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Notas<br />
Dedico este livro ao meu pai José Laura (Fiíco) e à<br />
minha mãe Josina Rodrigues (Xirica). Aos meus filhos<br />
e filhas: Luiz Leandro, Verônica Silva, Francislaine<br />
Cardoso, Thierry Roberto e Anyta Laura.<br />
Agradeço, primeiramente, a Deus com quem<br />
mantenho contato todos os dias nas minhas meditações.<br />
Inclusive, perguntei-lhe se poderia publicar este livro,<br />
Ele ficou calado e quem cala consente.<br />
E finalmente, ao Google um companheiro de<br />
todas as horas; ao publicitário, escritor e artista plástico<br />
Júlio Quinan que ilustrou o livro; ao odontólogo Dr.<br />
Getúlio Lima que muito me incentivou e à minha irmã<br />
Edith e irmãos Waldemar, Walter e Edson.
2ª Edição
© Copyright 2014, Lauro Ferrão<br />
Meu coração ficou<br />
na curva do Rio<br />
Paranaíba<br />
Ilustração: Júlio Quinan<br />
Texto: Lauro Ferrão<br />
Revisão ortográfica: Maria Marly Dantas de O. Silva<br />
Foto: Barbosa Andrade Fotografias<br />
Diagramação: Cristiano A. Pricinote (Fábrica de Ideias)<br />
ISBN: 978-85-917889-0-3<br />
Registro BN: 646859, em 22/07/2014<br />
Todos os direitos reservados a Lauro Ferrão<br />
Editado por: ???<br />
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização dos autores<br />
Contatos: e-mail: <strong>lauro</strong><strong>ferrao</strong>@hotmail.com<br />
facebook: Lauro Ferrão Ferrão
“Um país se faz com<br />
homens e livros”.<br />
Monteiro Lobato
O escritor e suas vítimas<br />
Lauro Ferrão é um escritor<br />
raro. Ele tem o dom de nos prender,<br />
pobres leitores desavisados. Falo por<br />
experiência própria. Pensei comigo:<br />
vou ler um pouquinho, antes de<br />
dormir. Que nada! Fui fisgado como surubim, e só parei<br />
quando o livro acabou.<br />
“Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba” tem<br />
histórias fantásticas. Várias delas entrariam sem favor em<br />
qualquer antologia. Eu amei “Agosto”. Nela, um doente<br />
terminal chega em casa e... O final você vai descobrir<br />
sozinho. Daria uma peça de teatro. “E agora?” É um achado<br />
criativo de 1ª linha. Quem não gostaria de ter nas mãos,<br />
indefeso, o agressor cruel de sua família? Poderia citar, a<br />
esmo, vários outros <strong>contos</strong>: “Eu não sou cachorro não”,<br />
“Toninho Dondoca”, “Paranaíba, eu te amo”, “As paixões<br />
de Tiãozinho”.<br />
Muitos <strong>contos</strong> ficam tentando ser crônicas. A linha<br />
entre um gênero e outro é tênue. Na maioria das narrativas<br />
há, claro, traços de crônica, mas o DNA nega. Crônica é uma<br />
prima bonita, mas sem dinheiro, dentro da literatura, e este<br />
não será o caso aqui.<br />
Todas as histórias, mesmo as assentadas em casos<br />
reais, têm uma dimensão maior, só possível num conto.<br />
Você vai encontrar, também, poesia da melhor qualidade.<br />
“Você” e “Estrelas felizes” são emocionantes. Daquelas de<br />
se recortar e pôr numa moldura. Agora, esqueça o prefácio e<br />
leia “Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba”. Só um<br />
aviso: eu não começaria se tivesse de acordar cedo.<br />
Carlos Antônio Jordão<br />
Publicitário e escritor
Sempre tive uma queda pelas<br />
crônicas, aquelas que falam do dia a<br />
dia, dos acontecimentos verídicos e<br />
inventados, causos alegres e descontraídos<br />
e causos curiosos.<br />
A crônica nos dá uma maior<br />
dimensão da leitura, pois ela é mais<br />
dinâmica, objetiva, engloba os fatos, a<br />
mentira, os causos alegres e tristes e, por si só, tem a força de<br />
falar de um grande acontecimento, de um grande fato, de<br />
coisas corriqueiras em pouco mais de trinta linhas.<br />
Em 1976, Lauro me procurou para que eu lesse uma<br />
de suas crônicas e observei que tinha uma forma peculiar<br />
para abordar temas relacionados à política. É importante<br />
mencionar que vivíamos um período de pouca liberdade<br />
na imprensa, mas assim mesmo, como se usasse um ferrão,<br />
Lauro conseguia, com uma dose de ironia e humor, escrever<br />
sobre o tema. Assim, passei a chamá-lo de Lauro Ferrão.<br />
Naquela época, eu era presidente do “Jornal da<br />
Cidade”, convidei-o a participar da coluna “Tema Livre”<br />
que publicava todas as semana <strong>contos</strong> e crônicas. Posteriormente,<br />
o semanário passou a ser “Jornal de Itumbiara” e o<br />
Lauro Ferrão foi nomeado editor-chefe.<br />
Após algumas décadas, ele reúne várias crônicas<br />
publicadas, ao longo desses anos, em seu primeiro livro “O<br />
meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba”, narrando<br />
fatos engraçados ou que, historicamente, tornaram-se<br />
lendas, como os relatos de quando aqui havia uma aldeia<br />
indígena passando para vila, povoado, Santa Rita até chegar<br />
a Itumbiara.<br />
O autor traz, ainda, para suas crônicas as conversas da<br />
praça, os bate-papos do bar, as discussões sobre futebol e<br />
política, uma mistura de ficção e realidade, sempre acompanhada<br />
de uma boa dose de humor.<br />
Prezado leitor, o livro “O meu coração ficou na curva<br />
do Rio Paranaíba é uma obra de entretenimento, mas<br />
também um registro histórico e uma homenagem às pessoas<br />
que fizeram e fazem parte da sociedade itumbiarense.<br />
Getúlio Lima<br />
Cadeira nº 13 | AILA – Academia Itumbiarense de Letras e Artes
Sumário<br />
CRÔNICAS E CONTOS..............................................13<br />
O retrato da morta...................................................15<br />
O mal que não tem cura...........................................18<br />
Pedaço de carvão......................................................21<br />
Linhas cruzadas.........................................................23<br />
Pérolas da política....................................................26<br />
As cartas não mentem..............................................28<br />
As paixões de Tiãozinho............................................30<br />
As peripécias de Fontenelle...................................33<br />
Caryl Chessman.........................................................35<br />
Dona Santa..................................................................37<br />
Quem ri por último, ri atrasado.............................40<br />
Toninho Dondoca.......................................................42<br />
A vingança dos pássaros..........................................46<br />
Cada cidade tem os seus loucos............................48<br />
Um corpo na praça....................................................51<br />
Analfabeto político ..................................................53<br />
O tal de jet sky...........................................................56<br />
Dinamite ou Zico.........................................................59<br />
Eu não sou cachorro não.......................................62<br />
Meio gol.......................................................................65<br />
O dito pelo não dito..................................................68<br />
Paranaíba eu te amo!.................................................70<br />
O jogo econômico ....................................................73<br />
O mundo é uma escola..............................................75
Eu conheço Jesus......................................................77<br />
Deu bandeira...............................................................79<br />
Entre o céu e a terra...............................................81<br />
Carona pra sogra......................................................84<br />
Um homem chamado Denise .....................................86<br />
Salvo pelo Jacaré.....................................................88<br />
O fim do mundo...........................................................90<br />
Agosto.........................................................................93<br />
Esquecido....................................................................96<br />
Pesadelo atômico......................................................99<br />
E agora?....................................................................101<br />
Pão-duro....................................................................103<br />
Tolerância zero.......................................................105<br />
Sofia e a Flor............................................................107<br />
Solua .........................................................................109<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba.112<br />
Dia da criança............................................................114<br />
POESIAS.....................................................................115<br />
Estrelas felizes.......................................................117<br />
O presente do passado..........................................118<br />
Dia sem mãe................................................................119<br />
Você ...........................................................................120<br />
Andarilho..................................................................122<br />
Desculpas pela minha existência..........................124<br />
Ser gente..................................................................125<br />
Foi Deus quem fez você..........................................127
CRÔNICAS<br />
E<br />
CONTOS
CRÔNICAS E CONTOS 17<br />
O retrato da morta<br />
José Laura era muito esperto e inteligente. Na carpintaria,<br />
era profissional respeitado, fazia uma canga de boi<br />
como ninguém, aparava o tronco com machado e depois<br />
ia formando a peça com enchó até surgir a principal ferramenta<br />
para o boi puxar, o carro. Ele estava até fazendo<br />
roda d’água, era só ver uma peça que ele fazia igual e toda<br />
máquina que ele desmontava, montava novamente, funcionando<br />
em perfeita condições. Em Cascalho Rico, essas<br />
pessoas eram chamadas de Mestre, foi assim que surgiu<br />
Mestre Zé Laura.<br />
Nos anos 1940, ele inventou de ir a São Paulo conhecer<br />
a tal de penicilina. Ficou sabendo de um doutor que estava<br />
vendendo e ensinando a aplicar injeção. Foi lá, aprendeu<br />
e salvou muita gente doente. Descobriu que achava a<br />
penicilina mais barata no Porto de Santos. Ela vinha em<br />
caixa de madeira com serragem e gelo para conservar.
18<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Depois de comprá-la, o Mestre Zé Laura renovava o gelo e<br />
seguia de trem para aplicar nos doentes em Cascalho Rico.<br />
A sua vontade de conhecer as coisas era muito<br />
aguçada, mas na sua juventude era muito mais. Contam<br />
que, naquela época, chegou à cidade um retratista em seu<br />
cavalo, vinha puxando uma mula com toda a tralha que era<br />
uma novidade espetacular. Mestre Zé Laura ficou fascinado<br />
com a tecnologia de registrar a imagem de pessoas em um<br />
papel. Foi logo especular o retratista, que lhe ofereceu<br />
emprego, pois precisava de um ajudante. O Mestre não<br />
pensou duas vezes, arreou o cavalo, pegou uma trouxa<br />
de roupa, seguindo viagem com o retratista e a grande<br />
novidade.<br />
Durante a longa jornada, iam parando nas fazendas,<br />
oferecendo os serviços de colocar no papel o presente que<br />
serviria no futuro como prova da existência. O Mestre Zé<br />
Laura levava dois embornais atravessados no pescoço,<br />
do lado esquerdo, os chassis de negativos virgens e do<br />
lado direito os já usados e prontos para revelar. Depois<br />
de revelados, era só entregar as fotografias e receber pelo<br />
trabalho.<br />
Certo dia, eles seguiram para uma fazenda, pois<br />
souberam que haveria a realização do casamento de um<br />
fazendeiro, viúvo, rico com uma linda jovem. O momento<br />
exigia um registro especial.<br />
Depois de fotografado o casal, o Mestre fez o seu<br />
erro fatal, colocou o chassi usado para a foto no embornal<br />
esquerdo, junto com os virgens. Na próxima parada, havia<br />
um enterro de uma mulher. Prontamente, os parentes<br />
pediram que registrassem a última imagem da falecida.<br />
Não é que foi usado, justamente, o chassi que continha a<br />
foto do casamento o que acarretou uma sobreposição, ou<br />
seja, duas fotos no mesmo negativo.<br />
Na hora de revelar, o retratista ficou contrariado por<br />
ter perdido o trabalho realizado. Na fotografia, saiu o casal<br />
de noivos e o caixão atravessado no meio. Pronto, perdera o<br />
serviço. Agora, tinha que se desculpar com as famílias.<br />
Ao chegar à fazenda, do ex-viúvo e casadinho de<br />
novo, encontrou todas as famílias ansiosas para ver o
CRÔNICAS E CONTOS 19<br />
retrato. Antes de falar qualquer coisa, o retratista tirou a<br />
fotografia, mostrando-a para tentar justificar o erro. Foi o<br />
maior alvoroço. Começaram a se assustar afirmando que<br />
a esposa morta veio do além para impedir o casamento,<br />
saindo atravessada na foto do casal. O retratista ficou sem<br />
graça e, sem se justificar, saiu até sem cobrar os serviços.<br />
O dia ainda não tinha findado, quando, à porta da<br />
pensão onde estavam hospedados, já havia uma grande<br />
aglomeração de gente interessada para ver e comprar a<br />
prova de que a morta veio para atrapalhar a vida do novo<br />
casal.<br />
O retratista, que era mais ganancioso do que honesto,<br />
foi só vendendo as cópias, aproveitando que nem todos<br />
entendiam o que ocorrera verdadeiramente com a foto.<br />
O Mestre Zé Laura, para não perder o emprego, ficou<br />
caladinho. Assim, a fotografia da morta foi guardada por<br />
muita gente que ficou impressionada com o sobrenatural.
20<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O mal que não tem cura<br />
O Rio Paranaíba e seus afluentes guardam, em suas<br />
margens, o marco de uma história cheia de aventuras, de<br />
um passado glorioso, revestido pelas culturas populares.<br />
Hoje os nossos avós, em um bom papo, revelam-nos as<br />
cenas que ficaram na memória do povo e que nem sempre<br />
são fatos alegres.<br />
Na revolução de 1930, dizem os mais velhos, não<br />
existia rádio na região e as notícias vinham de boca em boca<br />
e, muitas vezes, chegavam, ao destino, distorcidas. Um dia,<br />
chegou a Rio das Pedras, povoado mineiro, a notícia de que<br />
uma coluna de milícia estava pegando gente para servir em<br />
combate. O corre-corre foi geral, os homens armazenavam<br />
mantimentos para vários meses e escondiam na Cana<br />
Brava, um mato que ficava perto do barranco mineiro do<br />
Rio Paranaíba.
CRÔNICAS E CONTOS 21<br />
Os canoeiros, que faziam a travessia dos viajantes no<br />
Paranaíba, sempre encontravam os desertores, que pediam<br />
segredo das suas passagens. Logo atrás, vinham as colunas<br />
de milícia indagando o paradeiro dos fugitivos, passavam e<br />
não encontravam ninguém, partindo para outro local.<br />
Bem cedo, já sem perigo para os fugitivos do Campo<br />
de Meio, os impertinentes viam a fumacinha aparecendo<br />
entre as copas das árvores, identificando a presença dos<br />
desertores amoitados e gritavam bem alto:<br />
– Corre que a coluna já vem!<br />
Pouco tempo depois, a fumaça dissipava-se, evidenciando<br />
que o medo fora mais forte que a fome. Os desertores<br />
fugiam para outro local, pois quem foge não tem sossego.<br />
Com a ditadura de Getúlio Vargas, em 1945, o então<br />
Ministro da Saúde decretou o recolhimento de todos que<br />
sofriam hanseníase, para uma colônia em Bambuí, cidade<br />
perto de Belo Horizonte. As famílias não abriam mão dos<br />
entes queridos doentes, mas a polícia ia às fazendas e levava<br />
os leprosos à força, deixando os familiares aos gritos de<br />
desespero. Até João Felipe, que já apresentava um quadro<br />
clínico sob controle, foi levado na mira de fuzil.<br />
As pessoas que tinham um caso de hanseníase na<br />
família sentiam como se a morte estivesse rondando a<br />
região, achavam que os parentes doentes seriam fuzilados e<br />
pediam para deixá-los morrerem em paz.<br />
Com o tempo, os internos ganhavam licença de 15<br />
dias ao ano, para visitarem as famílias que esqueciam a<br />
ideia do fuzilamento. Às vezes, na paz das manhãs de<br />
verão, os convalescentes tomavam sol nas varandas dos<br />
casarões, ouvindo o sabiá nas laranjeiras e o mugir das<br />
vacas à procura dos bezerros.<br />
Os impertinentes novamente entravam em cena<br />
e, ao passarem pela estrada, guiando seus carros de<br />
bois gemedores, ofendiam os doentes, chamando-os de<br />
macutena.<br />
Quase sempre, alguém replicava tomando as dores<br />
para si:<br />
– Não faça isso, Deus castiga! Deixa o doente na paz<br />
do Divino Pai Eterno. Ofender é pecado.
22<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O passar dos anos foi acompanhado de muitos avanços<br />
científicos, possibilitando um tratamento humanizado para<br />
quem sofre de hanseníase. No entanto, o estigma em relação<br />
a essa doença é tão grande que muitos deixam de procurar<br />
tratamento especializado para não se tornarem vítimas do<br />
preconceito. Infelizmente, para esse mal ainda não encontraram<br />
a cura.
CRÔNICAS E CONTOS 23<br />
Pedaço de carvão<br />
Como uma flecha ele passou correndo à procura de<br />
abrigo. Acomodou-se logo abaixo do viaduto, estendeu<br />
umas folhas de jornais e sentou-se. O neguinho se sentia<br />
esperto, acomodou também a sua bagagem. Era tudo<br />
produto de roubo realizado pelo trombadinha naquele dia.<br />
Escurecia e foi obrigado a acender uma fogueira<br />
para iluminar e aquecer. Fez o balanço do dia, abriu uma<br />
sacola que continha blusas e lenços e foi estrategicamente<br />
esquecida. Em uma bolsa, havia maquiagem, isqueiro,<br />
cigarros e muito pouco dinheiro. Separou o dinheiro e<br />
escondeu o resto.<br />
Essa sacola foi fácil, foi tomada de uma velhinha, tinha<br />
uma estampa com a imagem de Jesus Cristo com uma coroa<br />
de espinhos na cabeça. Olhou com detalhes e não gostou.<br />
Achou-a muito triste, mas havia outra estampa diferente,
24<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
em que aparecia Jesus Cristo em um banco de jardim e, em<br />
sua volta, várias crianças lourinhas pulando e se divertindo,<br />
logo abaixo a frase: “Vinde a mim as criançinhas”. Achou<br />
bonito, até interessante.<br />
Ficou ali olhando, à luz da fogueira, aquele cenário<br />
bem diferente do seu. Começou então a ficar triste com a<br />
realidade. Pegou um chiclete que mascava, foi até o paredão<br />
de concreto do viaduto e pregou a estampa. Afastou-se e<br />
ficou triste conferindo a imagem.<br />
Foi até a fogueira, pegou um pequeno pedaço de<br />
carvão, seguiu até a estampa e pintou todas as crianças<br />
loirinhas de preto.<br />
Afastou-se e conferiu, Jesus Cristo sentado em um<br />
banco de jardim sorrindo e cheio de negrinhos pulando em<br />
sua volta.<br />
Ficou feliz, sorriu, foi deitar e dormiu.
CRÔNICAS E CONTOS 25<br />
Linhas cruzadas<br />
A cidade de Anápolis sempre foi destaque no estado<br />
de Goiás devido às indústrias e a sua aproximação de<br />
Goiânia e Brasília. Na década de 1960, os serviços de<br />
telefone já apresentavam alguns avanços. Tirava-se o fone<br />
do gancho e, automaticamente, do outro lado, atendia<br />
uma prestativa telefonista. A gente pedia o número e ela<br />
completava a ligação.<br />
O próximo avanço tecnológico foi o telefone<br />
automático, as telefonistas foram dispensadas e bastava<br />
ligar para o número desejado, usando um pequeno disco<br />
perfurado e numerado. Ficamos maravilhados com a nova<br />
tecnologia e, a partir daí, surgiu o trote.<br />
Eu tinha um colega que trabalhava em um escritório<br />
de engenharia e ficava o dia todo esperando o tempo<br />
passar. Então, tivemos a ideia de ligar para qualquer<br />
número somente para constatar que do outro lado alguém<br />
atendia. Tudo isso sem ajuda de ninguém.<br />
Começamos então a conversar e pedir detalhes do<br />
interlocutor e a criatividade foi dando corda à imaginação.<br />
– Alô!<br />
– Quem está falando?
26<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
– Não importa. Eu estou ligando somente para avisar<br />
que eu vi tudo.<br />
– Tudo o quê?<br />
– Não preciso falar o quê... Somente te avisar que vi.<br />
– Pelo amor de Deus, você viu o quê?<br />
Para nós, ficava a ideia de sermos os donos de um<br />
grande segredo que não sabíamos qual era. Esse tipo de<br />
trote era eficaz, principalmente, quando era mulher que<br />
atendia. Então, apareceu um pequeno aparelho chamado<br />
BINA que identificava as ligações. Foi um grande golpe<br />
para todos os troteiros.<br />
A tecnologia avançava, mas o telefone ainda pregava<br />
algumas peças, como o fato ocorrido com Reginaldo.<br />
A esposa dele precisava fazer um exame em Goiânia<br />
e aproveitaria para passar o resto do dia na casa de uma tia<br />
que morava na capital. Ele foi levá-la. Ao deixá-la na porta<br />
do consultório, despediram-se, ela deu algumas instruções<br />
para buscá-la no outro dia e ele seguiu viagem.<br />
Logo que entrou no consultório, a mulher soube que<br />
o médico havia viajado, saiu correndo para ver se ainda<br />
alcançava o marido, mas ele já havia dobrado a esquina.<br />
Então, foi até a casa da tia e descobriu que ela viajara no dia<br />
anterior, por isso resolveu seguir para a rodoviária a fim de<br />
retornar a Anápolis.<br />
Reginaldo tinha uma loja e, chegando lá, foi logo ao<br />
telefone a fim de ligar para amante.<br />
– Meu amorzinho, minha mulher ficou em Goiânia.<br />
Vamos passar uma noite de muito amor.<br />
Nesse momento, a esposa dele já estava na rodoviária<br />
de Anápolis, fazendo uma ligação em um telefone público<br />
para o marido buscá-la, ocorreu linha cruzada e ela ouviu<br />
toda a conversa.<br />
Calada, pegou um táxi e se dirigiu para a sua<br />
residência, juntou todas suas roupas e foi para a casa de sua<br />
mãe.<br />
Quando Reginaldo voltou do encontro com a amante,<br />
foi direto para o banheiro, tomou um banho caprichado e,<br />
ao procurar uma camisa, assustou-se com a falta das roupas<br />
da esposa.
CRÔNICAS E CONTOS 27<br />
Foi correndo para o telefone:<br />
– Dona Dagmar, a senhora acredita que um ladrão<br />
entrou aqui em casa e roubou todas as roupas da Amelinha.<br />
– Roubou não. Amelinha está aqui em casa. Ela pegou<br />
todas as roupas e resolveu te deixar.<br />
Assim, aproveitando a ocasião, Dona Dagmar contou<br />
toda a história para um Reginaldo assustado e arrependido.<br />
Ele não pensou duas vezes, fez as malas e seguiu para a casa<br />
da sogra.<br />
Ao chegar, foi logo suplicando:<br />
– Estou aqui para te pedir perdão e não saio sozinho.<br />
Se você ficar na casa da sua mãe, eu também fico. Não te<br />
largo e não deixo você me largar.<br />
Essa foi a sua forma de se desculpar e declarar o seu<br />
amor.<br />
O telefone continuou desenvolvendo novas tecnologias,<br />
construindo histórias, algumas são assim, de traição<br />
e amor.
28<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Pérolas da política<br />
Pedro Carvalho era uma pessoa muito interessante,<br />
estatura pequena, fala mansa, inteligente, um humor<br />
invejável e aberto a grandes conversas. Tinha uma peculiaridade,<br />
bebia cerveja ao natural. Isso mesmo, sem gelar.<br />
Funcionário Público lotado na Receita Estadual,<br />
pertencia ao PSD – Partido Socialista Democrático – e<br />
direcionava à UDN – União Democrática Nacional – as suas<br />
principais críticas.<br />
Era de praxe os correligionários desses partidos<br />
debaterem. Na década de 1960, existia até uma piada<br />
narrando a história de um coronel do PSD, que já moribundo<br />
em seu leito de morte, chamou os filhos e sussurrou:<br />
– Vão lá correndo e busquem uma ficha de filiação na<br />
UDN que eu quero assinar.<br />
Os filhos apavorados queriam uma explicação.<br />
– Pai, o Senhor sempre foi fiel ao PSD e agora no final<br />
dos seus dias vai bandear?
CRÔNICAS E CONTOS 29<br />
– Se eu me filiar e morrer hoje, amanhã vai sair nos<br />
jornais: “Morreu um coronel da UDN”. Isso vai me fazer<br />
muito feliz.<br />
Nas eleições de 1954, o Pedro Carvalho foi convocado<br />
para presidir uma seção eleitoral da cidade do Panamá.<br />
Concorriam os candidatos à Presidência da República<br />
Juscelino Kubitschek, pelo PSD, contra Juarez Távora pela<br />
UDN.<br />
Logo de madrugada, ele foi até a praça e viu os fazendeiros<br />
chegando com seus cavalos e tratando de amarrá-los<br />
nas árvores. Deu um grande grito para reunir todos em sua<br />
volta e foi logo falando:<br />
– Quem for votar no Juscelino pode ficar, mas os que<br />
forem votar no Juarez podem voltar amanhã. Mandaram<br />
somente as urnas do Juscelino.<br />
Muitos fazendeiros retornaram, ficando apenas os<br />
interessados em votar no Juscelino.<br />
Pedro Carvalho contava essa história e ria às soltas.<br />
E quando Juscelino venceu as eleições para Presidente<br />
do Brasil, ocorreu outro fato inusitado. O PSD de<br />
Itumbiara enviou um telegrama para o Rio de Janeiro, que<br />
era capital brasileira naquela época, pedindo um emprego<br />
a uma militante do Panamá que trabalhou muito em busca<br />
de votos.<br />
Depois de um mês, veio a nomeação da militante para<br />
ser diretora de um Grupo Escolar. O diretório assustado<br />
mandou outro telegrama tentando corrigir a situação, pois<br />
aquela senhora era analfabeta. Então, dentro de um mês, ela<br />
foi aposentada.<br />
E, assim, na história da cidade, não há registro de<br />
alguém que tenha conseguido ascensão profissional tão<br />
rápida.
30<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
As cartas não mentem<br />
O nome da minha mãe era Josina, mas todos a conheciam<br />
como Xirica. Esse apelido nem mesmo ela sabia como<br />
conseguiu e por quê. Desde menina que todos a chamavam<br />
de Xirica. Ela era uma pessoa que ouvia a todos que se aproximavam<br />
e começavam a falar de qualquer assunto, ia ouvindo<br />
e perguntando “é mesmo?” Ou vinha com o chavão<br />
“é verdade?”. No fundo, era uma pessoa muito crítica, revelava<br />
um gosto apurado, mas procurava não ofender o interlocutor.<br />
Tinha sempre um jeito simples, acolhedor e muito<br />
educado.
CRÔNICAS E CONTOS 31<br />
Um dia, estava ela aguando a sua horta e olhando as<br />
folhas das couves procurando marandová. Morria de medo<br />
deles, quando via um gritava para que fôssemos retirá-lo da<br />
folha e matá-lo para não proliferar em toda a horta. Assim,<br />
estava entretida nessa tarefa, quando apareceu Madame<br />
Zuraia, a vizinha que tinha como ocupação ler a sorte<br />
através do baralho e nas horas vagas fazer fofoca.<br />
Chegou e já foi desfiando o rosário:<br />
– Dona Xirica, eu nem te conto! Sabe o Sebastião,<br />
aquele bigodudo da Polícia Rodoviária Federal, aquele que<br />
tem uma moto grande e mora na segunda rua de baixo?<br />
– Sei.<br />
Respondeu minha mãe, sem saber quem era, mas<br />
para encurtar a conversa falou que sabia.<br />
– Pois é, ele está enrabichado por uma conhecida<br />
minha do bairro Jaiara, chamada Cleide. Uma loira provocante<br />
por quem ele ficou apaixonado. Parece que vai até dar<br />
uma casa para ela morar.<br />
– É mesmo?<br />
– A mulher dele não sabe, mas lá no Jaiara, todo<br />
mundo está vendo ele chegar com a motocicleta. Chega e já<br />
vai entrando pelo portão e ficam lá a tarde inteira.<br />
– É verdade?<br />
– Este mundo esta perdido!<br />
Naquele momento, chegou uma mulher e perguntou<br />
para as duas.<br />
– Qual de vocês é a Madame Zuraia?<br />
– Sou eu, minha filha.<br />
– Estou querendo ler a minha sorte. Eu moro na<br />
segunda rua de baixo, sou esposa do Sebastião, aquele da<br />
Polícia Rodoviária Federal. A senhora põe as cartas?<br />
– Mas é claro, minha filha, vamos para a minha casa.<br />
Saíram as duas para consultar o baralho, essa famosa<br />
ciência oculta. Enquanto isso minha mãe olhou para mim,<br />
fez aquele sorrisinho de sarcasmo e falou:<br />
– Desse jeito é fácil adivinhar a vida dos outros. Assim,<br />
até eu consigo.
32<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
As paixões de Tiãozinho<br />
Quem conheceu Sebastião do Prado tinha uma<br />
admiração pelo seu jeito falastrão e brincalhão. O baixinho<br />
era mais conhecido por Tiãozinho. Ele gostava muito de<br />
beber e depois de umas cervejas, soltava o verbo contando<br />
as suas peripécias da juventude. O bar era o seu palco<br />
preferido, os conhecidos sabendo do seu costume e dos<br />
causos picantes, quando o viam bebendo no balcão, já se<br />
postavam ao seu lado.<br />
Naquele dia, depois de virar um gole longo de<br />
cerveja, ele começou a contar que, quando era jovem, tinha<br />
um caminhão Mercedes Benz Pescocinho para fazer frete<br />
da Campininha de Goiânia para a região da estrada de<br />
ferro. Pegava as compras dos pequenos armazéns e fazia<br />
a entrega. O roteiro era de mais ou menos trezentos quilômetros,<br />
saía de madrugada e voltava à noitinha.<br />
Os companheiros de copo ficaram atentos à narrativa<br />
de Tiãozinho:
CRÔNICAS E CONTOS 33<br />
– Em Bela Vista, uma das cidades do trajeto, havia<br />
um pequeno armazém, daqueles do interior onde se vende<br />
tudo. O dono, o Senhor Oclécio, tinha uma mulher muito<br />
bonita de rosto e corpo, ele a chamava de Santinha. Eu não<br />
sabia o nome verdadeiro dela, mas para mim ficou Santinha<br />
mesmo. E não é que ela estava me olhando com muito<br />
interesse. Eu fiquei louco de vontade de pegar a Santinha do<br />
Oclécio, mas ele não dava folga, tinha um ciúme exagerado<br />
da mulher. Em todas as minhas viagens, eu ficava planejando<br />
uma forma de pegar a Santinha, pois não é que, em<br />
uma dessas viagens, o Oclécio veio me perguntar:<br />
– Tiãozinho, que hora você está de volta para Goiânia?<br />
– De noite, Oclécio, mas por quê?<br />
– É que a Santinha tem que fazer uns exames e a gente<br />
queria uma carona. Vamos ficar na casa de uns parentes dela.<br />
– Pode deixar que, na volta, lá pelas oito horas da<br />
noite, passo aqui.<br />
– O Oclécio agradeceu. Aquela situação havia caído<br />
do céu. O resto da viagem fiquei imaginando uma forma de<br />
agarrar a Santinha.<br />
Todos estavam muito curiosos para saber o desfecho<br />
da história. Entre um gole e outro, Tiãozinho ia desenrolando<br />
os acontecimentos:<br />
– Quando a noite estava caindo, cheguei à porta do<br />
armazém. Vieram o Oclécio e a Santinha, sentaram-se na<br />
boleia do caminhão, ela perto de mim. Eu chegava a arrepiar<br />
imaginando a hora do acocho. No meio da viagem, eu pisei<br />
no breque e falei: “Nossa Senhora, deu um problema no<br />
breque”. O Oclésio assustado me perguntou:<br />
– O que é breque?<br />
– É o freio. Faz o seguinte, você fica pisado no freio e<br />
a Santinha vem comigo com a lanterna para ver se consigo<br />
consertar.<br />
A essa altura o silêncio no bar era absoluto, Tiãozinho<br />
estava empolgado, contanto mais uma de suas aventuras:<br />
– Peguei um alicate e um martelo e dei a lanterna para<br />
a Santinha e fomos para trás do caminhão. Gritei: “Pisa no<br />
freio.” Ele pisou e a luz do freio acendeu. Tava feito o plano.<br />
Agarrei a Santinha e fui correspondido. Estava no bem bom
34<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
quando o Oclécio sentiu uma câimbra, bambeou o pé no<br />
freio e a luz apagou. Gritei de novo: “Pisa no freio, ai meu<br />
dedo. Pisa no freio”. Ele pisou e a luz voltou a acender e,<br />
enquanto a luz estivesse acesa, nós estávamos livres. Assim,<br />
todos ficamos satisfeitos, o Oclécio achando que salvou o<br />
meu dedo, eu que tinha realizado o meu sonho e a Santinha<br />
que estava com os olhos brilhando.<br />
Tiãozinho tomou mais um copo de cerveja e despediuse,<br />
ninguém ousou questionar a veracidade do relato.<br />
Afinal, suas histórias alegravam aqueles que tentavam<br />
afundar suas amarguras na mesa do bar.
CRÔNICAS E CONTOS 35<br />
As peripécias de Fontenelle<br />
Na década de 1960, havia dois veículos de comunicação<br />
que atingiam todo o Brasil, principalmente as cidades<br />
do interior, a revista semanal O Cruzeiro e a Rádio Nacional<br />
do Rio de Janeiro.<br />
Ficávamos ávidos das notícias dos grandes centros<br />
urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, particularmente<br />
sobre as ações exageradas e inesperadas do Prefeito Jânio<br />
Quadros da cidade de São Paulo. Acredita-se que o ditado:<br />
“O suor de funcionário público serve para curar câncer”,<br />
seja daquela época, por isso as saídas de Jânio Quadros<br />
pelas madrugadas flagrando funcionários faltosos, relapsos<br />
e displicentes eram notícias apreciadas pelos brasileiros.<br />
De modo especial, quando eles eram demitidos na hora do<br />
flagrante. O Brasil, naquela época, era assim.<br />
Em um dia quente de verão, veio a notícia de um<br />
Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo chamado<br />
Fontenelle que gostava de imitar as ações extravagantes
36<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
do Prefeito Jânio Quadros. Fontenelle saía para as ruas à<br />
procura de infratores no trânsito. Ao se deparar com um<br />
carro estacionado em local proibido, parava a sua equipe e<br />
esvaziava um pneu.<br />
Na cidade de Anápolis, por coincidência, existia um<br />
Tenente da Polícia Militar do Estado de Goiás chamado<br />
Fontenelle, também encarregado pelo trânsito da cidade.<br />
Era muita coincidência.<br />
Logo depois que a notícia das peripécias do Fontenelle<br />
paulista surgiu, o goiano foi logo imitá-lo. Saiu com a<br />
sua equipe à procura dos infratores. No centro da cidade,<br />
em frente ao BANESPA – Banco do Estado de São Paulo –<br />
estava estacionado um fusca bem na esquina, infringindo<br />
a lei. Fontenelle parou, convocou os seus auxiliares para<br />
orientar o trânsito.<br />
Começou a se formar uma pequena aglomeração.<br />
Fontenelle foi até o fusca, agachou e começou a esvaziar o<br />
pneu. Chegou um gaiato e falou:<br />
– Muito bonito, hem!<br />
– Se achou ruim, vou esvaziar os outros pneus,<br />
retrucou Fontenelle.<br />
E foi esvaziando o outro dianteiro e os dois traseiros e<br />
ainda ameaçou:<br />
– Se falar mais alguma coisa é só me dar as chaves que<br />
vou esvaziar o pneu de estepe.<br />
– Eu não, o carro não é meu – confessou o gaiato<br />
saindo de fininho.<br />
Foi uma risada só entre as testemunhas de mais uma<br />
das peripécias do Fontenelle goiano.
CRÔNICAS E CONTOS 37<br />
caryl chessmaN<br />
Acordei na manhã do dia 2 de maio de 1960, tomei<br />
café da manhã rapidamente e me sentei ao lado do rádio<br />
Philco Transglobe de 8 faixas à procura da sintonia com a<br />
Rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro, que transmitiria<br />
a execução de Caryl Chessman, na Prisão de San Quentin,<br />
Estado da Califórnia.<br />
Passei toda a semana lendo a revista O Cruzeiro que<br />
detalhou quem era o réu, as investigações, a condenação e<br />
a sua execução na câmara de gás. Condenado pelos crimes<br />
de estupro e roubo nas colinas de Hollywood, ele era conhecido<br />
como “O<br />
Bandido da Luz<br />
Vermelha”, devido<br />
à utilização<br />
de uma lanterna<br />
de luz vermelha<br />
para se aproximar<br />
das vítimas<br />
imitando um<br />
policial.<br />
Ele passou<br />
a maior parte de<br />
sua vida nas prisões,<br />
mas negou<br />
e lutou fantasticamente<br />
para<br />
anular a pena<br />
capital. Sua luta<br />
teve repercussão<br />
mundial e várias<br />
organizações ligadas<br />
à defesa<br />
dos direitos humanos<br />
manifestaram-se<br />
contra
38<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
a execução, no entanto duas vítimas o reconheceram em<br />
seus depoimentos, o que determinou a implacável condenação.<br />
Enquanto esteve atrás das grades lutando contra a pena<br />
máxima, ele estudou e escreveu muito, aumentando ainda<br />
mais a admiração de uma legião de pessoas pelo mundo<br />
afora. A obra biográfica “2455 – Cela da Morte” foi o livro<br />
mais lido na década de 1960, vieram depois os livros: “A Lei<br />
Quer Que Eu Morra”, “A Face Cruel da Justiça” e “O Garoto<br />
Era Um Assassino”.<br />
Foram realizados dez apelos e várias petições encaminhadas<br />
à Suprema Corte dos EUA, conseguindo adiar sete<br />
vezes a data marcada para a sua execução. A luta inglória,<br />
que durara 11 anos e 10 meses, chegou ao fim.<br />
A imprensa dava detalhes de como seria a execução, a<br />
raspagem da cabeça, a última refeição, a confissão com um<br />
pastor ou padre, o caminho para a câmara de gás, a forma<br />
de imobilização em uma cadeira com cintos, a leitura da<br />
sentença, o fechamento da câmara, a cortina aberta para<br />
que as testemunhas assistissem à execução e o carrasco<br />
acionando uma pequena alavanca que liberaria uma<br />
cápsula de cianeto de hidrogênio que misturada em um<br />
recipiente de água, logo abaixo da cadeira, exalaria o gás<br />
mortal.<br />
Ficamos ali atentos esperando qualquer desfecho.<br />
Poderia ser que, a qualquer momento, chegasse uma carta<br />
de clemência do governador da Califórnia, Par Brown,<br />
suspendendo a execução ou apenas a narrativa do locutor<br />
confirmando a morte de Caryl Chessman.<br />
Foi chocante, quando às 10 horas, horário da<br />
Califórnia, o locutor narrou: “Caryl Whittier Chessman está<br />
morto!”<br />
Questionamos a lei dos homens, imaginamos a vida<br />
ordenada à margem da lei de Deus e ficamos confusos.<br />
Naquele momento, acabava-se a esperança de manter<br />
uma vida, mas continuava, ainda, a dúvida, Caryl seria<br />
culpado ou inocente?
CRÔNICAS E CONTOS 39<br />
Dona Santa<br />
– Depressa, está na hora de tomar banho, hoje é sextafeira<br />
e vamos à casa da Dona Maria da Santa.<br />
– Mamãe, eu queria ficar para estudar.<br />
– Não, menino, você estuda amanhã que é sábado.<br />
Hoje é dia da Santa.<br />
Segui calado e cabisbaixo rumo ao quarto para me<br />
equipar de chinelos e toalha, porque se entro no banheiro<br />
sem esses apetrechos era a maior bronca.<br />
– Lave as orelhas. Vou olhar quando sair.
40<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Era sempre assim, bronca, bronca e bronca, mas eu lavava,<br />
não custava nada. Era bucha que ardia no pescoço e<br />
sabão de bola, só no sábado e domingo que se usava sabonete<br />
cheiroso.<br />
– Quando acabar, puxa a água, o rodo esta aí dentro.<br />
Enxugo, enxugo e puxo a água, tudo isso para ir à<br />
casa da Dona Maria da Santa. Vesti as calças curtas e calcei<br />
as botinas de cravos, penteei o topete cheio de brilhantina e<br />
vesti a camisa grossa de algodão.<br />
– Vamos.<br />
E fui, segurado pela mão, o que não me agradava,<br />
porque a turma ficava mangando de mim, mas fui. Tudo isso<br />
para ir à casa da Dona Maria da Santa, uma casa pequena,<br />
onde a cozinha fazia às vezes de sala e divisa com o quarto.<br />
Quinze pessoas enlatadas em um cômodo pequeno, poucas<br />
cadeiras, eu estava sentado, porque cheguei mais cedo.<br />
Era sempre assim, vinha tudo por cima de mim.<br />
– Levanta, menino, dá lugar pro seu Genaro.<br />
Eu sabia, sentei de lerdo.<br />
Todos acomodados e lá vai fofoca, pregação da vida<br />
alheia, língua de trapo e eu ouvindo calado. Seu Genaro,<br />
mascador de fumo, passava o naco para o outro lado<br />
da boca e dava uma cuspida que caía no chão batido e<br />
respingava nas minhas pernas. Desgraçado! Esfregava uma<br />
canela na outra para esparramar os respingos, só assim<br />
secavam mais rápido.<br />
– Vamos rezar o terço pessoal que está na hora.<br />
Dona Maria comandava o pessoal.<br />
– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,<br />
Amém. Ave Maria, cheia de graça...<br />
E o terço era repetido em coro. Para passar o tempo,<br />
eu ficava olhando os cabelos de Dona Preta presos em<br />
coque e um terço de contas grandes na mão. Fiquei olhando<br />
o terço, o Cristo crucificado balançando, balançando, cansei<br />
de olhar para ela e ouvir a sua voz de taquara rachada. Não<br />
havia nada de novidade para olhar, era o mesmo quadro<br />
da sexta-feira passada. Seu Pafúncio era engraçado: “Afe<br />
Maria, feia de graça...”, meu pai achava que ele tinha um<br />
ovo dentro da boca.
CRÔNICAS E CONTOS 41<br />
Minha mãe ficava com olhos vidrados na Dona<br />
Maria da Santa, fascinada com os poderes que ela contava<br />
que tinha. No canto direito, estava deitado o Ximbica, um<br />
vira-lata de olhos remelentos. Por causa dele, na semana<br />
passada, levei muitos cascudos por ter pisado no seu rabo.<br />
Foi uma gritaria e assustou todo mundo. Também casa<br />
não é lugar de cachorro, casa é de gente, mas ninguém me<br />
entendeu.<br />
– Amém!<br />
Terminou Dona Maria da Santa colocando o terço no<br />
altar.<br />
– Agora vamos ver a Santa.<br />
Pediu a Mariquinha para apagar os candeeiros,<br />
porque Santa vem só no escuro. Santa gosta de escurinho.<br />
Eu segurei no varal da prateleira para não me sentir perdido<br />
na escuridão.<br />
– Olha ela lá!<br />
Era a Dona Maria da Santa, ela era sempre a primeira<br />
a ver. Também pudera! A Santa era dela.<br />
– Olha ali, no cantinho, ela está andando pro rumo da<br />
janela. Agora, chegou à tramela. As mãozinhas dela, olha o<br />
terço. Que coisa mais linda!<br />
– Eu tamém tô veno.<br />
Era o seu Genaro, só ele e Dona Maria da Santa viam a<br />
Santa. Eu firmei a vista, esfreguei os olhos e fiz de um tudo,<br />
mas não consegui ver a Santa.<br />
Eu não desisto, quando crescer vou mastigar fumo e<br />
então...
42<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Quem ri por último, ri atrasado<br />
Acredita que existem pessoas que guardam uma<br />
piada por muito tempo para contá-la? Pois existem. Brasil<br />
era alfaiate, sistemático e sisudo, mas começou a pensar em<br />
uma situação bem engraçada.<br />
Ele imaginou juntar dinheiro para comprar um carro<br />
e, chegando à concessionária, perguntaria:<br />
– Quanto custa aquele carro?<br />
Quando o vendedor dissesse o preço, ele abriria o<br />
embrulho, retiraria o dinheiro e falaria:<br />
– Embrulha o carro que vou levar!<br />
Para você, isso pode não parecer engraçado, mas o<br />
Senhor Brasil achava o máximo a possibilidade de participar<br />
dessa cena.<br />
Durante doze anos, juntou dinheiro para conseguir<br />
o valor do automóvel. Tirou a carteira de habilitação e foi<br />
à concessionária de veículos e escolheu um DKV Vemaget<br />
verde-abacate. A cena que imaginara ocorreu da mesma
CRÔNICAS E CONTOS 43<br />
forma como foi planejada. Veio uma vendedora para<br />
atendê-lo. Ele perguntou o preço e foi informado:<br />
–Trinta mil cruzeiros.<br />
Brasil inchou o peito e disse a frase que vinha<br />
guardando há tanto tempo:<br />
– Embrulha o carro que vou levar!<br />
Colocou o dinheiro na mesa e sorriu.<br />
A vendedora não entendeu nada, saiu e foi tirar a nota<br />
fiscal.<br />
O Brasil pegou o DKV e saiu satisfeito da sua<br />
façanha. Achou a piada o máximo, porém, ao entrar na<br />
avenida principal, deparou-se com uma blitz policial. O<br />
Cabo Osvaldo mandou parar e aproximou-se pedindo os<br />
documentos e a habilitação.<br />
– Cadê a placa do automóvel?<br />
– Não tá vendo? É novinho, tá na nota fiscal. Comprei<br />
agora.<br />
O Brasil entregou a nota fiscal e a habilitação novinha<br />
para o Cabo Osvaldo.<br />
– Carteira novinha também. Onde comprou a habilitação?<br />
O Brasil estrilou.<br />
– Não! A carteira foi a sua mãe quem me deu depois<br />
que eu dormi com ela.<br />
– Teje preso. Desacato a autoridade.<br />
Cabo Osvaldo levou o Brasil para o tenente comandante<br />
da blitz. Cada um deu a sua versão para o desafeto. O<br />
tenente riu às gargalhadas, dizendo-lhes:<br />
– Os dois estão errados. O cabo não poderia se<br />
expressar dessa maneira e o Brasil não poderia responder<br />
também desse modo. Quero que os dois se desculpem e se<br />
cumprimentem com um aperto de mão<br />
Assim foi feito e assim ficou decidido. Ficou um<br />
exemplo: a piada do embrulha o carro, que o Brasil ficou<br />
arquitetando por doze anos não emplacou, mas a da carteira<br />
de habilitação deu o que falar.
44<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Toninho Dondoca<br />
Foi como um soco direto no estômago, a boca secou e<br />
as vistas ficaram por um instante fora de foco. Foi assim que<br />
Toninho recebeu a notícia do assassinato do pai.<br />
O informante tinha a sua idade, oito anos, chegou<br />
quando Toninho estava brincando no portão de sua casa e<br />
foi logo destrinchando a notícia.
CRÔNICAS E CONTOS 45<br />
– Mataram o seu pai no Sinucão do Alcides. Foi o Zé<br />
Pereira que deu três facadas. Levaram o Seu João para o<br />
hospital, mas o povo tá falando que ele chegou lá, já morto.<br />
A mãe não estava em casa e Toninho ficou ali no<br />
portão sem saber o que fazer. Tinha vontade de chorar, mas<br />
não dava conta e então veio o primeiro grito. Ficou gritando<br />
até os vizinhos chegarem para prestar socorro e saber do<br />
acontecido.<br />
Maria Abadia, sua mãe, era uma nordestina forte que<br />
vivia da costura. Ela relatava que na sua família tinha um tio<br />
que foi cangaceiro nos tempos de Lampião. Contava com<br />
certo orgulho a valentia da família e, principalmente, do tio,<br />
coisa a que Toninho não dava importância. Ela era franca<br />
a ponto de ofender as pessoas com a sua opinião. A sua<br />
valentia assustava a vizinhança, todo mundo tinha medo<br />
da Maria Abadia.<br />
Ela chegou, soube da notícia e saiu para dar providências<br />
ao velório. Não esboçou nenhuma reação, nem de<br />
tristeza e nem de espanto. Comportou-se como se fosse<br />
uma coisa corriqueira.<br />
O filho, depois de tomar dois copos de água com<br />
açúcar, estava ali sentado em um tamborete esperando as<br />
horas passarem. Logo mais à noite, chegou o pessoal da<br />
funerária e preparou a sala, retirando a televisão, o sofá e<br />
a mesinha para instalar os cavaletes onde seria colocado<br />
o caixão. As pessoas foram chegando e, em conversas<br />
pequenas, iam perguntando os motivos do crime, comentando<br />
o quanto era bom o João, a hora do enterro e o<br />
paradeiro do assassino.<br />
Toninho pegou o tamborete, colocando-o perto do<br />
caixão e ficou ali olhando para o corpo inerte do pai. Seus<br />
pensamentos de menino ficaram estacionados na perda e<br />
foi, aos poucos, compreendendo como seria a sua vida com<br />
a ausência do ente querido.<br />
Maria Abadia foi até o quarto e voltou com uma<br />
tesoura que foi amarrada aberta com as pontas para baixo<br />
no crucifixo, logo acima do caixão. Algumas pessoas<br />
ficaram sem saber por que aquela tesoura estava ali, mas,<br />
respeitosamente, aguardavam em silêncio uma explicação.
46<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
– Na terra dela, esta tesoura aberta de ponta para<br />
baixo significa que a família quer vingança – foi a explicação<br />
apresentada por um parente aos presentes.<br />
No entanto, Maria Abadia continuava ausente de<br />
qualquer sentimento de dor. Só olhava para o caixão e<br />
depois para o Toninho. O menino era filho único e agora ela<br />
seria o pai e a mãe para continuar a sua criação.<br />
No enterro, Maria Abadia ficou ali ao lado da cova,<br />
abaixou, pegou um pouco de terra, jogou sobre o caixão<br />
e pela primeira vez, depois do acontecido, esboçou um<br />
semblante de ódio e começou a gritar:<br />
– A morte é a vitória! A morte é a vitória!<br />
Pegou o Toninho pelas mãos e saiu do cemitério.<br />
Chegando a casa, Toninho teve a sua maior surpresa. Maria<br />
Abadia sentou, puxou um tamborete e o mandou sentar,<br />
declarando a sua sentença:<br />
– Toninho, vou sentar ali naquela máquina e vou fazer<br />
um vestido. Você vai ter que usar esse vestido até o dia em<br />
que você der conta de matar o Zé Pereira, o assassino do seu<br />
pai.<br />
Inicialmente, Toninho achou que ela estava delirando,<br />
mas a sua surpresa foi que, no dia seguinte, a sua mãe estava<br />
ao pé da sua cama com o vestido na mão e, com um olhar de<br />
águia, fuzilou a sentença:<br />
– Veste!<br />
– Mas, mãe, a senhora ficou doida. Como vou sair na<br />
rua vestido de mulher?<br />
– Não tem mais e nem menos. Veste e só vai deixar de<br />
usar vestido quando você matar o Zé Pereira, o assassino<br />
do seu pai.<br />
No primeiro dia, o Toninho não saiu de casa. Recebia<br />
os amigos no quarto e pedia para que eles chamassem<br />
os seus pais para convencer a sua mãe a desistir daquela<br />
maluquice. E a escola? Combinou com os vizinhos para<br />
levar uma troca de roupa e deixar à disposição. Saía de casa<br />
com o vestido, obedecendo à mãe e, na casa do vizinho,<br />
trocava de roupa para chegar à escola.<br />
A precaução não foi suficiente. Acabou acontecendo<br />
o que tinha medo: descobriram a sentença da mãe. A escola
CRÔNICAS E CONTOS 47<br />
inteira ficou sabendo da história. Alguns vinham compartilhar<br />
com solidariedade o seu martírio, mas a maioria<br />
queria mesmo era fazer gozação. Logo arrumaram para ele<br />
o apelido de Toninho Dondoca.<br />
A partir daí, o sofrimento do garoto se intensificou,<br />
era como levar uma pedrada quando alguém gritava o seu<br />
apelido maldito: “Toninho Dondoca”.<br />
Depois de um ano nessa luta tentando enganar a<br />
mãe, Toninho conseguiu uma vitória. De tanto pedir, a<br />
mãe atendeu, ele podia sair com o vestido por cima de<br />
uma calça. Assim, ficou mais fácil. Saía do portão para fora<br />
e já tirava o vestido, ficando com a calça e a camiseta que<br />
estava debaixo, guardando o vestido na mochila para vestir<br />
na volta. No entanto, todo o dia era a mesma coisa. Ela<br />
explicava que a honra da família tinha que ser lavada com<br />
sangue. Essa era a sua principal preocupação.<br />
Toninho tinha quatorze anos quando, certo dia, estava<br />
estudando enquanto sua mãe costurava, mas, de repente,<br />
ela parou, olhou para o lustre no teto e foi virando os olhos<br />
aos poucos, caindo para o lado e esparramou-se no chão.<br />
Toninho achou estranho, veio correndo, ajoelhou-se ao seu<br />
lado e com a ponta do vestido foi limpando a face suada da<br />
mãe já sem vida.<br />
Estava novamente o Toninho sentado no tamborete,<br />
agora ao lado do caixão da mãe. Os seus pensamentos<br />
ficaram perdidos entre o passado e o presente. Veio a<br />
tristeza da perda de outro ente querido, mas no fundo veio<br />
uma ponta de alívio da opressão. Agora não precisava mais<br />
usar o vestido, nem matar o Zé Pereira e o apelido maldito<br />
de Toninho Dondoca poderia ser esquecido.<br />
Respirou profundamente, olhou para o alto e deixou<br />
tudo nas mãos de Deus.
48<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
A vingança dos pássaros<br />
O automóvel Brasília foi grande sucesso na época do<br />
seu lançamento, quadrado, motor traseiro, grande espaço<br />
interno e conforto total. No seu auge, eu tinha uma,<br />
amarela, som amplificado, rodas especiais e coxinilho<br />
preto. Eu era o cara.<br />
Um dia ao anoitecer, desci para o centro da cidade<br />
a fim de ir ao cinema. Estacionei na Praça da República,<br />
embaixo de uma grande árvore, entrei no Cine Walter
CRÔNICAS E CONTOS 49<br />
Barra, assisti ao filme Midnight Cowboy e saí assustado<br />
com a vida noturna em Nova York.<br />
O meu susto foi maior ainda quando vi que a minha<br />
maravilhosa Brasília amarela estava branca, toda coberta<br />
de caca de passarinho. Somente o meu carro estava assim,<br />
nenhum carro ao lado foi borrado. Estava tão sujo que tive<br />
que pedir, em um pit dog próximo, uma garrafa de água e<br />
um pano para limpar o para-brisa, pois não era possível<br />
enxergar nada à minha frente.<br />
Enquanto estava limpando, um passarinho pousou<br />
no teto do carro e atrevidamente ficou me fitando,<br />
parecia que estava me ameaçando. Fiquei ali olhando<br />
o seu comportamento e tentando entender o que estava<br />
acontecendo comigo. Veio à minha mente, como se fosse<br />
um filme antigo, a lembrança de que, quando menino,<br />
levava sempre comigo um estilingue para matar passarinho.<br />
Disputava com outros amigos quem conseguia<br />
acertar mais aves.<br />
Só podia ser isto, aqueles pássaros descobriram em<br />
mim um antigo predador, por vingança, estavam cobrindo<br />
o meu carro de caca e o atrevido no teto estava me dando o<br />
troco. A vingança foi cruel!
50<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Cada cidade tem os seus loucos<br />
É uma verdade incontestável: “Cada cidade tem os<br />
seus loucos”. Nas cidades pequenas, os malucos chegam a<br />
ser um patrimônio do local. São eles motivos de piadas, de<br />
situações constrangedoras, de brigas e até interferência em<br />
manifestações políticas.<br />
Nos pequenos lugarejos, eles são engraçados.<br />
Todos têm um motivo para testar o louco. Até as mães<br />
usam a imagem dos loucos para ameaçar os seus filhos,<br />
quando eles fazem alguma estripulia, vem logo a intimidação:<br />
“Olha que eu vou chamar o Pé de pato para te<br />
levar”. Assim, devido ao medo, as ameaças funcionam<br />
com as crianças.<br />
Costumam também fazer piadas, colocando-os<br />
em situações engraçadas. Geralmente, eles perambulam<br />
pelas praças, mexendo com os transeuntes enquanto que,
CRÔNICAS E CONTOS 51<br />
nas cidades grandes, ficam jogados, ninguém liga e eles<br />
ficam nas portas das lojas fazendo gracejos nas calçadas,<br />
dançando ao som das músicas tocadas nos aparelhos que<br />
estão expostos à venda. De vez em quando, ficam agressivos<br />
e, assim, algum órgão de saúde os recolhem para<br />
providenciar um tratamento.<br />
Com certeza, todas as cidades têm os seus loucos.<br />
Os nomes são variados, alguns pitorescos, como Pé de<br />
pato, Arara, Ambrósio e muitos outros. Existem, ainda,<br />
os doidos mais excêntricos, as pessoas afirmam que eles<br />
ficam dementes em consequência de muitos estudos,<br />
justificando a máxima popular: “Ficou doido de tanto<br />
estudar”.<br />
Pardal, um morador de minha cidade, era considerado<br />
maluco, porque leu e estudou tanto que ficou doido<br />
de pedra. Eu, ainda menino, gostava de vê-lo contando<br />
coisas da natureza, novidades da ciência e até experiências<br />
de Física. Mais tarde, descobri que ele decorava tudo isso de<br />
uma enciclopédia.<br />
Ele era, também, o terror dos comícios, os políticos se<br />
precaviam mandando um segurança verificar a presença<br />
dele na plateia. A constatação de que ele estava, era motivo<br />
de uma mobilização para tirá-lo do local antes do discurso<br />
principal.<br />
Todas as vezes que algum político discursava, ele<br />
começava a criticar em voz alta, corrigindo os deslizes<br />
cometidos em relação às normas gramaticais, deixando o<br />
orador em situação constrangedora.<br />
Até o padre Salazar se sentia incomodado com Pardal.<br />
Durante as missas, era providencial colocar alguém ao seu<br />
lado para cutucá-lo se ele interferisse nos ritos litúrgicos.<br />
Um dia, o padre estava ensinando catecismo para<br />
nós no salão paroquial, quando o Pardal entrou. Toda a<br />
criançada ficou atenta. O sacerdote procurou com o olhar<br />
algum adulto para controlá-lo e nada de aparecer. Foi<br />
quando Pardal interferiu perguntando:<br />
– A igreja é a casa de Deus?<br />
– É claro, Pardal! Aqui é a casa do Senhor.<br />
– E Deus é o Senhor de todas as coisas?
52<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
– Sim, mas por que a pergunta?<br />
– Então, por que o Senhor colocou na igreja um<br />
para-raios? O Senhor acha que Deus pode destruir a própria<br />
casa? A sua fé não é grande e suficiente para acreditar na<br />
proteção divina?<br />
O padre ficou em silêncio por uns instantes, as<br />
crianças dirigiram o olhar para o Pardal, que estava questionando<br />
e ao padre que achava a pergunta inoportuna<br />
naquele momento.<br />
O silêncio pairou no ar por um instante. O padre<br />
ignorou os questionamentos de Pardal e, rapidamente,<br />
voltou aos ensinamentos do catecismo, mas não prestei<br />
muita atenção ao que ele dizia a partir daquele momento.<br />
Mentalmente, buscava respostas para tantas perguntas.<br />
Passaram-se os anos, e só então pude perceber o<br />
quanto de lucidez havia na loucura de Pardal.
CRÔNICAS E CONTOS 53<br />
Um corpo na praça<br />
Estava ali um corpo estendido no chão, bem no<br />
meio da Praça da República. Seu apelido era Tiziu, mas<br />
ninguém sabia o seu verdadeiro nome, só sabiam que ele<br />
era cobrador e fazia o seu serviço na bicicleta à qual estava<br />
agarrado. O ladrão tentou tomá-la, o Tiziu se atracou com<br />
ele e o meliante aplicou-lhe duas facadas no peito.<br />
Seu rosto estava voltado para o sol, esvaindo-se em<br />
sangue na espera das ambulâncias do SAMU e do Resgate<br />
dos Bombeiros, que foram acionados, mas ainda não<br />
haviam chegado.<br />
Tiziu olhou para o sol e, em pensamento, alimentava<br />
esperanças. Imaginou Deus convidando-o pra o céu, como<br />
se uma grande luz estivesse se abrindo e chamando a sua<br />
alma para a salvação. Estava sentido frio, sabia que estava<br />
morrendo.<br />
Um pastor, passando pela praça, aproximou-se da<br />
multidão e perguntou:
54<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
– É ladrão? Mataram ele?<br />
– Acho que ele estava roubando uma bicicleta e<br />
pegaram ele – respondeu um curioso.<br />
Uma dona de casa perguntou ao taxista:<br />
– Por que você não o leva para o hospital?<br />
– A gente não pode mexer, tem que esperar a polícia –<br />
respondeu o taxista.<br />
No entanto, ele estava mesmo era desinteressado<br />
em realizar uma corrida que, certamente, não seria paga.<br />
Na loja em frente, um locutor falava ao microfone que os<br />
des<strong>contos</strong> eram de 70%, mas ninguém se interessava, pois a<br />
loja estava vazia.<br />
Uma mãe que arrastava o filho pelas mãos resistia em<br />
chegar perto do corpo, justificando que, à noite, o menino<br />
não conseguiria dormir, ficaria impressionado.<br />
O hippie, que estava fazendo as suas pulseiras,<br />
levantou rápido e foi vender os seus badulaques aos<br />
curiosos, que se acotovelavam para ver o corpo estendido<br />
no chão.<br />
O policial chegou antes da ambulância e foi logo<br />
perguntando se existiam testemunhas. Ninguém queria se<br />
comprometer.<br />
Os olhos do Tiziu foram ficando sem brilho, enquanto<br />
a ambulância estava estacionando. Um enfermeiro foi logo<br />
tomando o pulso e aferiu a pressão. Estava mesmo morto.<br />
A ambulância levou o corpo de Tiziu, a alma foi<br />
acolhida por Deus, mas a sua bicicleta, que ele defendeu<br />
com a vida, veio outro ladrão e a levou.
CRÔNICAS E CONTOS 55<br />
Analfabeto político<br />
Na minha juventude, aprendi que, na política, existem<br />
duas tendências ideológicas, esquerda e direita. A esquerda<br />
é representada pelos que aprovavam o comunismo,<br />
conhecidos como reformistas e os da direita eram os que<br />
aprovavam o capitalismo, conhecidos como conservadores.<br />
Mais tarde, fiquei sabendo a origem desses termos<br />
para identificar ideologicamente os partidos políticos e<br />
seus militantes. A origem vem da França no final do século<br />
XVIII. Existiam três grupos sociais chamados de Estado<br />
Geral: o clero – o Primeiro Estado; a nobreza – Segundo<br />
Estado e o resto – Terceiro Estado, que englobava noventa<br />
e cinco por cento da população, incluindo empresários,<br />
comerciantes, médicos, advogados, artesãos e o proletariado<br />
urbano e rural. Eram esses que pagavam os impostos,<br />
já que a nobreza e o clero eram isentos. O direito de ocupar<br />
cargos públicos era reservado apenas à nobreza e ao clero.<br />
Ao ser proclamada a Constituição da França, foi eleita<br />
a Assembleia Legislativa. Os membros do Terceiro Estado<br />
se sentavam à esquerda do Rei enquanto os do clero e da
56<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
nobreza se sentavam à direita. Sendo assim, o Terceiro<br />
Estado, à esquerda, tornou-se radicalmente contra todas as<br />
decisões da nobreza que estava à direita<br />
A partir dessas informações, procuro compreender um<br />
fato ocorrido no ano de 1969. Eu estava morando no Rio de<br />
Janeiro e, na tarde de um dia de maio, passando pela Rua<br />
Visconde de Inhaúma, esquina com a Avenida Rio Branco,<br />
perto do cais do porto e próximo da Praça Mauá, presenciei,<br />
em um bar de esquina, um ato bárbaro. O local contava<br />
com cadeiras nas calçadas onde estavam sentados uns 20<br />
marinheiros franceses em visita ao Brasil. Foi quando um<br />
carro parou e quatro ocupantes desceram atirando de metralhadora.<br />
O atentado terrorista feriu uns seis marinheiros.<br />
Fiquei perplexo diante de tamanha covardia, eles<br />
abordaram pessoas desarmadas e atiram sem piedade.<br />
A esquerda política do País, imediatamente, assumiu o<br />
atentado terrorista. Na época, eu tinha um amigo que era<br />
simpatizante dos militantes de esquerda e justificou a ação<br />
dos terroristas como uma forma de os partidos da esquerda<br />
brasileira chamarem a atenção da imprensa internacional<br />
para a situação política de uma ditadura militar de direita,<br />
existente no País naquela época.<br />
Por ser analfabeto político, entendi que a direita estava<br />
no poder, a esquerda estava sem voz e para se comunicar<br />
estava matando inocentes. Até hoje, ainda relembro aquela<br />
cena. A história foi se seguindo e eu fui acompanhando na<br />
imprensa as notícias dos militares prendendo, torturando<br />
e os terroristas de esquerda matando inocentes, assaltando<br />
bancos e sequestrando pessoas em nome de uma causa.<br />
Esses militantes de esquerda, na sua maioria, estiveram<br />
em Cuba treinando e aprendendo táticas militares, a<br />
fabricar uma bomba, a assaltar banco, a matar pessoas, a se<br />
esconder ou organizar grupos a fim tomar o poder para instalar<br />
no Brasil um estado comunista.<br />
Mais tarde, passei a conhecer grandes líderes que se<br />
opuseram aos regimes ditatoriais com a palavra, com o<br />
convencimento e com o diálogo. Mahatma Gandhi foi um<br />
deles. Liderou a Índia contra a Inglaterra e conseguiu a sua<br />
independência sem a luta armada.
CRÔNICAS E CONTOS 57<br />
No Brasil, contra os militares surgiram grandes líderes<br />
como Tancredo Neves, Mário Covas, Teotônio Vilela e<br />
Ulisses Guimarães. Eles iniciaram um grande movimento<br />
nacional contra a ditadura militar na base do discurso. Não<br />
pegaram em armas e não agrediram ninguém. Saíram em<br />
caminhada por todo o País levando a esperança.<br />
Enquanto grandes líderes estavam nos palanques<br />
mostrando um novo caminho de forma pacífica, a esquerda<br />
radical estava em Cuba fazendo cursos de espionagem,<br />
montagem de bombas, combate urbano, manejo de armas,<br />
insurreição rural, sequestro e assalto a bancos. Hoje alguns<br />
deles são políticos de renome como deputados, senadores,<br />
governadores, ministros e falam de seus passados com<br />
orgulho, como se esse fosse o melhor caminho.<br />
Para aqueles que não vivenciaram esse período da<br />
história do Brasil, deixo aqui alguns pensamentos de pessoas<br />
admiráveis, que podem ser utilizados como parâmetro para<br />
nossa reflexão. Mais uma vez citarei Mahatma Gandhi<br />
que disse: “A força não provém da capacidade física. Mas<br />
da vontade férrea”. Sobre as armas ele afirmou: “A não<br />
violência e a covardia não combinam. Posso imaginar um<br />
homem armado até os dentes que no fundo é um covarde.<br />
A posse de armas insinua um elemento de medo, se não<br />
mesmo de covardia. Mas a verdadeira não violência é uma<br />
impossibilidade sem a posse de um destemor inflexível.”<br />
Vale lembrar, ainda, Ulisses Guimarães que preconizou:<br />
“O Brasil precisa de uma Constituição em que o povo<br />
seja o fundador, por votação direta, do governo e da Lei.”<br />
É imprescindível não cruzar os braços pela garantia<br />
dos direitos essenciais a todo ser humano, mas nessa luta<br />
vale a afirmativa de Tancredo Neves: “Não são os homens,<br />
mas as ideias que brigam.”<br />
Ficará registrado para a posteridade que homens<br />
lutaram contra a ditadura no País com as palavras e outros<br />
com as armas. As experiências do passado podem ser,<br />
portanto, matéria-prima com a qual cada brasileiro pode<br />
esboçar os registros históricos do futuro.
58<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O tal de jet sky<br />
A cidade de Itumbiara sempre se orgulhou de ter o Rio<br />
Paranaíba. A sua beleza contagia a todos que o procuram<br />
para admirá-lo. Os itumbiarenses sempre tiveram algum<br />
contato com ele, alguns vão dar uma olhada, outros<br />
utilizam canoa ou lanchas para um passeio ou para pesca,<br />
as melhores formas de aproveitar essa dádiva da natureza.<br />
Em 1980, decidi por comprar uma lancha. Consegui<br />
na cidade de Uberlândia uma que estava dentro do meu<br />
orçamento e atendia às minhas necessidades.<br />
Logo fiz amizade com todos os proprietários de<br />
canoas e lanchas da cidade e, sabendo da necessidade de<br />
melhorias em infraestrutura para o embarque e desembarque<br />
nas margens, resolvemos fundar o Iate Clube de<br />
Itumbiara que foi iniciado a todo vapor.<br />
Começamos a providenciar a reforma da rampa<br />
de acesso que era muito íngreme. Construímos uma<br />
mais apropriada que exigia um menor esforço para os<br />
carros na hora de tirar a carreta com a lancha ou canoa.
CRÔNICAS E CONTOS 59<br />
Procuramos o Ministério da Marinha para que todos<br />
estivessem documentados com a embarcação e com a<br />
habilitação.<br />
Na mesma época, o político Paulo Serrano assumiu<br />
a Secretaria Estadual de Esporte e Lazer do Governo<br />
Henrique Santillo. Os itumbiarenses aficionados em<br />
esportes reivindicaram alguma obra ou evento para<br />
a cidade. Assim, os corredores de kart conseguiram a<br />
construção do Kartódromo Internacional e nós do Iate<br />
Clube ficamos enciumados. Imediatamente, formamos<br />
uma comitiva e fomos ao Secretário para pedir alguma<br />
ação de característica náutica.<br />
Chegamos e nos deparamos com a Secretaria lotada.<br />
Estava sendo organizada a Corrida Internacional de<br />
Motocicleta que foi realizada no Autódromo Internacional<br />
de Goiânia. Havia pilotos atrás de patrocínio, empresário<br />
organizando algum tipo de marketing, organizadores<br />
providenciando a programação e o secretário Paulo Serrano<br />
coordenando tudo. Finalmente, quando fomos recebidos,<br />
pedimos ao secretário que realizasse alguma competição<br />
esportiva no Rio Paranaíba. O secretário, muito atencioso,<br />
chamou Marcelo, organizador de eventos de uma empresa<br />
paulista que estava produzindo a prova de motocicleta. Ao<br />
ser questionado sobre o que poderia ser realizado nas águas<br />
do Paranaíba, ele veio com uma ideia extraodinária:<br />
– Tem a prova de Jet Sky.<br />
Muito curioso, perguntei o que era isso e Marcelo<br />
explicou:<br />
– É uma motocicleta que anda sobre as águas.<br />
E eu, mais curioso ainda, perguntei.<br />
– Como assim? A moto, a roda afunda.<br />
Não é uma moto de roda, é uma canoinha com motor.<br />
Assim, sem conhecer o tal Jet Sky, definimos a prova<br />
para o final de 1988. Os pilotos eram todos de São Paulo<br />
e a primeira coisa com que eles se preocuparam foi com<br />
a poluição do rio. Tivemos que colher amostra da água<br />
do Rio Paranaíba de 500 em 500 metros entre as pontes<br />
Affonso Penna e Ciro Pereira de Almeida. O teste foi<br />
favorável, o nosso rio estava dentro das normas exigidas
60<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
pelos pilotos, ficando marcado o evento para o dia 6 de<br />
novembro de 1988.<br />
Foi o 1º Circuito Centro-Oeste de Jet Sky. Estiveram<br />
presentes a imprensa nacional e estadual mostrando as<br />
belezas do rio e a qualidade da prova. O Iate Clube de<br />
Itumbiara foi parceiro auxiliando na logística e na montagem<br />
da pista. Ganhei até um troféu e agradecimentos pelo esforço<br />
de ajudar no sucesso do evento.<br />
Os goianos ficaram fascinados com o tal de Jet Sky.<br />
O ex-piloto de motocicleta Edmar Ferreira me procurou<br />
para fundarmos uma Federação, pois naquela época só<br />
poderia importar o Jet Sky se fosse atleta ou piloto federado.<br />
Conseguimos cumprir as exigências unindo o Iate Clube de<br />
Itumbiara, Iate Clube de Buriti Alegre e o Iate Thermas Clube<br />
de Cachoeira Dourada. A primeira reunião foi realizada em<br />
Cachoeira Dourada e a primeira prova foi em Itumbiara.<br />
Colocamos o nome de 2º Circuito Centro-Oeste de Jet Sky<br />
realizado no dia 3 de dezembro de 1989.<br />
Essas provas foram o grande incentivo para os<br />
campeões goianos de Jet Sky, principalmente, para o piloto<br />
itumbiarense Douglas Carvalho que representou o Brasil<br />
nos Estados Unidos e venceu várias provas na categoria<br />
Free Style, em que são realizadas manobras dificílimas,<br />
As motos sobre as águas se proliferaram e nós, ainda,<br />
ficamos com as lembranças das descobertas, de como<br />
ficamos maravilhados com a novidade e satisfeitos por<br />
termos feito história.<br />
E o tal Jet Sky virou mania!
CRÔNICAS E CONTOS 61<br />
Dinamite ou Zico<br />
Nos anos 1970, a cidade de Itumbiara respirava<br />
política. Em todos os lugares, discutia-se política. Existia,<br />
no início da Avenida Afonso Pena, um ponto conhecido<br />
como a “Quarta Árvore”. Os partidos políticos, Arena e<br />
MDB, digladiavam-se em estratégia e movimentação de<br />
lideranças.<br />
A “Quarta Árvore” era um local reservado no meio da<br />
ilha onde as confidências dos simpatizantes do MDB eram<br />
trocadas. Do lado esquerdo de quem sobe, ficava a Casa da<br />
Borracha do Rui, em frente à Funerária do Jerominho e, ao<br />
lado, o Bar Caverna.
62<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O Rui da Borracha era um grande gozador. Todas<br />
as vezes que descobria que alguém não foi trabalhar por<br />
pequena indisposição, ele corria ao telefone para dar um trote.<br />
Ligava para a funerária e pedia um caixão dando o nome e o<br />
endereço do doente. Ficava na porta olhando o Alcides, um<br />
negro alto, arrumando o caixão na perua e saindo com um<br />
papel onde estava escrito o endereço. A volta do Alcides todo<br />
sem graça com o caixão, era motivo de muita gozação e farra<br />
e o doente ficava azedo de raiva pela brincadeira.<br />
O Bar Caverna era tocado de dia pelo Waltinho e,<br />
tarde da noite, por mim. O meu sócio era querido por todos,<br />
apesar de manter sempre uma cara fechada de poucos<br />
amigos e certa falta de educação para com os fregueses, mas<br />
ninguém arredava o pé, o bar era o point.<br />
O local contava com um pequeno reservado ao fundo<br />
com oito mesas, luz negra e decoração nas paredes com<br />
tinta fluorescente. Nos finais de semana, ficava lotado até<br />
altas horas da noite.<br />
No dia 9 de outubro de 1977, era domingo de muito<br />
calor e a cidade estava repleta de turistas, no outro dia, seria<br />
a inauguração do Estádio JK com o jogo do Vasco da Gama<br />
contra o Itumbiara Esporte Clube. A escolha do Vasco<br />
foi do torcedor e também Prefeito Municipal Modesto de<br />
Carvalho.<br />
Os jogadores chegaram no domingo cedo e foram<br />
descansar. À noite, o bar estava lotado. Foi quando parou<br />
na porta um Chevette com quatro garotas e o jogador<br />
Roberto Dinamite. Uma delas desceu foi até o fundo no<br />
espaço reservado e conferiu que estava lotado. Foi até o<br />
Waltinho que estava no caixa e falou baixinho:<br />
– Seu Walter, o Senhor poderia pedir para desocupar<br />
uma dessas mesas do reservado, pois nós estamos com o<br />
Roberto Dinamite e ele quer conhecer o seu bar.<br />
Waltinho manteve a cara amarrada e respondeu sem<br />
pestanejar:<br />
– Minha filha, os meus fregueses estão aqui todos<br />
os finais de semana e o Senhor Roberto Dinamite aparece<br />
somente uma vez na vida. Faz o seguinte, fala para ele<br />
esperar até desocupar uma mesa.
CRÔNICAS E CONTOS 63<br />
A mocinha não gostou e se mandou com o Dinamite.<br />
A turma do balcão fez a maior gozação:<br />
– Seu Walter, se fosse o Zico, o Senhor esvaziava o bar.<br />
– Não é nada disso, estou somente zelando pelos<br />
meus clientes.<br />
Mas logo atrás do caixa, estava a prova, um grande<br />
cartaz com a foto do time do Clube de Regatas do<br />
Flamengo, em pé: Cantarele, Toninho Baiano, Rondinelli,<br />
Jayme Almeida, Júnior, Merica e agachados Caio Cambalhota,<br />
Geraldo, Luisinho Lemos, Zico e Zé Roberto. Ali,<br />
no meio dos jogadores, estava o Zico presenciando aquela<br />
cena. A foto entregou legal.
64<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Eu não sou cachorro não<br />
Nem ele mesmo sabia por que tinha o apelido de João<br />
Bola. Os apelidos são colocados nas pessoas para, exageradamente,<br />
identificar um defeito, qualidade ou detalhe<br />
engraçado. Bola poderia sugerir que o João jogava o que<br />
não acontecia. Também poderia identificar o seu peso<br />
exagerado, o que também não era verdade. Ele disse que<br />
tinha aquele apelido desde criança e não sabia de onde<br />
surgiu, pois era baixinho e magrelo.<br />
O que ele não tinha em tamanho, tinha na grandeza<br />
do coração. Era um romântico nato, gostava de poemas<br />
e músicas, mas o seu gosto era um tanto exagerado. Os<br />
poemas eram aqueles populares que as adolescentes<br />
tiravam dos almanaques e mandavam para as revistas e<br />
as músicas eram bregas, porém não deixava de ser um<br />
romântico a seu modo.<br />
No amor, não conseguia ter êxito, começava um namoro<br />
e logo era desprezado pela pretendente. A turma achava que<br />
ele não sabia escolher a sua cara-metade e suas preferências<br />
não agradavam, contudo ele achava que não tinha mesmo<br />
era sorte no amor. Talvez por isso ele gostasse de colecionar<br />
aquelas frases rimadas em um caderno, exaltando a sua<br />
tristeza e a ingratidão das mulheres que o desprezavam.<br />
Era só começar um novo namoro, vinha correndo para<br />
contar os encantos e as qualidades da pretendente. Assim,<br />
um dia a gente tentou baixar a bola dele, pedindo-lhe para<br />
não entrar de cabeça em mais um relacionamento, mas ele
CRÔNICAS E CONTOS 65<br />
afirmava com convicção que agora encontrara a pessoa<br />
certa para entregar o seu coração. O recorde era de duas<br />
semanas e batata! Vinha o fim do relacionamento e, depois<br />
de duas semanas, o João Bola vinha chorar as mágoas.<br />
No fim de um desses relacionamentos, o João Bola<br />
me procurou pedindo apoio moral. Estava arrasado pelo<br />
rompimento do namoro. Apoiei os seus sentimentos com<br />
palavras amenas e um pequeno toque de sarcasmo. Tudo<br />
a fim de que ele abrisse mais os olhos para a vida real e<br />
deixasse de construir castelos imaginários que poderiam<br />
desabar facilmente.<br />
Convocou-me para tomar umas cervejas no Bom<br />
Jardim, uma vila rural às margens da rodovia que liga<br />
Itumbiara à Buriti Alegre. Fomos em seu fusca verde que<br />
tinha um som infernal, potente para despertar o bairro<br />
inteiro e eu, ali ao lado, tentando ouvir o que ele falava. O<br />
som do carro abafava as suas palavras e, de vez em quando,<br />
eu pedia para ele repetir, pois não estava entendendo nada.<br />
Depois de tomar muitas cervejas e de contar com<br />
detalhes o fim do namoro, ele chorava compulsivamente e<br />
repetia:<br />
– Eu fui pegá-la para a gente ir ao pit dog, ela estava na<br />
porta com a frase pronta: “Tá terminado, adeus!”<br />
Bem que eu tentei controlar as cervejas, pois ele não<br />
aceitava que outra pessoa dirigisse o seu fusca. Já fiquei<br />
sóbrio só de medo de voltar pela rodovia com ele bêbado<br />
ao volante. Ao chamá-lo para irmos embora, ele concordou<br />
contrariado, mas avisou que levaria ainda seis latas de<br />
cervejas.<br />
Quando entramos no fusca, ele mal sentou-se, abriu<br />
uma lata e ligou o maldito som, pôs o CD do Valdick<br />
Soriano com a música “Eu não sou cachorro não”. Ele ainda<br />
cantarolava a música desafinadamente acompanhando o<br />
seresteiro:<br />
“Eu não sou cachorro não<br />
Pra viver tão humilhado<br />
Eu não sou cachorro não<br />
Para ser tão desprezado.”
66<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Com medo de ele tomar as cinco latas de cervejas que<br />
sobraram, eu tomei todas de uma golada e fui tentando<br />
orientar os limites da estrada. Ele cobria a faixa contínua e<br />
eu gritava: “olha a faixa”. Outra hora, ele saía pelo acostamento<br />
e eu gritava: “olha o mato”. Foi assim, até a curva<br />
fechada que termina na ponte do Ribeirão Santa Maria. Ele<br />
não deu conta de fazer a curva e foi direto para as água.<br />
O fusca começou a afundar, eu saí e fiquei nas margens<br />
pedindo para que ele saísse imediatamente, porque o carro<br />
já estava afundando. Ele cantarolando falou decidido:<br />
– Só saio quando a música terminar!<br />
Valdick não conseguiu terminar a música, as água já<br />
abafavam os alto-falantes nos últimos acordes:<br />
“Pelo nosso amor,<br />
Pelo amor de Deus<br />
Eu não sou ...”<br />
No entanto, o João Bola terminou o seu desabafo<br />
musical:<br />
– ...cachorro não.
CRÔNICAS E CONTOS 67<br />
Meio gol<br />
O time dos veteranos “Nóis bebe e joga” estava disputando<br />
o campeonato com o time “Me chama que eu vou”.<br />
O vencedor receberia dez caixas de cervejas como prêmio.<br />
Tinha até torcida organizada, para os dois times é claro. O<br />
páreo era duro, eles tinham chegado com mérito até a final.
68<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Apesar de muitas críticas para os dois lados, o juiz<br />
estava atento, havia torcedor dizendo que o Timora,<br />
zagueiro do “Nóis bebe e joga” tinha falado que do<br />
pescoço para baixo, na concepção dele, era canela. Os<br />
outros torcedores contrários criticavam o Argolinha,<br />
goleiro do “Me chama que eu vou”, afirmando que ele<br />
tinha mão de quiabo.<br />
Os dois times pertenciam à Liga Esportiva Espartana.<br />
Esse nome ninguém sabia o significado, mas o presidente o<br />
escolheu para o nome da entidade, após ter assistido a um<br />
filme.<br />
O campo estava lindo, tinha somente de afastar os<br />
cachorros para iniciar a partida. Nesse clima de final de<br />
campeonato, os foguetes pipocaram os céus das Pontezinhas,<br />
cenário desse espetáculo. Foi a senha para os<br />
caninos fugirem do barulho para o esconderijo.<br />
Entraram em campo os atletas, garbosos, exibindo<br />
algumas barriguinhas, porque ninguém é de ferro. Foram<br />
se separando conforme a cor dos seus uniformes. Começou<br />
o jogo, disputado, dividido, lutado, não tinha sangue no<br />
jogo, mas muito suor. E nada de gol. Foram os quarenta<br />
e cinco minutos de muito sacrifício. Começou o segundo<br />
tempo e nada de gol. Foram novamente mais quarenta e<br />
cinco minutos e a rede não balançava.<br />
Veio a prorrogação, agora é mata-mata. Quem fizesse<br />
o primeiro gol era o campeão. Foi quando o Timora deu um<br />
carrinho e as duas chuteiras foram no meio das canelas do<br />
Divaldo. Toda essa cena aconteceu na pequena área. O juiz<br />
não vacilou, marcou pênalti.<br />
Chamaram para a cobrança o Teobaldo Coisa Ruim.<br />
Disseram que o apelido foi colocado pela própria mãe. Ele<br />
tinha um chute tão forte que um dia derrubou a trave, bateu<br />
e ela caiu com a pancada.<br />
Ele pegou a bola, colocou no chão e ficou olhando no<br />
fundo dos olhos do Argolinha. Parecia até namoro, mas o<br />
olhar era de muita maldade. Afastou-se uns dez metros,<br />
veio correndo e deu uma bicuda. Foi tão forte o chute que<br />
a bola deu um estrondo e partiu no meio. A metade entrou<br />
no gol e a outra metade passou por cima da trave. O Argo-
CRÔNICAS E CONTOS 69<br />
linha ficou parado olhando para o céu vendo a outra meia<br />
bola subir.<br />
Correram todos para cima do juiz. Foi ou não foi gol?<br />
Seu Josué, o juiz, era evangélico e gostava de citar<br />
a bíblia em todas as situações de conflitos. Segundo suas<br />
convicções, jogar era pecado, mas apitar não. Virou para a<br />
torcida e falou.<br />
– A minha decisão, que vai na súmula, será igual à<br />
do Rei Salomão naquela passagem da criança que seria<br />
dividida ao meio. Será meio a zero.<br />
Ninguém entendeu a justificativa, mas a torcida do<br />
“Nóis Bebe” começou a comemorar e a torcida do “Me<br />
Chama” correu para o juiz.<br />
Foi muito bate-boca e não resolvia nada. Então o juiz<br />
falou o seguinte:<br />
– Como o tento não se configurou a contento, fica<br />
decidido que a cerveja será dividida entre os dois times.<br />
Cinco caixas para cada.<br />
Assim, as torcidas entenderam, aceitaram e foram<br />
beber, pensando que o Rei Salomão quase passou a perna<br />
no “Me Chama”.
70<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O dito pelo não dito<br />
O radialista Adumon Machado fez história na cidade<br />
de Itumbiara. Era uma pessoa franca e direta. Essas características<br />
fizeram do radialista uma pessoa muito ouvida, mas<br />
também muito combatida, suscitando algumas inimizades<br />
em consequência das suas considerações.<br />
Como comentarista esportivo, sempre criava alguma<br />
discussão quando criticava atletas. Eram jogadores que<br />
esperavam elogios e ele era severo nas críticas e, assim,<br />
surgiam sempre malquerenças.<br />
Na década de 1980, ele mantinha um programa na<br />
Rádio Paranaíba AM chamado ”Itumbiara ao meio-dia” e,<br />
algumas vezes, convidava-me para dar opinião sobre algum<br />
assunto polêmico. Ele passava a notícia e eu ia expondo<br />
os detalhes, explicando os fatos, no entanto evitava dar<br />
uma opinião, principalmente, em relação às notícias sobre<br />
política. Falava dos prós e contras em relação ao tema e<br />
deixava os ouvintes decidirem a respeito.<br />
A maioria das notícias eram obtidas de fontes ligadas<br />
às delegacias de polícia, IML, Polícia Rodoviária Federal
CRÔNICAS E CONTOS 71<br />
e jornais. Certo dia, eu esta ali, esperando que ele lesse as<br />
ocorrências policiais, para depois comentarmos as notícias<br />
políticas. Ele leu um boletim de ocorrências relatando que<br />
um jovem, depois de consumir drogas, destruiu os móveis<br />
da sua casa e espancou o seu próprio pai. O boletim não<br />
detalhava o tipo de droga que foi consumida. Sem os<br />
detalhes, o Adumon fez um comentário mordaz e falou que<br />
o rapaz deveria ter fumado maconha e cheirado cocaína.<br />
Passando para outros assuntos, ficamos ali analisando<br />
os fatos e atendendo telefonemas. Foi quando surgiu um<br />
velhote na porta do estúdio. Estava indignado, foi entrando<br />
e reclamando:<br />
– Sou o pai do Anderson. Olha aqui... Ele fuma<br />
maconha e de vez em quando quebra os meus móveis e me<br />
bate também, mas essa tal de cocaína ele não cheira não.<br />
Não aceito falar mal do meu filho desse jeito. Quero que<br />
vocês façam uma retratação.<br />
– Tá bom! O senhor dá licença que temos que entrar<br />
no ar.<br />
Afastou o pai do rapaz e fechou a porta para continuar<br />
a apresentar as notícias.<br />
E depois de toda discussão, ficou apenas o dito pelo<br />
não dito.
72<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Paranaíba eu te amo!<br />
O vento estava leve e o sol já havia fugido. Estavam<br />
ali às margens do Rio Paranaíba, na Avenida Beira Rio da<br />
cidade de Itumbiara, João, Mário e Alcides. Sentados em<br />
um tronco de árvore, os três admiravam o reflexo da lua nas<br />
águas que serpenteavam.<br />
A falta de assunto justificava-se pelo estado de<br />
contemplação em que o trio se encontrava. Ficaram assim<br />
por muito tempo, até que o silêncio incomodou e foi<br />
quebrado pelo Mário.<br />
– João, por que o seu apelido é Paranaíba?<br />
– É porque a minha infância toda foi passada aqui. E<br />
eu adoro o Rio Paranaíba, ele é a minha vida – explicou João<br />
aos amigos.<br />
Novamente, o silêncio tomou conta do ambiente.<br />
A lua já reinava no horizonte, emitindo uma luz amarela<br />
intensa. Era lua cheia. De repente, spresch...... O silêncio foi<br />
novamente quebrado, agora pelo ruído de lata de cerveja<br />
sendo aberta.<br />
Beberam em pequenos goles, saboreando o líquido e<br />
o ambiente.
CRÔNICAS E CONTOS 73<br />
– Eu amo tanto este rio que foge de mim os limites. Eu<br />
quero morrer neste rio.<br />
– Que bobagem Paranaíba, falar em morte nessa hora,<br />
cheio de saúde e levando um vidão que pediu a Deus –<br />
contemporizou Alcides.<br />
– Tenho em vocês os meus melhores amigos, porque<br />
amigo é mais importante que irmão. Irmão a gente não<br />
escolhe, mas amigo sim. E vocês são daqui do fundo do<br />
meu coração – explicou João Paranaíba.<br />
– Você hoje está estranho, falando como se estivesse se<br />
despedindo. Papo mais careta – deu a bronca o Mário.<br />
Vale lembrar que Paranaíba era uma figura, ele<br />
mesmo se identificava como um filósofo popular. Não tinha<br />
nada de filosofia, havia sim grandes gozações com frase de<br />
para-choque de caminhão. Nunca trabalhou, casado com a<br />
enfermeira Amélia, que assumia todas as despesas da casa,<br />
era na verdade um bon vivant.<br />
Os amigos gostavam de convidá-lo para as festas,<br />
porque ele era só alegria, contava piadas e tinha sempre<br />
novas frases engraçadas que tornava o ambiente alegre<br />
e descontraído, tais como: “Um homem sem chifre é um<br />
animal indefeso.” ou “O cachorro só é amigo do homem,<br />
porque não conhece dinheiro.” Eis por que se considerava<br />
filósofo popular. No entanto, naquele momento, Paranaíba<br />
estava introspectivo, pensativo e sentimental. Falando<br />
muito de amizade e do seu amor pelo rio.<br />
Estava tarde da noite, já haviam bebido muitas<br />
cervejas, quando Paranaíba começou a ter um ataque,<br />
torceu o pescoço, virou os olhos e foi deitando-se lentamente<br />
para trás, derramando a cerveja no peito. Os amigos<br />
assustaram-se.<br />
– Que é isso Paranaíba, o que você está sentindo?<br />
Ele não respondeu. Ficou ali quieto imóvel. Os dois<br />
entreolharam-se e assustados tentaram levantá-lo. Inútil,<br />
estava mole, inerte, calado, quem sabe morto. Apalparam o<br />
seu coração e pulso e, finalmente, chegaram à conclusão de<br />
que ele estava morto. Foi um infarto fulminante!<br />
Ficaram ali os dois, em pé, olhando o corpo estendido<br />
sem saber o que fazer. A cumplicidade foi tomando conta
74<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
do ambiente. Se ele adorava tanto o Rio Paranaíba, por que<br />
morreu em terra? Tocados pelo sentimento mútuo de fazer<br />
realizar um sonho, os dois pegaram o Paranaíba, um pelos<br />
pés e o outro pelos braços, balançando-o e, em seguida,<br />
jogaram o corpo no rio. Ele foi descendo pela correnteza,<br />
afundando aos poucos e, por último, a mão que parecia estar<br />
dando adeus.<br />
Mário e Alcides experimentaram a sensação de<br />
que fizeram um ato de pura justiça e de amizade. Foram<br />
embora sentindo que o amigo estava onde sempre sonhou.<br />
Avisaram os parentes de que o João Paranaíba estava<br />
bebendo com eles, foi dar um mergulho e sumiu nas águas.<br />
Cedo os bombeiros compareceram para realizar a<br />
busca do corpo. Uma grande aglomeração foi se formando<br />
na Avenida Beira Rio, um querendo testemunhar o achado,<br />
outros para ver os serviços dos bombeiros e outros aproveitando<br />
o grande movimento para vender picolé, pipoca e<br />
churrasquinho.<br />
O burburinho era intenso, porém as águas do<br />
Paranaíba calmamente continuavam a entoar uma canção<br />
serena para embalar o sono profundo e eterno do amigo de<br />
Mário e Alcides.
CRÔNICAS E CONTOS 75<br />
O jogo econômico<br />
João Batista podia se considerar um cara de sorte.<br />
Nasceu em uma fazenda no município de Araguari, filho<br />
único, o seu pai se desdobrou nos trabalhos da fazenda<br />
para mantê-lo estudando em Uberlândia. Formou-se em<br />
Economia e conseguiu o seu primeiro emprego em uma<br />
corretora de valores em São Paulo.<br />
Na década de 1990, a Bolsa de Valores vivia o maior<br />
boom da história da economia. A inflação estava acima de<br />
40% ao mês e os rendimentos cobriam a inflação e traziam<br />
grandes lucros. Várias pessoas estavam vendendo bens e<br />
imóveis para aplicar na bolsa, visando a lucros fáceis.<br />
Em uma sexta-feira, João Batista decidiu visitar os pais<br />
e trazê-los para a nova realidade econômica. No sábado,<br />
quando o dia estava amanhecendo chegou à fazenda. Sua<br />
mãe estava fazendo o café no fogão a lenha e o seu pai
76<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
sentado em um tamborete enrolando um cigarro de palha.<br />
João Batista sentou-se em outro tamborete e começou a<br />
falar, enquanto o pai ouvia do filho as novidades.<br />
– Papai, o senhor precisa conhecer a Bolsa de Valores.<br />
A gente investe hoje e em dois meses o investimento dobra.<br />
Meu patrão tem apartamento na paia, carro importado e<br />
viaja para Europa duas vezes por ano. É o melhor negócio<br />
do mundo.<br />
Seu pai foi absorvendo as informações e escutando<br />
com atenção as novidades da cidade grande. João Batista<br />
não parava de falar e elogiar as grandes vantagens de<br />
investir na Bolsa de Valores. O velho estava só ouvindo,<br />
quando arregalou os olhos ao escutar do filho:<br />
– Então, papai, eu vim aqui para aconselhar o Senhor<br />
a vender a fazenda para investir na Bolsa de Valores.<br />
O pai pensou, pensou e depois de passar um bom<br />
tempo perguntou:<br />
– Meu filho, me explica uma coisa, se a gente investe<br />
nessa tal de Bolsa e ganha tanto dinheiro, quem está<br />
perdendo?<br />
João Batista mais que depressa tentou explicar:<br />
– Não, pai, ninguém leva prejuízo. Todo mundo<br />
ganha.<br />
– Que besteira é essa, meu filho, gastei tanto dinheiro<br />
e você estudou tanto e não sabe do básico. Quando alguém<br />
ganha muito dinheiro, tem alguém levando um grande<br />
prejuízo.<br />
João Batista calou-se, faltaram-lhe palavras para<br />
refutar os argumentos do pai, pois sabia que, na verdade,<br />
tudo aquilo era um grande jogo.
CRÔNICAS E CONTOS 77<br />
O mundo é uma escola<br />
Geralmente, o turista se preocupa,<br />
principalmente, em posar para fotos em<br />
frente de algum munumento do lugar<br />
visitado para provar a sua presença, mas<br />
existem também aqueles que buscam conhecer a cultura do<br />
lugar para adquirir conhecimentos.<br />
Em junho de 1970, estava servindo a Marinha de<br />
Guerra do Brasil embarcado no Navio Escola Custódio<br />
de Melo. A viagem era de instrução dos guardas-marinha<br />
que depois eram promovidos a Segundo Tenente.<br />
Eu fazia parte da tripulação do navio e todas as vezes<br />
que atracava em um novo porto saia à procura de<br />
novidades.<br />
Quando o navio atraca no porto, existem marinheiros<br />
que ficam ali economizando os dólares recebidos da representatividade<br />
do Brasil no exterior, outros que caem na<br />
farra em todos os portos, nas casas noturnas e há aqueles<br />
que se interessam em adquirir novos conhecimentos. Estes<br />
sempre procuram se informar do local a ser visitado para<br />
que em pouco tempo consigam visitar todos os atrativos e<br />
guardar dessa visita conhecimentos.
78<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Naquela viagem, atracamos no porto de Oslo, capital da<br />
Noruega. Tínhamos passado pela América Central, América<br />
do Norte e estávamos na Europa conhecendo a Península<br />
Escandinava. Da Noruega, os brasileiros lembram-se apenas<br />
do bacalhau e dos vikings, que eram exímios navegadores,<br />
guerreiros experientes e muito violentos. No século IX,<br />
dominaram toda a Península Escandinava formada pela<br />
Finlândia, Suécia, Dinamarca, a Groenlândia e Islândia.<br />
O exército Viking era formado por guerreiros profissionais,<br />
treinavam para combates ferozes e, para a época,<br />
estavam muito bem equipados com espadas, escudos,<br />
machados e arcos. Além disso, eram exímios navegadores<br />
e com seus barcos sólidos se aventuravam para o alto-mar<br />
e, quando chegavam a terra, saqueavam imediatamente as<br />
aldeias para obter cavalos, gado e cereais.<br />
Uma curiosidade é que a região da Noruega é o único<br />
local no mundo onde o sol, em uma época do ano, desponta<br />
à meia-noite, devido à sua proximidade com o Polo Norte<br />
e, justamente, nessa época, estávamos conhecendo o país.<br />
Saímos do navio à procura de diversão em algumas<br />
casas noturnas. Estranhei o costume de beber cerveja quente<br />
e fiquei pouco tempo. Eram mais ou menos duas horas da<br />
madrugada, o sol luzia e eu seguia pelas ruas desertas, sem<br />
carros rodando e sem gente transitando, quando avistei, de<br />
longe, uma senhora idosa. Ela levava uma bengala e estava<br />
parada na calçada, obedecendo ao sinal de trânsito para<br />
pedestre. Fui andando, aproximando-me e observando a<br />
anciã respeitando o trânsito que não existia.<br />
Quando cheguei ao seu lado, o sinal ainda estava<br />
fechado, avancei porque não existia ninguém se movimentando,<br />
foi quando percebi o seu olhar de reprovação. Fiquei<br />
do outro lado da rua esperando incrédulo o sinal abrir. Só<br />
depois que abriu, ela atravessou a rua. Analisei aquela cena<br />
e me imaginei um selvagem perto daquela mulher que<br />
pertencia a uma civilização milenar.<br />
A consciência do dever falou mais alto para aquela<br />
senhora. O exemplo do exercício da cidadania, levou-me<br />
à reflexão: será que no futuro teremos o mesmo nível de<br />
civilidade que ela demostrou? Só o tempo dirá.
CRÔNICAS E CONTOS 79<br />
Eu conheço Jesus<br />
Existem pessoas que têm facilidade de fazer<br />
amizade em consequência do seu modo extrovertido. O<br />
Dalmo era assim, além de extrovertido, tinha um senso<br />
crítico muito apurado. Todos os acontecimentos eram<br />
propícios para ele fazer uma piada com sarcasmo ou<br />
bom humor mesmo.
80<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Nos anos 1980, ele tinha uma Picape e estava fazendo<br />
uma corrida de Cachoeira Dourada de Goiás para a cidade<br />
de Itumbiara, com pressa, pois tinha que pegar o banco<br />
ainda aberto. Eram mais ou menos 14 horas e o banco<br />
fechava as suas portas às 15.<br />
Quando chegou a um local conhecido por Serrinha, a<br />
uns seis quilômetros para chegar, havia uma blitz da Polícia<br />
Rodoviária Federal inspecionando os carros e exigindo que<br />
os veículos estivessem com um selo, um adesivo pregado<br />
no para-brisa, com o ano e o órgão expedidor.<br />
Quando o policial mandou parar a Picape, ele ficou<br />
irritado com a demora. O policial, calmamente, pediu os<br />
documentos do carro e a habilitação e perguntou:<br />
– O carro é seu?<br />
– Não, é de Jesus Cristo – brincou impaciente o Dalmo<br />
com essa piada infame.<br />
– Você está sem o selo. Faça o favor, vá até aquela<br />
mesa que a moça está vendendo.<br />
O policial ficou com os documentos na mão esperando<br />
a sua orientação ser atendida. Dalmo foi até a mesa, olhou<br />
nos bolsos e viu que não tinha dinheiro, só tinha o talão de<br />
cheques. A moça falou que só poderia aceitar o cheque se<br />
tivesse a autorização do policial.<br />
Ele calçou a cara de pau e foi até o policial pedir o<br />
favor.<br />
– Senhor policial, estou sem dinheiro no momento. O<br />
Senhor poderia autorizar a moça a pegar um cheque meu<br />
para pagar o selo?<br />
– Desculpe, mas eu não conheço o Senhor. Se fosse o<br />
cheque de Jesus Cristo eu poderia aceitar, pois Jesus Cristo<br />
eu conheço.<br />
O policial devolveu o troco da piada e o papudo<br />
ficou esperando passar um conhecido para pedir dinheiro<br />
emprestado.<br />
Bem que podia dormir sem essa.
CRÔNICAS E CONTOS 81<br />
Deu bandeira<br />
O Orlando era um cara incrível e tinha uma sorte<br />
invejável. Os empregos vinham à sua procura. Gabava-se<br />
de nunca ter procurado uma ocupação. Um dia, ele veio<br />
dizendo que estava cansado e resolveu sair do serviço,<br />
fiquei indignado.<br />
– Tá doido, Orlando! Vai fazer o quê?<br />
– Vou descansar, depois a gente consegue outro.<br />
Não completou nem um mês, um empresário ligou<br />
para ele, convidando-o para tomar conta de um armazémgeral.<br />
O cara não tinha nenhuma experiência no ramo,<br />
todos nós, amigos dele, ficamos admirados pelo chamado.<br />
Não tinha lógica!<br />
Assim, Orlando foi trabalhar em um novo armazém<br />
em Goiatuba, uma cidade do sul goiano. O armazém<br />
contava com um secador de origem alemã que fazia parte
82<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
das primeiras unidades fabricadas no Brasil. A máquina<br />
enguiçou nos primeiros dias e os técnicos que estavam<br />
realizando a montagem não conseguiam consertá-la. O jeito<br />
foi chamar um especialista da Alemanha para realizar o<br />
conserto.<br />
O técnico chegou à cidade de São Paulo e foi<br />
informado que deveria seguir com um intérprete para o<br />
interior de Goiás. De São Paulo, seguiu em um voo para<br />
Goiânia, onde estava sendo aguardado pelo Orlando, que<br />
fora escalado para buscá-lo juntamente com o intérprete.<br />
O alemão estava eufórico com a sua viagem. Apareceu<br />
com uma bermuda cáqui, camisa estampada, tênis de<br />
alpinista com meião e uma máquina fotográfica presa por<br />
uma correia ao pescoço. Foi logo dizendo.<br />
– Ich möchte sehen, Tier.<br />
– O que o alemão falou?<br />
– Ele disse que quer ver bicho.<br />
Orlando ficou indignado com o conceito que o alemão<br />
tinha de Goiás e retrucou:<br />
– Fala para ele que aqui é civilizado, bicho é só na<br />
Amazônia.<br />
O alemão ouviu, mas não se convenceu. Ficou o<br />
tempo todo da viagem, de Goiânia a Goiatuba, olhando o<br />
cerrado à procura de bicho para fotografar.<br />
Já estavam chegando, do trevo da BR 153 até Goiatuba<br />
são nove quilômetros e foi justamente nesse trecho que<br />
apareceu um tamanduá bandeira atravessando a pista. O<br />
alemão ficou doidinho.<br />
– Denn siehe, für das Tier da!<br />
O alemão desceu do carro e saiu correndo atrás do<br />
tamanduá para tirar fotografia.<br />
Bem que o Orlando tentou convencer o alemão de<br />
que o cerrado já tinha sido desbravado, mas o tamanduá<br />
apareceu. Assim, o alemão levou para a sua terra a aventura<br />
de encontrar no cerrado um bicho de nariz pontudo e um<br />
rabo grande, mais parecendo uma bandeira.
CRÔNICAS E CONTOS 83<br />
Entre o céu e a terra<br />
Rajadas de vento abalam as estruturas do avião. Céu<br />
negro, nuvens escuras como fumaças. Tempestade.<br />
Liga o rádio na esperança de se localizar. O vento<br />
forte tira a nave de sua rota. Gira o manche para esquerda,<br />
o vento vem desse lado. Tenta compensar a deriva do rumo<br />
da proa. Com os dedos trêmulos, dá mais uma polegada no<br />
manete, o motor ronca, a rotação aumenta com a velocidade.<br />
As descargas elétricas da tempestade interferem no rádio.<br />
Está perdido. O altímetro indica nove mil pés. Não<br />
pode furar a nuvem que está abaixo, enquanto não souber<br />
onde está, pode chocar-se com algum obstáculo. Uma<br />
sensação estranha, como folha solta na ventania, como<br />
feto na escuridão do útero à procura da vida. Reza. Nesse<br />
momento, até os ateus se pegam com Deus.<br />
– Todo poderoso que construíste tudo isto, feito de<br />
amor e bondade, como podes fazer uma sacanagem dessa<br />
comigo? Sempre fui legal, se tenho erros, são pequenos,<br />
nem dá pra notar. Ave Maria, que estais no céu, santificai o
84<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Senhor é convosco, vem a nós bendita sois vós... que salada,<br />
meu Deus! Eu sei rezar, eu juro, é que estou nervoso, assim<br />
não dá para concentrar. Será que depois da morte eu vou<br />
ver este mundo? Quantas coisas eu fiz neste mundo, boas,<br />
ruins, mas uma coisa é certa, não prejudiquei ninguém.<br />
A mente desfolha um livro de aventura. O inconsciente<br />
calcula as possibilidades de salvação. Se pelo menos a<br />
mente ajudasse, haveria melhor chance. O negrume do céu<br />
surge em espaço sem fim, dando a sensação de um cometa<br />
perdido no infinito.<br />
Um corpo, uma mente, um inconsciente, um espírito<br />
dominando uma máquina em luta contra massas elétricas<br />
incontroláveis. Raios e trovões já foram, por muitos,<br />
adorados como deuses.<br />
Mais uma vez pensa em voz alta:<br />
– Por que medo? Já passei muitos perigos, me lembro<br />
quando o Seu Júlio me flagrou com a Maurinha, com um<br />
tremendo 38 no meu peito. Tive coragem e consciência de<br />
dizer que a amava. Eu amo muito a minha vida também.<br />
Nos treinamentos, ele foi condicionado para suportar<br />
qualquer situação perigosa. Acidentes simulados, pane<br />
simulada e outros exercícios que colocariam a sua vida em<br />
perigo, mas nunca esteve em uma tempestade de verdade.<br />
Aquilo tudo está revirando por dentro, a sua mente, o avião,<br />
a sua alma, sua memória e até a sua moral, por isso repete<br />
com imensa convicção:<br />
– Eu volto, não sei como, mas volto. Voltar é viver.<br />
Voltar de uma batalha sem glórias, de uma bebedeira de<br />
cachaça, de um amor final, nada é desgraça, porque o<br />
importante é voltar.<br />
Está entre o céu e a terra, numa horizontal de ferro e<br />
fogo. Pode ser ali o fim de tudo, quando os fracos e os fortes<br />
perdem o rumo.<br />
Dedos firmes, olhos acesos, mente atenta, a sua vida<br />
está em suas próprias mãos. Se “errar é humano”, naquele<br />
momento seria desumano. Ali se errar, morre. Nessa hora, o<br />
avião se torna humano, as asas são prolongamentos de seus<br />
braços, o motor o coração e ele é a própria mente que envia<br />
os comandos para todas as partes do avião. As asas recebem
CRÔNICAS E CONTOS 85<br />
os baques do vento e fazem girar forte o manche que ele<br />
sente nos braços. O motor ronca e seu coração acelera. A<br />
calda do avião joga com movimentos bruscos fazendo as<br />
suas nádegas se contorcerem no banco.<br />
Nesse momento, ele está cego por causa da escuridão,<br />
mas está vendo por dentro. A visão de dentro é uma psicanálise<br />
completa dos sentimentos recalcados. Naquele<br />
momento, recorda os traumas e tenta organizar, em seu<br />
arquivo memorial, os choques emocionais da sua existência.<br />
Esse balanço visa, também, à prestação de conta com uma<br />
força superior.<br />
O amor à vida cresce na mente, tornando-o um animal<br />
acuado, enfrentando a morte com todas as garras, quando<br />
um pequeno clarão à sua frente vai surgindo, ali está a vida,<br />
é o sol derretendo as nuvens, é a vida.<br />
Com grande ansiedade dirige o avião àquela direção.<br />
Um calafrio percorre sua espinha e o coração bate mais<br />
forte. Aquele sol é o que mais deseja no mundo. Cruza a<br />
fenda da nuvem e o para-brisa do avião recebe os primeiros<br />
raios de sol. Aliviado ele exclama:<br />
– Obrigado meu Deus! – E começa a chorar.
86<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Carona pra sogra<br />
O brasileiro é por natureza um hospitaleiro, porque<br />
a primeira impressão que fica é a melhor forma de colher<br />
a imagem do visitante, principalmente, no interior onde<br />
impera a inocência dos moradores.<br />
Na cidade de Itumbiara, na década de 1970, um<br />
bar denominado Caverna tinha como cliente assíduo um<br />
baixinho com apelido de Jacaré. A gente não sabia o seu<br />
nome verdadeiro e nem a sua origem, mas não importava,<br />
ele tinha um papo agradável e um bom humor constante.<br />
Nós o recebemos com todas as gentilezas e abrimos<br />
as portas para uma nova amizade, mesmo sem saber quase<br />
nada da sua vida. Ele gostava de tomar rum misturado com<br />
água tônica e duas pedras de gelo. Muito comunicativo, era<br />
um bon vivant.
CRÔNICAS E CONTOS 87<br />
O Jacaré tinha um automóvel modelo SP2, sucesso<br />
dos garanhões. Um carro para duas pessoas e um bagageiro<br />
pequeno suficiente somente para poucas malas. Ele<br />
arrumou uma namorada e foi à casa dela para sair em um<br />
passeio. Ao chegar ao endereço, estava a pretendida juntamente<br />
com a mãe, que foi direto ao assunto:<br />
– Para sair com minha filha, tem que ser em minha<br />
companhia.<br />
Sem saída, o Jacaré aceitou as condições. Elegantemente,<br />
dirigiu-se até a porta do passageiro, abrindo-a para a<br />
prenda. Foi até a traseira do carro, abriu o porta-malas para<br />
a futura sogra, a velhinha entrou com dificuldade, ficando<br />
na posição fetal para conseguir fechar a tampa.<br />
Só de sacanagem o Jacaré comunicou:<br />
– Tenho que passar na casa de um amigo para deixar<br />
uma grana.<br />
Era tudo mentira, ele queria mesmo era azucrinar a<br />
velhinha que estava longe de ser a pretensa sogra. Entrou<br />
em uma rua sem asfalto, toda esburacada, o carro ia<br />
batendo nos buracos e ele só escutando os gemidos. De<br />
repente, ouviu um pedido parecido com um lamento.<br />
– Cê podia dar uma passadinha lá em casa.<br />
Com um sorriso disfarçado, ele foi retornando ao local<br />
de origem. Chegou, desceu e foi logo abrindo o bagageiro. A<br />
velhinha foi esticando as pernas e saiu daquele inferno com<br />
a ajuda da filha. Toda encurvada, caminhou em direção a<br />
casa, mas ainda recomendou:<br />
– Olha, ocê pode ir sozinho com a minha fia. Fia, juízo<br />
hem?! Vai com Deus.<br />
Dirigindo-se para a casa, ia puxando a perna direita.<br />
Nos olhos da filha, ficou visível a pena pelo sofrimento<br />
da mãe, mas no canto da boca do Jacaré, ficou um sorriso<br />
disfarçado de vitória.
88<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Um homem chamado Denise<br />
Como pode um casal ir ao cartório de registro civil e<br />
colocar o nome em um menino de Denise? Pode acreditar,<br />
alguém fez isso. O Denise, é claro, não gostava do nome,<br />
por isso preferia ser chamado simplesmente de “Dê”. Não<br />
foi à justiça para mudar o nome em consideração aos pais,<br />
mas nas suas horas de bebedeira, declarava a todos os<br />
presentes que, quando os pais falecessem, iria providenciar<br />
a mudança. Um dia, o Dê exagerou, parecia até que estava<br />
torcendo para que os pais morressem. Os amigos acharam<br />
um absurdo.<br />
Nos anos 1970, na cidade de Itumbiara, havia um bar<br />
chamado Magros Chope, que era a grande novidade da<br />
cidade, por isso permanecia lotado, principalmente, nos<br />
finais de semana.
CRÔNICAS E CONTOS 89<br />
O Dê conseguiu uma mesa no fundo do salão,<br />
sentou-se e começou a beber a sua cerveja. Na época, a<br />
moda era calça muito justa, cós alto, boca de sino e sapato<br />
plataforma. A cintura era tão apertada que quase não era<br />
possível usar os bolsos. A carteira era colocada abaixo da<br />
camisa apertada pelo cós. Os mais desatentos achavam que<br />
a pessoa estava armada em consequência do volume na<br />
cintura.<br />
Mais tarde, com o bar ainda lotado, o Dê resolveu<br />
ir embora. Pediu a conta e o garçom trouxe uma folha de<br />
papel escrita, que o Dê pegou e se assustou com o valor.<br />
– Isto é um absurdo! É um roubo!<br />
Foi falando e, ao mesmo tempo, levantando para pegar<br />
a carteira. O garçom assustado achou que ele estava armado<br />
e que estava se levantando para sacar a arma. Foi quando se<br />
atracou com o Dê, desferindo vários golpes no rosto dele,<br />
ajudado pelos presentes das mesas ao lado. Assustado, o Dê<br />
se desvencilhou dos agressores e indignado pelo imbróglio,<br />
ameaçou:<br />
– Agora, vou lá em casa pegar a minha carabina e vou<br />
matar todo mundo.<br />
Ninguém acreditou, ficaram rindo da situação<br />
ridícula e engraçada, somente o Dê estava revoltado e<br />
resolvido. Chegou a casa e pegou a sua Winchester calibre<br />
44, conhecida na época pelo apelido de “Papo Amarelo”. Na<br />
porta do bar e do outro lado da rua, começou a manobrar a<br />
carabina e gritar que ia mesmo matar todo mundo.<br />
É importante mencionar que essa carabina tem uma<br />
parte móvel por baixo que, quando é acionada, joga para<br />
fora o cartucho da bala usada e recoloca outro. Quando não<br />
é efetuado o disparo, a manobra faz jogar a bala intacta para<br />
fora.<br />
Muito nervoso, o Dê realizava a manobra, como não<br />
estava atirando, a bala era jogada para fora. Os fregueses<br />
saíram do bar e se espremeram com medo atrás de uma<br />
Kombi. Foi quando alguém alertou:<br />
– Aquela carabina está sem bala, vamos pegá-lo.<br />
Bem que o Dê tentou correr, mas a turba o alcançou,<br />
dando-lhe outra surra e, dessa vez, bateram com vontade.
90<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Salvo pelo Jacaré<br />
O Arquimedes, homônimo do famoso filósofo, só<br />
tinha o nome igual. De filosofia, não entendia nada. Era<br />
contador, muito dedicado à família, esposa e duas filhas,<br />
uma de 10 e outra de 14 anos. Nas férias, planejou uma<br />
viagem para a capital baiana, Salvador.<br />
Para fazer uma surpresa, comprou ingressos para<br />
o show do grupo É o Tchan. Conseguiu um lugar privilegiado,<br />
bem em frente à banda, junto ao palco. O grupo<br />
de Axé estava no auge do sucesso e as meninas adoravam<br />
os dançarinos, sabiam todas as coreografias, os passos e<br />
molejos do Jacaré e das duas bailarinas, Carla e Débora.<br />
A surpresa caiu como uma bomba, uma explosão de<br />
alegria para as meninas. O show foi sucesso total. Arquimedes<br />
levou uma filmadora para registrar tudo e guardar<br />
para mostrar aos amigos. Aquelas férias foram consideradas<br />
extraordinárias por toda a família. Voltaram comentando<br />
os melhores momentos e fazendo planos para as<br />
próximas férias.
CRÔNICAS E CONTOS 91<br />
Em casa, no primeiro final de semana, num domingo<br />
preguiçoso, Arquimedes recebeu a visita dos vizinhos e<br />
parentes para o almoço. Foi a oportunidade para ver as<br />
filmagens das férias e o grandioso show do É o Tchan. As<br />
meninas mais eufóricas pediam ao pai para reunir todos na<br />
sala e preparar os equipamentos para a apresentação.<br />
Arquimedes ligou a câmara diretamente na televisão<br />
e foi organizando os comandos para exibição. Voltou a fita e<br />
foram passando rápidas as cenas mais chatas do embarque,<br />
fachada do hotel, a primeira praia, os camelôs vendendo<br />
bugiganga e lembranças. As meninas se desesperaram.<br />
– Pai, passa logo e mostra o show.<br />
– Espera, vou colocar bem no começo.<br />
Quando apareceu na tela da TV a fachada do clube<br />
e foi colocado no play, entrada, chamada da banda e a<br />
primeira música, o Compadre Washington e Beto Jamaica<br />
cantando e os dançarinos Carla Perez, Débora Brasil e<br />
Jacaré na frente fazendo coreografias eram os destaques na<br />
filmagem.<br />
Começou com os closes dos rostos das bailarinas e, na<br />
sequência, detalhes das coxas, dos seios e, principalmente,<br />
dos bumbuns. À medida que as imagens apareciam na<br />
tela da televisão, o ambiente totalmente familiar ia ficando<br />
constrangedor. Os maridos foram, aos poucos, com o rabo<br />
do olho observando o comportamento das esposas que,<br />
devido ao ciúme, ficaram sérias, piorando ainda mais a<br />
situação.<br />
As meninas impacientes ficavam insistindo:<br />
– Pai, cadê o Jacaré?<br />
– Espera que vai aparecer.<br />
As cenas foram se repetindo, rebolado, coxas,<br />
bumbum das dançarinas e nada do Jacaré. Em um relance,<br />
aparece o Jacaré por uns quatros segundos.<br />
– O Jacaré, o Jacaré, olha aí o Jacaré! – Falava<br />
entusiasmado o pai diante da cena salvadora.<br />
Passaram-se quatros segundos, voltaram novamente<br />
as pernas, o rebolado e o bumbum das bailarinas.<br />
– Ufa! – Arquimedes respirou aliviado.<br />
Afinal, fora salvo pelo Jacaré.
92<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O fim do mundo<br />
A premonição é admirada há muitas gerações por<br />
muita gente em todo o mundo. Para não fugir à regra, eu<br />
também fico fascinado ao me deparar com uma pessoa<br />
que pode prever o futuro. Foi assim quando conheci o<br />
Zoroastro, um sujeito troncudo, baixo e moreno, muito<br />
falante e que tinha o dom de convencer a gente com a sua<br />
conversa muito grave e possante.
CRÔNICAS E CONTOS 93<br />
Quando criança, eu fiquei assustado ao ouvir o<br />
Zoroastro falando de uns tópicos da Bíblia que estavam<br />
totalmente destoantes da realidade. Como eu era católico<br />
fervoroso e frequentava as missas todos os domingos, achei<br />
que era um pecado muito grande acreditar nas teses dele.<br />
Assim, eu saía de perto quando ele começava a falar sobre o<br />
Livro Sagrado.<br />
Um dia, ele veio com uma ideia que achamos<br />
muito louca, afirmou que os polos da Terra estavam<br />
degelando. Que os mares na linha do Equador estavam<br />
com um volume de água maior. Assim, a Terra ficaria<br />
mais achatada, os polos derreteriam e a parte mais larga<br />
aumentaria e, segundo ele, o planeta iria acelerar a sua<br />
velocidade de rotação, diminuindo, assim, as horas do<br />
dia. Ele apareceu até com uma calculadora para fazer<br />
as contas, afirmando que, em poucos meses, os dias<br />
ficariam com mais ou menos 20 horas. E ia explicando as<br />
consequências dessa alteração. Eu ficava fascinado com<br />
a sua inteligência e, ao mesmo tempo, assustado com as<br />
suas pesquisas.<br />
Certa vez, estávamos todos no bar, tomando cerveja<br />
em uma mesa, quando o Zoroastro veio e afirmou, categoricamente,<br />
que o mundo iria acabar no dia 13 de agosto de<br />
2004, às 14 horas, numa sexta-feira. Detalhava a tragédia do<br />
fim do mundo da seguinte forma: primeiro viriam as trevas,<br />
depois um estrondo e, enquanto isso, a terra iria se abrir e o<br />
mundo sumir no buraco.<br />
A turma, já sob efeito da bebida, afirmava que ainda<br />
faltavam vinte anos para o fim do mundo, portanto tinha<br />
ainda muito tempo para beber. Isso o deixava muito<br />
nervoso, as pessoas não davam credibilidade às suas<br />
previsões. Confesso que fiquei intrigado, bem diferente dos<br />
meus amigos que achavam que essa previsão era mais uma<br />
das maluquices dele.<br />
Durante vinte anos, fiquei na expectativa, esperando<br />
para conferir as previsões de Zoroastro. Para não esquecer<br />
a data, procurava marcar em todas as agendas o dia 13 de<br />
agosto. Assim, poderia em 2004 conferir se as premonições<br />
dele iam ou não se confirmar.
94<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Os anos foram passando e Zoroastro continuou tendo<br />
premonições e criando novas teorias catastróficas. Quando<br />
passava pela rua, eu olhava para ele como o grande mensageiro<br />
do Apocalipse.<br />
No dia 13 de agosto de 2004, abri a agenda para<br />
conferir os compromissos e lá estava registrada a premonição<br />
do Zoroastro, marcada para as 14 horas. Com muita<br />
curiosidade, liguei para uns amigos a fim de saber as<br />
notícias do Zoroastro. Do outro lado da linha, Maristela<br />
perguntou aflita:<br />
– Você não sabia que o Zoroastro faleceu ontem à<br />
noite?<br />
Disse que não sabia e perguntei a hora do sepultamento.<br />
Maristela respondeu solenemente:<br />
– Às 14 horas.<br />
Fiquei perplexo e, rapidamente, preparei-me para ir<br />
ao enterro do grande Zoroastro, porque, apesar das suas<br />
maluquices, era querido por todos nós. Ao lado da cova,<br />
fiquei olhando o chão aberto e o caixão baixando lentamente<br />
aos aplausos de todos os presentes. O coveiro foi<br />
jogando terra sobre o caixão com uma pá e os amigos foram<br />
se dispersando aos poucos. Fiquei ali tentando associar a<br />
premonição de Zoroastro àquela situação.<br />
É... ele soube mesmo prever o fim do mundo, mas só<br />
para ele.
CRÔNICAS E CONTOS 95<br />
Agosto<br />
Segundo a crença popular, o mês de agosto é o mês<br />
do desgosto, o oitavo mês do ano traz grande azar, é o mês<br />
dos desastres e das grandes tragédias. O seu Aníbal nunca<br />
acreditou nessas superstições. Funcionário da Odebrecht,<br />
seguiu viagem para o Iraque na missão de construir ali,<br />
sobre as areias do deserto, uma grande estrada asfaltada.<br />
O seu avião decolou no mês de agosto e nada aconteceu. A<br />
única chateação foi a proibição de fumar durante mais de<br />
dez horas de voo. Então, era tudo uma superstição boba.
96<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Ao completar um ano no Oriente Médio, veio ao<br />
Brasil visitar a sua família. Logo no primeiro dia de agosto,<br />
começou a sentir uma grande dor no peito. Foi a um<br />
hospital e realizou vários exames, chegando ao trágico<br />
diagnóstico: estava com câncer no pulmão. O impacto da<br />
notícia foi muito grande, o mundo parecia que ia acabar<br />
e os pés perderam o chão. O médico foi sincero e realista<br />
ao extremo, afirmou que era um caso terminal. A família<br />
inteira sofreu junto com o doente.<br />
A primeira coisa a fazer nessa situação é recorrer à fé.<br />
A esperança de um milagre vai se tornando mais presente<br />
em todos e passa a ser a única solução. As rezas e as<br />
promessas têm sempre o propósito de venerar o divino em<br />
troca do milagre. No entanto, os remédios iam, aos poucos,<br />
perdendo o efeito e o corpo debilitando-se com dor e horror.<br />
Uma esperança, um hospital em Barretos especializado<br />
nesses casos. No dia dez de agosto correram todos<br />
com o seu Aníbal para o hospital imaginando que a volta<br />
seria gloriosa e a doença ficaria somente como uma história<br />
triste do passado.<br />
No dia quinze de agosto, os médicos reuniram a<br />
família e deram o veredicto: “Não há solução. Deixe-o<br />
morrer da forma e onde ele quiser”. Era muito difícil a<br />
situação, os filhos, a esposa e os irmãos ali de pé ao lado do<br />
leito, fazendo-lhe um relato da situação, acompanhado de<br />
uma pergunta macabra:<br />
– Os médicos tiraram todas as nossas esperanças.<br />
Estamos aqui para saber se você quer ficar aqui no hospital<br />
ou voltar para casa?<br />
Nenhum deles teve a coragem de pronunciar a<br />
palavra morte. Ficou assim obscura a finalidade do questionamento<br />
e a decisão do Aníbal, mas cortava o coração,<br />
dilacerava a alma, parecia que a morte estava ali à espreita,<br />
discreta, ouvindo tudo.<br />
Deram um telefonema para o resto da família<br />
avisando que o seu Aníbal tinha decidido ir para casa<br />
e pediram para que providenciassem o funeral. Assim<br />
que receberam a notícia, eles correram até a funerária,<br />
escolheram uma urna e já encomendaram as coroas, velas,
CRÔNICAS E CONTOS 97<br />
cadeiras e os documentos necessários para obter um túmulo<br />
no cemitério.<br />
O trabalho da funerária foi mais rápido que a viagem.<br />
Chegaram e colocaram o caixão em pé, encostado na parece<br />
da sala e foram buscar o resto do material. Foi quando<br />
chegou o Seu Aníbal em uma ambulância. Ombrearam a<br />
maca e foram levando-o para a casa a fim de acomodá-lo em<br />
um quarto, quando se depararam com o caixão. O doente<br />
virou-se e os seus olhos encontraram a última morada.<br />
A cena era macabra, todos se entreolharam com um<br />
semblante de susto e piedade que, aos poucos, foi transformando-se<br />
em um olhar de desculpa pelo inconveniente.<br />
Seu Aníbal ainda sobreviveu mais dois dias. As<br />
pessoas passavam pela sala para acessar o quarto e se<br />
defrontavam com a urna funerária à espera do seu hóspede.<br />
Em seus últimos momentos, Seu Aníbal, ao lado da<br />
esposa que segurava as suas mãos frias, antes de fechar os<br />
olhos, viu ainda na parede uma folhinha marcando o dia<br />
dezoito do mês de agosto.
98<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Esquecido<br />
No Banco do Brasil da cidade de Itumbiara, na década<br />
de 1970, havia um funcionário extremamente esquecido.<br />
Esquecia-se de tudo que estava fazendo ao ponto de vez<br />
em quando se meter em confusões. Eu até já esqueci o seu<br />
nome, por isso vamos chamá-lo de Esquecido.
CRÔNICAS E CONTOS 99<br />
Morava perto do serviço, porém tinha a mania de<br />
ir trabalhar sempre de carro. Na época, existiam vagas na<br />
Praça da República, onde está localizada a agência central<br />
do Banco do Brasil. Meticuloso ao extremo, costumava<br />
anotar, em um bloquinho de rascunho, a sua pauta do dia e<br />
o mantinha no bolso, para consultá-lo a fim de checar a sua<br />
programação. A prestação de seu carro, um fusquinha, era<br />
paga um dia antes do vencimento.<br />
O seu veículo ficava sempre bem na frente do Banco,<br />
debaixo de uma grande árvore, na sombra para não<br />
manchar a pintura. Em um dia de segunda-feira, Esquecido<br />
chegou e encontrou a sua vaga já ocupada. Muito chateado,<br />
saiu à procura de uma que fosse com sombra. Teve que<br />
andar muito para encontrá-la a quatro quarteirões de<br />
distância. Chateado, estacionou assim mesmo e seguiu para<br />
o trabalho.<br />
Na saída do expediente, o Esquecido foi direto ao<br />
local de costume onde estacionava bem em frente ao banco<br />
e não encontrou o fusquinha. Ficou desesperado, voltou à<br />
agência e ligou para a mulher.<br />
– Bem, sou eu! Acredita que roubaram o fusca?<br />
– Mas como? Aí em frente ao banco?<br />
– Foi. Estacionei como sempre e agora não está mais.<br />
Paguei a última prestação ontem.<br />
– Liga pra polícia e procura nas saídas da cidade.<br />
– Tá bem! Depois eu ligo pra você novamente.<br />
O Esquecido ficou transtornado, começou com uma<br />
dor de barriga que foi se transformando em um grande<br />
mal-estar. Ligou para a Polícia Militar que chegou rapidinho<br />
em uma viatura. Os policiais desceram com uma prancheta<br />
para as anotações do Boletim de Ocorrência.<br />
– Como foi o ocorrido? O senhor viu os meliantes<br />
evadindo-se com o veículo?<br />
– Não, eu estava no banco onde trabalho. Estacionei<br />
o fusca verde novinho aqui e agora quando cheguei não o<br />
encontrei mais aqui.<br />
– Vamos fazer o seguinte, o Senhor entra aqui na<br />
viatura e vamos dar uma volta pela cidade para ver se<br />
conseguimos alguma pista.
100<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O Esquecido entrou muito contrariado na viatura e<br />
seguiram rua abaixo. Foram conversando sobre as características<br />
do carro sumido e o horário da ocorrência. Ele ia<br />
falando e o policial anotando.<br />
Três quarteirões adiante, o Esquecido viu o fusca de<br />
longe e gritou para os policiais:<br />
– Espera aí! Pode ser que eu o tenha emprestado para<br />
o meu cunhado. Deixe-me aqui que vou perguntar para a<br />
minha mulher. Se eu achar alguma coisa, ligo para vocês e<br />
conto como ocorreu o fato.<br />
O Esquecido não parava de falar para chamar a atenção<br />
dos policiais, com medo de que eles vissem o fusquinha que<br />
estava a poucos metros da viatura. A vergonha do vexame<br />
foi substituindo o desespero da perda do carro.<br />
Agradeceu o empenho dos policias e saiu caminhando<br />
até que a viatura desaparecesse na esquina seguinte. Voltou<br />
rapidamente, pegou o seu fusca e foi para casa.<br />
Afinal, essa era uma história que, realmente, deveria<br />
ser esquecida.
CRÔNICAS E CONTOS 101<br />
Pesadelo atômico<br />
O pesadelo é uma tortura através dos sonhos. São<br />
informações em forma de medo que estão no nosso<br />
subconsciente. São os sonhos que não conseguimos evitar<br />
e nos fazem algumas revelações estranhas e aterrorizantes.<br />
Sonhei que estava em Hiroshima, no dia 6 de agosto<br />
de 1945, às 08h15 bem na hora da explosão da bomba<br />
atômica e estava ali para uma missão que não entendia o<br />
seu significado. Eu sabia que a explosão iria acontecer, sabia<br />
dos efeitos da radioatividade e sabia também que milhares<br />
de pessoas iriam morrer. Vi as pessoas andando tranqui-
102<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
lamente, inocentemente e ausentes da tragédia prestes a<br />
acontecer. Olhei para cima e vi o bombardeiro americano<br />
B-29, o Enola Gay se aproximando.<br />
Naquele momento, estavam na minha frente umas<br />
crianças brincando perto de um grande prédio. Imediatamente,<br />
fui procurando uma coluna larga e forte que poderia<br />
resistir ao impacto da explosão. Encontrei uma de concreto,<br />
com mais de dois metros de largura, achei que tivesse a<br />
resistência necessária. Reuni as crianças do lado oposto do<br />
hipocentro e aguardei a revelação.<br />
Vi no céu a Little Boy, como ficou chamada a bomba<br />
A, saindo do B-29, descendo em alta velocidade. Fechei os<br />
olhos e aconselhei as crianças a fazerem o mesmo. Assustadas,<br />
elas foram, aos poucos, obedecendo-me. Passaramse<br />
uns 45 segundos. Depois de imaginar que ela chegou<br />
ao solo, ouviu-se um ringir, comparado a um irritante<br />
som da unha riscando o quadro-negro, um som extremamente<br />
desagradável e aterrorizante para mim. Logo após,<br />
o estrondo seguido do clarão cegante. Em seguida, veio<br />
a expansão de grande pressão varrendo tudo pela frente.<br />
Senti que a coluna estava resistindo.<br />
Fitei os olhos das crianças assuntadas por não saber<br />
o que estava acontecendo. Tentei acalmá-las com gestos<br />
carinhosos, sem sucesso. Vi uma água escorrendo entre<br />
os prédios, vindo em nossa direção. Percebi que estava<br />
descalço e, com medo de que aquela água estivesse contaminada,<br />
fui procurando uma posição mais elevada. Senti<br />
que a minha missão estava cumprida da melhor forma<br />
possível.<br />
Acordei transpirando e assustado. Imaginei que,<br />
no pesadelo, eu fora uma espécie de anjo da guarda.<br />
Mas, calculando as minhas ações, concluí que elas desenrolaram-se<br />
sem escolha. Não estava ali predeterminado<br />
para salvar as pessoas que não tivessem pecado, fui<br />
para amparar todas que pudesse e conseguisse. Concluí<br />
que, no meu subconsciente, não estou discriminando os<br />
bons dos maus. Penso que todos nós somos filhos do<br />
Criador. Principalmente, no desespero da explosão de<br />
uma bomba atômica.
CRÔNICAS E CONTOS 103<br />
E agora?<br />
O Doutor Frederico estava na porta da emergência<br />
esperando a ambulância do SAMU estacionar a fim de que<br />
os atendentes pudessem transferir a maca para a sala de<br />
atendimento. Era um bandido que, em um assalto, acabara<br />
levando um tiro na virilha. Olhou de relance, reconheceu o<br />
meliante e falou para a enfermeira que o acompanhava:<br />
– Carmem, vá até o meu carro que está no estacionamento<br />
do hospital e pegue os meus óculos. Devem estar no<br />
porta-luvas. Aqui estão as chaves.<br />
Carmem saiu e nem percebeu o nervosismo do<br />
Doutor Frederico querendo livrar-se dela.<br />
O Doutor fechou a porta e começou a cortar as calças<br />
do ferido.<br />
– Seu nome e idade?<br />
– Edisley e tenho 22 anos.<br />
Olhou bem nos seus olhos e perguntou:<br />
– Lembra-se de mim? Você assaltou a minha casa<br />
no mês passado, agrediu-me e estuprou a minha filha na<br />
minha frente.<br />
– Doutor, eu estava drogado e não sabia o que estava<br />
fazendo.
104<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
– Agora você me chama de Doutor. Quando você<br />
estava me batendo, só me chamava de palavrões.<br />
Frederico foi enfiando lentamente a pinça no<br />
ferimento da bala sem anestesia e Edisley gritava de dor.<br />
Não precisava perguntar, mas havia certo ar de contentamento<br />
na voz do médico.<br />
– Tá doendo?<br />
Não precisava responder. Os olhos do infrator, cheios<br />
de lágrimas, demonstravam o horror que passava naquele<br />
momento.<br />
– Estou em dúvida. Se cortar esta artéria você morre<br />
em dois minutos, mas acho muito pouco para você pagar<br />
esta dívida comigo.<br />
– Pelo amor de Deus!<br />
– Ah! Acredita em Deus? Mas Deus ensina que<br />
devemos amar o próximo como a si mesmo. Você não<br />
demonstrou isso.<br />
– Não pode fazer isso com um ser humano!<br />
– Certo. Mas você, para mim, não é um ser humano.<br />
Para mim, você é um monstro que devemos tirar do<br />
convívio da comunidade. Você é um câncer na sociedade.<br />
– Pelo amor que você tem pela sua família...<br />
– Estou fazendo isto, justamente pelo amor que tenho<br />
a minha família, principalmente pela minha filha a quem<br />
você fez tanto mal.<br />
– Sou doente.<br />
– Vou mandar você para o inferno para ser curado,<br />
mas morrer assim, você sofre muito pouco. Acho melhor<br />
cortar o oxigênio do seu cérebro para deixá-lo ficar<br />
vegetando em uma cama.<br />
Frederico começou, rapidamente, a entubar Edisley,<br />
antes que a enfermeira voltasse. Tinha certeza de que, no<br />
outro dia, haveria apenas uma notícia nas páginas policiais:<br />
“BANDIDO É FERIDO EM ASSALTO E FICA TETRA-<br />
PLÉGICO”.
CRÔNICAS E CONTOS 105<br />
Pão-duro<br />
O Oscar era conhecido como o mais pão-duro da<br />
cidade. Já se tornara inconveniente a sua presença em<br />
qualquer rodinha de conversa, a sua mania era considerada<br />
uma grande falta de educação. Magrelo, os ossos à mostra, a<br />
turma costumava dizer que o seu pijama tinha somente uma<br />
lista. Fumante inveterado, não comprava cigarro, ficava<br />
pedindo aos amigos que de vez em quando negavam, mas<br />
antes davam um sermão para conscientizá-lo da inconveniência.<br />
Vergonha também não tinha.<br />
Oscar tinha que fazer uma viagem para São Paulo e<br />
ficou perguntando a todos os amigos quem iria para lá a
106<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
fim de pedir uma carona. João Batista caiu na besteira de<br />
falar que estava marcada para outra semana a sua ida a São<br />
Paulo, foi quando Oscar pediu-lhe a carona e, sem saída,<br />
João acabou concedendo-lhe.<br />
Saíram numa madrugada de segunda-feira, de<br />
Itumbiara para São Paulo. Depois dos primeiros 50<br />
quilômetros, Oscar já apresentou a sua ansiedade de<br />
tomar um café.<br />
– Um cafezinho agora pega bem, né?<br />
João Batista procurou o próximo posto de combustível<br />
e estacionou no bar. Oscar já desceu apressado e pediu dois<br />
cafés. Ficaram ali olhando o movimento dos caminhões e na<br />
hora de sair, ele falou decisivo.<br />
– Quem paga sou eu. Sou carona e vou pagar a conta.<br />
Os dois se dirigiram ao caixa e Oscar tirou uma nota<br />
de R$100,00. O atendente falou:<br />
– Agora cedo, estou sem troco. Tem uma nota menor?<br />
Oscar deu a sua negativa com a cabeça e recolheu a<br />
nota para o bolso. João Batista ficou sem graça e tirou uma<br />
nota menor e pagou a despesa. Seguiram viagem, mais uns<br />
70 quilômetros, Oscar novamente sugeriu tomar mais um<br />
cafezinho. João novamente procurou um bar em um posto<br />
de combustível, tomaram o café, veio a mesma lorota de<br />
que quem iria pagar seria ele e apareceu novamente a nota<br />
de R$100,00. Novamente, o João Batista teve que arcar com<br />
o pagamento.<br />
Chegando a Uberlândia o Oscar foi mais afoito.<br />
– Para no próximo posto pra gente tomar mais um<br />
cafezinho.<br />
A mesma cena foi se desenrolando. Mas, quando o<br />
Oscar tirou novamente a nota de R$100,00, o João Batista<br />
não aguentou:<br />
– Oscar vamos fazer o seguinte, vou te comprar esta<br />
nota de R$100,00 por R$200,00 que tenho aqui trocadinho.<br />
É melhor a gente fazer esse negócio agora, pois estou vendo<br />
que essa nota na sua mão vai me dar uma prejuízo danado.<br />
Só quem conhecesse Oscar, poderia entender que o<br />
investimento de João Batista não era tão absurdo assim.
CRÔNICAS E CONTOS 107<br />
Tolerância zero<br />
Alfredo era um cara intransigente, para ele era oito<br />
ou oito mil, não existia meio-termo. Costumava afirmar<br />
que “as regras são feitas para serem determinadas e as leis<br />
são para serem cumpridas.” Tudo certinho como se o erro<br />
fosse o maior mal do comportamento humano. Os amigos<br />
até falavam que ele não era brasileiro, pois os conterrâneos<br />
sempre têm um jeitinho para todas as situações.<br />
Clara, sua esposa, estava atrasada para o serviço.<br />
Tomou o café muito rápido e, quando já ia saindo para a<br />
garagem, escutou do Alfredo o pedido de carona.<br />
Tomou o volante e manobrou o carro até a rua.<br />
Não chegou a percorrer um quarteirão quando o<br />
seu celular tocou. Atarefada, com uma mão dirigia, com a<br />
outra foi procurando o aparelho para atender quando viu o<br />
telefone já na mão do Alfredo.<br />
Prevendo confusão, pediu urgente o celular, mas<br />
Alfredo alertou:<br />
– Você não pode atender, está dirigindo, vai ser<br />
multada e perder pontos na carteira.<br />
– Me dá logo o celular, deve ser o meu patrão.<br />
– De jeito nenhum, deixa que eu atendo. Alô! Sim...
108<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
ela está dirigindo e não pode atender... é, mas ela não vai<br />
atender... mesmo você sendo o patrão dela – e desligou.<br />
Clara ficou assustada com a atitude de Alfredo.<br />
– Tá doido, Alfredo. Pode ser alguma coisa importante<br />
do meu serviço.<br />
– Nada é mais importante que a lei.<br />
O celular, que ainda estava na mão do Alfredo, tocou<br />
novamente.<br />
– Já disse que ela não vai atender... Eu sei que você<br />
é o patrão, mas ela está dirigindo. Tá, então se fosse você<br />
atenderia o celular dirigindo? É... então, o senhor é um<br />
infrator costumário e minha mulher não atende pessoas<br />
assim – e desligou novamente o celular.<br />
Clara com uma mão no volante e a outra estendida<br />
não estava acreditando na cena que tinha presenciado.<br />
Olhou para o Alfredo com uma cara desolada, já pensando<br />
em desemprego. Freou o carro.<br />
– Alfredo, desce do meu carro e vai para o inferno com<br />
suas leis.<br />
Alfredo desceu do carro resignado, sabendo que para<br />
desaforo da esposa não havia lei que o amparasse.
CRÔNICAS E CONTOS 109<br />
Sofia e a Flor<br />
Florisbela, chamada simplesmente de Flor, tinha<br />
uma cachorra chamada Sofia, que era linda, bem cuidada,<br />
pelo sempre brilhoso, uma coleira de pedras, uma xuxa no<br />
alto da cabeça e até esmalte nas unhas. O pessoal do bairro<br />
achava brega, mas Flor achava o máximo.<br />
Era uma comédia ver as duas passeando pela praça.<br />
A Flor conversando com a Sofia que corria como se não<br />
ouvisse.<br />
– Sai da rua, Sofia. Passa pra cá.<br />
E a Sofia, nem te ligo, só abanava o rabo quando era<br />
chamada para comer.<br />
A dedicação da Flor para com a Sofia era religiosa.<br />
Prestava atenção em todas as suas peripécias, mas fazia<br />
uma cara de paisagem e ficava conferindo as nuvens no céu,<br />
se Sofia estivesse fazendo cocô.<br />
Quando a Sofia estava no cio, a cachorrada ficava<br />
arranhando o portão com as unhas. Flor ficava no alpendre<br />
com uma vassoura espantando os pretendentes. A
110<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
vizinhança tinha que aguentar os latidos de sofrimento dos<br />
machos que não tinham a oportunidade de se aproximarem<br />
da Sofia.<br />
Certo dia Sofia sumiu. A Flor pôs o bairro inteiro<br />
em polvorosa e de plantão, a missão era encontrar o mais<br />
rápido possível a cadela, colocou até foto colada nos postes<br />
oferecendo uma gratificação para quem encontrasse a<br />
cachorrinha. Foi um sofrimento, o choro mais parecia com o<br />
da perda de um parente muito querido.<br />
Flor ligou para o Corpo de Bombeiros, Polícia Militar<br />
e até para a Defesa Civil, todos empenhados na busca da<br />
fujona.<br />
Na praça, foi montado um plantão dos moradores<br />
para receberem notícias que iam chegando aos poucos, mas<br />
o alarme era falso. Alguns cães que nem passavam perto<br />
das descrições da Sofia foram apresentados à Flor e descartados.<br />
O sofrimento tomou conta de toda a casa. No fim<br />
da tarde, com o coração apertado, Flor esperava aflita por<br />
notícias da Sofia no portão, quando a cachorrinha surgiu do<br />
nada. Ela veio abanando o rabo demonstrando alegria. Flor<br />
desconfiou de todo aquele contentamento. Sofia abanava o<br />
rabo somente na hora da comida.<br />
A Flor só entendeu o porquê de toda aquela felicidade<br />
sessenta dias depois, quando Sofia pariu uma ninhada de<br />
seis filhotes, aparentemente todos vira-latas.
CRÔNICAS E CONTOS 111<br />
Solua<br />
Os pássaros silenciaram, só o vento fino bailava com<br />
as folhas das árvores. Tudo mudou de repente. Ao ouvirem<br />
o som da melodia cantada, as cobras, num susto, levantaram<br />
as cabeças. Estavam à procura do som, era Solua.<br />
Pairava no ar um magnetismo e os répteis venenosos<br />
rastejavam rumo à Solua, que se dirigia ao Rio Vermelho.<br />
Seguiam ao lado, numa verdadeira procissão de cobras em<br />
um serrado alto, de terra arenosa.<br />
– Canatô ato anê.<br />
Solua, andando e cantando com dois galhos de ervas<br />
aromáticas, um em cada mão, ia fazendo uma picada<br />
entre as árvores e os galhos secos ficavam estendidos no<br />
chão. Um cheiro forte de enxofre e terra molhada pairava<br />
sobre o serrado. Ao chegar às margens do Rio Vermelho,<br />
ele entrava na água até o nível da cintura. As cobras que o<br />
seguiam, entravam na correnteza e eram arrastadas pelas
112<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
águas formando sobre a superfície um chicote ondulante,<br />
perdendo-se no horizonte e desaparecendo como num<br />
encanto.<br />
Solua saía das águas, ajoelhava-se nas margens, beijava<br />
os ramos, jogando-os nas águas. Chorava, afirmando:<br />
– Pronto! Por muitos anos, não se falará mais em<br />
cobras por estas terras.<br />
Era assim que esse bruxo tinha o poder magnético<br />
sobre as cobras e por isso era muito solicitado pelos fazendeiros<br />
da região.<br />
– Solua, como é que você chama as bichas? –<br />
perguntou o dono das terras.<br />
– Elas gostam do meu cantar.<br />
– Nonô falô que cobra não tem ovido, elas vai atrais<br />
do perfume secreto das flor de abrataca. Cobra não escuta.<br />
– Ouve sim, o ouvido delas tá na língua.<br />
Assim eram suas explicações, mostrando um mundo<br />
de mistérios e superstições.<br />
Solua nasceu em Arcamim, uma cidadezinha tradicional<br />
e provinciana, presa às tradições e costumes da<br />
região. Todos que moravam em Arcamim conheciam Solua.<br />
Quando chegaram, já encontraram Solua morando<br />
ali. Lendas contavam que ele era filho de índios, descendente<br />
dos Nabutacas, uma tribo isolada por seus costumes<br />
e crenças. Monoteístas, adoravam a lua com o nome de<br />
Acanã. As palavras eram vetadas, tendo a permissão de<br />
falarem poucas vezes por dia. Isso fez com que desenvolvessem<br />
grande poder telepático, com um simples olhar sua<br />
comunicação era completa.<br />
O feiticeiro Astrom fiscalizava, orientava e castigava,<br />
era o único que falava sem repreensão, dominando os<br />
adeptos com suas invocações imortais. Astrom vivia na<br />
gruta Bodoque, considerada por eles a terra santa. Entre<br />
cobras e galhos secos, ele convencia a todos da sua imortalidade.<br />
Ao passar dos anos e já envelhecido, procurou,<br />
entre as índias, uma que pudesse lhe dar um filho. Estava à<br />
procura de um herdeiro.<br />
Todos acreditavam na sua imortalidade. Ao fim dos<br />
seus dias, sentiu revolta por ter envelhecido e, para não
CRÔNICAS E CONTOS 113<br />
decepcionar o seu povo, achou melhor extinguir a tribo<br />
antes de sua morte. Para ele, seria a melhor saída.<br />
Preparou ervas venenosas para dar aos índios da<br />
aldeia, todos morreram, exceto seu filho. Ele não teve<br />
coragem de matá-lo. Depois de alguns meses, Astrom<br />
partiu dessa vida. Da tribo estranha, ficou somente o seu<br />
filho, Solua.<br />
Solua herdou do velho feiticeiro o seu poder sobre<br />
os animais, a sabedoria das ervas e o dom da cura. Dizem<br />
que no ano em que apareceu um circo em Arcamim, Solua<br />
estava à noite junto às jaulas conversando com os bichos.<br />
No Natal, ele desaparecia, ninguém conseguia vê-lo.<br />
Afirmavam que ele se transformava em borboleta e saía<br />
pelos campos para passar o dia com os bichos. Seu sorriso<br />
amigável e seu jeito humilde faziam dele um amigo para<br />
todos os momentos.<br />
Sua história passou de uma geração a outra. Muitos<br />
acreditam que se for mordido por cobra, deve procurar<br />
Solua. Basta chamar seu nome que ele aparece. Pode ser em<br />
forma de borboleta ou pombo. Você pode não vê-lo, mas ele<br />
virá.
114<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Meu coração ficou na curva do Rio<br />
Paranaíba<br />
Itubira era um índio caiapó, forte, destemido e respeitado<br />
em sua aldeia. Em uma tarde ensolarada, saiu acompanhado<br />
de mais oito bravos guerreiros para caçar quando, às margens<br />
do Rio Paranaíba, avistou uma anta, o maior mamífero do<br />
hemisfério sul. O animal estava bebendo água e vigiando ao<br />
redor para evitar algum confronto com predadores.<br />
Todos se abaixaram para se esconder entre as<br />
folhagens. Ele fez sinal para o grupo atacar, atirando as<br />
flechas ao mesmo tempo, não dando chance ao mamífero.<br />
Afinal, um animal daquele porte daria, com certeza,<br />
alimento para uma semana.<br />
Atiraram ao mesmo tempo, mas somente três flechas<br />
atingiram a anta que, assustada e em desespero, cambaleou<br />
e rumou para as águas do rio. Itubira e seus comandados<br />
correram para evitar a fuga. Ágil e corajoso, ele conseguiu<br />
agarrar-se em uma das patas, mas a força do animal foi<br />
suficiente para chegar ao rio e mergulhar.<br />
Percebendo que não dava conta de segurar os coices<br />
da anta, Itubira a soltou, porém já era tarde. Estava quase
CRÔNICAS E CONTOS 115<br />
no meio do rio e foi levado pela correnteza. Nessa hora, a<br />
coragem transforma-se em ações de desespero e as águas<br />
foram levando-o rio abaixo, enquanto os guerreiros o<br />
acompanhavam pelas margens, tentando salvá-lo.<br />
Quando a morte surgiu a sua frente e se tornou uma<br />
realidade, passaram-se, em sua mente, cenas de toda a sua<br />
vida, os seus parentes, amigos, aventuras e, principalmente,<br />
um pedido de socorro à Uyara, deusa das águas.<br />
Esforçando-se para permanecer com a cabeça fora<br />
d’água, foi descendo, tentando chegar às margens. Os outros<br />
índios iam gritando o seu nome, procurando alguma coisa que<br />
pudesse ser jogada ao grande líder para o seu salvamento.<br />
Ele fez muitas promessas em troca da vida, a mais<br />
constante foi a de fazer morada onde conseguisse atingir<br />
o chão firme. Nesse desespero e luta, foi enfraquecendo ao<br />
ponto de se achar vencido pelas águas. Depois de grande<br />
distância lutando, viu uma curva acentuada logo à frente e,<br />
com a velocidade da correnteza, foi aos poucos se aproximando<br />
das margens. Animados, os guerreiros atiravam<br />
cipó para puxar o guerreiro que já estava quase vencido.<br />
Itubira conseguiu pegar a ponta do cipó e com as<br />
últimas forças foi aos poucos atingindo a margem. Em<br />
terra firme, agradeceu os comandados, depois reverenciou<br />
Uyara, a deusa das águas, e contou aos guerreiros a sua<br />
promessa.<br />
– Aqui vou morar até os fins dos meus dias – afirmou<br />
convicto.<br />
Assim, Itubira foi construindo a sua choça e, aos<br />
poucos, vieram outras até formar uma aldeia que se consolidou<br />
na curva do Rio Paranaíba.<br />
Esse local, mais tarde, foi descoberto pelos homens<br />
brancos que aqui fizeram uma base com uma balsa para<br />
a travessia do rio. O lugar foi chamado de Santa Rita dos<br />
Impossíveis, depois Santa Rita do Paranaíba e, finalmente,<br />
Itumbiara.<br />
Existem outras justificativas para a escolha do nome<br />
Itumbiara, mas prefiro acreditar que foi uma homenagem<br />
ao índio Itubira e a deusa Uyara que salvou o bravo<br />
guerreiro, cujo coração ficou na curva do Rio Paranaíba.
116<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Dia da criança<br />
O deus da floresta<br />
Obir casou-se com Anas,<br />
a deusa das flores, foi<br />
uma festa grandiosa.<br />
Os duendes saíram de<br />
dentro dos cocos e cascas<br />
de paus tocando flauta,<br />
os pássaros saltavam de<br />
galho em galho cantando<br />
sem parar, os macacos inventaram<br />
toda a espécie de barulho<br />
e os animais maiores rosnavam, rugiam e manifestavam<br />
alegria.<br />
O deus da floresta estava cansado, pois foram vários<br />
dias de festividade. Até hoje, os bichos, quando se lembram<br />
do acontecimento, agitam em coro a mata, felizes com a<br />
expectativa de um herdeiro. Não demorou tanto, Anas<br />
apresentou-se grávida, os cuidados foram dobrados e nada<br />
faltava à futura mamãe.<br />
Sabia-se que a bela Anas tinha medo de tempestade<br />
e aquela foi a pior que toda a floresta já vira, pois Thor, o<br />
deus dos trovões, ficou tão enciumado que lançava raios.<br />
Sua paixão pela bela Anas não tinha mais sentido, cuspindo<br />
fogo nas grandes árvores, pôs em pânico a bicharada.<br />
Anas assustou-se e por isso perdeu o filho que<br />
esperava. A tristeza foi grande na mata, todos choravam<br />
a morte do herdeiro. Obir foi lamentar ao deus da fecundidade,<br />
Amar, enquanto Anas corria a floresta em choro e<br />
suas lágrimas caíam nas pétalas das flores como pingos de<br />
orvalho.<br />
Amar teve piedade e concedeu-lhe uma dádiva,<br />
convertendo cada gota de lágrima de Anas em um filho e<br />
as gotinhas de lágrimas saltaram das pétalas em direção a<br />
terra, transformando-se em lindas crianças.<br />
Assim, num toque de magia, a alegria dissipou a<br />
tristeza e aquele dia foi decretado como o Dia da Criança.
POESIAS
POESIAS 119<br />
Estrelas felizes<br />
A estrela veio do céu à procura de abrigo.<br />
Entre os corações, só viu ilusões.<br />
Até entre irmãos, encontrou intrigas.<br />
E, a cada esquina, via-se uma briga.<br />
Nas ruas, encontrou poluição.<br />
A decepção se apresentou de atrevida.<br />
O egoísmo dançou carnaval.<br />
O ódio venceu o amor.<br />
Até a guerra pintou no pedaço.<br />
No reino da dor, um grito de horror.<br />
A estrela sentiu solidão.<br />
No meio da gang, era uma intrusa.<br />
Abriu a boca e gritou por socorro.<br />
A indiferença fingiu que não viu.<br />
A estrela chorou de agonia.<br />
E seu pranto virou saudade.<br />
Pediu sua volta ao céu.<br />
Seu pedido foi atendido.<br />
Como um raio, fugiu apressada.<br />
E lá do céu, no meio das trevas,<br />
Olha a Terra uma bola distante.<br />
E aqui da Terra, os seus habitantes,<br />
Cheios de esperanças, pedindo paz.<br />
Os anos passam sem resultado,<br />
Decepcionados procuram entender<br />
Por que Deus atende as estrelas<br />
E não atende os homens.
120<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O presente do passado<br />
Surgiu como um vento de outono<br />
e a lufada quente tomara conta de meu ser.<br />
Não sabia se estava perdido ou tinha me encontrado,<br />
e nesse caos emocional sentia você.<br />
Os sonhos surgiram cada vez mais intensos,<br />
mais vividos, mais sentidos.<br />
Realizaram os dias e minha existência foi se justificando.<br />
Assim, foi passando, vendo o mundo das flores e<br />
foi se esquecendo dos espinhos.<br />
Mar de rosas, mundo de primaveras,<br />
vida em festa, tudo maravilha.<br />
Fui aos poucos descobrindo que estava amando<br />
e que Vinícius estava certo ao afirmar que<br />
“o amor é infinito enquanto dure”<br />
e durou o necessário para que a vida me mostrasse<br />
a eternidade naqueles momentos.<br />
Vi o mundo desfolhar o futuro que tanto<br />
me preocupou no passado.<br />
Aquele presente sublime que se transformou em passado<br />
e no presente não esquecemos jamais.
POESIAS 121<br />
Dia sem mãe<br />
Entre montes de caixotes pega o brinquedo,<br />
Fingindo distraído, para esquecer este dia.<br />
Correm as horas para findar o presente,<br />
Presente seria muito bom para mamãe.<br />
Que mãe? Para o órfão a inexistência da mãe é um fato,<br />
O fato de uma foto que é a única herança,<br />
Herança herdada de um dia de tragédia,<br />
Tragédia vivida em grandes prantos,<br />
Prantos intermináveis que todos os dias se repetem,<br />
Repetir para quê? Se o passando se foi.<br />
Foi com ele, mamãe!<br />
Pedir a Deus uma mãe<br />
Seria um pedido grande?<br />
Que castigo desumano pode merecer uma criança?<br />
Qual é o dia dos órfãos?<br />
Ninguém responde e meus olhos se enchem de lágrimas,<br />
Lágrimas que rolam em um rosto triste,<br />
Triste neste dia difícil que passa,<br />
Passa esquecido com eles, os órfãos,<br />
Órfãos que choram o passado que foi .<br />
E foi com ele, mamãe.
122<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Você<br />
Há coisas lindas na vida.<br />
Poesia...<br />
Amor...<br />
Você...<br />
Poesia é linda porque não é triste.<br />
Amor é lindo porque existe.<br />
Mas linda mesmo é você.<br />
Há coisas grandes na vida.<br />
Amor...<br />
Perdão...<br />
Você...<br />
Amor é grande porque não isola.<br />
Perdão é grande porque consola.<br />
Mas grande mesmo é você.
POESIAS 123<br />
Há coisas inexplicáveis na vida.<br />
Deus...<br />
Saudade...<br />
Você...<br />
Deus se ama não se explica.<br />
Saudade não se justifica.<br />
Mas sei que amo...<br />
Mas como explicar a você?<br />
Há coisas boas na vida.<br />
Livros...<br />
Carinhos...<br />
Você...<br />
Livros instruem a gente.<br />
Carinhos quem não os sente?<br />
Mas bom para mim é você.<br />
Há coisas incomparáveis na vida.<br />
Crianças...<br />
Sonhos...<br />
Você...<br />
Crianças eu não as entendo.<br />
Sonhos eu não os compreendo.<br />
Mas sei que amo você.
124<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Andarilho<br />
O andarilho sai pelas estradas, cabeça ao vento,<br />
maltrapilho e um saco nas costas como patrimônio.<br />
Anda à procura do nada.<br />
O que é nada?<br />
Esse nada, para nós, é tudo para ele.<br />
É a emoção da chegada que fascina seus olhos,<br />
é um som novo que modifica seus sentidos,<br />
é o destino que não para.<br />
Esse nômade, sem rumo e direção,<br />
tem em seus pés a esperança,<br />
a riqueza, o desígnio, o propósito.<br />
O projeto de percorrer caminhos desconhecidos<br />
é o seu tudo.
POESIAS 125<br />
A alegria da chegada tem um gosto de vitória,<br />
a conquista de mais uma etapa<br />
e o preparo para outras aventuras.<br />
Sem nem mesmo tomar gosto pelas coisas novas,<br />
sai novamente, buscando um rumo desconhecido.<br />
O que tem na alma essa criatura inquieta?<br />
Procura vida?<br />
Não, a vida já está em seus sentimentos.<br />
Procura a morte?<br />
Não, a morte é inevitável e o espera em algum erro fatal.<br />
Procura a sorte?<br />
Talvez!<br />
Procura amor?<br />
Não, se procurasse amor,<br />
a solução seria um contato maior com as pessoas<br />
e andarilho passa a maior parte do tempo só.<br />
Procura a dor?<br />
Não, da dor todos nós corremos.<br />
Procura Deus?<br />
Talvez!<br />
Procura a paz?<br />
Talvez!<br />
O dia em que encontrar tudo isso,<br />
termina a sua procura, acaba a sua caminhada.<br />
E isso nunca vai acontecer,<br />
porque esse andarilho nada achará andando.<br />
Ouça essa dica, andarilho!<br />
Amor, paz e Deus estão dentro de você.
126<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
Desculpas pela minha existência<br />
Virando a lata de lixo à procura de pão,<br />
Olha para o céu e pergunta a Deus,<br />
Desconfiado da sua existência.<br />
Sou mesmo seu filho, Senhor?<br />
Então, faça alguma coisa pela minha fome,<br />
Acabe com a minha dor<br />
E peça aos homens mais amor.<br />
Os trapos que o encobre<br />
É a identificação de mendigo,<br />
Mas dentro de si nada vê.<br />
Seria necessária a sua existência<br />
Para alguns se sentirem melhor ao vê-lo,<br />
Constatando que existe pessoa em pior situação<br />
Não, isso seria conformismo.<br />
Seria um castigo de algo que fez?<br />
Não, pois ele já nasceu muito pobre.<br />
Seria um castigo de algo da outra existência?<br />
É difícil afirmar, só Deus saberia.<br />
Então, resta pedir compaixão aos irmãos,<br />
Resta rezar a Deus pedindo clemência,<br />
Resta pedir ao governo um auxílio,<br />
Resta chorar, porque a fome aperta o estômago.<br />
— Olha ali! Uma lata de lixo sem mexer.<br />
Viu, Deus não é tão mal assim.
POESIAS 127<br />
Ser gente<br />
Sou gente.<br />
Como você, tenho coração,<br />
pernas, braços, olhos, lábios<br />
e uma mente,<br />
sou gente.<br />
Não é preciso lhe dizer tudo isso,<br />
mas no fundo da minha mente,<br />
quero que você me entenda,<br />
sou diferente.<br />
Diferente porque a gente sente,<br />
quando estou só sinto uma dor profunda<br />
ferindo a gente.<br />
Isso prova que sou gente.<br />
É difícil ser gente,<br />
alegrias, sofrimentos, prazeres.<br />
Isso marca a gente.
128<br />
Meu coração ficou na curva do Rio Paranaíba<br />
O amor, esse sentimento marcante,<br />
arrasa a gente.<br />
É bom ser gente,<br />
de dia pensando e de noite sonhando.<br />
É duro o sonho da gente,<br />
sonha amando e acorda procurando.<br />
Para que serve a vida da gente?<br />
Levantar, trabalhar, estudar,<br />
mas sem amor?<br />
Amar é viver.<br />
Falam isso pra gente.<br />
Viver para amar.<br />
Isso sim é vida de gente.<br />
Felicidade de gente está dentro do coração,<br />
como o amor que ama a gente.<br />
O importante da gente é o sentimento.<br />
Mas a sensibilidade,<br />
às vezes, traz problema pra gente.<br />
É um problema ser gente,<br />
difícil solução.<br />
Muitas vezes, a solução não está ao alcance da gente.<br />
Eu gosto de ser gente.<br />
Um gosto sem graça.<br />
Mas para que graça?<br />
Se o sorriso disfarça na cara da gente.<br />
Enfim, para que serve a vida da gente?<br />
Nascer, viver e morrer.<br />
Não!<br />
Se você não ama,<br />
se você não sofre,<br />
você não é gente.
POESIAS 129<br />
Foi Deus quem fez você<br />
Não tenho mais dúvidas,<br />
foi Deus quem fez você.<br />
Mas antes ele disse: “Haja luz”.<br />
E houve luz e, assim,<br />
Ele foi montando tudo que existe no mundo.<br />
O Criador foi dando existência<br />
a todas as coisas que temos,<br />
usamos, desejamos<br />
e, muitas vezes, não damos o valor devido.<br />
Mas o dia em que Deus fez você<br />
estava inspirado,<br />
pois caprichou na beleza.
O dia em que Deus fez você<br />
estava benevolente,<br />
pois fez você uma pessoa caridosa.<br />
O dia em que Deus fez você<br />
estava iluminado,<br />
fez você uma pessoa que brilha.<br />
O dia em que Deus fez você<br />
estava afeiçoado,<br />
pois você surgiu amorosa.<br />
Deus fez você no dia que estava harmonioso,<br />
porque você saiu equilibrada<br />
com o mundo e com a vida.<br />
O dia devia ser de verão.<br />
Explica-se o calor que você transmite.<br />
Deus estava feliz.
Nasci na cidade de Anápolis<br />
– GO, conhecida pelo nome de<br />
Manchester Goiana. Aos 18 anos, para<br />
servir as forças armadas, mudei para<br />
Vila Velha – ES, onde me alistei na<br />
Escola de Aprendiz de Marinheiros.<br />
Um ano depois, embarquei no<br />
navio Porta Aviões Minas Gerais,<br />
atracado no Rio de Janeiro, cidade<br />
onde fiquei por nove anos.<br />
Em 1976, fixei residência na<br />
cidade de Itumbiara – GO, onde<br />
adquiri, em sociedade com meu irmão Walter, o bar Caverna,<br />
situado no início da Avenida Afonso Pena.<br />
Nessa mesma época, comecei a escrever crônicas com<br />
muito sarcasmo, denunciando a opressão do governo militar,<br />
fato que motivou o Dr. Getúlio a me apelidar de Lauro Ferrão.<br />
Posteriormente, fui convidado por ele a publicá-las no Jornal da<br />
Cidade, na coluna Tema Livre.<br />
Com o objetivo de resgatar parte do que foi produzido<br />
naquele período, reuni textos retirados das edições anteriores<br />
do Jornal da Cidade, que estão arquivados no Palácio da<br />
Cultura, além de crônicas e poesias inéditas para a publicação<br />
do meu primeiro livro, intitulado Meu Coração ficou na curva<br />
do Rio Paranaíba.