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Revista Dr. Plinio 221

Agosto de 2016

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Retidão, autenticidade<br />

e senso do dever


Divulgação<br />

“Vi, decidi e entrei!”<br />

Analisem a fisionomia do Bem-aventurado Ezequiel Moreno Díaz 1 . É um rosto inteiramente<br />

distendido, sem a menor contração. Porém, não é a distensão comum<br />

do homem que dorme. Há algo nesse modo de estar distendido que corresponde<br />

àquela espécie de distensão que os irresolutos não possuem. Estes têm a distensão da moleza.<br />

Nele vemos a distensão das grandes resoluções tomadas, do homem que resolveu tudo e entrou<br />

rijo no caminho por onde tinha de entrar e disse: “Eu vi, decidi e entrei. Agora vamos<br />

até o fim!”<br />

As dúvidas ficaram para trás e todos os sacrifícios que esse caminho trouxesse consigo, de<br />

algum modo ele os mediu, aceitou e pediu a Nossa Senhora que o ajudasse a não recuar.<br />

(Extraído de conferência de 14/11/1980)<br />

1) Canonizado em 11/10/1992.<br />

2


Sumário<br />

Ano XIX - Nº <strong>221</strong> Agosto de 2016<br />

Retidão, autenticidade<br />

e senso do dever<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />

década de 1990.<br />

Foto: Mario Shinoda<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Gilberto de Oliveira<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />

02404-060 S. Paulo - SP<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Gráfica Print Indústria e Editora Ltda.<br />

Av. João Eugênio Gonçalves Pinheiro, 350<br />

78010-308 - Cuiabá - MT<br />

Tel: (65) 3617-7600<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 130,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 415,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 655,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

EDITORIAL<br />

4 Vida coerente com a Fé e ódio ao<br />

relativismo<br />

PIEDADE PLINIANA<br />

5 Pedido a Maria assunta aos Céus<br />

DONA LUCILIA<br />

6 Rezando na Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

8 Dignidade, beleza e coerência das profissões<br />

SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS<br />

14 Luís XIV e o Sagrado Coração de Jesus<br />

DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />

18 Rainha e Mãe de misericórdia<br />

CALENDÁRIO DOS SANTOS<br />

20 Santos de Agosto<br />

O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

22 Autenticidade e senso psicológico<br />

HAGIOGRAFIA<br />

26 O maravilhoso na vida de<br />

Santa Clara de Montefalco<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

31 Florença e a perfeição das formas - II<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

36 Nossa Senhora das Neves<br />

3


Editorial<br />

Vida coerente com a Fé<br />

e ódio ao relativismo<br />

Ovalor de um homem se mede pela coerência de sua vida com os princípios e com a Fé. No entanto,<br />

o mal do relativismo e da superficialidade estão sempre a assaltar-lhe o espírito, sendo necessária<br />

uma grande força de vontade para manter-se fiel. Por prismas diversos, em algumas das<br />

conferências estampadas na presente edição <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aborda a importante temática da retidão, autenticidade<br />

e senso do dever, qualidades que nortearam sempre a trajetória de sua catolicíssima existência, como<br />

atestam suas palavras pronunciadas em 6 de fevereiro de 1982:<br />

O desastre ocorreu em 1975, quando eu tinha 66 anos. Com essa idade já havia transcorrido toda<br />

uma vida! E posso dizer que possuía um passado solidamente estruturado, coerente, lógico, limpo,<br />

rumando continua e abnegadamente para um mesmo fim. Quando, ainda mocinho, li numa daquelas<br />

conferências da Université des Annales que Bayard 1 era chamado le Chevalier sans peur et sans reproche<br />

2 , tive um frêmito. Eu não ousaria aplicar a mim essa expressão diante de Nossa Senhora, mas<br />

diante dos homens, sim! E não há quem tenha coragem de negá-lo, porque lhe perguntaria: “Quando<br />

me viram ter peur? Quando me puderam fazer um reproche?”<br />

Se, entretanto, quem lhes fala tivesse conservado durante esses anos certa superficialidade de espírito,<br />

ela teria se manifestado nos períodos e inconsciência após o acidente, e algo do impulso dado<br />

aos senhores diminuiria naquele momento. Eu sairia da convalescença com a impressão de haver<br />

cumprido o meu dever, mas na hora do julgamento, seria interpelado: “Presta as tuas contas!”<br />

A minha superficialidade seria, então, a causa do desagrado divino. O espírito não teria ido tão a<br />

fundo nem se enlevado como deveria.<br />

Por que digo isto com esta ênfase? Pela saturação de ver espíritos superficiais, cumprindo o dever<br />

mais ou menos, às pressas, sem aprofundamento, sem a adesão inteira da alma. Por trivialidade pensam<br />

que cumprem o dever completo e que a ação externa basta para a obra estar inteiramente boa.<br />

O que é o relativismo? É aquela atitude de alma por onde diante do pulcro, do verdadeiro, do<br />

bom que nos falou pela Fé, pela razão, pelos sentidos da alma — às vezes até pelos sentidos físicos<br />

— diante disso que nos pedia um brado de adesão, de devotamento e de dedicação nós nos movemos<br />

um pouco. Dizemos: “É, talvez, é possível... O que eu quero no momento é saber tal coisa como<br />

aconteceu, quero uma bagatela, quero reservar pelo menos uma parte de minha alma às pobres bagatelas.<br />

Isso é o que eu quero!”<br />

Nossa Senhora deu-me a graça de odiar o relativismo com toda a minha alma. Porque no pecado<br />

declarado, perdem-se os ruins; no relativismo, perdem-se os bons. E toda a vida me pareceu tremendamente<br />

triste, sinistro, que um homem desse a sua vida por um ideal e depois servisse mediocremente<br />

a ele.<br />

1) Pierre du Terrail, senhor de Bayard (*1476 - †1524).<br />

2) Do francês: o Cavaleiro sem medo e sem reproche.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


PIEDADE PLINIANA<br />

Gustavo Kralj<br />

Assunção de Nossa<br />

Senhora - Basílica de Santa<br />

Maria Maggiore, Roma, Itália<br />

Pedido a Maria<br />

assunta aos Céus<br />

N<br />

a vossa Assunção, ó Maria, vossa Pureza, vossa Fé e vossa Fortaleza encontraram,<br />

por fim, o prêmio merecido.<br />

Fazei-me puro, cheio de fé e forte para lutar convosco na Terra e vencer a Re-<br />

volução, de modo a contemplar-Vos eternamente no Céu.<br />

Do alto da glória de onde reinais, sede para mim a Mãe de Misericórdia, apoiando-me em<br />

todas as minhas defecções, reerguendo-me em todas as quedas, perdoando-me em todas as<br />

faltas e amando-me em todos os instantes, de maneira que em tudo Vos ame, ó Rainha santa,<br />

que deveis ser o enlevo de toda a minha vida.<br />

5


DONA LUCILIA<br />

João Paulo Rodrigues<br />

Rezando na<br />

Igreja do Sagrado<br />

Coração de Jesus<br />

Dona Lucilia era uma pessoa muito respeitável,<br />

digna e ao mesmo tempo de uma afabilidade<br />

e de uma doçura indizíveis. Tais qualidades<br />

eram análogas às existentes na Igreja do<br />

Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Essa<br />

igreja parecia feita para que ela fosse ali rezar.<br />

Para a minha sensibilidade de<br />

filho, ver Dona Lucilia rezar<br />

na Igreja do Sagrado Coração<br />

de Jesus dava-me a impressão<br />

de estar ela ali como uma católica<br />

em seu lugar próprio, no ambiente,<br />

na atitude, na posição que convém a<br />

uma alma católica, ao pé de um altar<br />

onde recebe graças muito grandes.<br />

Igreja digna, quase<br />

majestosa<br />

Quem visitava essa igreja notava,<br />

já na primeira vez, uma harmonia<br />

de qualidades que não se encontram<br />

frequentemente reunidas. É uma<br />

igreja muito digna, chega quase a<br />

ser majestosa, mas ao mesmo tempo<br />

muito afável, de maneira que a pessoa<br />

se sente inteiramente à vontade<br />

dentro dela, completamente acolhida<br />

como quem está na casa paterna.<br />

Era a atmosfera que o próprio Nos-<br />

so Senhor Jesus Cristo criava em torno<br />

de Si, como se vê no Evangelho.<br />

Quer dizer, as pessoas tinham por<br />

Nosso Senhor um respeito sem fim,<br />

sem limites, mas ao mesmo tempo<br />

possuíam facilidade de acesso junto a<br />

Ele, falavam, perguntavam, etc., e sentiam<br />

a sua majestade juntamente com<br />

o carinho, a bondade, a amabilidade.<br />

Naquela igreja, o órgão tocando<br />

alguma melodia polifônica ou do<br />

cantochão encontra ali as suas ressonâncias<br />

adequadas.<br />

Não é um templo riquíssimo, mas<br />

uma igreja paroquial boa, nada mais<br />

do que isso. Comparando-a com qualquer<br />

igreja da Itália, ela fica muito<br />

abaixo. A Itália é a terra dos mármores<br />

suntuosos, dos bronzes, das grandes<br />

obras de arte, dos grandes pintores,<br />

escultores e artistas de toda ordem,<br />

de maneira que se veem coisas<br />

extraordinárias em qualquer igreja.<br />

No Coração de Jesus, de São Paulo,<br />

6


não; tudo é digno, mas é o que a América<br />

do Sul pode dar; nós temos aquilo.<br />

E Nosso Senhor recebe de boa vontade<br />

o óbolo de quem tem pouco. Há<br />

uma graça lá nesse sentido.<br />

Ora, transposto tudo isso para o<br />

plano tão inferior de uma mera criatura<br />

humana, eu notava em Dona<br />

Lucilia qualidades que me pareciam<br />

análogas àquelas por mim percebidas<br />

na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.<br />

Quer dizer, a personalidade dela<br />

era muito respeitável e muito digna, e<br />

ao mesmo tempo de uma afabilidade<br />

e de uma doçura indizíveis. Uma personalidade<br />

muito marcada pelos sofrimentos<br />

da vida, mas com uma espécie<br />

de alegria de quem sofre de boa<br />

vontade, dá com bom gosto aquilo<br />

que tem que entregar a Deus, e carrega<br />

a sua cruz, achando natural que a<br />

carregue, com a coragem despretensiosa<br />

de quem cumpre integralmente<br />

o dever de todos os dias.<br />

“Espere um pouquinho...”<br />

Sempre fui muito observador,<br />

mesmo em relação à minha própria<br />

mãe; e muitas vezes, por um movimento<br />

instintivo, eu olhava para ela<br />

com o canto dos olhos durante suas<br />

orações na Igreja do Coração de Jesus.<br />

Vendo-a rezar, eu pensava: há algo<br />

entre ela e essa igreja por onde ela<br />

parece feita para rezar aqui, e a igreja<br />

parece feita para que aqui ela reze.<br />

Até eu completar onze, doze anos<br />

— não me lembro bem —, eu assistia<br />

à Missa no Coração de Jesus frequentemente<br />

ao lado de mamãe. Depois,<br />

quando fiquei mais velho, o costume<br />

era que os moços assistissem à Missa<br />

nas naves laterais, porque a igreja ficava<br />

muito cheia e convinha ceder os<br />

lugares para as senhoras. Os homens<br />

ficavam de pé. Um velho poderia permanecer<br />

ajoelhado no meio das senhoras,<br />

mas para um moço ficava<br />

uma coisa meio pretensiosa, descabida,<br />

ajoelhar-se quando havia senhoras<br />

a quem ele devia ceder o lugar.<br />

Então, eu assistia à Missa na nave<br />

lateral e, bem entendido, onde podia<br />

olhar para a imagem de Nossa<br />

Senhora Auxiliadora. Esse era meu<br />

movimento primeiro, indiscutível:<br />

entrar e ir para lá. Nunca tive a menor<br />

dúvida a esse respeito.<br />

Terminado o Santo Sacrifício,<br />

quando todos começavam a se retirar,<br />

Dona Lucilia não era das primeiras<br />

a sair. Assim que o grosso do<br />

público já tinha ido embora, ela se<br />

levantava e passava para o altar do<br />

Coração de Jesus.<br />

Meu pai a ficava esperando, mas<br />

não tinha a piedade dela, e permanecia<br />

ao lado de fora, junto à porta<br />

da igreja, conversando com o Pe.<br />

Falconi. Eram longas prosas, enquanto<br />

mamãe rezava.<br />

Dona Lucilia rezava notadamente<br />

diante da imagem do Sagrado Coração<br />

de Jesus, mas naturalmente também<br />

diante da imagem de Nossa Senhora,<br />

e, depois, daquele conjunto<br />

escultural do Menino Jesus no Templo<br />

entre os doutores.<br />

Ela não orava com os lábios cer-<br />

rados, mas os movimentava ligeiramente,<br />

acompanhando o que ela<br />

dizia, de um modo tão rápido que<br />

não emitia o mínimo som, e também<br />

não se chegava a perceber o<br />

que falava, porque era um movimento<br />

minúsculo de lábios. Era o<br />

modo de ser dela. Cada um tem o<br />

seu, ela era assim.<br />

Às vezes meu pai entrava e dizia<br />

a ela, em tom sempre muito<br />

cortês: “Senhora, afinal vamos!”<br />

Ela fazia um sinal, como que zendo: “Espere um pouquinho...”<br />

Ao longo de toda a minha vida<br />

dinunca<br />

vi nenhum dos dois se impacientar<br />

com o outro, nem o menor<br />

sinal de impaciência. Mas ela dava<br />

a entender o seguinte: “Olhe,<br />

você pode vir algumas vezes aqui<br />

que ainda me encontra...” Afinal,<br />

lá iam os dois a pé para casa. ❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

4/2/1986)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

7


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Francisco Lecaros<br />

Lavrador arando a terra - Museu<br />

de Belas Artes, Pau, França<br />

Dignidade, beleza e<br />

coerência das profissões<br />

A pessoa que desempenha uma profissão não deve ter em vista<br />

primordialmente ganhar dinheiro, mas o gosto de tirar de si<br />

uma série de potencialidades que dormem, para se realizar e<br />

explicitar-se a si própria. O profissional, de acordo com um<br />

apelo íntimo de sua alma, concorre para a realização do plano<br />

de Deus, a Quem ele precisa adorar e servir.<br />

N<br />

o tocante às relações entre<br />

patrão e empregado 1 ,<br />

a pessoa não atina, não se<br />

situa bem no foco por onde essas relações<br />

podem ser vistas adequadamente,<br />

se não tomar o pressuposto<br />

católico a respeito do assunto.<br />

O operar de Deus<br />

é espelhado pelo<br />

operar do homem<br />

O pressuposto é este: a função da<br />

empregada doméstica, por exemplo,<br />

é sacral, e a patroa deve tomá-la em<br />

consideração e vê-la conjugada com<br />

sua própria função de patroa, que é<br />

sacral também. Ambas, vendo a mútua<br />

sacralidade, colocam-se no foco<br />

em que as relações facilmente se esclarecem,<br />

e um problema que se perde<br />

em aspectos e subaspectos insolú-<br />

8


veis, se resolve como que numa palavra<br />

só.<br />

É mais ou menos como alguns<br />

quadros. Em Roma há um quadro<br />

pintado no teto de uma igreja, que<br />

é muito interessante, não tanto como<br />

obra de arte, mas enquanto obra<br />

artesanal muito bem feita. Em qualquer<br />

ponto da igreja onde se esteja,<br />

olha-se para a pintura e tem-se a impressão<br />

de um caos de figuras heterogêneas.<br />

Mas há um local do templo<br />

a partir do qual, contemplando-se<br />

o quadro, todas as figuras se<br />

compõem e aquilo faz sentido.<br />

Há muitos problemas, sobretudo<br />

de cunho social, que são assim: permanecem<br />

insolúveis enquanto não<br />

os situamos no foco de onde devem<br />

ser vistos; porém, isto feito, tudo se<br />

resume em duas palavras e se resolve.<br />

Assim é o problema das relações<br />

entre patroa e empregada.<br />

Eu deveria, então, mostrar em<br />

que sentido essas funções são sacrais<br />

e como a sacralidade das<br />

funções resolve o problema.<br />

Quer dizer, dei a<br />

tese, passo a apresentar<br />

a demonstração.<br />

A capacidade de agir<br />

do homem é um dom de<br />

Deus, motor primeiro<br />

de todas as coisas. Todas<br />

as meditações que possamos<br />

fazer, por exemplo,<br />

a respeito de uma<br />

bela flor ou de um bonito<br />

quadro, considerando<br />

que aquilo reflete<br />

uma grandeza de seu<br />

Criador, o mesmo se pode<br />

dizer do operar humano,<br />

o qual — quando<br />

é reto, de acordo com a<br />

ordem posta por Deus<br />

— reflete uma grandeza<br />

do Altíssimo. E, por<br />

uma conaturalidade fácil<br />

de compreender, reflete<br />

uma grandeza mais<br />

especialmente do operar<br />

Francisco Lecaros<br />

divino. Quer dizer, o operar de Deus<br />

é espelhado pelo operar do homem.<br />

Assim, todas as atividades humanas<br />

têm uma raiz sacral, são reflexos<br />

de algo de divino e possuem uma<br />

dignidade, uma beleza, uma lógica e<br />

uma coerência cuja origem e fundamento<br />

encontram-se em Deus.<br />

Isso se aplica desde as mais altas<br />

atividades humanas como a de uma<br />

Papa, que é uma evidente imagem<br />

de Deus enquanto governador do<br />

universo visível e invisível, até uma<br />

das mais modestas das funções como,<br />

por exemplo, a de lixeiro.<br />

O lixeiro: inimigo da<br />

sujeira e da desordem<br />

O lixeiro que varre a cidade realiza<br />

uma atividade de caráter natural e<br />

não sobrenatural. Portanto, a este título,<br />

muitíssimo inferior à do Papa.<br />

Ademais, na ordem natural é uma<br />

tarefa manual e, enquanto tal, mui-<br />

“A cozinheira” - Museu de Belas Artes, Rouen, França<br />

to inferior às atividades intelectuais.<br />

Depois, na ordem do manual é uma<br />

atividade meramente executiva, ele<br />

não faz senão obedecer ao que lhe<br />

mandam, executando com as mãos<br />

a incumbência recebida. Além disso,<br />

por sua natureza — que é remover o<br />

lixo deixado pelos outros na rua —,<br />

trata-se evidentemente de um trabalho<br />

muitíssimo modesto.<br />

Pois bem, esse trabalho, visto numa<br />

perspectiva filosófica e teológica<br />

adequada, tem uma função sacral: o<br />

lixeiro é o inimigo da sujeira, da desordem,<br />

e executa na mais modesta<br />

das linhas a imensa tarefa posta por<br />

Deus na Criação, que é a luta contra<br />

tudo aquilo que possa representar<br />

sujeira, desordem, e ser o contrário<br />

dos planos divinos.<br />

Compreende-se quanto há de dignificante<br />

para o lixeiro ver que Deus<br />

pôs um movimento universal nas criaturas<br />

por onde elas se limpam — com<br />

exceção de algumas que devem simbolizar<br />

a sujeira, como<br />

o porco —, e que ele é<br />

o complementador deste<br />

movimento divino, a<br />

imagem na ordem material<br />

daqueles que removem<br />

as sordícies, as desordens<br />

espirituais. Quer<br />

dizer, ele pode, com uma<br />

concepção elevada das<br />

coisas, dar um alto culto<br />

a Deus, varrendo as ruas,<br />

no trabalho modesto de<br />

lixeiro que, de si, tem essa<br />

magnitude.<br />

A empregada e<br />

a dona de casa:<br />

funções sacrais<br />

O trabalho de uma<br />

criada de casa, portanto,<br />

tem também esta função.<br />

Se tomarmos em<br />

consideração a empregada<br />

enquanto limpando,<br />

ordenando, servindo o<br />

9


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Praça do Quirinal - Museu<br />

Amedeo Lia, La Spezia, Itália<br />

lar, se considerarmos o que o lar reflete<br />

das grandezas de Deus — inclusive<br />

as relações internas da Santíssima<br />

Trindade, as de Jesus Cristo com<br />

a Igreja, que são comparadas com as<br />

relações do esposo e da esposa —,<br />

compreendemos o que significa servir<br />

o lar; e então entendemos como a<br />

dona de casa que dirige o lar faz uma<br />

coisa nobre também.<br />

A criada deve ter um encanto inclusive<br />

por adornar a sua patroa. Porque<br />

precisamos ter um entusiasmo desinteressado,<br />

que eu chamaria, no bom<br />

sentido da palavra, infantil — no sentido<br />

das crianças de quem é o reino do<br />

Céu, ou da infância espiritual de Santa<br />

Teresinha —, um entusiasmo desprendido<br />

por aqueles que são mais do que<br />

nós, têm qualidades que não possuímos,<br />

e com isto dão a Deus uma glória<br />

que ficamos alegres que deem. Então,<br />

uma empregada que adorna a sua patroa<br />

para que esta, com sua dignidade,<br />

sua distinção, sua elegância, represente<br />

um padrão mais alto do gênero humano<br />

— e com isso dignifique o gênero<br />

humano inteiro, e dessa forma dignifique<br />

a Deus —, age sacralmente. E,<br />

sobretudo, se a patroa vê a sua própria<br />

posição assim, não considera a casa<br />

como uma chacunnière 2 ou como um<br />

lugar de puro gozo, mas sim como um<br />

santuário no qual também tudo deve<br />

caminhar para Deus Nosso Senhor. Aí<br />

a união da criada com a patroa é completa.<br />

Por detrás desta concepção está a<br />

ideia de que toda a vida humana deve<br />

ser vista assim, sacralmente. E quando<br />

o homem tem compreensão da<br />

dignidade de suas ações, ele possui<br />

também a concepção sacral da dignidade<br />

do cargo em virtude do qual<br />

ele exerce as suas atividades, bem como<br />

da dignidade que o cargo confere<br />

à sua pessoa. Porque se a criada sabe<br />

que servir é uma coisa sacral, ela<br />

saberá também que ser criada é sacral;<br />

como toda função lícita, não pode<br />

ser vista laicamente, e sim sacralmente.<br />

Então, há uma dignidade de<br />

empregada junto à dignidade<br />

de ente humano e de filha<br />

de Deus, que é uma dignidade<br />

verdadeira e que ela carrega<br />

consigo, quer dizer, ela<br />

é isto. É assim que se deve<br />

ver, portanto, a vida.<br />

O profissional é,<br />

sobretudo, aquele<br />

que concorre para<br />

a realização do<br />

plano de Deus<br />

Francisco Lecaros<br />

Isso é ainda maior com os<br />

incumbidos de funções mais<br />

nobres, por exemplo, professores,<br />

advogados, médicos,<br />

engenheiros, dirigentes de<br />

empresa, diplomatas, militares,<br />

etc. Todas essas funções<br />

têm um suporte sacral, e é<br />

preciso vê-las sacralmente.<br />

Uma sociedade verdadeiramente<br />

católica é aquela na qual todo mundo<br />

que exerce suas funções, as desempenha<br />

evidentemente com um desejo de<br />

lucro, porque sem lucro ninguém vive.<br />

Não com um anseio exclusivo de<br />

lucro, e eu acrescentaria: não um desejo<br />

preponderante de lucro, mas é<br />

pela alegria que sua alma encontra,<br />

em virtude de sua própria luz primordial<br />

3 , em fazer aquela função para a<br />

qual é chamada. Então, o verdadeiro<br />

relojoeiro — por exemplo, o relojoeiro<br />

suíço, exímio, que monta um<br />

relógio de primeira categoria — deve<br />

gostar de fazer relógio porque, em<br />

si, é uma coisa bela, pois participa em<br />

algum modo de Deus; a beleza que<br />

ele sente tem uma explicação sacral,<br />

e por causa disto ele deve com espírito<br />

sacral ser relojoeiro, e não querer<br />

deixar de sê-lo assim que se lhe dê<br />

uma profissão que renda mais, uma<br />

vez que sua alma está toda voltada<br />

para fazer relógios. Por quê? Porque<br />

o profissional não é aquele que quer<br />

ganhar dinheiro, mas é, sobretudo,<br />

aquele que concorre com o plano de<br />

Deus, de acordo com um apelo íntimo<br />

de sua alma, o qual é um sinal da<br />

Providência para fazer alguma coisa<br />

em que ele adore e sirva a Deus. Este<br />

é o clima do Reino de Maria.<br />

O advogado: gosto de ver<br />

a ordenação humana<br />

Tomemos como exemplo a profissão<br />

de advogado. Quando o indivíduo<br />

tem verdadeira estrutura mental<br />

do advogado, ele possui antes de tudo<br />

um senso muito vivo da norma e<br />

da regra, dos códigos. E isto representa<br />

o lado rígido do espírito do advogado.<br />

É, sobretudo, um certo tipo<br />

de advogado, que não dá tanto para<br />

causídico como para jurisconsulto,<br />

quer dizer, quando há uma dúvida<br />

na interpretação da lei, dá uma<br />

resposta luminosa; não advoga, não<br />

dirige causas. É um dos aspectos do<br />

espírito do advogado: o gosto de ver<br />

a ordenação humana, e de trabalhar<br />

para ordenar o homem.<br />

Entretanto, o espírito do advogado<br />

tem também uma inclinação oposta a<br />

10


essa: toma um caso concreto e, à força<br />

de argúcia e de saber escarafunchar,<br />

faz uma argumentação brilhante mostrando<br />

que o caso não cabe dentro do<br />

texto da lei. Este advogado revela uma<br />

espécie de flexibilidade de espírito, de<br />

elasticidade, uma forma de luz mental<br />

— e aqui está a beleza do métier do advogado<br />

— que é diferente da outra.<br />

Na ordem natural nós podemos<br />

achar que um obelisco é uma beleza<br />

—impávido no meio do deserto, uno,<br />

contínuo, os séculos mudam e ele não<br />

muda —, e que é lindo, por exemplo, o<br />

voo caprichoso de um inseto em torno<br />

do obelisco, um bailado nos ares completamente<br />

novo e inesperado. Assim<br />

também podemos encontrar no estilo,<br />

no movimento, na habilidade — eu<br />

insisto na palavra —, na luz mental de<br />

qualquer dessas duas formas de advogado<br />

uma beleza de feitio de alma, de<br />

movimentação de espírito, uma diferente<br />

da outra, mas que nos dão ideias<br />

da lucidez infinita de Deus, que é a<br />

própria inteligência, e em cujas obras,<br />

em cujo modo de governar o universo<br />

nós vemos exatamente isto: de um lado<br />

o Altíssimo que magnificamente<br />

ordena todo o universo,<br />

e depois Deus que cria<br />

uma porção de seres, os quais<br />

representam situações e casos,<br />

etc., em que o Criador<br />

quase que brinca com as regras<br />

que Ele mesmo pôs e,<br />

por meio de uma série quase<br />

infinita de “divinos caprichos”,<br />

faz exceções saltitantes<br />

que constituem um charme<br />

em meio à grande majestade<br />

das coisas que Ele criou.<br />

Temos, pois, o que constitui<br />

a essência do métier do<br />

advogado. É uma forma de<br />

luz mental que tende a exercer-se,<br />

a aplicar-se; e o advogado<br />

que não desenvolve essa<br />

luz passa a vida inteira como<br />

um sujeito frustrado. Há<br />

algo nele que devia florescer<br />

e que não floresceu, e que o<br />

amarra, o deprime, o aborrece. Ainda<br />

que esse advogado tenha grandes<br />

possibilidades em outra carreira, ele<br />

transpõe a vida toda como um indivíduo<br />

que ficou, por exemplo, com um<br />

braço amarrado, louco para esticá-lo<br />

e que não pode; é essa mesma forma<br />

de mal-estar, mas muito pior porque<br />

é dentro da alma e não do corpo.<br />

Na profissão de advogado, há também<br />

a prova do direito, da lei, a ordenação<br />

do universo, a defesa do inocente,<br />

etc.; são coisas de uma grande<br />

beleza e que entram pelos olhos. E<br />

igualmente de uma grande sacralidade.<br />

Mas o homem não sente tanto a<br />

sacralidade na função que ele executa,<br />

quanto na sacralidade do tipo de<br />

luz mental que ele manifesta ao fazer<br />

aquela função; é aí que ele sente propriamente<br />

a sacralidade.<br />

O arquiteto deve ter um<br />

espírito altamente figurativo<br />

do Espírito de Deus<br />

Consideremos agora outra profissão.<br />

Como eu imagino o arquiteto?<br />

Tenho a convicção de que a obra<br />

de arte mestra do homem não é a escultura,<br />

nem a pintura, nem a música,<br />

mas é a arquitetura. A melhor expressão<br />

da sociedade humana não é<br />

um quadro, uma escultura ou uma<br />

música, nem uma joia, nem um móvel,<br />

mas é um edifício, na medida em<br />

que se entenda o edifício com tudo<br />

quanto ele tem.<br />

Então, por exemplo, deve-se entender<br />

uma catedral com toda a sua<br />

estrutura de pedra, os seus vitrais, as<br />

suas imagens, os seus bancos, as suas<br />

estalas, os seus altares, o seu sacrário<br />

e com o seu órgão tocando. Quer dizer,<br />

eu acho que todas essas outras<br />

coisas que estão dentro da catedral<br />

— e também mosaicos, quadros, tapeçarias<br />

— são peças elaboradas para<br />

serem vistas num conjunto, e esse<br />

conjunto é o prédio. De maneira<br />

que o prédio dá a perspectiva total,<br />

a qual vale mais do que as perspectivas<br />

parciais que existem dentro dele;<br />

porque aquele que arquiteta o todo<br />

tem uma atividade mais alta do<br />

que aqueles que concebem as partes.<br />

E assim como é intuitivo ser um arquiteto<br />

mais do que um marceneiro<br />

que faz uma cadeira, é intuitivo que<br />

é mais ser um arquiteto do que um<br />

pintor ou um escultor, desde que se<br />

compreenda que a pintura e a escultura<br />

só têm razão de ser dentro de<br />

um prédio, de uma casa.<br />

A casa é a obra de arte mestra<br />

que, mais do que objetos que estão<br />

dentro dela, deve conter o homem; a<br />

casa é a moldura do homem. Assim<br />

como a moldura tem um grande papel<br />

para dar realce ao quadro, o prédio<br />

é a moldura do homem, da família,<br />

de uma diocese, por exemplo<br />

— com seu bispo, seus cônegos, seus<br />

monsenhores, etc., onde todos estão<br />

rezando com o pleno aparato da hierarquia<br />

e da Liturgia reunidos.<br />

Então, eu imagino um arquiteto<br />

como um indivíduo que tenha antes<br />

de tudo uma alta ideia da natureza<br />

daquilo que ele constrói, e sabe<br />

11


DR. PLINIO COMENTA...<br />

edificá-la pegando a alma de um grupo<br />

humano em determinado momento,<br />

e exprimindo-a nos seus aspectos<br />

mais nobres e mais favoráveis, dentro<br />

das circunstâncias que aquela obra de<br />

arquitetura deve representar.<br />

Quer dizer, ele não é só um teólogo,<br />

um filósofo e até certo ponto<br />

um historiador que conhece a história<br />

da instituição para a qual ele<br />

constrói; mais do que isto, é um indivíduo<br />

que tem noção do modo pelo<br />

qual os homens do seu tempo — ao<br />

menos os homens bons, os contrarrevolucionários,<br />

não digo a canalha<br />

do seu tempo — sentem a instituição<br />

ou aquilo para o qual ele constrói.<br />

Ele possui um senso de observação<br />

psicológica muito fino, e há<br />

uma inter-relação grande da alma<br />

dele com uma série de valores; tem,<br />

portanto, um conjunto arquitetônico<br />

de conhecimentos que ele vai depois<br />

transferir para uma arquitetura de<br />

pedra. É, então, um espírito possantemente<br />

simbólico que sabe tomar<br />

do nada uma série de concepções,<br />

reuni-las para fazer algo que exprime<br />

aquilo que ele quer; nisso ele põe<br />

sua alma, é um arquiteto com alma.<br />

Quer dizer, é um espírito altamente<br />

figurativo do Espírito de Deus,<br />

criando e ordenando todas as coisas.<br />

Este seria, a meu ver, o espírito do<br />

arquiteto. Não é, portanto, o espírito<br />

politécnico que muitas vezes mutila,<br />

amputa, porque reduz a coisa a finalidades<br />

funcionais que evidentemente<br />

devem estar presentes com toda a<br />

sua realidade, todas as suas exigências,<br />

mas são secundárias; e restringe<br />

tudo a uma uniformização, a uma<br />

empresa econômica comum. Isto eu<br />

acho que é a coisa errada.<br />

Feitio de espírito do médico<br />

Quanto ao médico, se eu percebo<br />

bem, seu feitio de espírito, sua<br />

luz intelectual, pelo menos enquanto<br />

clínico, tem algo — mas naturalmente<br />

em ponto de maior categoria<br />

— do diplomata e do político.<br />

É uma subtileza de espírito por<br />

onde, à vista dos sintomas, se faz a<br />

combinação para justificar a hipótese,<br />

e onde se acompanha o processo<br />

de uma doença com senso do que<br />

é um processo da concatenação das<br />

causas e efeitos, da coordenação<br />

das circunstâncias com que o político<br />

faz política ou o diplomata faz<br />

diplomacia. Eu tenho impressão de<br />

que se joga com o fígado ou com o<br />

pâncreas com a habilidade com que<br />

se joga em política.<br />

Dou um exemplo. Quando comecei<br />

a melhorar da dosagem do açúcar<br />

4 , meu médico de repente ordenou<br />

parar o emprego do açúcar antes<br />

que este se normalizasse. E eu disse:<br />

“Mas meu Deus, vai iniciar tudo<br />

de novo!” O médico, então, explicou:<br />

“Não. É preciso interromper o uso do<br />

açúcar para que o pâncreas, que agora<br />

ficou fortificado, comece a dar de<br />

si, porque do contrário ele se torna<br />

preguiçoso e habituado ao remédio;<br />

mas é necessário um jeito, porque ele<br />

tem que andar por si.” De fato, depois<br />

comecei a ficar melhor até chegar<br />

a esta relativa normalidade em<br />

que graças a Deus eu me encontro.<br />

Quantas coisas assim a Medicina<br />

deve fazer! Tenho a impressão de que<br />

é “o pão nosso de cada dia” da Medicina.<br />

O médico, por exemplo, trata<br />

com o pâncreas como quem trata com<br />

soldados preguiçosos de um exército,<br />

ou com um povo que não tem vontade<br />

de trabalhar, e que se deixa empobrecer<br />

um pouco para que ele trabalhe.<br />

Quer dizer, são mil jeitos, mil<br />

golpes, mil acrobacias com a natureza,<br />

cuidadosamente estudadas e que<br />

fazem a glória e a forma de luz intelectual<br />

do clínico.<br />

O gosto que o indivíduo tem na<br />

profissão não deve ser de ganhar<br />

Francisco Lecaros<br />

Pregação no interior de uma catedral - Academia de<br />

Belas Artes de São Fernando, Madri, Espanha<br />

12


dinheiro, embora<br />

ele precise viver<br />

da profissão; mas é<br />

um prazer de tirar<br />

de si uma porção<br />

de coisas que dormem<br />

dentro dele,<br />

as quais a todo custo<br />

ele deve tirar para<br />

se realizar, explicitar<br />

a si próprio.<br />

Por outro lado,<br />

entra um amor à<br />

beleza dessa operação<br />

mental enquanto<br />

ela mesma, porque<br />

tudo se reduz<br />

à beleza de agir; e,<br />

nas profissões intelectuais,<br />

de um<br />

operar da mente.<br />

E é essa beleza do<br />

agir da mente que<br />

nos convoca para<br />

adorarmos a Deus<br />

enquanto sendo assim,<br />

procurarmos<br />

ver desse modo todas<br />

as coisas que o<br />

Criador pôs no universo,<br />

e compreendermos<br />

que Deus<br />

vai fazer coisas dessas conosco no<br />

Céu por toda a eternidade, e que isto<br />

é uma pre-figura do nosso Céu.<br />

Francisco Lecaros<br />

Sacerdotes e guerreiros:<br />

essenciais ao equilíbrio<br />

de toda sociedade<br />

Acão de graças ao Santo Sudário após a epidemia de cólera<br />

de 1836 - Museu Nacional do Palácio Mansi, Lucca, Itália<br />

A consequência desta exposição<br />

para a vida espiritual seria<br />

nos habituarmos a considerar assim<br />

os fundamentos sacrais de todas<br />

as atividades que exercemos,<br />

ou que outros realizam em torno<br />

de nós; mas é na forma de luz intelectual<br />

que a ação traz consigo. Eu<br />

compreendo que a atividade poderia<br />

ser vista por mil outros modos,<br />

mas é nesta forma de luz intelectual<br />

que, afinal de contas, nós pode-<br />

mos compreender melhor a Deus e<br />

a sacralidade da profissão.<br />

Dante, quando fala — não me lembro<br />

bem se é da graça ou de Deus<br />

—, dá essa definição: “luz intelectual<br />

cheia de amor, amor cheio de todo<br />

o bem”. É uma frase de um cântico, a<br />

qual, dita em italiano — não ouso dizer<br />

em italiano porque não sei a pronúncia<br />

— é muitíssimo mais bonita do<br />

que em português. Este gosto que nossa<br />

alma tem de realizar certo tipo de<br />

operações é resultante de uma luz que<br />

há em nós, uma particular lucidez para<br />

perceber certas coisas, e uma especial<br />

aptidão dos sentidos e da vontade<br />

para tratar daquilo; e é nisto que nosso<br />

ser mais se parece com Deus.<br />

Por causa disso, um povo que dá<br />

poucos sacerdotes ou poucos guerreiros<br />

está em estado<br />

de degenerescência.<br />

Ou se trabalha para<br />

que ele volte a dar<br />

muitos sacerdotes<br />

e muitos guerreiros,<br />

ou a sua fibra<br />

está liquidada. Porque,<br />

das atividades<br />

humanas, nenhuma<br />

tem tanta nobreza e<br />

tanta analogia com<br />

as coisas de Deus,<br />

com a luz mental<br />

que há em Deus<br />

do que o sacerdócio;<br />

é uma coisa evidente.<br />

Mas também<br />

uma sociedade que<br />

não produz guerreiros<br />

não odeia o<br />

contrário do que<br />

ela ama e, portanto,<br />

não ama nada; é<br />

uma sociedade que<br />

está em putrefação.<br />

O espírito sacerdotal<br />

e o espírito guerreiro<br />

são essenciais<br />

ao equilíbrio de toda<br />

sociedade. ❖<br />

(Extraído de conferência<br />

de 21/11/1969)<br />

1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 154, janeiro<br />

2011, p. 18-23.<br />

2) Do francês: chacun (cada um); chacunnière<br />

(“cadaunzeira”), palavra usada<br />

por Rabelais, significando o lugar ou a<br />

situação modesta do homem comum.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a empregava para designar<br />

a situação medíocre e confortável de<br />

quem não vive para um alto ideal.<br />

3) Aspiração para contemplar as verdades,<br />

virtudes e perfeições divinas de<br />

um modo próprio e único, pelo qual<br />

uma alma ou um povo dará sua glória<br />

particular a Deus. Sobre este assunto,<br />

ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 54, p. 4.<br />

4) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi atingido por grave crise<br />

de diabetes em dezembro de 1967, e<br />

precisou fazer por longo tempo um<br />

rigoroso regime alimentar.<br />

13


Alain Patrick<br />

SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS<br />

Luís XIV e o Sagrado<br />

Sergio Hollmann<br />

Coração de Jesus<br />

Aparição do Sagrado Coração de Jesus<br />

a Santa Margarida Maria Alacoque<br />

Catedral de Lisieux, França<br />

Gustavo Kralj<br />

Busto de<br />

Luís XIV<br />

N<br />

o prefácio de um álbum<br />

sobre Versailles, Jean<br />

d’Ormesson<br />

1 faz o seguin-<br />

te comentário:<br />

Luís XIV, precursor da<br />

Revolução Francesa<br />

Atrás da arte e da beleza de Versailles,<br />

há toda uma sociedade e toda<br />

uma política. Trata-se de desferir<br />

o último golpe contra o feudalismo,<br />

de reduzir a meros súditos os grandes<br />

senhores. De fixar as bases da burocracia<br />

monárquica, de abafar sob<br />

o brilho das festas as tentações de fazer<br />

fronda, de independência e de revolta…<br />

Por detrás da epopeia da arte<br />

clássica e da monarquia legítima, já<br />

Se o “Rei-Sol” houvesse atendido à<br />

mensagem do Sagrado Coração de Jesus,<br />

transmitida através de Santa Margarida<br />

Maria Alacoque, ele teria evitado a Revolução<br />

Francesa, e a História do mundo seria outra.<br />

se faz prenunciar a revolução burguesa<br />

que explodirá no fim do século seguinte.<br />

Quer dizer, portanto, Luís XIV<br />

foi precursor da Revolução Francesa.<br />

E é bem exatamente isso.<br />

Luís XIV em Versailles se coloca no<br />

alto de uma curva que não faz senão<br />

subir desde os primeiros capetíngios,<br />

e desta situação elevada já se percebe,<br />

numa perspectiva longínqua, os frutos<br />

do centralismo, do rebaixamento dos<br />

grandes e o reino dos escritórios instalados<br />

por Colbert…<br />

É o Estado moderno, democrático,<br />

nivelador e ditatorial.<br />

Em Versailles, entretanto, a pessoa<br />

quase sagrada do rei e sua corte bastam<br />

para obturar o horizonte…<br />

Essa é uma expressão muito interessante<br />

do d’Ormesson: “Bastam<br />

para obturar o horizonte”. Quer dizer,<br />

para tapear, para disfarçar o horizonte.<br />

Versailles é um mundo fechado dominado<br />

pelo rei. Não somente há um<br />

só Versailles, mas Versailles é o todo<br />

da França…<br />

Ou seja, a centralização absoluta.<br />

Tudo esplêndido, o palácio é magnífico,<br />

mas a autoridade do rei serve para<br />

disfarçar a autoridade dos burocratas<br />

e dos burgueses que vêm subindo.<br />

Isso é muito interessante porque<br />

se percebe uma coisa curiosa: um rei<br />

que não tivesse brilhado como Luís<br />

XIV não conseguiria disfarçar tanto<br />

a Revolução que subia, de maneira<br />

14


tal que o brilho dele serviu para tudo<br />

quanto viria depois.<br />

Recusar ou aceitar<br />

uma graça pode fazer<br />

girar a História<br />

Poder-se-ia perguntar se ele, sendo<br />

sensível ao recado de Santa Margarida<br />

Maria e atendendo ao Sagrado<br />

Coração de Jesus, não teria desfeito<br />

essa trama. Então, que momento histórico<br />

extraordinário esse em que ele<br />

recebeu o recado e, talvez depois de<br />

uma curta reflexão interna, disse não.<br />

Poderia ter dito sim, e talvez estivesse<br />

a um passo de dizer sim, mas disse<br />

não. A História do mundo mudou...<br />

Ao contrário do que dizem alguns,<br />

que tudo depende do andamento<br />

da sociedade e os indivíduos<br />

influenciam pouco, etc., vemos como<br />

um ato interno de recusa ou de aceitação<br />

da graça pode girar a História<br />

do mundo. É lúgubre!<br />

Para quem conhece este assunto, isso<br />

constitui um véu de tristeza ao visi-<br />

tar Versailles, pensando que o feudalismo<br />

teve ali seus últimos estertores,<br />

que foi sepultado no meio de um mundo<br />

de festas, que os maiores nomes do<br />

feudalismo eram rebaixados a uma<br />

condição brilhantemente servil diante<br />

do rei, e que este constituía o vazio em<br />

torno de si sob o pretexto de subir sozinho.<br />

Mas ninguém sobe muito sozinho<br />

sem ter feito o vazio em torno de<br />

si. Este é um princípio que não falha.<br />

Compreende-se que ele, com sua<br />

grandeza real, brilhante, magnífica,<br />

estava fazendo os funerais da França<br />

do Ancien Régime 2 .<br />

O pior foi que isso se espalhou depois<br />

para todas as cortes do mundo.<br />

Todo rei queria ser um pequeno Luís<br />

XIV. Até mesmo no século XIX,<br />

o Rei Luís II da Baviera, meio desequilibrado,<br />

ainda construiu castelos<br />

com a ideia de ser uma espécie<br />

de Luís XIV. A figura deste monarca<br />

modelou tudo, e com isso o mundo<br />

monárquico caminhou num passo só<br />

para o mundo democrático. Mas caminhou<br />

com as próprias pernas!<br />

Se um dia nós escrevêssemos uma<br />

História do mundo, teríamos que<br />

deslocar a história da Revolução: ela<br />

não foi, sobretudo, a história dos revolucionários<br />

que se levantaram e<br />

derrubaram, mas a história dos contrarrevolucionários<br />

que estavam em<br />

cima e se jogaram para baixo. Danton,<br />

Marat, Robespierre, etc. tiveram<br />

como precursor o “Rei-Sol”.<br />

Recado de Nosso Senhor,<br />

por meio de uma freirinha<br />

Na mensagem a Santa Margarida<br />

Maria, o Sagrado Coração de Jesus<br />

se referia assim a Luís XIV: “Vá<br />

dizer ao meu amigo, o Rei da França...”<br />

A certa altura a Santa transmitia<br />

o seguinte recado ao Rei:<br />

“O Sagrado Coração de Jesus não<br />

pede senão a vossa confiança em sua<br />

bondade para vos fazer experimentar<br />

a doçura e a força de seu socorro.”<br />

A fórmula tomada assim parece<br />

dar a entender que o rei estava precisando<br />

de socorro e tinha noção dis-<br />

Gustavo Kralj<br />

Luís XIV recebe uma comitiva persa - Palácio de Versailles, França<br />

15


SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS<br />

Francisco Lecaros<br />

mente vários sentidos: em primeiro<br />

lugar é que o Rei da França, por função,<br />

era amigo d’Ele. Mas tinha um<br />

significado pessoal também, quer dizer,<br />

Ele é amigo do Rei da França.<br />

Luís XIV tinha vários lados por onde<br />

ele podia ser chamado um homem<br />

que queria bem a Deus. Porque<br />

a contradição de certas almas<br />

muito chamadas é esta: têm coisas<br />

boas que conservam no meio do horror,<br />

e às vezes levam longe isto, e era<br />

o caso de Luís XIV.<br />

Ele tinha uma concubina que, ao<br />

perceber estar sendo posta de lado<br />

pelo monarca, recorreu à magia negra,<br />

mandando até celebrar missa sacrílega<br />

para conservar-se nesse estado<br />

de pecado com Luís XIV.<br />

Ao tomar conhecimento disso por<br />

meios seguros, Luís XIV teve uma<br />

espécie de náusea e de horror dela, e<br />

a ruptura se tornou definitiva.<br />

O rei, portanto, chegou ao auge<br />

da humilhação, ao perceber que<br />

a mulher com a qual ele tinha prevaricado<br />

era dessa categoria e capaz<br />

disso por ambição. Na ponta do caminho<br />

Luís XIV encontrava satanás,<br />

porque ele tinha recusado um outro<br />

caminho em cujo extremo estava<br />

o Sagrado Coração de Jesus. É uma<br />

coisa tremenda!<br />

Então, vemos nele aspectos bonitos,<br />

e depois lados horrorosos que<br />

metem medo. Também é verdade<br />

que, para a vista de um monarquista,<br />

Luís XIV é um sol que ainda não<br />

acabou de se pôr. Porque quando os<br />

povos se deslumbram com a monarquia<br />

e manifestam o desejo de que<br />

ela se restaure, é pelo anseio de ver<br />

restabelecida uma grandeza da qual<br />

o sol foi ele.<br />

Uma coisa que chama a atenção é<br />

a diferença entre a conduta da população<br />

de Paris por ocasião das guerras<br />

de religião no século XVI, e depois no<br />

fim do século XVIII e início do XIX,<br />

durante a Revolução Francesa.<br />

No tempo das guerras de religião,<br />

a população de Paris foi o grande baso,<br />

e que Nosso Senhor lhe dizia que<br />

se dirigisse a Ele, e não pedia outra<br />

coisa senão a confiança em seu Sagrado<br />

Coração, para que o monarca<br />

tivesse a experiência de sua bondade<br />

e da sua doçura. Como se afirmasse:<br />

“Eu não estou pedindo sacrifício,<br />

mas rogo esse passo delicado:<br />

que creiais na autenticidade da mensagem<br />

desta freirazinha, vinda de<br />

um convento de um lugarejo — que<br />

naquele tempo devia ser de mínima<br />

importância. Acreditai nisso e tudo<br />

correrá bem.”<br />

Entretanto, que título Nosso Senhor<br />

dava para Luís XIV acreditar<br />

nisso? Prova não saiu nenhuma, não<br />

houve milagre, não aconteceu nada.<br />

São coisas que se passaram entre<br />

Deus e Luís XIV... É possível que o<br />

monarca tenha tido antes um sonho,<br />

indicando que ele receberia uma<br />

mensagem ou qualquer coisa assim;<br />

ou que ele tenha recebido uma dessas<br />

graças interiores com as quais o<br />

Altíssimo toca as almas, por onde estas<br />

não têm dúvida nenhuma de que<br />

foi Deus Quem as tocou. Mas vejam<br />

o sacrifício para um racionalista:<br />

em certo momento Luís XIV teve<br />

que acreditar num paradoxo, numa<br />

coisa que era quase uma aberração.<br />

O maior rei da Terra receber do<br />

Sagrado Coração de Jesus um recado,<br />

por meio de uma freirinha afundada<br />

num convento ignorado, e mudar<br />

uma atitude interior diante de<br />

Nosso Senhor: acreditar num Deus<br />

que tem pena dele... Ele, o rei onipotente,<br />

que diante do Criador, não<br />

é senão uma formiga, e que precisa<br />

ser tratado com bondade, como uma<br />

criança doente é cuidada por sua<br />

mãe, e então será socorrido! Procurem<br />

colocar diante dos olhos a figura<br />

do rei com aquele estilão todo, e<br />

compreenderão o que isso representava.<br />

Mas era preciso passar por<br />

aí... Confiança, sim, mas ajoelhado<br />

e de mãos postas, confiando que seria<br />

tratado com bondade. Não é um<br />

meio colega de Deus, não; é de cabeça<br />

baixa, de chapéu no chão, pedindo<br />

perdão.<br />

Atitudes da população<br />

de Paris em face de dois<br />

lances da Revolução<br />

Quando Nosso Senhor declarou a<br />

Luís XIV “diga ao meu amigo, o Rei<br />

da França...”, isso tinha provavel-<br />

Abjuração de Henrique IV - Museu de Belas Artes, Pau, França<br />

16


A recusa de um convite<br />

Se Luís XIV tivesse aceitado o<br />

convite de Santa Margarida Maria,<br />

ele restauraria a Paris do tempo<br />

das guerras de religião; não se pode<br />

pensar numa Revolução Francesa<br />

nesse clima. Creio que essa<br />

Revolução não teria arrebentado;<br />

Gustavo Kralj<br />

Luís XIV tendo ao fundo o Palácio<br />

das Tulherias - Palácio de<br />

Versailles, França<br />

as águas correriam para outro lado,<br />

simplesmente.<br />

Em sentido contrário, a Paris da<br />

recusa dele foi a da Revolução Francesa.<br />

É uma coisa tremenda!<br />

Nessa Revolução chegaram a promover<br />

esta blasfêmia: no dia seguinte<br />

ao assassinato de Marat, os revolucionários<br />

arrancaram-lhe o coração<br />

e ergueram uma espécie de altar<br />

improvisado, onde o expuseram,<br />

tendo embaixo a seguinte frase: “Sacré<br />

coeur de Marat, priez pour nous”<br />

— sagrado coração de Marat, rogai<br />

por nós. Como a dizer “não é o Coração<br />

de Jesus que vale, é o coração<br />

de Marat”.<br />

Ora, quando consideramos a figura<br />

do Santo Sudário, vemos ali, segundo<br />

o dito de Bossuet, un Dieu<br />

brisé, rompu et immolé — um Deus<br />

ferido, quebrado e imolado —, mas<br />

com que majestade!<br />

Embora Jesus esteja deitado, tem-<br />

-se a noção do que seria Ele de pé. O<br />

luarte da Religião Católica, para<br />

impedir que Henrique IV subisse<br />

ao trono como rei oficialmente<br />

protestante. Porque o<br />

problema da guerra era te: se ele, como oficialmen-<br />

essa<br />

oposição foi muito reforçada<br />

pelas tropas que Felipe<br />

II mandou para Paris. Afinal,<br />

vendo esta ultracatolicidade da<br />

população de Paris, Henrique IV<br />

assistiu a uma Missa — se não me<br />

te protestante, poderia ser<br />

Rei da França. E os católicos<br />

sustentavam que<br />

não; e uma parte ruim<br />

da população, bem entendido,<br />

todos os protestantes<br />

também, sustentavam<br />

que podia.<br />

Paris ofereceu uma<br />

oposição invencível ao<br />

protestante Henrique IV.<br />

Aliás, é preciso dizer, es-<br />

engano em Notre-Dame ou em algum<br />

outro lugar público — para dar<br />

a entender que ele tinha se convertido.<br />

E teve esse dito cínico: “Paris<br />

bem vale uma Missa.” Daí por diante<br />

ele fingiu estar convertido, o tempo<br />

inteiro.<br />

Entretanto, no fim do século<br />

XVIII não foi propriamente a população<br />

de Paris, mas uns aventureiros<br />

com um contributo de uma parte<br />

dessa população que fizeram a Revolução<br />

Francesa. Mas o grosso da<br />

população parisiense assistiu semi-<br />

-indiferente, intimidada e desagradada<br />

a tudo isso até o fim.<br />

Como é que Paris mudou tão<br />

enormemente?<br />

busto ereto, o Corpo perfeito, o peito<br />

largo e o tronco que à medida<br />

que se aproxima dos quadris se<br />

torna mais estreito; a proporção<br />

perfeita entre a cabeça,<br />

os ombros e o tronco. Um<br />

aspecto que, para mim, menta a majestade d’Ele<br />

ausido<br />

deformado pelas pancadas,<br />

reflete ainda uma lógica,<br />

uma coerência que chega<br />

até o último extremo. Toda<br />

a fisionomia d’Ele é lógica, coerente<br />

e, é preciso dizer, de uma<br />

severidade extraordinária!<br />

é o tamanho da cabeça.<br />

Por constituir exatamente<br />

a parte mais nobre, o fato<br />

de ser, a meu ver, quase<br />

um pouco grande para<br />

o conjunto, ainda é uma<br />

excelência na majestade e<br />

na nobreza.<br />

O nariz, apesar de ter<br />

Aquela boca que emitiu tantos ensinamentos,<br />

disse palavras tão carinhosas<br />

a Nossa Senhora, proferiu<br />

orações tão inexprimivelmente magníficas,<br />

não é verdade que, no Santo<br />

Sudário, essa boca parece estar fazendo<br />

uma censura? Esses olhos fechados<br />

estão ou não estão fitando a<br />

cada um de nós? É uma coisa evidente!<br />

É a majestade do Redentor que,<br />

através da face do Homem-Deus, julga<br />

quem está olhando e convida ao<br />

pedido de perdão e à penitência.<br />

Pois bem, atrás desse peito pulsou<br />

um Coração Divino que seria revelado<br />

depois aos homens como símbolo<br />

do amor e da mentalidade d’Ele, e<br />

que fez a Luís XIV o convite que nós<br />

conhecemos...<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

13/8/1991)<br />

1) Jornalista e literato francês.<br />

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema<br />

social e político aristocrático em vigor<br />

na França entre os séculos XVI<br />

e XVIII.<br />

17


DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />

Rainha e Mãe<br />

de misericórdia<br />

As primeiras palavras da Salve-Rainha<br />

inspiram a quem as recita a plena<br />

confiança de que será atendido,<br />

apesar de suas misérias.<br />

Lucio Cesar Rodrigues Alves<br />

Maria, Sede da Sabedoria<br />

(acervo particular)<br />

ediram-me para fazer o comentário<br />

da Salve-Rainha.<br />

PDevido ao pouco tempo de<br />

que disponho, vou comentar apenas<br />

as primeiras palavras desta bela oração:<br />

“Salve Rainha, Mãe de misericórdia...”<br />

Rainha que tudo<br />

tem e tudo pode<br />

Salve, em latim, é uma saudação,<br />

e passou assim para o português. Os<br />

latinos costumavam dizer salve como<br />

saudação, sem nenhum nexo e sentido<br />

com a ideia da salvação, “salvai-<br />

-me”. Não é isso, é uma mera saudação.<br />

Então, “eu Vos saúdo”.<br />

Agora vem outro ponto: “...Rainha,<br />

Mãe de misericórdia.”<br />

Vemos aqui uma harmonia muito<br />

bonita. O autor da oração coloca antes<br />

de tudo o título d’Ela de Rainha.<br />

Nossa Senhora é Rainha? Evidentemente,<br />

Ela o é, pois é a Mãe<br />

do Rei, e um Rei que<br />

faz tudo quanto Ela<br />

deseja.<br />

Maria Santíssima é chamada a<br />

Onipotência Suplicante. Ela, de Si, é<br />

uma criatura humana como nós, mas<br />

a súplica feita por Ela é onipotente,<br />

porque pode tudo diante de Deus.<br />

Assim, também enquanto suplicante,<br />

Maria é Rainha, porque Aquela<br />

que pode tudo é Rainha. Então,<br />

vem desde logo uma ideia posta ao alcance<br />

do fiel: Aquela a quem ele vai<br />

se dirigir é uma rainha; logo, Ela tem<br />

e pode tudo.<br />

A rainha e o rei são de uma riqueza<br />

enorme. Normalmente são<br />

as pessoas mais ricas do reino, que<br />

dispõem da maior soma de poderes,<br />

honrarias e riquezas de toda<br />

ordem. Ela é a Rainha, quer dizer,<br />

tudo quanto Lhe peçamos Ela pode<br />

dar.<br />

Ademais, Deus, que é o Filho<br />

d’Ela, concede tudo quanto sua Mãe<br />

insondavelmente perfeita Lhe pede.<br />

O resultado é que, quando pedimos<br />

alguma coisa a Ela, temos a certeza<br />

de que Ela pode dar, porque Ela<br />

tem. Isso nos leva a nos encher de<br />

confiança no nosso pedido.<br />

18


Não há carinho<br />

como o materno<br />

Mas vem logo depois: “Mãe de<br />

misericórdia.”<br />

Mãe já traz consigo a ideia de misericórdia,<br />

porque o mais misericordioso<br />

e compassivo dos entes, numa<br />

época em que a instituição da família<br />

funcione normalmente, é a mãe.<br />

Mesmo o pai pode ser muito bom e<br />

seu afeto é indispensável para completar<br />

a educação do filho. Mas o carinho<br />

é com a mãe.<br />

Lembro-me de ter assistido, certa<br />

vez, a uma cena minúscula em casa,<br />

entre meu pai e minha mãe.<br />

Eu costumava, naquele tempo,<br />

sair logo depois do almoço para<br />

meu escritório de advocacia. Minha<br />

mãe me acompanhava até a porta<br />

do elevador, junto à qual tem uma<br />

escada. Às vezes eu estava com muita<br />

pressa e me impacientava com a<br />

lentidão do elevador, e descia a escada<br />

a toda pressa. Lembro-me de<br />

que, enquanto eu descia, ouvia minha<br />

mãe dizer: “Filhão, cuidado<br />

com o corre-corre.” Era um último<br />

sinal de carinho.<br />

Mas um dia desci muito precipitadamente<br />

e esqueci um objeto em casa.<br />

Chegando na rua, senti falta do<br />

objeto e voltei para apanhá-lo. Passei<br />

ao lado de uma pequena sala de<br />

estar onde ela e meu pai costumavam<br />

ficar durante o dia. Estavam<br />

conversando, certos de que eu tinha<br />

ido embora.<br />

Meu pai estava sentando numa<br />

poltrona e minha mãe, em pé junto<br />

a ele, dizia:<br />

— João Paulo, hoje para o jantar<br />

eu mandei fazer tal prato. Você acha<br />

que o <strong>Plinio</strong> ficará satisfeito ou seria<br />

melhor preparar outra coisa?<br />

Não parei para olhar, mas tive a<br />

impressão de que meu pai estava louco<br />

para tirar uma sesta, e respondeu<br />

negligentemente que estava bem.<br />

Não satisfeita com a resposta, ela<br />

acrescentou:<br />

— Não, mas quem sabe se fizer de<br />

tal outro jeito seria melhor.<br />

— Também está bem — respondeu<br />

ele.<br />

Como ele estava querendo dormir<br />

e ela continuava a insistir, ele disse:<br />

— Bem se vê que mãe é mãe. Se<br />

fosse comigo eu diria: “Rapaz, tem<br />

aqui para jantar tal coisa, se você<br />

não quiser, vá jantar num restaurante.”<br />

Ora, mamãe queria exatamente<br />

evitar que eu fosse para o restaurante,<br />

pelo gosto de estar e conversar<br />

comigo. É o carinho da mãe que<br />

é todo especial, único.<br />

Mãe toda feita de<br />

misericórdia<br />

Entretanto, não contente com esta<br />

ideia, o autor da Salve-Rainha<br />

pôs: “Mãe de misericórdia.” É uma<br />

Mãe toda feita de misericórdia.<br />

Apartamento de Dona Lucilia<br />

O que quer dizer “misericórdia”?<br />

Cordis, em latim, é o coração. Miseri,<br />

os miseráveis. Portanto, para com os<br />

miseráveis Ela é “toda coração”. Os<br />

miseráveis são aqueles que não têm<br />

do que viver, estão na miséria. Porém,<br />

moralmente falando, são os pecadores<br />

que ofenderam muitas vezes<br />

a Nossa Senhora e deram a Ela razão<br />

para estar descontente. Se esses pecadores<br />

se voltarem e rezarem para Ela,<br />

encontrarão n’Ela uma Mãe de misericórdia<br />

toda disposta a atender.<br />

Então, está tudo reunido para inspirar<br />

a maior confiança: Ela é uma rainha<br />

que tem tudo e pode tudo; é Mãe<br />

de misericórdia, “toda coração”, inclusive<br />

para os filhos mais miseráveis.<br />

Quem pode deixar de ter toda a<br />

confiança na bondade d’Ela em que<br />

será atendido, quando faz esta oração?<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

5/3/1992)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

19


Timothy Ring<br />

CALENDÁRIO DOS SANTOS ––––––<br />

Beato Henrique José Krzysztofik,<br />

presbítero e mártir (†1942). Capuchinho<br />

do convento de Lublin, Polônia,<br />

deportado ao campo de concentração<br />

de Dachau, Alemanha, onde morreu.<br />

5. Dedicação da Basílica de Santa<br />

Maria Maior.<br />

Santa Margarida de Cesolo, viúva<br />

(†c. 1395). Filha de camponeses de<br />

Cesolo, Itália. Após a morte do marido,<br />

dedicou toda sua vida ao serviço<br />

dos pobres, à oração e à penitência.<br />

6. Transfiguração do Senhor.<br />

Beato Otaviano, bispo (†1132).<br />

Monge beneditino, irmão do Papa<br />

Calisto II, eleito Bispo de Savona.<br />

10. São Lourenço, diácono e mártir<br />

(†258).<br />

Beatos Cláudio José Jouffret de<br />

Bonnefont, Francisco François e<br />

Lázaro Tiersot, presbíteros e mártires<br />

(†1794). Sacerdotes que morreram<br />

presos num sórdido navio junto<br />

a Rochefort, durante a Revolução<br />

Francesa.<br />

11. Santa Clara de Assis, virgem<br />

(†1253).<br />

Beato Maurício Tornay, presbítero e<br />

mártir (†1949). Nascido na Suíça, anunciou<br />

o Evangelho na China e no Tibete,<br />

onde foi assassinado numa emboscada.<br />

12. Santa Joana Francisca de<br />

Chantal, religiosa (†1641).<br />

Santos Tiago Do Mai Nam, presbítero,<br />

Antônio Pedro Nguyen Dich e<br />

Miguel Nguyen, mártires (†1838). Sacerdote,<br />

camponês e médico decapitados<br />

em Nam Ðinh, Vietnã, após sofrer<br />

atrozes suplícios.<br />

São Pedro Julião Eymard<br />

1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />

bispo e Doutor da Igreja (†1787).<br />

Santo Etelvoldo, bispo (†984). Discípulo<br />

de São Dustão da Cantuária e Bispo<br />

de Winchester, compilou a “Concórdia<br />

Regular para restauração da observância<br />

monástica na Inglaterra”.<br />

2. Santo Eusébio de Vercelli, bispo<br />

(†371).<br />

São Pedro Julião Eymard, presbítero<br />

(†1868).<br />

Santo Estêvão I, Papa (†257). Para<br />

afirmar com clareza que a união batismal<br />

com Cristo acontece uma só<br />

vez, proibiu que aqueles que quisessem<br />

voltar à plena comunhão com a<br />

Igreja recebessem o Sacramento pela<br />

segunda vez.<br />

3. Santo Eufrônio, bispo (†475).<br />

Edificou em Autun, França, uma basílica<br />

em honra do mártir São Sinforiano<br />

e adornou com maior decoro o sepulcro<br />

de São Martinho de Tours.<br />

4. São João Maria Vianney, presbítero<br />

(†1859).<br />

7. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />

São Sisto II, Papa, e companheiros,<br />

mártires (†258).<br />

São Caetano de Tiene, presbítero<br />

(†1547).<br />

8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />

(†1<strong>221</strong>).<br />

Santa Bonifácia Rodríguez Castro,<br />

virgem (†1905). Fundou em Zamora,<br />

Espanha, a Congregação das<br />

Servas de São José.<br />

9. Santa Teresa Benedita da Cruz,<br />

virgem e mártir (†1942).<br />

Santa Mariana Cope, virgem<br />

(†1918). Alemã de nascimento, ingressou<br />

na Ordem Terceira Regular<br />

de São Francisco nos Estados Unidos.<br />

Sucedeu São Damião de Veuster no<br />

cuidado dos leprosos na ilha de Molokai,<br />

Havaí.<br />

13. Santos Ponciano, Papa, e Hipólito,<br />

presbítero, mártires (†c. 236).<br />

São José de Calasanz<br />

Francisco Lecaros<br />

20


––––––––––––––––– * AGOSTO * ––––<br />

São João Berchmans, religioso<br />

(†1621). Irmão jesuíta falecido em<br />

Roma, aos 22 anos, depois de uma<br />

breve enfermidade.<br />

Francisco Lecaros<br />

nascida na Guatemala, foi reformadora<br />

da ordem e fundadora de vários<br />

colégios em Guatemala, Costa Rica,<br />

Colômbia e Equador, onde faleceu.<br />

14. XX Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

São Maximiliano Maria Kolbe,<br />

presbítero e mártir (†1941).<br />

Beata Isabel Renzi, virgem<br />

(†1859). Fundadora das Mestras<br />

Pias da Virgem Dolorosa.<br />

15. Solenidade da Assunção de<br />

Nossa Senhora (no Brasil, transferida<br />

para domingo, dia 21).<br />

Santo Estanislau Kostka, religioso<br />

(†1568). Nascido na Polônia, fugiu<br />

de casa enfrentando a oposição<br />

paterna à sua vocação e ingressou no<br />

noviciado da Companhia de Jesus em<br />

Roma. Morreu aos 18 anos.<br />

16. Santo Estêvão da Hungria, rei<br />

(1038).<br />

Santa Rosa Fan Hui, virgem e<br />

mártir (†1900). Na perseguição dos<br />

boxers, na China, sofreu inúmeras<br />

torturas, sendo finalmente lançada a<br />

um rio ainda com vida.<br />

17. Santa Clara da Cruz de Montefalco,<br />

virgem (†1308). Ver página 2.<br />

18. Santa Helena, rainha (†c. 329).<br />

Mãe do imperador Constantino, é<br />

atribuído a ela o descobrimento da<br />

verdadeira Cruz de Nosso Senhor.<br />

19. São João Eudes, presbítero<br />

(†1680).<br />

Santo Ezequiel Moreno Díaz, bispo<br />

(†1906). Ver página 26.<br />

Santa Joana Francisca<br />

de Chantal<br />

20. São Bernardo de Claraval, abade<br />

e Doutor da Igreja (†1153).<br />

Santa Maria Mattias, virgem<br />

(†1866). Discípula de São Gaspar de<br />

Búffalo, fundou em Roma a Congregação<br />

das Irmãs Adoradoras do Preciosíssimo<br />

Sangue de Cristo.<br />

21. Solenidade da Assunção de Nossa<br />

Senhora (transferida do dia 15).<br />

São Pio X, Papa (†1914).<br />

Beato Bruno Zembol, religioso e<br />

mártir (†1942). Franciscano polonês<br />

deportado ao campo de concentração<br />

de Dachau, Alemanha, onde morreu.<br />

22. Nossa Senhora Rainha.<br />

São Felipe Benizi, presbítero<br />

(†1285). Religioso Servita, considerava<br />

Cristo Crucificado como sua única<br />

fonte de ensino.<br />

23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />

(†1617).<br />

Santos Cláudio, Astério e Neón,<br />

mártires (†303). Irmãos acusados<br />

pela madrasta de ser cristãos, foram,<br />

segundo consta, decapitados no tempo<br />

do imperador Diocleciano.<br />

24. São Bartolomeu, Apóstolo.<br />

Beata Maria da Encarnação Rosal,<br />

virgem (†1886). Irmã Belemita<br />

25. São Luís, Rei de França<br />

(†1270).<br />

São José de Calasanz, presbítero<br />

(†1648).<br />

26. Beata Maria de Jesus<br />

Crucificado Baouardy, virgem<br />

(†1878). Nascida na Galileia e<br />

educada na França, ingressou nas<br />

Carmelitas Descalças e fundou<br />

conventos dessa ordem em Mangalore<br />

(Índia) e Belém (Palestina).<br />

27. Santa Mônica (†387).<br />

Santo Amadeu, Bispo (†1159).<br />

Abade do mosteiro cisterciense de<br />

Hautecombe, França, eleito Bispo de<br />

Lausanne, Suíça.<br />

28. XXII Domingo do Tempo Comum.<br />

Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†430).<br />

Santa Florentina, virgem (†séc.<br />

VII). Irmã dos Santos Leandro, Fulgêncio<br />

e Isidoro de Sevilha.<br />

29. Martírio de São João Batista.<br />

Beato Edmundo Inácio Rice, fundador<br />

(†1844). Fundou em Waterford, Irlanda,<br />

a Congregação dos Irmãos Cristãos<br />

e a dos Irmãos da Apresentação.<br />

30. Beato Alfredo Ildefonso Schuster,<br />

bispo (†1954). Monge beneditino,<br />

foi abade de São Paulo Extramuros<br />

de Roma e, mais tarde, Arcebispo<br />

de Milão.<br />

31. Santos José de Arimateia e Nicodemos<br />

(†séc. I). Recolheram o<br />

Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

ao ser descido da Cruz e o depositaram<br />

no Sepulcro.<br />

21


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

Autenticidade<br />

e senso psicológico<br />

Todo ser humano tem certa noção a respeito de si<br />

mesmo, porém muitas vezes procura aparentar aquilo<br />

que não é, tornando-se uma pessoa inautêntica. Pelo<br />

contrário, aquele que se apresenta com autenticidade<br />

tem o verdadeiro sentido da vida e adquire um<br />

aguçado senso psicológico.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

V<br />

ou tratar a respeito do senso<br />

psicológico e do modo<br />

pelo qual os homens se conhecem<br />

uns aos outros.<br />

Saber apreciar<br />

aquilo que se é<br />

Cada homem tem uma ideia de<br />

como ele quereria ser. Tanto isso<br />

é assim que o homem se arranja,<br />

se apresenta e se modela de acordo<br />

com aquilo que ele desejaria ser. Em<br />

geral todo homem corresponde a um<br />

composto entre o que ele gostaria de<br />

ser e o que ele consegue ser.<br />

Poderíamos, naturalmente, fazer<br />

uma pergunta que não deixa de ser<br />

incômoda e até desagradável, mas<br />

cheia de consequências.<br />

Cada pessoa escolheu bem aquilo<br />

que quereria ser ou escolheu errado?<br />

Mas a pergunta é muito incômoda,<br />

porque cada um de nós tem no<br />

fundo da alma certa noção, por vezes<br />

vaidosa, da própria grandeza. É<br />

uma grande coisa ser homem, e o último<br />

dos homens é uma grande coisa.<br />

A questão é que as pessoas não<br />

sabem apreciar bem isso.<br />

Outro dia veio-me ao espírito a<br />

seguinte reflexão enquanto lavava<br />

o rosto, pela manhã. Fora, as andorinhas<br />

estavam fazendo um enorme<br />

barulho, numa manhã bonita, e,<br />

ouvindo-as pipilarem, naturalmente<br />

achei aquilo alegre, inocente, interessante,<br />

agradou-me deitar atenção<br />

naquilo e me fiz uma pergunta:<br />

Qual é a razão da alegria desses<br />

bichinhos? Eles são irracionais e não<br />

entendem, portanto, que eles valem<br />

alguma coisa. Mas Deus pôs neles<br />

uma alegria extraordinária de serem<br />

andorinhas; de onde estão rachando<br />

de alegria e cantando por aí a satisfação<br />

e gozando a vida de serem andorinhas.<br />

Ora, o que significa ser andorinha<br />

e Deus ter posto nelas tanta alegria<br />

em ser andorinhas?<br />

A andorinha é, debaixo de certo<br />

ponto de vista — e o importante está<br />

em que não é debaixo de todo ponto<br />

de vista —, uma joia de vivacidade.<br />

Eu não diria que são joias de be-<br />

Luiz Gustavo Leme (CC3.0)<br />

22


<strong>Dr</strong>. Raju Kasambe (CC3.0)<br />

Derek Keats (CC3.0)<br />

Bernard DUPONT (CC3.0)<br />

Derek Keats (CC3.0)<br />

As andorinhas são,<br />

debaixo de certo<br />

ponto de vista, joias<br />

de vivacidade..., e<br />

têm uma coisa em<br />

que talvez sejam<br />

únicas, que é uma<br />

forma de vitalidade<br />

encantadora.<br />

leza. Não são como os colibris, por<br />

exemplo. Mas são joias de vivacidade,<br />

e têm uma coisa em que talvez<br />

sejam únicas, que é uma forma de<br />

vitalidade encantadora. Elas se inebriam<br />

com sua própria vida e esvoaçam<br />

de um lado para outro vivendo,<br />

vivendo...<br />

Se uma andorinha pensasse, não<br />

passaria pela cabeça dela ter triste-<br />

za por não ser<br />

beija-flor. Ele<br />

é muito bonito,<br />

mas a andorinha<br />

pensaria<br />

o seguinte:<br />

“Esta vida<br />

que eu tenho,<br />

o beija-flor<br />

não<br />

tem. Ele não<br />

é um bicho<br />

alegre como<br />

eu. Ele vive,<br />

é bem-<br />

-humorado,<br />

mas não estoura<br />

de alegria. O beija-flor esvoaça<br />

à procura de algo; eu, andorinha,<br />

esvoaço na alegria de ser eu mesma!<br />

Alegria de desdobrar minhas asas<br />

ao Sol, de sentir o vento que penetra<br />

por minhas plumagens a dentro,<br />

de me sentir carregada pelo vento e,<br />

em determinado momento, o vento<br />

se divorcia de mim e eu continuo a<br />

voar sem ele. Eu sou a andorinha, e<br />

fico contente de ser andorinha!”<br />

E eu refletia: Que lição Deus quis<br />

dar ao homem fazendo assim as andorinhas?<br />

Porque Ele teve uma intenção.<br />

Tudo foi criado para nós e,<br />

portanto, também para mim <strong>Plinio</strong>,<br />

que estou lavando o rosto e ouvindo<br />

as andorinhas. À medida em que<br />

ouço esse pipilar que me alegra no<br />

meio de mil aborrecimentos e preocupações,<br />

Deus me dá uma mensagem<br />

por meio desses pássaros. Qual?<br />

É que eu, a fortiori, deveria ter a<br />

alegria de ser homem. Como um homem<br />

é mais do que uma andorinha,<br />

como é um colosso o homem em<br />

comparação com uma andorinha!<br />

Ele é um animal racional, tem a natureza<br />

que o próprio Cristo assumiu<br />

quando Se encarnou. Ele é o confim<br />

entre o mundo angélico e o mundo<br />

material; é ele quem reúne e sintetiza<br />

esses dois mundos.<br />

Ainda que eu fosse o mais coitado<br />

de todos os homens, eu sou homem,<br />

e me vem daí uma alegria. Não estou<br />

cantando nem pipilando, mas estou<br />

fazendo uma coisa tão mais alta: estou<br />

pensando na andorinha e subindo<br />

até Deus!<br />

Esta é uma meditação simples<br />

que um professor primário poderia<br />

contar na sua escola e os alunos entenderiam.<br />

Portanto, está ao alcance<br />

de uma alma que seja contemplativa<br />

e goste das grandes verdades eternas<br />

— sutis, complexas ou simples — e<br />

que se embeba delas.<br />

E eu continuava a pensar com os<br />

meus botões...<br />

Derek Keats (CC3.0)<br />

23


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

AngMoKio (CC3.0)<br />

Isso tem uma profunda lição: o<br />

homem deve estar alegre por ser o<br />

que é e não procurar ser mais do que<br />

isso. Quando ele procura ser mais do<br />

que é, faz o papel da andorinha que<br />

quisesse imitar o beija-flor. Seria o<br />

mais infeliz dos pássaros. Seja andorinha<br />

e encha os espaços com seu<br />

cântico de alegria! Voe aos bandos e<br />

dê gloria a Deus fazendo os homens<br />

pensarem como é bom ter sido criado<br />

por Ele, ainda que fosse apenas<br />

para ser andorinha!<br />

No gênero humano, talvez eu não<br />

seja senão o que é uma andorinha<br />

entre os pássaros. Está bem, que colosso<br />

ser uma “andorinha”! Que colosso<br />

é uma criatura, principalmente<br />

uma criatura inteligente, racional.<br />

Mito difundido pelo<br />

igualitarismo<br />

Em função disso é que o homem<br />

deve procurar o que ele deve<br />

ser, deixando completa e definitivamente<br />

a ideia<br />

de ser beija-flor,<br />

ou águia, e não se<br />

permitir a pergunta<br />

maldita: “O que<br />

eu, na minha inveja,<br />

gostaria de<br />

ser?” Porque é<br />

uma fonte de desdita<br />

a vida inteira.<br />

Se eu quisesse<br />

dar a alguém um<br />

conselho para se<br />

tornar infeliz, eu<br />

diria: “Procure ser<br />

aquilo para o que<br />

não tem aptidão.”<br />

A pessoa deve<br />

fazer uma outra<br />

pergunta, honestamente:<br />

Com<br />

o que eu tenho e<br />

sou, e com o que<br />

não tenho e não<br />

sou, para o que eu<br />

dou? Não quero<br />

ser mais do que este ou menos do que<br />

aquele; quero ser inteiramente eu. O<br />

que não for isso não dá em nada.<br />

Quando se tem isso na cabeça, entra<br />

na alma um oceano de paz.<br />

Se formos procurar as pessoas<br />

que pensam assim, não sei se o número<br />

seria suficiente para se contar<br />

em todos os dedos da mão, porque<br />

o igualitarismo faz um mito diferente.<br />

O sujeito sente que nasceu para<br />

uma grande coisa — e isto é verdade,<br />

pois todos nós nascemos para<br />

uma grande coisa —, mas ao invés<br />

de procurar realizar essa apetência<br />

de grandeza sendo inteiramente ele<br />

mesmo, procura realizá-la de outra<br />

maneira:<br />

“Se eu nasci para uma grande coisa,<br />

nasci para me fazer admirar pelos<br />

outros. Logo, o que devo adquirir,<br />

ou fingir que adquiri, para conseguir<br />

admiração? Com isso vou fabricar<br />

o personagem que vou ostentar<br />

para os outros. É aquilo que eu<br />

quereria ser, misturado com aquilo<br />

que consigo ser — e que é apenas<br />

um fragmento do que eu quereria —<br />

mais aquilo que eu consigo fingir para<br />

os outros que eu sou.”<br />

São três elementos que formam<br />

personagens postiços, infelizes e irreais.<br />

Se nos lembrássemos sempre disso<br />

não teríamos medo do desprezo dos<br />

outros. Uma andorinha não teme o<br />

desprezo da águia. A águia pode representar<br />

o poder, ela representa outra<br />

coisa tão magnífica: é a excelência<br />

de viver. Não precisa mais nada.<br />

A águia pode<br />

representar o<br />

poder, a andorinha<br />

representa outra<br />

coisa tão magnífica:<br />

é a excelência de<br />

viver. Não precisa<br />

mais nada.<br />

Manifestar a posição<br />

autêntica diante dos outros<br />

Cada um de nós deveria, para realizar<br />

isso, ter bem presentes, e tornar<br />

manifestos os nossos defeitos e lacunas.<br />

Assim, quando não se tem jeito<br />

para determinada coisa, dizer logo:<br />

“Eu não tenho jeito para tal coisa<br />

assim, não sei fazê-la. O senhor<br />

quer fazer o favor de me ajudar, porque<br />

eu não sei.” É o único jeito, ainda<br />

que fosse por tática política, seria<br />

um bom negócio. Porque o único<br />

jeito que temos para os outros reconhecerem<br />

o que somos é reconhecermos<br />

o que não somos.<br />

24


Aí sim ficamos situados em face<br />

dos outros numa posição autêntica.<br />

Não é um palhaço, um ator que está<br />

aparecendo diante dos outros. Portanto,<br />

não devo ter medo de que me<br />

examinem, porque não vão encontrar<br />

senão o que eu mostro. E eu vivo<br />

às claras com tranquilidade, com<br />

a santa inocência, a santa liberdade<br />

dos filhos de Deus.<br />

Se sou isso, pode me medir quantas<br />

vezes for que não me mostrarei a<br />

não ser assim. Mas também, se sou<br />

assim, posso tapear como quiser, haverá<br />

sempre um esperto que diga:<br />

“Olha, ele não é tanto”. Logo, não é<br />

melhor eu me pôr como sou, francamente,<br />

sem tapeação?<br />

Então, a partir daí adquirimos o<br />

senso psicológico. Porque se um de<br />

nós se apresenta autenticamente como<br />

é, os outros deixam escapar a sua<br />

psicologia diante de nós. O mérito<br />

de quem não mente é de tomar uma<br />

tal atitude que o mentiroso começa a<br />

parecer escuro diante dele. O mérito<br />

do homem autêntico é a insegurança<br />

dos inautênticos perante ele.<br />

Ademais, o homem assim vê claro<br />

dentro de si, não mente para si mesmo<br />

e conhece a sua própria psicologia,<br />

pois é transparente aos seus próprios<br />

olhos. E, por analogia, ele pega<br />

melhor a psicologia dos outros. Saímos<br />

do mundo da mentira e ficamos<br />

com os olhos mais claros para ver o<br />

mundo da mentira e depois a realidade<br />

dos outros diante daquilo.<br />

Alguém poderá objetar:<br />

“Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, isto é bonito dizer.<br />

Mas se o senhor me manda para<br />

uma missão que supõe que eu me<br />

imponha por minha simpatia ou por<br />

minha capacidade, ou por essa ou<br />

aquela qualidade, do que adianta esta<br />

autenticidade recomendada pelo<br />

senhor? Não é uma contradição?<br />

Eu digo: “Não. Você foi mandado<br />

por mim provavelmente por que<br />

está apto para fazer aquilo. Estude<br />

que recursos você tem e faça o penoso<br />

esforço de melhorar esses recursos<br />

para ser o que deve. Você deve<br />

ser aquilo até onde o seu esforço pode<br />

levá-lo. E seu plano para o futuro<br />

é chegar ao extremo de seu limite.<br />

Ponha-se nisso e, tenha o que tiver,<br />

seja o que for, eu o reverencio.<br />

Se você não for assim, eu o menoscabo,<br />

pois para mim você é um inautêntico.<br />

E quando você vem falar comigo,<br />

pode ser que por bondade eu<br />

lhe trate muito bem, mas estarei vendo<br />

bem aonde é que você vai…”<br />

O grande duelo<br />

entre as almas<br />

Aí se põe uma consequência:<br />

Quando nós somos autênticos, os<br />

outros começam a jogar conosco um<br />

jogo diferente do que jogam entre si.<br />

Qual é o jogo?<br />

Quando o inautêntico trata com<br />

o autêntico ele se sente adivinhado.<br />

Em parte, ele confia, pois sabe que<br />

o autêntico não vai lesá-lo, porém<br />

não quer ser decifrado. E ele percebe<br />

que o autêntico o decifra. Tudo<br />

Cláudio Dias Timm (CC3.0)<br />

quanto o autêntico vê nele, o inautêntico<br />

sente como uma injúria e fica<br />

um poço de ressentimento em relação<br />

ao autêntico. Porque o autêntico<br />

vê no inautêntico o seu próximo,<br />

mas este vê naquele o seu juiz. Ele<br />

nota que as coisas que ele não quer<br />

reconhecer para si, o autêntico olha<br />

e vê. E mesmo quando o autêntico<br />

não vê, faz o inautêntico ver.<br />

A pessoa se transforma, assim, no<br />

exame de consciência dos outros.<br />

É compreensível que as outras<br />

pessoas não gostem e que tenhamos<br />

de arcar com muitas antipatias por<br />

causa disso. Entretanto, gostem ou<br />

não gostem, a verdade é que o que<br />

governa a Terra, o que se mexe nos<br />

homens até às entranhas, não é a tapeação,<br />

mas a verdade. O grande<br />

duelo do mundo não é o duelo dos<br />

interesses, é o duelo entre os autênticos<br />

e os inautênticos, entre os filhos<br />

da luz e os filhos das trevas. ❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

11/7/1983)<br />

Cláudio Dias Timm (CC3.0)<br />

25


HAGIOGRAFIA<br />

O maravilhoso na<br />

vida de Santa Clara<br />

de Montefalco<br />

Francisco Lecaros<br />

V<br />

Muito maiores que as belezas do<br />

universo material são aquelas existentes<br />

nas almas dos Santos. A vida de Santa<br />

Clara de Montefalco está repleta de<br />

maravilhas. De tal modo ela amou a<br />

Cruz do Redentor que, após sua morte,<br />

em seu coração foram encontrados<br />

símbolos de instrumentos usados na<br />

Paixão de Nosso Senhor: cravos, coroa de<br />

espinhos, lança, açoite, esponja, coluna;<br />

e até mesmo três pequenas esferas<br />

representando a Santíssima Trindade.<br />

amos considerar uma ficha<br />

a respeito da vida de Santa<br />

Clara de Montefalco.<br />

Admirável virgindade<br />

Santa Clara de Montefalco nasceu<br />

no ano de 1268 em Montefalco, cidade<br />

da Úmbria, na Itália, e morreu em<br />

1308. Ela conservou, durante toda sua<br />

vida, um grande ardor na oração. Na<br />

idade de cinco anos, compreendendo<br />

os perigos da vida no mundo, ela pediu<br />

a sua irmã, Joana, para admiti-la<br />

na pequena comunidade que essa ir-<br />

mã Joana dirigia, e que seguia as regras<br />

da Ordem Terceira de São Francisco.<br />

E a irmã só atendeu a esses pedidos<br />

ao cabo de um ano.<br />

Uma vez, na idade de nove anos, ela<br />

deixou, ao dormir, seu pequeno pé nu<br />

sair da cama. A sua irmã Joana, que<br />

observou, a repreendeu, e lhe disse que<br />

isso não era conveniente a uma virgem.<br />

A pequena Clara teve tanto pesar que,<br />

depois disso, ela sempre envolvia muito<br />

estreitamente seus pés, antes de dormir.<br />

Mais tarde, ela não permitiu nem<br />

sequer às religiosas de tocá-la com a<br />

mão. Ela recomendava às suas filhas<br />

26<br />

Santa Clara de Montefalco - Igreja de<br />

Corpus Christi, Granada, Espanha


nunca descobrir seu próprio corpo,<br />

mesmo na obscuridade. Ela observava<br />

isso tão estritamente para si mesma,<br />

que nunca quis mostrar ao médico nenhuma<br />

parte de seu corpo sem um véu.<br />

Ela dizia também que as virgens<br />

não devem ter familiaridade nem com<br />

homens, nem com mulheres casadas,<br />

porque essa integridade perfeita dá a<br />

imortalidade ao corpo, que embalsamado<br />

pela flor da virgindade é preservado,<br />

assim, de toda corrupção.<br />

Com a morte de sua irmã, Joana,<br />

ela foi eleita abadessa, e preencheu esse<br />

cargo com tanta prudência que jamais<br />

o demônio pôde alcançar êxito<br />

em enganá-la, por qualquer artifício<br />

que fosse. Como ele tinha observado<br />

que ela era muito assídua na contemplação<br />

da Paixão de Jesus Cristo, apareceu-lhe<br />

uma vez sob a forma de um<br />

crucifixo, com o corpo completamente<br />

descoberto a fim de despertar nela, por<br />

essa via, pensamentos ignóbeis. Mas a<br />

virgem reconheceu a arma escondida<br />

do adversário e deu risada. O demônio,<br />

furioso, desapareceu.<br />

Deus lhe deu uma tal inteligência<br />

das coisas divinas que ela ousou<br />

combater uma heresia de seu tempo,<br />

participando de discussões, onde ela<br />

convenceu publicamente um de seus<br />

adeptos de mentira e de dissimulação.<br />

Ela conhecia o pensamento oculto<br />

das pessoas e, por vezes, tinha o dom<br />

de profecia.<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, Ele mesmo,<br />

veio uma vez lhe dar a Comunhão.<br />

Após a morte, seu corpo<br />

permaneceu incorrupto<br />

Ela teve, certo dia, um ligeiro movimento<br />

de impaciência em relação<br />

a uma irmã, que lhe assegurava que,<br />

apesar de seus esforços, não encontrava<br />

nenhuma suavidade na oração.<br />

Não foi necessário mais do que isso<br />

para que ela fosse imediatamente<br />

privada, ela mesma, de toda consolação,<br />

acabrunhada de penas interiores.<br />

A noite de alma em que ela<br />

Santuário de Santa Clara, Montefalco, Itália<br />

foi mergulhada não durou uma semana,<br />

nem um mês, mas onze anos inteiros.<br />

Depois dessa noite espiritual,<br />

o Divino Sol inundou sua alma com<br />

sua imortal claridade, e ela se viu elevada<br />

por uma concatenação de êxtases,<br />

parecendo pertencer mais ao Céu<br />

do que à Terra. Nesse estado ela ouvia<br />

o concerto dos Anjos, via o Menino<br />

Jesus na manjedoura do pobre estábulo<br />

de Belém, os Magos ajoelhados<br />

para adorar o Menino Jesus.<br />

Certo dia, ela ouviu essas palavras<br />

dos lábios de Nosso Senhor:<br />

— Venha Clara, venha! Tua vinda<br />

me será agradável.<br />

— Senhor — respondeu ela — eu desejaria<br />

me dissolver para me unir a Vós.<br />

— É preciso esperar mais um pouco,<br />

minha filha. Teu dia não chegou<br />

— respondeu o Senhor.<br />

Uma outra vez o Senhor lhe apareceu<br />

na figura de um peregrino, carregando<br />

uma cruz sobre os ombros, e<br />

lhe disse:<br />

— Minha filha, procurando o que<br />

poderia te oferecer de mais agradável<br />

a teu coração, me pareceu que minha<br />

Cruz seria a coisa que mais te conviria.<br />

Recebe-a, oscula-a e dá-me teu<br />

coração, a fim de que possas morrer<br />

para a Cruz, sobre a Cruz.<br />

Ela morreu no ano de Nosso Senhor<br />

de 1308, no dia seguinte da Assunção,<br />

na idade de quarenta anos.<br />

Seu corpo foi enterrado em seu mosteiro,<br />

onde repousa ainda hoje. Conservado<br />

inteiro, e com a carnatura flexível<br />

como se acabasse de ser sepultado<br />

ontem, seu corpo é branco como o<br />

alabastro. Sua completa conservação<br />

foi constatada de novo sob o pontificado<br />

de Pio IX, de feliz memória.<br />

Em seu coração, os<br />

instrumentos da Paixão<br />

A santa alma de Clara, deixando<br />

seu corpo, nele fixou sinais evidentes<br />

de sua glória. E como as irmãs conhecessem<br />

sua terna devoção para com a<br />

Paixão, e tinham ouvido Clara dizer<br />

várias vezes, antes de sua morte, que<br />

ela carregava Jesus Cristo crucificado<br />

em seu coração, elas foram tomadas<br />

de desejo de se inteirarem exatamente<br />

desse fato, antes de confiar seu corpo<br />

à terra. Decidiram, portanto, fazer<br />

a autópsia e examinar o mistério de<br />

seu corpo; constataram, antes de tudo,<br />

que seu coração estava muito inchado<br />

e tinha o tamanho da cabeça de uma<br />

criança pequena. Demais, uma região<br />

estava completamente dura.<br />

Francisco Lecaros<br />

27


HAGIOGRAFIA<br />

Judgefloro (CC3.0)<br />

Segundo os médicos, é impossível a<br />

uma criatura humana viver nesse estado.<br />

Abriram o seu coração e nele encontraram,<br />

naturalmente em ponto<br />

pequeno, os instrumentos da Paixão.<br />

Uma irmã dividiu o coração em duas<br />

partes, e sua mão foi tão feliz que<br />

nenhum dos instrumentos da Paixão<br />

que ali estavam foi atingido. As irmãs,<br />

profundamente surpresas e felizes, deram<br />

graças a Deus pelo fato.<br />

Na parte direita apareceu marcada a<br />

imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

preso à Cruz, mais ou menos da grossura<br />

do polegar. Nosso Senhor tinha os<br />

braços estendidos, a cabeça inclinada à<br />

direita, avançando um pouco sobre os<br />

ombros. O flanco direito era lívido com<br />

a chaga aberta e sangrando. Em torno<br />

dos rins havia um tecido manchado de<br />

sangue. Havia também, nessa parte do<br />

coração, três nervos aos quais estavam<br />

Aparição de Nosso Senhor a Santa Clara - Igreja Paroquial de<br />

Santa Clara de Montefalco, Cidade de Pasay, Filipinas<br />

presos três pregos duros e pontudos, um<br />

deles notavelmente maior que os outros.<br />

Por cima dos pregos, um nervo cor de<br />

ferro, terminado em ponta dura. Essa<br />

ponta era aguda, penetrava como ferro,<br />

e representava a lança com a qual Longinos<br />

tinha transfixado o flanco do Salvador.<br />

Enfim, na mesma parte do coração,<br />

estava ainda uma bola de nervos<br />

menores, representando a esponja<br />

com a qual o fel e vinagre foram tornados<br />

presentes a Nosso Senhor. Na parte<br />

esquerda se encontravam os açoites:<br />

eram cinco nervos entrelaçados com<br />

muitos nós e reunidos por um cabo comum.<br />

Depois do açoite se encontrava<br />

um nervo maior, representando a coluna<br />

da flagelação, cercada por nervos<br />

sangrando, figurando as cordas com<br />

as quais o Senhor foi ligado. Por cima<br />

da coluna, a coroa de espinhos, formada<br />

por nervos entrelaçados como espinhos<br />

duros e pontudos. Todas essas insígnias,<br />

ainda que formadas de carne,<br />

eram duras como os instrumentos reais<br />

da Paixão de Nosso Senhor.<br />

Quando as religiosas viram todas<br />

essas maravilhas e consideraram uma<br />

a uma com respeito e admiração, elas<br />

informaram — na ausência do Bispo<br />

de Spoleto — ao seu vigário Béranger,<br />

que fez um exame minucioso e pôde<br />

se inteirar da realidade do que acaba<br />

de ser dito. Ele espantou-se, sobretudo<br />

com o fato de que esses instrumentos,<br />

separados do coração, tinham tomado<br />

consistência pela dureza da madeira<br />

e da pedra. Várias dessas insígnias<br />

foram postas nas mãos do Papa João<br />

XXII, quando ele fez o exame da vida<br />

de Clara, para a beatificação.<br />

Símbolo da Santíssima<br />

Trindade<br />

As irmãs recolheram o sangue que<br />

corria do coração, quando ele foi aberto<br />

e o puseram em uma ampola de vidro.<br />

O sangue difundiu, nesse momento,<br />

um odor suave. Ele permaneceu coagulado<br />

até hoje. E quando uma tempestade<br />

grave ameaça a Igreja, vê-se que esse<br />

sangue se agita e se põe em ebulição, o<br />

que significa a cólera de Deus.<br />

A região endurecida foi aberta<br />

igualmente e examinada pelos médicos.<br />

Ali encontraram três pequenas<br />

esferas, cor de cinza e manchadas de<br />

vermelho; eram todas as três da mesma<br />

grossura e do mesmo peso, duras<br />

como sílex, e colocadas em forma de<br />

triângulo. Elas representavam manifestamente<br />

o mistério da Santíssima<br />

Trindade; eram absolutamente iguais<br />

umas às outras em tudo. O que causa<br />

maior admiração é que cada uma<br />

dessas bolas era exatamente do mesmo<br />

peso que as outras duas.<br />

Isso é mais notável, porque parece<br />

uma contradição: pondo numa<br />

balança de duas conchas as três bolas,<br />

cada vez que se punha uma bola<br />

separada, ela pesava tanto quanto<br />

28


as outras duas. Isso é altamente teológico,<br />

porque é outro modo de exprimir<br />

que as três Pessoas da Santíssima<br />

Trindade são tão iguais entre si,<br />

que não se pode dizer que duas valham<br />

mais do que uma. O que é o<br />

auge, o suprassumo da igualdade.<br />

E ao ser colocada numa das conchas<br />

da balança uma das bolas e, na<br />

outra, uma pedra ou qualquer objeto<br />

de peso igual, e que se acrescentasse as<br />

outras duas esferas na balança, onde<br />

já havia uma, a balança permanecia<br />

imóvel como na primeira operação.<br />

Sem dúvida, um verdadeiro milagre.<br />

Era um sinal manifesto da Santíssima<br />

Trindade; una quanto à essência,<br />

diversa quanto às Pessoas. Uma das<br />

três bolas partiu-se por si mesma no<br />

momento em que a França, maculada<br />

pela heresia de Calvino, causou tantos<br />

males à Igreja.<br />

Santa Clara de Montefalco foi canonizada<br />

por Leão XIII, no dia 8 de<br />

dezembro de 1881.<br />

O universo é repleto<br />

de maravilhas<br />

Trata-se de uma vida toda ela feita<br />

para causar certo arrepio no homem<br />

contemporâneo. Enquanto estava<br />

lendo, olhei meus ouvintes com<br />

os olhos do espírito, quer dizer, com<br />

o conhecimento que tenho do homem<br />

de nossos dias, e me pareceu<br />

que, para além da ficha que eu lia,<br />

sentia no ar algumas vozes se levantarem<br />

dentro de alguns — que quero<br />

crer não tenham dado consentimento<br />

a essas vozes — dizendo interiormente<br />

o seguinte:<br />

“Mas como pode ser uma coisa<br />

dessas? Como é possível tanta maravilha,<br />

uma em cima da outra? Isso<br />

deve ser inventado, porque uma<br />

maravilha, vá lá; duas maravilhas, vá<br />

lá; mas cinquenta maravilhas acumulando-se<br />

uma em cima da outra sobre<br />

essa freira! Manifestamente, tantas<br />

maravilhas juntas não pode ser.”<br />

Relíquias de Santa Clara - Mosteiro<br />

de Santa Cruz, Montefalco, Itália<br />

Eis a curteza de vistas a que o positivismo<br />

leva o homem contemporâneo.<br />

A mania de só tomar em consideração<br />

a realidade concreta, e a<br />

ideia de que a maravilha é algo excepcional;<br />

que o normal das coisas é<br />

que elas não sejam maravilhosas, e<br />

que já é puxado aceitar uma maravilha;<br />

é duro demais aceitar duas, ou<br />

três, ou cinco...<br />

Precisamos compreender até que<br />

ponto essa ideia é absurda.<br />

O universo que nos cerca é cheio<br />

de maravilhas. Cada estrela é uma<br />

maravilha. Olhem para o céu: quantas<br />

estrelas percebemos? Deus, que<br />

fez tantas maravilhas, realizou ainda<br />

maiores para ilustrar a alma de alguns<br />

Santos. Tudo quanto existe foi<br />

criado para a santificação do homem.<br />

Ora, para santificar os homens,<br />

terá Deus feito maravilhas maiores<br />

do que os Santos, que eram objeto<br />

de todas essas maravilhas? Quer dizer,<br />

o meio foi melhor do que o fim?<br />

O poder, a sabedoria e a bondade<br />

de Deus foram mais extraordinários<br />

nos instrumentos do que na realização<br />

da meta deles?<br />

Num mundo opaco,<br />

horrendo, trágico,<br />

conspurcado e abandonado...<br />

Tornando mais clara a argumentação:<br />

Tudo quanto existe no universo visível<br />

foi criado para a santificação<br />

do homem. Não tem outra razão de<br />

ser. Portanto, estrelas e todas as outras<br />

maravilhas são belas a fim de que<br />

o homem tenha uma ideia da perfeição<br />

e da beleza divinas, para que assim<br />

santifiquem os homens. Logo, tudo isso<br />

não é senão um meio para a santificação.<br />

O meio tendo sido tão maravilhoso,<br />

o fim precisa ser muito mais<br />

maravilhoso, porque seria um absurdo<br />

Deus fazer o meio mais belo do que o<br />

fim. O meio é sempre inferior ao fim.<br />

Se é assim, Ele há de ter posto nas<br />

almas dos Santos maravilhas incomparavelmente<br />

maiores e mais numerosas<br />

do que as que vemos em torno de nós.<br />

Portanto, é muita mesquinharia de espírito,<br />

lendo uma vida de Santo, dizer:<br />

“Deus não há de ter feito tanta maravilha<br />

para uma só pessoa.”<br />

Pois se Ele fez tantas maravilhas<br />

para a pessoa ficar santa, não faria<br />

maiores ainda no realizar a santidade<br />

dessa pessoa, que é o ponto terminal<br />

da operação d’Ele? Quem pode<br />

pôr isso em dúvida? Que um ateu<br />

duvide, compreende-se. Mas que um<br />

católico ponha isso em dúvida é o<br />

auge do irracional.<br />

Isso nos leva a uma outra consideração,<br />

a meu ver muito importante.<br />

Eu a formulo da seguinte maneira:<br />

Francisco Lecaros<br />

29


HAGIOGRAFIA<br />

Devemos compreender que é por<br />

causa desse mundo revolucionário,<br />

dos pecados que temos cometido, do<br />

castigo divino em relação a esse mundo,<br />

que Deus se ausenta dele e deixa-<br />

-o como está: opaco, horrendo, trágico,<br />

conspurcado e abandonado. Esse é<br />

o mundo do qual se retirou o amor de<br />

Deus, e que está entregue à sua cólera.<br />

Então, não se notam hoje as maravilhas<br />

de outrora. Mas antigamente,<br />

quando as maravilhas de Deus<br />

apareciam num mundo a quem Ele<br />

amava e que amava a Deus, isso tudo<br />

tinha qualquer coisa de paradisíaco<br />

e a Providência era muito mais<br />

larga com sua generosidade, com sua<br />

bondade, do que é nos dias de hoje,<br />

em relação aos filhos da Revolução.<br />

De maneira que devemos ter o espírito<br />

pronto para a seguinte ideia: É<br />

verdade que na atual ordem da Providência,<br />

a maravilha, o milagre é<br />

uma exceção. Mas não é algo tão raro<br />

quanto se pensa.<br />

Ademais, coisas maravilhosas<br />

não claramente milagrosas são muito<br />

mais frequentes do que se pensa.<br />

É questão apenas de se ter uma<br />

alma sedenta de maravilhas, crendo<br />

que estas podem ser numerosas e<br />

que Deus as multiplica ao longo de<br />

nossos passos. Pedindo-as e desejando-as<br />

muito, o Altíssimo fará as maravilhas<br />

em nós também. Sermos sedentos<br />

de maravilhas, maravilháveis,<br />

tornará maravilhosas as nossas almas.<br />

E Deus poderá fazer também<br />

por nós coisas que Ele realizou por<br />

Santa Clara de Montefalco.<br />

Assim nós devemos abrir os horizontes<br />

de nossas almas enormemente;<br />

e tomar outra envergadura; ter o<br />

espírito completamente voltado para<br />

uma outra dimensão, outro sistema<br />

de medir as coisas. E compreender<br />

que rezando, pedindo, esperando,<br />

desejando, nós poderemos receber<br />

incomparavelmente mais do que<br />

aquilo que conseguiríamos imaginar.<br />

De algum modo nosso Movimento<br />

é isso. Eu estou lhes narrando, aos sábados,<br />

a história de nosso Movimento,<br />

e verificamos que ocorreram coisas<br />

as quais no começo da estacada se<br />

reputavam impossíveis. Estão feitas.<br />

Se o impossível está realizado, não<br />

há limite para o impossível. A partir<br />

do momento em que esta sineta colocada<br />

sobre minha mesa, por si mesma,<br />

se suspenda cinco centímetros, é<br />

igualmente fácil que ela chegue até a<br />

Lua. O primeiro ponto é ela levantar<br />

os cinco centímetros. Mas se há um<br />

poder sobrenatural que a ergue cinco<br />

centímetros, para esse poder não é<br />

nada levantá-la acima de todas as coisas<br />

da Terra; e não é nada levá-la até<br />

a Lua, ou a qualquer outro astro. A<br />

questão é levantar os cinco primeiros<br />

centímetros.<br />

Nossa Senhora levantou os “cinco<br />

primeiros centímetros” na história<br />

de nosso Movimento. E é preciso<br />

reconhecer que nós fizemos força<br />

em sentido contrário...<br />

Essa é talvez a maior das maravilhas:<br />

a aeronave subiu com muita<br />

gente dentro chorando de saudades<br />

da Terra, e olhando pela janelinha,<br />

dizendo adeus para círculos<br />

mundanos, pulando para ver se a aeronave<br />

não subia. A aeronave subiu<br />

cinco centímetros. Se nós aproveitarmos<br />

bem lições como essa, o que<br />

há de maravilhoso na vida de Santa<br />

Clara de Montefalco, então compreenderemos<br />

bem quanto é de esperar<br />

que Maria Santíssima faça ainda<br />

mais maravilhas muito maiores. Essa<br />

é a lição que a vida de Santa Clara<br />

de Montefalco nos traz.<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de<br />

7/12/1973)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

...Nossa Senhora fará<br />

maravilhas ainda maiores<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência na década de 1990<br />

30


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Alain Patrick<br />

Florença e a perfeição<br />

das formas - II<br />

Cidade com edifícios de proporções perfeitas, Florença, como<br />

todas as antigas urbes, viu transformarem-se em museu seus<br />

palácios e outras bonitas residências. Isso se deve ao fato de<br />

que seus habitantes, em determinado momento, quiseram<br />

romper com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o<br />

caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6)<br />

Por certo, nesse casario há residências onde as<br />

escadas devem ter alguns degraus podres, as donas<br />

de casa brigam umas com as outras, de andar<br />

para andar, ameaçando-se com aquele rolo para fazer<br />

macarrão, e se vê um velho subir até o quarto andar,<br />

no qual ele foi morar por ser mais barato, mas tem medo<br />

por causa do coração... À noite ele sentiu umas dores<br />

no peito e não sabe se é bronquite ou começo de enfarte;<br />

então saiu muito preocupado e agora sobe devagarzinho,<br />

levando sua bengalinha e o jornal do dia debaixo<br />

do braço, e fumando o último cigarrinho que ele aspira<br />

até o fim, porque não pode comprar muitos; e vai curtir<br />

sua pobreza e seu isolamento junto a um gato no quarto<br />

que ele ocupa.<br />

O povinho que a Revolução massacrou<br />

Entrevê-se um formigamento de gente nesse casario.<br />

De gente vivaz, que fala, comenta, canta, trabalha, que<br />

quando dorme ronca; enfim, gente estuante de vida e, ex-<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

ceto o meu velho do gato, o resto todo com muita saúde.<br />

E esse velho, a doença dele é só velhice. Mas essa é inevitável...<br />

Esse formigamento de vida não há em um arranha-<br />

-céu moderno, nem nas pobres “vilas-Moscou” das periferias<br />

de certas cidades. Ora, é este o povinho que a Revolução<br />

massacrou, proclamando a soberania popular.<br />

Em Florença, e em outros lugares, algo disso ainda vive.<br />

Notem, agora, aquela outra ponte que não tem construções<br />

colaterais e cujo traçado pode ser melhor apreciado.<br />

Vejam a beleza da ponte e também da iluminação<br />

pública. Que lampadários bonitos, delicados! Comparem<br />

com a iluminação que encontramos, por exemplo,<br />

em determinadas avenidas de São Paulo: as luminárias<br />

parecem esqueletos de não sei que animal pré-diluviano,<br />

que tinha um pescoço compridíssimo encimado por uma<br />

cabecinha inútil. Nesta ponte, ao contrário, tudo é proporcionado.<br />

A propósito da arquitetura desta ponte, vem-me à memória<br />

a seguinte comparação. A Ponte Alexandre III, de<br />

Paris, é muito bonita, construída no século XIX, porém<br />

ultraenfeitada.<br />

Esta aqui não tem um enfeite. A beleza está na linha<br />

dos arcos, mais nada. É o que se chamaria, na linguagem<br />

de hoje, um estilo despojado. Isso faz lembrar, em<br />

relação aos enfeites, um caso que se contava na Grécia.<br />

Realizou-se um concurso de arte — creio que de pintura,<br />

não me lembro bem —, no qual concorriam artistas<br />

de vários lugares. Um deles, persa, representou uma<br />

mulher com um traje riquíssimo que visava realçar a beleza<br />

de sua obra. Outro pintor, um grego, figurou uma<br />

grega com uma simples túnica branca.<br />

O júri deu a primazia à pintura grega.<br />

O persa protestou, argumentando que a sua estava<br />

muito melhor vestida. Os gregos responderam: “Tu a fizeste<br />

rica porque não soubeste fazê-la bela.”<br />

Uma construção estética reputada perfeita<br />

Vemos em outra fotografia a Catedral de Florença, toda<br />

feita de mármore branco e preto. A mesma coisa que<br />

nós encontramos nas fachadas laterais da Catedral de<br />

Orvieto, onde há mais mosaicos. Notem o choque: Florença,<br />

muito mais importante e mais rica do que Orvieto,<br />

nem tem comparação, ousa fazer para si uma catedral<br />

que não possui um mosaico na frente. Mas a superioridade<br />

de Florença, segundo o meu modo de entender,<br />

está exatamente em que cores bonitas, mosaicos,<br />

etc., são enfeites fáceis, para imaginações débeis. Na Catedral<br />

de Florença existe uma proporção perfeita entre a<br />

torre, o corpo da igreja e a abóboda com aquela torrezinha<br />

em cima. E depois o tamanho das naves laterais. E<br />

32


Miguel Hermoso Cuesta (CC3.0)<br />

isso está tão bem calculado, como as rosáceas nas portas,<br />

as colunatas, a rosácea grande, que é uma construção<br />

estética reputada perfeita. Então, a reflexão, o equilíbrio,<br />

a profundidade, zombam do ornato, do charme, da<br />

graça, e Florença tem uma beleza autêntica a qual resiste<br />

à metralhagem dos olhares analíticos que querem encontrar<br />

um defeito.<br />

A Catedral parece dizer: “Eis-me aqui, despojada e<br />

sem maquiagem; eu sou eu, veja como sou linda!”<br />

Não sou um especialista em matéria de arte. Não afirmo,<br />

portanto, como quem se acha entendido, o seguinte.<br />

Mesmo porque o valor do argumento da autoridade de<br />

incontáveis críticos, que têm achado isto perfeito, pesa<br />

mais do que o meu. Mas, em minha opinião, essa cúpula<br />

se fecha muito belamente em cima, tem uma proporção<br />

bonita com a barra branca sobre a qual ela se pousa, porém<br />

ela é muito pesadona para o conjunto do edifício. Ao<br />

menos eu a sinto assim.<br />

Vemos na torre da Catedral, por exemplo, alguns vestígios<br />

do gótico nos vários andares, mas muito poucos. É<br />

muito bonito como os andares vão se afinando discretamente<br />

para cima. O branco está utilizado aqui magnificamente.<br />

Os vários espaços e dimensões, os ornatos dos<br />

diversos elementos, tudo está perfeitamente bem posto, e<br />

é muito bonito, não tem dúvida.<br />

Mania do despojado<br />

No interior da Catedral o despojamento vai bem mais<br />

longe. Não se pode negar que as dimensões, a altura das<br />

colunas são muito bonitas, que os arcos estão muito bem<br />

colocados, e que tudo quanto a Catedral apresenta é muito<br />

belo. Mas se tomamos, por exemplo, o altar do fundo,<br />

vemos como ele é pequeno em comparação com o tamanho<br />

da igreja, e como fica um espaço em cima, provavelmente<br />

destinado ao arejamento e à entrada de luz, mas<br />

que não traz nenhuma ideia piedosa. São meras janelas.<br />

Se fosse uma arquitetura elaborada segundo outra escola<br />

artística, essas colunas teriam, em cada ângulo, um<br />

nicho com a imagem de um Santo portando seu instrumento<br />

de martírio. Ali não: tem-se a impressão de que<br />

uma tropa de ladrões entrou e roubou os ornatos da<br />

igreja.<br />

Minha posição pessoal diante do monumento: respeito,<br />

admiração, vejo inegavelmente grandes valores artísticos,<br />

mas minha afinidade não vai para isso. A mania<br />

do despojado parece-me conter uma censura a Deus que<br />

não fez um universo despojado. É bonito que apareça,<br />

de vez em quando, alguma coisa despojada. Com isso eu<br />

concordo. Mas que haja a mania do despojado, com isso<br />

eu não posso concordar. E é como se apresenta a arte<br />

florentina.<br />

Fachada da Catedral<br />

de Florença, Itália<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Jorge Royan (CC3.0)<br />

Nesta página, aspectos do interior<br />

da Catedral de Florença, Itália<br />

Fczarnowski (CC3.0)<br />

JoJan (CC3.0)<br />

Os entusiastas do despojamento dirão: “Mas <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, assim aparece melhor a linha lógica.” Eu respondo:<br />

“Está bem, mas nem tudo que aparece melhor é bem<br />

feito.” Isso é para pessoas incapazes de perceber a linha<br />

dentro da pluralidade dos ornatos. Não julgo que eu esteja<br />

afligido por esse mal. Em uma obra de arte com uma<br />

muito bela linha e lindos ornatos, estes não estragam a<br />

linha.<br />

Residência de uma antiga família<br />

transformada em hotel<br />

Ainda em Florença, mas nos arrabaldes da cidade, há<br />

um hotel excelente. Ao que tudo indica trata-se da residência<br />

de uma antiga família de banqueiros — Florença<br />

foi um centro bancário muito grande — ou de nobres<br />

que viviam fora da cidade na opulência, e cuja propriedade<br />

foi transformada em hotel.<br />

A mim, que impressão dá? Como se trata de uma casa<br />

de uma família — seja de nobres ou de banqueiros —<br />

portadora de certa tradição, esta eleva e dignifica a vida<br />

de família, porque dá a ela uma nota de eternidade. A<br />

família percebe melhor as obrigações que lhe impõe um<br />

grande passado ao qual se sente ligada. Os mortos parecem<br />

ornatos dos vivos. E por outro lado, os que estão para<br />

nascer parecem a luz que entra para a família, a qual<br />

vive há séculos e pretende viver séculos ainda, na beleza<br />

de uma grande continuidade familiar.<br />

Vemos ali uma casa grande construída para se levar<br />

uma vida de família, não como se entende hoje, dentro de<br />

um apartamento, mas com quartos de dormir grandes, salões<br />

espaçosos; uma residência feita para que se passe muito<br />

tempo nela, com conforto, tempo para pensar, ler, conversarem<br />

uns com os outros, para formarem grupos de dois<br />

ou três e irem passear pelo jardim que, aliás, é magnífico.<br />

Podemos imaginar a magnificência de uma recepção<br />

dada numa propriedade como essa, à noite, com orquestra<br />

tocando, senhoras e senhores com trajes de gala,<br />

condecorações, desse tipo de recepções com tanta categoria<br />

que até os prelados do lugar apareciam. Então<br />

a hora da chegada do grão-duque, do cardeal-arcebispo,<br />

de tal autoridade militar, de tal grande artista que vai<br />

cantar, outro que vai acompanhar ao piano... Tudo isso<br />

em meio à conversa que rumoreja, enquanto incessantemente<br />

garçons fazem circular grandes pratos com pequenas<br />

delícias, bandejas repletas com taças e garrafas<br />

com bebidas. Se a noite é quente, uma parte dos convidados<br />

sai e conversa também do lado de fora.<br />

34


Divulgação (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Tudo isso foi transformado em um hotel muito bem<br />

mobiliado, onde se paga para estar, e no qual um turista<br />

anônimo entra, mete-se nas cobertas durante a noite,<br />

e no dia seguinte sai.<br />

Notem o conforto, a estabilidade, a dignidade. Não é<br />

verdade que uma família como essa pareceria estar destinada<br />

a durar séculos? Entretanto, está morta, como<br />

uma concha que se encontra na praia, na qual o respectivo<br />

caramujo morreu. Por que morreu? Porque essa gente<br />

toda foi rompendo com Aquele que disse de Si mesmo:<br />

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).<br />

Paganizou-se, estancou.<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de 23/11/1988)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Nesta página, aspectos do<br />

Hotel Villa Cora, comentado<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> - Florença, Itália<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

35


gustavo kralj<br />

Antonio Lutiane<br />

Virgem das Neves<br />

Paróquia da Candelária,<br />

Sevilha, Espanha<br />

Nossa Senhora das Neves<br />

próprio de Maria Santíssima violar todas as regras de distância que há entre o Céu e a<br />

Terra e aparecer a um Papa. Como também é próprio a Ela indicar o lugar para algo<br />

maravilhoso, escolhendo para isso a neve, que representa o refrigério no meio do calor.<br />

ÉNo No verão horroroso de Roma, aparece um lugar coberto de neve. Ali Nossa Senhora quer que<br />

se construa uma igreja em seu louvor.<br />

Este é bem o papel de Nossa Senhora em nossa vida: a neve em meio ao calor de nossas batalhas,<br />

provações e sofrimentos.<br />

Em meio à poeira desta vida, a Santíssima Virgem é a neve alvíssima, imaculada, que refrigera<br />

e nos dá um antegozo do Céu.<br />

(Extraído de conferência de 5/8/1965)

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