Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>212</strong> Novembro de 2015<br />
Excelsa e maternal<br />
Medianeira
Modelo perfeito<br />
de bispo<br />
S<br />
ão Carlos Borromeu não<br />
foi apenas um grande<br />
bispo contrarreformista, mas,<br />
em algum sentido, o Bispo<br />
da Contra-Reforma. Não só<br />
por ser um homem de grande<br />
preparo e cultura, que irradiou<br />
sua sabedoria em seu tempo,<br />
mas por ter realizado o modelo<br />
perfeito de bispo.<br />
Não basta redigir obras<br />
refutando isso ou aquilo.<br />
A pessoa precisa ser a<br />
personificação, o próprio<br />
símbolo, o tipo humano das<br />
obras que escreveu. O trabalho<br />
que ele realizou, sendo o Bispo<br />
da Contra-Reforma e o modelo<br />
de bispo, foi de uma eficácia<br />
para a Igreja certamente<br />
maior do que a dos próprios<br />
escritos dele.<br />
GFreihalter (CC 3.0)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 30/10/1963)<br />
São Carlos Borromeu<br />
Basílica de Nossa Senhora<br />
em Tongeren, Bélgica<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>212</strong> Novembro de 2015<br />
Ano XVIII - Nº <strong>212</strong> Novembro de 2015<br />
Excelsa e maternal<br />
Medianeira<br />
Na capa, Nossa<br />
Senhora das Graças<br />
Igreja dos Jesuítas,<br />
Palência, Espanha<br />
Foto: Timothy Ring<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Gilberto de Oliveira<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />
02404-060 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Gráfica Print Indústria e Editora Ltda<br />
Av. João Eugênio Gonçalves Pinheiro, 350<br />
78010-308 - Cuiabá - MT<br />
Tel: (65) 3617-7600<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 130,00<br />
Colaborador .......... R$ 180,00<br />
Propulsor ............. R$ 415,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Editorial<br />
4 Mãe da Divina Graça e da perseverança<br />
Piedade pliniana<br />
5 Súplica da despretensão e do enlevo<br />
Dona Lucilia<br />
6 Afável, flexível, acolhedora<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
10 Considerações sobre o patriarcado<br />
Reflexões teológicas<br />
16 “Tu o dizes, Eu sou Rei”<br />
De Maria nunquam satis<br />
18 A glória excelsa de Maria Santíssima<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Novembro<br />
Hagiografia<br />
28 Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem heroica e grandiosa<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Sacralidade beneditina<br />
Última página<br />
36 Mãe da Igreja e Rainha do mundo<br />
3
Editorial<br />
Mãe da Divina Graça<br />
e da perseverança<br />
Estreitamente unido a Maria Santíssima por meio da escravidão de amor, segundo o método de<br />
São Luís Grignion de Montfort, tinha <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> grande devoção à invocação Mater Divinæ<br />
Gratiæ — Mãe da Divina Graça —, neste mês comemorada na festa da Medalha Milagrosa.<br />
Sobre a efígie impressa na Medalha, cuja confecção foi pedida pela própria Mãe de Deus, abaixo reproduzimos<br />
um profundo comentário de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, relacionando-a à Contra-Revolução, à realeza de<br />
Maria e à graça da perseverança que deve ser almejada por cada um dos filhos da Santa Igreja:<br />
Nós temos, numa das faces da medalha, Nossa Senhora pondo os pés sobre o mundo, na afirmação<br />
de sua realeza sobre toda a Terra. É exatamente essa a doutrina da realeza de Nossa Senhora que<br />
vem lembrada em Fátima e afirmada com uma vitória sobre a Revolução.<br />
Ela calca também uma serpente, o que está inteiramente coerente, concludente, porque desse lado<br />
está escrito: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós.”<br />
Quer dizer, é a Imaculada Conceição. Mas não é pura e simplesmente a Imaculada Conceição,<br />
porque há aqui um atributo que não se encontra nas imagens da Imaculada Conceição como tal:<br />
Nossa Senhora está com as mãos abertas em sinal de aquiescência, de atendimento, e de suas mãos<br />
partem fachos luminosos imensos, simbolizando as graças e os favores que pelas mãos d’Ela — quer<br />
dizer, pela ação e por meio d’Ela — descem sobre o mundo.<br />
Essas graças são concedidas para a conversão dos pecadores, dos hereges, mas também para o castigo<br />
dos irredutíveis e proteção daqueles que se mantiveram fiéis até o fim. São graças para a perseverança<br />
dos fiéis. Tudo isso sai das mãos de Nossa Senhora como de um manancial.<br />
Ela está afável, risonha, acolhedora, para todos aqueles que tendo em vista esse conjunto de fatos,<br />
de símbolos, de atributos, de noções, se dirigem confiantes a Ela, pedindo as graças de que precisam.<br />
Vamos pedir a Nossa Senhora que, pelas graças da Medalha Milagrosa, Ela apresse o dia de sua vitória,<br />
de um lado. E de outro lado, também nos ajude a sermos fiéis durante todas as tormentas que<br />
se aproximam. Porque devemos nos lembrar bem disso: a perseverança é uma graça inestimável. Do<br />
que adianta ter virtudes, se depois cair no pecado?<br />
Essa perseverança não é fruto de nossas qualidades pessoais, mas da graça que se trata de pedir<br />
humildemente, de implorar com insistência, e à qual se trata de corresponder. Portanto, precisamos<br />
pedir as graças que nos assegurem a perseverança.<br />
Essa invocação de Nossa Senhora das Graças — ou de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa —<br />
é particularmente eficiente na luta contra o poder das trevas, que tanto e tanto nós devemos conduzir<br />
nos dias de hoje 1 .<br />
1) Conferência de 27/11/1964.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Súplica da despretensão<br />
e do enlevo<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
ÓMaria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os<br />
imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles, e de ser impelido<br />
por um amor desinteressado à contemplação das perfeições que a alma<br />
humana possui pela natureza e pela graça.<br />
Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica e puramente<br />
espiritual, e, por fim, à de vosso Divino Filho que, na sua humanidade<br />
santíssima, é o ápice e a síntese de toda a Criação.<br />
Fazei-me, em seguida, por um voo ainda mais possante de despretensão e de<br />
enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da<br />
qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois<br />
as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me desse modo para entrar<br />
nele e Vos louvar por toda a eternidade. Amém 1 .<br />
v<br />
1) Composta por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 5/1/1973.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Afável, flexível,<br />
acolhedora<br />
O conjunto das qualidades de alma de Dona Lucilia,<br />
as quais não eram antitéticas, mas quase paradoxais,<br />
ela hauriu na devoção ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
N<br />
a capela de Versailles, como em muitas igrejas,<br />
há um espaço entre o altar e a parede. O<br />
rei mandou fazer ali um nicho com uma imagem<br />
do Sagrado Coração de Jesus, e os nobres que tinham<br />
devoção iam lá rezar.<br />
Ornato despretensioso, mas ardoroso<br />
Marcou tanto a família real esta devoção, que Luís<br />
XVI fez uma consagração da França ao Sagrado Coração<br />
de Jesus, quando ele estava preso no Templo, prometendo<br />
reiterá-la, caso fosse posto em liberdade.<br />
A fórmula dessa consagração conserva-se até hoje.<br />
No século XIX, houve Santos e outros fiéis não canonizados<br />
— Sóror Josefa Menendez está neste caso —<br />
que praticaram insignemente a devoção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
Neste contexto com todas essas glórias, Dona Lucilia<br />
entra como um ornato despretensioso, mas ardoroso.<br />
Ela assistia às Missas dominicais na Igreja do Coração<br />
de Jesus, onde rezava muito concentrada, mas sem<br />
carranca, como certas flores que se fecham — não se<br />
amarram — à noite, e depois se abrem. Assim fazia<br />
ela.<br />
Terminada a Missa, ela se dirigia à imagem do Sagrado<br />
Coração de Jesus, e ali fazia longa oração, com os<br />
olhos fitos na imagem, e numa espécie de diálogo. Não<br />
que mamãe tivesse a ilusão de que Ele estava falando<br />
com ela. Mas ela dizia coisas a Nosso Senhor, e intuía o<br />
que Ele responderia. E assim, diálogo imaginário, mas<br />
suponho que fosse um diálogo dela com a graça que Ele<br />
dava. Sem nada de místico, ao menos nunca notei, nem<br />
fui levado a suspeitar que houvesse.<br />
Eu notava muito como mamãe hauria nessa devoção<br />
as disposições de alma que a caracterizavam, e quão largamente<br />
essa devoção foi ocasião para ela adquirir ou<br />
aperfeiçoar as virtudes que tanto amei nela, e cujo conjunto<br />
eu notava como uma espécie de graça, no ambiente<br />
da Igreja do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Elevação de alma, porém amando<br />
a realidade concreta<br />
Era a conjunção de qualidades, evidentemente não<br />
antitéticas — porque não há antítese entre uma qualidade<br />
e outra —, mas seriam quase paradoxais.<br />
Primeiramente, uma grande elevação de alma, de maneira<br />
que o espírito dela não somente se reportava com<br />
muita facilidade a regiões mais altas, mas morava nessas<br />
regiões.<br />
Contudo, ela era o oposto de uma sonhadora, de uma<br />
mera teórica, de uma pessoa que vive enleada em preocupações<br />
sem base na realidade. Pelo contrário, Dona<br />
Lucilia estava inteira e singelamente dentro da modesta<br />
realidade dela, cuidando de tudo, arranjando tudo,<br />
amando essa realidade concreta e participando da vida<br />
intensamente, embora seu espírito pairasse nessa esfera<br />
mais alta.<br />
6
Por exemplo, ela era uma excelente dona de casa, e<br />
prestava atenção nos últimos pormenores: se uma flor<br />
estava murcha num vaso e a empregada tinha se esquecido<br />
de jogar fora; se embaixo de uma estante não havia<br />
uma poeira acumulada; enfim, de todos os detalhes<br />
nos quais uma dona de casa cuidadosa, esmerada presta<br />
atenção, ela cuidava de modo perfeito.<br />
Solicitude e bondade<br />
Ao mesmo tempo, ela trazia consigo uma atmosfera<br />
de recolhimento, dando a entender que seu espírito habitava<br />
dois planos completamente distintos, porém correlatos.<br />
Nos mais antigos agrados que mamãe me fazia, eu notava<br />
muito isso e me deleitava. Sentia-me muito frágil,<br />
quando criança. Percebia a minha fraqueza, o meu nada,<br />
e como ela se voltava para essa fragilidade com uma doçura<br />
enorme, entrando, por assim dizer, na minha condição,<br />
participando das minhas limitações, e pondo tudo<br />
quanto era dela a meu alcance para atenuar e dar solução<br />
aos efeitos dessas limitações.<br />
Entretanto, eu sentia que essa carícia, penetrando tão<br />
fundo em mim, vinha muito do alto no espírito dela. À<br />
maneira de senhora — não sei se ela seria capaz de descrever,<br />
pois a alma feminina sente muitas vezes essas coisas<br />
sem saber explicitar —, havia toda uma consideração<br />
a respeito da bondade de Deus, infinita, mas condescendente,<br />
que vai até os últimos pormenores: olha a ovelhinha,<br />
presta atenção na galinha, agrada a criancinha e medita<br />
sobre o lírio do campo… E quanto mais desce, mais<br />
doce se torna.<br />
Quando fiquei mais velho, fui capaz de explicitar correlações<br />
dessas. Eu percebia bem que a imagem do Sagrado<br />
Coração, que há na igreja d’Ele — aliás, artisticamente<br />
comum, sulpiciana —, queria dar a entender essa<br />
forma de solicitude e de bondade do Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
Lendo a mensagem d’Ele a Santa Margarida Maria<br />
Alacoque e vendo a vida cotidiana de Nosso Senhor, descrita<br />
no Evangelho, encontra-se muito isso também. E<br />
na imagem que há no oratório do quarto de mamãe essa<br />
ideia está muito presente.<br />
Aplicação e distensão<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Outra harmoniosa antítese, menos saliente do que a<br />
anterior, era um misto de aplicação e de distensão.<br />
Nunca na vida encontrei Dona Lucilia tensa. Posso<br />
tê-la visto muitas vezes aborrecida, aflita, inclusive na<br />
perspectiva de infortúnios, porém tensa propriamente<br />
não.<br />
7
Dona Lucilia<br />
Lembro-me de ter notado muito isto num pequeno<br />
episódio que, aliás, para ela não era tão insignificante.<br />
Eu tinha 21 anos, mais ou menos, quando fui fazer<br />
operação de amígdalas. E combinamos em casa de não<br />
contar a ela, porque ficaria preocupada. Eu mesmo ia<br />
um tanto apreensivo fazer esta cirurgia — que de si é insignificante<br />
—, porque na véspera fora visitar o Arcebispo<br />
D. Duarte, para tratar de um assunto qualquer referente<br />
ao apostolado, e comentei com ele:<br />
— Senhor Arcebispo, vou passar alguns dias fora, porque<br />
farei operação de amígdalas, mas quando voltar telefonarei<br />
ao seu secretário para saber se há algo de novo…<br />
Ele então me disse:<br />
— Vosmecê vai fazer essa operação?<br />
— Vou, Senhor Arcebispo, está marcada para amanhã.<br />
— No seu lugar eu não faria…<br />
— Mas por quê?<br />
— Porque, não se diz por aí, mas essa operação oferece<br />
perigos eminentes…<br />
— Mas qual é o perigo, Senhor Arcebispo?<br />
— Basta simplesmente vosmecê ter uma hemorragia.<br />
Conheço um caso em que esguichou sangue até o teto!<br />
Afinal conseguiram fechar qualquer coisa lá, e parou a<br />
hemorragia. Mas, nem sempre se consegue…<br />
Notei que ele realmente não queria que eu fizesse a<br />
cirurgia. Porém a disciplina eclesiástica não chega até<br />
lá... Eu estava mesmo propenso a fazer, e fiz.<br />
Combinei com um médico, membro de minha família,<br />
que ele assistiria à operação e, quando esta terminasse,<br />
ele iria para minha casa e avisaria Dona Lucilia. E assim<br />
foi feito.<br />
Quando ela entrou em meu quarto, no hospital, acariciou-me<br />
muito e, depois de se certificar de que eu estava<br />
bem, sentou-se e me contou como tinha sido a comunicação<br />
da minha cirurgia para ela.<br />
Notei que ela estava na pós-aflição e, portanto, ainda<br />
meio traumatizada pelo caso. Tensa, nada! Não tinha tido<br />
tensão alguma. Quer dizer, precisava acontecer, aconteceu,<br />
Nossa Senhora ajudará. Se acontecer o pior, ainda<br />
assim se vive.<br />
A atitude diante do infortúnio marcava nesse ponto a<br />
vida dela, enormemente!<br />
Bela e nobre bruma de melancolia,<br />
mas sempre de bom humor<br />
Ela nunca estava com o espírito dissipado, ocioso,<br />
mas sempre meditando, pensando, considerando, lembrando,<br />
ponderando. Entretanto, jamais a vi tensa, cansada<br />
ou prejudicada por essa contínua aplicação do espírito.<br />
Às vezes, julga-se que pensar cansa. Depende de como<br />
se pensa. Quando isso é feito sem amor-próprio, por<br />
amor a Deus, o pensamento não causa cansaço.<br />
Embora Dona Lucilia pudesse ser considerada um arquétipo<br />
da sofredora, era o contrário da pessoa aflita.<br />
Surgia daí outro paradoxo: ela trazia no fundo do<br />
olhar, em todo o seu modo de ser, uma bela e nobre bruma<br />
de melancolia; porém, estava sempre de bom humor.<br />
Continuamente afável, flexível, disposta a acolher,<br />
a atender, a renunciar a sua própria vontade para fazer<br />
a de outrem, a ouvir o que o outro queria contar, ao invés<br />
de ela falar.<br />
Se analisarmos as promessas do Sagrado Coração de<br />
Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque veremos serem,<br />
evidentemente, de uma seriedade infinita; mas todas<br />
elas visam à distensão. Procuram resolver, aclimatar,<br />
ajudar, e são ditas de modo distensivo e bondoso. Poder-<br />
-se-ia dizer que são as doze promessas da confiança e do<br />
bem-estar de alma, dentro da aflição.<br />
Serenidade majestosa de Nosso Senhor<br />
Dona Lucilia queria muitíssimo bem a sua mãe e era<br />
uma filha muito zelosa e dedicada. Quando minha avó<br />
morreu, cheguei em casa e, depois de rezar um pouco<br />
junto ao corpo, lembrei-me logo de mamãe e fui vê-la.<br />
Encontrei-a no quarto, toda vestida e deitada na cama,<br />
com uma postura na qual eu nunca a tinha visto na<br />
vida: meio largada. Não como uma pessoa esparramada,<br />
que se entregou, mas com a atitude de uma ovelha que<br />
aceita ser morta, se for preciso.<br />
Recordava aquela tranquilidade sublimíssima de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, representada na iconografia católica,<br />
até na Crucifixão e na Morte.<br />
Na Paixão, Nosso Senhor Jesus Cristo é apresentado<br />
sempre aflito, é claro, mas nunca agitado, inquieto. Mesmo<br />
no Horto das Oliveiras, a calma d’Ele é completa,<br />
dentro de uma tristeza insondável.<br />
O fato de os Apóstolos estarem dormindo, tornava o<br />
isolamento ainda mais dramático, a tragédia mais pungente,<br />
e a aflição mais dilacerante; e, com isso, mais augusta<br />
a calma d’Ele.<br />
Tenho a impressão de que a cada uma das idas de Jesus<br />
em busca dos Apóstolos, Ele estava mais aflito do<br />
que na vez anterior. Não obstante, em todas as três vezes<br />
Ele foi com o passo lento, fazendo a pergunta quase ritualmente,<br />
porque já sabia qual seria a resposta. Ao voltar,<br />
carregava o fardo e a dor de mais uma recusa.<br />
Este ato de Se ter retirado só, para pesar tudo o que<br />
vinha, indica muito esta calma. O tenso, neurótico, fugiria<br />
dessa perspectiva de todos os modos. Ele, entretanto,<br />
a enfrentou!<br />
8
A serenidade d’Ele está indicada também<br />
na conduta com os que O foram<br />
prender. Até com Judas!<br />
É uma serenidade, antes de tudo, majestosa.<br />
Percebe-se — outro paradoxo! —<br />
que é um Deus que está sofrendo.<br />
Calma extraordinária de<br />
Dona Lucilia diante da morte<br />
Além da majestade, nota-se o “absoluto”<br />
da dor, se assim se pudesse dizer. Não<br />
há dor absoluta, mas a dor de Nosso Senhor<br />
era a mais parecida possível com a<br />
ideia de uma dor absoluta. Não faltou nada<br />
para que Ele sofresse inteiramente. O<br />
brado d’Ele no alto da Cruz: “Meu Deus,<br />
meu Deus, por que Me abandonastes?!”,<br />
é um brado carinhoso, não de revolta.<br />
Isso forma um todo em Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, e esse todo parecia refletir-<br />
-se em mamãe de modo muito marcante.<br />
Por fim, a atitude de Dona Lucilia<br />
diante da morte. Ela foi envelhecendo<br />
e, portanto, afundando dentro da morte,<br />
com uma calma extraordinária!<br />
Na véspera de seu falecimento —<br />
quando ela já havia recebido a Extrema-<br />
-Unção, e era impossível que não notasse<br />
estar próxima a morte — eu ainda vi esta<br />
cena.<br />
Aconteceu algo que de vez em quando<br />
se dava com ela, e que a fazia sofrer. Mas<br />
nessas ocasiões ela sempre tinha um gesto<br />
de paciência, como quem diz: “Deus<br />
arranja depois.”<br />
E isso que ocorreu inúmeras vezes ao<br />
longo de sua vida, repetiu-se nas vésperas<br />
de sua morte, e até de um modo particularmente<br />
desagradável.<br />
O gesto, que outrora queria dizer:<br />
“Não agravemos isto por uma reação,<br />
porque ainda se pode arranjar depois...”,<br />
repetido por ela, já encostada na morte,<br />
significava: “Bem, resta-me um quê de vida,<br />
talvez; não quero comprometer por<br />
nada este momento.”<br />
Por fim, ela teve a morte da católica<br />
calma: fez um grande “Nome do Padre” e<br />
morreu!<br />
v<br />
João Dias<br />
(Extraído de conferência de 14/6/1985)<br />
9
Perspectiva pliniana da História<br />
Considerações sobre<br />
o patriarcado<br />
O patriarca: figura tão importante e tão presente ao longo<br />
da História, cujo valor passou a ser menosprezado com o<br />
avanço do processo revolucionário.<br />
Uma pessoa poderia olhar para um cedro do<br />
Líbano sem muita atenção. Ela não perceberia<br />
bem ter aquele vegetal uma arquitetonia,<br />
um desenho que poderia ser comparado quase a um bailado<br />
imóvel de folhas.<br />
O cedro do Líbano, cantado<br />
pela Sagrada Escritura<br />
O cedro possui uma elegância, uma distinção, uma<br />
classe, uma “sabedoria”, uma superioridade em relação<br />
ao chão, eleva-se do solo para o céu e dá quase a impressão<br />
de quem diz:<br />
“Eu, cuja semente germinou nas profundezas obscuras<br />
da terra, elevei-me tão formoso pelos ares que passei<br />
a ser uma beleza integrante do céu. Olhai para meu tronco,<br />
é uma robusta coluna a penetrar corajosamente terra<br />
adentro! Porém, não renego o meu passado. Se é verdade<br />
que enfrento tantas tempestades, tantos vagalhões,<br />
e refuljo de tal maneira aos sóis mais causticantes e, na<br />
minha longevidade clássica e mais do que secular, desafio<br />
os homens — pois posso dizer a quem acaba de me<br />
Francisco Lecaros<br />
10
plantar: ‘Durarei mais do que tu’ —; entretanto, é verdade<br />
também que tudo isso estava contido numa semente<br />
inicial, que encerrava dentro de si toda a minha beleza,<br />
toda a minha longevidade, toda a minha dignidade. Tudo<br />
quanto em mim é feito para a luz germinou nas obscuridades<br />
do chão. E eis-me altaneiro, acima de todas as<br />
construções circunvizinhas, e mais venerável do que muitos<br />
que se abrigam à minha sombra. Quem sou eu? Sou<br />
o cedro do Líbano, cantado pela Escritura, obra de Deus<br />
louvada pelo próprio Deus.”<br />
Se um cedro desses pudesse pensar, e se fosse possível<br />
um agricultor experiente meter a pá na terra e, alcançando<br />
o bulbo originário, separá-lo sem dano para a própria<br />
árvore, e apresentá-lo ao cedro, este a quem nenhuma<br />
tempestade conseguira quebrar, espontaneamente se<br />
inclinaria até o chão diante de sua origem.<br />
Poderíamos imaginar o que diria o cedro ao suposto<br />
bulbo do qual ele nasceu: “Ó patriarca, tu és a minha<br />
causa! Tu continhas em ti mesmo tudo aquilo de que sou<br />
a explicitação!”<br />
Se é bonito o efeito que se desdobra, como ele é belo<br />
enquanto dorme obscuramente na causa! Portanto, se<br />
é pulcro ser cedro do Líbano, que glória ser um pequeno<br />
bulbo cujo cerne contém latente todo esse futuro!<br />
Em vista disso, a pequena semente poderia exclamar:<br />
“Ó Koh-I-Noor, diamante magnífico da coroa dos reis<br />
da Inglaterra, todos os homens te admiram; mas se eles te<br />
comparassem — carbono inerte, realmente transparente e<br />
muito formoso — comigo, bulbo do qual nascerá um cedro,<br />
como compreenderiam que sou superior a ti! Tu refletes<br />
uma luz, que de ti não nasce, e a projeta para longe; eu faço<br />
mais: recebi a vida e a prolongo, estendendo<br />
para os ares uma vitalidade<br />
que está dentro de mim.”<br />
Estas considerações ilustram bem<br />
o que é o Patriarcado. “Patri” vem<br />
do latim, pater: pai; “arca”, do grego,<br />
arkhē: governo, domínio. É a<br />
autoridade recebida pelo fato de<br />
ser pai, e exercida paternalmente.<br />
Os mais antigos patriarcas eram<br />
aqueles pais dos quais procedia<br />
uma numerosa descendência: filhos,<br />
netos, bisnetos, e assim por<br />
diante, fortemente unidos, porque<br />
o velho varão, à maneira do cedro<br />
do Líbano, estava como denominador<br />
comum entre eles todos, afirmando<br />
aquilo que eles tinham de singular, impedindo que<br />
essa característica se dispersasse na pluralidade rica das<br />
personalidades, e fazendo assim com que a família não se<br />
desfizesse, mas continuasse una, nele e por ele, porque cada<br />
membro encontrava no patriarca o ponto comum com<br />
todos os outros. Assim, ele ligava entre si não somente os<br />
filhos de uma mesma geração, mas os descendentes de ramos<br />
distintos e longínquos da família, durante várias gerações,<br />
porque ali estava o patriarca que vivia centenas de<br />
anos até que, afinal, para ele viesse a decadência das forças<br />
físicas e o sinal de que a morte o iria levar.<br />
Ele, então, já teria deixado na alma de cada um de<br />
seus descendentes, a quem ele formara, as suas próprias<br />
memórias, imprimindo nelas algo ao mesmo tempo comum<br />
a todas, mas contendo uma palavra inefável e própria<br />
para cada uma.<br />
Realizava-se, assim, a obra-prima da unidade na variedade,<br />
que consagra o patriarcado verdadeiro. Nada de estandardizações,<br />
nem de pluralidades e diferenças anárquicas<br />
entrechocando-se como bodes e cabritos no pasto; mas<br />
a multiplicidade bem ordenada que vemos brilhar tanto em<br />
determinados cedros do Líbano, ao espalharem em todas<br />
as direções seus galhos, cuja simetria nos recorda que cada<br />
ramo é mais belo pelo fato de haver outro — análogo, mas<br />
não idêntico — simétrico a ele, no sentido oposto.<br />
A família se expandiu de tal forma<br />
que dela nasceu um povo<br />
Assim se multiplica a família patriarcal: a mesma religião,<br />
a mesma língua, os mesmos tipos físicos que lem-<br />
Obra-prima da unidade<br />
na variedade<br />
Aclamação de Dom Pedro I no Campo de Sant’Ana, Rio de Janeiro<br />
Biblioteca do Congresso, Washington, EUA<br />
Limongi (CC. 3.0)<br />
11
Perspectiva pliniana da História<br />
bram a unidade da estirpe dentro da pluralidade dos rostos<br />
individuais; surgem os subpatriarcados, pois de tal<br />
descendente nasceu tal outra estirpe... O patriarca representa<br />
o gênero, enquanto os que nascem dos subpatriarcas<br />
representam as espécies.<br />
Imaginemos, nos tempos em que vigorava o estado de<br />
nomadismo, o amanhecer no acampamento dessa numerosa<br />
descendência. Aos primeiros reflexos do Sol, é o patriarca<br />
quem antes se levanta. Com sua longa barba e cabelos<br />
brancos, vestindo uma alva túnica, deixa sua tenda<br />
e, dentro da penumbra que precede a aurora, faz soar a<br />
trombeta feita de um longo chifre vazado. Saúda assim a<br />
manhã, vê as tendas começarem a se mover, e delas saírem<br />
os filhos, os netos, os bisnetos... Também os animais<br />
despertam, e por todo o acampamento manifesta-se a vitalidade.<br />
O patriarca olha, reza e abençoa.<br />
Deus, que criou o patriarca como um símbolo visível<br />
de Si mesmo, atende sua prece e cobre com sua bênção<br />
toda a estirpe, todos os animais e os campos que se estendem<br />
até os confins por aonde aquela família vai se expandir.<br />
Família? Não é só isso. Cresceu tanto que já é um povo<br />
a nascer.<br />
Patriarca? Sim, mas já não apenas pai. Ele está à testa<br />
daquilo que se encontra na transição entre uma família<br />
e uma nação. Algo da majestade real se faz venerar na<br />
sua velhice. Algo do direito de mandar, tão característico<br />
da realeza, reluz na sua causalidade, ou seja, naquela<br />
propriedade pela qual ele é a causa e por onde esta tem o<br />
domínio sobre o efeito.<br />
Domínio por um direito, porque criou, porque fez,<br />
porque gerou. Domínio também por uma necessidade,<br />
porque quem construir sem tomar em conta essa pedra<br />
de ângulo dispersa, faz o caos, a desordem.<br />
Quando as tribos que descendem de um mesmo chefe<br />
vão se tornando uma nação, e o patriarca recebe de seus<br />
filhos, em determinado momento, um diadema, ou mesmo<br />
uma simples faixa dourada para cingir a sua fronte, a<br />
sensação de todos seus descendentes será de, afinal, ter<br />
chegado algo que já estava demorando.<br />
O patriarca comanda na guerra<br />
e oferece o sacrifício na paz<br />
Do ponto de vista humano, a História é tecida na medida<br />
em que seus agentes — os quais são todos os seres<br />
humanos — estão sôfregos por dar o passo seguinte numa<br />
linha ascensional. Assim, cada grupo humano com vitalidade<br />
quer transpor as diferenças que o separam do<br />
estágio seguinte. A tribo que anseia por ser uma nação<br />
reverencia seu passado, quando ela era uma mera família,<br />
e guarda essas recordações com emoção, tendo encanto<br />
em dizer: “Nós somos uma família.” Mas o seu verdadeiro<br />
entusiasmo é quando ela, tomando as proporções<br />
de uma nação, pode dizer olhando para o seu passado:<br />
“Esta é uma família contente em ser, hoje, uma nação;<br />
mas ela tem a alegria em ter sido, outrora, uma família.”<br />
Uma nação que se desenvolve assim pratica a soma<br />
das idades. Ao passar de família ao estado intermediá-<br />
Monumento à<br />
Independência do Brasil<br />
São Paulo, Brasil<br />
Luiz Coelho(CC 3.0)
Quando se vem de um<br />
longínquo passado,<br />
têm-se elementos para<br />
compreender por onde<br />
correrá o longo futuro.<br />
Igreja de Nossa Senhora<br />
do Carmo e<br />
sepultura dos irmãos Andrada<br />
Santos, Brasil<br />
Reprodução<br />
rio, chamado tribo, ela levou consigo todas as recordações<br />
de sua infância.<br />
O patriarca tem todo o amor paterno e o amor filial,<br />
toda a influência e a capacidade de mando pelo afeto,<br />
pelo amor à ancestralidade, que caracteriza o seu poder<br />
nascente. Ao passar a ser o chefe de uma tribo, ele é também<br />
um guerreiro. Em certos povos pagãos, ele é o grande<br />
sacerdote também. Portanto, é ele quem comanda na<br />
guerra e oferece o sacrifício na paz; é o pontífice único<br />
ou principal daquele estado intermediário.<br />
Reprodução<br />
Dom Pedro I foi o patriarca do Brasil<br />
Normalmente, quando aquele grupo humano torna-<br />
-se uma nação, o sucessor do patriarca será o rei, condensação<br />
de todo o patriarcado e de toda a era familiar<br />
anterior. No corpo do rei bate o coração de um pai, na<br />
sua fronte reluzem os grandes desígnios de um rei. Suas<br />
mãos empunham a espada e a lança em tempo de guerra,<br />
e ele é o primeiro no risco; mas em tempo de paz, na hora<br />
do sacrifício, são as mãos dele que se juntam para rezar,<br />
para oferecer a vítima.<br />
Como tudo isto é belo! Como tudo isto tem uma potencialidade<br />
magnífica! É a soma das idades, praticada<br />
pelas nações.<br />
Quando um povo é atento, em todos os lances de sua<br />
vida, a praticar essa soma das idades, dentro dele nasce<br />
uma série de “patriarcalidades”. Por causa disso, os homens<br />
que fundam uma nação podem não ser, no sentido<br />
genealógico, os patriarcas dela, mas quando vamos ver a<br />
reverência prestada a um fundador, notamos que o país<br />
o constituiu numa espécie de patriarca.<br />
No local onde se proclamou a independência do Brasil,<br />
foi feito um grande monumento representando o entusiasmo,<br />
a união, o devotamento de todos os Estados<br />
brasileiros pelo Imperador D. Pedro I e sua esposa, a Imperatriz<br />
Dona Leopoldina, porque ele, declarando a independência,<br />
foi o patriarca, fundou esta nação.<br />
Em Santos, a sepultura dos irmãos Andrada<br />
Estando certa vez com um grupo de amigos em Santos<br />
— eu era ainda moço —, e tendo ouvido falar que os<br />
restos mortais dos três irmãos Andrada, os quais tiveram<br />
tão importante papel na proclamação da independência<br />
do Brasil, jaziam em Santos, manifestei o desejo de ir visitar<br />
essa sepultura.<br />
Meus companheiros não compreendiam isso, e me<br />
disseram:<br />
— O que você quer fazer lá?<br />
13
Perspectiva pliniana da História<br />
— Quero reverenciá-los — respondi. Sei que foram<br />
homens lúcidos, inteligentes. Embora eu poderia não<br />
concordar com muitas ideias liberais deles, orientaram<br />
tão bem alguns primeiros passos do Brasil, que se tem<br />
quase a impressão de terem espargido sua inteligência<br />
por toda a Nação, comunicando algo da rutilação do espírito<br />
de um José Bonifácio, por exemplo, à inteligência<br />
do povo brasileiro.<br />
A sepultura dos três Andrada está na Igreja do Carmo,<br />
em Santos, numa pracinha, perto do cais. São duas<br />
igrejas geminadas — da Ordem primeira e da Ordem<br />
terceira —, muito pitorescas, com estalas lindas, com um<br />
oratório que data ainda do tempo de Felipe II, quando<br />
ele era Rei do Brasil. Todas essas circunstâncias levavam-<br />
-me a venerar aquilo tudo.<br />
Pedi, então, ao porteiro do convento que me indicasse<br />
a sepultura dos irmãos Andrada.<br />
Considerando o grande papel que desempenharam<br />
na fundação do Brasil, eu supunha encontrar um monumento<br />
magnífico, feito para receber seus restos mortais.<br />
Qual não foi minha estranheza ao ver apenas uma espécie<br />
de sala com a sepultura<br />
dentro.<br />
A noção de patriarcalidade<br />
vai se perdendo...<br />
Aquele que teve a missão<br />
de fundar e, com ela, as graças<br />
ou mesmo os meros favores<br />
e dons naturais concedidos<br />
pela Providência para ter<br />
a criatividade e impulsionar,<br />
merece da parte daquilo por<br />
ele fundado o mesmo respeito<br />
que o cedro do Líbano teria<br />
em relação ao velho bulbo<br />
do qual ele brotou.<br />
Carlos Magno: o<br />
patriarca do qual<br />
nasceu a Europa<br />
As sociedades antigas não<br />
conheciam certas deformações<br />
que as sociedades modernas<br />
experimentam, porque<br />
elas eram atentas a essas unidades.<br />
Assim, por exemplo, as<br />
características regionais em<br />
um país eram muito definidas<br />
antigamente, e nessas regiões<br />
havia um grande número de<br />
famílias, de todas as classes<br />
Relicário de Carlos Magno<br />
Catedral de Aachen, Alemanha<br />
sociais, que podiam dizer ao longo de quantas gerações se<br />
havia exercido tal profissão, e que sabiam mais ou menos<br />
qual era o primeiro da família a ter iniciado aquele ofício.<br />
Na França, por exemplo, havia uma família que, comprovadamente,<br />
descendia de lenhadores do tempo de<br />
Carlos Magno. Era uma estirpe mais antiga, enquanto lenhadores,<br />
do que a linhagem real, como monarcas. Essa<br />
família era organizada à maneira patriarcal: todos os ramos<br />
se conheciam, tinham reuniões e havia um descendente<br />
do ramo primogênito que exercia uma grande influência,<br />
era muito venerado e tinha uma espécie de direção<br />
geral de toda a parentela.<br />
Todos os anos, quando chegava o aniversário dele, o<br />
rei mandava soldados de cavalaria levar-lhe uma mensagem<br />
de felicitações.<br />
Considero esta atitude, antes de tudo, fruto de uma<br />
linda disposição de alma. Mas, se não fosse isso, seria em<br />
todo caso um gesto genial, porque assim a própria monarquia<br />
francesa manifestava, de um modo vivo, que ela<br />
se alegrava por aquela família vir de um tempo anterior<br />
a ela. Embora a família real francesa seja, talvez, a dinastia<br />
mais antiga da Europa,<br />
ela se gloriava em perpetuar,<br />
por uma continuidade efetiva<br />
e verdadeira, um passado<br />
anterior a ela, que vinha dos<br />
desígnios e do heroísmo de<br />
Carlos Magno.<br />
Proceder de Carlos Magno,<br />
a qualquer título, que<br />
maravilha! Aquele é o bulbo,<br />
é o patriarca do qual nasceu<br />
a Europa!<br />
HOWI (CC 3.O)<br />
Um exemplo de<br />
”despatriarcalização”<br />
Havia antigamente, em relação<br />
aos pais, aos fundadores,<br />
uma atmosfera de respeito,<br />
de veneração, uma tendência<br />
à aglutinação em torno<br />
deles, à obediência, que<br />
caracterizava uma ordem<br />
de coisas estável, tranquila<br />
a olhar com serenidade para<br />
o futuro, porque, não tendo<br />
perdido a memória dos<br />
séculos anteriores, as pessoas<br />
conservavam uma espécie<br />
de bússola que lhes indicava<br />
qual era o porvir.<br />
14
Quando se vem de um longínquo<br />
passado, têm-se elementos para compreender<br />
por onde correrá o longo<br />
futuro. Isso é muito importante. Hoje<br />
se fala de futurologia. Tenho vontade<br />
de dar risada: “Fale de tradição!” Se<br />
alguém quiser, por exemplo, ser um<br />
bom brasileiro e prever o futuro do<br />
Brasil, é conveniente fazer estudos,<br />
mas não lhe adiantarão grande coisa<br />
se não entender a Torre de Belém<br />
do velho Portugal, do qual nos gloriamos<br />
de descender. Sem essa noção<br />
das raízes, fracassará.<br />
Com a Revolução Industrial, essa<br />
unidade de origens foi fragmentada.<br />
Por exemplo, no século XIX aldeias<br />
suíças inteiras migravam para os Estados<br />
Unidos; contratavam companhias<br />
de navegação e embarcavam,<br />
tendo à frente o vigário com o estandarte<br />
do Padroeiro da paróquia. A<br />
aldeia ficava fechada e vazia...<br />
Quem não compreende que houve uma “despatriarcalização”<br />
ali? Uma extirpação de raízes, algo que deveria<br />
ter sido diferente.<br />
Barulho que ”blasfemava” contra a natureza<br />
Em menino, eu costumava ir a uma fazenda no interior<br />
de São Paulo, perto da qual passava uma estrada de<br />
ferro. Devido à grande quantidade de montanhas na região<br />
e à dificuldade para túneis, os trens davam muitas<br />
voltas por aquelas paragens, até chegar ao seu destino.<br />
Então, na sede da fazenda onde eu estava, ouvia-se de<br />
longe o silvo do trem que tocava, rasgando o silêncio da<br />
tardinha. Dez, quinze minutos depois, aquele apito se fazia<br />
ouvir de outro lado. Eu ficava desagradado e aflito<br />
com aquilo. “Por que esse barulho? Por que rasgar de um<br />
modo tão indiscreto e estúpido, por assim dizer sem pedir<br />
licença, o augusto silêncio desta noite que vai descendo?”<br />
Em determinado momento, o trem passava em frente<br />
do terraço de minha fazenda. E, mentiroso como é o<br />
progresso moderno, para quem estava do lado de fora, o<br />
veículo dava a impressão de um palácio. Os trens naquele<br />
tempo eram diferentes dos de hoje: muito mais ornados,<br />
com cortininhas nas janelas, tinha-se a impressão de<br />
um palácio feérico que ia levando uns privilegiados, a toda<br />
velocidade, para a cidade onde um futuro também feérico<br />
os aguardava.<br />
Quando o trem acabava de passar, deixava a sensação<br />
de um conto de fadas que, depois de ter feito barulho<br />
Estação ferroviária de General Carneiro, Minas Gerais,<br />
em fins do século XIX<br />
e deitado faíscas, dizia: “Eu te darei um futuro deslumbrante<br />
se romperes com esta calma, com este silêncio,<br />
com esta patriarcalidade, e entrares nas minhas asas de<br />
ferro. Eu te levarei para a cidade, na qual serás um anônimo,<br />
mas onde um torvelinho delicioso te fará esquecer<br />
do teu passado e te embriagará de uma glória que eu te<br />
prometo, se tu fizeres força. Faze força e serás um anônimo<br />
montado em milhões. Não terás um passado, mas<br />
possuirás dinheiro!”<br />
E eu pensava: “Estou vindo da cidade. Conheço esse<br />
trem. Andei dentro dele com horror, detestei suas sacolejadas,<br />
abominei as fagulhas que ele deita, consultei<br />
o relógio inúmeras vezes para ver quando acabava a viagem!<br />
Vim para o campo com vontade de encontrar esta<br />
tranquilidade, e volto à cidade aborrecido por ter que<br />
deixá-la. Abomino a mentira desse trem ‘blasfemando’<br />
contra a natureza. Ele é falsidade com asas de ferro, levando<br />
para uma aventura que é uma loucura. É a morte<br />
da sabedoria. Nesse corre-corre, nesse desvario, não<br />
há continuidade, não há pensamento, não há calma, não<br />
há tradição. E onde não existe nada disso não pode haver<br />
futuro. Há transformações. Mas, cuidado: transformação<br />
não é sempre futuro. Transformação pode ser decadência,<br />
pode levar facilmente para a morte!”<br />
Eram essas as considerações que, no meu tempo de<br />
adolescência, eu fazia para diferenciar-me e defender o<br />
meu direito de não ser conforme à Revolução, de querer<br />
outra coisa e de caminhar para outro rumo. v<br />
(Extraído de conferência de 28/12/1985)<br />
Lecen (CC 3.0)<br />
15
Reflexões teológicas<br />
“Tu o dizes, Eu sou Rei”<br />
Presente em todos os sacrários da Terra,<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo exerce uma realeza efetiva<br />
sobre toda a História, por meio da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana.<br />
N<br />
osso Senhor Jesus Cristo foi ora aclamado, ora<br />
ridicularizado como Rei, coroado de espinhos<br />
e, por fim, no alto da Cruz onde Ele foi imolado<br />
colocaram a inscrição: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus.”<br />
O que havia de autêntico na realeza d’Ele, e qual<br />
a relação de sua Paixão com essa realeza?<br />
Realeza incompreensível para os ímpios<br />
Interrogado durante a Paixão, por Pôncio Pilatos, sobre<br />
se Ele era rei, Nosso Senhor Jesus Cristo respondeu:<br />
“Tu o dizes, Eu sou Rei.”<br />
Entretanto, pouco antes Ele afirmara que seu Reino<br />
não é deste mundo. Declaração incompreensível para<br />
aqueles bandidos que O atacavam. Do que adianta ser<br />
rei para não o ser deste mundo? Há fora deste mundo<br />
um reino no qual se possa reinar? Ora, um rei sem reino,<br />
é um ex-rei. Donde é, pois, esse reino?<br />
Para debicar de sua realeza, aqueles algozes Lhe puseram<br />
uma coroa de espinhos, uma túnica escarlate e uma<br />
vara de bobo na mão, à guisa de cetro; e O esbofeteavam,<br />
dizendo: “Ave, Rei dos judeus!”<br />
Uma nação ímpia, um governador romano ímpio também,<br />
insensíveis ou refratários à verdadeira realeza d’Ele<br />
que se irradiava como a luz do Sol, resolveram atender<br />
às vontades da plebe e do Sinédrio que queriam matá-Lo<br />
por torpes ambições, quiçá, por ódio à santidade d’Ele.<br />
E para provar que Ele não tinha poder, nem sabedoria,<br />
nem divindade, nem realeza, colocaram-Lhe uma coroa<br />
de espinhos sobre a cabeça.<br />
Misto de humilhações e vitórias<br />
O seu Corpo verte Sangue abundantemente, e Ele Se<br />
torna purpúreo como se estivesse revestido de um manto<br />
imperial, cujo valor é infinito. Abandonado pelos Após-<br />
tolos, rejeitado pelo povo eleito, sentado sobre um banquinho<br />
ou uma pedra qualquer e levando bofetadas,<br />
mantém Ele a mansidão de um Cordeiro com a altaneria<br />
de um Leão e a dignidade de um Rei em seu trono, num<br />
misto de dor lancinante e de triunfo, que O acompanharão<br />
até o Calvário.<br />
Do alto da Cruz, pouco antes de morrer, como um<br />
Rei que premia um herói, Ele reabilita um ladrão e canoniza-o,<br />
dizendo: “Hoje, tu estarás comigo no Paraíso!”<br />
Assim é a vida do católico, a vida da Igreja: cheia de<br />
humilhações e de vitórias. Humilhações tão profundas<br />
que se diria nunca mais poder reerguer-se delas; vitórias<br />
tão grandes que julgaríamos irreversíveis.<br />
Entretanto, como uma nau que navega levada pelas<br />
ondas a alturas e profundidades vertiginosas, assim a<br />
barca de São Pedro vai percorrendo a História: com todas<br />
as honras, mas também com todas as dores e humilhações<br />
de Cristo coroado.<br />
Três espinhos dessa coroa sagrada foram parar em<br />
mãos de São Luís IX, Rei de França, que para abrigá-los<br />
devidamente mandou construir um dos mais belos monumentos<br />
da arte medieval e, portanto, de toda a História:<br />
a Sainte-Chapelle, verdadeira caixa de cristal com nervuras<br />
de granito, onde se celebra o Santo Sacrifício.<br />
Um Reino que não é deste mundo<br />
Sim, Nosso Senhor Jesus Cristo é verdadeiramente<br />
Rei, antes de tudo por ser Ele<br />
Quem é: o Verbo de Deus encarnado.<br />
Deus é Rei, porque é Deus! Logo, Jesus<br />
Cristo é plenamente Rei por sua divindade.<br />
Se houve, portanto, alguém digno<br />
deste título na Terra, este foi, continua<br />
a ser e será Ele, até o fim do<br />
mundo.<br />
Gustavo Kralj<br />
16
Assim, quando Lhe perguntaram se era Rei, Ele tinha<br />
toda a razão em responder: “Verdadeiramente, tu o dizes,<br />
Eu sou Rei!”<br />
Ele fizera inúmeros milagres, convertera os homens, viera<br />
para, por sua Paixão e Morte, resgatar do pecado o gênero<br />
humano. Não Lhe faltavam, pois, títulos para a realeza.<br />
Os milagres, a santidade e a profundidade incomparável<br />
de sua doutrina, o testemunho da Sagrada Escritura,<br />
tudo levava a reconhecê-Lo como o Messias.<br />
O Antigo Testamento falava que o Messias, descendente<br />
de Davi, seria o Rei de Israel cujo Reino eterno se estenderia<br />
sobre o universo inteiro.<br />
Os judeus esperavam, portanto,<br />
a vinda de um príncipe<br />
da Casa de Davi, um conquistador,<br />
um político e um militar<br />
extraordinário que brilhasse como<br />
um potentado terreno e pusesse<br />
longe os romanos conquistadores,<br />
tomando conta de Jerusalém para estabelecer<br />
um reinado de glória, perto<br />
do qual o de Salomão não teria sido<br />
senão um tímido prefácio.<br />
Ora, Jesus veio e não conquistou<br />
nada, reconheceu a autoridade<br />
de César, e disse não pertencer a este<br />
mundo o seu Reino.<br />
Reinando de dentro de todos<br />
os sacrários da Terra<br />
Contudo, sendo Homem-Deus, não só conhecia,<br />
mas dispunha do futuro. O domínio de todos<br />
os acontecimentos da História Lhe pertence.<br />
Ele sabia que o seu Reino chamar-se-ia Igreja<br />
Católica Apostólica Romana.<br />
Não é um reino deste mundo, constituído<br />
para ter exércitos e fazer política. É o reino<br />
estabelecido para difundir o nome e a mensagem<br />
d’Ele a todos os homens, e para<br />
que a Lei d’Ele viesse a vigorar, um dia,<br />
em todo o orbe.<br />
Grande mistério: Ele reinaria<br />
de dentro de todos os sacrários<br />
da Terra! Quem poderia compreender<br />
uma coisa dessas?<br />
Mas Ele tinha razão: “Tu o<br />
dizes, Eu sou Rei!” v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 28/4/1984)<br />
Santo Cristo dos Milagres<br />
Toronto, Canadá<br />
17
De Maria nunquam satis<br />
A glória excelsa de<br />
Maria Santíssima<br />
Eric Rolph (CC 3.0)<br />
Por mais grandiosa que seja a Criação, há entre as<br />
meras criaturas e Nosso Senhor Jesus Cristo um<br />
abismo infinito. A Santíssima Virgem é o grampo de<br />
ouro que une toda a Criação ao Divino Redentor.<br />
Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças.<br />
Portanto, através d’Ela sobem a Deus todos<br />
os pedidos feitos pelos homens e vêm todos<br />
os favores concedidos pela Divina Providência.<br />
Princípio da gradatividade<br />
Para entender bem a importância de Maria Santíssima<br />
na Doutrina Católica é preciso compreender, antes<br />
de tudo, o papel de Nossa Senhora nos planos de Deus,<br />
Quem é Ela e qual sua fisionomia espiritual.<br />
Quando observamos a natureza material que nos circunda<br />
— os bonitos panoramas, a mudança de cores e de<br />
luz durante o dia, etc. —, notamos serem frequentes formas<br />
de beleza, as mais excelentes, que se manifestam por<br />
meio de tonalidades intermediárias.<br />
Por exemplo, o arco-íris: ele é composto por uma série<br />
de tonalidades intermediárias que combinam entre si<br />
e se sucedem, não de um modo brusco, mas harmonioso.<br />
Quando contemplamos os dois extremos de um frag-<br />
mento do arco-íris, percebemos que, através de cores intermediárias,<br />
Deus fez a ótica humana passar harmoniosamente<br />
de um extremo de uma cor ao extremo de outra.<br />
Nessa conjugação de dois extremos, através de formas<br />
intermediárias de beleza, está verdadeiramente o encanto<br />
do arco-íris.<br />
Nota-se algo semelhante em certas flores cujas pétalas<br />
vão mudando gradativamente de cor à medida que se<br />
distanciam da corola.<br />
O princípio da gradatividade é um dos mais belos da<br />
natureza, segundo o qual todas as coisas se dispõem em<br />
graus. Há uma harmonia constituída de elementos diversos<br />
que se justapõem, fazendo-nos passar de um extremo<br />
a outro paulatinamente.<br />
Ao avaliar colares, por exemplo, os joalheiros dão<br />
muita importância a este princípio. Há colares compostos<br />
por pérolas de diferentes tamanhos, nos quais as pérolas<br />
bem pequenas ficam junto ao fecho e, à medida<br />
que se aproximam do centro, elas vão aumentando sucessivamente,<br />
até dar numa pérola bem grande. É preci-<br />
18
so que a diferença de uma pérola para outra seja proporcional.<br />
Esses graus sucessivos e harmônicos dão tal beleza<br />
ao colar a ponto de os joalheiros darem, muitas vezes,<br />
mais valor a um colar com pérolas de tamanhos diversos<br />
e gradativos, do que um colar onde todas as pérolas são<br />
grandes e iguais. Aliás, é mais difícil encontrar uma série<br />
de pérolas com tamanhos inteiramente adequados, e<br />
há uma forma de beleza mais artística nessas pérolas que<br />
formam, assim, uma coleção, do que um conjunto de pérolas<br />
grandes circundando o pescoço de uma senhora.<br />
Observa-se este mesmo princípio em toda a natureza<br />
criada.<br />
Minerais, vegetais, animais<br />
Tomemos o brilhante mais estupendo, ou a pérola mais<br />
magnífica, e o comparemos com uma folha de alface, a<br />
mais ordinária que possa haver. Embora o brilhante tenha<br />
uma beleza extraordinária e um preço enorme, a<br />
folha de alface possui um predicado que deixa o<br />
brilhante longe: ela tem vida. Qualquer ervinha<br />
vale, do ponto de vista ontológico, incomparavelmente<br />
mais do que o brilhante.<br />
Subindo a escala dos seres, a superioridade<br />
de um animal em relação a uma planta é simplesmente<br />
fabulosa! Pelo fato de que o<br />
animal tem sensibilidade e a planta não.<br />
Se nos dermos ao trabalho de examinar,<br />
por exemplo, um gato andando<br />
sobre um telhado, veremos o mundo<br />
de finura e sensibilidade empregadas<br />
pelo felino. Cada passo é dado com “critério”; ele<br />
olha em volta de si e, quando percebe que a situação<br />
não é muito segura, não se precipita; examina, move um<br />
pouco a orelha, e quando está muito “preocupado” ele<br />
mia. Um gato só se joga quando percebe que pode jogar-<br />
-se. Então, ele dá o pulo, cai com naturalidade e sai andando<br />
como se não tivesse acontecido nada; e às vezes<br />
são alturas vertiginosas! É uma sensibilidade muito aguda,<br />
muito perfeita, que o gato tem. Para algumas coisas,<br />
é mais perfeita do que a sensibilidade humana.<br />
Comparem isso com uma árvore frondosa que deita galhos<br />
enormes onde pousam os pássaros, e cobre grande extensão<br />
de uma planície. Sem dúvida, é uma glória; mas que<br />
cativeiro! Ela está atada ao chão pelas raízes, incapaz de se<br />
defender. O próprio solo, do qual a árvore suga os elementos<br />
vitais, é a prisão onde ela permanecerá até morrer.<br />
O ser humano, miniatura do universo<br />
Hgrobe (CC 3.0)<br />
Acima dos animais estão os seres humanos, compostos<br />
de espírito e matéria e também dispostos hierarquicamente.<br />
Em seguida vêm os anjos, seres puramente espirituais.<br />
Quando examinamos o universo dos seres intelectuais<br />
— homens e Anjos — notamos existir também uma gradação.<br />
Os Anjos estão distribuídos em nove categorias dentro<br />
das quais não há um igual ao outro. Se fôssemos representar<br />
graficamente o mundo angélico, deveríamos imaginar,<br />
no caso dos Anjos bons, uma fileira fabulosa de espíritos,<br />
cada vez mais lúcidos, mais fortes, mais virtuosos<br />
e mais próximos de Deus, até chegar aos supremos, os<br />
Serafins que têm uma visão mais clara e direta do Altíssimo<br />
do que todos os outros Anjos, e repetem eternamente<br />
o Sanctus: “Sois Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos<br />
Exércitos...”, aquela adoração muda e, ao mesmo tempo,<br />
feita continuamente de exclamações, no mais alto de toda<br />
a série dos Anjos.<br />
Obrer (CC 3.0)<br />
Electron (CC 3.0)<br />
19
De Maria nunquam satis<br />
Vemos, portanto, em todo o universo uma gradação:<br />
os seres sem vida, minerais; os vegetais, seres vivos sem<br />
nenhuma forma de conhecimento; os animais, com conhecimento<br />
meramente instintivo; os homens, dotados<br />
de conhecimento instintivo e intelectivo, mas ainda imersos<br />
na matéria; os Anjos, pairando acima da matéria. Assim,<br />
há uma escala que vai da última pedra, ou da poça<br />
de lama mais ordinária até Deus Nosso Senhor, por meio<br />
de uma gradação magnífica, na qual há uma hierarquia e<br />
uma harmonia extraordinárias.<br />
Outro aspecto deste princípio é a ideia de que em todos<br />
os conjuntos hierarquicamente constituídos deve haver<br />
um elemento máximo, em torno do qual se ordena a<br />
beleza de todos os outros.<br />
Quando nos perguntamos qual é o mais alto desses seres<br />
criados, devemos naturalmente dizer que é um Serafim.<br />
Mas as obras de Deus são cheias de subtilezas, entre<br />
as quais esta:<br />
Sem dúvida, no alto da hierarquia das criaturas temos<br />
os Serafins, mas é verdade também que o homem apresenta<br />
uma qualidade especial: só ele contém em si o universo<br />
inteiro. Nós temos espírito como os Anjos, corpo<br />
como os animais, vida vegetativa como as plantas, e materiais<br />
tirados do mundo mineral. O homem é uma espécie<br />
de miniatura do universo.<br />
Diz a Bíblia que Deus, depois de ter criado todos os<br />
seres, viu que cada um deles era bom, mas o conjunto era<br />
ainda melhor. E se é verdade que o Anjo é superior a nós<br />
por ser puro espírito, poderíamos, forçando um pouco a<br />
nota, dizer a ele, depois de lhe ter feito, evidentemente,<br />
uma profunda reverência à qual ele tem direito: “Vós<br />
sois incomparavelmente mais nobre do que nós, enquanto<br />
puro espírito. Contudo, o conjunto, em nós, está representado<br />
mais adequadamente do que em vós.”<br />
Trata-se de um aspecto da realidade, cuja enorme importância<br />
no plano da Criação veremos a seguir.<br />
Como explica a Teologia, uma das razões pelas quais<br />
convinha que a união hipostática se desse com a natureza<br />
humana é precisamente o fato de que Deus, unindo-Se a<br />
um homem, honrava de modo especial todos os graus da<br />
Criação. É tão grande a dignidade de sermos um compêndio<br />
de toda a Criação, que motivou essa honra especial a<br />
qual o Verbo de Deus quis nos dar: Ele Se fez carne e habitou<br />
entre nós. Creio que Ele Se teria feito carne e habitado<br />
entre nós ainda que não tivesse havido o pecado original,<br />
para assim, na sua misericórdia, honrar todas as criaturas.<br />
Vemos, por estas considerações, quanto é belo e piedoso<br />
o pensamento expresso por diversos autores segundo<br />
os quais, quando Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu,<br />
houve uma alegria em toda a natureza, e esta se revestiu<br />
de um novo esplendor: os astros brilharam com mais intensidade,<br />
o ar tornou-se mais puro, as águas das fontes<br />
ficaram mais cristalinas, as plantas tomaram maior viço,<br />
os animais se alegraram e se tornaram mais saudáveis; os<br />
homens bons adquiriram mais esperança. Por quê? Porque<br />
vinha ao mundo Aquele que, sendo o próprio Deus,<br />
ligara a Si todo esse conjunto por meio da natureza humana.<br />
Quando olharmos a menor das pedras, a menor das<br />
plantas, o menor dos bichos ou o menor dos homens, devemos<br />
pensar isto: a natureza deles está, de algum mo-<br />
Com a Encarnação do Verbo toda<br />
a Criação uniu-se a Deus<br />
Anjo - Catedral<br />
Notre-Dame,<br />
Paris, França<br />
20
Anunciação - Basílica<br />
Santa Maria Sopra<br />
Minerva, Roma, Itália<br />
Gustavo Kralj<br />
Sérgio Hollmann<br />
do, presente em Nosso Senhor Jesus Cristo e, assim, ligada<br />
a Deus, participando de sua glória no mais alto do<br />
Céu, no oceano de esplendor de santidade da Santíssima<br />
Trindade.<br />
Um abismo preenchido pela<br />
Santíssima Virgem<br />
Contudo, pelo mesmo princípio de gradatividade acima<br />
mencionado, o espírito humano, sequioso de ordem<br />
e de razoabilidade em todas as coisas, busca um ser que<br />
preencha o abismo infinito ainda existente entre Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo e a mera Criação: um ser tão próximo<br />
do Homem-Deus, que estivesse acima dos Anjos;<br />
mas que, sendo pura criatura humana, englobasse também<br />
todas as demais naturezas.<br />
Esse ser é precisamente Nossa Senhora. Ela foi colocada<br />
numa altura insondável, e numa plenitude de glória,<br />
de perfeição e de santidade inimagináveis. Acima<br />
d’Ela está somente seu Divino Filho e a Santíssima Trindade.<br />
Por um mistério também insondável, Maria Santíssima<br />
gerou virginalmente Nosso Senhor Jesus Cristo, permanecendo<br />
virgem antes, durante e depois do parto por<br />
ação do Espírito Santo, de Quem se tornou, assim, verdadeira<br />
esposa.<br />
A dignidade de ser Mãe do Verbo encarnado, Esposa<br />
do Espírito Santo e Filha dileta do Pai eterno coloca-<br />
-A, embora sendo uma criatura puramente humana, acima<br />
dos Anjos.<br />
Criada com a missão de obter<br />
a vinda do Messias<br />
Dante, na “Divina Comédia”, depois de ter passado<br />
pelo Inferno e pelo Purgatório, percorre os vários círculos<br />
dos bem-aventurados no Céu. Quando chega aos<br />
mais altos Serafins, vê acima deles Nossa Senhora que<br />
sorri para ele. Então, ele olha para dentro dos olhos de<br />
Nossa Senhora e ali contempla o reflexo da Santíssima<br />
Trindade.<br />
Depois de ter contemplado os olhos celestes e virginais<br />
de Maria Santíssima, resta apenas ver a Deus face<br />
a face, no Céu. O olhar humano chegou tão alto quanto<br />
podia chegar. Fitou o olhar puríssimo, sacratíssimo, sumamente<br />
régio e indizivelmente materno de Nossa Senhora!<br />
A mais alta das cogitações humanas foi feita, a<br />
“Divina Comédia” terminou.<br />
Esta concepção nos faz ver que o princípio da gradatividade<br />
por mim enunciado comporta uma aplicação excelente<br />
em Nossa Senhora. Porque Ela é o grampo de<br />
ouro que liga toda a Criação a Nosso Senhor Jesus Cris-<br />
21
De Maria nunquam satis<br />
Teresita M.<br />
Em certo momento, a Virgem Santíssima recebeu a<br />
revelação da Paixão pela qual passaria seu Divino Filho e<br />
dos sofrimentos atrozes que viriam sobre Ele e sobre Ela.<br />
Nossa Senhora deveria padecer em união com Aquele<br />
que sofreu como nunca nenhum homem tinha sofrido e<br />
nem sofreria até o fim do mundo. À Passio — Paixão —<br />
de Jesus se uniria a compassio — a compaixão, o “co-sofrimento”<br />
— de Maria.<br />
Para que os homens pudessem ser salvos e dar glória a<br />
Deus, Ela consentiu em ser a Mãe do Redentor e suportar<br />
esses tremendos sofrimentos.<br />
É possível conceber o que Nossa Senhora sofreu durante<br />
a Paixão?<br />
Imaginemos o que sentiria qualquer mãe que, andando<br />
pela rua, ouvisse de repente um alarido e, aproximando-se,<br />
visse seu filho sendo chicoteado, deitando sangue<br />
por todos os poros, padecendo dores indizíveis, carregando<br />
uma cruz, objeto da selvageria de um populacho brutal,<br />
vil, dando risada dele, dizendo atrocidades e levando-<br />
-o, junto com essa cruz, para ser crucificado e morrer no<br />
mais horroroso dos martírios, no alto de uma montanha.<br />
Essa mãe desmaiaria, ficaria psicótica, louca, conforme<br />
o caso poderia até morrer.<br />
Ora, Nossa Senhora queria a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo incomparavelmente mais bem do que qualquer<br />
mãe possa querer a seu filho. Em primeiro lugar, porque<br />
Ela é a melhor Mãe que houve e haverá; mas também<br />
porque Ela teve um Filho incomparavelmente melhor do<br />
que qualquer outro.<br />
É difícil imaginar a graça e encanto manifestados por<br />
Nosso Senhor como Filho: todo o respeito, a ternura, a veto,<br />
colocada no alto de todo o universo e contendo em Si<br />
toda a beleza das meras criaturas.<br />
Qual é o papel dessa criatura tão excelsa em relação a<br />
nós? Qual é a missão de Nossa Senhora na história de ca-<br />
“Meu Deus, meu Filho: pela minha<br />
inocência, pela minha virgindade,<br />
pelo amor que Vós sabeis que<br />
Vos tenho, Eu Vos peço por este<br />
filho pecador. Em nome dessa<br />
chaga que Vós sofreis por causa<br />
dele, peço-Vos que o perdoeis.”<br />
Sant’Ana explicando as Escrituras<br />
a Maria Santíssima (acervo particular)<br />
da homem e na História da Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana, ou seja, no centro da História da humanidade?<br />
Porque o centro da História da humanidade é a<br />
História da Santa Igreja Católica.<br />
A Santíssima Virgem sempre foi representada como<br />
estando em oração, no momento em que recebeu o<br />
anúncio do Arcanjo São Gabriel.<br />
Sem dúvida, Ela pedia a vinda do Salvador que haveria<br />
de resgatar a humanidade e fundar a instituição<br />
a qual dispensaria a graça de Deus em tal abundância,<br />
que os homens afinal se tornassem, mais frequente e facilmente,<br />
virtuosos e, assim, a verdade, a beleza, o bem,<br />
a grandeza, o amor de Deus pudessem constituir-se no<br />
mundo e levar as almas ao Céu.<br />
Nenhuma outra criatura humana tinha valor e virtude<br />
suficientes para impetrar e alcançar tal graça. Assim, Ela<br />
foi criada especialmente com a missão de obter a vinda<br />
do Messias esperado.<br />
Seus sofrimentos durante a Paixão<br />
22
neração, a delicadeza,<br />
a grandeza! Como<br />
terão sido os<br />
trinta anos de intimidade<br />
entre Ele e<br />
Nossa Senhora, durante<br />
os quais Ela O<br />
viu crescer em graça<br />
e santidade diante<br />
de Deus e dos homens<br />
e amou, com<br />
amor perfeito, cada<br />
estágio da perfeição<br />
d’Ele que ia se desenvolvendo?<br />
Qual<br />
era o abismo de adoração<br />
no qual Ela se<br />
desfazia em relação<br />
a Ele?<br />
Pois bem, Ela vê<br />
esse Filho, o próprio<br />
Deus, a própria<br />
Timothy Ring<br />
Santidade, tratado assim por aquele populacho!<br />
Quando Ela teve o encontro com Ele durante a Via<br />
Dolorosa, quando O abraçou, O osculou, e recebeu a<br />
glória enorme de ter o seu rosto virginal e sua túnica tintos<br />
com o Sangue divino; quando Ela recolheu os gemidos<br />
d’Ele, e foi a seu lado subindo até o alto do Calvário;<br />
quando Ela viu seus estertores finais e Ele gritar: “Eli, Eli<br />
lamá sabactâni” — Meu Deus, meu Deus, por que Me<br />
abandonastes? —; e depois dizer: “Está tudo terminado”,<br />
inclinar a cabeça e exalar o espírito: ao contemplar<br />
tudo isso, qual terá sido do sofrimento d’Ela?<br />
Ela pedia o perdão para cada um de nós<br />
Nossa Senhora das Dores - Sevilha, Espanha<br />
Nesses momentos em que Maria Santíssima sofreu<br />
de um modo indizível, Ela manteve uma serenidade tão<br />
perfeita que Se conservou de pé o tempo inteiro junto à<br />
Cruz, com uma resignação e uma força que fazem d’Ela<br />
o modelo da criatura humana posta no sofrimento.<br />
Até o último momento, Ela dizia ao Padre Eterno:<br />
“Eu consinto em que aconteça isso a meu Filho, para que<br />
Ele Vos dê a glória devida, salve as almas para Vós, ó<br />
meu Pai, e para que elas gozem da felicidade eterna junto<br />
a Vós no Céu.”<br />
Dizem os teólogos que do alto da Cruz Nosso Senhor,<br />
cuja inteligência é infinita, conhecia todos os homens pelos<br />
quais Ele haveria de derramar até a última gota de<br />
seu Sangue. Via, individualmente, todos os pecados que<br />
cada um cometeria, sofria por todos esses pecados, e dava<br />
a sua vida para resgatar os pecadores que correspondessem<br />
à graça da<br />
Redenção.<br />
Creio que para a<br />
compaixão de Nossa<br />
Senhora ser completa,<br />
Ela também<br />
nos conheceu individualmente<br />
naquela<br />
ocasião, e rezou<br />
em favor de cada um<br />
de nós. De maneira<br />
que, enquanto o Verbo<br />
de Deus via aquela<br />
multidão de pecados<br />
que se desprenderia<br />
dos homens ao<br />
longo dos séculos,<br />
Ela pedia perdão para<br />
cada um, e Ele ia<br />
perdoando pelo pedido<br />
d’Ela, pois, sendo<br />
inocente, Ela merecia<br />
o perdão que nós não merecíamos.<br />
Foi, portanto, por causa das súplicas de Maria que cada<br />
um de nós obteve o dom de ser batizado, de conhecer<br />
a Igreja Católica, de receber os demais sacramentos,<br />
de ter devoção a Ela, e de manter-se fiel à Igreja nesses<br />
dias tormentosos em que vivemos. Será também pelo favor<br />
d’Ela que alcançará o Céu.<br />
Nossa Mãe e Advogada<br />
Eis o papel de Nossa Senhora como nossa Mãe e Advogada:<br />
Mãe de Cristo, Ela é a Mãe de todos aqueles que nasceram<br />
para a graça pelo Batismo. Mãe do Redentor, tornou-Se<br />
também a Mãe dos pecadores, desempenhando<br />
um papel que, de algum modo, o próprio Deus não poderia<br />
exercer. Porque Deus é juiz, mas Nossa Senhora,<br />
como Mãe, é naturalmente a advogada dos filhos.<br />
É próprio ao papel de mãe defender o filho, por mais<br />
miserável, imundo, asqueroso, por mais crápula que ele<br />
seja. A mãe perdoa e pede a Deus que o perdoe também.<br />
A mãe está solidária com o filho até quando o pai o abomina<br />
completamente.<br />
Nossa Senhora, Mãe supremamente boa, reza por<br />
cada um de nós e, considerando que as chagas de Nosso<br />
Senhor foram causadas, em parte, por nossos pecados,<br />
Ela pediu a Ele: “Meu Deus, meu Filho: pela minha<br />
inocência, pela minha virgindade, pelo amor que<br />
Vós sabeis que Vos tenho, Eu Vos peço por este filho<br />
pecador. Em nome dessa chaga que Vós sofreis por cau-<br />
23
De Maria nunquam satis<br />
sa dele, peço-Vos que o perdoeis.” E assim cada um de<br />
nós foi perdoado.<br />
Foi, então, por meio de Maria Santíssima que Deus<br />
veio a nós na Encarnação e deu-se o Natal do Salvador, e<br />
é por intermédio d’Ela que vamos a Ele e recebemos os<br />
benefícios da Paixão e Cruz, isto é, da Redenção.<br />
Por isso, morto Nosso Senhor, Nossa Senhora continuou<br />
a ser a grande intercessora junto a Ele, a Advogada<br />
que nunca abandonou homem algum, por mais pecador<br />
que fosse. A ponto de ensinar a Teologia que se São Pedro,<br />
depois de ter cometido o pecado horroroso de negar<br />
o Divino Mestre, não desesperou, arrependeu-se e se salvou,<br />
foi pelos rogos de Maria que lhe obteve a graça do<br />
arrependimento e o perdão.<br />
E se Judas Iscariotes, o mercador péssimo que vendeu<br />
Nosso Senhor por trinta moedas, tivesse recorrido a Nossa<br />
Senhora, Ela o teria recebido com toda bondade e misericórdia,<br />
e obtido o perdão também para ele.<br />
Após a morte do Salvador, é a Santíssima Virgem<br />
Quem reúne os Apóstolos em torno de Si, está junto a<br />
eles em Pentecostes, acompanha a Igreja nos primeiros<br />
passos e é a sua grande protetora ao longo de toda<br />
a sua existência, presente nas batalhas onde os guerreiros<br />
católicos venceram os exércitos inimigos da Fé, presente<br />
nos combates contra as heresias, e na luta que noite<br />
e dia cada homem trava contra seus defeitos, para adquirir<br />
maiores virtudes. E ainda que não nos lembremos<br />
de Nossa Senhora, Ela está Se lembrando de nós do alto<br />
dos Céus, pedindo por nós com uma misericórdia que<br />
nenhuma forma de pecado pode esgotar. Basta nos voltarmos<br />
para esta misericordiosa Mãe para que, cheia de<br />
bondade, Ela nos atenda e nos limpe a alma, dando-nos<br />
força para praticarmos a virtude e nos transformarmos<br />
de pecadores em homens bons.<br />
Nunca nos faltarão forças para os sacrifícios necessários<br />
à prática da Lei de Deus, desde que as peçamos<br />
a Nossa Senhora. Aqueles que se voltam a Ela recebem<br />
tudo; aqueles que se afastam d’Ela não recebem<br />
nada.<br />
Rainha do universo<br />
Maria Santíssima é chamada pela Igreja a “Porta do<br />
Céu”. É por esta Porta que todos os homens obtêm as<br />
graças: por Ela nossas orações chegam a Deus, e também<br />
todas as graças descem para os homens. Tudo nos vem<br />
por intermédio de Nossa Senhora.<br />
São Luís Grignion de Montfort utiliza uma bela imagem<br />
para ilustrar essa realidade.<br />
Imagine alguém do povo que quer presentear o rei,<br />
mas não tem outra coisa para oferecer-lhe a não ser uma<br />
maçã. Mas não tem coragem de oferecê-la ao monarca,<br />
por ser um presente muito comum. Então, pede à mãe<br />
do rei que oferte ao rei essa maçã.<br />
A mãe do monarca coloca a fruta numa bandeja de<br />
prata e lhe diz: “Meu filho, essa pessoa é minha filha<br />
também e pede-me para vos oferecer isto.”<br />
O rei sorri e a recebe como se fosse uma esfera de<br />
ouro.<br />
Por vezes, as melhores ações dos homens têm o valor<br />
de uma maçã; mas, oferecidas pelas mãos virginais e<br />
acompanhadas com o sorriso de Maria, Deus as recebe<br />
com encanto, agradece, e as recompensa. Quanto mais<br />
unidos a Nossa Senhora, mais poderemos praticar a virtude<br />
e nos tornarmos agradáveis a seu Divino Filho.<br />
Como ensina a Doutrina Católica, se Nossa Senhora é<br />
de tal maneira a distribuidora de todos os dons, Ela é a<br />
Rainha do universo. E se Ela governa o universo inteiro,<br />
é também verdade que devemos nos consagrar a Ela como<br />
seus servos, deduz São Luís Maria Grignion de Montfort,<br />
para em tudo fazer a vontade d’Ela.<br />
Alguém me dirá: “Mas <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, eu sinto minha fraqueza,<br />
minha imperfeição. Será que Nossa Senhora quererá<br />
uma elevação dessas a mim, tão cheio de pecados?”<br />
Eu respondo: Não tenho dúvida, porque Ela não recua<br />
diante do pecado de nenhum homem.<br />
Símbolo eloquente da misericórdia<br />
de Nossa Senhora<br />
Há na Venezuela um santuário consagrado à padroeira<br />
nacional, Nossa Senhora de Coromoto, onde se encontra,<br />
num ostensório, um pergaminho no qual está<br />
gravada a figura de Nossa Senhora sentada num trono,<br />
com o Menino Jesus nos braços e com um olhar de Rainha<br />
e de Mãe. A história dessa imagem da patrona da<br />
Venezuela é maravilhosa.<br />
No tempo da colonização, havia na Venezuela uma<br />
tribo de índios chamados Coromotos, a alguns dos quais<br />
— entre eles o cacique — Nossa Senhora apareceu.<br />
Os indígenas ficaram deslumbrados com aquela Rainha<br />
gloriosa que perguntou ao cacique se ele queria morar<br />
na cidade onde Ela reinava. Ele respondeu que sim.<br />
Então Nossa Senhora disse-lhe para procurar os homens<br />
que lhe colocariam água sobre a cabeça e lhe ensinariam<br />
o caminho do seu Reino, ou seja, o Céu.<br />
O cacique mudou-se, com outros de sua tribo, para a<br />
região a eles reservada e, durante algum tempo, recebeu<br />
com gosto a catequese. Entretanto, em certo momento<br />
revoltou-se, abandonou tudo, voltou para a sua choça e<br />
deixou a Religião.<br />
A Santíssima Virgem lhe reapareceu na entrada da cabana,<br />
risonha, amável, convidando-o para voltar às graças<br />
d’Ela.<br />
24
Tão péssimo era seu estado de alma que ele tomou o<br />
arco e tentou atingir com uma flecha a celeste visitante.<br />
Não obtendo êxito, procurou agarrá-La, quando subitamente<br />
Ela desapareceu deixando-o com os braços paralisados.<br />
Quando o miserável conseguiu movê-los, encontrou<br />
entre eles a bela estampa que hoje é venerada no<br />
santuário.<br />
Um verdadeiro milagre! Não obstante, ele, com raiva,<br />
escondeu a estampa no teto de sua choça. Mas Nossa Senhora,<br />
ainda assim, o perdoou. Infatigavelmente perseguia<br />
esse homem para convertê-lo.<br />
Em determinado momento, ele não resistiu mais à<br />
graça, pediu perdão, recebeu o Batismo e morreu em<br />
paz, reconciliado com Nossa Senhora.<br />
Quer dizer, depois das maiores ofensas, a Rainha do<br />
Céu o venceu e o perdoou. Este é o símbolo mais eloquente<br />
da misericórdia de Nossa Senhora, mostrando<br />
como nem os piores pecados daqueles a quem Ela ama<br />
são capazes de constituir uma barreira à bondade e à misericórdia<br />
d’Ela.<br />
Em nossa época, a Santíssima Virgem está sofrendo<br />
agressões piores do que as recebidas da parte desse índio.<br />
Os pecados do mundo contemporâneo são muito<br />
mais cheios de malícia do que os desse miserável aborígene.<br />
Nossa Senhora, entretanto, não quer o fim da humanidade,<br />
mas deseja o perdão para ela. E quando, em Fátima,<br />
Ela prenunciou castigos para o mundo, e disse até<br />
que várias nações desaparecerão, ao mesmo tempo<br />
anunciava a misericórdia, pois, diante dos castigos, pelo<br />
menos certo número dos homens contemporâneos<br />
vão se arrepender e ainda irão para o Céu. E muitos<br />
hão de viver perdoados por Ela para entrarem<br />
no Reino de Maria. Assim, Ela afirmou: “Por fim, o<br />
meu Imaculado Coração triunfará!”<br />
Nós devemos pedir a Maria Santíssima que,<br />
em relação a cada um de nós, Ela use da graça<br />
que teve para com o índio Coromoto: vença<br />
nossos obstáculos, aniquile nossas maldades<br />
e que seja verdadeira para o mundo contemporâneo,<br />
como para cada um de nós, a promessa<br />
do triunfo de seu Imaculado Coração,<br />
tornando-nos apóstolos dos últimos tempos,<br />
perfeitos filhos e escravos d’Ela, para que,<br />
por essa forma, o Reino de Maria substitua o<br />
reino do demônio sobre a face da Terra.<br />
É isso que devemos pedir a Nossa Senhora<br />
depois dessa meditação sobre a glória excelsa<br />
d’Ela.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 7/2/1971)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Imagem de Nossa Senhora de<br />
Coromoto (acervo particular)<br />
25
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. XXXI Domingo do Tempo Comum. Solenidade de Todos<br />
os Santos.<br />
Beato Rainério de Arezzo, religioso (†1304). Frade<br />
franciscano, admirável por sua humildade, pobreza e paciência.<br />
Faleceu em Sansepolcro.<br />
2. Comemoração de todos os fiéis defuntos.<br />
Santo Ambrósio, abade (†c. 520). Transferido como<br />
abade ao mosteiro de Saint-Maurice-en-Valais, Suíça, por<br />
sua observância à regra. Estabeleceu ali a prática do louvor<br />
perpétuo.<br />
3. São Martinho de Porres, religioso (†1639).<br />
Santa Sílvia (†séc. VII). Mãe do Papa São Gregório<br />
Magno, que segundo o mesmo Pontífice, atingiu o mais alto<br />
grau de oração e penitência.<br />
4. São Carlos Borromeu, bispo (†1584). Ver página 2.<br />
5. Beato Bernardo Lichtenberg, presbítero e mártir<br />
(†1943). Vigário da catedral de Berlim, orava publicamente<br />
pelos judeus torturados e detidos. Por isso foi enviado<br />
ao campo de concentração de Dachau, Alemanha, onde<br />
morreu a caminho, após muito sofrimento.<br />
filosóficas em Cambridge, Oxford, Paris e Colônia, onde<br />
faleceu.<br />
9. Dedicação da Basílica do Latrão.<br />
Beata Elizabeth da Trindade Catez, virgem (†1906).<br />
Religiosa carmelita descalça, que desde criança procurou<br />
no íntimo do coração o conhecimento e a contemplação da<br />
Santíssima Trindade. Faleceu aos 26 anos no Carmelo de<br />
Dijon, França.<br />
10. São Leão Magno, Papa e Doutor da Igreja (†461).<br />
São Justo da Cantuária, bispo (†c. 627). Religioso beneditino<br />
enviado por São Gregório Magno à Inglaterra<br />
para ajudar Santo Agostinho na evangelização deste povo.<br />
11. São Martinho de Tours, bispo (†397).<br />
São Teodoro Estudita,abade (†826). Abade do mosteiro<br />
de Studion, Constantinopla, que foi escola de sábios,<br />
santos e mártires que morreram vítimas das perseguições<br />
dos iconoclastas.<br />
12. São Josafá, bispo e mártir (†1623).<br />
São Margarido Flores, presbítero e mártir (†1927). Por<br />
ser sacerdote foi preso e fuzilado em Tuliman, México.<br />
6. Santo Estêvão, bispo (†1046). Destacou-se por sua<br />
mansidão, organizou duas peregrinações a Jerusalém e reconstruiu<br />
a catedral<br />
de sua diocese,<br />
Apt, França.<br />
13. Beatos Pedro Vicev, Paulo e Josafat Siskov, presbítero<br />
(†1952). Religiosos da Congregação dos Agostinhos<br />
da Assunção, que durante o regime comunista na Bulgária,<br />
foram aprisionados e fuzilados em Sófia, acusados de<br />
espionagem.<br />
Willuconquer (CC 3.0)<br />
Beata Elizabeth da Trindade Catez<br />
7. Beato Antônio<br />
Baldinucci, presbítero<br />
(†1717). Jesuíta<br />
que se dedicou<br />
totalmente à<br />
pregação das missões<br />
populares na<br />
Itália.<br />
8. XXXII Domingo<br />
do Tempo<br />
Comum.<br />
Beato João Duns<br />
Escoto, presbítero<br />
(†1308). Sacerdote<br />
franciscano oriundo<br />
da Escócia. Ensinou<br />
as disciplinas<br />
14. Santo Estêvão Teodoro Cuénot, bispo e mártir (†1861).<br />
Religioso da Sociedade das Missões Estrangeiras de Paris,<br />
que após 25 anos de trabalho apostólico, foi martirizado em<br />
Binh Dinh, Vietnã.<br />
15. XXXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Alberto Magno, bispo e Doutor da Igreja (†1280).<br />
São Rafael de São José Kalinowski, presbítero (†1907).<br />
Participou da insurreição lituano-polonesa contra a Rússia,<br />
sendo capturado e condenado a trabalhos forçados.<br />
Posto em liberdade, ingressou na Ordem Carmelita em<br />
Wadowice, Polônia.<br />
16. Santa Margarida da Escócia, rainha (†1093).<br />
Santa Gertrudes, virgem (†1302).<br />
Santa Inês de Assis, virgem (†1253). Irmã de Santa<br />
Clara, foi viver junto a ela no convento de São Damião e<br />
ajudou-a na fundação da Ordem.<br />
26
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
17. Santa Isabel da Hungria, religiosa<br />
(†1231).<br />
São Hugo, abade (†séc. XII). Enviado<br />
por São Bernardo de Claraval para<br />
fundar a Ordem Cisterciense na Sicília<br />
e na Calábria, Itália.<br />
18. Dedicação das Basílicas de São<br />
Pedro e São Paulo, Apóstolos.<br />
Beata Carolina Közka, virgem e mártir<br />
(†1914). Por defender sua castidade<br />
ameaçada por um soldado, foi atravessada<br />
por uma espada em Wal-Ruda, Polônia,<br />
morrendo ainda adolescente.<br />
19. Santos Roque González, Afonso<br />
Rodríguez e João del Castillo, presbíteros<br />
e mártires (†1628).<br />
Santo Abdias, profeta. Após o exílio do povo de Israel,<br />
anunciou a ira do Senhor contra os povos inimigos.<br />
20. São Gregório Decapolita, monge (†842). Foi cenobita,<br />
anacoreta e peregrino. Morreu em Constantinopla,<br />
onde lutou pelo culto das imagens sagradas.<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />
São Gelásio I, Papa (†496). Ilustre por sua doutrina e<br />
santidade. Combateu várias heresias. Morreu pobre, devido<br />
à sua caridade para com os indigentes.<br />
22. XXXIV Domingo do Tempo Comum. Solenidade de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.<br />
Santa Cecília, virgem e mártir (†séc. inc.).<br />
São Filêmon de Colossos (†séc. I). Junto com ele é venerada<br />
sua esposa Santa Ápia. Na carta a ele destinada,<br />
o Apóstolo das Gentes elogia sua Fé e seu amor a Cristo.<br />
23. São Clemente I, Papa (†séc. I).<br />
São Columbano, abade (†615).<br />
Santa Cecília Yu So-sa, mártir (†1839). Sendo viúva, foi<br />
privada de seus bens, presa e sujeita a interrogatórios doze<br />
Reprodução<br />
São Leonardo de Porto Maurício<br />
vezes. Exausta pelo suplício do espancamento,<br />
morreu em Seul, Coreia.<br />
24. Santo André Dung-Lac, presbítero,<br />
e companheiros, mártires (†1625-<br />
1886).<br />
Santo Alberto de Lovaina, bispo e<br />
mártir (†1192). Bispo de Liège, atual<br />
Bélgica, foi exilado por defender a Igreja<br />
e assassinado em Reims, França, no<br />
mesmo ano em que foi ordenado.<br />
25. Santa Catarina de Alexandria, <br />
virgem e mártir (†séc. inc.). Ver página 28.<br />
26. São Leonardo de Porto Maurício,<br />
presbítero (†1751). Sacerdote franciscano,<br />
empregou sua vida na pregação<br />
e escrita de livros de piedade, e em mais de 300 missões<br />
pregadas em Roma, ilha da Córsega e toda a Itália setentrional.<br />
27. São Virgílio, bispo (†784). Irlandês de grande cultura,<br />
apoiado pelo rei Pepino, foi nomeado para dirigir a<br />
Igreja de Salzburgo, Áustria. Construiu a Catedral de São<br />
Ruperto.<br />
28. Santa Teodora, abadessa (†980). Discípula de São<br />
Nilo, o Jovem e mestra de vida monástica, perto de Rossano,<br />
Itália.<br />
29. I Domingo do Advento.<br />
São Tiago de Edessa, bispo (†521). Bispo de Sarug,<br />
Turquia, é venerado pelos sírios como doutor e coluna da<br />
Igreja, junto com Santo Efrém.<br />
30. Santo André, Apóstolo.<br />
São José Marchand, presbítero e mártir (†1875). Sacerdote<br />
da Sociedade das Missões Estrangeiras de Paris, que<br />
no tempo do Imperador Minh Mang, foi condenado ao suplício<br />
dos 100 açoites em Hué, Vietnã.<br />
Santa Cecília<br />
Jean-noël Lafargue (CC 3.0)<br />
27
Hagiografia<br />
Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem heroica<br />
e grandiosa<br />
Enfrentou a morte com grande<br />
Fé e serenidade. Após seu<br />
martírio, os Anjos levaram<br />
o seu virginal corpo para o<br />
Monte Sinai, a montanha<br />
mais augusta que há na Terra,<br />
depois do Gólgota.<br />
N<br />
o dia 25 de novembro, comemoramos<br />
a festa de Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem e mártir. Sobre sua morte,<br />
o Abbé Darras, em sua obra Vida dos Santos, traz<br />
a seguinte narração:<br />
”Lavai minha alma no sangue<br />
que vou derramar”<br />
ChristianeB (CC3.0)<br />
Maximiliano, Imperador, ordenou a morte de Santa<br />
Catarina. Foi ela conduzida ao lugar do suplício em<br />
meio a uma multidão, sobretudo de mulheres de alta<br />
condição, que choravam a sua sorte. A virgem caminhava<br />
com grande calma. Antes de morrer, fez a seguinte<br />
oração:<br />
“Senhor Jesus Cristo, meu Deus, eu Vos agradeço terdes<br />
firmado meus pés sobre o rochedo da Fé, e terdes dirigido<br />
meus passos na via da salvação. Abri agora vossos braços<br />
feridos sobre a Cruz, para receber minha alma que eu sacrifico<br />
à glória de vosso Nome.<br />
Santa Catarina de Alexandria Museu da Catedral<br />
de Santo Domingo de la Calzada, Espanha<br />
28
Quando surgirem circunstâncias nas<br />
quais tivermos de enfrentar riscos,<br />
ou talvez até perder a vida, na luta<br />
contra os adversários da Santa Igreja,<br />
tenhamos aquela serenidade que<br />
só a graça dá perante a morte.<br />
Disputa entre Santa Catarina e os filósofos<br />
Museu de Salzburg, Áustria<br />
“Lembrai-Vos, Senhor, que somos feitos de carne e sangue.<br />
Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância, e lavai<br />
minha alma no sangue que vou derramar por Vós.<br />
“Não deixeis meu corpo, martirizado por vosso amor, em<br />
poder dos que me odeiam.<br />
“Baixai vosso olhar sobre este povo e dai-lhe o conhecimento<br />
da verdade.<br />
“Enfim, Senhor, exaltai, em vossa infinita misericórdia,<br />
aqueles que Vos invocarão por meu intermédio, para que<br />
vosso Nome seja para sempre bendito.”<br />
Em seguida, mandou que os soldados cumprissem as ordens,<br />
e sua cabeça foi decepada de um só golpe.<br />
Era o dia 25 de novembro. Numerosos milagres logo foram<br />
constatados. Os Anjos, como ela o desejara, transportaram<br />
seu corpo para a santa montanha do Sinai, a fim de<br />
que repousasse onde Deus escrevera sobre a pedra sua Lei,<br />
que ela guardara tão fielmente escrita em seu coração.<br />
WolfD59 (CC 3.0)<br />
Contrastes da graça: lágrimas das<br />
companheiras e serenidade da mártir<br />
Este é um trecho de tal elevação, que até lamentamos<br />
ter de comentá-lo. Ficar-se-ia mais satisfeito deixando o<br />
texto assim, brilhando ao céu, no horizonte, suspenso e<br />
emitindo luzes. Mas já que é preciso comentar, vamos<br />
aos pormenores.<br />
Foi ela conduzida ao lugar do suplício em meio a uma<br />
multidão, sobretudo de mulheres de alta condição, que<br />
choravam a sua sorte.<br />
Chama a atenção o fato de se tratar, principalmente,<br />
de senhoras de alta condição as que constituem o séquito<br />
da Santa mártir. Quantas possibilidades de salvação tem<br />
ainda um país onde as senhoras de alta condição acompanham<br />
ao lugar do suplício, solidarizando-se e chorando<br />
junto a ela, uma mártir fulminada pela cólera do Imperador!<br />
Um monarca onipotente, o qual pode mandar<br />
matar todos aqueles que se desagradarem de alguma atitude<br />
dele. Entretanto, todas essas damas seguem Santa<br />
Catarina, e vão chorando.<br />
Vejam a diversidade dos dons do Espírito Santo e dos<br />
efeitos da graça: é bom e belo elas irem chorando. Contudo,<br />
esse dom das lágrimas manifestado nas mulheres<br />
nesse momento contrasta, pela sublimidade, com o fato<br />
de Santa Catarina não chorar. Ela permanecia quieta e<br />
com uma grande calma, caminhando de encontro à morte,<br />
inundada de graças do Espírito Santo, de outra natureza,<br />
por onde a mártir não derramava por si as lágrimas<br />
que a graça queria que as outras vertessem por ela.<br />
Como deveria ser impressionante este cortejo de damas<br />
andando entre os soldados, e ela no meio, a única calma,<br />
a aconselhar todas a manterem a tranquilidade, consolando-as<br />
até chegar o momento em que ela deveria morrer.<br />
29
Hagiografia<br />
Palavras que se projetam como raios de luz<br />
Então, no fim da vida, ela emite uma oração com uma<br />
forma especial de beleza: um conjunto de afirmações e<br />
pedidos que se projetam como raios de luz, e brilham no<br />
horizonte com um encanto próprio.<br />
Senhor Jesus Cristo, meu Deus…<br />
Com isso Catarina afirmava ser Jesus Cristo seu Deus,<br />
e que ela não reconhecia outra divindade senão Ele.<br />
Em seguida, o primeiro pensamento, a primeira palavra,<br />
a primeira graça mencionada por ela, no momento<br />
de morrer, qual é?<br />
…eu Vos agradeço terdes firmado meus pés sobre o rochedo<br />
da Fé, e terdes dirigido meus passos na via da salvação.<br />
Como quem diz: “Eu Vos agradeço por ter pertencido<br />
a Vós, que sois a fonte da minha salvação, o ponto de<br />
partida de todo o bem que possa haver em mim. Eu sou<br />
boa porque Vós sois bom e me destes a bondade. Eu Vos<br />
agradeço a Fé que me doastes e a firmeza que me concedestes<br />
nessa Fé. Eu Vos agradeço o amor à virtude que<br />
me destes e a firmeza que Vós me outorgastes no amor<br />
a essa virtude. É esse o primeiro benefício que Vos agradeço,<br />
reconhecendo que tudo quanto em mim há devo à<br />
vossa iniciativa.”<br />
Sacratíssima e augustíssima familiaridade<br />
com o Divino Redentor<br />
Lembrai-vos, Senhor, que somos feitos de carne e sangue.<br />
Perdoai-me as faltas que cometi por ignorância, e lavai<br />
minha alma no sangue que vou derramar por Vós.<br />
Ela temia ter cometido, por ignorância, algum pecado.<br />
Era isso o que essa alma tinha para acusar contra si própria.<br />
Então suplica a Nosso Senhor o perdão das faltas,<br />
como se dissesse: “Antes de derramar o meu sangue por<br />
Vós e de ir para o Céu, quero que Vós laveis a minha alma<br />
no vosso Sangue.”<br />
Não deixeis meu corpo, martirizado por vosso amor,<br />
em poder dos que me odeiam.<br />
Monjas contemplativas, no alto<br />
do Sinai, velam seu corpo<br />
Tendo pensado em sua alma, suplicando que esta fosse<br />
lavada das faltas e recebida por Nosso Senhor, Santa<br />
Catarina cogita, então, no corpo dela, e pede que ele não<br />
seja deixado em mãos de seus inimigos, daqueles que a<br />
odeiam porque têm ódio a Ele.<br />
Abri agora vossos braços feridos sobre a Cruz, para<br />
receber minha alma que eu sacrifico à glória de vosso<br />
Nome.<br />
Pode haver uma imagem mais bonita do que essa?<br />
O Divino Crucificado que desprende da Cruz<br />
seus braços sangrando para acolher a alma dessa<br />
Santa, que sai também inundada do sangue do<br />
martírio, para ser recebida por Ele.<br />
Que maravilhosa intimidade nesse encontro<br />
do Mártir dos mártires com uma mártir<br />
heroica e grandiosa! Que bela ideia a do<br />
sangue dela misturando-se ao Sangue infinitamente<br />
precioso de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo! Que elevada e profunda noção<br />
do Corpo Místico de Cristo há nisso! Que<br />
sacratíssima e augustíssima familiaridade<br />
com o Divino Redentor!<br />
Santa Catarina possuía de tal maneira a<br />
convicção de estar sua alma unida à d’Ele,<br />
e de que a morte selava essa união, que Lhe<br />
pedia a abraçasse tão logo ela entrasse na<br />
eternidade. Tal era sua certeza de ir para o<br />
Céu!<br />
Depois acrescentava:<br />
AndreasPraefcke (CC 3.0)<br />
Decapitação de Santa Catarina<br />
Igreja de Nossa Senhora em Ravensburg, Alemanha<br />
30
Berthold Werner(CC 3.0)<br />
Mosteiro de Santa Catarina, Sinai, Egito<br />
Geagea (CC 3.0)<br />
Pedir a graça da serenidade<br />
diante dos riscos<br />
Vejam o respeito que devemos ter pela santidade do<br />
próprio corpo, o qual constitui um todo com nossa alma<br />
na prática da virtude.<br />
Também, que atendimento magnífico dessa oração!<br />
Foi só ela morrer, os Anjos vieram e levaram o seu corpo<br />
para a montanha mais augusta que há na Terra, depois<br />
do Gólgota, do Monte Calvário: o Sinai, onde a Lei<br />
de Deus nos foi dada.<br />
Até hoje os restos mortais desta virgem mártir encontram-se<br />
no Monte Sinai, onde há um mosteiro de monjas<br />
contemplativas que guardam esse corpo e meditam sobre<br />
a Lei de Deus, ali concedida aos homens.<br />
Baixai vosso olhar sobre este povo e dai-lhe o conhecimento<br />
da verdade.<br />
Ela já não pensa em si, mas nos circunstantes.<br />
Enfim, Senhor, exaltai, em vossa infinita misericórdia,<br />
aqueles que Vos invocarão por meu intermédio, para que<br />
vosso Nome seja para sempre bendito.<br />
Portanto, ela intercede desde já junto a Deus para<br />
atender todo mundo que por meio dela venha pedir alguma<br />
graça.<br />
Em seguida, mandou que os soldados cumprissem as<br />
ordens, e sua cabeça foi decepada de um só golpe.<br />
A calma e a resolução. Feita a oração, nenhum tremor,<br />
nenhum desejo de contemporizar um pouco. Também<br />
nenhuma precipitação de quem tem medo de enfrentar<br />
a morte, correndo em direção a ela. Não! Ela diz<br />
tudo quanto tem a dizer e, terminado isso, entrega-se às<br />
mãos de Deus. Os soldados a matam e a oração dela é<br />
atendida.<br />
Qual o efeito, de caráter espiritual, que a consideração<br />
dessa grande Santa mártir nos leva a desejar?<br />
Devemos pedir a ela que, quando surgirem circunstâncias<br />
nas quais tivermos de enfrentar riscos, ou talvez<br />
até perder a vida, na luta contra os adversários da Santa<br />
Igreja, tenhamos aquela serenidade que só a graça dá<br />
perante a morte.<br />
A morte, essa dissolução da unidade entre a alma e o<br />
corpo, é uma coisa tão tremenda, que só se compreende<br />
a serenidade diante dela quando o homem está dominado<br />
pela graça divina.<br />
Vamos pedir, então, que em todas as ocasiões da vida<br />
nós tenhamos, diante dos riscos, essa calma levada até o<br />
sacrifício extremo, caso seja esta a vontade de Nossa Senhora.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 24/11/1965)<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Sacralidade beneditina<br />
Ao contrário da agitação existente em certos ambientes<br />
do mundo atual, em Subiaco sentem-se refrigério, luz<br />
e paz. Os monges, que se deixam imbuir pelo espírito<br />
de São Bento, levam ali uma vida despretensiosa,<br />
temperante, pura e cheia de uma alegria cândida.<br />
Fracisco Lecaros<br />
Apropósito de algumas fotografias<br />
tiradas de Subiaco, eu<br />
gostaria de tecer comentários<br />
que não se limitam à análise<br />
dos ambientes e costumes,<br />
mas visam aprofundar impressões<br />
causadas por aqueles<br />
lugares na alma de quem<br />
os contempla.<br />
Subiaco e estação de<br />
metrô: extremos opostos<br />
Nesta primeira foto vemos uma pequena<br />
porta que conduz a uma escadaria estreita.<br />
Em rigor, essa passagem assim apertada poderia<br />
ser a porta de uma masmorra, através da qual passa o<br />
carcereiro para levar pão e água a algum prisioneiro nas<br />
horas estipuladas.<br />
Considerada, por assim dizer, “anatomicamente”, esta<br />
parte do edifício poderia servir para isso. Entretanto,<br />
não é nem um pouco a impressão que nos dá. Ao subirmos<br />
por esta escadinha, não sentiríamos medo ou qualquer<br />
outra sensação própria a quem ingressa em uma<br />
masmorra. Pelo contrário, tem-se a impressão de um<br />
ambiente recolhido, com uma penumbra que sucede à<br />
grande luz do dia, com algo de aconchegado, de cômodo.<br />
Jose Afonso Aguiar<br />
Poder-se-ia bem imaginar um monge<br />
beneditino dos antigos tempos subindo<br />
esses degraus, passo a passo,<br />
enquanto recita um salmo<br />
ou reza uma dezena do Rosário.<br />
Em uma palavra, quanta<br />
bênção há aí! É uma bênção<br />
de paz que se faz sentir por<br />
um jogo de luz e sombra.<br />
Se compararmos isso com<br />
a atmosfera de uma estação de<br />
metrô, perceberemos como o metrô<br />
e Subiaco são extremos opostos,<br />
de um modo até berrante: um está inserido<br />
dentro da civilização industrial e outro na<br />
nascente da Idade Média.<br />
Viver entre pedras e pouca vegetação,<br />
pensando no Céu<br />
Na outra fotografia vemos ruazinhas muito estreitas e,<br />
como tudo está construído em meio a montanhas, há diversos<br />
patamares aos quais se tem acesso, às vezes, por<br />
escadinhas como essa.<br />
Sente-se ter vivido aqui gente habituada a uma vida<br />
despretensiosa, temperante, pura e cheia de uma alegria<br />
cândida.<br />
32
David Domingues<br />
Jose Afonso Aguiar<br />
David Domingues<br />
Notem como a escadinha está toda modelada pelo<br />
passo humano. Séculos e séculos de subir e descer de homens<br />
que consagraram a vida a Deus, renunciando a todas<br />
as alegrias e pompas do mundo para viverem entre<br />
essas pedras, pensando no Céu.<br />
Imaginemos, durante o dia, abrir-se aquela janela com<br />
vitrais elaborados à maneira de fundos de garrafa, e aparecer<br />
por detrás um monge com capuz, braços cruzados<br />
debaixo do escapulário, e olhando...<br />
Nas margens desse caminho nada foi plantando pelo<br />
homem, tudo está como a natureza pôs. No primeiro dia,<br />
quando esse solo saiu das mãos de Deus, era possível que<br />
fosse mais ou menos assim.<br />
Veem-se pedras por toda parte entre as quais nasce<br />
uma vegetação que se agarra como pode a um pouco de<br />
terra, e viceja onde consegue.<br />
Aquele arbusto que aparece ali, com seus galhos contorcidos,<br />
parece ter esgares de fome. Não é o fértil chão<br />
brasileiro com seus jacarandás e jequitibás, nem o solo<br />
norte-americano com suas sequóias; nada disso. Essa é<br />
uma árvore brotada em terra árida e pedregosa.<br />
Há, entretanto, uma intimidade entre quem passa por<br />
esta pequena via e a vegetação que a ladeia, cujo exalar<br />
de vida nada interrompe, dando-nos a impressão de existir<br />
uma íntima amizade com todo esse mundo vegetal rumo<br />
ao céu azul que se entrevê lá no fundo, e faz até pensar<br />
no Céu da eternidade.<br />
Sente-se uma paz nesse ambiente! Uma pessoa que ali<br />
entrasse cheia de torcidas e de preocupações, e seguisse<br />
por essa estradinha, chegaria ao outro lado inteiramente<br />
tranquilizada.<br />
O que isso tem de lindo? Viveu ali um Santo, o Patriarca<br />
dos monges do Ocidente, isto é, o primeiro de toda<br />
a gloriosa coorte de monges, o qual teve como filhos<br />
espirituais, nesse lugar, homens canonizados, além de<br />
David Domingues<br />
quantos outros que, embora não canonizados, também<br />
estão no Céu. É o ambiente próprio do homem à procura<br />
da santidade; eis a bênção que São Bento deixou.<br />
Ambiente simples, mas repleto<br />
de beleza espiritual<br />
Para ingressar na via da qual falávamos, a pessoa<br />
passa por esse arco que aparece nesta outra foto.<br />
É uma ogiva despretensiosa, bonita e séria. Não<br />
tem uma escultura, nem qualquer outro adorno.<br />
É apenas uma ogiva feita de pedra, mas<br />
com toda a beleza das ogivas, como se fossem<br />
duas mãos postas para rezar.<br />
Pode haver coisa que recolha mais<br />
o espírito e favoreça mais a oração,<br />
as grandes reflexões a respeito<br />
dos grandes temas? Assim<br />
a alma de um homem se forma!<br />
Mas, por quê? Porque há uma<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Reprodução<br />
bênção presente no ambiente e que envolve e penetra<br />
quem nele se adentra.<br />
Se alguém me perguntasse: Isto é lindo?<br />
Eu diria: Não, de nenhum modo.<br />
Entretanto, sob outro aspecto, se outrem me indagasse:<br />
Isto é lindíssimo?<br />
Eu responderia: Sim!<br />
No sentido de uma beleza espiritual.<br />
Essa paisagem é agradável de ver, mas não é linda,<br />
materialmente falando. Contudo, a beleza espiritual torna<br />
isso lindíssimo.<br />
Eis uma bonita fotografia bem dentro da linha do que<br />
vínhamos falando. Vemos a vegetação e o alto de uma<br />
construção que parece ser uma capelinha com uma rosácea,<br />
com todo o encanto das rosáceas medievais. Aquilo<br />
é tipicamente medieval. Têm-se esse misto de pedra<br />
e folhagem: reino mineral e reino vegetal juntos, entrando<br />
em harmonia, para que o expectador possa exclamar:<br />
“Como Deus é grande!”<br />
São Bento: olhar<br />
contemplativo, todo<br />
voltado para as<br />
coisas de Deus<br />
Ali contemplamos um<br />
afresco de São Bento. O<br />
pintor representou-o de<br />
uma maneira singular.<br />
Ele está com uma espécie<br />
de capuz sobre a cabeça,<br />
mas este tem um pouco<br />
a forma da parte baixa<br />
de sua face. De maneira<br />
que o desenho da maçã<br />
do rosto até o queixo tem<br />
a forma do capuz pontudo. E dá a impressão de uma face<br />
concebida numa moldura de duas pontas: uma para baixo<br />
e outra para cima. Rosto muito fino, nariz comprido,<br />
barba não muito crescida, na transição do grisalho para o<br />
branco; as sobrancelhas, ainda escuras, representam um<br />
homem que ainda está no vigor de seu pensamento e de<br />
sua ação.<br />
Notem a força moral com que a sua mão segura o báculo,<br />
símbolo do poder do Abade.<br />
Olhar sério, até com alguma coisa de severo, mas no<br />
qual há um mundo, um céu! Se um de nós o encontrasse,<br />
teria vontade de ajoelhar-se diante dele e pedir: “Pai, dizei-me<br />
no que pensais!”<br />
Imagino que ele responderia sem olhar para quem pediu,<br />
desfiando o seu pensamento inteiro, com um tim-<br />
bre de voz partindo do fundo de sua laringe<br />
possante, num pescoço alto, como se fosse<br />
o tocar de um sino.<br />
São Luís Orione achava o olhar de São<br />
Pio X tão puro, que se confessava sempre<br />
antes de falar com este Santo Pontífice.<br />
Não é verdade que teríamos vontade de<br />
nos confessar, antes de falar com São Bento?<br />
Olhar reto, puro, todo voltado para as coisas<br />
de Deus, contemplativo e sério!<br />
Se eu lhe perguntasse no que estava pensando,<br />
e ele me dissesse:<br />
— Agora não posso explicar.<br />
Eu pediria:<br />
— Permiti, então, que eu fique vos olhando!<br />
São Francisco de Assis, grande<br />
admirador e devoto de São Bento<br />
Aqui temos uma pintura representando<br />
São Francisco de Assis, que viveu séculos depois de São<br />
Bento, mas por ser grande admirador e devoto deste Santo<br />
Abade, resolveu ir a Subiaco para venerá-lo. Ali ele viu,<br />
junto à gruta de São Bento, um carrascal de espinhos onde<br />
o Santo Abade tinha rolado para combater uma tentação<br />
contra a pureza, vencendo-a. O demônio fugiu diante da<br />
admirável penitência de São Bento. São Francisco plantou<br />
naquele local uma roseira, e até hoje as rosas e o carrascal<br />
de espinhos vivem juntos, entrelaçados.<br />
Em São Francisco contempla-se um tipo de santidade diferente;<br />
mas que maravilha! Essa pintura representa um homem<br />
muito mais jovem do que é figurado São Bento na outra.<br />
Não sei se calculo mal, mas suponho que esse homem<br />
esteja na casa dos trinta anos.<br />
Sua atitude é muito serena, calma,<br />
mas com uma determinação de<br />
vontade que se vê muito pelo modo<br />
do rosto estar implantado sobre<br />
o pescoço. Todos os traços distendidos,<br />
mas não moles. É alguém que<br />
está, no fundo do olhar azul, pensando<br />
e contemplando algo e querendo<br />
com toda a força da vontade<br />
o objeto de sua contemplação.<br />
É de uma pureza impressionante!<br />
Um homem casto, temperante<br />
por excelência e vigoroso.<br />
São Bento também o era, mas o<br />
pintor de São Francisco deixou<br />
ver essas virtudes mais inteiramente<br />
do que o de São Bento.<br />
Reprodução<br />
34
Carlos Aguirre<br />
David Domingues<br />
Compreende-se que o Poverello de Assis gostasse de<br />
ler para os seus noviços as histórias de Cavalaria, pois<br />
antes de abraçar a vida contemplativa pensou em ser cavaleiro.<br />
Nesta representação, a sua mão direita segura ligeiramente<br />
o braço esquerdo. Vejam a lógica das linhas e a<br />
força dessa mão!<br />
Se a São Bento eu pediria: “Dizei o que pensais!”; a<br />
este eu rogaria: “Não digais, pois eu vejo. Deixai apenas<br />
que eu olhe para vós!”<br />
Tem-se a impressão de que<br />
São Bento está presente<br />
Tendo analisado tudo quanto vimos de Subiaco, nasce<br />
a pergunta: O que há dentro disso?<br />
A resposta que vem ao espírito é esta: a sacralidade beneditina.<br />
É uma paz, não a da modorra de um comodista,<br />
mas uma paz de algo que tem vida intensa dentro de si.<br />
Vida, por sua vez, não agitada, espancada, surrada,<br />
mas com refrigério, luz e paz que se sentem naquele lugar<br />
não se sabe bem no quê, e dá a impressão de estar<br />
São Bento presente ali.<br />
Há lugares sagrados que conservam uma como que<br />
impregnação dos personagens e dos fatos ali ocorridos.<br />
Aquele ambiente fica mais ou menos marcado, fazendo-<br />
-nos sentir algo do que ali se passou.<br />
Por causa disso, a grande alma de um Santo pode se<br />
fazer sentir por séculos e séculos, no lugar onde ele viveu<br />
e praticou a virtude. É, pois, a grande alma de São Bento<br />
que sentimos ali.<br />
Vem-me à memória um episódio encantador da vida<br />
desse Santo:<br />
A governanta de São Bento — termo um pouco anacrônico,<br />
pois não se usava naquele tempo, mas de fato<br />
corresponderia a uma governanta atualmente — deixou<br />
cair uma vasilha emprestada, que se desfez em cacos.<br />
Já é uma coisa aborrecida romper algo que nos pertence,<br />
quanto mais quebrar um objeto emprestado de outra<br />
pessoa; é uma espécie de vexame.<br />
Ela ficou muito aflita e São Bento a viu chorar.<br />
Desejando, então, restabelecer a paz de alma daquela<br />
senhora, São Bento se ajoelhou, rezou e a vasilha se recompôs<br />
miraculosamente. Ele voltou-se com naturalidade<br />
para a mulher, sem excitação nem angústia, e disse:<br />
“Aqui está a vasilha!”<br />
Quem está tão em presença de Deus, e paira tanto acima<br />
dos acontecimentos, sabe que a Providência resolverá<br />
para ele os casos; esse não tem aflição.<br />
São Bento caminha sério, recolhido, severo até — como<br />
ele é representado no afresco que vimos há pouco —,<br />
de uma severidade admirável, e tem rumo para tudo; confia<br />
em Deus, ainda quando ele não saiba qual será a solução<br />
do problema. Deus lhe dará confiança. E por isso os<br />
vendavais torpes da vida não sopram sobre ele. Ele avança<br />
majestoso, bondoso, com a alma firme, e sacralizando tudo<br />
pela sua presença.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 6/7/1985)<br />
35
Mãe da Igreja e Rainha do mundo<br />
Francisco Lecaros<br />
Imaculado<br />
Coração de<br />
Maria - Catedral<br />
de Bolzano,<br />
Itália<br />
S<br />
ão Luís Maria Grignion de Montfort diz que os Santos dos últimos tempos estarão para<br />
os das eras anteriores como carvalhos em comparação com graminhas. Isso por causa das<br />
orações extraordinárias que Nossa Senhora fará nessa ocasião.<br />
Ela, como Mãe da Igreja, Rainha dos homens, Rainha do mundo, estará ainda mais associada<br />
ao curso dos acontecimentos. Suas orações também penetrarão como nunca até então, no âmago<br />
da História.<br />
E enquanto o Inferno vomitar os mais horrendos monstros, Maria Santíssima suscitará, pelos<br />
desígnios da Providência sobre a História e a humanidade, esses homens extraordinários diante<br />
dos quais Moisés, Elias e outros Santos ficariam deslumbrados.<br />
(Extraído de conferência de 1/11/1994)