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Revista Dr. Plinio 205

Abril de 2015

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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>205</strong> Abril de 2015<br />

A verdadeira<br />

glória nasce<br />

da dor


São Pedro Armengol,<br />

na forca, sustentado por<br />

Nossa Senhora - Museu do<br />

Prado, Madri, Espanha<br />

Macarrones (CC 3.0)<br />

De bandido a religioso<br />

S<br />

ão Pedro Armengol é o modelo<br />

da confiança. Pecador medonho,<br />

ele se arrependeu, confiou e não só foi<br />

perdoado, mas recebeu uma vocação<br />

religiosa. Nossa Senhora chamou o<br />

bandido para ser religioso. É uma<br />

bondade extraordinária!<br />

Nas dificuldades, peçamos a São<br />

Pedro Armengol a confiança e a calma<br />

dele, certos de que Nossa Senhora<br />

resolverá tudo.<br />

(Extraído de conferência de 16/2/1988)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>205</strong> Abril de 2015<br />

A verdadeira<br />

glória nasce<br />

da dor<br />

Na capa, crucifixo<br />

venerado na Igreja<br />

de Nossa Senhora<br />

do Carmo<br />

Caieiras, Brasil.<br />

Ao fundo, interior<br />

da Sainte-Chapelle<br />

Paris, França<br />

Foto: Timothy Ring e Joe de<br />

Souza<br />

Ano XVIII - Nº <strong>205</strong> Abril de 2015<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Editorial<br />

4 A verdadeira glória nasce da dor<br />

Dona Lucilia<br />

6 Incólume tabernáculo interior - I<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

8 Sabedoria e sacralidade - I<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

12 Per lucem ad crucem<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

18 Origem do direito consuetudinário - I<br />

De Maria nunquam satis<br />

22 Sublime intimidade entre o Menino e a Mãe<br />

Calendário dos Santos<br />

26 Santos de Abril<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 130,00<br />

Colaborador .......... R$ 180,00<br />

Propulsor ............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Hagiografia<br />

28 Santo Anselmo,<br />

varão de muitas lutas<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

32 De requinte em requinte<br />

Última página<br />

36 “É de noite que é belo acreditar na luz!”<br />

3


Editorial<br />

A verdadeira glória<br />

nasce da dor<br />

Q<br />

uinta-feira Santa: após o jubiloso cântico do “Glória”, os instrumentos emudecem, o alegre<br />

bimbalhar dos sinos cede lugar aos estalidos das matracas, e a cerimônia se desenrola numa<br />

atmosfera que pressagia a tristeza da alma católica por ver o Senhor preso, flagelado, crucificado,<br />

morto e, por fim, sepultado.<br />

Terminada a Missa, o Santíssimo Sacramento é conduzido em procissão ao monumento, deixando<br />

atrás de Si o sacrário vazio e o templo em penumbras.<br />

Inicia-se o pungente cerimonial do “desnudamento do altar”, enquanto o coro entoa o Salmo 22,<br />

em cujas palavras introdutórias ouvimos aquele mesmo brado lancinante proferido pelo Redentor do<br />

alto da Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” 1<br />

Mãe e Mestra, a Igreja escolheu este Salmo para esta cerimônia, pois nele se medita profeticamente<br />

não apenas os tormentos da Paixão, mas a glória da Ressurreição. Com isso, ela<br />

imita seu divino Fundador e adorável Modelo, que exalou este brado de verdadeira angústia,<br />

mas não de desespero, pois se trata de uma oração a Deus seguida pela certeza jubilosa do<br />

triunfo final 2 .<br />

Assim, no pórtico da Paixão já se prenuncia a glória que, como pondera <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, não está apenas<br />

na vitória final, mas na própria dor padecida de maneira santa e exemplar.<br />

Com efeito, ao aproximar-se o momento do supremo sacrifício, Jesus declarara: “É chegada a hora<br />

em que será glorificado o Filho do Homem. E quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a<br />

Mim.” 3<br />

Do alto do patíbulo, como de um púlpito alçado diante de toda a humanidade, a Sabedoria eterna<br />

e encarnada legava, assim, à História este sublime ensinamento: “A verdadeira glória só nasce da<br />

dor.” 4<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> possuía esta verdade profundamente vincada em sua alma, o que o levou a tecer comentários<br />

como os transcritos a seguir 5 :<br />

Quando a dor chega ao extremo de fazer bradar “meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”,<br />

a pessoa, em seu interior, está sentindo que todas as dores possíveis desabaram sobre ela, e padece<br />

a plenitude do sofrimento: em todo o seu corpo e em sua alma não há nada que não seja dor, ela<br />

toda não é senão dor. Então clama “meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”, como quem<br />

diz: “Eu esperava de Vós, ó Deus, um pequeno auxílio que fosse, mas vejo que esse auxílio não vem,<br />

porque de todo lado onde o adversário poderia me ferir, ele me feriu; de todos os lados onde pode-


ia me humilhar, ele humilhou, e fez com que eu bebesse inteiro o cálice amargo da dor. Vosso amparo<br />

onde esteve, ó Deus?”<br />

Tão trágica situação manifesta uma beleza especial que é o pulchrum fascinante do sacrifício, do<br />

holocausto, da dor, da derrota, da humilhação que a pessoa sofre até o fim, resignada e, conforme o<br />

caso, até entusiasmada, por ver que se verifica, assim, um princípio da ordem do universo: com o pecado<br />

original, a dor e até mesmo a catástrofe tornaram-se uma imposição.<br />

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo toma, neste sentido, uma perspectiva extraordinária:<br />

Aquele que era o Inocente e o Perfeito por excelência, ao ser assassinado por ter feito o bem,<br />

dá explicação e significado à História. Assim, quando lemos a narração da Paixão, no primeiro<br />

momento pensamos: “Como aconteceu, como fizeram isso?!” Mas depois de levar a leitura<br />

até o “Consummatum est” 6 , fechamos a Bíblia e dizemos: “Que coisa ordenada! Que extraordinário!<br />

Que bonito!”<br />

Deste modo também o homem deve considerar todo o sofrimento que ele carrega nesta<br />

Terra. Quer dizer, se insere numa ordem que é mais bela do que a vitória, debaixo do seguinte<br />

ponto de vista: a beleza específica do martírio, que é a renúncia à vida, por onde morrer a<br />

favor de um ideal torna-se mais belo do que triunfar com ele. De maneira que, para a glória<br />

de Deus, era melhor que o Filho do Homem fosse morto. Vemos nisso o pulchrum do sofrimento<br />

e da derrota.<br />

Por isso, quando reflito sobre a glória, penso mais nos heróis que estão resistindo até o último<br />

ponto a uma ofensiva inimaginável, do que no desfile depois de terem vencido. Porque quando o<br />

herói está nesta posição, a aliança dele com Deus é muito mais evidente, e a presença deste pulchrum<br />

em sua alma é muito mais clara do que na hora da vitória. Daí o fato de que, ao longo de toda<br />

a História, almas de escol se comprouveram em analisar, descrever e valorizar de modo especial,<br />

como sendo as culminâncias da vida, os episódios trágicos.<br />

Nesta perspectiva, até no Céu, onde se diria que a dor não tem mais papel, ela encontra seu significado:<br />

ela se reverte em glória, mas não é apenas a glória da vitória, mas a glória da dor.<br />

Não é verdade que, sem isso, o Céu seria menos bonito? E se a dor adorna o Céu, há de adornar<br />

também a ordem terrena.<br />

1) Mt 27, 46.<br />

2) Cf. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2013. p. 1756, b.<br />

3) Jo 12, 23; 32.<br />

4) Título de um artigo de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> publicado em Catolicismo, n. 78 – Junho de 1957.<br />

5) Cf. conferências de 13/7/1980 e 10/2/1990.<br />

6) Do latim: está consumado (Jo 19, 30).<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.


Dona Lucilia<br />

Incólume tabernáculo<br />

interior - I<br />

A serenidade e a segurança que tanto caracterizavam Dona<br />

Lucilia, e que ela difundia tão prodigamente em torno de si,<br />

vinham-lhe de um tabernáculo interior que os vagalhões da<br />

vida não conseguiram atingir.<br />

Q<br />

uando alguém recebe um toque da graça vinda do<br />

Céu e sente uma espécie de glória que o cerca, o<br />

ilumina, é envolvido de uma tranquilidade, uma<br />

serenidade esplêndida, uma segurança magnífica e de um<br />

gáudio em que não entra em jogo a vidinha de todos os<br />

dias, nem o “vidão” do dia da glória. É uma espécie de<br />

participação da honra que Deus fará<br />

ao indivíduo quando ele entrar<br />

no Céu, que é uma coisa única!<br />

Em todo homem<br />

há duas histórias: a<br />

interna e a externa<br />

Todos nós, mais ou menos, tivemos<br />

ocasião, numa circunstância<br />

ou noutra da vida, de experimentar<br />

uma consolação especial na qual,<br />

entre outras coisas, sentimos todo<br />

o nosso ser honrado, dignificado<br />

e elevado por esse contato com<br />

Deus. Perto disso, todas as glórias<br />

terrestres de fato não são nada, não<br />

valem nada, não contam para nada.<br />

Em geral, as pessoas com verdadeira<br />

vida interior têm em relação<br />

a esta vida terrena uma posição<br />

assim: elas podem dizer que a<br />

vida não vale nada, em certo sentido;<br />

vanitas vanitatum et omnia vanitas<br />

1 , ou “tudo é vaidade e aflição<br />

do espírito” 2 — expressões lindíssimas,<br />

aliás!<br />

Sergio Hollmann<br />

Jó - Catedral de Pamplona, Espanha<br />

Entretanto, em outro sentido, não é tanto assim. Por<br />

exemplo, Jó recebeu um prêmio na Terra que foi o de ter<br />

muito mais depois da prova, do que a enormidade que<br />

ele recebera antes dela. Ademais, viveu muitos anos e —<br />

coisa muito pouco moderna e por isso mesmo muito verdadeira<br />

e bela — teve uma grande quantidade de filhos.<br />

Após perder todos os filhos, ter<br />

uma grande quantidade de filhos<br />

era ainda uma grande glória.<br />

Esta vida, portanto, tem o seu<br />

valor, e o verdadeiro católico compreende<br />

esse valor.<br />

Mas há duas coisas que se fundem<br />

e estão por cima disso. Uma<br />

é a história externa do indivíduo:<br />

aconteceu isso, fez aquilo, etc. Outra<br />

é a história interna: aquilo por<br />

onde ele passou de grande, de pequeno,<br />

de glorioso, de insignificante,<br />

toda a história de sua alma, com<br />

as cicatrizes que o sofrimento deixou<br />

nela, e que preparam esta pergunta:<br />

Em função do meu passado,<br />

como será o meu futuro, e como<br />

terminará para mim esta vida?<br />

É uma indagação muito importante<br />

e que o homem cozinha sozinho<br />

consigo, porque ela é incomunicável.<br />

É tão íntima, tão interna,<br />

que eu acho que a maior parte<br />

das pessoas nem saberia como dizer<br />

para outro o que leva dentro de<br />

sua mente.<br />

6


Como os rochedos<br />

batidos pelas ondas<br />

Se a pessoa internamente julga<br />

ter levado, ou estar levando, bem<br />

sua vida e que esta corre segundo a<br />

lógica das coisas, ainda que os outros<br />

achem que não, ela tem uma segurança,<br />

uma calma interna e uma noção de<br />

glória interior, as quais vêm da consciência<br />

tranquila, que constitui um elemento distinto<br />

da vida externa e dá para a pessoa uma calma<br />

muito grande, em razão exatamente do bem articulado<br />

de tudo aquilo que ela fez.<br />

Quando não agiu bem, tem a calma da contrição, do<br />

perdão recebido e da vida consertada. E, portanto, a pessoa<br />

vai andando, pois, tendo sido perdoada, é amada por<br />

Deus. Essa sensação de ser amado por Deus proporciona<br />

uma convicção ultrarreconfortante, e o indivíduo pode<br />

receber os piores vagalhões da vida, que ele não é<br />

atingido no seu tabernáculo interior. E o fato de não ser<br />

atingido nesse tabernáculo lhe dá uma calma, que pode<br />

coincidir com todas as agonias e todas as angústias.<br />

Essa calma não existe na pessoa que tem seu próprio<br />

tabernáculo interior devastado, ou que nem o possui. É<br />

tão sem reflexão sobre sua vida, tão sem história própria,<br />

que é como uma cortiça levada pelas ondas.<br />

A noção da história interior e da satisfação que essa<br />

história pode dar é possível perceber eminentemente em<br />

uma pessoa, mesmo quando vagalhões enormes se soltaram<br />

sobre ela. Exatamente quando chega a hora do vagalhão<br />

baixar, a sensação de que o tabernáculo interno<br />

ficou intacto se manifesta. Essa sensação, bem como a de<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Alexander Klink (CC 3.0)<br />

que o vagalhão foi inútil, dá uma segurança que é meio<br />

parecida com a dos rochedos batidos pelas ondas: vem o<br />

mar com aqueles furores e lança ondas que podem dar<br />

respingos que chegam até o alto do rochedo, mas este<br />

não se move. Quando o mar se retira, o rochedo está ali.<br />

Morte de Dona Gabriela<br />

Dona Lucilia era inteiramente assim nas ocasiões<br />

mais aflitivas. Lembro-me de quando ela perdeu a mãe 3 ,<br />

a quem ela queria, respeitava e venerava muitíssimo. Um<br />

fatinho pode dar ideia de até onde ela levava isso.<br />

A casa em que morávamos era dessas residências<br />

de antigamente, térreas e enormes.<br />

E a distância entre o quarto de dormir<br />

dela e o da mãe era grande. Minha<br />

avó tinha uma espécie de governanta<br />

de casa muito boa, dedicada, correta,<br />

que dormia ao seu lado. De maneira<br />

que qualquer coisa que minha avó<br />

quisesse, essa mulher atendia. Ela<br />

estava inteiramente bem atendida.<br />

Minha mãe mandou puxar um<br />

cordão elétrico, com campainha, da<br />

cama de minha avó até a cama dela;<br />

porque a mãe dela estava velha e,<br />

no caso de urgência, podia levar certo<br />

tempo de a tal governanta chegar até o<br />

quarto de mamãe, e ela queria, tocando a<br />

campainha, ir correndo atender minha avó.<br />

Quando a mãe dela morreu, fizeram-se as exéquias<br />

e compareceu muita gente. Cumprimenta um, recebe<br />

abraço de outro, perde-se um pouquinho a noção<br />

das coisas. Em certo momento me lembrei: mamãe onde<br />

estará? Comecei a procurá-la e não a vi. Com certeza,<br />

pensei, ela se sentiu muito abalada e foi para o seu quarto,<br />

e é possível que esteja com alguma indisposição. Fui<br />

ao quarto dela para ver. Ela estava deitada, em atitude<br />

inteiramente serena, com uma fisionomia muito triste, a<br />

posição composta e pensando.<br />

É a tal coisa: o vagalhão não alcança!<br />

Nunca eu vi vagalhão algum atingi-la. Em duas vezes,<br />

porém, quase a alcançou...<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 21/4/1990)<br />

1) Do latim: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade (Ecl 1, 2).<br />

2) Ecl 2, 17.<br />

3) Dona Gabriela Ribeiro dos Santos, falecida em 6 de janeiro<br />

de 1934.<br />

7


Sagrado Coração de Jesus<br />

Sabedoria e sacralidade - I<br />

A visão sacral do universo, haurida no Sagrado<br />

Coração de Jesus por meio da Santa Igreja Católica,<br />

levava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a tudo analisar sob este prisma e a<br />

discernir o cunho dessacralizante da Revolução.<br />

Em menino, recebi a influência altamente benéfica<br />

dos jesuítas em minha formação. Assim, graças<br />

a Nossa Senhora, vincou-se muitíssimo no<br />

meu espírito a noção de que, por cima de tudo aquilo<br />

que eu vinha considerando e admirando nas etapas anteriores,<br />

pairava a autoridade doutrinária da Igreja, e<br />

o que havia na minha alma de bom, de belo, eu o tinha<br />

porque era católico e o recebia de minha comunicação<br />

espiritual, sobrenatural e religiosa com a Igreja Católica.<br />

A Igreja, fonte de todo o bem<br />

Os jesuítas não insistiam<br />

sobre a metáfora<br />

do Corpo Místico, mas<br />

a doutrina eles davam.<br />

Naturalmente, prestei<br />

muita atenção nela e<br />

se cravou muito em<br />

meu espírito a ideia de<br />

que a Igreja era a própria<br />

fonte de onde vinha<br />

tudo quanto havia<br />

de bom em mim. Ou<br />

seja, o Sagrado Coração<br />

de Jesus, por meio<br />

do Coração Imaculado<br />

de Maria. Essa noção<br />

era muito vivaz, mas<br />

foi “doutrinalizada” só<br />

mais tarde quando li<br />

São Luís Grignion de<br />

Montfort.<br />

Tudo quanto era de<br />

Jesus Cristo, para mim<br />

vinha por meio da Igreja,<br />

a concha na qual pousavam todos os benefícios d’Ele<br />

para todos os homens. Eu me entregava àquilo e hauria<br />

tudo dali.<br />

Mas a Igreja era a minha mestra e corrigiria os desvios<br />

eventuais a que meu espírito estava sujeito. Eu me sentia<br />

capaz de erro, pelo lapso da inteligência, pela tendência<br />

ao mal, mas também enormemente protegido pela ideia<br />

da infalibilidade da Esposa de Cristo.<br />

Eu percebia a impossibilidade de fazer todos os homens<br />

pensarem do mesmo modo. Ou havia uma autoridade<br />

infalível que ensinava a todos, ou não existiria pos-<br />

Basílica de São Pedro, Vaticano<br />

Jebulon (CC 3.0)<br />

8


sibilidade de pensarem da mesma forma.<br />

Enquanto isso não se desse, a vida<br />

seria um caos, indigna de ser vivida.<br />

Daí uma veneração enorme pelo Papado.<br />

E depois, correspondentemente,<br />

pelo Episcopado e pelos outros graus<br />

da Hierarquia.<br />

Jardim protegido pelas<br />

muralhas do dogma e da lei<br />

Juntamente com tudo isso, também<br />

uma ideia do poder governativo da<br />

Igreja.<br />

Em primeiro lugar, as leis feitas por<br />

Deus, sacratíssimas, venerabilíssimas,<br />

mas obrigando como a lei obriga. Depois,<br />

as leis da Igreja, complementação<br />

das leis de Deus, obrigando também<br />

com uma autoridade divina.<br />

Portanto, a noção do dogma, do preceito,<br />

da necessidade de obedecer — sobretudo em matéria<br />

religiosa — se vincou em meu espírito a fundo. E<br />

quem não obedecesse teria que cumprir uma pena. Eu<br />

tinha entusiasmo pela aplicação efetiva da penalidade,<br />

e repulsa em relação às autoridades que aplicam de um<br />

modo dorminhoco, negligente a lei, que velam com mão<br />

mole sobre o dogma.<br />

Tudo isso formou uma vertente do meu espírito, como<br />

fruto das etapas anteriores. Não como uma etapa nova,<br />

mas uma complementação a uma coisa já existente.<br />

E a inocência era para mim como um jardim magnífico,<br />

mas protegido pelas muralhas do dogma e da lei. Um<br />

jardim fortificado.<br />

Há em certo lugar da Escritura uma referência ao hortus<br />

conclusus 1 — jardim fechado —, que a Igreja aplica a<br />

Nossa Senhora. A Igreja me parecia um horto fortificado,<br />

cheio de maravilhas no interior, mas do lado de fora<br />

preparado, ajustado e assestado para o combate. A ideia<br />

da fortaleza era um complemento.<br />

Ordem do universo e combates sacrais<br />

Do choque com a Revolução vinha a ideia de que a ordem<br />

do universo pedia que fosse possível haver combates<br />

sacrais. Porque seria necessário que, em homenagem<br />

aos mais altos valores, houvesse os mais elevados sacrifícios,<br />

os heroísmos mais extremos, os sacrifícios mais terríveis,<br />

as abnegações mais cruciantes. Portanto, o sacral<br />

de si era belígero, no sentido de que a presença dele na<br />

Terra, ao mesmo tempo, atraía e repelia, criava uma divisão.<br />

E essa divisão provocava a luta.<br />

Promulgação do dogma da Imaculada Conceição - Museus Vaticanos<br />

A luta, de vez em quando, daria na guerra. E esta<br />

guerra, em certo sentido, completava a ordem do universo,<br />

porque era a efetivação do holocausto com sangue à<br />

sacralidade, que o homem deveria pagar.<br />

De maneira que o pacifismo exagerado e o laicismo<br />

sempre me pareceram coisas correlatas, não na primeira<br />

superfície, mas no fundo.<br />

Eu ainda não conhecia o ecumenismo falso, inteiramente<br />

diferente do ecumenismo verdadeiro. Podem calcular<br />

quando conheci esse falso ecumenismo, que sabor<br />

desagradável me produziu na boca…<br />

Sempre me pareceu que esses utopismos não queriam<br />

considerar que, sendo o mundo um vale de lágrimas, de<br />

vez em quando era necessário que nele aparecessem lutas,<br />

conflitos, os quais levassem até esse ponto.<br />

Era uma necessidade deplorável, fruto do pecado original<br />

e dos outros pecados dos homens, mas de uma natureza<br />

tal que seria ainda mais deplorável se não houvesse.<br />

Porque até mesmo o homem concebido sem pecado<br />

original ficaria amputado e deformado se ele não tivesse<br />

a possibilidade, às vezes, de levar a luta pelo sacral ao extremo<br />

de todas as dedicações.<br />

Holocausto sublime que dá beleza à vida<br />

Nesse sentido, a guerra legítima me aparecia como<br />

uma nota da sacralidade. Porque é um holocausto praticado<br />

pelo homem que vai à batalha, mesmo quando esta<br />

não tem motivo religioso, mas é uma questão de fronteiras<br />

ou algo assim. Neste caso, o combatente defenderá<br />

o direito de seu país por uma razão moral. Ele, católico,<br />

AlfvanBeem (CC 3.0)<br />

9


Sagrado Coração de Jesus<br />

Seria necessário que, em<br />

homenagem aos mais altos<br />

valores, houvesse os mais<br />

elevados sacrifícios, os<br />

heroísmos mais extremos.<br />

Reprodução<br />

O Papa Bem-aventurado Urbano II prega<br />

a Cruzada em Clermont-Ferrand<br />

vai à luta porque um Mandamento de Deus o obriga a ir.<br />

Nesse sentido, para ele é uma “guerra santa”. Não santa<br />

na sua meta imediata, mas na sua meta última de cumprir<br />

o dever para com seu país.<br />

De onde, então, em toda guerra justa, exatamente nos<br />

seus horrores, aparecer um sentido de holocausto sublime<br />

que dá uma beleza à vida, indispensável para compor<br />

os aspectos da existência, tal como ela é em consequência<br />

do pecado original e dos pecados atuais.<br />

Alguém, para fazer chicana, perguntaria: “Você não<br />

deseja uma era de paz? Veja na Escritura tudo quanto se<br />

diz a respeito da paz, da beleza dela, como se deve querer<br />

uma paz eterna que nunca mais tenha fim. Você não<br />

deseja isso? E fica como uma hiena, um chacal à espera<br />

da efusão do sangue? E você se diz católico?!”<br />

Como as doenças que nunca desaparecerão...<br />

A resposta é muito simples. Aplica-se aqui tudo quanto<br />

sabemos a respeito da necessidade da doença. Não há<br />

quem possa, em certo sentido da palavra, gostar que haja<br />

enfermidades na Terra. Mas, de outro lado, ninguém<br />

pode imaginar até onde o mundo cairia se não houvesse<br />

doenças.<br />

Então, o homem deve fazer o possível para diminuir o<br />

número de enfermidades, bem certo de que Deus nunca<br />

permitirá que elas desapareçam. E, pelo contrário, pode<br />

Ele dispor que, na medida em que o homem vá vencendo<br />

na luta contra as doenças, vão aparecendo enfermidades,<br />

menos numerosas é verdade, entretanto mais cruéis.<br />

Por quê? Porque Ele não quer que a dor desapareça dentre<br />

os homens.<br />

A própria Igreja, que tanto fez para diminuir os sofrimentos<br />

do homem doente — com os bens do espírito<br />

e do corpo, incitando, estimulando e consolando —,<br />

entretanto sabe que a doença é de uma grande utilidade.<br />

Faz o possível para evitá-la, mas o faz tranquilamente<br />

porque tem ciência de que jamais desaparecerá de modo<br />

completo, e que, portanto, nunca faltarão doenças nesta<br />

Terra.<br />

Assim também é a guerra.<br />

Sacralidade e luta<br />

Então, a esse senso de sacralidade se acrescentou um<br />

colorido militante, pelo qual a minha alma ansiava, e que<br />

se representava pouco nas expressões religiosas que eu<br />

conhecia até essa época.<br />

Lembro-me de que quando os jesuítas falavam de<br />

Santo Inácio como grande combatente no cerco de Pamplona<br />

— eles ressaltavam muito isso —, eu ficava encantado,<br />

embora visse bem que a guerra, dentro da qual a<br />

batalha de Pamplona era um episódio, referia-se a questões<br />

de limites da França com a Espanha e, mais remotamente,<br />

com o Sacro Império; portanto, uma guerra temporal.<br />

Mas era um herói! Quando contavam que Santo<br />

Inácio ficava entusiasmado em ler os romances de Cavalaria,<br />

eu me regozijava.<br />

Quando vi aquele livrinho de Carlos Magno 2 , a minha<br />

alma teve uma sensação de algo de completo, que se lhe<br />

acrescentava com a consideração desse maravilhoso.<br />

10


Por quê? Precisamente porque o sacral sem a luta não<br />

me parecia completo. E, pelo contrário, a fina ponta da<br />

sacralidade parecia simbolizar-se para mim muito bem<br />

na fina ponta de uma espada.<br />

O Protestantismo e a Revolução<br />

Francesa são dessacralizantes<br />

Mais tarde, entrou a ideia da sacralidade ligada à<br />

questão da Revolução.<br />

Eu tinha noções esparsas sobre protestantismo e o detestava,<br />

possuindo em relação a ele um horror intuitivo e<br />

muito profundo.<br />

Lembro-me de que, em certa ocasião, a Fräulein Mathilde<br />

3 precisou falar com alguém dentro de um templo<br />

não sei de que seita protestante construído numa rua não<br />

muito distante de minha casa. Ela entrou levando Rosée<br />

por uma das mãos e a mim pela outra.<br />

Quando me pilhei dentro daquele recinto e percebi<br />

que era uma igreja protestante, sentia horror até de<br />

respirar, por se tratar de uma coisa que não era católica,<br />

contrária à Igreja Católica. E toda a semente protestante<br />

se afigurava ao meu espírito como sendo um horror, algo<br />

satânico, nojento.<br />

Santo Inácio de<br />

Loyola pisando o<br />

demônio - Basílica de<br />

São Pedro, Vaticano<br />

Depois, comecei a ler algumas coisas sobre a Revolução<br />

Francesa. No fundo, embora não se explicitasse isso<br />

no meu espírito, eu via bem que havia um elemento<br />

comum entre as duas Revoluções; não só o que está em<br />

meu livro Revolução e Contra-Revolução, mas algo que,<br />

quando o escrevi, estava no fundo de minha alma, mas<br />

ainda não chegara a explicitar inteiramente: é que ambas<br />

essas Revoluções são dessacralizantes.<br />

As igrejas ou as seitas nascidas do protestantismo têm<br />

doses diferentes de restos de uma sacralidade envenenada,<br />

conspurcada. São restos de bom vinho misturado<br />

com pus e, portanto, falso, adulterado, asqueroso.<br />

O protestantismo é todo ele um resto de sacralidade<br />

dado para tranquilizar as pessoas que, colocadas entre a<br />

negação ou a aceitação completa da sacralidade, acabariam<br />

por optar pela Santa Igreja Católica. Então os protestantes<br />

ofereciam, como uma espécie de mal menor, o<br />

pão feito sei lá de que farinha “leprosa”, que era o pão<br />

da doutrina protestante, em vez da Doutrina Católica, o<br />

mais puro dos pães.<br />

Daí, por exemplo, eles não usarem batina, e uma porção<br />

de outras coisas que a Igreja Católica põe por inteiro.<br />

Eles não colocavam por não terem o estofo do sagrado,<br />

que só a Igreja Católica possui.<br />

E onde havia dessacralização eu me sentia exilado, expatriado<br />

e inimigo de morte!<br />

Na Revolução Francesa também. A sociedade do Ancien<br />

Régime 4 , com os defeitos que eu percebia bem, era<br />

ainda toda feita de um respeito sacral para com pessoas<br />

que, se fossem como as aparências pediam, deveriam se<br />

apresentar de um modo profundamente sacral: protocolo,<br />

etiqueta, maneiras, decoração, etc.<br />

Em relação à Idade Média eu ainda não tinha feito a comparação,<br />

mas, vistas do tempo em que eu vivia então — os<br />

anos 20, com a influência laicista do cinema de Hollywood<br />

—, as coisas do Ancien Régime eram sacralizantes. Em graus<br />

diferentes, mas ao menos comportavam a sacralidade. v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 14/4/1989)<br />

Ben Skála (CC 3.0)<br />

1) Ct 4, 12.<br />

2 ) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se refere ao episódio ocorrido na Estação da Luz<br />

em São Paulo, quando, ainda menino, tomou conhecimento<br />

pela primeira vez da existência de Carlos Magno, ao se deparar<br />

com um livro popular que narrava a história deste Imperador<br />

e de seus pares. Ver <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 8, p. 4-5.<br />

3) Srta. Mathilde Heldmann, preceptora alemã contratada por<br />

Dona Lucilia.<br />

4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França<br />

entre os séculos XVI e XVIII.<br />

11


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Per lucem<br />

ad crucem<br />

AntanO (CC 3.0)<br />

A constatação de nossa insuficiência em face dos<br />

sofrimentos pode nos levar a fugir do caminho da cruz,<br />

indispensável à nossa santificação. Como estarmos<br />

preparados para oferecer, sem pânicos nem desânimos, os<br />

sacrifícios que nos venham a ser pedidos?<br />

Devo tratar nesta conferência a respeito de como<br />

acondicionar a cruz para que a pessoa saiba<br />

andar com ela, entendendo-se desde já como<br />

cruz não apenas os sofrimentos lancinantes que dilaceram<br />

e estraçalham, mas também a vida cotidiana nos<br />

seus aspectos normais, com uma dose de felicidade ou de<br />

bem-estar normal, que não é a alegria de delirar, e as dores<br />

também normais. Portanto, a matalotagem que o indivíduo<br />

precisa levar no caminho da cruz, e como ele deve<br />

ver esse caminho e a suportabilidade da cruz para nele<br />

andar.<br />

Os grandes e os pequenos sacrifícios<br />

Muitos pregadores — não os censuro por isso, acho<br />

normal — quando falam da cruz, querem levar as almas<br />

num só voo para a admiração e a eventual aceitação da<br />

dor no que ela tem de mais lancinante e terrível.<br />

Então dizem: “Eu vou falar da cruz. Olha, São Vicente<br />

sofreu tal martírio assim... Este outro fez isso e suportou<br />

tal situação, etc.” Pergunto: Isso é bom ou não?<br />

Para tratar da questão da cruz é preciso, antes de tudo,<br />

um discernimento dos espíritos, porque de fato a graça<br />

chama a alma para a cruz conforme as ocasiões, os<br />

momentos. Há determinados lampejos em que ela convida<br />

de uma vez a pessoa para o pináculo da cruz, e pode<br />

ser um principiante. Às vezes, ela não chama para o pináculo,<br />

mas vai se revelando lentamente, gradualmente.<br />

Então, pode ser que para um auditório, em certo momento,<br />

em determinada situação, um pregador seja levado,<br />

pelo discernimento dos espíritos, a ensinar a cruz no que<br />

ela tem de mais terrível: “Meus caros irmãos, quereis saber<br />

12


Victor Domingues<br />

o que é a cruz? Ouvi essas palavras: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’<br />

1 ” Começar por aí e produzir um choque. Como também<br />

pode acontecer que inicie pela doutrina dos pequenos<br />

sacrifícios, de Santa Teresinha do Menino Jesus, porque a<br />

cruz é tão divina, tão enorme, tão complexa, que não a pega<br />

quem quer, do jeito que deseja. Cada um é atraído pelo Espírito<br />

Santo, pela graça, a apanhá-la de um jeito. E se pegar<br />

do jeito errado, não entra no caminho da cruz.<br />

Admirar as pessoas mais perfeitas<br />

A grande maioria dos fiéis tem que viver a cruz nas<br />

condições de vida comum, porque, do contrário, a sociedade<br />

temporal desaparece. Isso está ligado à teoria do<br />

estado de perfeição. A perfeição é sempre uma cruz, e<br />

uma cruz insigne. E o estado de perfeição, vivido em toda<br />

a sua autenticidade, é um estado de cruz.<br />

Entretanto, o estado de perfeição deve ser praticado<br />

por muitos, não porém por todos. E esses muitos constituem<br />

uma multidão e ao mesmo tempo uma minoria.<br />

Porque, em absoluto, o número dos que seguem a perfeição<br />

é muito grande. Por exemplo, podemos dizer que a<br />

Igreja tem um número colossal de Santos. Não há exagero<br />

nem mentira nisso. Mas, se for comparado com o número<br />

de homens, é um pingo.<br />

Então, são tantos que se poderia falar que há um número<br />

infindável de Santos. Mas, de outro lado, se poderia dizer<br />

também: é pequeno o número de Santos canonizados.<br />

Primeira Missa do Bem-aventurado Miguel Rua - Turim, Itália<br />

Na perspectiva de que esse número é pequeno, que há<br />

uma quantidade infindável de almas que não são chamadas<br />

para determinada perfeição, mas a admiram, embora<br />

sabendo que não irão adquirir aquela perfeição, elas<br />

devem ter uma espécie de tristeza de não serem chamadas<br />

para aquela perfeição. E só a alma que admirou profundamente<br />

a cruz para a qual ela não é chamada consegue<br />

ser correta.<br />

Aqueles que admiram os mais corretos e os mais exímios<br />

conseguem ser corretos. A partir do momento em<br />

que o indivíduo deixa de ter um amor abrasado, um entusiasmo<br />

pela perfeição para a qual não foi chamado, ele<br />

começa a relaxar.<br />

É um modelo que ele sabe que não tem proporção para<br />

seguir, e fica com certa nostalgia de não poder acompanhar.<br />

Este ponto é muito importante.<br />

Um cuidado ao se levantar<br />

o estandarte da cruz<br />

Então, pode-se pregar a cruz no que ela tem de mais<br />

terrível, tranquilizando as pessoas: “Não se tomem de<br />

um escrúpulo torturante ao verem que não são capazes<br />

disso, mas compreendam que podem amar sem ser tragadas<br />

por esse sofrimento que não lhes será pedido. Ou,<br />

se for pedido — porque não se sabe qual é o futuro do<br />

homem —, vocês receberão outras graças que não têm<br />

agora. Sentirem-se proporcionadas com isso no momento,<br />

não é sua obrigação.” Tenho a impressão<br />

de que, ao levantar o estandarte<br />

da cruz, a primeira precaução é<br />

essa; do contrário, perde-se o rumo.<br />

Lembro-me de uma experiência pessoal.<br />

Eu tinha muita admiração pelos<br />

mártires, mas um medo enorme de passar<br />

pelos sofrimentos que eles tiveram.<br />

E me perguntava: “Você está embevecido<br />

de admiração por eles. Do que vale<br />

essa sua admiração? Eu queria ver se<br />

você, diante de um leão, tomaria a atitude<br />

deles. Não toma! É um fracalhão.<br />

Essa sua admiração é hipócrita!”<br />

Eu sentia que isso me perturbava a<br />

fundo. Parecia uma increpação virtuosa,<br />

tinha seu quê de virtude, mas com<br />

algo mal visto, mal compreendido.<br />

Até que ouvi um padre dizer, de passagem,<br />

diante de mim: “A maior parte<br />

desses mártires tinha a graça no momento<br />

de chegar diante da fera.”<br />

Para mim foi uma descoberta! Comecei<br />

a admirar os mártires sem me<br />

13


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Vemos, de repente, alguém fazer<br />

um sacrifício de que nós não<br />

somos capazes: Admiremos,<br />

sem remorsos nem increpações<br />

tontas contra nós mesmos.<br />

Ao lado, martírio dos cartuxos de Roermond - Museu do<br />

Prado, Madri, Espanha. Abaixo, decapitação das Santas<br />

Catarina e Bárbara - Museu Nacional, Zurique, Suíça<br />

Helvetiker (CC 3.0)<br />

Macarrones (CC 3.0)<br />

causar nenhum arrepio. Isso eu vi repetido, depois, em<br />

mil situações e de mil modos.<br />

Portanto, eu colocaria como primeiro problema entender<br />

bem isso. Com o seguinte acréscimo: aquilo que<br />

se dá com os sofrimentos lancinantes, ocorre também<br />

com os padecimentos menores que conhecemos na vida<br />

de todos os dias. Vemos, de repente, alguém fazer um<br />

sacrifício de que nós não somos capazes. Admiremos! E<br />

admiremos sem remorsos, nem increpações tontas contra<br />

nós mesmos.<br />

Alguém poderia dizer: “É bem verdade, essa cruz no<br />

momento não tenho que carregar. Eu terei que carregar<br />

algum dia? Como vai ser de mim quando precisar levá-<br />

-la?”<br />

A resposta é a seguinte: Não se ponha o problema.<br />

Admire debandadamente e sem restrições, e peça a graça<br />

— caso se ponha para você esse sofrimento — de ter a<br />

coragem de enfrentá-lo, mas sem certa forma de angústia<br />

que faz mal à alma.<br />

O cálice por onde algo de superior<br />

penetra em nós<br />

Quem de nós seria capaz de arcar com o sofrimento<br />

que teve Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa<br />

Senhora? Não há um! Nem de longe nós temos<br />

substância para isso. Mas, de tanto admirar aquilo<br />

de que não somos capazes, algo daquela graça entra<br />

em nós.<br />

A admiração é o cálice por onde a coisa superior entra<br />

em nós.<br />

E, na medida em que eu admiro a capacidade de outro<br />

sofrer, entra em mim essa capacidade. Não quero dizer<br />

que entre tanto quanto há nele, mas, dentro de minhas<br />

proporções, recebo esta capacidade à força de admirar.<br />

A alma capaz de admirar é aberta a todas as estrelas, a<br />

todos os sóis. A alma fechada à admiração está entregue<br />

a si mesma. Da alma invejosa, então, nem sei o que dizer!<br />

Esta apedreja, insulta as estrelas!<br />

Como entrada no caminho da cruz, devemos admirar<br />

a cruz, naturalmente antes de tudo o Crucificado e a<br />

Corredentora, mas não nos limitemos a exemplos históricos.<br />

Procuremos ver a cruz naqueles que, em torno de<br />

nós, praticam o amor à cruz.<br />

Porque ficar no mundo do que passou, é permanecer<br />

no zero. Eu só entro em nexo com aquilo que passou<br />

quando admiro algo de congênere que ocorre em torno<br />

14


de mim, e por aí chego até o passado. A Paixão<br />

de Nosso Senhor não passou, pois de algum<br />

modo ela é permanente.<br />

Então deveríamos olhar admirativamente<br />

em torno de nós. E se não temos o costume de<br />

fazer exame de consciência para saber o que se<br />

passa em nossas almas, entram pedregulhos de<br />

inveja que causam relutância em relação a essas<br />

considerações. Não tenhamos ilusões, porque<br />

entram. A inveja é tal que, ou temos a certeza<br />

de tê-la expulsado, ou ela habita em nós.<br />

Não é alentador, mas é a pura verdade. Tratemos<br />

de vencê-la, portanto, e procuremos admirar,<br />

pois temos importantes razões para querer<br />

que nossas almas progridam nisso.<br />

Pedir forças a Nossa Senhora<br />

Se fosse possível fazermos uma meditação<br />

sobre nossa própria cruz, precedida de uma<br />

cuidadosa preparação na linha do que estou<br />

dizendo, sairíamos da pura teoria e teríamos<br />

condições para entrar no caminho da cruz. Se<br />

não for assim, não entramos verdadeiramente.<br />

Pode acontecer que alguém tenha diante<br />

de si um sacrifício que não tem coragem de fazer.<br />

E o pior é o seguinte: não se trata de algo<br />

extraordinário, mas está abaixo das reais resistências<br />

do indivíduo. Porém, por ser ele um<br />

poltrão, não tem forças.<br />

Então, se sou um poltrão, rezo: “Salve Rainha,<br />

Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança<br />

nossa, salve!” Vou pedir para Ela me dar as forças<br />

que eu deveria ter e não possuo, que Ela tenha pena<br />

de mim. Vou rezar, rezar, e acabarei obtendo. Mas nunca<br />

devo me aproximar da cruz em seco, porque isso costuma<br />

causar muitos desvios!<br />

Com essa postura a cruz se torna manuseável. Fora<br />

disso, não. E o exemplo foi Nosso Senhor, o Qual como<br />

que Se manifestou sem proporção com a Cruz d’Ele, a tal<br />

ponto que disse “Pater, si fieri potest...” 2 ; e a oração d’Ele,<br />

como não podia deixar de ser, foi gratíssima a Deus Pai<br />

que Lhe mandou um Anjo. E depois o Cireneu no percurso<br />

da Via Crucis, que O ajudou a carregá-la; a Verônica;<br />

o encontro com Nossa Senhora, etc.<br />

Tudo isso é muito matizado, e sem essas matizações<br />

nós fugimos da cruz, o que é um disparate, pois se Deus<br />

matiza tanto para nós o caminho do sofrimento, por que<br />

havemos de imaginá-lo sem matizes?<br />

A meu ver, para percorrermos esse tema sem constrição<br />

para nossas almas, seria absolutamente necessário<br />

considerar esses matizes como pórtico do tema da cruz.<br />

Santíssimo Cristo da Coluna - Tenerife, Espanha<br />

Cada pessoa é chamada para<br />

um grau de perfeição<br />

Outro lado que ainda está no condicionamento da via<br />

da cruz é o seguinte: essas multidões de pessoas a quem<br />

nos referimos acima, aparentemente não são chamadas<br />

à perfeição. Por quê? Seria pelo fato de estarem destinadas<br />

à sociedade temporal? Esse é um erro.<br />

É verdade que todos os que pertencem a Ordens religiosas<br />

são chamados para o estado de perfeição. O religioso<br />

que, consciente e voluntariamente, deixe de tender<br />

para a perfeição comete pecado grave. Essa é a doutrina<br />

da Igreja.<br />

Contudo, se não houver entre os membros da sociedade<br />

temporal um bom número de pessoas que, dentro das<br />

condições próprias ao âmbito civil, pratiquem intencionalmente<br />

a perfeição, a sociedade temporal fenece, perece.<br />

De maneira tal que não devemos identificar a perfeição<br />

com a condição eclesiástica ou religiosa, e a imperfeição<br />

consentida e desavergonhada com a sociedade<br />

Ubayrbd (CC 3.0)<br />

15


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

temporal. Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição.<br />

Para o grau de perfeição dos religiosos, a grande<br />

maioria não é chamada, mas sim a um determinado teto<br />

de perfeição, dentro da vida que leva, e para isso deve<br />

tender.<br />

Tomemos, por exemplo, a Igreja de São Basílio, em<br />

Moscou, com aquelas cúpulas. Aquilo poderia ser o gráfico<br />

das perfeições. Algumas perfeições são enormes,<br />

outras são pequenas, como os torreõezinhos que têm<br />

na ponta uma cúpula pequenininha também. Assim é a<br />

multidão das almas: cada uma é como um torreão que<br />

tem no alto uma cúpula, ou seja, uma perfeição própria<br />

para a qual deve tender.<br />

Considerar que alguém pode até chegar ao Céu sem<br />

passar pelo Purgatório, por ter vivido retamente na sociedade<br />

temporal para uma perfeição menor que foi<br />

atingida, faz com que a pessoa esteja animada por ter<br />

encontrado para si um ideal muito belo. Com isso, creio<br />

que a alma fica arejada e balizada para entrar no caminho<br />

da cruz.<br />

Esse caminho é lindo e cheio de surpresas, como uma<br />

navegação num mar ignoto, que apresenta as borrascas<br />

e as ciladas mais tenebrosas, mas também os panoramas<br />

mais magníficos.<br />

Deus nos pede o sacrifício, mas nos<br />

sustenta com sua graça<br />

Assim, há certas coisas que,<br />

para o comum das pessoas,<br />

constituiriam um sacrifício<br />

medonho a praticar;<br />

entretanto, quando<br />

se é chamado pela<br />

graça a uma vocação,<br />

a alma se<br />

enche de alegria e<br />

de consolação.<br />

Exemplifico<br />

com a Gruta de<br />

Lourdes. Há voluntários<br />

que se<br />

esmeram em dar<br />

banho aos doentes<br />

em piscinas apropriadas.<br />

Alguém diria: “Olhe,<br />

você vai ter contato com<br />

o que há de mais repugnante,<br />

mais terrível. Você precisará<br />

mexer naquela água de banhos<br />

imundos, onde há as cascas de<br />

Valerii Tkachenko (CC 3.0)<br />

Catedral de São Basílio - Moscou, Rússia<br />

feridas, o pus de todos os que por ali passaram e os micróbios<br />

mais ameaçadores de todas as doenças. Aquelas<br />

piscinas são anti-higiênicas no sentido mais violento e literal<br />

da palavra, e você porá as suas mãos limpas, que<br />

desinfetou antes, naquela água para lavar aqueles doentes!<br />

Isso será para você uma tortura todos os dias.”<br />

Para quem se sentiu chamado por uma graça para fazer<br />

isso, não é uma tortura. Vá lá, mexa naquilo, a graça<br />

vai mexer na sua alma de outro jeito e você dará os banhos<br />

com naturalidade. Não considere, portanto, a situação<br />

como ela não vai ser.<br />

Com muitas modalidades de sofrimento se dá isso.<br />

Sofre-se muito, mas não se percebe que a Providência<br />

pôs uma suavidade na alma a propósito daquele padecimento,<br />

de maneira que, quando o sofrimento acabou,<br />

tem-se gosto de se lembrar dele. E às vezes vai-se ao lugar<br />

onde se padeceu, para dar graças a Nossa Senhora<br />

por aquele sofrimento.<br />

Convém, pois, cada um compreender que não deve<br />

confrontar o sofrimento futuro com o seu estado de espírito<br />

atual, porque, quando chegar a hora de sofrer, Maria<br />

Santíssima obterá as forças. Ainda mais, Ela, que é<br />

Mãe de Misericórdia, providenciará os meios para se padecer<br />

aquilo potavelmente.<br />

Diz-se que quando Deus permite que fiquemos doentes,<br />

Ele mesmo prepara a cama para nos deitarmos.<br />

Existe uma doçura especial no âmago<br />

do sofrimento, quando nos lembramos<br />

de que ele nos foi dado<br />

por Deus: é o travesseiro<br />

suave que a Mãe de Misericórdia<br />

nos preparou<br />

para aguentarmos<br />

tal padecimento.<br />

Vamos adiante<br />

porque, quando<br />

isso terminar,<br />

teremos saudades<br />

desses dias.<br />

Parece-me muito<br />

importante considerar<br />

isso também.<br />

São das tais graças<br />

como a de Jesus<br />

com os discípulos<br />

de Emaús: no momento<br />

de ir embora, revela-Se.<br />

Na hora do sofrimento cessar,<br />

percebemos que uma mão estava<br />

nos segurando, e ficamos encantados!<br />

16


Sofre-se muito, mas não se<br />

percebe que a Providência<br />

pôs uma suavidade na<br />

alma a propósito daquele<br />

padecimento, de maneira<br />

que, quando o sofrimento<br />

acabou, tem-se gosto<br />

de se lembrar dele.<br />

Joao Paulo Rodrigues<br />

Roland Darré (CC 3.0)<br />

Aspectos da Basílica<br />

de Lourdes, França<br />

Aversão à atitude de Múcio Cévola<br />

Entretanto, as pessoas que tratam habitualmente<br />

da dor não a apresentam assim, mas à maneira de<br />

um Múcio Cévola 3 . Sempre tive aversão àquele tipo<br />

de atitude. Queimar minha mão? Não! Fico apavorado,<br />

tenho horror ao fogo e não vou pôr nele meu braço!<br />

Porém, se eu receber uma graça especial, ponho.<br />

Mas numa perspectiva católica, como São Lourenço<br />

na grelha.<br />

Há, portanto, atenuantes, acolchoados que nos conduzem<br />

àquilo. Não nos apavoremos! A entrada no caminho<br />

do sofrimento é, ao mesmo tempo, uma resolução<br />

heroica e viril, mas também uma ponderação dos mil<br />

acolchoados que entram dentro disso. Do contrário, não<br />

se viveu e não se sofreu catolicamente.<br />

Fizemos juntos uma preparação para a entrada da<br />

cruz em nossas vidas e para o modo pelo qual devemos<br />

ver a cruz. Foi apresentado um equilíbrio entre a luz e a<br />

cruz, de tal maneira que se poderia dizer per crucem ad<br />

lucem 4 , mas também per lucem ad crucem, que é o reverso<br />

da medalha que poucas pessoas consideram. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 6/12/1985)<br />

1) Mt 27, 46.<br />

2) Do latim: “Pai, se for possível...” (cf. Mt 26, 39).<br />

3) Conta Tito Lívio, historiador romano, em sua obra História<br />

de Roma desde a sua fundação, que em 508 a.C. Roma foi<br />

cercada por um rei etrusco de nome Porsena. Ante o perigo,<br />

um jovem romano chamado Gaio Múcio Cévola se voluntariou<br />

a matar o rei. Mas, ao entrar no acampamento inimigo,<br />

foi aprisionado. Levado ante o rei e questionado sobre a estratégia<br />

dos romanos, Gaio disse: “Sou um cidadão de Roma<br />

e vim para matar um inimigo ou morrer com valentia, e<br />

muitos como eu estão dispostos a fazer o mesmo.” O rei o<br />

ameaçou de queimá-lo vivo se não contasse detalhes dos planos<br />

romanos. Então, Gaio Múcio colocou sua mão direita<br />

em um fogo que havia ao seu lado, deixando-a queimar até<br />

os ossos, diante do rei e de outros nobres assombrados com<br />

tal ato de valentia.<br />

4) Do latim: pela cruz à luz.<br />

17


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Carcassone, França<br />

Anoush K (CC 3.0)<br />

Origem do direito<br />

consuetudinário - I<br />

Durante a Idade Média, e mesmo até a Revolução Francesa,<br />

as relações sociais eram baseadas na verdadeira amizade,<br />

entendida como a Doutrina Católica a conceitua. Daí se<br />

originavam costumes que regulavam a vida social.<br />

Evidentemente, a sociedade orgânica tem como<br />

matéria-prima homens, e, se não estudarmos essa<br />

organicidade no campo das relações privadas<br />

de homem a homem, não teremos apanhado a coisa na<br />

sua maior profundidade. De maneira que me pareceu<br />

que valeria a pena estudarmos essas relações, como começam,<br />

como brotam de homem a homem, para depois<br />

irmos mais adiante.<br />

O verdadeiro benquerer gera a amizade<br />

Não sei se esse pressuposto está bem explicado, porque<br />

do contrário pode causar certa estranheza eu descer<br />

de nível, mas, como verão, não é descida de nível e sim<br />

aprofundamento.<br />

No que consiste esse analisar relações de homem a<br />

homem? Vou entrar logo na realidade prática, e posteriormente<br />

a examinaremos.<br />

18


Penso que quem fizesse um estudo mais ou menos<br />

aprofundado dos assuntos da Idade Média,<br />

chegaria à conclusão de que nessa época as relações<br />

de homem a homem, em qualquer terreno, geravam<br />

uma coisa — quando elas se desenvolvessem normalmente<br />

— que hoje está quase desaparecida: a amizade.<br />

Uma amizade condicionada à natureza do assunto<br />

que os tinha levado a entrarem em contato. Mas um<br />

contato correto, mais ou menos longo, gerava necessariamente<br />

a amizade.<br />

Por exemplo, dois homens que tomam contato entre si<br />

porque têm uma profissão e a exercem em comum. Não<br />

se compreenderia que eles exercessem essa profissão, digamos,<br />

durante dez anos sem motivo sério de queixa um<br />

com o outro, e que um não reconhecesse no outro as qualidades<br />

de bom católico, etc., e não nascesse daí um sentimento<br />

de afinidade, que não precisaria ser necessariamente<br />

pessoal, mas aquele tipo de afinidade que decorre<br />

do fato de estarem marcados pela mesma profissão.<br />

Pode haver uma afinidade de caráter religioso-moral.<br />

Dois homens reconhecem um no outro um bom pai de<br />

família respeitável, um católico prestimoso, que efetua<br />

bons serviços à paróquia, que nas relações comuns não<br />

mente, cumpre a palavra, paga bem as dívidas que deve<br />

pagar, ou não tem dívidas, é econômico, parcimonioso,<br />

está construindo razoavelmente sua vida. Ainda que<br />

não tenham afinidades pessoais, isto gera entre eles uma<br />

afinidade profissional, que redunda numa amizade, porque<br />

o apreço recíproco de qualidades leva as pessoas a<br />

uma confiança, a um verdadeiro benquerer, o qual gera<br />

uma amizade.<br />

Amizade de caráter ontológico<br />

Numa sociedade intensamente católica, onde a forte<br />

maior parte das pessoas vive em estado de graça, e praticando<br />

bem os Mandamentos, etc., essas amizades nascem<br />

do contato profissional ou de outros contatos. Vejamos<br />

diferentes exemplos.<br />

Dois outros homens se conhecem porque fazem parte,<br />

há muitos anos, da mesma Irmandade que se consagra ao<br />

culto do Padroeiro da cidade. Então, naturalmente se estabelece<br />

o mesmo mecanismo de compreensão mútua e<br />

eles se estimam. Ou será porque são parentes, e aí o caso<br />

é muito mais sério, pois na Idade Média se compreendia<br />

— e é a doutrina da Igreja — que as relações de família<br />

devem gerar, independente das afinidades pessoais, uma<br />

amizade de caráter ontológico, metafísico.<br />

Ao pai e à mãe — e os filósofos, os moralistas dão esta<br />

razão — deve-se homenagem e respeito, ainda quando<br />

eles sejam ruins, porque são nossa causa; e o efeito deve,<br />

filosoficamente, reverência à causa. E por isso nasce daí<br />

uma série de bons ofícios dos filhos para com os pais, do<br />

respeito típico do efeito para com a causa, que se poderia<br />

fazer sentir assim:<br />

Imaginemos um artista que esculpe em pedra uma<br />

imagem de um homem, e logo depois fosse dado a ela o<br />

dom de inteligir e mover-se; e que a primeira coisa que a<br />

estátua fizesse era dar uma bofetada no escultor. Nós teríamos<br />

a impressão de que essa estátua violou a ordem<br />

das coisas. Por quê?<br />

Aquele que a esculpiu não é o pai, mas a causa, e sendo<br />

a causa daquela escultura, esta não pode ultrajar a causa.<br />

É uma razão de caráter profundo. E, dessa maneira também,<br />

a pertencença à mesma causa, quer dizer, vários provirem<br />

da mesma causa, cria entre eles um nexo. E o que se<br />

pode dizer do pai com os filhos, deve-se afirmar, guardadas<br />

as devidas proporções, dos avôs, bisavôs e até dos trisavôs,<br />

se alguém chegasse a conhecê-los; e, portanto, daquela<br />

ascendência à qual nós somos vinculados — mais ou<br />

menos remotamente, mas vinculados — por causa de uma<br />

fonte, uma origem comum da qual procedemos.<br />

Confiança superaguda<br />

Aí se acresce outra coisa: na Idade Média, em geral,<br />

toda a família tinha a mesma profissão ou profissões<br />

afins. Se, por exemplo, o pai era sapateiro, e pertencia<br />

à corporação dos sapateiros, o gosto dele era que o filho<br />

fosse sapateiro como ele — hoje não, o sapateiro quer<br />

que o filho seja advogado, médico ou engenheiro — e<br />

que tivesse até vários filhos sapateiros, que em diversos<br />

locais da cidade abrissem sapataria.<br />

Mais tarde, já no início do Ancien Régime 1 , quando começavam<br />

a aparecer as sociedades comerciais, os familiares<br />

constituíam firmas, que antigamente em São Paulo<br />

eu conheci muito: “Fulano e irmãos”, ou “Fulano e filhos”,<br />

ou então “Família tal”, como donos. É o nome da<br />

firma que explora o negócio, todos trabalham juntos e<br />

têm um vínculo comum na Igreja Católica, mais firme,<br />

mais forte, mais vital do que todos os outros vínculos. E<br />

junto com esse vínculo, o vínculo da família no seu fundamento<br />

filosófico, como acabei de expor.<br />

Em terceiro lugar, o vínculo de família criando normalmente<br />

afinidades que existem entre parentes, pela<br />

mesma educação, pelo mesmo temperamento, modo de<br />

ser, às vezes até pela semelhança dos rostos.<br />

Depois, todas as outras relações sociais tendendo, na<br />

medida em que se prolongam, a formar vínculos mais<br />

profundos que se chamam amizades. De maneira que<br />

enquanto na vida contemporânea o nexo que prende uns<br />

homens aos outros são interesses, na vida antiga o que<br />

prendia era a amizade. Amizade podendo às vezes jogar<br />

contra o interesse.<br />

19


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Quer dizer, um amigo pode definir-se como aquele<br />

que está disposto a sacrificar o interesse por seu amigo,<br />

a confiar nele, e confiar não cegamente — a expressão<br />

“confiança cega”, bem analisada, é estúpida —, mas<br />

é uma confiança superaguda, que foi a tal ponto que levou<br />

a perceber no outro as razões pelas quais ele merece<br />

confiança. A confiança não é um ato de cegueira; quando<br />

não é uma coisa de um tonto, é um ato de perspicácia.<br />

Isto é algo tão diferente do mundo de hoje, que nos é<br />

meio difícil compreender como seria uma sociedade vivendo<br />

assim, mas creio que sem esse elemento fundamental<br />

a sociedade orgânica não é possível.<br />

A necessidade de negócios, etc., tanto quanto a natureza<br />

— a necessidade muitas vezes é natural — geram amizades;<br />

e toda relação humana que se desenvolve normalmente,<br />

e de um modo um tanto prolongado, produz amizade.<br />

A verdadeira caridade<br />

Um outro ponto é que as amizades são expansivas por<br />

si, de maneira que há um provérbio português, que passou<br />

para o Brasil: Amigo de meu amigo, meu amigo é.<br />

Quer dizer, o círculo de amigos tende a espraiar-se, dilatar-se<br />

e, numa cidade pequena, chega a abranger toda a<br />

cidade como se fosse uma família só.<br />

De permeio com isso, existiam numerosas Ordens Religiosas<br />

na Idade Média, sem falar dos padres seculares,<br />

com esse poder de atração sobrenatural que possui<br />

a Igreja, fazendo com que numa cidadezinha, por exemplo,<br />

com vinte mil habitantes, possa facilmente ter dois,<br />

três conventos sem que ninguém julgasse demais. Conventos<br />

vivendo de terras que lhes foram doadas, as quais<br />

os religiosos mandavam cultivar, de donativos que recebiam,<br />

de direitos de cobrar impostos, que o senhor feudal<br />

da cidade, ou o governo municipal, davam-lhes; eles<br />

viviam disso e mantinham obras de caridade. E estas<br />

eram outro circuito de amizade, porque se entendia que<br />

o homem perfeitamente caridoso não é só o que manda<br />

doações para a obra de caridade, mas o que visita os doentes,<br />

e em geral os que sofrem.<br />

Por exemplo, no ambiente da Idade Média, uma pessoa<br />

sabe que Fulano, seu colega, tem um filhinho que<br />

nasceu cego; o pai está fazendo o possível para curá-lo,<br />

mas não consegue e sofre muito com isso. Então, a pessoa<br />

aparece num domingo na casa desse colega, com o<br />

seu próprio filhinho para brincar com o filhinho cego do<br />

outro, explicando-lhe: “Você vai brincar com ele que é<br />

cego, precisa tomar cuidado, ter pena porque você um<br />

dia pode ficar cego também.”<br />

O pai do menino cego via este passar uma tarde entretida,<br />

e sabia que o amigo estava exigindo um sacrifício de seu<br />

próprio filho, em benefício do filho dele. Podemos imaginar<br />

o vínculo que isso cria numa sociedade medieval!<br />

Creio que sem nós restaurarmos essa noção das relações<br />

pessoais, todo o conceito de sociedade orgânica não<br />

se apanha bem, fica uma coisa ao mesmo tempo muito<br />

bonita, mas tem-se a impressão de que algumas raízes ficam<br />

de fora do chão.<br />

A doçura de viver<br />

Essas considerações são altamente distensivas dos nervos.<br />

E, de outro lado, não apresentam a família como um<br />

cárcere. É todo um ambiente que se desdobra: os parentes,<br />

O amigo está<br />

disposto a sacrificar<br />

seus interesses pelo<br />

outro a ponto de<br />

perceber as razões<br />

pelas quais ele<br />

merece confiança.<br />

Francisco Lecaros<br />

Bayard arma cavaleiro<br />

a Francisco I na batalha<br />

de Marignan - Castelo<br />

de Blois, França<br />

20


depois há relações parecidas com as que se têm com os parentes,<br />

uns amigos tão próximos que são como parentes; depois<br />

os mais estranhos. Isto é grande como o mar que vemos<br />

longe, perto, em várias distâncias, e nos regalamos de observá-lo<br />

nessas diversas posições. Assim é essa espécie de mar<br />

de amizade, mas de católica boa vontade que se espraia por<br />

todo um ambiente, e que é propriamente a douceur de vivre 2 .<br />

Eu queria que lessem Gens de la vieille France, do Lenotre<br />

3 — não é mais a Idade Média, mas a douceur de<br />

vivre existente na França antes da Revolução Francesa,<br />

cuja explicação se encontra aqui.<br />

Por exemplo, um homem que possuía uma hospedaria<br />

na qual uma família inglesa hospedou-se por uma noite<br />

para prosseguir viagem no dia seguinte rumo a Paris.<br />

O dono da hospedaria e o inglês conversaram e fizeram<br />

muito boas relações. Na hora de pagar as despesas, o dono<br />

cobrou uma quantia que o inglês achou pequena e<br />

quis pagar mais; o proprietário não concordou, saiu uma<br />

discussão amistosa entre os dois, mas afinal ele cedeu e<br />

cobrou mais, e o inglês pagou.<br />

Quando o inglês estava longe, ele precisou de alguma<br />

coisa que estava no porta-malas da carruagem, abriu-o e<br />

encontrou uma dúzia de garrafas de vinho que o francês<br />

tinha ali colocado às ocultas…<br />

De onde vem isto? É da possibilidade de dois homens<br />

se encontrarem e terem de fato se formado vínculos de<br />

tão boa vontade recíproca, que na simples passagem<br />

criava um relacionamento deste tipo.<br />

Um exemplo de autêntica amizade<br />

Meu avô tinha terras pelo sistema clássico com que<br />

os paulistas antigos faziam fortuna, quer dizer, os pais<br />

dele trabalhavam em São Paulo e conseguiam dinheiro<br />

exercendo várias profissões. Quando podiam, eles<br />

compravam extensões de terra enormes, situadas longe,<br />

a dois, três, quatro ou cinco dias de viagem da capital,<br />

em lugares completamente ermos, onde a terra<br />

era baratíssima. Eles educavam os filhos aqui e, quando<br />

concluíam os estudos, o pai lhes dava um dinheirinho<br />

e dizia:<br />

— Você deve ir para o interior, no limite em que a civilização<br />

chegou, e vai exercer a sua função lá. Eu lhe<br />

dou estas terras e, com o dinheiro que economizar, vai<br />

fazer uma fazenda para você lá, de maneira que você, hoje<br />

que não tem nada, morre fazendeiro.<br />

Isso, aliás, deve ter acontecido nos países da América<br />

do Sul que tinham terra sobrando, e o sistema provavelmente<br />

foi mais ou menos esse.<br />

Meu avô se formou na Faculdade de Direito e a minha<br />

avó tinha herdado do pai terras muito grandes, suficientes<br />

para formar uma fazenda esplêndida.<br />

Ele era muito bom advogado e fez dinheiro rapidamente,<br />

exercendo a profissão. E, à medida que ganhava<br />

dinheiro, foi montando uma fazenda, e assim tocava a<br />

vida. Até que um dia passou pelo escritório dele um senhor<br />

— o qual era seu amigo desde o tempo de criança,<br />

e que o Imperador tinha elevado a Barão de Araraquara<br />

— e lhe disse:<br />

— Totó…<br />

O meu avô chamava-se Antônio, e seus amigos íntimos<br />

o chamavam de Totó.<br />

— Totó, eu estive vendo sua fazenda.<br />

— Que tal?<br />

— Olhe, você é muito bom advogado, mas é um desastre<br />

como fazendeiro. Sua fazenda é a mais mal montada<br />

que pode haver, porque está gastando lá um dinheiro<br />

que não fica representado pelo que você despende. Você<br />

está se enterrando com isso.<br />

— Mas o que vou fazer; não tenho jeito para dirigir<br />

aquilo.<br />

— Se você quiser, eu tomo conta de sua fazenda e lhe<br />

entrego pronta daqui a alguns anos. Basta o seguinte: à<br />

medida que eu for lhe mandando as contas, você vai me<br />

enviando dinheiro para aplicar lá.<br />

O meu avô aceitou, e tinha a delicadeza de não lhe<br />

perguntar como ia fazer. Ele também não dizia.<br />

Ao cabo de tantos anos, ele apareceu e perguntou:<br />

— Totó, quando é que você vai visitar a sua fazenda?<br />

— Quando você quiser.<br />

Marcaram o dia e foram. Estava uma fazenda primorosa,<br />

valendo muito bom dinheiro, por causa do trabalho<br />

do Barão de Araraquara ali. Ele fez isso sem cobrar nada<br />

e foi amigo do meu avô até morrer.<br />

Isso era uma amizade nascida no colégio em que estudaram.<br />

Mas como no colégio se formava tanta amizade?<br />

Por causa de um ambiente; e o ser colega, uma coisa<br />

completamente irrelevante na vida de hoje, gerava frequentemente<br />

amizade.<br />

O que decorria daí? Formava-se com muita facilidade<br />

toda espécie de grupos sociais.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência<br />

de 3/9/1991)<br />

1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França<br />

entre os séculos XVI e XVIII.<br />

2) Do francês: doçura de viver.<br />

3) G. Lenotre, pseudônimo de Louis Léon Théodore Gosselin<br />

(*1855 - †1935). Historiador e escritor dramático francês.<br />

21


De Maria nunquam satis<br />

Sublime intimidade<br />

entre o Menino e a Mãe<br />

Aplicando o senso católico e o discernimento dos espíritos ao<br />

comentar o afresco de Nossa Senhora do Bom Conselho de<br />

Genazzano, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sonda as encantadoras profundidades do<br />

convívio entre o Menino Jesus e sua Mãe santíssima.<br />

N<br />

ossa Senhora do Bom Conselho se apresenta<br />

a nós com uma invocação que, à primeira vista,<br />

talvez não pareça ter muita relação com o<br />

quadro. Este representa uma Rainha de um pequeno país<br />

balcânico, o que se nota na figura, nos ornamentos e,<br />

mais ainda, no tipo marcadamente oriental, com os olhos<br />

um pouco em amêndoa, e voltados para baixo.<br />

Ela está com o Menino nos braços e numa atitude<br />

de muita intimidade, em que se tem impressão de que<br />

Ela esqueceu que é Rainha e Ele esqueceu que é Rei!<br />

Não que hajam pedido demissão ou abdicado da realeza.<br />

Mas, no momento, aquilo que está no fundo do espírito,<br />

na primeira plana da atenção e do modo de sentir, é o fato<br />

de que Ela é Mãe e Ele é Filho!<br />

Profundeza de sentimento e de pensamento<br />

Mais ainda — e é uma das coisas que mais me atrai<br />

no quadro —, há uma profundidade na intimidade de<br />

relacionamento, pela qual se sente até o fundo da alma<br />

d’Ela: Ela é Mãe, e Mãe daquele Filho, quer bem àquele<br />

Filho; e até o fundo da alma d’Ele: Ele é Filho, e Filho<br />

daquela Mãe! Há entre Eles uma união de alma, que explica<br />

a tranquilidade e quase a imobilidade daquele afeto.<br />

Ou seja, é um afeto que chegou tão ao fundo, que Eles<br />

não têm nada para dizer entre Si. Estão quietos e apenas<br />

querendo-Se bem, mais nada, como quem nota que,<br />

de parte a parte, o conhecimento e o afeto mútuos chegaram<br />

até o fim. E que, portanto, não há mais o que considerar.<br />

É só fruir uma bem-aventurada delícia daquele<br />

mútuo entendimento e mútuo estar juntos!<br />

Nesse ponto, o artista foi muito delicado porque, pintando<br />

o Menino com todas as feições de criança daquela<br />

idade, e nada de comum com o hominho precoce, vê-<br />

-se n’Ele uma profundeza de sentimento e de pensamento,<br />

que o homem feito não tem. E que corresponde inteiramente<br />

à Doutrina Católica sobre o Homem-Deus.<br />

A unidade das naturezas divina e humana na mesma<br />

Pessoa traz, como consequência, que aquele Menino, daquela<br />

idade, concebido sem pecado original, e que, portanto,<br />

não passou por nenhuma das debilidades e das —<br />

eu digo no sentido etimológico latino — imbecilidades,<br />

das fraquezas da infância, tenha a profundidade do sentir.<br />

Ele está tão consciente do que é uma mãe, do que é<br />

aquela Mãe, quais as profundezas de alma que Ela oferece<br />

a Ele; e Ele entra tão a fundo nessas profundezas que<br />

se põe na mão d’Ela como uma criança!<br />

Quadro que tem um voo<br />

sobrenatural extraordinário<br />

Com um sublime paradoxo: Ele é criança para tudo,<br />

exceto para entender e querer as coisas sublimes, extraordinárias.<br />

De maneira que não me espanta que Ele quisesse<br />

precisar d’Ela para os serviços mais modestos. Porque<br />

é assim que se compagina a condição de criança no<br />

Menino-Deus. E o quadro exprime isto admiravelmente.<br />

É uma obra de arte mediana, mas tem um voo sobrenatural<br />

extraordinário!<br />

O afresco nos dá bem a noção da relação entre Eles. O<br />

modo como Nossa Senhora O carrega é o de uma pessoa<br />

que leva um tesouro de um valor infinito; mas é uma pessoa<br />

muito generosa. Se supusermos um indivíduo levan-<br />

22


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

do um tesouro, nós o imaginamos agarrado ao tesouro, e<br />

voltado a impedir que alguém o roube; e sua atitude é de<br />

quem diz para qualquer um: “Isto é meu, não é seu! Não<br />

chegue perto e não amole, porque é meu!”<br />

Nossa Senhora não. Ela O segura com muito cuidado,<br />

muita delicadeza, de maneira tal que nada se passa<br />

n’Ele, ou em torno d’Ele, que Ela não note imediatamente;<br />

uma vigilância materna dulcíssima! Mas Ela não deixa<br />

ver a menor preocupação de que Lhe tirem o tesouro.<br />

Ela sabe que é desses tesouros que quando se compartem<br />

não se dividem. E uma vez dado, ele fica inteiramente<br />

com quem deu, e inteiramente a quem foi concedido.<br />

De maneira que, sem propriamente mostrar o Menino, a<br />

própria posição do rosto d’Ela foi calculada com cuidado<br />

para que não ocultasse nada da face do Menino. E que o<br />

Menino ficasse em primeiro plano e Ela no segundo.<br />

23


De Maria nunquam satis<br />

João Dias<br />

E, pelo respeito e pela seriedade tranquila, distendida<br />

e afetuosa com que Ela O carrega, vê-se que Ela tem<br />

uma noção inteira de que está levando o Filho de Deus.<br />

E que O adora com o mais profundo respeito.<br />

Mas, de outro lado, Ela tem a sensação de estar de<br />

tal modo penetrada pelo afeto d’Aquele a quem Ela respeita,<br />

que Se sente desembaraçada para, sem nenhuma<br />

vacilação, nenhum acanhamento, dar ordens ao seu próprio<br />

Deus. De maneira que Ela delibere quando é hora<br />

de deitá-Lo ou tirá-Lo do Presépio; se é hora de dormir<br />

ou não. E Ela, sabendo que é nada, ou como que nada,<br />

para o Deus d’Ela diz: “Meu Deus, chegou a hora<br />

de dormir!” E Ele, cuja natureza humana está hipostaticamente<br />

ligada à natureza divina, a Segunda Pessoa da<br />

Santíssima Trindade, fecha os olhos e dorme, porque sua<br />

Mãe mandou.<br />

Desdobramentos da Encarnação<br />

Todas essas possibilidades estão contidas no “et Verbum<br />

caro factum est, et habitavit in nobis”. Quando São<br />

João diz no prólogo de seu Evangelho: “O Verbo de<br />

Deus se fez carne, e habitou entre nós” 1 , todo esse celeste<br />

turbilhão de relações vertiginosas, admiráveis e dulcíssimas<br />

será contido na Encarnação, são desdobramentos<br />

da Encarnação.<br />

Não conhecemos detalhes do convívio entre Eles, mas<br />

é possível, por exemplo, que Ele, com um pouco mais de<br />

idade, na hora de brincar — e era Deus querendo brincar!<br />

— não tenha dito a Ela o que queria, como não diz<br />

uma criança que não sabe ainda falar. E que Ela, por<br />

amor, precisou adivinhar que Ele queria uma bola. E que<br />

tenha arranjado uma bola para Ele.<br />

Podemos imaginar Nossa Senhora e São José confabulando<br />

sobre o tamanho, o diâmetro da bola, de que<br />

matéria seria, como fazer a bola oca, para não ficar muito<br />

pesada para a mãozinha d’Ele, etc. Mas ambos já imaginando<br />

em cima desta bola uma cruz, como se haveria<br />

de ver depois nas mãos de incontáveis reis da Terra!<br />

Ou, então, Maria Santíssima prestando atenção para<br />

saber de que comida Ele gostava mais. Ou fazendo oração<br />

para pedir a Ele que Lhe desse o conhecimento de qual<br />

era a refeição que Ele queria comer naquele dia. E Ele talvez<br />

fazendo dificuldade para falar; de repente, dizendo a<br />

Ela uma palavra qualquer, própria de criança, mas na qual<br />

Ela percebia misteriosamente que queria dizer: “Não sabeis,<br />

minha Mãe, que Eu vim à Terra para sofrer?”<br />

Ninguém pode calcular o que foram as relações dessa<br />

infância, os mistérios, as sublimidades... Deus brincando!<br />

A Escritura diz que, antes de todos os séculos, Deus, que<br />

é a Sabedoria, brincava na superfície de Terra 2 . Mas daí a<br />

uma bolinha feita na oficina de Nazaré... Que diferença!<br />

A Mãe que criei e da qual nasci<br />

E Nossa Senhora falando com Ele... Assim como Ele<br />

se transfigurou para três Apóstolos no alto do Monte Tabor,<br />

quantas vezes Ele Se transfigurou para Ela? E em<br />

que atitudes? Dormindo, talvez... E no<br />

dormir, que poder, que majestade, que<br />

inocência, que delicadeza! Às vezes, de<br />

fugidio, de repente, é Deus que Ela vê!<br />

Quem pode calcular isto?<br />

Nós sabemos, pelo Gênesis, que<br />

Deus, no sétimo dia, repousou e considerou<br />

todas as coisas que tinha feito.<br />

Mas nenhuma delas era bonita como<br />

Nossa Senhora. E Jesus, como Criador,<br />

confabulando com sua natureza humana,<br />

por assim dizer, pensando:<br />

“Como é linda esta Mãe que Eu fiz e<br />

da qual nasci! Como a alma d’Ela é incomparável!<br />

Ali no quarto — estando<br />

entreaberta a porta — vejo que Ela está<br />

rezando. É noite, e uma candeia dá<br />

uma luz indecisa. Vejo o perfil d’Ela e<br />

noto que Ela reza para Mim. Mas não<br />

entro no quarto. E percebo que Ela está<br />

orando para o Padre Eterno, para o Divino<br />

Espírito Santo. Eu — como Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade, di-<br />

24


ia Ele — conheço a oração<br />

d’Ela. Entretanto, é hora de<br />

chamá-La para tal coisa.” E<br />

grita: “Mamãe!”<br />

Poder-se-iam multiplicar<br />

as situações, desenvolver isto<br />

ao infinito. Ele A vê, em<br />

certo momento, chorar. E<br />

Ele sabe, porque a Santíssima<br />

Trindade — Ele, portanto<br />

— está dando esclarecimentos<br />

a Ela sobre a Paixão,<br />

e depois sobre a morte<br />

d’Ele. E Ele nota a docilidade<br />

d’Ela, como Ela aceita,<br />

como Ela quer. Mas Ele<br />

vê desde já aquela espada<br />

que transpassa a alma<br />

d’Ela. E Ele Se deleita<br />

em considerar que, pelo<br />

amor que Ela tem aos<br />

homens, Ela quer que<br />

Ele morra. E no dia<br />

seguinte, quando Ela<br />

se levanta, Ele percebe<br />

um sulco de dor que<br />

dá uma majestade, uma<br />

gravidade, uma interioridade<br />

à fisionomia d’Ela,<br />

que é verdadeiramente indescritível.<br />

Imaginemos Nossa Senhora tendo<br />

conhecimento profético dos milagres,<br />

dos ensinamentos, das parábolas d’Ele, vendo a figura<br />

d’Ele, num alto de um monte, que passa... A Paixão, a<br />

Cruz, a morte e a glória da Ressurreição. Quem poderia<br />

imaginar tudo isso adequadamente? Ninguém!<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Quadro de Nossa Senhora do Bom<br />

Conselho, no Colégio São Luís<br />

No Colégio São Luís havia um quadro da Mãe do<br />

Bom Conselho colocado no retábulo do único altar da<br />

modesta capela, que era uma sala transformada em capela.<br />

Inúmeras vezes entrei lá. Por exemplo, para celebrar<br />

o mês de maio em honra de Nossa Senhora, diariamente<br />

todos os alunos entravam na capela cantando. Eu<br />

olhava para a imagem, naturalmente, e minha atenção<br />

era solicitada por duas coisas muito desiguais: uma era a<br />

Mãe de Deus e outra o Menino Jesus, mas tomados em<br />

tese, como a Doutrina Católica os considera, e como a<br />

mente de uma criança pode alcançar.<br />

Quadro da Mãe do Bom Conselho<br />

(ao lado) venerado na capela do<br />

Colégio São Luís (acima)<br />

E pensava: “É a Mãe de Deus, Maria<br />

Santíssima, que me deu aquela graça no<br />

Coração de Jesus 3 e está aqui sob outra<br />

invocação, outra roupagem. Mas é Ela! E<br />

vou rezar para Ela, porque já vi como é<br />

misericordiosa comigo. Sem a misericórdia<br />

d’Ela eu não me arranjo. Mas com a<br />

misericórdia d’Ela eu alcanço tudo. Portanto,<br />

é mais uma oportunidade de me unir bem a<br />

Ela, e rezar a Ela para alcançar esta união.”<br />

Eu sabia que o título, a invocação d’Ela era<br />

Mater Boni Consilii, portanto, Mãe do Bom Conselho.<br />

E tentei, algumas vezes, rezar para esta invocação, que<br />

eu notava ser excelente, mas não me dizia grande coisa.<br />

A piedade é assim: às vezes uma invocação excelente<br />

não nos fala muito à alma.<br />

De maneira que isto ficou assim, até eu ler um livro sobre<br />

Nossa Senhora de Genazzano, pouco antes de sofrer<br />

aquela crise de diabetes 4 , e depois suceder tudo quanto<br />

sucedeu. Seria mais ou menos como um facho de luz que<br />

nasce pequenino, de uma lâmpada pequena, mas forte, e<br />

que depois se torna imenso. Assim seria essa primeira visualização<br />

minha de Nossa Senhora de Genazzano. v<br />

1) Jo 1, 14.<br />

2) Cf. Pr 8, 31.<br />

3) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 1, p. 4-7.<br />

4) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 21, p. 20-21.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 26/4/1985)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

25


C<br />

alendário<br />

Martírio de São Pedro de Verona<br />

dos Santos – ––––––<br />

1. São Gilberto,bispo (†c. 1245). Erigiu a catedral em<br />

Dornoch, Escócia, e fundou vários hospícios. Governou a<br />

diocese de Caithness, durante 20 anos.<br />

2. São Francisco de Paula, eremita (†1507).<br />

São Domingos Tuoc,presbítero e mártir (†1839). Dominicano<br />

martirizado na perseguição religiosa, em Xuong<br />

Dien, Vietnã.<br />

3. Sexta-Feira da Paixão do Senhor.<br />

São Luís Scrosoppi,presbítero (†1884). Sacerdote da<br />

Congregação do Oratório, fundou a Congregação das Irmãs<br />

da Divina Providência, em Udine, Itália.<br />

4. Sábado Santo.<br />

Santo Isidoro, bispo e Doutor da Igreja (†636).<br />

Beato José Bento Dusmet,bispo (†1894). Religioso beneditino<br />

que após ser nomeado Bispo da Catânia, Itália,<br />

promoveu o culto divino e a instrução cristã do povo.<br />

5. Domingo da Páscoa da Ressurreição do Senhor.<br />

São Vicente Ferrer, presbítero (†1419).<br />

Santa Maria Crescência Höss,virgem (†1744). Religiosa<br />

franciscana que foi mestra de noviças e superiora em<br />

Kaufbeuren, Alemanha.<br />

Reprodução<br />

6. São Pedro de Verona,presbítero<br />

e mártir (†1252). Filho<br />

de maniqueus, abraçou<br />

a Fé Católica ainda<br />

criança e tornou-se<br />

dominicano. Combateu<br />

a heresia até ser<br />

assassinado em Milão,<br />

Itália.<br />

7. São João Batista<br />

de la Salle, <br />

presbítero (†1719).<br />

Santo Aiberto,<br />

presbítero e monge<br />

(†1140). Recitava<br />

todos os dias o Saltério,<br />

junto ao mosteiro<br />

de Crespin, França,<br />

e ministrava o Sacramento<br />

da Penitência<br />

aos penitentes que<br />

a ele acorriam.<br />

8. Beato Domingos do Santíssimo Sacramento Iturrate,<br />

presbítero (†1927). Sacerdote Trinitário, que se dedicou a<br />

promover a salvação das almas. Morreu em Belmonte, Espanha,<br />

dois anos depois de ter sido ordenado.<br />

9. Beato Ubaldo de Sansepolcro,presbítero (†1315).<br />

Após uma juventude dissipada em Florença, tornou-se sacerdote<br />

da Ordem dos Servos de Maria, ao ouvir um sermão<br />

de São Filipe Benício.<br />

10. Santa Madalena de Canossa,virgem (†1835). Renunciou<br />

às riquezas para seguir a Cristo e fundou os institutos<br />

das Filhas e dos Filhos da Caridade, em Verona,<br />

Itália.<br />

11. São Estanislau de Cracóvia, bispo e mártir (†1079).<br />

Santa Gema Galgani,virgem (†1905). Mística italiana,<br />

insigne pela contemplação da Paixão do Senhor e pelos sofrimentos<br />

suportados com paciência. Morreu em Lucca,<br />

Itália, aos 25 anos, num Sábado Santo.<br />

12. II Domingo de Páscoa. Domingo da Divina Misericórdia.<br />

São Júlio I, Papa (†352). Defendeu tenazmente os princípios<br />

do Concílio de Niceia durante a perseguição ariana<br />

e protegeu Santo Atanásio contra as acusações, acolhendo-o<br />

durante seu exílio.<br />

13. São Martinho I, Papa e mártir (†656).<br />

Beata Ida, viúva (†1113). Ficando viúva de Eustáquio<br />

II, conde de Bolonha, França, dedicou-se por inteiro às<br />

obras de piedade e de caridade. Mãe de Godofredo de<br />

Bouillon.<br />

14. São Bento de Avignon(†1184). Jovem pastor que,<br />

por inspiração celeste, construiu em Avignon, França, uma<br />

ponte sobre o rio Ródano.<br />

15. Santo Ortário, abade (†séc. XI). Levou uma vida de<br />

austeridade e oração no mosteiro de Landelles, França, e<br />

foi assíduo na assistência aos pobres e enfermos.<br />

16. São Magno, mártir (†1116). Príncipe das Ilhas Órcadas,<br />

Escócia, abraçou a Fé Católica e foi assassinado traiçoeiramente<br />

durante tratativas de paz com seu adversário<br />

no principado.<br />

17. Beata Mariana de Jesus,virgem (†1624). Vencendo<br />

a oposição do pai, tomou o hábito da Ordem Mercedária<br />

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––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />

em Madri, e ofereceu suas orações e penitências pelos pobres<br />

e necessitados.<br />

18. Beata Sabina Petrilli, virgem (†1923). Fundadora da<br />

Congregação das Irmãs dos Pobres de Santa Catarina de<br />

Sena, falecida na Toscana, Itália.<br />

19. III Domingo de Páscoa.<br />

Beato Bernardo,penitente (†1182). Para expiar os pecados<br />

da juventude, partiu descalço e quase sem alimentos<br />

em peregrinação pela Terra Santa. Morreu no Mosteiro de<br />

Saint-Bertin, França.<br />

São Vicente Ferrer<br />

Reprodução<br />

20. Beato Anastásio<br />

Pankiewicz, presbítero<br />

e mártir (†1942).<br />

Sacerdote franciscano<br />

polonês, morto no caminho<br />

que conduz de<br />

Dachau a Hartheim,<br />

Áustria. Deu testemunho<br />

de sua fé até a<br />

morte.<br />

21. Santo Anselmo,<br />

bispo e Doutor<br />

da Igreja (†1109). Ver<br />

página 28.<br />

22. São Teodoro de<br />

Sykeon,bispo e abade<br />

(†613). Jovem anacoreta,<br />

fundou um mosteiro<br />

para atender os<br />

numerosos discípulos<br />

que o procuravam.<br />

Eleito Bispo de Anastasiópolis,<br />

pediu para<br />

voltar à vida eremítica.<br />

Morreu em Sykeon,<br />

atual Turquia.<br />

23. Santo Adalberto de Praga,bispo e mártir (†997).<br />

São Jorge, mártir (†séc. IV).<br />

São Gerardo,bispo (†994). Durante os 31 anos em<br />

que foi Bispo de Toul, França, deu à cidade ótimas<br />

leis, dedicou a catedral, ajudou os mosteiros, alimentou<br />

os pobres e veio em socorro do povo em tempo de<br />

peste.<br />

24. São Fidélis de Sigmaringa,<br />

presbítero e mártir<br />

(†1622).<br />

Beata Maria Isabel<br />

Hesselblad,virgem<br />

(†1957). Natural<br />

da Suécia,<br />

que após um longo<br />

tempo de serviço<br />

num hospital,<br />

reformou a Ordem<br />

de Santa Brígida,<br />

dedicando-se<br />

à contemplação e à<br />

caridade, em Roma.<br />

santiebeati.it<br />

25. São Marcos,<br />

Evangelista.<br />

São Pedro de São José<br />

Betancur,religioso<br />

Santa Catarina de Sena<br />

(†1667). Irmão da Ordem<br />

Terceira Franciscana,<br />

fundou a Ordem dos Bethlemitas em Antigua, Guatemala.<br />

26. IV Domingo de Páscoa.<br />

Mãe do Bom Conselho. Ver página 22.<br />

São Rafael Arnáiz Barón,religioso (†1938). Monge da<br />

Trapa de Santo Isidoro de Dueñas, em Palência, Espanha.<br />

Sendo ainda noviço, atingido por uma grave enfermidade,<br />

suportou tudo com paciência, falecendo aos 27 anos.<br />

27. São Pedro Armengol,religioso (†1304). Ver página 2.<br />

28. São Pedro Chanel,presbítero e mártir (†1841).<br />

São Luís Maria Grignion de Montfort,presbítero<br />

(†1716).<br />

29. Santa Catarina de Sena,virgem e Doutora da Igreja<br />

(†1380).<br />

Santo Acardo,Bispo (†1172). Sendo abade de São Vítor,<br />

em Paris, escreveu várias obras para conduzir as almas<br />

rumo à perfeição. Foi mais tarde Bispo de Avranches,<br />

França.<br />

30. São Pio V,Papa (†1572).<br />

Santa Maria da Encarnação,religiosa (†1672). Após<br />

a morte do marido, fez profissão religiosa nas Ursulinas,<br />

em Tours, França. Fundou a casa destas religiosas em<br />

Québec, Canadá.<br />

27


Hagiografia<br />

Santo Anselmo,<br />

varão de muitas lutas<br />

Os grandes homens que marcaram a Idade Média —<br />

entre os quais se destaca Santo Anselmo — patenteiam<br />

a solidez, a força, a grandeza dessa época histórica, que<br />

contrastam com a pequenez, o efêmero, a índole de<br />

“matéria plástica” de todas as coisas de nossos dias.<br />

Notem as lutas que esse santo precisou enfrentar em<br />

plena Idade Média. Ele parece não ter tido — ao menos<br />

segundo esses traços biográficos — especiais lutas<br />

em seu convento. Mas ele teve dois grandes inimigos a<br />

vencer: um rei prepotente que queria sujeitar a Igreja à<br />

sua autoridade; e os cismáticos gregos que, reunidos no<br />

Concílio de Bari com os católicos, ele conseguiu persuadir,<br />

mas de maneira efêmera, de que a doutrina católica<br />

era verdadeira.<br />

Ele ao mesmo tempo foi um homem que viajou muito.<br />

Era italiano, depois foi para a Normandia, Inglaterra,<br />

Bari, Roma. E numa época em que essas viagens representavam<br />

empreender um enorme esforço. Eram feitas<br />

em estradas péssimas, com riscos de toda ordem, muita<br />

dificuldade, lentidão, etc.<br />

Um homem favorecido por Nosso Senhor por especiais<br />

graças, e que levou a bom termo tudo aquilo de que<br />

foi incumbido: como abade foi muitíssimo estimado; Arcebispo<br />

de Cantuária, ele empreendeu uma luta rigo-<br />

Dia 21 de abril comemora-se a festa de Santo<br />

Anselmo de Cantuária, bispo, confessor e<br />

Doutor da Igreja, cuja biografia apresenta os<br />

seguintes traços 1 :<br />

Mansidão do cordeiro e vigor do leão<br />

Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte, de família nobre.<br />

Como o pai o afastasse da vida religiosa, entregou-se<br />

aos prazeres durante alguns anos. Mas aos 26 anos entrou<br />

na abadia de Bec, na Normandia, onde se entregou à pratica<br />

das virtudes religiosas e ao estudo das Escrituras. Aos 30<br />

anos, tornou-se prior e em seguida abade.<br />

Governou sua abadia com uma bondade incansável<br />

que lhe permitiu triunfar de todas as dificuldades. Os Papas<br />

Gregório VII e Urbano II manifestaram-lhe grande estima.<br />

“O bom odor de vossas virtudes chegou até nós”, escrevia-lhe<br />

Gregório, e Urbano II diz: “Vinde cá o mais depressa<br />

possível a fim de podermos gozar juntos da afeição<br />

que nos une.”<br />

Chamado à Inglaterra em 1092, não pôde voltar à França,<br />

pois foi nomeado Arcebispo de Cantuária. Nesse cargo<br />

muito sofreu do Rei Guilherme o Ruivo pela defesa dos direitos<br />

e liberdade da Igreja. Exilado, foi a Roma, onde o Papa<br />

o cumulou de honras e lhe deu ocasião, no Concilio de<br />

Bari, de convencer do seu erro os gregos que negavam que o<br />

Espírito Santo procedesse do Filho como do Pai.<br />

Voltando à Inglaterra após a morte de Guilherme, Santo<br />

Anselmo morreu a 21 de abril de 1109. Clemente XI, em<br />

1720, o declarou Doutor da Igreja.<br />

Monge, bispo, Doutor, Anselmo reuniu em sua pessoa<br />

os grandes apanágios do cristão privilegiado. E se a auréo-<br />

la do martírio não veio completar tanta glória, pode-se dizer<br />

que a palma faltou a Anselmo, mas que ele não faltou<br />

à sua palma. Sua vida foi toda entregue às lutas pela liberdade<br />

da Igreja. Nele o cordeiro revestiu-se do vigor do leão.<br />

“Cristo, dizia, não quer uma escrava para esposa. Nada Ele<br />

ama tanto no mundo quanto a liberdade de sua Igreja.” O<br />

nome de Anselmo lembra a mansidão do homem do claustro<br />

unida à firmeza episcopal, a ciência junto com a piedade.<br />

Nenhuma memória foi mais suave e, ao mesmo tempo,<br />

mais brilhante do que a sua.<br />

Um varão que marcou o século XI<br />

28


osa contra o rei e acabou sendo reintegrado na<br />

sua sede episcopal; lutando contra os cismáticos,<br />

conseguiu persuadi-los de seus erros.<br />

Depois, extinguiu-se na alegria e<br />

no amor de todos pela vida que tinha<br />

levado, porque a morte dos santos<br />

é muito mais uma alegria do que<br />

uma fonte de tristeza.<br />

Vemos, entretanto, qual a natureza<br />

da verdadeira grandeza da<br />

Idade Média: esse homem marca o<br />

século XI pela sua ciência, sua piedade,<br />

pelas suas lutas, e leva a Causa<br />

Católica à vitória.<br />

Então, considerando a vida dele,<br />

tem-se a impressão de uma fortaleza<br />

formidável, de um homem<br />

que encheu o seu tempo, venceu, e<br />

cuja glória perdura por todos os séculos<br />

por causa das vitórias que ele obteve em<br />

favor da Fé. Quando se olha isso, fica-se com a<br />

sensação da solidez, da força, da grandeza de toda<br />

a Idade Média, que contrasta com a pequenez, o<br />

efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as coisas<br />

de nossos dias. E essa impressão não é falsa; é verdadeira<br />

porque nos mostra a solidez da estatura dos grandes<br />

homens que marcaram a Idade Média.<br />

Precisamos lutar sempre, com<br />

os olhos postos em Nossa Senhora<br />

Mas de fato ele teve muitas lutas. E se não tivesse havido<br />

campeões como ele, a Igreja teria perecido. Na Idade<br />

Média havia uma batalha contínua; a solidez não consistia<br />

em não haver luta, mas em que a boa reação vencia<br />

sempre e era, portanto, nesse sentido, sólida. Entretanto,<br />

por um pouco que os homens fraquejassem, a coisa<br />

poderia cair.<br />

Podemos vislumbrar, de antemão, qual vai ser a solidez<br />

e a precariedade do Reino de Maria. A solidez será<br />

enorme enquanto houver homens de uma grande firmeza,<br />

dispostos a lutar em todos os sentidos. Então, o Reino<br />

de Maria poderá durar séculos e séculos.<br />

Se encontrar homens fracos, ele soçobrará imediatamente,<br />

porque o reino do demônio se tornará forte, pois<br />

estamos numa humanidade marcada pelo pecado original<br />

e num mundo imerso na presença dos tais demônios<br />

dos ares de que falava São Paulo 2 .<br />

Portanto, é preciso estar lutando sempre, com uma<br />

energia inquebrantável, uma atividade contínua, um desprendimento<br />

de si inteiro, tendo os olhos postos completamente<br />

em Nossa Senhora, para que a luta seja levada a<br />

bom termo. Mas encontrando autênticos lutadores,<br />

verdadeiramente dependentes da Santíssima<br />

Virgem, a causa é solidíssima, ela<br />

vence mesmo. A questão é haver quem<br />

lute por Ela.<br />

Peçamos a Nossa Senhora que nos<br />

dê forças e nos compenetre da verdade,<br />

para entendermos bem o seguinte:<br />

agora, como durante o Reino de<br />

Maria, a nossa vida deve ser de luta<br />

constante, e no dia em que não tivermos<br />

lutado precisamos nos compenetrar<br />

de que não carregamos a Cruz<br />

de Cristo, e que esse foi um dia frustrado<br />

em nossa existência.<br />

Não lutar é não sofrer; não sofrer<br />

é não carregar a Cruz de Cristo.<br />

Para um católico, um dia passado<br />

longe da Cruz de Cristo, longe<br />

de Maria Santíssima, é um dia cancelado,<br />

um dia em branco.<br />

Reprodução<br />

Ordenado arcebispo, apesar de seus protestos<br />

Temos agora uma nota sobre a sagração de Santo Anselmo,<br />

extraída da “Vida dos Santos”, do Padre Rohrbacher 3 .<br />

Decidiram os bispos ingleses sagrar Santo Anselmo Arcebispo<br />

de Cantuária, mas ele recusou terminantemente<br />

porque sabia da intromissão real neste cargo.<br />

Mostraram-lhe os prelados as consequências de sua negativa<br />

para a Inglaterra. Replicou o Santo que conhecia<br />

tais problemas, mas que era velho, mal conseguindo carregar<br />

a si próprio; como poderia levar o fardo de toda uma<br />

Igreja? Por outro lado, não era de sua índole cuidar de negócios<br />

temporais.<br />

“Conduzi-vos somente nos caminhos de Deus, nós nos encarregamos<br />

dos negócios temporais”, replicaram os prelados.<br />

Alegou Anselmo suas múltiplas obrigações e a impossibilidade<br />

de abandoná-las. Resistindo ainda, levaram-no ao<br />

soberano que se encontrava gravemente enfermo.<br />

O rei aflito disse-lhe: “Anselmo, que fazes? Por que me<br />

envias ao Inferno? Lembra-te da amizade que meus pais tinham<br />

por ti e não me deixes perecer, porque sei que estou<br />

condenado a morrer conservando este Arcebispado.” Todos<br />

os assistentes, comovidos, insistiam com Santo Anselmo<br />

acusando-o de matar o rei.<br />

O Santo voltou-se para os dois monges que o acompanhavam<br />

e disse: “Meus irmãos, por que não me socorreis?”<br />

Um deles respondeu: “Se esta é a vontade de Deus,<br />

quem somos nós para resistir-Lhe?”<br />

“Ai! — disse Anselmo — Vós vos rendestes mui prontamente.”<br />

29


Hagiografia<br />

Vendo-o assim obstinado, acusaram-no de covardia.<br />

Buscaram uma cruz, tomaram-lhe o braço direito e o aproximaram<br />

do leito. O rei lhe apresentou a cruz, mas ele fechou<br />

a mão. Os bispos empenharam-se em abri-la até fazê-<br />

-lo gritar. Por fim seguram-lhe a mão com a cruz dizendo:<br />

“Viva o bispo!”; e entoaram o “Te Deum”. Levaram-no à<br />

igreja vizinha e, sob seus protestos, sagraram-no.<br />

Fato estranho e magnífico ao mesmo tempo!<br />

Maus reis queriam eliminar<br />

a liberdade da Igreja<br />

Para compreender um pouquinho o conjunto dos<br />

acontecimentos, é preciso tomar em consideração o seguinte:<br />

Cantuária é a mais antiga diocese, portanto a sede<br />

primacial, da Inglaterra. E naquele tempo, mais do<br />

que hoje, os arcebispos e os primazes tinham certa jurisdição,<br />

certa influência sobre os bispos de seu país.<br />

Estava-se num período de comunicações com Roma,<br />

devido à distância, muito difíceis, e não havia um corpo<br />

de núncios apostólicos inteiramente organizado. De maneira<br />

que se fazia sentir, mais do que hoje em dia, a necessidade<br />

dos bispos de um determinado país se apoiarem<br />

sobre um que fosse a pedra de ângulo de todos, e este<br />

era o Arcebispo de Cantuária.<br />

Esse arcebispo tinha muita importância; por outro lado,<br />

estava-se num período em que a Revolução — em sua forma<br />

absolutamente ancestral e original; nem se pode ainda<br />

falar de Revolução —, ou melhor, os germes dos quais futuramente<br />

a Revolução nasceria, se exprimiam sob a forma<br />

de um desejo do poder temporal. Quer dizer, dos chefes<br />

de Estado, em concreto dos reis, de se apoderarem da<br />

liberdade, dos atributos da Igreja, transformando-a num<br />

instrumento de dominação material.<br />

Os soberanos não queriam, por exemplo, que os bispos<br />

os censurassem, porque havia naquele tempo muitos<br />

bispos que repreendiam os reis e os poderosos. Eles queriam<br />

se assenhorear dos bens com que a Igreja socorria<br />

inúmeros pobres e mantinha o esplendor do culto divino.<br />

O medo do Inferno leva muitas<br />

pessoas para o Céu<br />

Por outro lado, os bispos eram muitas vezes senhores<br />

feudais e constituíam um elemento de imparcialidade<br />

dentro do jogo da vida feudal. Certos reis, movidos por<br />

mau espírito, queriam se assenhorear dos feudos eclesiásticos<br />

para, por esta forma, combater os outros senhores<br />

feudais.<br />

E isto tudo fazia com que os reis tivessem uma preocupação<br />

constante de nomear, para os cargos importantes,<br />

bispos que fossem seus instrumentos.<br />

Então, Santo Anselmo, monge já idoso, com inúmeros<br />

serviços prestados à Igreja, era desejado ardentemente<br />

pelo rei e pelos bispos para ser Arcebispo de Cantuária.<br />

Pelos bispos porque era um líder natural para defendê-<br />

-los contra o rei. Pelo rei, porque este já tinha tido dificuldades<br />

com a Igreja, mas estava doente e temia morrer. E ele<br />

achava que ia para o Inferno se, antes de falecer, não evitasse<br />

para a Igreja a catástrofe de uma má nomeação; por isso<br />

ele queria nomear um bom arcebispo para Cantuária.<br />

Quer dizer, o rei estava com a espada da ameaça do<br />

Inferno colocada no peito, e nós sabemos que o medo<br />

do Inferno tem levado muita gente para o Céu. Para a<br />

grande maioria dos homens, poucas coisas fecham tanto<br />

a porta do Inferno quanto o medo de ir para lá.<br />

Então todos queriam que Santo Anselmo ficasse Arcebispo<br />

de Cantuária.<br />

Uma violência tipicamente medieval<br />

Aí se dá a cena muito curiosa. Os bispos pedem, ele<br />

recusa dando um argumento que está à altura de um<br />

Santo. Não é um argumento baseado em falsa modéstia,<br />

mas é uma coisa verdadeira. Sendo um homem velho,<br />

que mal se carrega a si próprio, exausto por anteriores<br />

serviços à Igreja, é natural que ele tenha receio de não<br />

conseguir desempenhar satisfatoriamente um cargo tão<br />

pesado; e, portanto, procure tirar o corpo.<br />

Tanto mais que ele devia conhecer bem o rei e sua entourage,<br />

e o Santo poderia conjecturar que o rei, tendo<br />

já criado encrenca com a Igreja, criaria outra, caso ficasse<br />

curado — como diz o ditado: cesteiro que faz um cesto,<br />

faz um cento.<br />

Os sucessores do monarca, que faziam parte daquela<br />

entourage do palácio, tinham a mesma mentalidade. Santo<br />

Anselmo teria que travar uma luta, portanto, contra o<br />

poder temporal, coisa muito mais difícil do que qualquer<br />

outra batalha. E ele naturalmente temia por sua própria<br />

fraqueza; achava que um homem moço estaria mais em<br />

condições de conduzir essa luta.<br />

Mas tal era a força da virtude dele, a confiança que tinham<br />

no auxílio que a graça lhe prestaria, que todos queriam<br />

que ele ficasse arcebispo.<br />

Então se dá esta cena: Os bispos, não conseguindo nada,<br />

levam Santo Anselmo ao quarto onde o rei estava doente.<br />

Depois de muita insistência, acaba havendo uma<br />

espécie de violência bem medieval.<br />

Pegam uma cruz e dizem ao rei: “Põe na mão dele!” O<br />

Santo declara: “Não, não quero!”<br />

Com força, abrem a mão dele, a ponto de doer; ele segura<br />

a cruz e levam-no, então, para ser sagrado.<br />

Por meio dessa violência material, que talvez tivesse<br />

tido um caráter afetuoso e feita no meio de sorrisos —<br />

30


a crônica é muda a respeito deste particular —, o que<br />

houve foi isto. Mas o fato é tão estranho que não é de se<br />

repelir como absurda a hipótese deste ter sido feito no<br />

meio de sorrisos.<br />

Houve um momento em que Santo Anselmo, pelo extremo<br />

desejo dos outros, que chegou até à violência, resolveu<br />

ceder. Ceder não mais coagido fisicamente, mas<br />

moralmente persuadido de que ele não deveria resistir a<br />

um anseio tão unânime.<br />

E, então, ele mesmo aceitou a sagração, a qual não<br />

aceitaria se estivesse convencido de que outra era a vontade<br />

de Deus. Ele teria certamente — sendo um Santo<br />

— morrido mártir, mas não se deixaria sagrar, se tal fosse<br />

a vontade do Altíssimo. Seria o primeiro caso de martírio<br />

de um padre que se faz matar para não ser bispo.<br />

Uma vez que Santo Anselmo está no Céu, devemos estar<br />

persuadidos de que ele de fato quis, em determinado<br />

momento e por esta forma, ele foi Arcebispo de Cantuária.<br />

Devemos ser insistentes em nossas orações<br />

Podíamos nos perguntar se essa violência feita na pessoa<br />

dele é censurável. Às vezes a graça, na sua sabedoria<br />

e imensa liberdade de movimentos, se serve de meios<br />

muito estranhos. Meios imorais ou ilegítimos jamais.<br />

Meios surpreendentes e desconcertantes, bem possivelmente.<br />

Quem sabe se a graça quis que a insistência chegasse<br />

até esse ponto para mostrar o desapego deste homem, e<br />

depois lhe dar mais liberdade de lutar contra o rei, mostrando<br />

que ele tinha sido forçado a aceitar o cargo?<br />

De qualquer forma, lembramo-nos das palavras de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho: “O Reino dos<br />

Céus padece violência” 4 . É preciso fazer violência para<br />

se entrar no Céu.<br />

Às vezes é necessário fazer até uma santa violência<br />

com Deus. O próprio Redentor contou aquela parábola<br />

admirável de um homem que está deitado na cama junto<br />

com seus filhos, e um indivíduo cacete bate do lado de<br />

fora pedindo pão.<br />

O dono da casa explica que já está deitado e não pode<br />

atender. Afinal, o outro é tão cacete que o primeiro se levanta,<br />

abre a porta e lhe dá os pães.<br />

E Nosso Senhor afirma que o dono da casa atendeu<br />

por causa da importunidade do outro; e acrescenta que<br />

isto é o modelo daquele que reza.<br />

Quer dizer, quando não temos méritos, devemos ser<br />

muito insistentes. Porque à força de insistência, como<br />

que caceteamos a Deus Nosso Senhor e obtemos aquilo<br />

que nós queremos.<br />

No caso ocorrido com Santo Anselmo, houve qualquer<br />

coisa de parecido com isso, e vemos as vias superiores de<br />

Deus, insondáveis, nem sempre inteiramente explicáveis e<br />

que formam uma das belezas da História da Igreja.<br />

Mistérios de Deus e da vida da Igreja<br />

Se na História da Igreja tudo fosse explicavelzinho,<br />

clarinho, limpinho, não seria a História da Igreja de<br />

Deus. Faltaria a ela uma das notas daquilo que é verdadeiramente<br />

divino.<br />

Naquilo que é autenticamente divino precisaria haver<br />

mistério. E vou dizer mais, quanto mais claro que determinada<br />

coisa é divina, tanto mais convém que nela haja<br />

mistérios. Porque a presença do mistério é uma marca<br />

de superioridade divina, que impõe respeito aos homens.<br />

Aqui também, são os mistérios da vida da Igreja, os fatos<br />

misteriosos por onde Deus mostra a sua divina grandeza.<br />

Depois as coisas se explicam.<br />

Com certeza, para alguns contemporâneos de Nosso<br />

Senhor, a Paixão há de ter parecido um mistério inexplicável,<br />

e foi preciso a Ressurreição para que se compreendesse<br />

esse mistério.<br />

Atualmente, nós estamos em presença do maior mistério<br />

dentro de vinte séculos de vida da Igreja. Creiamos<br />

na divindade dela e amemos a Santa Igreja Católica mais<br />

do que nunca… eu jamais diria apesar do mistério, mas<br />

sim por causa deste mistério.<br />

Só uma Igreja santa e divina pode ter uma fortaleza,<br />

uma grandeza tal que nela caiba um mistério tão profundo,<br />

tão tenebroso. É preciso ser uma Igreja divina para<br />

não morrer deste mistério, para atravessar a era de mistério<br />

e, do outro lado, se mostrar gloriosa e resplandecente<br />

como se tivesse ressuscitado.<br />

Nós, desse pequeno fato misterioso da vida de Santo<br />

Anselmo, devemos voar para regiões muito mais altas dos<br />

grandes mistérios da Igreja Católica. E então façamos hoje<br />

à noite, a Nossa Senhora, um ato de amor pelo mistério<br />

tremendo diante do qual nós vivemos, certos de que os<br />

grandes mistérios têm depois as suas grandes explicações.<br />

Nunca um homem se defrontou com um mistério tão<br />

terrível quanto São José, mas depois, que explicação, que<br />

esclarecimento! É a explicação das explicações. v<br />

(Extraído de conferências de 20/4/1966 e 20/4/1967)<br />

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

2) Cf. Ef 6, 12.<br />

3) Cf. ROHRBACHER, René François. Vies des Saints pour<br />

tous les jours de l’année. Volume II. Paris: Gaume frères, libraires-éditeurs,<br />

1853. p. 401-410.<br />

4) Mt 11, 12.<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

De requinte em requinte<br />

Sendo um estilo artístico expressão da mentalidade de<br />

um povo ou de uma área de civilização em determinada<br />

época, pode ele sofrer variações, ser copiado ou substituído<br />

por outro? <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aborda estas e outras interessantes<br />

questões em torno do tema “arte”.<br />

Se houvesse uma arte moderna, contemporânea,<br />

boa, teria propósito restaurar as coisas coloniais?<br />

Não é legítimo que, artisticamente falando, as coisas<br />

evoluam e que cada época tenha o estilo que lhe é próprio?<br />

Não é isso uma coisa adequada, conveniente? Nós<br />

não vemos cada país ter seu estilo próprio? Não notamos<br />

como, na civilização ocidental, o gótico foi substituído pela<br />

arte da Renascença e depois por outras formas artísticas<br />

sucessivas? Então, se cada época criou um estilo próprio,<br />

por que haveremos de rejeitar um estilo suposto bom de<br />

nossa própria época? Isso pareceria ser uma coisa antinatural,<br />

um conservantismo levado ao excesso.<br />

Distinção entre os estilos e os seus matizes<br />

Imaginemos uma construtora que fizesse casas de estilo<br />

antigo, bonitas, confortáveis, porém, que se prestassem<br />

à seguinte crítica de caráter artístico e não funcional:<br />

são cópias, em nossos dias, de um estilo que não é de<br />

hoje. Portanto, um estilo morto. Ora, copiar é intrinsecamente<br />

uma falta de originalidade. É até uma coisa artificial<br />

copiar algo que morreu. E nesse sentido, essa ação<br />

conservadora é um mal.<br />

Parece-me que é preciso fazer uma distinção entre o estilo<br />

e os matizes dentro do mesmo estilo. Quer dizer, o estilo pode<br />

continuar igual a si mesmo, passando por matizes, por variantes.<br />

Mas ele é sempre o mesmo estilo. Então, a pergunta<br />

se desdobra: Primeiro, o estilo deve variar? Em segundo lugar,<br />

ele deve mudar em seus matizes internos? Em terceiro<br />

lugar, um povo, uma civilização devem variar de estilo?<br />

Seria mais interessante tratar da questão da variação<br />

de estilo para depois abordar a mudança de matizes, que<br />

é um assunto menos importante e que se resolve dentro<br />

da questão da variação de estilo.<br />

Todo estilo é o produto de um estado de espírito. E eu<br />

chamo estado de espírito um conjunto de verdades fundamentais<br />

ou de princípios — às vezes não verdadeiros<br />

—, a partir dos quais uma determinada civilização vê o<br />

A Grande Esfinge<br />

e a pirâmide de<br />

Quéops - Planalto<br />

de Guizé, Egito<br />

Hedwig Storch (CC 3.0)


homem e o universo, e o estado temperamental com que<br />

a civilização adota essa vivência.<br />

Mentalidade e estilo<br />

Tomemos, por exemplo, o estilo egípcio. É evidente<br />

que ele comporta uns tantos princípios que não são puramente<br />

artísticos, mas filosóficos; e filosóficos do mais alto<br />

porte porque metafísicos.<br />

É evidente também que, a partir desses princípios metafísicos,<br />

os egípcios elaboraram uma visão do universo,<br />

de toda a realidade material, e modelaram essa visão de<br />

acordo com aqueles princípios metafísicos.<br />

As múmias, os desenhos, as esculturas são compostos<br />

de figuras hieráticas, mas muitas delas não o são: representam<br />

o egípcio na vida quotidiana. E há qualquer coisa<br />

de uma placidez profunda, meditativa e ativa na coisa<br />

egípcia, incubada de mistério, que constitui propriamente<br />

a mentalidade do egípcio. Ora, o estilo egípcio foi uma<br />

expressão dessa mentalidade.<br />

E o estilo medieval, o gótico, foi igualmente uma expressão<br />

da mentalidade católica.<br />

Então, se o estilo é a consequência necessária de uma<br />

mentalidade, a questão sobre se o estilo deve ser mudado importa<br />

em perguntar se precisa ser mudada a mentalidade.<br />

Dennis Jarvis (CC 3.0)<br />

Mudança de matizes<br />

Se fôssemos apelar para o exemplo da História, seríamos<br />

levados a dizer que todos os grandes povos que surgem<br />

e definem a sua mentalidade, de certo modo, constituem<br />

um estilo e não saem mais dele, e esse estilo não<br />

decai, não degenera. Ele continua a produzir obras boas<br />

e dignas indefinidamente, até que um fator extrínseco<br />

derruba uma determinada ordem de coisas.<br />

Por exemplo, o estilo chinês nasceu desde quando? Com<br />

variantes, é evidente, formou-se ao longo de quantos séculos?<br />

Nós não podemos dizer que o estilo chinês esteja moribundo.<br />

Se os ocidentais não tivessem entrado na China e<br />

derrubado certas barreiras culturais, não tivessem feito imposições,<br />

o estilo chinês teria continuado indefinidamente.<br />

E as obras chinesas elaboradas, mesmo no século XIX, de<br />

modo ainda artesanal não eram dominadas pela preocupação<br />

de produzir para trazer dinheiro, e eram de muito boa<br />

cultura e de muito bom quilate. Não se pode falar de uma arte<br />

chinesa de decadência. Isso se pode dizer do Egito, de Roma,<br />

da Grécia, da Pérsia, dos assírios, enfim de todos os povos<br />

antigos. Então, a conclusão seria a seguinte: é preciso não<br />

mudar de mentalidade e, portanto, não variar de estilo. Um<br />

povo elabora esse estilo, fica com este estilo até o fim.<br />

Contudo, toda mentalidade, mesmo quando continua<br />

igual a si mesma, muda de matizes. Um homem, confor-<br />

Monumentos chineses<br />

Dennis Jarvis (CC 3.0)<br />

© CEphoto, Uwe Aranas (CC 3.0)<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Victor Toniolo<br />

me o estado de espírito, o dia, as circunstâncias, varia de<br />

matizes. Então, poder-se-ia dizer que um estilo pode ser<br />

matizado, mas não propriamente mudar. Matizar-se sim,<br />

mudar fundamentalmente não.<br />

Essa conclusão de que, sendo um estilo o produto de<br />

uma mentalidade que não deve variar nunca, consequentemente<br />

ele jamais deve mudar dentro de um mesmo povo,<br />

por mais antipática que seja a certos feitios temperamentais,<br />

e por mais evidente que possa parecer a certos<br />

espíritos lógicos, de fato não me parece inteiramente<br />

acertada, e tenho reservas sérias quanto a ela.<br />

O progresso só surgiu com a<br />

Civilização Católica<br />

As reservas procedem do seguinte: essa imobilidade<br />

dos estilos pagãos, dos estilos antigos, resulta, é verdade,<br />

de uma mentalidade muito definida, amadurecida. Mas há<br />

outro aspecto a ser considerado. Todos os povos antigos<br />

estavam sujeitos a uma lei, que poderíamos chamar “lei<br />

da limitação do progresso”. Quer dizer, todos eles chegavam<br />

a certo auge, até relativamente depressa, mas depois<br />

paravam e não progrediam mais. E não se pode dizer que<br />

um povo antigo tenha progredido mais do que outro, por<br />

exemplo, os romanos em relação aos egípcios. Aqueles<br />

eram muito superiores aos egípcios em muitas coisas. Mas<br />

em outras os egípcios eram muito superiores aos romanos.<br />

Não havia o que nós chamamos de progresso, quer dizer,<br />

um povo que aparece, incorpora a si todas as coisas boas<br />

de uma civilização antecedente e vai indo para a frente.<br />

O progresso propriamente dito apareceu com a Civilização<br />

Católica. Foi uma mobilidade, uma elasticidade,<br />

uma vitalidade que a sociedade humana tomou batizando-<br />

-se, e que lhe deu exatamente a possibilidade de modificação<br />

que nós notamos na melhor parte da História católica.<br />

Igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora<br />

do Carmo - Mariana, Minas Gerais, Brasil<br />

Interior da Catedral de Santiago de Compostela, Espanha<br />

Os estilos devem suceder-se<br />

à maneira de requinte<br />

A elaboração, a partir do estilo romano, do românico<br />

foi uma mudança. Representou uma mudança de caráter<br />

contrarrevolucionário — se podemos usar assim esta palavra<br />

— porque o estilo românico é muito mais sacral, mais<br />

hierárquico e mais simpático à alma verdadeiramente católica,<br />

do que o estilo romano. Mais ainda: do românico<br />

se destilou, pelo bafejo da Igreja, o gótico, estilo já então<br />

profundamente diferente do românico. De maneira que a<br />

vitalidade da Igreja produziu uma mudança de estilo.<br />

Por conseguinte, deveríamos dizer que não se devem<br />

copiar os estilos, e sim modificá-los.<br />

É bem verdade, portanto, que os estilos devem suceder-<br />

-se uns aos outros. Mas esse suceder-se não pode ser à maneira<br />

do estilo moderno em relação ao colonial, ou outro<br />

estilo, com uma ruptura e uma aceitação brutal do contrário,<br />

e nem pode ser uma mera diversificação. Porque também<br />

a diferença de estilo não é só para variar, mas deve<br />

ser um particular progresso no requintar o que um estilo,<br />

a mentalidade de um povo têm de bom; fazem-se coisas<br />

que são diferentes, mas à maneira de requinte, como o gótico<br />

é o requinte do românico.<br />

34


Pom² (CC 3.0)<br />

José Luis Filpo Cabana (CC 3.0)<br />

Coro da Catedral Sainte-Cecile<br />

Albi, França<br />

© CEphoto, Uwe Aranas (CC 3.0)<br />

Fachada da Catedral de Notre-Dame<br />

de Amiens, França<br />

Catedral de Santo Egídio<br />

Cheadle, Inglaterra<br />

Portanto, a sucessão deve ser feita de requinte<br />

em requinte, que é a linha de progresso e de variedade<br />

do estilo, posta em algo fundamentalmente<br />

conservador no essencial, enquanto é no acessório<br />

muito livre.<br />

A resposta à pergunta inicial é a seguinte: ficar<br />

no mero colonial, em princípio e em condições normais,<br />

seria um mal. Deixá-lo para fazer um estilo<br />

simplesmente diferente, seria igualmente um mal,<br />

porque teria sido necessário requintá-lo. Isso me<br />

parece inteiramente lógico.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 24/5/1967)<br />

Gustavo Kralj<br />

35


“É de noite que é belo<br />

acreditar na luz!”<br />

N<br />

ossa Senhora<br />

acreditou na luz<br />

durante a terrível<br />

treva da Paixão.<br />

Nesse tremendo<br />

desamparo, vendo<br />

que cada chaga<br />

era uma razão<br />

humana para tornar<br />

indiscutível a morte<br />

de seu Divino Filho,<br />

Ela teve uma Fé<br />

plena.<br />

Quando Maria<br />

Santíssima segurou<br />

aquele cadáver nos<br />

braços, no momento<br />

em que O acolheu<br />

Afresco de autoria de Fra Angelico - Museu de São Marcos, Florença, Itália<br />

para ser objeto dos cuidados e levado à sepultura, tendo aquela imensa derrota<br />

física nas mãos, Ela via toda a impossibilidade natural da Ressurreição e fazia<br />

um ato tranquilíssimo de Fé: “Ele ressuscitará. Eu creio porque Ele prometeu!”<br />

(Extraído de conferência de 19/11/1971)<br />

Reprodução

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