

– Quem está falando?


26<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

– Não importa. Eu estou ligando somente para avisar<br />

que eu vi tudo.<br />

– Tudo o quê?<br />

– Não preciso falar o quê... Somente te avisar que vi.<br />

– Pelo amor de Deus, você viu o quê?<br />

Para nós, ficava a ideia de sermos os donos de um<br />

grande segredo que não sabíamos qual era. Esse tipo de<br />

trote era eficaz, principalmente, quando era mulher que<br />

atendia. Então, apareceu um pequeno aparelho chamado<br />

BINA que identificava as ligações. Foi um grande golpe<br />

para todos os troteiros.<br />

A tecnologia avançava, mas o telefone ainda pregava<br />

algumas peças, como o fato ocorrido com Reginaldo.<br />

A esposa dele precisava fazer um exame em Goiânia<br />

e aproveitaria para passar o resto do dia na casa de uma tia<br />

que morava na capital. Ele foi levá-la. Ao deixá-la na porta<br />

do consultório, despediram-se, ela deu algumas instruções<br />

para buscá-la no outro dia e ele seguiu viagem.<br />

Logo que entrou no consultório, a mulher soube que<br />

o médico havia viajado, saiu correndo para ver se ainda<br />

alcançava o marido, mas ele já havia dobrado a esquina.<br />

Então, foi até a casa da tia e descobriu que ela viajara no dia<br />

anterior, por isso resolveu seguir para a rodoviária a fim de<br />

retornar a Anápolis.<br />

Reginaldo tinha uma loja e, chegando lá, foi logo ao<br />

telefone a fim de ligar para amante.<br />

– Meu amorzinho, minha mulher ficou em Goiânia.<br />

Vamos passar uma noite de muito amor.<br />

Nesse momento, a esposa dele já estava na rodoviária<br />

de Anápolis, fazendo uma ligação em um telefone público<br />

para o marido buscá-la, ocorreu linha cruzada e ela ouviu<br />

toda a conversa.<br />

Calada, pegou um táxi e se dirigiu para a sua<br />

residência, juntou todas suas roupas e foi para a casa de sua<br />

mãe.<br />

Quando Reginaldo voltou do encontro com a amante,<br />

foi direto para o banheiro, tomou um banho caprichado e,<br />

ao procurar uma camisa, assustou-se com a falta das roupas<br />

da esposa.


CRÔNICAS E CONTOS 27<br />

Foi correndo para o telefone:<br />

– Dona Dagmar, a senhora acredita que um ladrão<br />

entrou aqui em casa e roubou todas as roupas da Amelinha.<br />

– Roubou não. Amelinha está aqui em casa. Ela pegou<br />

todas as roupas e resolveu te deixar.<br />

Assim, aproveitando a ocasião, Dona Dagmar contou<br />

toda a história para um Reginaldo assustado e arrependido.<br />

Ele não pensou duas vezes, fez as malas e seguiu para a casa<br />

da sogra.<br />

Ao chegar, foi logo suplicando:<br />

– Estou aqui para te pedir perdão e não saio sozinho.<br />

Se você ficar na casa da sua mãe, eu também fico. Não te<br />

largo e não deixo você me largar.<br />

Essa foi a sua forma de se desculpar e declarar o seu<br />

amor.<br />

O telefone continuou desenvolvendo novas tecnologias,<br />

construindo histórias, algumas são assim, de traição<br />

e amor.


28<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Pérolas da política<br />

Pedro Carvalho era uma pessoa muito interessante,<br />

estatura pequena, fala mansa, inteligente, um humor<br />

invejável e aberto a grandes conversas. Tinha uma peculiaridade,<br />

bebia cerveja ao natural. Isso mesmo, sem gelar.<br />

Funcionário Público lotado na Receita Estadual,<br />

pertencia ao PSD – Partido Socialista Democrático – e<br />

direcionava à UDN – União Democrática Nacional – as suas<br />

principais críticas.<br />

Era de praxe os correligionários desses partidos<br />

debaterem. Na década de 1960, existia até uma piada<br />

narrando a história de um coronel do PSD, que já moribundo<br />

em seu leito de morte, chamou os filhos e sussurrou:<br />

– Vão lá correndo e busquem uma ficha de filiação na<br />

UDN que eu quero assinar.<br />

Os filhos apavorados queriam uma explicação.<br />

– Pai, o Senhor sempre foi fiel ao PSD e agora no final<br />

dos seus dias vai bandear?


CRÔNICAS E CONTOS 29<br />

– Se eu me filiar e morrer hoje, amanhã vai sair nos<br />

jornais: “Morreu um coronel da UDN”. Isso vai me fazer<br />

muito feliz.<br />

Nas eleições de 1954, o Pedro Carvalho foi convocado<br />

para presidir uma seção eleitoral da cidade do Panamá.<br />

Concorriam os candidatos à Presidência da República<br />

Juscelino Kubitschek, pelo PSD, contra Juarez Távora pela<br />

UDN.<br />

Logo de madrugada, ele foi até a praça e viu os fazendeiros<br />

chegando com seus cavalos e tratando de amarrá-los<br />

nas árvores. Deu um grande grito para reunir todos em sua<br />

volta e foi logo falando:<br />

– Quem for votar no Juscelino pode ficar, mas os que<br />

forem votar no Juarez podem voltar amanhã. Mandaram<br />

somente as urnas do Juscelino.<br />

Muitos fazendeiros retornaram, ficando apenas os<br />

interessados em votar no Juscelino.<br />

Pedro Carvalho contava essa história e ria às soltas.<br />

E quando Juscelino venceu as eleições para Presidente<br />

do Brasil, ocorreu outro fato inusitado. O PSD de<br />

Itumbiara enviou um telegrama para o Rio de Janeiro, que<br />

era capital brasileira naquela época, pedindo um emprego<br />

a uma militante do Panamá que trabalhou muito em busca<br />

de votos.<br />

Depois de um mês, veio a nomeação da militante para<br />

ser diretora de um Grupo Escolar. O diretório assustado<br />

mandou outro telegrama tentando corrigir a situação, pois<br />

aquela senhora era analfabeta. Então, dentro de um mês, ela<br />

foi aposentada.<br />

E, assim, na história da cidade, não há registro de<br />

alguém que tenha conseguido ascensão profissional tão<br />

rápida.


30<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

As cartas não mentem<br />

O nome da minha mãe era Josina, mas todos a conheciam<br />

como Xirica. Esse apelido nem mesmo ela sabia como<br />

conseguiu e por quê. Desde menina que todos a chamavam<br />

de Xirica. Ela era uma pessoa que ouvia a todos que se aproximavam<br />

e começavam a falar de qualquer assunto, ia ouvindo<br />

e perguntando “é mesmo?” Ou vinha com o chavão<br />

“é verdade?”. No fundo, era uma pessoa muito crítica, revelava<br />

um gosto apurado, mas procurava não ofender o interlocutor.<br />

Tinha sempre um jeito simples, acolhedor e muito<br />

educado.


CRÔNICAS E CONTOS 31<br />

Um dia, estava ela aguando a sua horta e olhando as<br />

folhas das couves procurando marandová. Morria de medo<br />

deles, quando via um gritava para que fôssemos retirá-lo da<br />

folha e matá-lo para não proliferar em toda a horta. Assim,<br />

estava entretida nessa tarefa, quando apareceu Madame<br />

Zuraia, a vizinha que tinha como ocupação ler a sorte<br />

através do baralho e nas horas vagas fazer fofoca.<br />

Chegou e já foi desfiando o rosário:<br />

– Dona Xirica, eu nem te conto! Sabe o Sebastião,<br />

aquele bigodudo da Polícia Rodoviária Federal, aquele que<br />

tem uma moto grande e mora na segunda rua de baixo?<br />

– Sei.<br />

Respondeu minha mãe, sem saber quem era, mas<br />

para encurtar a conversa falou que sabia.<br />

– Pois é, ele está enrabichado por uma conhecida<br />

minha do bairro Jaiara, chamada Cleide. Uma loira provocante<br />

por quem ele ficou apaixonado. Parece que vai até dar<br />

uma casa para ela morar.<br />

– É mesmo?<br />

– A mulher dele não sabe, mas lá no Jaiara, todo<br />

mundo está vendo ele chegar com a motocicleta. Chega e já<br />

vai entrando pelo portão e ficam lá a tarde inteira.<br />

– É verdade?<br />

– Este mundo esta perdido!<br />

Naquele momento, chegou uma mulher e perguntou<br />

para as duas.<br />

– Qual de vocês é a Madame Zuraia?<br />

– Sou eu, minha filha.<br />

– Estou querendo ler a minha sorte. Eu moro na<br />

segunda rua de baixo, sou esposa do Sebastião, aquele da<br />

Polícia Rodoviária Federal. A senhora põe as cartas?<br />

– Mas é claro, minha filha, vamos para a minha casa.<br />

Saíram as duas para consultar o baralho, essa famosa<br />

ciência oculta. Enquanto isso minha mãe olhou para mim,<br />

fez aquele sorrisinho de sarcasmo e falou:<br />

– Desse jeito é fácil adivinhar a vida dos outros. Assim,<br />

até eu consigo.


32<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

As paixões de Tiãozinho<br />

Quem conheceu Sebastião do Prado tinha uma<br />

admiração pelo seu jeito falastrão e brincalhão. O baixinho<br />

era mais conhecido por Tiãozinho. Ele gostava muito de<br />

beber e depois de umas cervejas, soltava o verbo contando<br />

as suas peripécias da juventude. O bar era o seu palco<br />

preferido, os conhecidos sabendo do seu costume e dos<br />

causos picantes, quando o viam bebendo no balcão, já se<br />

postavam ao seu lado.<br />

Naquele dia, depois de virar um gole longo de<br />

cerveja, ele começou a contar que, quando era jovem, tinha<br />

um caminhão Mercedes Benz Pescocinho para fazer frete<br />

da Campininha de Goiânia para a região da estrada de<br />

ferro. Pegava as compras dos pequenos armazéns e fazia<br />

a entrega. O roteiro era de mais ou menos trezentos quilômetros,<br />

saía de madrugada e voltava à noitinha.<br />

Os companheiros de copo ficaram atentos à narrativa<br />

de Tiãozinho:


CRÔNICAS E CONTOS 33<br />

– Em Bela Vista, uma das cidades do trajeto, havia<br />

um pequeno armazém, daqueles do interior onde se vende<br />

tudo. O dono, o Senhor Oclécio, tinha uma mulher muito<br />

bonita de rosto e corpo, ele a chamava de Santinha. Eu não<br />

sabia o nome verdadeiro dela, mas para mim ficou Santinha<br />

mesmo. E não é que ela estava me olhando com muito<br />

interesse. Eu fiquei louco de vontade de pegar a Santinha do<br />

Oclécio, mas ele não dava folga, tinha um ciúme exagerado<br />

da mulher. Em todas as minhas viagens, eu ficava planejando<br />

uma forma de pegar a Santinha, pois não é que, em<br />

uma dessas viagens, o Oclécio veio me perguntar:<br />

– Tiãozinho, que hora você está de volta para Goiânia?<br />

– De noite, Oclécio, mas por quê?<br />

– É que a Santinha tem que fazer uns exames e a gente<br />

queria uma carona. Vamos ficar na casa de uns parentes dela.<br />

– Pode deixar que, na volta, lá pelas oito horas da<br />

noite, passo aqui.<br />

– O Oclécio agradeceu. Aquela situação havia caído<br />

do céu. O resto da viagem fiquei imaginando uma forma de<br />

agarrar a Santinha.<br />

Todos estavam muito curiosos para saber o desfecho<br />

da história. Entre um gole e outro, Tiãozinho ia desenrolando<br />

os acontecimentos:<br />

– Quando a noite estava caindo, cheguei à porta do<br />

armazém. Vieram o Oclécio e a Santinha, sentaram-se na<br />

boleia do caminhão, ela perto de mim. Eu chegava a arrepiar<br />

imaginando a hora do acocho. No meio da viagem, eu pisei<br />

no breque e falei: “Nossa Senhora, deu um problema no<br />

breque”. O Oclésio assustado me perguntou:<br />

– O que é breque?<br />

– É o freio. Faz o seguinte, você fica pisado no freio e<br />

a Santinha vem comigo com a lanterna para ver se consigo<br />

consertar.<br />

A essa altura o silêncio no bar era absoluto, Tiãozinho<br />

estava empolgado, contanto mais uma de suas aventuras:<br />

– Peguei um alicate e um martelo e dei a lanterna para<br />

a Santinha e fomos para trás do caminhão. Gritei: “Pisa no<br />

freio.” Ele pisou e a luz do freio acendeu. Tava feito o plano.<br />

Agarrei a Santinha e fui correspondido. Estava no bem bom


34<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

quando o Oclécio sentiu uma câimbra, bambeou o pé no<br />

freio e a luz apagou. Gritei de novo: “Pisa no freio, ai meu<br />

dedo. Pisa no freio”. Ele pisou e a luz voltou a acender e,<br />

enquanto a luz estivesse acesa, nós estávamos livres. Assim,<br />

todos ficamos satisfeitos, o Oclécio achando que salvou o<br />

meu dedo, eu que tinha realizado o meu sonho e a Santinha<br />

que estava com os olhos brilhando.<br />

Tiãozinho tomou mais um copo de cerveja e despediuse,<br />

ninguém ousou questionar a veracidade do relato.<br />

Afinal, suas histórias alegravam aqueles que tentavam<br />

afundar suas amarguras na mesa do bar.


CRÔNICAS E CONTOS 35<br />

As peripécias de Fontenelle<br />

Na década de 1960, havia dois veículos de comunicação<br />

que atingiam todo o Brasil, principalmente as cidades<br />

do interior, a revista semanal O Cruzeiro e a Rádio Nacional<br />

do Rio de Janeiro.<br />

Ficávamos ávidos das notícias dos grandes centros<br />

urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, particularmente<br />

sobre as ações exageradas e inesperadas do Prefeito Jânio<br />

Quadros da cidade de São Paulo. Acredita-se que o ditado:<br />

“O suor de funcionário público serve para curar câncer”,<br />

seja daquela época, por isso as saídas de Jânio Quadros<br />

pelas madrugadas flagrando funcionários faltosos, relapsos<br />

e displicentes eram notícias apreciadas pelos brasileiros.<br />

De modo especial, quando eles eram demitidos na hora do<br />

flagrante. O Brasil, naquela época, era assim.<br />

Em um dia quente de verão, veio a notícia de um<br />

Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo chamado<br />

Fontenelle que gostava de imitar as ações extravagantes


36<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

do Prefeito Jânio Quadros. Fontenelle saía para as ruas à<br />

procura de infratores no trânsito. Ao se deparar com um<br />

carro estacionado em local proibido, parava a sua equipe e<br />

esvaziava um pneu.<br />

Na cidade de Anápolis, por coincidência, existia um<br />

Tenente da Polícia Militar do Estado de Goiás chamado<br />

Fontenelle, também encarregado pelo trânsito da cidade.<br />

Era muita coincidência.<br />

Logo depois que a notícia das peripécias do Fontenelle<br />

paulista surgiu, o goiano foi logo imitá-lo. Saiu com a<br />

sua equipe à procura dos infratores. No centro da cidade,<br />

em frente ao BANESPA – Banco do Estado de São Paulo –<br />

estava estacionado um fusca bem na esquina, infringindo<br />

a lei. Fontenelle parou, convocou os seus auxiliares para<br />

orientar o trânsito.<br />

Começou a se formar uma pequena aglomeração.<br />

Fontenelle foi até o fusca, agachou e começou a esvaziar o<br />

pneu. Chegou um gaiato e falou:<br />

– Muito bonito, hem!<br />

– Se achou ruim, vou esvaziar os outros pneus,<br />

retrucou Fontenelle.<br />

E foi esvaziando o outro dianteiro e os dois traseiros e<br />

ainda ameaçou:<br />

– Se falar mais alguma coisa é só me dar as chaves que<br />

vou esvaziar o pneu de estepe.<br />

– Eu não, o carro não é meu – confessou o gaiato<br />

saindo de fininho.<br />

Foi uma risada só entre as testemunhas de mais uma<br />

das peripécias do Fontenelle goiano.


CRÔNICAS E CONTOS 37<br />

caryl chessmaN<br />

Acordei na manhã do dia 2 de maio de 1960, tomei<br />

café da manhã rapidamente e me sentei ao lado do rádio<br />

Philco Transglobe de 8 faixas à procura da sintonia com a<br />

Rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro, que transmitiria<br />

a execução de Caryl Chessman, na Prisão de San Quentin,<br />

Estado da Califórnia.<br />

Passei toda a semana lendo a revista O Cruzeiro que<br />

detalhou quem era o réu, as investigações, a condenação e<br />

a sua execução na câmara de gás. Condenado pelos crimes<br />

de estupro e roubo nas colinas de Hollywood, ele era conhecido<br />

como “O<br />

Bandido da Luz<br />

Vermelha”, devido<br />

à utilização<br />

de uma lanterna<br />

de luz vermelha<br />

para se aproximar<br />

das vítimas<br />

imitando um<br />

policial.<br />

Ele passou<br />

a maior parte de<br />

sua vida nas prisões,<br />

mas negou<br />

e lutou fantasticamente<br />

para<br />

anular a pena<br />

capital. Sua luta<br />

teve repercussão<br />

mundial e várias<br />

organizações ligadas<br />

à defesa<br />

dos direitos humanos<br />

manifestaram-se<br />

contra


38<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

a execução, no entanto duas vítimas o reconheceram em<br />

seus depoimentos, o que determinou a implacável condenação.<br />

Enquanto esteve atrás das grades lutando contra a pena<br />

máxima, ele estudou e escreveu muito, aumentando ainda<br />

mais a admiração de uma legião de pessoas pelo mundo<br />

afora. A obra biográfica “2455 – Cela da Morte” foi o livro<br />

mais lido na década de 1960, vieram depois os livros: “A Lei<br />

Quer Que Eu Morra”, “A Face Cruel da Justiça” e “O Garoto<br />

Era Um Assassino”.<br />

Foram realizados dez apelos e várias petições encaminhadas<br />

à Suprema Corte dos EUA, conseguindo adiar sete<br />

vezes a data marcada para a sua execução. A luta inglória,<br />

que durara 11 anos e 10 meses, chegou ao fim.<br />

A imprensa dava detalhes de como seria a execução, a<br />

raspagem da cabeça, a última refeição, a confissão com um<br />

pastor ou padre, o caminho para a câmara de gás, a forma<br />

de imobilização em uma cadeira com cintos, a leitura da<br />

sentença, o fechamento da câmara, a cortina aberta para<br />

que as testemunhas assistissem à execução e o carrasco<br />

acionando uma pequena alavanca que liberaria uma<br />

cápsula de cianeto de hidrogênio que misturada em um<br />

recipiente de água, logo abaixo da cadeira, exalaria o gás<br />

mortal.<br />

Ficamos ali atentos esperando qualquer desfecho.<br />

Poderia ser que, a qualquer momento, chegasse uma carta<br />

de clemência do governador da Califórnia, Par Brown,<br />

suspendendo a execução ou apenas a narrativa do locutor<br />

confirmando a morte de Caryl Chessman.<br />

Foi chocante, quando às 10 horas, horário da<br />

Califórnia, o locutor narrou: “Caryl Whittier Chessman está<br />

morto!”<br />

Questionamos a lei dos homens, imaginamos a vida<br />

ordenada à margem da lei de Deus e ficamos confusos.<br />

Naquele momento, acabava-se a esperança de manter<br />

uma vida, mas continuava, ainda, a dúvida, Caryl seria<br />

culpado ou inocente?


CRÔNICAS E CONTOS 39<br />

Dona Santa<br />

– Depressa, está na hora de tomar banho, hoje é sextafeira<br />

e vamos à casa da Dona Maria da Santa.<br />

– Mamãe, eu queria ficar para estudar.<br />

– Não, menino, você estuda amanhã que é sábado.<br />

Hoje é dia da Santa.<br />

Segui calado e cabisbaixo rumo ao quarto para me<br />

equipar de chinelos e toalha, porque se entro no banheiro<br />

sem esses apetrechos era a maior bronca.<br />

– Lave as orelhas. Vou olhar quando sair.


40<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Era sempre assim, bronca, bronca e bronca, mas eu lavava,<br />

não custava nada. Era bucha que ardia no pescoço e<br />

sabão de bola, só no sábado e domingo que se usava sabonete<br />

cheiroso.<br />

– Quando acabar, puxa a água, o rodo esta aí dentro.<br />

Enxugo, enxugo e puxo a água, tudo isso para ir à<br />

casa da Dona Maria da Santa. Vesti as calças curtas e calcei<br />

as botinas de cravos, penteei o topete cheio de brilhantina e<br />

vesti a camisa grossa de algodão.<br />

– Vamos.<br />

E fui, segurado pela mão, o que não me agradava,<br />

porque a turma ficava mangando de mim, mas fui. Tudo isso<br />

para ir à casa da Dona Maria da Santa, uma casa pequena,<br />

onde a cozinha fazia às vezes de sala e divisa com o quarto.<br />

Quinze pessoas enlatadas em um cômodo pequeno, poucas<br />

cadeiras, eu estava sentado, porque cheguei mais cedo.<br />

Era sempre assim, vinha tudo por cima de mim.<br />

– Levanta, menino, dá lugar pro seu Genaro.<br />

Eu sabia, sentei de lerdo.<br />

Todos acomodados e lá vai fofoca, pregação da vida<br />

alheia, língua de trapo e eu ouvindo calado. Seu Genaro,<br />

mascador de fumo, passava o naco para o outro lado<br />

da boca e dava uma cuspida que caía no chão batido e<br />

respingava nas minhas pernas. Desgraçado! Esfregava uma<br />

canela na outra para esparramar os respingos, só assim<br />

secavam mais rápido.<br />

– Vamos rezar o terço pessoal que está na hora.<br />

Dona Maria comandava o pessoal.<br />

– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,<br />

Amém. Ave Maria, cheia de graça...<br />

E o terço era repetido em coro. Para passar o tempo,<br />

eu ficava olhando os cabelos de Dona Preta presos em<br />

coque e um terço de contas grandes na mão. Fiquei olhando<br />

o terço, o Cristo crucificado balançando, balançando, cansei<br />

de olhar para ela e ouvir a sua voz de taquara rachada. Não<br />

havia nada de novidade para olhar, era o mesmo quadro<br />

da sexta-feira passada. Seu Pafúncio era engraçado: “Afe<br />

Maria, feia de graça...”, meu pai achava que ele tinha um<br />

ovo dentro da boca.


CRÔNICAS E CONTOS 41<br />

Minha mãe ficava com olhos vidrados na Dona<br />

Maria da Santa, fascinada com os poderes que ela contava<br />

que tinha. No canto direito, estava deitado o Ximbica, um<br />

vira-lata de olhos remelentos. Por causa dele, na semana<br />

passada, levei muitos cascudos por ter pisado no seu rabo.<br />

Foi uma gritaria e assustou todo mundo. Também casa<br />

não é lugar de cachorro, casa é de gente, mas ninguém me<br />

entendeu.<br />

– Amém!<br />

Terminou Dona Maria da Santa colocando o terço no<br />

altar.<br />

– Agora vamos ver a Santa.<br />

Pediu a Mariquinha para apagar os candeeiros,<br />

porque Santa vem só no escuro. Santa gosta de escurinho.<br />

Eu segurei no varal da prateleira para não me sentir perdido<br />

na escuridão.<br />

– Olha ela lá!<br />

Era a Dona Maria da Santa, ela era sempre a primeira<br />

a ver. Também pudera! A Santa era dela.<br />

– Olha ali, no cantinho, ela está andando pro rumo da<br />

janela. Agora, chegou à tramela. As mãozinhas dela, olha o<br />

terço. Que coisa mais linda!<br />

– Eu tamém tô veno.<br />

Era o seu Genaro, só ele e Dona Maria da Santa viam a<br />

Santa. Eu firmei a vista, esfreguei os olhos e fiz de um tudo,<br />

mas não consegui ver a Santa.<br />

Eu não desisto, quando crescer vou mastigar fumo e<br />

então...


42<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Quem ri por último, ri atrasado<br />

Acredita que existem pessoas que guardam uma<br />

piada por muito tempo para contá-la? Pois existem. Brasil<br />

era alfaiate, sistemático e sisudo, mas começou a pensar em<br />

uma situação bem engraçada.<br />

Ele imaginou juntar dinheiro para comprar um carro<br />

e, chegando à concessionária, perguntaria:<br />

– Quanto custa aquele carro?<br />

Quando o vendedor dissesse o preço, ele abriria o<br />

embrulho, retiraria o dinheiro e falaria:<br />

– Embrulha o carro que vou levar!<br />

Para você, isso pode não parecer engraçado, mas o<br />

Senhor Brasil achava o máximo a possibilidade de participar<br />

dessa cena.<br />

Durante doze anos, juntou dinheiro para conseguir<br />

o valor do automóvel. Tirou a carteira de habilitação e foi<br />

à concessionária de veículos e escolheu um DKV Vemaget<br />

verde-abacate. A cena que imaginara ocorreu da mesma


CRÔNICAS E CONTOS 43<br />

forma como foi planejada. Veio uma vendedora para<br />

atendê-lo. Ele perguntou o preço e foi informado:<br />

–Trinta mil cruzeiros.<br />

Brasil inchou o peito e disse a frase que vinha<br />

guardando há tanto tempo:<br />

– Embrulha o carro que vou levar!<br />

Colocou o dinheiro na mesa e sorriu.<br />

A vendedora não entendeu nada, saiu e foi tirar a nota<br />

fiscal.<br />

O Brasil pegou o DKV e saiu satisfeito da sua<br />

façanha. Achou a piada o máximo, porém, ao entrar na<br />

avenida principal, deparou-se com uma blitz policial. O<br />

Cabo Osvaldo mandou parar e aproximou-se pedindo os<br />

documentos e a habilitação.<br />

– Cadê a placa do automóvel?<br />

– Não tá vendo? É novinho, tá na nota fiscal. Comprei<br />

agora.<br />

O Brasil entregou a nota fiscal e a habilitação novinha<br />

para o Cabo Osvaldo.<br />

– Carteira novinha também. Onde comprou a habilitação?<br />

O Brasil estrilou.<br />

– Não! A carteira foi a sua mãe quem me deu depois<br />

que eu dormi com ela.<br />

– Teje preso. Desacato a autoridade.<br />

Cabo Osvaldo levou o Brasil para o tenente comandante<br />

da blitz. Cada um deu a sua versão para o desafeto. O<br />

tenente riu às gargalhadas, dizendo-lhes:<br />

– Os dois estão errados. O cabo não poderia se<br />

expressar dessa maneira e o Brasil não poderia responder<br />

também desse modo. Quero que os dois se desculpem e se<br />

cumprimentem com um aperto de mão<br />

Assim foi feito e assim ficou decidido. Ficou um<br />

exemplo: a piada do embrulha o carro, que o Brasil ficou<br />

arquitetando por doze anos não emplacou, mas a da carteira<br />

de habilitação deu o que falar.


44<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Toninho Dondoca<br />

Foi como um soco direto no estômago, a boca secou e<br />

as vistas ficaram por um instante fora de foco. Foi assim que<br />

Toninho recebeu a notícia do assassinato do pai.<br />

O informante tinha a sua idade, oito anos, chegou<br />

quando Toninho estava brincando no portão de sua casa e<br />

foi logo destrinchando a notícia.


CRÔNICAS E CONTOS 45<br />

– Mataram o seu pai no Sinucão do Alcides. Foi o Zé<br />

Pereira que deu três facadas. Levaram o Seu João para o<br />

hospital, mas o povo tá falando que ele chegou lá, já morto.<br />

A mãe não estava em casa e Toninho ficou ali no<br />

portão sem saber o que fazer. Tinha vontade de chorar, mas<br />

não dava conta e então veio o primeiro grito. Ficou gritando<br />

até os vizinhos chegarem para prestar socorro e saber do<br />

acontecido.<br />

Maria Abadia, sua mãe, era uma nordestina forte que<br />

vivia da costura. Ela relatava que na sua família tinha um tio<br />

que foi cangaceiro nos tempos de Lampião. Contava com<br />

certo orgulho a valentia da família e, principalmente, do tio,<br />

coisa a que Toninho não dava importância. Ela era franca<br />

a ponto de ofender as pessoas com a sua opinião. A sua<br />

valentia assustava a vizinhança, todo mundo tinha medo<br />

da Maria Abadia.<br />

Ela chegou, soube da notícia e saiu para dar providências<br />

ao velório. Não esboçou nenhuma reação, nem de<br />

tristeza e nem de espanto. Comportou-se como se fosse<br />

uma coisa corriqueira.<br />

O filho, depois de tomar dois copos de água com<br />

açúcar, estava ali sentado em um tamborete esperando as<br />

horas passarem. Logo mais à noite, chegou o pessoal da<br />

funerária e preparou a sala, retirando a televisão, o sofá e<br />

a mesinha para instalar os cavaletes onde seria colocado<br />

o caixão. As pessoas foram chegando e, em conversas<br />

pequenas, iam perguntando os motivos do crime, comentando<br />

o quanto era bom o João, a hora do enterro e o<br />

paradeiro do assassino.<br />

Toninho pegou o tamborete, colocando-o perto do<br />

caixão e ficou ali olhando para o corpo inerte do pai. Seus<br />

pensamentos de menino ficaram estacionados na perda e<br />

foi, aos poucos, compreendendo como seria a sua vida com<br />

a ausência do ente querido.<br />

Maria Abadia foi até o quarto e voltou com uma<br />

tesoura que foi amarrada aberta com as pontas para baixo<br />

no crucifixo, logo acima do caixão. Algumas pessoas<br />

ficaram sem saber por que aquela tesoura estava ali, mas,<br />

respeitosamente, aguardavam em silêncio uma explicação.


46<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

– Na terra dela, esta tesoura aberta de ponta para<br />

baixo significa que a família quer vingança – foi a explicação<br />

apresentada por um parente aos presentes.<br />

No entanto, Maria Abadia continuava ausente de<br />

qualquer sentimento de dor. Só olhava para o caixão e<br />

depois para o Toninho. O menino era filho único e agora ela<br />

seria o pai e a mãe para continuar a sua criação.<br />

No enterro, Maria Abadia ficou ali ao lado da cova,<br />

abaixou, pegou um pouco de terra, jogou sobre o caixão<br />

e pela primeira vez, depois do acontecido, esboçou um<br />

semblante de ódio e começou a gritar:<br />

– A morte é a vitória! A morte é a vitória!<br />

Pegou o Toninho pelas mãos e saiu do cemitério.<br />

Chegando a casa, Toninho teve a sua maior surpresa. Maria<br />

Abadia sentou, puxou um tamborete e o mandou sentar,<br />

declarando a sua sentença:<br />

– Toninho, vou sentar ali naquela máquina e vou fazer<br />

um vestido. Você vai ter que usar esse vestido até o dia em<br />

que você der conta de matar o Zé Pereira, o assassino do seu<br />

pai.<br />

Inicialmente, Toninho achou que ela estava delirando,<br />

mas a sua surpresa foi que, no dia seguinte, a sua mãe estava<br />

ao pé da sua cama com o vestido na mão e, com um olhar de<br />

águia, fuzilou a sentença:<br />

– Veste!<br />

– Mas, mãe, a senhora ficou doida. Como vou sair na<br />

rua vestido de mulher?<br />

– Não tem mais e nem menos. Veste e só vai deixar de<br />

usar vestido quando você matar o Zé Pereira, o assassino<br />

do seu pai.<br />

No primeiro dia, o Toninho não saiu de casa. Recebia<br />

os amigos no quarto e pedia para que eles chamassem<br />

os seus pais para convencer a sua mãe a desistir daquela<br />

maluquice. E a escola? Combinou com os vizinhos para<br />

levar uma troca de roupa e deixar à disposição. Saía de casa<br />

com o vestido, obedecendo à mãe e, na casa do vizinho,<br />

trocava de roupa para chegar à escola.<br />

A precaução não foi suficiente. Acabou acontecendo<br />

o que tinha medo: descobriram a sentença da mãe. A escola


CRÔNICAS E CONTOS 47<br />

inteira ficou sabendo da história. Alguns vinham compartilhar<br />

com solidariedade o seu martírio, mas a maioria<br />

queria mesmo era fazer gozação. Logo arrumaram para ele<br />

o apelido de Toninho Dondoca.<br />

A partir daí, o sofrimento do garoto se intensificou,<br />

era como levar uma pedrada quando alguém gritava o seu<br />

apelido maldito: “Toninho Dondoca”.<br />

Depois de um ano nessa luta tentando enganar a<br />

mãe, Toninho conseguiu uma vitória. De tanto pedir, a<br />

mãe atendeu, ele podia sair com o vestido por cima de<br />

uma calça. Assim, ficou mais fácil. Saía do portão para fora<br />

e já tirava o vestido, ficando com a calça e a camiseta que<br />

estava debaixo, guardando o vestido na mochila para vestir<br />

na volta. No entanto, todo o dia era a mesma coisa. Ela<br />

explicava que a honra da família tinha que ser lavada com<br />

sangue. Essa era a sua principal preocupação.<br />

Toninho tinha quatorze anos quando, certo dia, estava<br />

estudando enquanto sua mãe costurava, mas, de repente,<br />

ela parou, olhou para o lustre no teto e foi virando os olhos<br />

aos poucos, caindo para o lado e esparramou-se no chão.<br />

Toninho achou estranho, veio correndo, ajoelhou-se ao seu<br />

lado e com a ponta do vestido foi limpando a face suada da<br />

mãe já sem vida.<br />

Estava novamente o Toninho sentado no tamborete,<br />

agora ao lado do caixão da mãe. Os seus pensamentos<br />

ficaram perdidos entre o passado e o presente. Veio a<br />

tristeza da perda de outro ente querido, mas no fundo veio<br />

uma ponta de alívio da opressão. Agora não precisava mais<br />

usar o vestido, nem matar o Zé Pereira e o apelido maldito<br />

de Toninho Dondoca poderia ser esquecido.<br />

Respirou profundamente, olhou para o alto e deixou<br />

tudo nas mãos de Deus.


48<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

A vingança dos pássaros<br />

O automóvel Brasília foi grande sucesso na época do<br />

seu lançamento, quadrado, motor traseiro, grande espaço<br />

interno e conforto total. No seu auge, eu tinha uma,<br />

amarela, som amplificado, rodas especiais e coxinilho<br />

preto. Eu era o cara.<br />

Um dia ao anoitecer, desci para o centro da cidade<br />

a fim de ir ao cinema. Estacionei na Praça da República,<br />

embaixo de uma grande árvore, entrei no Cine Walter


CRÔNICAS E CONTOS 49<br />

Barra, assisti ao filme Midnight Cowboy e saí assustado<br />

com a vida noturna em Nova York.<br />

O meu susto foi maior ainda quando vi que a minha<br />

maravilhosa Brasília amarela estava branca, toda coberta<br />

de caca de passarinho. Somente o meu carro estava assim,<br />

nenhum carro ao lado foi borrado. Estava tão sujo que tive<br />

que pedir, em um pit dog próximo, uma garrafa de água e<br />

um pano para limpar o para-brisa, pois não era possível<br />

enxergar nada à minha frente.<br />

Enquanto estava limpando, um passarinho pousou<br />

no teto do carro e atrevidamente ficou me fitando,<br />

parecia que estava me ameaçando. Fiquei ali olhando<br />

o seu comportamento e tentando entender o que estava<br />

acontecendo comigo. Veio à minha mente, como se fosse<br />

um filme antigo, a lembrança de que, quando menino,<br />

levava sempre comigo um estilingue para matar passarinho.<br />

Disputava com outros amigos quem conseguia<br />

acertar mais aves.<br />

Só podia ser isto, aqueles pássaros descobriram em<br />

mim um antigo predador, por vingança, estavam cobrindo<br />

o meu carro de caca e o atrevido no teto estava me dando o<br />

troco. A vingança foi cruel!


50<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Cada cidade tem os seus loucos<br />

É uma verdade incontestável: “Cada cidade tem os<br />

seus loucos”. Nas cidades pequenas, os malucos chegam a<br />

ser um patrimônio do local. São eles motivos de piadas, de<br />

situações constrangedoras, de brigas e até interferência em<br />

manifestações políticas.<br />

Nos pequenos lugarejos, eles são engraçados.<br />

Todos têm um motivo para testar o louco. Até as mães<br />

usam a imagem dos loucos para ameaçar os seus filhos,<br />

quando eles fazem alguma estripulia, vem logo a intimidação:<br />

“Olha que eu vou chamar o Pé de pato para te<br />

levar”. Assim, devido ao medo, as ameaças funcionam<br />

com as crianças.<br />

Costumam também fazer piadas, colocando-os<br />

em situações engraçadas. Geralmente, eles perambulam<br />

pelas praças, mexendo com os transeuntes enquanto que,


CRÔNICAS E CONTOS 51<br />

nas cidades grandes, ficam jogados, ninguém liga e eles<br />

ficam nas portas das lojas fazendo gracejos nas calçadas,<br />

dançando ao som das músicas tocadas nos aparelhos que<br />

estão expostos à venda. De vez em quando, ficam agressivos<br />

e, assim, algum órgão de saúde os recolhem para<br />

providenciar um tratamento.<br />

Com certeza, todas as cidades têm os seus loucos.<br />

Os nomes são variados, alguns pitorescos, como Pé de<br />

pato, Arara, Ambrósio e muitos outros. Existem, ainda,<br />

os doidos mais excêntricos, as pessoas afirmam que eles<br />

ficam dementes em consequência de muitos estudos,<br />

justificando a máxima popular: “Ficou doido de tanto<br />

estudar”.<br />

Pardal, um morador de minha cidade, era considerado<br />

maluco, porque leu e estudou tanto que ficou doido<br />

de pedra. Eu, ainda menino, gostava de vê-lo contando<br />

coisas da natureza, novidades da ciência e até experiências<br />

de Física. Mais tarde, descobri que ele decorava tudo isso de<br />

uma enciclopédia.<br />

Ele era, também, o terror dos comícios, os políticos se<br />

precaviam mandando um segurança verificar a presença<br />

dele na plateia. A constatação de que ele estava, era motivo<br />

de uma mobilização para tirá-lo do local antes do discurso<br />

principal.<br />

Todas as vezes que algum político discursava, ele<br />

começava a criticar em voz alta, corrigindo os deslizes<br />

cometidos em relação às normas gramaticais, deixando o<br />

orador em situação constrangedora.<br />

Até o padre Salazar se sentia incomodado com Pardal.<br />

Durante as missas, era providencial colocar alguém ao seu<br />

lado para cutucá-lo se ele interferisse nos ritos litúrgicos.<br />

Um dia, o padre estava ensinando catecismo para<br />

nós no salão paroquial, quando o Pardal entrou. Toda a<br />

criançada ficou atenta. O sacerdote procurou com o olhar<br />

algum adulto para controlá-lo e nada de aparecer. Foi<br />

quando Pardal interferiu perguntando:<br />

– A igreja é a casa de Deus?<br />

– É claro, Pardal! Aqui é a casa do Senhor.<br />

– E Deus é o Senhor de todas as coisas?


52<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

– Sim, mas por que a pergunta?<br />

– Então, por que o Senhor colocou na igreja um<br />

para-raios? O Senhor acha que Deus pode destruir a própria<br />

casa? A sua fé não é grande e suficiente para acreditar na<br />

proteção divina?<br />

O padre ficou em silêncio por uns instantes, as<br />

crianças dirigiram o olhar para o Pardal, que estava questionando<br />

e ao padre que achava a pergunta inoportuna<br />

naquele momento.<br />

O silêncio pairou no ar por um instante. O padre<br />

ignorou os questionamentos de Pardal e, rapidamente,<br />

voltou aos ensinamentos do catecismo, mas não prestei<br />

muita atenção ao que ele dizia a partir daquele momento.<br />

Mentalmente, buscava respostas para tantas perguntas.<br />

Passaram-se os anos, e só então pude perceber o<br />

quanto de lucidez havia na loucura de Pardal.


CRÔNICAS E CONTOS 53<br />

Um corpo na praça<br />

Estava ali um corpo estendido no chão, bem no<br />

meio da Praça da República. Seu apelido era Tiziu, mas<br />

ninguém sabia o seu verdadeiro nome, só sabiam que ele<br />

era cobrador e fazia o seu serviço na bicicleta à qual estava<br />

agarrado. O ladrão tentou tomá-la, o Tiziu se atracou com<br />

ele e o meliante aplicou-lhe duas facadas no peito.<br />

Seu rosto estava voltado para o sol, esvaindo-se em<br />

sangue na espera das ambulâncias do SAMU e do Resgate<br />

dos Bombeiros, que foram acionados, mas ainda não<br />

haviam chegado.<br />

Tiziu olhou para o sol e, em pensamento, alimentava<br />

esperanças. Imaginou Deus convidando-o pra o céu, como<br />

se uma grande luz estivesse se abrindo e chamando a sua<br />

alma para a salvação. Estava sentido frio, sabia que estava<br />

morrendo.<br />

Um pastor, passando pela praça, aproximou-se da<br />

multidão e perguntou:


54<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

– É ladrão? Mataram ele?<br />

– Acho que ele estava roubando uma bicicleta e<br />

pegaram ele – respondeu um curioso.<br />

Uma dona de casa perguntou ao taxista:<br />

– Por que você não o leva para o hospital?<br />

– A gente não pode mexer, tem que esperar a polícia –<br />

respondeu o taxista.<br />

No entanto, ele estava mesmo era desinteressado<br />

em realizar uma corrida que, certamente, não seria paga.<br />

Na loja em frente, um locutor falava ao microfone que os<br />

des<strong>contos</strong> eram de 70%, mas ninguém se interessava, pois a<br />

loja estava vazia.<br />

Uma mãe que arrastava o filho pelas mãos resistia em<br />

chegar perto do corpo, justificando que, à noite, o menino<br />

não conseguiria dormir, ficaria impressionado.<br />

O hippie, que estava fazendo as suas pulseiras,<br />

levantou rápido e foi vender os seus badulaques aos<br />

curiosos, que se acotovelavam para ver o corpo estendido<br />

no chão.<br />

O policial chegou antes da ambulância e foi logo<br />

perguntando se existiam testemunhas. Ninguém queria se<br />

comprometer.<br />

Os olhos do Tiziu foram ficando sem brilho, enquanto<br />

a ambulância estava estacionando. Um enfermeiro foi logo<br />

tomando o pulso e aferiu a pressão. Estava mesmo morto.<br />

A ambulância levou o corpo de Tiziu, a alma foi<br />

acolhida por Deus, mas a sua bicicleta, que ele defendeu<br />

com a vida, veio outro ladrão e a levou.


CRÔNICAS E CONTOS 55<br />

Analfabeto político<br />

Na minha juventude, aprendi que, na política, existem<br />

duas tendências ideológicas, esquerda e direita. A esquerda<br />

é representada pelos que aprovavam o comunismo,<br />

conhecidos como reformistas e os da direita eram os que<br />

aprovavam o capitalismo, conhecidos como conservadores.<br />

Mais tarde, fiquei sabendo a origem desses termos<br />

para identificar ideologicamente os partidos políticos e<br />

seus militantes. A origem vem da França no final do século<br />

XVIII. Existiam três grupos sociais chamados de Estado<br />

Geral: o clero – o Primeiro Estado; a nobreza – Segundo<br />

Estado e o resto – Terceiro Estado, que englobava noventa<br />

e cinco por cento da população, incluindo empresários,<br />

comerciantes, médicos, advogados, artesãos e o proletariado<br />

urbano e rural. Eram esses que pagavam os impostos,<br />

já que a nobreza e o clero eram isentos. O direito de ocupar<br />

cargos públicos era reservado apenas à nobreza e ao clero.<br />

Ao ser proclamada a Constituição da França, foi eleita<br />

a Assembleia Legislativa. Os membros do Terceiro Estado<br />

se sentavam à esquerda do Rei enquanto os do clero e da


56<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

nobreza se sentavam à direita. Sendo assim, o Terceiro<br />

Estado, à esquerda, tornou-se radicalmente contra todas as<br />

decisões da nobreza que estava à direita<br />

A partir dessas informações, procuro compreender um<br />

fato ocorrido no ano de 1969. Eu estava morando no Rio de<br />

Janeiro e, na tarde de um dia de maio, passando pela Rua<br />

Visconde de Inhaúma, esquina com a Avenida Rio Branco,<br />

perto do cais do porto e próximo da Praça Mauá, presenciei,<br />

em um bar de esquina, um ato bárbaro. O local contava<br />

com cadeiras nas calçadas onde estavam sentados uns 20<br />

marinheiros franceses em visita ao Brasil. Foi quando um<br />

carro parou e quatro ocupantes desceram atirando de metralhadora.<br />

O atentado terrorista feriu uns seis marinheiros.<br />

Fiquei perplexo diante de tamanha covardia, eles<br />

abordaram pessoas desarmadas e atiram sem piedade.<br />

A esquerda política do País, imediatamente, assumiu o<br />

atentado terrorista. Na época, eu tinha um amigo que era<br />

simpatizante dos militantes de esquerda e justificou a ação<br />

dos terroristas como uma forma de os partidos da esquerda<br />

brasileira chamarem a atenção da imprensa internacional<br />

para a situação política de uma ditadura militar de direita,<br />

existente no País naquela época.<br />

Por ser analfabeto político, entendi que a direita estava<br />

no poder, a esquerda estava sem voz e para se comunicar<br />

estava matando inocentes. Até hoje, ainda relembro aquela<br />

cena. A história foi se seguindo e eu fui acompanhando na<br />

imprensa as notícias dos militares prendendo, torturando<br />

e os terroristas de esquerda matando inocentes, assaltando<br />

bancos e sequestrando pessoas em nome de uma causa.<br />

Esses militantes de esquerda, na sua maioria, estiveram<br />

em Cuba treinando e aprendendo táticas militares, a<br />

fabricar uma bomba, a assaltar banco, a matar pessoas, a se<br />

esconder ou organizar grupos a fim tomar o poder para instalar<br />

no Brasil um estado comunista.<br />

Mais tarde, passei a conhecer grandes líderes que se<br />

opuseram aos regimes ditatoriais com a palavra, com o<br />

convencimento e com o diálogo. Mahatma Gandhi foi um<br />

deles. Liderou a Índia contra a Inglaterra e conseguiu a sua<br />

independência sem a luta armada.


CRÔNICAS E CONTOS 57<br />

No Brasil, contra os militares surgiram grandes líderes<br />

como Tancredo Neves, Mário Covas, Teotônio Vilela e<br />

Ulisses Guimarães. Eles iniciaram um grande movimento<br />

nacional contra a ditadura militar na base do discurso. Não<br />

pegaram em armas e não agrediram ninguém. Saíram em<br />

caminhada por todo o País levando a esperança.<br />

Enquanto grandes líderes estavam nos palanques<br />

mostrando um novo caminho de forma pacífica, a esquerda<br />

radical estava em Cuba fazendo cursos de espionagem,<br />

montagem de bombas, combate urbano, manejo de armas,<br />

insurreição rural, sequestro e assalto a bancos. Hoje alguns<br />

deles são políticos de renome como deputados, senadores,<br />

governadores, ministros e falam de seus passados com<br />

orgulho, como se esse fosse o melhor caminho.<br />

Para aqueles que não vivenciaram esse período da<br />

história do Brasil, deixo aqui alguns pensamentos de pessoas<br />

admiráveis, que podem ser utilizados como parâmetro para<br />

nossa reflexão. Mais uma vez citarei Mahatma Gandhi<br />

que disse: “A força não provém da capacidade física. Mas<br />

da vontade férrea”. Sobre as armas ele afirmou: “A não<br />

violência e a covardia não combinam. Posso imaginar um<br />

homem armado até os dentes que no fundo é um covarde.<br />

A posse de armas insinua um elemento de medo, se não<br />

mesmo de covardia. Mas a verdadeira não violência é uma<br />

impossibilidade sem a posse de um destemor inflexível.”<br />

Vale lembrar, ainda, Ulisses Guimarães que preconizou:<br />

“O Brasil precisa de uma Constituição em que o povo<br />

seja o fundador, por votação direta, do governo e da Lei.”<br />

É imprescindível não cruzar os braços pela garantia<br />

dos direitos essenciais a todo ser humano, mas nessa luta<br />

vale a afirmativa de Tancredo Neves: “Não são os homens,<br />

mas as ideias que brigam.”<br />

Ficará registrado para a posteridade que homens<br />

lutaram contra a ditadura no País com as palavras e outros<br />

com as armas. As experiências do passado podem ser,<br />

portanto, matéria-prima com a qual cada brasileiro pode<br />

esboçar os registros históricos do futuro.


58<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O tal de jet sky<br />

A cidade de Itumbiara sempre se orgulhou de ter o Rio<br />

Paranaíba. A sua beleza contagia a todos que o procuram<br />

para admirá-lo. Os itumbiarenses sempre tiveram algum<br />

contato com ele, alguns vão dar uma olhada, outros<br />

utilizam canoa ou lanchas para um passeio ou para pesca,<br />

as melhores formas de aproveitar essa dádiva da natureza.<br />

Em 1980, decidi por comprar uma lancha. Consegui<br />

na cidade de Uberlândia uma que estava dentro do meu<br />

orçamento e atendia às minhas necessidades.<br />

Logo fiz amizade com todos os proprietários de<br />

canoas e lanchas da cidade e, sabendo da necessidade de<br />

melhorias em infraestrutura para o embarque e desembarque<br />

nas margens, resolvemos fundar o Iate Clube de<br />

Itumbiara que foi iniciado a todo vapor.<br />

Começamos a providenciar a reforma da rampa<br />

de acesso que era muito íngreme. Construímos uma<br />

mais apropriada que exigia um menor esforço para os<br />

carros na hora de tirar a carreta com a lancha ou canoa.


CRÔNICAS E CONTOS 59<br />

Procuramos o Ministério da Marinha para que todos<br />

estivessem documentados com a embarcação e com a<br />

habilitação.<br />

Na mesma época, o político Paulo Serrano assumiu<br />

a Secretaria Estadual de Esporte e Lazer do Governo<br />

Henrique Santillo. Os itumbiarenses aficionados em<br />

esportes reivindicaram alguma obra ou evento para<br />

a cidade. Assim, os corredores de kart conseguiram a<br />

construção do Kartódromo Internacional e nós do Iate<br />

Clube ficamos enciumados. Imediatamente, formamos<br />

uma comitiva e fomos ao Secretário para pedir alguma<br />

ação de característica náutica.<br />

Chegamos e nos deparamos com a Secretaria lotada.<br />

Estava sendo organizada a Corrida Internacional de<br />

Motocicleta que foi realizada no Autódromo Internacional<br />

de Goiânia. Havia pilotos atrás de patrocínio, empresário<br />

organizando algum tipo de marketing, organizadores<br />

providenciando a programação e o secretário Paulo Serrano<br />

coordenando tudo. Finalmente, quando fomos recebidos,<br />

pedimos ao secretário que realizasse alguma competição<br />

esportiva no Rio Paranaíba. O secretário, muito atencioso,<br />

chamou Marcelo, organizador de eventos de uma empresa<br />

paulista que estava produzindo a prova de motocicleta. Ao<br />

ser questionado sobre o que poderia ser realizado nas águas<br />

do Paranaíba, ele veio com uma ideia extraodinária:<br />

– Tem a prova de Jet Sky.<br />

Muito curioso, perguntei o que era isso e Marcelo<br />

explicou:<br />

– É uma motocicleta que anda sobre as águas.<br />

E eu, mais curioso ainda, perguntei.<br />

– Como assim? A moto, a roda afunda.<br />

Não é uma moto de roda, é uma canoinha com motor.<br />

Assim, sem conhecer o tal Jet Sky, definimos a prova<br />

para o final de 1988. Os pilotos eram todos de São Paulo<br />

e a primeira coisa com que eles se preocuparam foi com<br />

a poluição do rio. Tivemos que colher amostra da água<br />

do Rio Paranaíba de 500 em 500 metros entre as pontes<br />

Affonso Penna e Ciro Pereira de Almeida. O teste foi<br />

favorável, o nosso rio estava dentro das normas exigidas


60<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

pelos pilotos, ficando marcado o evento para o dia 6 de<br />

novembro de 1988.<br />

Foi o 1º Circuito Centro-Oeste de Jet Sky. Estiveram<br />

presentes a imprensa nacional e estadual mostrando as<br />

belezas do rio e a qualidade da prova. O Iate Clube de<br />

Itumbiara foi parceiro auxiliando na logística e na montagem<br />

da pista. Ganhei até um troféu e agradecimentos pelo esforço<br />

de ajudar no sucesso do evento.<br />

Os goianos ficaram fascinados com o tal de Jet Sky.<br />

O ex-piloto de motocicleta Edmar Ferreira me procurou<br />

para fundarmos uma Federação, pois naquela época só<br />

poderia importar o Jet Sky se fosse atleta ou piloto federado.<br />

Conseguimos cumprir as exigências unindo o Iate Clube de<br />

Itumbiara, Iate Clube de Buriti Alegre e o Iate Thermas Clube<br />

de Cachoeira Dourada. A primeira reunião foi realizada em<br />

Cachoeira Dourada e a primeira prova foi em Itumbiara.<br />

Colocamos o nome de 2º Circuito Centro-Oeste de Jet Sky<br />

realizado no dia 3 de dezembro de 1989.<br />

Essas provas foram o grande incentivo para os<br />

campeões goianos de Jet Sky, principalmente, para o piloto<br />

itumbiarense Douglas Carvalho que representou o Brasil<br />

nos Estados Unidos e venceu várias provas na categoria<br />

Free Style, em que são realizadas manobras dificílimas,<br />

As motos sobre as águas se proliferaram e nós, ainda,<br />

ficamos com as lembranças das descobertas, de como<br />

ficamos maravilhados com a novidade e satisfeitos por<br />

termos feito história.<br />

E o tal Jet Sky virou mania!


CRÔNICAS E CONTOS 61<br />

Dinamite ou Zico<br />

Nos anos 1970, a cidade de Itumbiara respirava<br />

política. Em todos os lugares, discutia-se política. Existia,<br />

no início da Avenida Afonso Pena, um ponto conhecido<br />

como a “Quarta Árvore”. Os partidos políticos, Arena e<br />

MDB, digladiavam-se em estratégia e movimentação de<br />

lideranças.<br />

A “Quarta Árvore” era um local reservado no meio da<br />

ilha onde as confidências dos simpatizantes do MDB eram<br />

trocadas. Do lado esquerdo de quem sobe, ficava a Casa da<br />

Borracha do Rui, em frente à Funerária do Jerominho e, ao<br />

lado, o Bar Caverna.


62<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O Rui da Borracha era um grande gozador. Todas<br />

as vezes que descobria que alguém não foi trabalhar por<br />

pequena indisposição, ele corria ao telefone para dar um trote.<br />

Ligava para a funerária e pedia um caixão dando o nome e o<br />

endereço do doente. Ficava na porta olhando o Alcides, um<br />

negro alto, arrumando o caixão na perua e saindo com um<br />

papel onde estava escrito o endereço. A volta do Alcides todo<br />

sem graça com o caixão, era motivo de muita gozação e farra<br />

e o doente ficava azedo de raiva pela brincadeira.<br />

O Bar Caverna era tocado de dia pelo Waltinho e,<br />

tarde da noite, por mim. O meu sócio era querido por todos,<br />

apesar de manter sempre uma cara fechada de poucos<br />

amigos e certa falta de educação para com os fregueses, mas<br />

ninguém arredava o pé, o bar era o point.<br />

O local contava com um pequeno reservado ao fundo<br />

com oito mesas, luz negra e decoração nas paredes com<br />

tinta fluorescente. Nos finais de semana, ficava lotado até<br />

altas horas da noite.<br />

No dia 9 de outubro de 1977, era domingo de muito<br />

calor e a cidade estava repleta de turistas, no outro dia, seria<br />

a inauguração do Estádio JK com o jogo do Vasco da Gama<br />

contra o Itumbiara Esporte Clube. A escolha do Vasco<br />

foi do torcedor e também Prefeito Municipal Modesto de<br />

Carvalho.<br />

Os jogadores chegaram no domingo cedo e foram<br />

descansar. À noite, o bar estava lotado. Foi quando parou<br />

na porta um Chevette com quatro garotas e o jogador<br />

Roberto Dinamite. Uma delas desceu foi até o fundo no<br />

espaço reservado e conferiu que estava lotado. Foi até o<br />

Waltinho que estava no caixa e falou baixinho:<br />

– Seu Walter, o Senhor poderia pedir para desocupar<br />

uma dessas mesas do reservado, pois nós estamos com o<br />

Roberto Dinamite e ele quer conhecer o seu bar.<br />

Waltinho manteve a cara amarrada e respondeu sem<br />

pestanejar:<br />

– Minha filha, os meus fregueses estão aqui todos<br />

os finais de semana e o Senhor Roberto Dinamite aparece<br />

somente uma vez na vida. Faz o seguinte, fala para ele<br />

esperar até desocupar uma mesa.


CRÔNICAS E CONTOS 63<br />

A mocinha não gostou e se mandou com o Dinamite.<br />

A turma do balcão fez a maior gozação:<br />

– Seu Walter, se fosse o Zico, o Senhor esvaziava o bar.<br />

– Não é nada disso, estou somente zelando pelos<br />

meus clientes.<br />

Mas logo atrás do caixa, estava a prova, um grande<br />

cartaz com a foto do time do Clube de Regatas do<br />

Flamengo, em pé: Cantarele, Toninho Baiano, Rondinelli,<br />

Jayme Almeida, Júnior, Merica e agachados Caio Cambalhota,<br />

Geraldo, Luisinho Lemos, Zico e Zé Roberto. Ali,<br />

no meio dos jogadores, estava o Zico presenciando aquela<br />

cena. A foto entregou legal.


64<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Eu não sou cachorro não<br />

Nem ele mesmo sabia por que tinha o apelido de João<br />

Bola. Os apelidos são colocados nas pessoas para, exageradamente,<br />

identificar um defeito, qualidade ou detalhe<br />

engraçado. Bola poderia sugerir que o João jogava o que<br />

não acontecia. Também poderia identificar o seu peso<br />

exagerado, o que também não era verdade. Ele disse que<br />

tinha aquele apelido desde criança e não sabia de onde<br />

surgiu, pois era baixinho e magrelo.<br />

O que ele não tinha em tamanho, tinha na grandeza<br />

do coração. Era um romântico nato, gostava de poemas<br />

e músicas, mas o seu gosto era um tanto exagerado. Os<br />

poemas eram aqueles populares que as adolescentes<br />

tiravam dos almanaques e mandavam para as revistas e<br />

as músicas eram bregas, porém não deixava de ser um<br />

romântico a seu modo.<br />

No amor, não conseguia ter êxito, começava um namoro<br />

e logo era desprezado pela pretendente. A turma achava que<br />

ele não sabia escolher a sua cara-metade e suas preferências<br />

não agradavam, contudo ele achava que não tinha mesmo<br />

era sorte no amor. Talvez por isso ele gostasse de colecionar<br />

aquelas frases rimadas em um caderno, exaltando a sua<br />

tristeza e a ingratidão das mulheres que o desprezavam.<br />

Era só começar um novo namoro, vinha correndo para<br />

contar os encantos e as qualidades da pretendente. Assim,<br />

um dia a gente tentou baixar a bola dele, pedindo-lhe para<br />

não entrar de cabeça em mais um relacionamento, mas ele


CRÔNICAS E CONTOS 65<br />

afirmava com convicção que agora encontrara a pessoa<br />

certa para entregar o seu coração. O recorde era de duas<br />

semanas e batata! Vinha o fim do relacionamento e, depois<br />

de duas semanas, o João Bola vinha chorar as mágoas.<br />

No fim de um desses relacionamentos, o João Bola<br />

me procurou pedindo apoio moral. Estava arrasado pelo<br />

rompimento do namoro. Apoiei os seus sentimentos com<br />

palavras amenas e um pequeno toque de sarcasmo. Tudo<br />

a fim de que ele abrisse mais os olhos para a vida real e<br />

deixasse de construir castelos imaginários que poderiam<br />

desabar facilmente.<br />

Convocou-me para tomar umas cervejas no Bom<br />

Jardim, uma vila rural às margens da rodovia que liga<br />

Itumbiara à Buriti Alegre. Fomos em seu fusca verde que<br />

tinha um som infernal, potente para despertar o bairro<br />

inteiro e eu, ali ao lado, tentando ouvir o que ele falava. O<br />

som do carro abafava as suas palavras e, de vez em quando,<br />

eu pedia para ele repetir, pois não estava entendendo nada.<br />

Depois de tomar muitas cervejas e de contar com<br />

detalhes o fim do namoro, ele chorava compulsivamente e<br />

repetia:<br />

– Eu fui pegá-la para a gente ir ao pit dog, ela estava na<br />

porta com a frase pronta: “Tá terminado, adeus!”<br />

Bem que eu tentei controlar as cervejas, pois ele não<br />

aceitava que outra pessoa dirigisse o seu fusca. Já fiquei<br />

sóbrio só de medo de voltar pela rodovia com ele bêbado<br />

ao volante. Ao chamá-lo para irmos embora, ele concordou<br />

contrariado, mas avisou que levaria ainda seis latas de<br />

cervejas.<br />

Quando entramos no fusca, ele mal sentou-se, abriu<br />

uma lata e ligou o maldito som, pôs o CD do Valdick<br />

Soriano com a música “Eu não sou cachorro não”. Ele ainda<br />

cantarolava a música desafinadamente acompanhando o<br />

seresteiro:<br />

“Eu não sou cachorro não<br />

Pra viver tão humilhado<br />

Eu não sou cachorro não<br />

Para ser tão desprezado.”


66<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Com medo de ele tomar as cinco latas de cervejas que<br />

sobraram, eu tomei todas de uma golada e fui tentando<br />

orientar os limites da estrada. Ele cobria a faixa contínua e<br />

eu gritava: “olha a faixa”. Outra hora, ele saía pelo acostamento<br />

e eu gritava: “olha o mato”. Foi assim, até a curva<br />

fechada que termina na ponte do Ribeirão Santa Maria. Ele<br />

não deu conta de fazer a curva e foi direto para as água.<br />

O fusca começou a afundar, eu saí e fiquei nas margens<br />

pedindo para que ele saísse imediatamente, porque o carro<br />

já estava afundando. Ele cantarolando falou decidido:<br />

– Só saio quando a música terminar!<br />

Valdick não conseguiu terminar a música, as água já<br />

abafavam os alto-falantes nos últimos acordes:<br />

“Pelo nosso amor,<br />

Pelo amor de Deus<br />

Eu não sou ...”<br />

No entanto, o João Bola terminou o seu desabafo<br />

musical:<br />

– ...cachorro não.


CRÔNICAS E CONTOS 67<br />

Meio gol<br />

O time dos veteranos “Nóis bebe e joga” estava disputando<br />

o campeonato com o time “Me chama que eu vou”.<br />

O vencedor receberia dez caixas de cervejas como prêmio.<br />

Tinha até torcida organizada, para os dois times é claro. O<br />

páreo era duro, eles tinham chegado com mérito até a final.


68<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Apesar de muitas críticas para os dois lados, o juiz<br />

estava atento, havia torcedor dizendo que o Timora,<br />

zagueiro do “Nóis bebe e joga” tinha falado que do<br />

pescoço para baixo, na concepção dele, era canela. Os<br />

outros torcedores contrários criticavam o Argolinha,<br />

goleiro do “Me chama que eu vou”, afirmando que ele<br />

tinha mão de quiabo.<br />

Os dois times pertenciam à Liga Esportiva Espartana.<br />

Esse nome ninguém sabia o significado, mas o presidente o<br />

escolheu para o nome da entidade, após ter assistido a um<br />

filme.<br />

O campo estava lindo, tinha somente de afastar os<br />

cachorros para iniciar a partida. Nesse clima de final de<br />

campeonato, os foguetes pipocaram os céus das Pontezinhas,<br />

cenário desse espetáculo. Foi a senha para os<br />

caninos fugirem do barulho para o esconderijo.<br />

Entraram em campo os atletas, garbosos, exibindo<br />

algumas barriguinhas, porque ninguém é de ferro. Foram<br />

se separando conforme a cor dos seus uniformes. Começou<br />

o jogo, disputado, dividido, lutado, não tinha sangue no<br />

jogo, mas muito suor. E nada de gol. Foram os quarenta<br />

e cinco minutos de muito sacrifício. Começou o segundo<br />

tempo e nada de gol. Foram novamente mais quarenta e<br />

cinco minutos e a rede não balançava.<br />

Veio a prorrogação, agora é mata-mata. Quem fizesse<br />

o primeiro gol era o campeão. Foi quando o Timora deu um<br />

carrinho e as duas chuteiras foram no meio das canelas do<br />

Divaldo. Toda essa cena aconteceu na pequena área. O juiz<br />

não vacilou, marcou pênalti.<br />

Chamaram para a cobrança o Teobaldo Coisa Ruim.<br />

Disseram que o apelido foi colocado pela própria mãe. Ele<br />

tinha um chute tão forte que um dia derrubou a trave, bateu<br />

e ela caiu com a pancada.<br />

Ele pegou a bola, colocou no chão e ficou olhando no<br />

fundo dos olhos do Argolinha. Parecia até namoro, mas o<br />

olhar era de muita maldade. Afastou-se uns dez metros,<br />

veio correndo e deu uma bicuda. Foi tão forte o chute que<br />

a bola deu um estrondo e partiu no meio. A metade entrou<br />

no gol e a outra metade passou por cima da trave. O Argo-


CRÔNICAS E CONTOS 69<br />

linha ficou parado olhando para o céu vendo a outra meia<br />

bola subir.<br />

Correram todos para cima do juiz. Foi ou não foi gol?<br />

Seu Josué, o juiz, era evangélico e gostava de citar<br />

a bíblia em todas as situações de conflitos. Segundo suas<br />

convicções, jogar era pecado, mas apitar não. Virou para a<br />

torcida e falou.<br />

– A minha decisão, que vai na súmula, será igual à<br />

do Rei Salomão naquela passagem da criança que seria<br />

dividida ao meio. Será meio a zero.<br />

Ninguém entendeu a justificativa, mas a torcida do<br />

“Nóis Bebe” começou a comemorar e a torcida do “Me<br />

Chama” correu para o juiz.<br />

Foi muito bate-boca e não resolvia nada. Então o juiz<br />

falou o seguinte:<br />

– Como o tento não se configurou a contento, fica<br />

decidido que a cerveja será dividida entre os dois times.<br />

Cinco caixas para cada.<br />

Assim, as torcidas entenderam, aceitaram e foram<br />

beber, pensando que o Rei Salomão quase passou a perna<br />

no “Me Chama”.


70<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O dito pelo não dito<br />

O radialista Adumon Machado fez história na cidade<br />

de Itumbiara. Era uma pessoa franca e direta. Essas características<br />

fizeram do radialista uma pessoa muito ouvida, mas<br />

também muito combatida, suscitando algumas inimizades<br />

em consequência das suas considerações.<br />

Como comentarista esportivo, sempre criava alguma<br />

discussão quando criticava atletas. Eram jogadores que<br />

esperavam elogios e ele era severo nas críticas e, assim,<br />

surgiam sempre malquerenças.<br />

Na década de 1980, ele mantinha um programa na<br />

Rádio Paranaíba AM chamado ”Itumbiara ao meio-dia” e,<br />

algumas vezes, convidava-me para dar opinião sobre algum<br />

assunto polêmico. Ele passava a notícia e eu ia expondo<br />

os detalhes, explicando os fatos, no entanto evitava dar<br />

uma opinião, principalmente, em relação às notícias sobre<br />

política. Falava dos prós e contras em relação ao tema e<br />

deixava os ouvintes decidirem a respeito.<br />

A maioria das notícias eram obtidas de fontes ligadas<br />

às delegacias de polícia, IML, Polícia Rodoviária Federal


CRÔNICAS E CONTOS 71<br />

e jornais. Certo dia, eu esta ali, esperando que ele lesse as<br />

ocorrências policiais, para depois comentarmos as notícias<br />

políticas. Ele leu um boletim de ocorrências relatando que<br />

um jovem, depois de consumir drogas, destruiu os móveis<br />

da sua casa e espancou o seu próprio pai. O boletim não<br />

detalhava o tipo de droga que foi consumida. Sem os<br />

detalhes, o Adumon fez um comentário mordaz e falou que<br />

o rapaz deveria ter fumado maconha e cheirado cocaína.<br />

Passando para outros assuntos, ficamos ali analisando<br />

os fatos e atendendo telefonemas. Foi quando surgiu um<br />

velhote na porta do estúdio. Estava indignado, foi entrando<br />

e reclamando:<br />

– Sou o pai do Anderson. Olha aqui... Ele fuma<br />

maconha e de vez em quando quebra os meus móveis e me<br />

bate também, mas essa tal de cocaína ele não cheira não.<br />

Não aceito falar mal do meu filho desse jeito. Quero que<br />

vocês façam uma retratação.<br />

– Tá bom! O senhor dá licença que temos que entrar<br />

no ar.<br />

Afastou o pai do rapaz e fechou a porta para continuar<br />

a apresentar as notícias.<br />

E depois de toda discussão, ficou apenas o dito pelo<br />

não dito.


72<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Paranaíba eu te amo!<br />

O vento estava leve e o sol já havia fugido. Estavam<br />

ali às margens do Rio Paranaíba, na Avenida Beira Rio da<br />

cidade de Itumbiara, João, Mário e Alcides. Sentados em<br />

um tronco de árvore, os três admiravam o reflexo da lua nas<br />

águas que serpenteavam.<br />

A falta de assunto justificava-se pelo estado de<br />

contemplação em que o trio se encontrava. Ficaram assim<br />

por muito tempo, até que o silêncio incomodou e foi<br />

quebrado pelo Mário.<br />

– João, por que o seu apelido é Paranaíba?<br />

– É porque a minha infância toda foi passada aqui. E<br />

eu adoro o Rio Paranaíba, ele é a minha vida – explicou João<br />

aos amigos.<br />

Novamente, o silêncio tomou conta do ambiente.<br />

A lua já reinava no horizonte, emitindo uma luz amarela<br />

intensa. Era lua cheia. De repente, spresch...... O silêncio foi<br />

novamente quebrado, agora pelo ruído de lata de cerveja<br />

sendo aberta.<br />

Beberam em pequenos goles, saboreando o líquido e<br />

o ambiente.


CRÔNICAS E CONTOS 73<br />

– Eu amo tanto este rio que foge de mim os limites. Eu<br />

quero morrer neste rio.<br />

– Que bobagem Paranaíba, falar em morte nessa hora,<br />

cheio de saúde e levando um vidão que pediu a Deus –<br />

contemporizou Alcides.<br />

– Tenho em vocês os meus melhores amigos, porque<br />

amigo é mais importante que irmão. Irmão a gente não<br />

escolhe, mas amigo sim. E vocês são daqui do fundo do<br />

meu coração – explicou João Paranaíba.<br />

– Você hoje está estranho, falando como se estivesse se<br />

despedindo. Papo mais careta – deu a bronca o Mário.<br />

Vale lembrar que Paranaíba era uma figura, ele<br />

mesmo se identificava como um filósofo popular. Não tinha<br />

nada de filosofia, havia sim grandes gozações com frase de<br />

para-choque de caminhão. Nunca trabalhou, casado com a<br />

enfermeira Amélia, que assumia todas as despesas da casa,<br />

era na verdade um bon vivant.<br />

Os amigos gostavam de convidá-lo para as festas,<br />

porque ele era só alegria, contava piadas e tinha sempre<br />

novas frases engraçadas que tornava o ambiente alegre<br />

e descontraído, tais como: “Um homem sem chifre é um<br />

animal indefeso.” ou “O cachorro só é amigo do homem,<br />

porque não conhece dinheiro.” Eis por que se considerava<br />

filósofo popular. No entanto, naquele momento, Paranaíba<br />

estava introspectivo, pensativo e sentimental. Falando<br />

muito de amizade e do seu amor pelo rio.<br />

Estava tarde da noite, já haviam bebido muitas<br />

cervejas, quando Paranaíba começou a ter um ataque,<br />

torceu o pescoço, virou os olhos e foi deitando-se lentamente<br />

para trás, derramando a cerveja no peito. Os amigos<br />

assustaram-se.<br />

– Que é isso Paranaíba, o que você está sentindo?<br />

Ele não respondeu. Ficou ali quieto imóvel. Os dois<br />

entreolharam-se e assustados tentaram levantá-lo. Inútil,<br />

estava mole, inerte, calado, quem sabe morto. Apalparam o<br />

seu coração e pulso e, finalmente, chegaram à conclusão de<br />

que ele estava morto. Foi um infarto fulminante!<br />

Ficaram ali os dois, em pé, olhando o corpo estendido<br />

sem saber o que fazer. A cumplicidade foi tomando conta


74<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

do ambiente. Se ele adorava tanto o Rio Paranaíba, por que<br />

morreu em terra? Tocados pelo sentimento mútuo de fazer<br />

realizar um sonho, os dois pegaram o Paranaíba, um pelos<br />

pés e o outro pelos braços, balançando-o e, em seguida,<br />

jogaram o corpo no rio. Ele foi descendo pela correnteza,<br />

afundando aos poucos e, por último, a mão que parecia estar<br />

dando adeus.<br />

Mário e Alcides experimentaram a sensação de<br />

que fizeram um ato de pura justiça e de amizade. Foram<br />

embora sentindo que o amigo estava onde sempre sonhou.<br />

Avisaram os parentes de que o João Paranaíba estava<br />

bebendo com eles, foi dar um mergulho e sumiu nas águas.<br />

Cedo os bombeiros compareceram para realizar a<br />

busca do corpo. Uma grande aglomeração foi se formando<br />

na Avenida Beira Rio, um querendo testemunhar o achado,<br />

outros para ver os serviços dos bombeiros e outros aproveitando<br />

o grande movimento para vender picolé, pipoca e<br />

churrasquinho.<br />

O burburinho era intenso, porém as águas do<br />

Paranaíba calmamente continuavam a entoar uma canção<br />

serena para embalar o sono profundo e eterno do amigo de<br />

Mário e Alcides.


CRÔNICAS E CONTOS 75<br />

O jogo econômico<br />

João Batista podia se considerar um cara de sorte.<br />

Nasceu em uma fazenda no município de Araguari, filho<br />

único, o seu pai se desdobrou nos trabalhos da fazenda<br />

para mantê-lo estudando em Uberlândia. Formou-se em<br />

Economia e conseguiu o seu primeiro emprego em uma<br />

corretora de valores em São Paulo.<br />

Na década de 1990, a Bolsa de Valores vivia o maior<br />

boom da história da economia. A inflação estava acima de<br />

40% ao mês e os rendimentos cobriam a inflação e traziam<br />

grandes lucros. Várias pessoas estavam vendendo bens e<br />

imóveis para aplicar na bolsa, visando a lucros fáceis.<br />

Em uma sexta-feira, João Batista decidiu visitar os pais<br />

e trazê-los para a nova realidade econômica. No sábado,<br />

quando o dia estava amanhecendo chegou à fazenda. Sua<br />

mãe estava fazendo o café no fogão a lenha e o seu pai


76<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

sentado em um tamborete enrolando um cigarro de palha.<br />

João Batista sentou-se em outro tamborete e começou a<br />

falar, enquanto o pai ouvia do filho as novidades.<br />

– Papai, o senhor precisa conhecer a Bolsa de Valores.<br />

A gente investe hoje e em dois meses o investimento dobra.<br />

Meu patrão tem apartamento na paia, carro importado e<br />

viaja para Europa duas vezes por ano. É o melhor negócio<br />

do mundo.<br />

Seu pai foi absorvendo as informações e escutando<br />

com atenção as novidades da cidade grande. João Batista<br />

não parava de falar e elogiar as grandes vantagens de<br />

investir na Bolsa de Valores. O velho estava só ouvindo,<br />

quando arregalou os olhos ao escutar do filho:<br />

– Então, papai, eu vim aqui para aconselhar o Senhor<br />

a vender a fazenda para investir na Bolsa de Valores.<br />

O pai pensou, pensou e depois de passar um bom<br />

tempo perguntou:<br />

– Meu filho, me explica uma coisa, se a gente investe<br />

nessa tal de Bolsa e ganha tanto dinheiro, quem está<br />

perdendo?<br />

João Batista mais que depressa tentou explicar:<br />

– Não, pai, ninguém leva prejuízo. Todo mundo<br />

ganha.<br />

– Que besteira é essa, meu filho, gastei tanto dinheiro<br />

e você estudou tanto e não sabe do básico. Quando alguém<br />

ganha muito dinheiro, tem alguém levando um grande<br />

prejuízo.<br />

João Batista calou-se, faltaram-lhe palavras para<br />

refutar os argumentos do pai, pois sabia que, na verdade,<br />

tudo aquilo era um grande jogo.


CRÔNICAS E CONTOS 77<br />

O mundo é uma escola<br />

Geralmente, o turista se preocupa,<br />

principalmente, em posar para fotos em<br />

frente de algum munumento do lugar<br />

visitado para provar a sua presença, mas<br />

existem também aqueles que buscam conhecer a cultura do<br />

lugar para adquirir conhecimentos.<br />

Em junho de 1970, estava servindo a Marinha de<br />

Guerra do Brasil embarcado no Navio Escola Custódio<br />

de Melo. A viagem era de instrução dos guardas-marinha<br />

que depois eram promovidos a Segundo Tenente.<br />

Eu fazia parte da tripulação do navio e todas as vezes<br />

que atracava em um novo porto saia à procura de<br />

novidades.<br />

Quando o navio atraca no porto, existem marinheiros<br />

que ficam ali economizando os dólares recebidos da representatividade<br />

do Brasil no exterior, outros que caem na<br />

farra em todos os portos, nas casas noturnas e há aqueles<br />

que se interessam em adquirir novos conhecimentos. Estes<br />

sempre procuram se informar do local a ser visitado para<br />

que em pouco tempo consigam visitar todos os atrativos e<br />

guardar dessa visita conhecimentos.


78<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Naquela viagem, atracamos no porto de Oslo, capital da<br />

Noruega. Tínhamos passado pela América Central, América<br />

do Norte e estávamos na Europa conhecendo a Península<br />

Escandinava. Da Noruega, os brasileiros lembram-se apenas<br />

do bacalhau e dos vikings, que eram exímios navegadores,<br />

guerreiros experientes e muito violentos. No século IX,<br />

dominaram toda a Península Escandinava formada pela<br />

Finlândia, Suécia, Dinamarca, a Groenlândia e Islândia.<br />

O exército Viking era formado por guerreiros profissionais,<br />

treinavam para combates ferozes e, para a época,<br />

estavam muito bem equipados com espadas, escudos,<br />

machados e arcos. Além disso, eram exímios navegadores<br />

e com seus barcos sólidos se aventuravam para o alto-mar<br />

e, quando chegavam a terra, saqueavam imediatamente as<br />

aldeias para obter cavalos, gado e cereais.<br />

Uma curiosidade é que a região da Noruega é o único<br />

local no mundo onde o sol, em uma época do ano, desponta<br />

à meia-noite, devido à sua proximidade com o Polo Norte<br />

e, justamente, nessa época, estávamos conhecendo o país.<br />

Saímos do navio à procura de diversão em algumas<br />

casas noturnas. Estranhei o costume de beber cerveja quente<br />

e fiquei pouco tempo. Eram mais ou menos duas horas da<br />

madrugada, o sol luzia e eu seguia pelas ruas desertas, sem<br />

carros rodando e sem gente transitando, quando avistei, de<br />

longe, uma senhora idosa. Ela levava uma bengala e estava<br />

parada na calçada, obedecendo ao sinal de trânsito para<br />

pedestre. Fui andando, aproximando-me e observando a<br />

anciã respeitando o trânsito que não existia.<br />

Quando cheguei ao seu lado, o sinal ainda estava<br />

fechado, avancei porque não existia ninguém se movimentando,<br />

foi quando percebi o seu olhar de reprovação. Fiquei<br />

do outro lado da rua esperando incrédulo o sinal abrir. Só<br />

depois que abriu, ela atravessou a rua. Analisei aquela cena<br />

e me imaginei um selvagem perto daquela mulher que<br />

pertencia a uma civilização milenar.<br />

A consciência do dever falou mais alto para aquela<br />

senhora. O exemplo do exercício da cidadania, levou-me<br />

à reflexão: será que no futuro teremos o mesmo nível de<br />

civilidade que ela demostrou? Só o tempo dirá.


CRÔNICAS E CONTOS 79<br />

Eu conheço Jesus<br />

Existem pessoas que têm facilidade de fazer<br />

amizade em consequência do seu modo extrovertido. O<br />

Dalmo era assim, além de extrovertido, tinha um senso<br />

crítico muito apurado. Todos os acontecimentos eram<br />

propícios para ele fazer uma piada com sarcasmo ou<br />

bom humor mesmo.


80<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Nos anos 1980, ele tinha uma Picape e estava fazendo<br />

uma corrida de Cachoeira Dourada de Goiás para a cidade<br />

de Itumbiara, com pressa, pois tinha que pegar o banco<br />

ainda aberto. Eram mais ou menos 14 horas e o banco<br />

fechava as suas portas às 15.<br />

Quando chegou a um local conhecido por Serrinha, a<br />

uns seis quilômetros para chegar, havia uma blitz da Polícia<br />

Rodoviária Federal inspecionando os carros e exigindo que<br />

os veículos estivessem com um selo, um adesivo pregado<br />

no para-brisa, com o ano e o órgão expedidor.<br />

Quando o policial mandou parar a Picape, ele ficou<br />

irritado com a demora. O policial, calmamente, pediu os<br />

documentos do carro e a habilitação e perguntou:<br />

– O carro é seu?<br />

– Não, é de Jesus Cristo – brincou impaciente o Dalmo<br />

com essa piada infame.<br />

– Você está sem o selo. Faça o favor, vá até aquela<br />

mesa que a moça está vendendo.<br />

O policial ficou com os documentos na mão esperando<br />

a sua orientação ser atendida. Dalmo foi até a mesa, olhou<br />

nos bolsos e viu que não tinha dinheiro, só tinha o talão de<br />

cheques. A moça falou que só poderia aceitar o cheque se<br />

tivesse a autorização do policial.<br />

Ele calçou a cara de pau e foi até o policial pedir o<br />

favor.<br />

– Senhor policial, estou sem dinheiro no momento. O<br />

Senhor poderia autorizar a moça a pegar um cheque meu<br />

para pagar o selo?<br />

– Desculpe, mas eu não conheço o Senhor. Se fosse o<br />

cheque de Jesus Cristo eu poderia aceitar, pois Jesus Cristo<br />

eu conheço.<br />

O policial devolveu o troco da piada e o papudo<br />

ficou esperando passar um conhecido para pedir dinheiro<br />

emprestado.<br />

Bem que podia dormir sem essa.


CRÔNICAS E CONTOS 81<br />

Deu bandeira<br />

O Orlando era um cara incrível e tinha uma sorte<br />

invejável. Os empregos vinham à sua procura. Gabava-se<br />

de nunca ter procurado uma ocupação. Um dia, ele veio<br />

dizendo que estava cansado e resolveu sair do serviço,<br />

fiquei indignado.<br />

– Tá doido, Orlando! Vai fazer o quê?<br />

– Vou descansar, depois a gente consegue outro.<br />

Não completou nem um mês, um empresário ligou<br />

para ele, convidando-o para tomar conta de um armazémgeral.<br />

O cara não tinha nenhuma experiência no ramo,<br />

todos nós, amigos dele, ficamos admirados pelo chamado.<br />

Não tinha lógica!<br />

Assim, Orlando foi trabalhar em um novo armazém<br />

em Goiatuba, uma cidade do sul goiano. O armazém<br />

contava com um secador de origem alemã que fazia parte


82<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

das primeiras unidades fabricadas no Brasil. A máquina<br />

enguiçou nos primeiros dias e os técnicos que estavam<br />

realizando a montagem não conseguiam consertá-la. O jeito<br />

foi chamar um especialista da Alemanha para realizar o<br />

conserto.<br />

O técnico chegou à cidade de São Paulo e foi<br />

informado que deveria seguir com um intérprete para o<br />

interior de Goiás. De São Paulo, seguiu em um voo para<br />

Goiânia, onde estava sendo aguardado pelo Orlando, que<br />

fora escalado para buscá-lo juntamente com o intérprete.<br />

O alemão estava eufórico com a sua viagem. Apareceu<br />

com uma bermuda cáqui, camisa estampada, tênis de<br />

alpinista com meião e uma máquina fotográfica presa por<br />

uma correia ao pescoço. Foi logo dizendo.<br />

– Ich möchte sehen, Tier.<br />

– O que o alemão falou?<br />

– Ele disse que quer ver bicho.<br />

Orlando ficou indignado com o conceito que o alemão<br />

tinha de Goiás e retrucou:<br />

– Fala para ele que aqui é civilizado, bicho é só na<br />

Amazônia.<br />

O alemão ouviu, mas não se convenceu. Ficou o<br />

tempo todo da viagem, de Goiânia a Goiatuba, olhando o<br />

cerrado à procura de bicho para fotografar.<br />

Já estavam chegando, do trevo da BR 153 até Goiatuba<br />

são nove quilômetros e foi justamente nesse trecho que<br />

apareceu um tamanduá bandeira atravessando a pista. O<br />

alemão ficou doidinho.<br />

– Denn siehe, für das Tier da!<br />

O alemão desceu do carro e saiu correndo atrás do<br />

tamanduá para tirar fotografia.<br />

Bem que o Orlando tentou convencer o alemão de<br />

que o cerrado já tinha sido desbravado, mas o tamanduá<br />

apareceu. Assim, o alemão levou para a sua terra a aventura<br />

de encontrar no cerrado um bicho de nariz pontudo e um<br />

rabo grande, mais parecendo uma bandeira.


CRÔNICAS E CONTOS 83<br />

Entre o céu e a terra<br />

Rajadas de vento abalam as estruturas do avião. Céu<br />

negro, nuvens escuras como fumaças. Tempestade.<br />

Liga o rádio na esperança de se localizar. O vento<br />

forte tira a nave de sua rota. Gira o manche para esquerda,<br />

o vento vem desse lado. Tenta compensar a deriva do rumo<br />

da proa. Com os dedos trêmulos, dá mais uma polegada no<br />

manete, o motor ronca, a rotação aumenta com a velocidade.<br />

As descargas elétricas da tempestade interferem no rádio.<br />

Está perdido. O altímetro indica nove mil pés. Não<br />

pode furar a nuvem que está abaixo, enquanto não souber<br />

onde está, pode chocar-se com algum obstáculo. Uma<br />

sensação estranha, como folha solta na ventania, como<br />

feto na escuridão do útero à procura da vida. Reza. Nesse<br />

momento, até os ateus se pegam com Deus.<br />

– Todo poderoso que construíste tudo isto, feito de<br />

amor e bondade, como podes fazer uma sacanagem dessa<br />

comigo? Sempre fui legal, se tenho erros, são pequenos,<br />

nem dá pra notar. Ave Maria, que estais no céu, santificai o


84<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Senhor é convosco, vem a nós bendita sois vós... que salada,<br />

meu Deus! Eu sei rezar, eu juro, é que estou nervoso, assim<br />

não dá para concentrar. Será que depois da morte eu vou<br />

ver este mundo? Quantas coisas eu fiz neste mundo, boas,<br />

ruins, mas uma coisa é certa, não prejudiquei ninguém.<br />

A mente desfolha um livro de aventura. O inconsciente<br />

calcula as possibilidades de salvação. Se pelo menos a<br />

mente ajudasse, haveria melhor chance. O negrume do céu<br />

surge em espaço sem fim, dando a sensação de um cometa<br />

perdido no infinito.<br />

Um corpo, uma mente, um inconsciente, um espírito<br />

dominando uma máquina em luta contra massas elétricas<br />

incontroláveis. Raios e trovões já foram, por muitos,<br />

adorados como deuses.<br />

Mais uma vez pensa em voz alta:<br />

– Por que medo? Já passei muitos perigos, me lembro<br />

quando o Seu Júlio me flagrou com a Maurinha, com um<br />

tremendo 38 no meu peito. Tive coragem e consciência de<br />

dizer que a amava. Eu amo muito a minha vida também.<br />

Nos treinamentos, ele foi condicionado para suportar<br />

qualquer situação perigosa. Acidentes simulados, pane<br />

simulada e outros exercícios que colocariam a sua vida em<br />

perigo, mas nunca esteve em uma tempestade de verdade.<br />

Aquilo tudo está revirando por dentro, a sua mente, o avião,<br />

a sua alma, sua memória e até a sua moral, por isso repete<br />

com imensa convicção:<br />

– Eu volto, não sei como, mas volto. Voltar é viver.<br />

Voltar de uma batalha sem glórias, de uma bebedeira de<br />

cachaça, de um amor final, nada é desgraça, porque o<br />

importante é voltar.<br />

Está entre o céu e a terra, numa horizontal de ferro e<br />

fogo. Pode ser ali o fim de tudo, quando os fracos e os fortes<br />

perdem o rumo.<br />

Dedos firmes, olhos acesos, mente atenta, a sua vida<br />

está em suas próprias mãos. Se “errar é humano”, naquele<br />

momento seria desumano. Ali se errar, morre. Nessa hora, o<br />

avião se torna humano, as asas são prolongamentos de seus<br />

braços, o motor o coração e ele é a própria mente que envia<br />

os comandos para todas as partes do avião. As asas recebem


CRÔNICAS E CONTOS 85<br />

os baques do vento e fazem girar forte o manche que ele<br />

sente nos braços. O motor ronca e seu coração acelera. A<br />

calda do avião joga com movimentos bruscos fazendo as<br />

suas nádegas se contorcerem no banco.<br />

Nesse momento, ele está cego por causa da escuridão,<br />

mas está vendo por dentro. A visão de dentro é uma psicanálise<br />

completa dos sentimentos recalcados. Naquele<br />

momento, recorda os traumas e tenta organizar, em seu<br />

arquivo memorial, os choques emocionais da sua existência.<br />

Esse balanço visa, também, à prestação de conta com uma<br />

força superior.<br />

O amor à vida cresce na mente, tornando-o um animal<br />

acuado, enfrentando a morte com todas as garras, quando<br />

um pequeno clarão à sua frente vai surgindo, ali está a vida,<br />

é o sol derretendo as nuvens, é a vida.<br />

Com grande ansiedade dirige o avião àquela direção.<br />

Um calafrio percorre sua espinha e o coração bate mais<br />

forte. Aquele sol é o que mais deseja no mundo. Cruza a<br />

fenda da nuvem e o para-brisa do avião recebe os primeiros<br />

raios de sol. Aliviado ele exclama:<br />

– Obrigado meu Deus! – E começa a chorar.


86<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Carona pra sogra<br />

O brasileiro é por natureza um hospitaleiro, porque<br />

a primeira impressão que fica é a melhor forma de colher<br />

a imagem do visitante, principalmente, no interior onde<br />

impera a inocência dos moradores.<br />

Na cidade de Itumbiara, na década de 1970, um<br />

bar denominado Caverna tinha como cliente assíduo um<br />

baixinho com apelido de Jacaré. A gente não sabia o seu<br />

nome verdadeiro e nem a sua origem, mas não importava,<br />

ele tinha um papo agradável e um bom humor constante.<br />

Nós o recebemos com todas as gentilezas e abrimos<br />

as portas para uma nova amizade, mesmo sem saber quase<br />

nada da sua vida. Ele gostava de tomar rum misturado com<br />

água tônica e duas pedras de gelo. Muito comunicativo, era<br />

um bon vivant.


CRÔNICAS E CONTOS 87<br />

O Jacaré tinha um automóvel modelo SP2, sucesso<br />

dos garanhões. Um carro para duas pessoas e um bagageiro<br />

pequeno suficiente somente para poucas malas. Ele<br />

arrumou uma namorada e foi à casa dela para sair em um<br />

passeio. Ao chegar ao endereço, estava a pretendida juntamente<br />

com a mãe, que foi direto ao assunto:<br />

– Para sair com minha filha, tem que ser em minha<br />

companhia.<br />

Sem saída, o Jacaré aceitou as condições. Elegantemente,<br />

dirigiu-se até a porta do passageiro, abrindo-a para a<br />

prenda. Foi até a traseira do carro, abriu o porta-malas para<br />

a futura sogra, a velhinha entrou com dificuldade, ficando<br />

na posição fetal para conseguir fechar a tampa.<br />

Só de sacanagem o Jacaré comunicou:<br />

– Tenho que passar na casa de um amigo para deixar<br />

uma grana.<br />

Era tudo mentira, ele queria mesmo era azucrinar a<br />

velhinha que estava longe de ser a pretensa sogra. Entrou<br />

em uma rua sem asfalto, toda esburacada, o carro ia<br />

batendo nos buracos e ele só escutando os gemidos. De<br />

repente, ouviu um pedido parecido com um lamento.<br />

– Cê podia dar uma passadinha lá em casa.<br />

Com um sorriso disfarçado, ele foi retornando ao local<br />

de origem. Chegou, desceu e foi logo abrindo o bagageiro. A<br />

velhinha foi esticando as pernas e saiu daquele inferno com<br />

a ajuda da filha. Toda encurvada, caminhou em direção a<br />

casa, mas ainda recomendou:<br />

– Olha, ocê pode ir sozinho com a minha fia. Fia, juízo<br />

hem?! Vai com Deus.<br />

Dirigindo-se para a casa, ia puxando a perna direita.<br />

Nos olhos da filha, ficou visível a pena pelo sofrimento<br />

da mãe, mas no canto da boca do Jacaré, ficou um sorriso<br />

disfarçado de vitória.


88<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Um homem chamado Denise<br />

Como pode um casal ir ao cartório de registro civil e<br />

colocar o nome em um menino de Denise? Pode acreditar,<br />

alguém fez isso. O Denise, é claro, não gostava do nome,<br />

por isso preferia ser chamado simplesmente de “Dê”. Não<br />

foi à justiça para mudar o nome em consideração aos pais,<br />

mas nas suas horas de bebedeira, declarava a todos os<br />

presentes que, quando os pais falecessem, iria providenciar<br />

a mudança. Um dia, o Dê exagerou, parecia até que estava<br />

torcendo para que os pais morressem. Os amigos acharam<br />

um absurdo.<br />

Nos anos 1970, na cidade de Itumbiara, havia um bar<br />

chamado Magros Chope, que era a grande novidade da<br />

cidade, por isso permanecia lotado, principalmente, nos<br />

finais de semana.


CRÔNICAS E CONTOS 89<br />

O Dê conseguiu uma mesa no fundo do salão,<br />

sentou-se e começou a beber a sua cerveja. Na época, a<br />

moda era calça muito justa, cós alto, boca de sino e sapato<br />

plataforma. A cintura era tão apertada que quase não era<br />

possível usar os bolsos. A carteira era colocada abaixo da<br />

camisa apertada pelo cós. Os mais desatentos achavam que<br />

a pessoa estava armada em consequência do volume na<br />

cintura.<br />

Mais tarde, com o bar ainda lotado, o Dê resolveu<br />

ir embora. Pediu a conta e o garçom trouxe uma folha de<br />

papel escrita, que o Dê pegou e se assustou com o valor.<br />

– Isto é um absurdo! É um roubo!<br />

Foi falando e, ao mesmo tempo, levantando para pegar<br />

a carteira. O garçom assustado achou que ele estava armado<br />

e que estava se levantando para sacar a arma. Foi quando se<br />

atracou com o Dê, desferindo vários golpes no rosto dele,<br />

ajudado pelos presentes das mesas ao lado. Assustado, o Dê<br />

se desvencilhou dos agressores e indignado pelo imbróglio,<br />

ameaçou:<br />

– Agora, vou lá em casa pegar a minha carabina e vou<br />

matar todo mundo.<br />

Ninguém acreditou, ficaram rindo da situação<br />

ridícula e engraçada, somente o Dê estava revoltado e<br />

resolvido. Chegou a casa e pegou a sua Winchester calibre<br />

44, conhecida na época pelo apelido de “Papo Amarelo”. Na<br />

porta do bar e do outro lado da rua, começou a manobrar a<br />

carabina e gritar que ia mesmo matar todo mundo.<br />

É importante mencionar que essa carabina tem uma<br />

parte móvel por baixo que, quando é acionada, joga para<br />

fora o cartucho da bala usada e recoloca outro. Quando não<br />

é efetuado o disparo, a manobra faz jogar a bala intacta para<br />

fora.<br />

Muito nervoso, o Dê realizava a manobra, como não<br />

estava atirando, a bala era jogada para fora. Os fregueses<br />

saíram do bar e se espremeram com medo atrás de uma<br />

Kombi. Foi quando alguém alertou:<br />

– Aquela carabina está sem bala, vamos pegá-lo.<br />

Bem que o Dê tentou correr, mas a turba o alcançou,<br />

dando-lhe outra surra e, dessa vez, bateram com vontade.


90<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Salvo pelo Jacaré<br />

O Arquimedes, homônimo do famoso filósofo, só<br />

tinha o nome igual. De filosofia, não entendia nada. Era<br />

contador, muito dedicado à família, esposa e duas filhas,<br />

uma de 10 e outra de 14 anos. Nas férias, planejou uma<br />

viagem para a capital baiana, Salvador.<br />

Para fazer uma surpresa, comprou ingressos para<br />

o show do grupo É o Tchan. Conseguiu um lugar privilegiado,<br />

bem em frente à banda, junto ao palco. O grupo<br />

de Axé estava no auge do sucesso e as meninas adoravam<br />

os dançarinos, sabiam todas as coreografias, os passos e<br />

molejos do Jacaré e das duas bailarinas, Carla e Débora.<br />

A surpresa caiu como uma bomba, uma explosão de<br />

alegria para as meninas. O show foi sucesso total. Arquimedes<br />

levou uma filmadora para registrar tudo e guardar<br />

para mostrar aos amigos. Aquelas férias foram consideradas<br />

extraordinárias por toda a família. Voltaram comentando<br />

os melhores momentos e fazendo planos para as<br />

próximas férias.


CRÔNICAS E CONTOS 91<br />

Em casa, no primeiro final de semana, num domingo<br />

preguiçoso, Arquimedes recebeu a visita dos vizinhos e<br />

parentes para o almoço. Foi a oportunidade para ver as<br />

filmagens das férias e o grandioso show do É o Tchan. As<br />

meninas mais eufóricas pediam ao pai para reunir todos na<br />

sala e preparar os equipamentos para a apresentação.<br />

Arquimedes ligou a câmara diretamente na televisão<br />

e foi organizando os comandos para exibição. Voltou a fita e<br />

foram passando rápidas as cenas mais chatas do embarque,<br />

fachada do hotel, a primeira praia, os camelôs vendendo<br />

bugiganga e lembranças. As meninas se desesperaram.<br />

– Pai, passa logo e mostra o show.<br />

– Espera, vou colocar bem no começo.<br />

Quando apareceu na tela da TV a fachada do clube<br />

e foi colocado no play, entrada, chamada da banda e a<br />

primeira música, o Compadre Washington e Beto Jamaica<br />

cantando e os dançarinos Carla Perez, Débora Brasil e<br />

Jacaré na frente fazendo coreografias eram os destaques na<br />

filmagem.<br />

Começou com os closes dos rostos das bailarinas e, na<br />

sequência, detalhes das coxas, dos seios e, principalmente,<br />

dos bumbuns. À medida que as imagens apareciam na<br />

tela da televisão, o ambiente totalmente familiar ia ficando<br />

constrangedor. Os maridos foram, aos poucos, com o rabo<br />

do olho observando o comportamento das esposas que,<br />

devido ao ciúme, ficaram sérias, piorando ainda mais a<br />

situação.<br />

As meninas impacientes ficavam insistindo:<br />

– Pai, cadê o Jacaré?<br />

– Espera que vai aparecer.<br />

As cenas foram se repetindo, rebolado, coxas,<br />

bumbum das dançarinas e nada do Jacaré. Em um relance,<br />

aparece o Jacaré por uns quatros segundos.<br />

– O Jacaré, o Jacaré, olha aí o Jacaré! – Falava<br />

entusiasmado o pai diante da cena salvadora.<br />

Passaram-se quatros segundos, voltaram novamente<br />

as pernas, o rebolado e o bumbum das bailarinas.<br />

– Ufa! – Arquimedes respirou aliviado.<br />

Afinal, fora salvo pelo Jacaré.


92<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O fim do mundo<br />

A premonição é admirada há muitas gerações por<br />

muita gente em todo o mundo. Para não fugir à regra, eu<br />

também fico fascinado ao me deparar com uma pessoa<br />

que pode prever o futuro. Foi assim quando conheci o<br />

Zoroastro, um sujeito troncudo, baixo e moreno, muito<br />

falante e que tinha o dom de convencer a gente com a sua<br />

conversa muito grave e possante.


CRÔNICAS E CONTOS 93<br />

Quando criança, eu fiquei assustado ao ouvir o<br />

Zoroastro falando de uns tópicos da Bíblia que estavam<br />

totalmente destoantes da realidade. Como eu era católico<br />

fervoroso e frequentava as missas todos os domingos, achei<br />

que era um pecado muito grande acreditar nas teses dele.<br />

Assim, eu saía de perto quando ele começava a falar sobre o<br />

Livro Sagrado.<br />

Um dia, ele veio com uma ideia que achamos<br />

muito louca, afirmou que os polos da Terra estavam<br />

degelando. Que os mares na linha do Equador estavam<br />

com um volume de água maior. Assim, a Terra ficaria<br />

mais achatada, os polos derreteriam e a parte mais larga<br />

aumentaria e, segundo ele, o planeta iria acelerar a sua<br />

velocidade de rotação, diminuindo, assim, as horas do<br />

dia. Ele apareceu até com uma calculadora para fazer<br />

as contas, afirmando que, em poucos meses, os dias<br />

ficariam com mais ou menos 20 horas. E ia explicando as<br />

consequências dessa alteração. Eu ficava fascinado com<br />

a sua inteligência e, ao mesmo tempo, assustado com as<br />

suas pesquisas.<br />

Certa vez, estávamos todos no bar, tomando cerveja<br />

em uma mesa, quando o Zoroastro veio e afirmou, categoricamente,<br />

que o mundo iria acabar no dia 13 de agosto de<br />

2004, às 14 horas, numa sexta-feira. Detalhava a tragédia do<br />

fim do mundo da seguinte forma: primeiro viriam as trevas,<br />

depois um estrondo e, enquanto isso, a terra iria se abrir e o<br />

mundo sumir no buraco.<br />

A turma, já sob efeito da bebida, afirmava que ainda<br />

faltavam vinte anos para o fim do mundo, portanto tinha<br />

ainda muito tempo para beber. Isso o deixava muito<br />

nervoso, as pessoas não davam credibilidade às suas<br />

previsões. Confesso que fiquei intrigado, bem diferente dos<br />

meus amigos que achavam que essa previsão era mais uma<br />

das maluquices dele.<br />

Durante vinte anos, fiquei na expectativa, esperando<br />

para conferir as previsões de Zoroastro. Para não esquecer<br />

a data, procurava marcar em todas as agendas o dia 13 de<br />

agosto. Assim, poderia em 2004 conferir se as premonições<br />

dele iam ou não se confirmar.


94<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Os anos foram passando e Zoroastro continuou tendo<br />

premonições e criando novas teorias catastróficas. Quando<br />

passava pela rua, eu olhava para ele como o grande mensageiro<br />

do Apocalipse.<br />

No dia 13 de agosto de 2004, abri a agenda para<br />

conferir os compromissos e lá estava registrada a premonição<br />

do Zoroastro, marcada para as 14 horas. Com muita<br />

curiosidade, liguei para uns amigos a fim de saber as<br />

notícias do Zoroastro. Do outro lado da linha, Maristela<br />

perguntou aflita:<br />

– Você não sabia que o Zoroastro faleceu ontem à<br />

noite?<br />

Disse que não sabia e perguntei a hora do sepultamento.<br />

Maristela respondeu solenemente:<br />

– Às 14 horas.<br />

Fiquei perplexo e, rapidamente, preparei-me para ir<br />

ao enterro do grande Zoroastro, porque, apesar das suas<br />

maluquices, era querido por todos nós. Ao lado da cova,<br />

fiquei olhando o chão aberto e o caixão baixando lentamente<br />

aos aplausos de todos os presentes. O coveiro foi<br />

jogando terra sobre o caixão com uma pá e os amigos foram<br />

se dispersando aos poucos. Fiquei ali tentando associar a<br />

premonição de Zoroastro àquela situação.<br />

É... ele soube mesmo prever o fim do mundo, mas só<br />

para ele.


CRÔNICAS E CONTOS 95<br />

Agosto<br />

Segundo a crença popular, o mês de agosto é o mês<br />

do desgosto, o oitavo mês do ano traz grande azar, é o mês<br />

dos desastres e das grandes tragédias. O seu Aníbal nunca<br />

acreditou nessas superstições. Funcionário da Odebrecht,<br />

seguiu viagem para o Iraque na missão de construir ali,<br />

sobre as areias do deserto, uma grande estrada asfaltada.<br />

O seu avião decolou no mês de agosto e nada aconteceu. A<br />

única chateação foi a proibição de fumar durante mais de<br />

dez horas de voo. Então, era tudo uma superstição boba.


96<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Ao completar um ano no Oriente Médio, veio ao<br />

Brasil visitar a sua família. Logo no primeiro dia de agosto,<br />

começou a sentir uma grande dor no peito. Foi a um<br />

hospital e realizou vários exames, chegando ao trágico<br />

diagnóstico: estava com câncer no pulmão. O impacto da<br />

notícia foi muito grande, o mundo parecia que ia acabar<br />

e os pés perderam o chão. O médico foi sincero e realista<br />

ao extremo, afirmou que era um caso terminal. A família<br />

inteira sofreu junto com o doente.<br />

A primeira coisa a fazer nessa situação é recorrer à fé.<br />

A esperança de um milagre vai se tornando mais presente<br />

em todos e passa a ser a única solução. As rezas e as<br />

promessas têm sempre o propósito de venerar o divino em<br />

troca do milagre. No entanto, os remédios iam, aos poucos,<br />

perdendo o efeito e o corpo debilitando-se com dor e horror.<br />

Uma esperança, um hospital em Barretos especializado<br />

nesses casos. No dia dez de agosto correram todos<br />

com o seu Aníbal para o hospital imaginando que a volta<br />

seria gloriosa e a doença ficaria somente como uma história<br />

triste do passado.<br />

No dia quinze de agosto, os médicos reuniram a<br />

família e deram o veredicto: “Não há solução. Deixe-o<br />

morrer da forma e onde ele quiser”. Era muito difícil a<br />

situação, os filhos, a esposa e os irmãos ali de pé ao lado do<br />

leito, fazendo-lhe um relato da situação, acompanhado de<br />

uma pergunta macabra:<br />

– Os médicos tiraram todas as nossas esperanças.<br />

Estamos aqui para saber se você quer ficar aqui no hospital<br />

ou voltar para casa?<br />

Nenhum deles teve a coragem de pronunciar a<br />

palavra morte. Ficou assim obscura a finalidade do questionamento<br />

e a decisão do Aníbal, mas cortava o coração,<br />

dilacerava a alma, parecia que a morte estava ali à espreita,<br />

discreta, ouvindo tudo.<br />

Deram um telefonema para o resto da família<br />

avisando que o seu Aníbal tinha decidido ir para casa<br />

e pediram para que providenciassem o funeral. Assim<br />

que receberam a notícia, eles correram até a funerária,<br />

escolheram uma urna e já encomendaram as coroas, velas,


CRÔNICAS E CONTOS 97<br />

cadeiras e os documentos necessários para obter um túmulo<br />

no cemitério.<br />

O trabalho da funerária foi mais rápido que a viagem.<br />

Chegaram e colocaram o caixão em pé, encostado na parece<br />

da sala e foram buscar o resto do material. Foi quando<br />

chegou o Seu Aníbal em uma ambulância. Ombrearam a<br />

maca e foram levando-o para a casa a fim de acomodá-lo em<br />

um quarto, quando se depararam com o caixão. O doente<br />

virou-se e os seus olhos encontraram a última morada.<br />

A cena era macabra, todos se entreolharam com um<br />

semblante de susto e piedade que, aos poucos, foi transformando-se<br />

em um olhar de desculpa pelo inconveniente.<br />

Seu Aníbal ainda sobreviveu mais dois dias. As<br />

pessoas passavam pela sala para acessar o quarto e se<br />

defrontavam com a urna funerária à espera do seu hóspede.<br />

Em seus últimos momentos, Seu Aníbal, ao lado da<br />

esposa que segurava as suas mãos frias, antes de fechar os<br />

olhos, viu ainda na parede uma folhinha marcando o dia<br />

dezoito do mês de agosto.


98<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Esquecido<br />

No Banco do Brasil da cidade de Itumbiara, na década<br />

de 1970, havia um funcionário extremamente esquecido.<br />

Esquecia-se de tudo que estava fazendo ao ponto de vez<br />

em quando se meter em confusões. Eu até já esqueci o seu<br />

nome, por isso vamos chamá-lo de Esquecido.


CRÔNICAS E CONTOS 99<br />

Morava perto do serviço, porém tinha a mania de<br />

ir trabalhar sempre de carro. Na época, existiam vagas na<br />

Praça da República, onde está localizada a agência central<br />

do Banco do Brasil. Meticuloso ao extremo, costumava<br />

anotar, em um bloquinho de rascunho, a sua pauta do dia e<br />

o mantinha no bolso, para consultá-lo a fim de checar a sua<br />

programação. A prestação de seu carro, um fusquinha, era<br />

paga um dia antes do vencimento.<br />

O seu veículo ficava sempre bem na frente do Banco,<br />

debaixo de uma grande árvore, na sombra para não<br />

manchar a pintura. Em um dia de segunda-feira, Esquecido<br />

chegou e encontrou a sua vaga já ocupada. Muito chateado,<br />

saiu à procura de uma que fosse com sombra. Teve que<br />

andar muito para encontrá-la a quatro quarteirões de<br />

distância. Chateado, estacionou assim mesmo e seguiu para<br />

o trabalho.<br />

Na saída do expediente, o Esquecido foi direto ao<br />

local de costume onde estacionava bem em frente ao banco<br />

e não encontrou o fusquinha. Ficou desesperado, voltou à<br />

agência e ligou para a mulher.<br />

– Bem, sou eu! Acredita que roubaram o fusca?<br />

– Mas como? Aí em frente ao banco?<br />

– Foi. Estacionei como sempre e agora não está mais.<br />

Paguei a última prestação ontem.<br />

– Liga pra polícia e procura nas saídas da cidade.<br />

– Tá bem! Depois eu ligo pra você novamente.<br />

O Esquecido ficou transtornado, começou com uma<br />

dor de barriga que foi se transformando em um grande<br />

mal-estar. Ligou para a Polícia Militar que chegou rapidinho<br />

em uma viatura. Os policiais desceram com uma prancheta<br />

para as anotações do Boletim de Ocorrência.<br />

– Como foi o ocorrido? O senhor viu os meliantes<br />

evadindo-se com o veículo?<br />

– Não, eu estava no banco onde trabalho. Estacionei<br />

o fusca verde novinho aqui e agora quando cheguei não o<br />

encontrei mais aqui.<br />

– Vamos fazer o seguinte, o Senhor entra aqui na<br />

viatura e vamos dar uma volta pela cidade para ver se<br />

conseguimos alguma pista.


100<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O Esquecido entrou muito contrariado na viatura e<br />

seguiram rua abaixo. Foram conversando sobre as características<br />

do carro sumido e o horário da ocorrência. Ele ia<br />

falando e o policial anotando.<br />

Três quarteirões adiante, o Esquecido viu o fusca de<br />

longe e gritou para os policiais:<br />

– Espera aí! Pode ser que eu o tenha emprestado para<br />

o meu cunhado. Deixe-me aqui que vou perguntar para a<br />

minha mulher. Se eu achar alguma coisa, ligo para vocês e<br />

conto como ocorreu o fato.<br />

O Esquecido não parava de falar para chamar a atenção<br />

dos policiais, com medo de que eles vissem o fusquinha que<br />

estava a poucos metros da viatura. A vergonha do vexame<br />

foi substituindo o desespero da perda do carro.<br />

Agradeceu o empenho dos policias e saiu caminhando<br />

até que a viatura desaparecesse na esquina seguinte. Voltou<br />

rapidamente, pegou o seu fusca e foi para casa.<br />

Afinal, essa era uma história que, realmente, deveria<br />

ser esquecida.


CRÔNICAS E CONTOS 101<br />

Pesadelo atômico<br />

O pesadelo é uma tortura através dos sonhos. São<br />

informações em forma de medo que estão no nosso<br />

subconsciente. São os sonhos que não conseguimos evitar<br />

e nos fazem algumas revelações estranhas e aterrorizantes.<br />

Sonhei que estava em Hiroshima, no dia 6 de agosto<br />

de 1945, às 08h15 bem na hora da explosão da bomba<br />

atômica e estava ali para uma missão que não entendia o<br />

seu significado. Eu sabia que a explosão iria acontecer, sabia<br />

dos efeitos da radioatividade e sabia também que milhares<br />

de pessoas iriam morrer. Vi as pessoas andando tranqui-


102<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

lamente, inocentemente e ausentes da tragédia prestes a<br />

acontecer. Olhei para cima e vi o bombardeiro americano<br />

B-29, o Enola Gay se aproximando.<br />

Naquele momento, estavam na minha frente umas<br />

crianças brincando perto de um grande prédio. Imediatamente,<br />

fui procurando uma coluna larga e forte que poderia<br />

resistir ao impacto da explosão. Encontrei uma de concreto,<br />

com mais de dois metros de largura, achei que tivesse a<br />

resistência necessária. Reuni as crianças do lado oposto do<br />

hipocentro e aguardei a revelação.<br />

Vi no céu a Little Boy, como ficou chamada a bomba<br />

A, saindo do B-29, descendo em alta velocidade. Fechei os<br />

olhos e aconselhei as crianças a fazerem o mesmo. Assustadas,<br />

elas foram, aos poucos, obedecendo-me. Passaramse<br />

uns 45 segundos. Depois de imaginar que ela chegou<br />

ao solo, ouviu-se um ringir, comparado a um irritante<br />

som da unha riscando o quadro-negro, um som extremamente<br />

desagradável e aterrorizante para mim. Logo após,<br />

o estrondo seguido do clarão cegante. Em seguida, veio<br />

a expansão de grande pressão varrendo tudo pela frente.<br />

Senti que a coluna estava resistindo.<br />

Fitei os olhos das crianças assuntadas por não saber<br />

o que estava acontecendo. Tentei acalmá-las com gestos<br />

carinhosos, sem sucesso. Vi uma água escorrendo entre<br />

os prédios, vindo em nossa direção. Percebi que estava<br />

descalço e, com medo de que aquela água estivesse contaminada,<br />

fui procurando uma posição mais elevada. Senti<br />

que a minha missão estava cumprida da melhor forma<br />

possível.<br />

Acordei transpirando e assustado. Imaginei que,<br />

no pesadelo, eu fora uma espécie de anjo da guarda.<br />

Mas, calculando as minhas ações, concluí que elas desenrolaram-se<br />

sem escolha. Não estava ali predeterminado<br />

para salvar as pessoas que não tivessem pecado, fui<br />

para amparar todas que pudesse e conseguisse. Concluí<br />

que, no meu subconsciente, não estou discriminando os<br />

bons dos maus. Penso que todos nós somos filhos do<br />

Criador. Principalmente, no desespero da explosão de<br />

uma bomba atômica.


CRÔNICAS E CONTOS 103<br />

E agora?<br />

O Doutor Frederico estava na porta da emergência<br />

esperando a ambulância do SAMU estacionar a fim de que<br />

os atendentes pudessem transferir a maca para a sala de<br />

atendimento. Era um bandido que, em um assalto, acabara<br />

levando um tiro na virilha. Olhou de relance, reconheceu o<br />

meliante e falou para a enfermeira que o acompanhava:<br />

– Carmem, vá até o meu carro que está no estacionamento<br />

do hospital e pegue os meus óculos. Devem estar no<br />

porta-luvas. Aqui estão as chaves.<br />

Carmem saiu e nem percebeu o nervosismo do<br />

Doutor Frederico querendo livrar-se dela.<br />

O Doutor fechou a porta e começou a cortar as calças<br />

do ferido.<br />

– Seu nome e idade?<br />

– Edisley e tenho 22 anos.<br />

Olhou bem nos seus olhos e perguntou:<br />

– Lembra-se de mim? Você assaltou a minha casa<br />

no mês passado, agrediu-me e estuprou a minha filha na<br />

minha frente.<br />

– Doutor, eu estava drogado e não sabia o que estava<br />

fazendo.


104<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

– Agora você me chama de Doutor. Quando você<br />

estava me batendo, só me chamava de palavrões.<br />

Frederico foi enfiando lentamente a pinça no<br />

ferimento da bala sem anestesia e Edisley gritava de dor.<br />

Não precisava perguntar, mas havia certo ar de contentamento<br />

na voz do médico.<br />

– Tá doendo?<br />

Não precisava responder. Os olhos do infrator, cheios<br />

de lágrimas, demonstravam o horror que passava naquele<br />

momento.<br />

– Estou em dúvida. Se cortar esta artéria você morre<br />

em dois minutos, mas acho muito pouco para você pagar<br />

esta dívida comigo.<br />

– Pelo amor de Deus!<br />

– Ah! Acredita em Deus? Mas Deus ensina que<br />

devemos amar o próximo como a si mesmo. Você não<br />

demonstrou isso.<br />

– Não pode fazer isso com um ser humano!<br />

– Certo. Mas você, para mim, não é um ser humano.<br />

Para mim, você é um monstro que devemos tirar do<br />

convívio da comunidade. Você é um câncer na sociedade.<br />

– Pelo amor que você tem pela sua família...<br />

– Estou fazendo isto, justamente pelo amor que tenho<br />

a minha família, principalmente pela minha filha a quem<br />

você fez tanto mal.<br />

– Sou doente.<br />

– Vou mandar você para o inferno para ser curado,<br />

mas morrer assim, você sofre muito pouco. Acho melhor<br />

cortar o oxigênio do seu cérebro para deixá-lo ficar<br />

vegetando em uma cama.<br />

Frederico começou, rapidamente, a entubar Edisley,<br />

antes que a enfermeira voltasse. Tinha certeza de que, no<br />

outro dia, haveria apenas uma notícia nas páginas policiais:<br />

“BANDIDO É FERIDO EM ASSALTO E FICA TETRA-<br />

PLÉGICO”.


CRÔNICAS E CONTOS 105<br />

Pão-duro<br />

O Oscar era conhecido como o mais pão-duro da<br />

cidade. Já se tornara inconveniente a sua presença em<br />

qualquer rodinha de conversa, a sua mania era considerada<br />

uma grande falta de educação. Magrelo, os ossos à mostra, a<br />

turma costumava dizer que o seu pijama tinha somente uma<br />

lista. Fumante inveterado, não comprava cigarro, ficava<br />

pedindo aos amigos que de vez em quando negavam, mas<br />

antes davam um sermão para conscientizá-lo da inconveniência.<br />

Vergonha também não tinha.<br />

Oscar tinha que fazer uma viagem para São Paulo e<br />

ficou perguntando a todos os amigos quem iria para lá a


106<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

fim de pedir uma carona. João Batista caiu na besteira de<br />

falar que estava marcada para outra semana a sua ida a São<br />

Paulo, foi quando Oscar pediu-lhe a carona e, sem saída,<br />

João acabou concedendo-lhe.<br />

Saíram numa madrugada de segunda-feira, de<br />

Itumbiara para São Paulo. Depois dos primeiros 50<br />

quilômetros, Oscar já apresentou a sua ansiedade de<br />

tomar um café.<br />

– Um cafezinho agora pega bem, né?<br />

João Batista procurou o próximo posto de combustível<br />

e estacionou no bar. Oscar já desceu apressado e pediu dois<br />

cafés. Ficaram ali olhando o movimento dos caminhões e na<br />

hora de sair, ele falou decisivo.<br />

– Quem paga sou eu. Sou carona e vou pagar a conta.<br />

Os dois se dirigiram ao caixa e Oscar tirou uma nota<br />

de R$100,00. O atendente falou:<br />

– Agora cedo, estou sem troco. Tem uma nota menor?<br />

Oscar deu a sua negativa com a cabeça e recolheu a<br />

nota para o bolso. João Batista ficou sem graça e tirou uma<br />

nota menor e pagou a despesa. Seguiram viagem, mais uns<br />

70 quilômetros, Oscar novamente sugeriu tomar mais um<br />

cafezinho. João novamente procurou um bar em um posto<br />

de combustível, tomaram o café, veio a mesma lorota de<br />

que quem iria pagar seria ele e apareceu novamente a nota<br />

de R$100,00. Novamente, o João Batista teve que arcar com<br />

o pagamento.<br />

Chegando a Uberlândia o Oscar foi mais afoito.<br />

– Para no próximo posto pra gente tomar mais um<br />

cafezinho.<br />

A mesma cena foi se desenrolando. Mas, quando o<br />

Oscar tirou novamente a nota de R$100,00, o João Batista<br />

não aguentou:<br />

– Oscar vamos fazer o seguinte, vou te comprar esta<br />

nota de R$100,00 por R$200,00 que tenho aqui trocadinho.<br />

É melhor a gente fazer esse negócio agora, pois estou vendo<br />

que essa nota na sua mão vai me dar uma prejuízo danado.<br />

Só quem conhecesse Oscar, poderia entender que o<br />

investimento de João Batista não era tão absurdo assim.


CRÔNICAS E CONTOS 107<br />

Tolerância zero<br />

Alfredo era um cara intransigente, para ele era oito<br />

ou oito mil, não existia meio-termo. Costumava afirmar<br />

que “as regras são feitas para serem determinadas e as leis<br />

são para serem cumpridas.” Tudo certinho como se o erro<br />

fosse o maior mal do comportamento humano. Os amigos<br />

até falavam que ele não era brasileiro, pois os conterrâneos<br />

sempre têm um jeitinho para todas as situações.<br />

Clara, sua esposa, estava atrasada para o serviço.<br />

Tomou o café muito rápido e, quando já ia saindo para a<br />

garagem, escutou do Alfredo o pedido de carona.<br />

Tomou o volante e manobrou o carro até a rua.<br />

Não chegou a percorrer um quarteirão quando o<br />

seu celular tocou. Atarefada, com uma mão dirigia, com a<br />

outra foi procurando o aparelho para atender quando viu o<br />

telefone já na mão do Alfredo.<br />

Prevendo confusão, pediu urgente o celular, mas<br />

Alfredo alertou:<br />

– Você não pode atender, está dirigindo, vai ser<br />

multada e perder pontos na carteira.<br />

– Me dá logo o celular, deve ser o meu patrão.<br />

– De jeito nenhum, deixa que eu atendo. Alô! Sim...


108<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

ela está dirigindo e não pode atender... é, mas ela não vai<br />

atender... mesmo você sendo o patrão dela – e desligou.<br />

Clara ficou assustada com a atitude de Alfredo.<br />

– Tá doido, Alfredo. Pode ser alguma coisa importante<br />

do meu serviço.<br />

– Nada é mais importante que a lei.<br />

O celular, que ainda estava na mão do Alfredo, tocou<br />

novamente.<br />

– Já disse que ela não vai atender... Eu sei que você<br />

é o patrão, mas ela está dirigindo. Tá, então se fosse você<br />

atenderia o celular dirigindo? É... então, o senhor é um<br />

infrator costumário e minha mulher não atende pessoas<br />

assim – e desligou novamente o celular.<br />

Clara com uma mão no volante e a outra estendida<br />

não estava acreditando na cena que tinha presenciado.<br />

Olhou para o Alfredo com uma cara desolada, já pensando<br />

em desemprego. Freou o carro.<br />

– Alfredo, desce do meu carro e vai para o inferno com<br />

suas leis.<br />

Alfredo desceu do carro resignado, sabendo que para<br />

desaforo da esposa não havia lei que o amparasse.


CRÔNICAS E CONTOS 109<br />

Sofia e a Flor<br />

Florisbela, chamada simplesmente de Flor, tinha<br />

uma cachorra chamada Sofia, que era linda, bem cuidada,<br />

pelo sempre brilhoso, uma coleira de pedras, uma xuxa no<br />

alto da cabeça e até esmalte nas unhas. O pessoal do bairro<br />

achava brega, mas Flor achava o máximo.<br />

Era uma comédia ver as duas passeando pela praça.<br />

A Flor conversando com a Sofia que corria como se não<br />

ouvisse.<br />

– Sai da rua, Sofia. Passa pra cá.<br />

E a Sofia, nem te ligo, só abanava o rabo quando era<br />

chamada para comer.<br />

A dedicação da Flor para com a Sofia era religiosa.<br />

Prestava atenção em todas as suas peripécias, mas fazia<br />

uma cara de paisagem e ficava conferindo as nuvens no céu,<br />

se Sofia estivesse fazendo cocô.<br />

Quando a Sofia estava no cio, a cachorrada ficava<br />

arranhando o portão com as unhas. Flor ficava no alpendre<br />

com uma vassoura espantando os pretendentes. A


110<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

vizinhança tinha que aguentar os latidos de sofrimento dos<br />

machos que não tinham a oportunidade de se aproximarem<br />

da Sofia.<br />

Certo dia Sofia sumiu. A Flor pôs o bairro inteiro<br />

em polvorosa e de plantão, a missão era encontrar o mais<br />

rápido possível a cadela, colocou até foto colada nos postes<br />

oferecendo uma gratificação para quem encontrasse a<br />

cachorrinha. Foi um sofrimento, o choro mais parecia com o<br />

da perda de um parente muito querido.<br />

Flor ligou para o Corpo de Bombeiros, Polícia Militar<br />

e até para a Defesa Civil, todos empenhados na busca da<br />

fujona.<br />

Na praça, foi montado um plantão dos moradores<br />

para receberem notícias que iam chegando aos poucos, mas<br />

o alarme era falso. Alguns cães que nem passavam perto<br />

das descrições da Sofia foram apresentados à Flor e descartados.<br />

O sofrimento tomou conta de toda a casa. No fim<br />

da tarde, com o coração apertado, Flor esperava aflita por<br />

notícias da Sofia no portão, quando a cachorrinha surgiu do<br />

nada. Ela veio abanando o rabo demonstrando alegria. Flor<br />

desconfiou de todo aquele contentamento. Sofia abanava o<br />

rabo somente na hora da comida.<br />

A Flor só entendeu o porquê de toda aquela felicidade<br />

sessenta dias depois, quando Sofia pariu uma ninhada de<br />

seis filhotes, aparentemente todos vira-latas.


CRÔNICAS E CONTOS 111<br />

Solua<br />

Os pássaros silenciaram, só o vento fino bailava com<br />

as folhas das árvores. Tudo mudou de repente. Ao ouvirem<br />

o som da melodia cantada, as cobras, num susto, levantaram<br />

as cabeças. Estavam à procura do som, era Solua.<br />

Pairava no ar um magnetismo e os répteis venenosos<br />

rastejavam rumo à Solua, que se dirigia ao Rio Vermelho.<br />

Seguiam ao lado, numa verdadeira procissão de cobras em<br />

um serrado alto, de terra arenosa.<br />

– Canatô ato anê.<br />

Solua, andando e cantando com dois galhos de ervas<br />

aromáticas, um em cada mão, ia fazendo uma picada<br />

entre as árvores e os galhos secos ficavam estendidos no<br />

chão. Um cheiro forte de enxofre e terra molhada pairava<br />

sobre o serrado. Ao chegar às margens do Rio Vermelho,<br />

ele entrava na água até o nível da cintura. As cobras que o<br />

seguiam, entravam na correnteza e eram arrastadas pelas


112<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

águas formando sobre a superfície um chicote ondulante,<br />

perdendo-se no horizonte e desaparecendo como num<br />

encanto.<br />

Solua saía das águas, ajoelhava-se nas margens, beijava<br />

os ramos, jogando-os nas águas. Chorava, afirmando:<br />

– Pronto! Por muitos anos, não se falará mais em<br />

cobras por estas terras.<br />

Era assim que esse bruxo tinha o poder magnético<br />

sobre as cobras e por isso era muito solicitado pelos fazendeiros<br />

da região.<br />

– Solua, como é que você chama as bichas? –<br />

perguntou o dono das terras.<br />

– Elas gostam do meu cantar.<br />

– Nonô falô que cobra não tem ovido, elas vai atrais<br />

do perfume secreto das flor de abrataca. Cobra não escuta.<br />

– Ouve sim, o ouvido delas tá na língua.<br />

Assim eram suas explicações, mostrando um mundo<br />

de mistérios e superstições.<br />

Solua nasceu em Arcamim, uma cidadezinha tradicional<br />

e provinciana, presa às tradições e costumes da<br />

região. Todos que moravam em Arcamim conheciam Solua.<br />

Quando chegaram, já encontraram Solua morando<br />

ali. Lendas contavam que ele era filho de índios, descendente<br />

dos Nabutacas, uma tribo isolada por seus costumes<br />

e crenças. Monoteístas, adoravam a lua com o nome de<br />

Acanã. As palavras eram vetadas, tendo a permissão de<br />

falarem poucas vezes por dia. Isso fez com que desenvolvessem<br />

grande poder telepático, com um simples olhar sua<br />

comunicação era completa.<br />

O feiticeiro Astrom fiscalizava, orientava e castigava,<br />

era o único que falava sem repreensão, dominando os<br />

adeptos com suas invocações imortais. Astrom vivia na<br />

gruta Bodoque, considerada por eles a terra santa. Entre<br />

cobras e galhos secos, ele convencia a todos da sua imortalidade.<br />

Ao passar dos anos e já envelhecido, procurou,<br />

entre as índias, uma que pudesse lhe dar um filho. Estava à<br />

procura de um herdeiro.<br />

Todos acreditavam na sua imortalidade. Ao fim dos<br />

seus dias, sentiu revolta por ter envelhecido e, para não


CRÔNICAS E CONTOS 113<br />

decepcionar o seu povo, achou melhor extinguir a tribo<br />

antes de sua morte. Para ele, seria a melhor saída.<br />

Preparou ervas venenosas para dar aos índios da<br />

aldeia, todos morreram, exceto seu filho. Ele não teve<br />

coragem de matá-lo. Depois de alguns meses, Astrom<br />

partiu dessa vida. Da tribo estranha, ficou somente o seu<br />

filho, Solua.<br />

Solua herdou do velho feiticeiro o seu poder sobre<br />

os animais, a sabedoria das ervas e o dom da cura. Dizem<br />

que no ano em que apareceu um circo em Arcamim, Solua<br />

estava à noite junto às jaulas conversando com os bichos.<br />

No Natal, ele desaparecia, ninguém conseguia vê-lo.<br />

Afirmavam que ele se transformava em borboleta e saía<br />

pelos campos para passar o dia com os bichos. Seu sorriso<br />

amigável e seu jeito humilde faziam dele um amigo para<br />

todos os momentos.<br />

Sua história passou de uma geração a outra. Muitos<br />

acreditam que se for mordido por cobra, deve procurar<br />

Solua. Basta chamar seu nome que ele aparece. Pode ser em<br />

forma de borboleta ou pombo. Você pode não vê-lo, mas ele<br />

virá.


114<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Meu coração ficou na curva do Rio<br />

Paranaíba<br />

Itubira era um índio caiapó, forte, destemido e respeitado<br />

em sua aldeia. Em uma tarde ensolarada, saiu acompanhado<br />

de mais oito bravos guerreiros para caçar quando, às margens<br />

do Rio Paranaíba, avistou uma anta, o maior mamífero do<br />

hemisfério sul. O animal estava bebendo água e vigiando ao<br />

redor para evitar algum confronto com predadores.<br />

Todos se abaixaram para se esconder entre as<br />

folhagens. Ele fez sinal para o grupo atacar, atirando as<br />

flechas ao mesmo tempo, não dando chance ao mamífero.<br />

Afinal, um animal daquele porte daria, com certeza,<br />

alimento para uma semana.<br />

Atiraram ao mesmo tempo, mas somente três flechas<br />

atingiram a anta que, assustada e em desespero, cambaleou<br />

e rumou para as águas do rio. Itubira e seus comandados<br />

correram para evitar a fuga. Ágil e corajoso, ele conseguiu<br />

agarrar-se em uma das patas, mas a força do animal foi<br />

suficiente para chegar ao rio e mergulhar.<br />

Percebendo que não dava conta de segurar os coices<br />

da anta, Itubira a soltou, porém já era tarde. Estava quase


CRÔNICAS E CONTOS 115<br />

no meio do rio e foi levado pela correnteza. Nessa hora, a<br />

coragem transforma-se em ações de desespero e as águas<br />

foram levando-o rio abaixo, enquanto os guerreiros o<br />

acompanhavam pelas margens, tentando salvá-lo.<br />

Quando a morte surgiu a sua frente e se tornou uma<br />

realidade, passaram-se, em sua mente, cenas de toda a sua<br />

vida, os seus parentes, amigos, aventuras e, principalmente,<br />

um pedido de socorro à Uyara, deusa das águas.<br />

Esforçando-se para permanecer com a cabeça fora<br />

d’água, foi descendo, tentando chegar às margens. Os outros<br />

índios iam gritando o seu nome, procurando alguma coisa que<br />

pudesse ser jogada ao grande líder para o seu salvamento.<br />

Ele fez muitas promessas em troca da vida, a mais<br />

constante foi a de fazer morada onde conseguisse atingir<br />

o chão firme. Nesse desespero e luta, foi enfraquecendo ao<br />

ponto de se achar vencido pelas águas. Depois de grande<br />

distância lutando, viu uma curva acentuada logo à frente e,<br />

com a velocidade da correnteza, foi aos poucos se aproximando<br />

das margens. Animados, os guerreiros atiravam<br />

cipó para puxar o guerreiro que já estava quase vencido.<br />

Itubira conseguiu pegar a ponta do cipó e com as<br />

últimas forças foi aos poucos atingindo a margem. Em<br />

terra firme, agradeceu os comandados, depois reverenciou<br />

Uyara, a deusa das águas, e contou aos guerreiros a sua<br />

promessa.<br />

– Aqui vou morar até os fins dos meus dias – afirmou<br />

convicto.<br />

Assim, Itubira foi construindo a sua choça e, aos<br />

poucos, vieram outras até formar uma aldeia que se consolidou<br />

na curva do Rio Paranaíba.<br />

Esse local, mais tarde, foi descoberto pelos homens<br />

brancos que aqui fizeram uma base com uma balsa para<br />

a travessia do rio. O lugar foi chamado de Santa Rita dos<br />

Impossíveis, depois Santa Rita do Paranaíba e, finalmente,<br />

Itumbiara.<br />

Existem outras justificativas para a escolha do nome<br />

Itumbiara, mas prefiro acreditar que foi uma homenagem<br />

ao índio Itubira e a deusa Uyara que salvou o bravo<br />

guerreiro, cujo coração ficou na curva do Rio Paranaíba.


116<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Dia da criança<br />

O deus da floresta<br />

Obir casou-se com Anas,<br />

a deusa das flores, foi<br />

uma festa grandiosa.<br />

Os duendes saíram de<br />

dentro dos cocos e cascas<br />

de paus tocando flauta,<br />

os pássaros saltavam de<br />

galho em galho cantando<br />

sem parar, os macacos inventaram<br />

toda a espécie de barulho<br />

e os animais maiores rosnavam, rugiam e manifestavam<br />

alegria.<br />

O deus da floresta estava cansado, pois foram vários<br />

dias de festividade. Até hoje, os bichos, quando se lembram<br />

do acontecimento, agitam em coro a mata, felizes com a<br />

expectativa de um herdeiro. Não demorou tanto, Anas<br />

apresentou-se grávida, os cuidados foram dobrados e nada<br />

faltava à futura mamãe.<br />

Sabia-se que a bela Anas tinha medo de tempestade<br />

e aquela foi a pior que toda a floresta já vira, pois Thor, o<br />

deus dos trovões, ficou tão enciumado que lançava raios.<br />

Sua paixão pela bela Anas não tinha mais sentido, cuspindo<br />

fogo nas grandes árvores, pôs em pânico a bicharada.<br />

Anas assustou-se e por isso perdeu o filho que<br />

esperava. A tristeza foi grande na mata, todos choravam<br />

a morte do herdeiro. Obir foi lamentar ao deus da fecundidade,<br />

Amar, enquanto Anas corria a floresta em choro e<br />

suas lágrimas caíam nas pétalas das flores como pingos de<br />

orvalho.<br />

Amar teve piedade e concedeu-lhe uma dádiva,<br />

convertendo cada gota de lágrima de Anas em um filho e<br />

as gotinhas de lágrimas saltaram das pétalas em direção a<br />

terra, transformando-se em lindas crianças.<br />

Assim, num toque de magia, a alegria dissipou a<br />

tristeza e aquele dia foi decretado como o Dia da Criança.


POESIAS


POESIAS 119<br />

Estrelas felizes<br />

A estrela veio do céu à procura de abrigo.<br />

Entre os corações, só viu ilusões.<br />

Até entre irmãos, encontrou intrigas.<br />

E, a cada esquina, via-se uma briga.<br />

Nas ruas, encontrou poluição.<br />

A decepção se apresentou de atrevida.<br />

O egoísmo dançou carnaval.<br />

O ódio venceu o amor.<br />

Até a guerra pintou no pedaço.<br />

No reino da dor, um grito de horror.<br />

A estrela sentiu solidão.<br />

No meio da gang, era uma intrusa.<br />

Abriu a boca e gritou por socorro.<br />

A indiferença fingiu que não viu.<br />

A estrela chorou de agonia.<br />

E seu pranto virou saudade.<br />

Pediu sua volta ao céu.<br />

Seu pedido foi atendido.<br />

Como um raio, fugiu apressada.<br />

E lá do céu, no meio das trevas,<br />

Olha a Terra uma bola distante.<br />

E aqui da Terra, os seus habitantes,<br />

Cheios de esperanças, pedindo paz.<br />

Os anos passam sem resultado,<br />

Decepcionados procuram entender<br />

Por que Deus atende as estrelas<br />

E não atende os homens.


120<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O presente do passado<br />

Surgiu como um vento de outono<br />

e a lufada quente tomara conta de meu ser.<br />

Não sabia se estava perdido ou tinha me encontrado,<br />

e nesse caos emocional sentia você.<br />

Os sonhos surgiram cada vez mais intensos,<br />

mais vividos, mais sentidos.<br />

Realizaram os dias e minha existência foi se justificando.<br />

Assim, foi passando, vendo o mundo das flores e<br />

foi se esquecendo dos espinhos.<br />

Mar de rosas, mundo de primaveras,<br />

vida em festa, tudo maravilha.<br />

Fui aos poucos descobrindo que estava amando<br />

e que Vinícius estava certo ao afirmar que<br />

“o amor é infinito enquanto dure”<br />

e durou o necessário para que a vida me mostrasse<br />

a eternidade naqueles momentos.<br />

Vi o mundo desfolhar o futuro que tanto<br />

me preocupou no passado.<br />

Aquele presente sublime que se transformou em passado<br />

e no presente não esquecemos jamais.


POESIAS 121<br />

Dia sem mãe<br />

Entre montes de caixotes pega o brinquedo,<br />

Fingindo distraído, para esquecer este dia.<br />

Correm as horas para findar o presente,<br />

Presente seria muito bom para mamãe.<br />

Que mãe? Para o órfão a inexistência da mãe é um fato,<br />

O fato de uma foto que é a única herança,<br />

Herança herdada de um dia de tragédia,<br />

Tragédia vivida em grandes prantos,<br />

Prantos intermináveis que todos os dias se repetem,<br />

Repetir para quê? Se o passando se foi.<br />

Foi com ele, mamãe!<br />

Pedir a Deus uma mãe<br />

Seria um pedido grande?<br />

Que castigo desumano pode merecer uma criança?<br />

Qual é o dia dos órfãos?<br />

Ninguém responde e meus olhos se enchem de lágrimas,<br />

Lágrimas que rolam em um rosto triste,<br />

Triste neste dia difícil que passa,<br />

Passa esquecido com eles, os órfãos,<br />

Órfãos que choram o passado que foi .<br />

E foi com ele, mamãe.


122<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Você<br />

Há coisas lindas na vida.<br />

Poesia...<br />

Amor...<br />

Você...<br />

Poesia é linda porque não é triste.<br />

Amor é lindo porque existe.<br />

Mas linda mesmo é você.<br />

Há coisas grandes na vida.<br />

Amor...<br />

Perdão...<br />

Você...<br />

Amor é grande porque não isola.<br />

Perdão é grande porque consola.<br />

Mas grande mesmo é você.


POESIAS 123<br />

Há coisas inexplicáveis na vida.<br />

Deus...<br />

Saudade...<br />

Você...<br />

Deus se ama não se explica.<br />

Saudade não se justifica.<br />

Mas sei que amo...<br />

Mas como explicar a você?<br />

Há coisas boas na vida.<br />

Livros...<br />

Carinhos...<br />

Você...<br />

Livros instruem a gente.<br />

Carinhos quem não os sente?<br />

Mas bom para mim é você.<br />

Há coisas incomparáveis na vida.<br />

Crianças...<br />

Sonhos...<br />

Você...<br />

Crianças eu não as entendo.<br />

Sonhos eu não os compreendo.<br />

Mas sei que amo você.


124<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Andarilho<br />

O andarilho sai pelas estradas, cabeça ao vento,<br />

maltrapilho e um saco nas costas como patrimônio.<br />

Anda à procura do nada.<br />

O que é nada?<br />

Esse nada, para nós, é tudo para ele.<br />

É a emoção da chegada que fascina seus olhos,<br />

é um som novo que modifica seus sentidos,<br />

é o destino que não para.<br />

Esse nômade, sem rumo e direção,<br />

tem em seus pés a esperança,<br />

a riqueza, o desígnio, o propósito.<br />

O projeto de percorrer caminhos desconhecidos<br />

é o seu tudo.


POESIAS 125<br />

A alegria da chegada tem um gosto de vitória,<br />

a conquista de mais uma etapa<br />

e o preparo para outras aventuras.<br />

Sem nem mesmo tomar gosto pelas coisas novas,<br />

sai novamente, buscando um rumo desconhecido.<br />

O que tem na alma essa criatura inquieta?<br />

Procura vida?<br />

Não, a vida já está em seus sentimentos.<br />

Procura a morte?<br />

Não, a morte é inevitável e o espera em algum erro fatal.<br />

Procura a sorte?<br />

Talvez!<br />

Procura amor?<br />

Não, se procurasse amor,<br />

a solução seria um contato maior com as pessoas<br />

e andarilho passa a maior parte do tempo só.<br />

Procura a dor?<br />

Não, da dor todos nós corremos.<br />

Procura Deus?<br />

Talvez!<br />

Procura a paz?<br />

Talvez!<br />

O dia em que encontrar tudo isso,<br />

termina a sua procura, acaba a sua caminhada.<br />

E isso nunca vai acontecer,<br />

porque esse andarilho nada achará andando.<br />

Ouça essa dica, andarilho!<br />

Amor, paz e Deus estão dentro de você.


126<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

Desculpas pela minha existência<br />

Virando a lata de lixo à procura de pão,<br />

Olha para o céu e pergunta a Deus,<br />

Desconfiado da sua existência.<br />

Sou mesmo seu filho, Senhor?<br />

Então, faça alguma coisa pela minha fome,<br />

Acabe com a minha dor<br />

E peça aos homens mais amor.<br />

Os trapos que o encobre<br />

É a identificação de mendigo,<br />

Mas dentro de si nada vê.<br />

Seria necessária a sua existência<br />

Para alguns se sentirem melhor ao vê-lo,<br />

Constatando que existe pessoa em pior situação<br />

Não, isso seria conformismo.<br />

Seria um castigo de algo que fez?<br />

Não, pois ele já nasceu muito pobre.<br />

Seria um castigo de algo da outra existência?<br />

É difícil afirmar, só Deus saberia.<br />

Então, resta pedir compaixão aos irmãos,<br />

Resta rezar a Deus pedindo clemência,<br />

Resta pedir ao governo um auxílio,<br />

Resta chorar, porque a fome aperta o estômago.<br />

— Olha ali! Uma lata de lixo sem mexer.<br />

Viu, Deus não é tão mal assim.


POESIAS 127<br />

Ser gente<br />

Sou gente.<br />

Como você, tenho coração,<br />

pernas, braços, olhos, lábios<br />

e uma mente,<br />

sou gente.<br />

Não é preciso lhe dizer tudo isso,<br />

mas no fundo da minha mente,<br />

quero que você me entenda,<br />

sou diferente.<br />

Diferente porque a gente sente,<br />

quando estou só sinto uma dor profunda<br />

ferindo a gente.<br />

Isso prova que sou gente.<br />

É difícil ser gente,<br />

alegrias, sofrimentos, prazeres.<br />

Isso marca a gente.


128<br />

Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />

O amor, esse sentimento marcante,<br />

arrasa a gente.<br />

É bom ser gente,<br />

de dia pensando e de noite sonhando.<br />

É duro o sonho da gente,<br />

sonha amando e acorda procurando.<br />

Para que serve a vida da gente?<br />

Levantar, trabalhar, estudar,<br />

mas sem amor?<br />

Amar é viver.<br />

Falam isso pra gente.<br />

Viver para amar.<br />

Isso sim é vida de gente.<br />

Felicidade de gente está dentro do coração,<br />

como o amor que ama a gente.<br />

O importante da gente é o sentimento.<br />

Mas a sensibilidade,<br />

às vezes, traz problema pra gente.<br />

É um problema ser gente,<br />

difícil solução.<br />

Muitas vezes, a solução não está ao alcance da gente.<br />

Eu gosto de ser gente.<br />

Um gosto sem graça.<br />

Mas para que graça?<br />

Se o sorriso disfarça na cara da gente.<br />

Enfim, para que serve a vida da gente?<br />

Nascer, viver e morrer.<br />

Não!<br />

Se você não ama,<br />

se você não sofre,<br />

você não é gente.


POESIAS 129<br />

Foi Deus quem fez você<br />

Não tenho mais dúvidas,<br />

foi Deus quem fez você.<br />

Mas antes ele disse: “Haja luz”.<br />

E houve luz e, assim,<br />

Ele foi montando tudo que existe no mundo.<br />

O Criador foi dando existência<br />

a todas as coisas que temos,<br />

usamos, desejamos<br />

e, muitas vezes, não damos o valor devido.<br />

Mas o dia em que Deus fez você<br />

estava inspirado,<br />

pois caprichou na beleza.


O dia em que Deus fez você<br />

estava benevolente,<br />

pois fez você uma pessoa caridosa.<br />

O dia em que Deus fez você<br />

estava iluminado,<br />

fez você uma pessoa que brilha.<br />

O dia em que Deus fez você<br />

estava afeiçoado,<br />

pois você surgiu amorosa.<br />

Deus fez você no dia que estava harmonioso,<br />

porque você saiu equilibrada<br />

com o mundo e com a vida.<br />

O dia devia ser de verão.<br />

Explica-se o calor que você transmite.<br />

Deus estava feliz.


Nasci na cidade de Anápolis<br />

– GO, conhecida pelo nome de<br />

Manchester Goiana. Aos 18 anos, para<br />

servir as forças armadas, mudei para<br />

Vila Velha – ES, onde me alistei na<br />

Escola de Aprendiz de Marinheiros.<br />

Um ano depois, embarquei no<br />

navio Porta Aviões Minas Gerais,<br />

atracado no Rio de Janeiro, cidade<br />

onde fiquei por nove anos.<br />

Em 1976, fixei residência na<br />

cidade de Itumbiara – GO, onde<br />

adquiri, em sociedade com meu irmão Walter, o bar Caverna,<br />

situado no início da Avenida Afonso Pena.<br />

Nessa mesma época, comecei a escrever crônicas com<br />

muito sarcasmo, denunciando a opressão do governo militar,<br />

fato que motivou o Dr. Getúlio a me apelidar de Lauro Ferrão.<br />

Posteriormente, fui convidado por ele a publicá-las no Jornal da<br />

Cidade, na coluna Tema Livre.<br />

Com o objetivo de resgatar parte do que foi produzido<br />

naquele período, reuni textos retirados das edições anteriores<br />

do Jornal da Cidade, que estão arquivados no Palácio da<br />

Cultura, além de crônicas e poesias inéditas para a publicação<br />

do meu primeiro livro, intitulado Meu Coração ficou na curva<br />

do Rio Paranaíba.

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