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Retidão, autenticidade<br />
e senso do dever
Divulgação<br />
“Vi, decidi e entrei!”<br />
Analisem a fisionomia do Bem-aventurado Ezequiel Moreno Díaz 1 . É um rosto inteiramente<br />
distendido, sem a menor contração. Porém, não é a distensão comum<br />
do homem que dorme. Há algo nesse modo de estar distendido que corresponde<br />
àquela espécie de distensão que os irresolutos não possuem. Estes têm a distensão da moleza.<br />
Nele vemos a distensão das grandes resoluções tomadas, do homem que resolveu tudo e entrou<br />
rijo no caminho por onde tinha de entrar e disse: “Eu vi, decidi e entrei. Agora vamos<br />
até o fim!”<br />
As dúvidas ficaram para trás e todos os sacrifícios que esse caminho trouxesse consigo, de<br />
algum modo ele os mediu, aceitou e pediu a Nossa Senhora que o ajudasse a não recuar.<br />
(Extraído de conferência de 14/11/1980)<br />
1) Canonizado em 11/10/1992.<br />
2
Sumário<br />
Ano XIX - Nº <strong>221</strong> Agosto de 2016<br />
Retidão, autenticidade<br />
e senso do dever<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />
década de 1990.<br />
Foto: Mario Shinoda<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Impressão e acabamento:<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
EDITORIAL<br />
4 Vida coerente com a Fé e ódio ao<br />
relativismo<br />
PIEDADE PLINIANA<br />
5 Pedido a Maria assunta aos Céus<br />
DONA LUCILIA<br />
6 Rezando na Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
8 Dignidade, beleza e coerência das profissões<br />
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS<br />
14 Luís XIV e o Sagrado Coração de Jesus<br />
DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />
18 Rainha e Mãe de misericórdia<br />
CALENDÁRIO DOS SANTOS<br />
20 Santos de Agosto<br />
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
22 Autenticidade e senso psicológico<br />
HAGIOGRAFIA<br />
26 O maravilhoso na vida de<br />
Santa Clara de Montefalco<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
31 Florença e a perfeição das formas - II<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
36 Nossa Senhora das Neves<br />
3
Editorial<br />
Vida coerente com a Fé<br />
e ódio ao relativismo<br />
Ovalor de um homem se mede pela coerência de sua vida com os princípios e com a Fé. No entanto,<br />
o mal do relativismo e da superficialidade estão sempre a assaltar-lhe o espírito, sendo necessária<br />
uma grande força de vontade para manter-se fiel. Por prismas diversos, em algumas das<br />
conferências estampadas na presente edição <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aborda a importante temática da retidão, autenticidade<br />
e senso do dever, qualidades que nortearam sempre a trajetória de sua catolicíssima existência, como<br />
atestam suas palavras pronunciadas em 6 de fevereiro de 1982:<br />
O desastre ocorreu em 1975, quando eu tinha 66 anos. Com essa idade já havia transcorrido toda<br />
uma vida! E posso dizer que possuía um passado solidamente estruturado, coerente, lógico, limpo,<br />
rumando continua e abnegadamente para um mesmo fim. Quando, ainda mocinho, li numa daquelas<br />
conferências da Université des Annales que Bayard 1 era chamado le Chevalier sans peur et sans reproche<br />
2 , tive um frêmito. Eu não ousaria aplicar a mim essa expressão diante de Nossa Senhora, mas<br />
diante dos homens, sim! E não há quem tenha coragem de negá-lo, porque lhe perguntaria: “Quando<br />
me viram ter peur? Quando me puderam fazer um reproche?”<br />
Se, entretanto, quem lhes fala tivesse conservado durante esses anos certa superficialidade de espírito,<br />
ela teria se manifestado nos períodos e inconsciência após o acidente, e algo do impulso dado<br />
aos senhores diminuiria naquele momento. Eu sairia da convalescença com a impressão de haver<br />
cumprido o meu dever, mas na hora do julgamento, seria interpelado: “Presta as tuas contas!”<br />
A minha superficialidade seria, então, a causa do desagrado divino. O espírito não teria ido tão a<br />
fundo nem se enlevado como deveria.<br />
Por que digo isto com esta ênfase? Pela saturação de ver espíritos superficiais, cumprindo o dever<br />
mais ou menos, às pressas, sem aprofundamento, sem a adesão inteira da alma. Por trivialidade pensam<br />
que cumprem o dever completo e que a ação externa basta para a obra estar inteiramente boa.<br />
O que é o relativismo? É aquela atitude de alma por onde diante do pulcro, do verdadeiro, do<br />
bom que nos falou pela Fé, pela razão, pelos sentidos da alma — às vezes até pelos sentidos físicos<br />
— diante disso que nos pedia um brado de adesão, de devotamento e de dedicação nós nos movemos<br />
um pouco. Dizemos: “É, talvez, é possível... O que eu quero no momento é saber tal coisa como<br />
aconteceu, quero uma bagatela, quero reservar pelo menos uma parte de minha alma às pobres bagatelas.<br />
Isso é o que eu quero!”<br />
Nossa Senhora deu-me a graça de odiar o relativismo com toda a minha alma. Porque no pecado<br />
declarado, perdem-se os ruins; no relativismo, perdem-se os bons. E toda a vida me pareceu tremendamente<br />
triste, sinistro, que um homem desse a sua vida por um ideal e depois servisse mediocremente<br />
a ele.<br />
1) Pierre du Terrail, senhor de Bayard (*1476 - †1524).<br />
2) Do francês: o Cavaleiro sem medo e sem reproche.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
PIEDADE PLINIANA<br />
Gustavo Kralj<br />
Assunção de Nossa<br />
Senhora - Basílica de Santa<br />
Maria Maggiore, Roma, Itália<br />
Pedido a Maria<br />
assunta aos Céus<br />
N<br />
a vossa Assunção, ó Maria, vossa Pureza, vossa Fé e vossa Fortaleza encontraram,<br />
por fim, o prêmio merecido.<br />
Fazei-me puro, cheio de fé e forte para lutar convosco na Terra e vencer a Re-<br />
volução, de modo a contemplar-Vos eternamente no Céu.<br />
Do alto da glória de onde reinais, sede para mim a Mãe de Misericórdia, apoiando-me em<br />
todas as minhas defecções, reerguendo-me em todas as quedas, perdoando-me em todas as<br />
faltas e amando-me em todos os instantes, de maneira que em tudo Vos ame, ó Rainha santa,<br />
que deveis ser o enlevo de toda a minha vida.<br />
5
DONA LUCILIA<br />
João Paulo Rodrigues<br />
Rezando na<br />
Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus<br />
Dona Lucilia era uma pessoa muito respeitável,<br />
digna e ao mesmo tempo de uma afabilidade<br />
e de uma doçura indizíveis. Tais qualidades<br />
eram análogas às existentes na Igreja do<br />
Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Essa<br />
igreja parecia feita para que ela fosse ali rezar.<br />
Para a minha sensibilidade de<br />
filho, ver Dona Lucilia rezar<br />
na Igreja do Sagrado Coração<br />
de Jesus dava-me a impressão<br />
de estar ela ali como uma católica<br />
em seu lugar próprio, no ambiente,<br />
na atitude, na posição que convém a<br />
uma alma católica, ao pé de um altar<br />
onde recebe graças muito grandes.<br />
Igreja digna, quase<br />
majestosa<br />
Quem visitava essa igreja notava,<br />
já na primeira vez, uma harmonia<br />
de qualidades que não se encontram<br />
frequentemente reunidas. É uma<br />
igreja muito digna, chega quase a<br />
ser majestosa, mas ao mesmo tempo<br />
muito afável, de maneira que a pessoa<br />
se sente inteiramente à vontade<br />
dentro dela, completamente acolhida<br />
como quem está na casa paterna.<br />
Era a atmosfera que o próprio Nos-<br />
so Senhor Jesus Cristo criava em torno<br />
de Si, como se vê no Evangelho.<br />
Quer dizer, as pessoas tinham por<br />
Nosso Senhor um respeito sem fim,<br />
sem limites, mas ao mesmo tempo<br />
possuíam facilidade de acesso junto a<br />
Ele, falavam, perguntavam, etc., e sentiam<br />
a sua majestade juntamente com<br />
o carinho, a bondade, a amabilidade.<br />
Naquela igreja, o órgão tocando<br />
alguma melodia polifônica ou do<br />
cantochão encontra ali as suas ressonâncias<br />
adequadas.<br />
Não é um templo riquíssimo, mas<br />
uma igreja paroquial boa, nada mais<br />
do que isso. Comparando-a com qualquer<br />
igreja da Itália, ela fica muito<br />
abaixo. A Itália é a terra dos mármores<br />
suntuosos, dos bronzes, das grandes<br />
obras de arte, dos grandes pintores,<br />
escultores e artistas de toda ordem,<br />
de maneira que se veem coisas<br />
extraordinárias em qualquer igreja.<br />
No Coração de Jesus, de São Paulo,<br />
6
não; tudo é digno, mas é o que a América<br />
do Sul pode dar; nós temos aquilo.<br />
E Nosso Senhor recebe de boa vontade<br />
o óbolo de quem tem pouco. Há<br />
uma graça lá nesse sentido.<br />
Ora, transposto tudo isso para o<br />
plano tão inferior de uma mera criatura<br />
humana, eu notava em Dona<br />
Lucilia qualidades que me pareciam<br />
análogas àquelas por mim percebidas<br />
na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Quer dizer, a personalidade dela<br />
era muito respeitável e muito digna, e<br />
ao mesmo tempo de uma afabilidade<br />
e de uma doçura indizíveis. Uma personalidade<br />
muito marcada pelos sofrimentos<br />
da vida, mas com uma espécie<br />
de alegria de quem sofre de boa<br />
vontade, dá com bom gosto aquilo<br />
que tem que entregar a Deus, e carrega<br />
a sua cruz, achando natural que a<br />
carregue, com a coragem despretensiosa<br />
de quem cumpre integralmente<br />
o dever de todos os dias.<br />
“Espere um pouquinho...”<br />
Sempre fui muito observador,<br />
mesmo em relação à minha própria<br />
mãe; e muitas vezes, por um movimento<br />
instintivo, eu olhava para ela<br />
com o canto dos olhos durante suas<br />
orações na Igreja do Coração de Jesus.<br />
Vendo-a rezar, eu pensava: há algo<br />
entre ela e essa igreja por onde ela<br />
parece feita para rezar aqui, e a igreja<br />
parece feita para que aqui ela reze.<br />
Até eu completar onze, doze anos<br />
— não me lembro bem —, eu assistia<br />
à Missa no Coração de Jesus frequentemente<br />
ao lado de mamãe. Depois,<br />
quando fiquei mais velho, o costume<br />
era que os moços assistissem à Missa<br />
nas naves laterais, porque a igreja ficava<br />
muito cheia e convinha ceder os<br />
lugares para as senhoras. Os homens<br />
ficavam de pé. Um velho poderia permanecer<br />
ajoelhado no meio das senhoras,<br />
mas para um moço ficava<br />
uma coisa meio pretensiosa, descabida,<br />
ajoelhar-se quando havia senhoras<br />
a quem ele devia ceder o lugar.<br />
Então, eu assistia à Missa na nave<br />
lateral e, bem entendido, onde podia<br />
olhar para a imagem de Nossa<br />
Senhora Auxiliadora. Esse era meu<br />
movimento primeiro, indiscutível:<br />
entrar e ir para lá. Nunca tive a menor<br />
dúvida a esse respeito.<br />
Terminado o Santo Sacrifício,<br />
quando todos começavam a se retirar,<br />
Dona Lucilia não era das primeiras<br />
a sair. Assim que o grosso do<br />
público já tinha ido embora, ela se<br />
levantava e passava para o altar do<br />
Coração de Jesus.<br />
Meu pai a ficava esperando, mas<br />
não tinha a piedade dela, e permanecia<br />
ao lado de fora, junto à porta<br />
da igreja, conversando com o Pe.<br />
Falconi. Eram longas prosas, enquanto<br />
mamãe rezava.<br />
Dona Lucilia rezava notadamente<br />
diante da imagem do Sagrado Coração<br />
de Jesus, mas naturalmente também<br />
diante da imagem de Nossa Senhora,<br />
e, depois, daquele conjunto<br />
escultural do Menino Jesus no Templo<br />
entre os doutores.<br />
Ela não orava com os lábios cer-<br />
rados, mas os movimentava ligeiramente,<br />
acompanhando o que ela<br />
dizia, de um modo tão rápido que<br />
não emitia o mínimo som, e também<br />
não se chegava a perceber o<br />
que falava, porque era um movimento<br />
minúsculo de lábios. Era o<br />
modo de ser dela. Cada um tem o<br />
seu, ela era assim.<br />
Às vezes meu pai entrava e dizia<br />
a ela, em tom sempre muito<br />
cortês: “Senhora, afinal vamos!”<br />
Ela fazia um sinal, como que zendo: “Espere um pouquinho...”<br />
Ao longo de toda a minha vida<br />
dinunca<br />
vi nenhum dos dois se impacientar<br />
com o outro, nem o menor<br />
sinal de impaciência. Mas ela dava<br />
a entender o seguinte: “Olhe,<br />
você pode vir algumas vezes aqui<br />
que ainda me encontra...” Afinal,<br />
lá iam os dois a pé para casa. ❖<br />
(Extraído de conferência de<br />
4/2/1986)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
7
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Francisco Lecaros<br />
Lavrador arando a terra - Museu<br />
de Belas Artes, Pau, França<br />
Dignidade, beleza e<br />
coerência das profissões<br />
A pessoa que desempenha uma profissão não deve ter em vista<br />
primordialmente ganhar dinheiro, mas o gosto de tirar de si<br />
uma série de potencialidades que dormem, para se realizar e<br />
explicitar-se a si própria. O profissional, de acordo com um<br />
apelo íntimo de sua alma, concorre para a realização do plano<br />
de Deus, a Quem ele precisa adorar e servir.<br />
N<br />
o tocante às relações entre<br />
patrão e empregado 1 ,<br />
a pessoa não atina, não se<br />
situa bem no foco por onde essas relações<br />
podem ser vistas adequadamente,<br />
se não tomar o pressuposto<br />
católico a respeito do assunto.<br />
O operar de Deus<br />
é espelhado pelo<br />
operar do homem<br />
O pressuposto é este: a função da<br />
empregada doméstica, por exemplo,<br />
é sacral, e a patroa deve tomá-la em<br />
consideração e vê-la conjugada com<br />
sua própria função de patroa, que é<br />
sacral também. Ambas, vendo a mútua<br />
sacralidade, colocam-se no foco<br />
em que as relações facilmente se esclarecem,<br />
e um problema que se perde<br />
em aspectos e subaspectos insolú-<br />
8
veis, se resolve como que numa palavra<br />
só.<br />
É mais ou menos como alguns<br />
quadros. Em Roma há um quadro<br />
pintado no teto de uma igreja, que<br />
é muito interessante, não tanto como<br />
obra de arte, mas enquanto obra<br />
artesanal muito bem feita. Em qualquer<br />
ponto da igreja onde se esteja,<br />
olha-se para a pintura e tem-se a impressão<br />
de um caos de figuras heterogêneas.<br />
Mas há um local do templo<br />
a partir do qual, contemplando-se<br />
o quadro, todas as figuras se<br />
compõem e aquilo faz sentido.<br />
Há muitos problemas, sobretudo<br />
de cunho social, que são assim: permanecem<br />
insolúveis enquanto não<br />
os situamos no foco de onde devem<br />
ser vistos; porém, isto feito, tudo se<br />
resume em duas palavras e se resolve.<br />
Assim é o problema das relações<br />
entre patroa e empregada.<br />
Eu deveria, então, mostrar em<br />
que sentido essas funções são sacrais<br />
e como a sacralidade das<br />
funções resolve o problema.<br />
Quer dizer, dei a<br />
tese, passo a apresentar<br />
a demonstração.<br />
A capacidade de agir<br />
do homem é um dom de<br />
Deus, motor primeiro<br />
de todas as coisas. Todas<br />
as meditações que possamos<br />
fazer, por exemplo,<br />
a respeito de uma<br />
bela flor ou de um bonito<br />
quadro, considerando<br />
que aquilo reflete<br />
uma grandeza de seu<br />
Criador, o mesmo se pode<br />
dizer do operar humano,<br />
o qual — quando<br />
é reto, de acordo com a<br />
ordem posta por Deus<br />
— reflete uma grandeza<br />
do Altíssimo. E, por<br />
uma conaturalidade fácil<br />
de compreender, reflete<br />
uma grandeza mais<br />
especialmente do operar<br />
Francisco Lecaros<br />
divino. Quer dizer, o operar de Deus<br />
é espelhado pelo operar do homem.<br />
Assim, todas as atividades humanas<br />
têm uma raiz sacral, são reflexos<br />
de algo de divino e possuem uma<br />
dignidade, uma beleza, uma lógica e<br />
uma coerência cuja origem e fundamento<br />
encontram-se em Deus.<br />
Isso se aplica desde as mais altas<br />
atividades humanas como a de uma<br />
Papa, que é uma evidente imagem<br />
de Deus enquanto governador do<br />
universo visível e invisível, até uma<br />
das mais modestas das funções como,<br />
por exemplo, a de lixeiro.<br />
O lixeiro: inimigo da<br />
sujeira e da desordem<br />
O lixeiro que varre a cidade realiza<br />
uma atividade de caráter natural e<br />
não sobrenatural. Portanto, a este título,<br />
muitíssimo inferior à do Papa.<br />
Ademais, na ordem natural é uma<br />
tarefa manual e, enquanto tal, mui-<br />
“A cozinheira” - Museu de Belas Artes, Rouen, França<br />
to inferior às atividades intelectuais.<br />
Depois, na ordem do manual é uma<br />
atividade meramente executiva, ele<br />
não faz senão obedecer ao que lhe<br />
mandam, executando com as mãos<br />
a incumbência recebida. Além disso,<br />
por sua natureza — que é remover o<br />
lixo deixado pelos outros na rua —,<br />
trata-se evidentemente de um trabalho<br />
muitíssimo modesto.<br />
Pois bem, esse trabalho, visto numa<br />
perspectiva filosófica e teológica<br />
adequada, tem uma função sacral: o<br />
lixeiro é o inimigo da sujeira, da desordem,<br />
e executa na mais modesta<br />
das linhas a imensa tarefa posta por<br />
Deus na Criação, que é a luta contra<br />
tudo aquilo que possa representar<br />
sujeira, desordem, e ser o contrário<br />
dos planos divinos.<br />
Compreende-se quanto há de dignificante<br />
para o lixeiro ver que Deus<br />
pôs um movimento universal nas criaturas<br />
por onde elas se limpam — com<br />
exceção de algumas que devem simbolizar<br />
a sujeira, como<br />
o porco —, e que ele é<br />
o complementador deste<br />
movimento divino, a<br />
imagem na ordem material<br />
daqueles que removem<br />
as sordícies, as desordens<br />
espirituais. Quer<br />
dizer, ele pode, com uma<br />
concepção elevada das<br />
coisas, dar um alto culto<br />
a Deus, varrendo as ruas,<br />
no trabalho modesto de<br />
lixeiro que, de si, tem essa<br />
magnitude.<br />
A empregada e<br />
a dona de casa:<br />
funções sacrais<br />
O trabalho de uma<br />
criada de casa, portanto,<br />
tem também esta função.<br />
Se tomarmos em<br />
consideração a empregada<br />
enquanto limpando,<br />
ordenando, servindo o<br />
9
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Praça do Quirinal - Museu<br />
Amedeo Lia, La Spezia, Itália<br />
lar, se considerarmos o que o lar reflete<br />
das grandezas de Deus — inclusive<br />
as relações internas da Santíssima<br />
Trindade, as de Jesus Cristo com<br />
a Igreja, que são comparadas com as<br />
relações do esposo e da esposa —,<br />
compreendemos o que significa servir<br />
o lar; e então entendemos como a<br />
dona de casa que dirige o lar faz uma<br />
coisa nobre também.<br />
A criada deve ter um encanto inclusive<br />
por adornar a sua patroa. Porque<br />
precisamos ter um entusiasmo desinteressado,<br />
que eu chamaria, no bom<br />
sentido da palavra, infantil — no sentido<br />
das crianças de quem é o reino do<br />
Céu, ou da infância espiritual de Santa<br />
Teresinha —, um entusiasmo desprendido<br />
por aqueles que são mais do que<br />
nós, têm qualidades que não possuímos,<br />
e com isto dão a Deus uma glória<br />
que ficamos alegres que deem. Então,<br />
uma empregada que adorna a sua patroa<br />
para que esta, com sua dignidade,<br />
sua distinção, sua elegância, represente<br />
um padrão mais alto do gênero humano<br />
— e com isso dignifique o gênero<br />
humano inteiro, e dessa forma dignifique<br />
a Deus —, age sacralmente. E,<br />
sobretudo, se a patroa vê a sua própria<br />
posição assim, não considera a casa<br />
como uma chacunnière 2 ou como um<br />
lugar de puro gozo, mas sim como um<br />
santuário no qual também tudo deve<br />
caminhar para Deus Nosso Senhor. Aí<br />
a união da criada com a patroa é completa.<br />
Por detrás desta concepção está a<br />
ideia de que toda a vida humana deve<br />
ser vista assim, sacralmente. E quando<br />
o homem tem compreensão da<br />
dignidade de suas ações, ele possui<br />
também a concepção sacral da dignidade<br />
do cargo em virtude do qual<br />
ele exerce as suas atividades, bem como<br />
da dignidade que o cargo confere<br />
à sua pessoa. Porque se a criada sabe<br />
que servir é uma coisa sacral, ela<br />
saberá também que ser criada é sacral;<br />
como toda função lícita, não pode<br />
ser vista laicamente, e sim sacralmente.<br />
Então, há uma dignidade de<br />
empregada junto à dignidade<br />
de ente humano e de filha<br />
de Deus, que é uma dignidade<br />
verdadeira e que ela carrega<br />
consigo, quer dizer, ela<br />
é isto. É assim que se deve<br />
ver, portanto, a vida.<br />
O profissional é,<br />
sobretudo, aquele<br />
que concorre para<br />
a realização do<br />
plano de Deus<br />
Francisco Lecaros<br />
Isso é ainda maior com os<br />
incumbidos de funções mais<br />
nobres, por exemplo, professores,<br />
advogados, médicos,<br />
engenheiros, dirigentes de<br />
empresa, diplomatas, militares,<br />
etc. Todas essas funções<br />
têm um suporte sacral, e é<br />
preciso vê-las sacralmente.<br />
Uma sociedade verdadeiramente<br />
católica é aquela na qual todo mundo<br />
que exerce suas funções, as desempenha<br />
evidentemente com um desejo de<br />
lucro, porque sem lucro ninguém vive.<br />
Não com um anseio exclusivo de<br />
lucro, e eu acrescentaria: não um desejo<br />
preponderante de lucro, mas é<br />
pela alegria que sua alma encontra,<br />
em virtude de sua própria luz primordial<br />
3 , em fazer aquela função para a<br />
qual é chamada. Então, o verdadeiro<br />
relojoeiro — por exemplo, o relojoeiro<br />
suíço, exímio, que monta um<br />
relógio de primeira categoria — deve<br />
gostar de fazer relógio porque, em<br />
si, é uma coisa bela, pois participa em<br />
algum modo de Deus; a beleza que<br />
ele sente tem uma explicação sacral,<br />
e por causa disto ele deve com espírito<br />
sacral ser relojoeiro, e não querer<br />
deixar de sê-lo assim que se lhe dê<br />
uma profissão que renda mais, uma<br />
vez que sua alma está toda voltada<br />
para fazer relógios. Por quê? Porque<br />
o profissional não é aquele que quer<br />
ganhar dinheiro, mas é, sobretudo,<br />
aquele que concorre com o plano de<br />
Deus, de acordo com um apelo íntimo<br />
de sua alma, o qual é um sinal da<br />
Providência para fazer alguma coisa<br />
em que ele adore e sirva a Deus. Este<br />
é o clima do Reino de Maria.<br />
O advogado: gosto de ver<br />
a ordenação humana<br />
Tomemos como exemplo a profissão<br />
de advogado. Quando o indivíduo<br />
tem verdadeira estrutura mental<br />
do advogado, ele possui antes de tudo<br />
um senso muito vivo da norma e<br />
da regra, dos códigos. E isto representa<br />
o lado rígido do espírito do advogado.<br />
É, sobretudo, um certo tipo<br />
de advogado, que não dá tanto para<br />
causídico como para jurisconsulto,<br />
quer dizer, quando há uma dúvida<br />
na interpretação da lei, dá uma<br />
resposta luminosa; não advoga, não<br />
dirige causas. É um dos aspectos do<br />
espírito do advogado: o gosto de ver<br />
a ordenação humana, e de trabalhar<br />
para ordenar o homem.<br />
Entretanto, o espírito do advogado<br />
tem também uma inclinação oposta a<br />
10
essa: toma um caso concreto e, à força<br />
de argúcia e de saber escarafunchar,<br />
faz uma argumentação brilhante mostrando<br />
que o caso não cabe dentro do<br />
texto da lei. Este advogado revela uma<br />
espécie de flexibilidade de espírito, de<br />
elasticidade, uma forma de luz mental<br />
— e aqui está a beleza do métier do advogado<br />
— que é diferente da outra.<br />
Na ordem natural nós podemos<br />
achar que um obelisco é uma beleza<br />
—impávido no meio do deserto, uno,<br />
contínuo, os séculos mudam e ele não<br />
muda —, e que é lindo, por exemplo, o<br />
voo caprichoso de um inseto em torno<br />
do obelisco, um bailado nos ares completamente<br />
novo e inesperado. Assim<br />
também podemos encontrar no estilo,<br />
no movimento, na habilidade — eu<br />
insisto na palavra —, na luz mental de<br />
qualquer dessas duas formas de advogado<br />
uma beleza de feitio de alma, de<br />
movimentação de espírito, uma diferente<br />
da outra, mas que nos dão ideias<br />
da lucidez infinita de Deus, que é a<br />
própria inteligência, e em cujas obras,<br />
em cujo modo de governar o universo<br />
nós vemos exatamente isto: de um lado<br />
o Altíssimo que magnificamente<br />
ordena todo o universo,<br />
e depois Deus que cria<br />
uma porção de seres, os quais<br />
representam situações e casos,<br />
etc., em que o Criador<br />
quase que brinca com as regras<br />
que Ele mesmo pôs e,<br />
por meio de uma série quase<br />
infinita de “divinos caprichos”,<br />
faz exceções saltitantes<br />
que constituem um charme<br />
em meio à grande majestade<br />
das coisas que Ele criou.<br />
Temos, pois, o que constitui<br />
a essência do métier do<br />
advogado. É uma forma de<br />
luz mental que tende a exercer-se,<br />
a aplicar-se; e o advogado<br />
que não desenvolve essa<br />
luz passa a vida inteira como<br />
um sujeito frustrado. Há<br />
algo nele que devia florescer<br />
e que não floresceu, e que o<br />
amarra, o deprime, o aborrece. Ainda<br />
que esse advogado tenha grandes<br />
possibilidades em outra carreira, ele<br />
transpõe a vida toda como um indivíduo<br />
que ficou, por exemplo, com um<br />
braço amarrado, louco para esticá-lo<br />
e que não pode; é essa mesma forma<br />
de mal-estar, mas muito pior porque<br />
é dentro da alma e não do corpo.<br />
Na profissão de advogado, há também<br />
a prova do direito, da lei, a ordenação<br />
do universo, a defesa do inocente,<br />
etc.; são coisas de uma grande<br />
beleza e que entram pelos olhos. E<br />
igualmente de uma grande sacralidade.<br />
Mas o homem não sente tanto a<br />
sacralidade na função que ele executa,<br />
quanto na sacralidade do tipo de<br />
luz mental que ele manifesta ao fazer<br />
aquela função; é aí que ele sente propriamente<br />
a sacralidade.<br />
O arquiteto deve ter um<br />
espírito altamente figurativo<br />
do Espírito de Deus<br />
Consideremos agora outra profissão.<br />
Como eu imagino o arquiteto?<br />
Tenho a convicção de que a obra<br />
de arte mestra do homem não é a escultura,<br />
nem a pintura, nem a música,<br />
mas é a arquitetura. A melhor expressão<br />
da sociedade humana não é<br />
um quadro, uma escultura ou uma<br />
música, nem uma joia, nem um móvel,<br />
mas é um edifício, na medida em<br />
que se entenda o edifício com tudo<br />
quanto ele tem.<br />
Então, por exemplo, deve-se entender<br />
uma catedral com toda a sua<br />
estrutura de pedra, os seus vitrais, as<br />
suas imagens, os seus bancos, as suas<br />
estalas, os seus altares, o seu sacrário<br />
e com o seu órgão tocando. Quer dizer,<br />
eu acho que todas essas outras<br />
coisas que estão dentro da catedral<br />
— e também mosaicos, quadros, tapeçarias<br />
— são peças elaboradas para<br />
serem vistas num conjunto, e esse<br />
conjunto é o prédio. De maneira<br />
que o prédio dá a perspectiva total,<br />
a qual vale mais do que as perspectivas<br />
parciais que existem dentro dele;<br />
porque aquele que arquiteta o todo<br />
tem uma atividade mais alta do<br />
que aqueles que concebem as partes.<br />
E assim como é intuitivo ser um arquiteto<br />
mais do que um marceneiro<br />
que faz uma cadeira, é intuitivo que<br />
é mais ser um arquiteto do que um<br />
pintor ou um escultor, desde que se<br />
compreenda que a pintura e a escultura<br />
só têm razão de ser dentro de<br />
um prédio, de uma casa.<br />
A casa é a obra de arte mestra<br />
que, mais do que objetos que estão<br />
dentro dela, deve conter o homem; a<br />
casa é a moldura do homem. Assim<br />
como a moldura tem um grande papel<br />
para dar realce ao quadro, o prédio<br />
é a moldura do homem, da família,<br />
de uma diocese, por exemplo<br />
— com seu bispo, seus cônegos, seus<br />
monsenhores, etc., onde todos estão<br />
rezando com o pleno aparato da hierarquia<br />
e da Liturgia reunidos.<br />
Então, eu imagino um arquiteto<br />
como um indivíduo que tenha antes<br />
de tudo uma alta ideia da natureza<br />
daquilo que ele constrói, e sabe<br />
11
DR. PLINIO COMENTA...<br />
edificá-la pegando a alma de um grupo<br />
humano em determinado momento,<br />
e exprimindo-a nos seus aspectos<br />
mais nobres e mais favoráveis, dentro<br />
das circunstâncias que aquela obra de<br />
arquitetura deve representar.<br />
Quer dizer, ele não é só um teólogo,<br />
um filósofo e até certo ponto<br />
um historiador que conhece a história<br />
da instituição para a qual ele<br />
constrói; mais do que isto, é um indivíduo<br />
que tem noção do modo pelo<br />
qual os homens do seu tempo — ao<br />
menos os homens bons, os contrarrevolucionários,<br />
não digo a canalha<br />
do seu tempo — sentem a instituição<br />
ou aquilo para o qual ele constrói.<br />
Ele possui um senso de observação<br />
psicológica muito fino, e há<br />
uma inter-relação grande da alma<br />
dele com uma série de valores; tem,<br />
portanto, um conjunto arquitetônico<br />
de conhecimentos que ele vai depois<br />
transferir para uma arquitetura de<br />
pedra. É, então, um espírito possantemente<br />
simbólico que sabe tomar<br />
do nada uma série de concepções,<br />
reuni-las para fazer algo que exprime<br />
aquilo que ele quer; nisso ele põe<br />
sua alma, é um arquiteto com alma.<br />
Quer dizer, é um espírito altamente<br />
figurativo do Espírito de Deus,<br />
criando e ordenando todas as coisas.<br />
Este seria, a meu ver, o espírito do<br />
arquiteto. Não é, portanto, o espírito<br />
politécnico que muitas vezes mutila,<br />
amputa, porque reduz a coisa a finalidades<br />
funcionais que evidentemente<br />
devem estar presentes com toda a<br />
sua realidade, todas as suas exigências,<br />
mas são secundárias; e restringe<br />
tudo a uma uniformização, a uma<br />
empresa econômica comum. Isto eu<br />
acho que é a coisa errada.<br />
Feitio de espírito do médico<br />
Quanto ao médico, se eu percebo<br />
bem, seu feitio de espírito, sua<br />
luz intelectual, pelo menos enquanto<br />
clínico, tem algo — mas naturalmente<br />
em ponto de maior categoria<br />
— do diplomata e do político.<br />
É uma subtileza de espírito por<br />
onde, à vista dos sintomas, se faz a<br />
combinação para justificar a hipótese,<br />
e onde se acompanha o processo<br />
de uma doença com senso do que<br />
é um processo da concatenação das<br />
causas e efeitos, da coordenação<br />
das circunstâncias com que o político<br />
faz política ou o diplomata faz<br />
diplomacia. Eu tenho impressão de<br />
que se joga com o fígado ou com o<br />
pâncreas com a habilidade com que<br />
se joga em política.<br />
Dou um exemplo. Quando comecei<br />
a melhorar da dosagem do açúcar<br />
4 , meu médico de repente ordenou<br />
parar o emprego do açúcar antes<br />
que este se normalizasse. E eu disse:<br />
“Mas meu Deus, vai iniciar tudo<br />
de novo!” O médico, então, explicou:<br />
“Não. É preciso interromper o uso do<br />
açúcar para que o pâncreas, que agora<br />
ficou fortificado, comece a dar de<br />
si, porque do contrário ele se torna<br />
preguiçoso e habituado ao remédio;<br />
mas é necessário um jeito, porque ele<br />
tem que andar por si.” De fato, depois<br />
comecei a ficar melhor até chegar<br />
a esta relativa normalidade em<br />
que graças a Deus eu me encontro.<br />
Quantas coisas assim a Medicina<br />
deve fazer! Tenho a impressão de que<br />
é “o pão nosso de cada dia” da Medicina.<br />
O médico, por exemplo, trata<br />
com o pâncreas como quem trata com<br />
soldados preguiçosos de um exército,<br />
ou com um povo que não tem vontade<br />
de trabalhar, e que se deixa empobrecer<br />
um pouco para que ele trabalhe.<br />
Quer dizer, são mil jeitos, mil<br />
golpes, mil acrobacias com a natureza,<br />
cuidadosamente estudadas e que<br />
fazem a glória e a forma de luz intelectual<br />
do clínico.<br />
O gosto que o indivíduo tem na<br />
profissão não deve ser de ganhar<br />
Francisco Lecaros<br />
Pregação no interior de uma catedral - Academia de<br />
Belas Artes de São Fernando, Madri, Espanha<br />
12
dinheiro, embora<br />
ele precise viver<br />
da profissão; mas é<br />
um prazer de tirar<br />
de si uma porção<br />
de coisas que dormem<br />
dentro dele,<br />
as quais a todo custo<br />
ele deve tirar para<br />
se realizar, explicitar<br />
a si próprio.<br />
Por outro lado,<br />
entra um amor à<br />
beleza dessa operação<br />
mental enquanto<br />
ela mesma, porque<br />
tudo se reduz<br />
à beleza de agir; e,<br />
nas profissões intelectuais,<br />
de um<br />
operar da mente.<br />
E é essa beleza do<br />
agir da mente que<br />
nos convoca para<br />
adorarmos a Deus<br />
enquanto sendo assim,<br />
procurarmos<br />
ver desse modo todas<br />
as coisas que o<br />
Criador pôs no universo,<br />
e compreendermos<br />
que Deus<br />
vai fazer coisas dessas conosco no<br />
Céu por toda a eternidade, e que isto<br />
é uma pre-figura do nosso Céu.<br />
Francisco Lecaros<br />
Sacerdotes e guerreiros:<br />
essenciais ao equilíbrio<br />
de toda sociedade<br />
Acão de graças ao Santo Sudário após a epidemia de cólera<br />
de 1836 - Museu Nacional do Palácio Mansi, Lucca, Itália<br />
A consequência desta exposição<br />
para a vida espiritual seria<br />
nos habituarmos a considerar assim<br />
os fundamentos sacrais de todas<br />
as atividades que exercemos,<br />
ou que outros realizam em torno<br />
de nós; mas é na forma de luz intelectual<br />
que a ação traz consigo. Eu<br />
compreendo que a atividade poderia<br />
ser vista por mil outros modos,<br />
mas é nesta forma de luz intelectual<br />
que, afinal de contas, nós pode-<br />
mos compreender melhor a Deus e<br />
a sacralidade da profissão.<br />
Dante, quando fala — não me lembro<br />
bem se é da graça ou de Deus<br />
—, dá essa definição: “luz intelectual<br />
cheia de amor, amor cheio de todo<br />
o bem”. É uma frase de um cântico, a<br />
qual, dita em italiano — não ouso dizer<br />
em italiano porque não sei a pronúncia<br />
— é muitíssimo mais bonita do<br />
que em português. Este gosto que nossa<br />
alma tem de realizar certo tipo de<br />
operações é resultante de uma luz que<br />
há em nós, uma particular lucidez para<br />
perceber certas coisas, e uma especial<br />
aptidão dos sentidos e da vontade<br />
para tratar daquilo; e é nisto que nosso<br />
ser mais se parece com Deus.<br />
Por causa disso, um povo que dá<br />
poucos sacerdotes ou poucos guerreiros<br />
está em estado<br />
de degenerescência.<br />
Ou se trabalha para<br />
que ele volte a dar<br />
muitos sacerdotes<br />
e muitos guerreiros,<br />
ou a sua fibra<br />
está liquidada. Porque,<br />
das atividades<br />
humanas, nenhuma<br />
tem tanta nobreza e<br />
tanta analogia com<br />
as coisas de Deus,<br />
com a luz mental<br />
que há em Deus<br />
do que o sacerdócio;<br />
é uma coisa evidente.<br />
Mas também<br />
uma sociedade que<br />
não produz guerreiros<br />
não odeia o<br />
contrário do que<br />
ela ama e, portanto,<br />
não ama nada; é<br />
uma sociedade que<br />
está em putrefação.<br />
O espírito sacerdotal<br />
e o espírito guerreiro<br />
são essenciais<br />
ao equilíbrio de toda<br />
sociedade. ❖<br />
(Extraído de conferência<br />
de 21/11/1969)<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 154, janeiro<br />
2011, p. 18-23.<br />
2) Do francês: chacun (cada um); chacunnière<br />
(“cadaunzeira”), palavra usada<br />
por Rabelais, significando o lugar ou a<br />
situação modesta do homem comum.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a empregava para designar<br />
a situação medíocre e confortável de<br />
quem não vive para um alto ideal.<br />
3) Aspiração para contemplar as verdades,<br />
virtudes e perfeições divinas de<br />
um modo próprio e único, pelo qual<br />
uma alma ou um povo dará sua glória<br />
particular a Deus. Sobre este assunto,<br />
ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 54, p. 4.<br />
4) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi atingido por grave crise<br />
de diabetes em dezembro de 1967, e<br />
precisou fazer por longo tempo um<br />
rigoroso regime alimentar.<br />
13
Alain Patrick<br />
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS<br />
Luís XIV e o Sagrado<br />
Sergio Hollmann<br />
Coração de Jesus<br />
Aparição do Sagrado Coração de Jesus<br />
a Santa Margarida Maria Alacoque<br />
Catedral de Lisieux, França<br />
Gustavo Kralj<br />
Busto de<br />
Luís XIV<br />
N<br />
o prefácio de um álbum<br />
sobre Versailles, Jean<br />
d’Ormesson<br />
1 faz o seguin-<br />
te comentário:<br />
Luís XIV, precursor da<br />
Revolução Francesa<br />
Atrás da arte e da beleza de Versailles,<br />
há toda uma sociedade e toda<br />
uma política. Trata-se de desferir<br />
o último golpe contra o feudalismo,<br />
de reduzir a meros súditos os grandes<br />
senhores. De fixar as bases da burocracia<br />
monárquica, de abafar sob<br />
o brilho das festas as tentações de fazer<br />
fronda, de independência e de revolta…<br />
Por detrás da epopeia da arte<br />
clássica e da monarquia legítima, já<br />
Se o “Rei-Sol” houvesse atendido à<br />
mensagem do Sagrado Coração de Jesus,<br />
transmitida através de Santa Margarida<br />
Maria Alacoque, ele teria evitado a Revolução<br />
Francesa, e a História do mundo seria outra.<br />
se faz prenunciar a revolução burguesa<br />
que explodirá no fim do século seguinte.<br />
Quer dizer, portanto, Luís XIV<br />
foi precursor da Revolução Francesa.<br />
E é bem exatamente isso.<br />
Luís XIV em Versailles se coloca no<br />
alto de uma curva que não faz senão<br />
subir desde os primeiros capetíngios,<br />
e desta situação elevada já se percebe,<br />
numa perspectiva longínqua, os frutos<br />
do centralismo, do rebaixamento dos<br />
grandes e o reino dos escritórios instalados<br />
por Colbert…<br />
É o Estado moderno, democrático,<br />
nivelador e ditatorial.<br />
Em Versailles, entretanto, a pessoa<br />
quase sagrada do rei e sua corte bastam<br />
para obturar o horizonte…<br />
Essa é uma expressão muito interessante<br />
do d’Ormesson: “Bastam<br />
para obturar o horizonte”. Quer dizer,<br />
para tapear, para disfarçar o horizonte.<br />
Versailles é um mundo fechado dominado<br />
pelo rei. Não somente há um<br />
só Versailles, mas Versailles é o todo<br />
da França…<br />
Ou seja, a centralização absoluta.<br />
Tudo esplêndido, o palácio é magnífico,<br />
mas a autoridade do rei serve para<br />
disfarçar a autoridade dos burocratas<br />
e dos burgueses que vêm subindo.<br />
Isso é muito interessante porque<br />
se percebe uma coisa curiosa: um rei<br />
que não tivesse brilhado como Luís<br />
XIV não conseguiria disfarçar tanto<br />
a Revolução que subia, de maneira<br />
14
tal que o brilho dele serviu para tudo<br />
quanto viria depois.<br />
Recusar ou aceitar<br />
uma graça pode fazer<br />
girar a História<br />
Poder-se-ia perguntar se ele, sendo<br />
sensível ao recado de Santa Margarida<br />
Maria e atendendo ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, não teria desfeito<br />
essa trama. Então, que momento histórico<br />
extraordinário esse em que ele<br />
recebeu o recado e, talvez depois de<br />
uma curta reflexão interna, disse não.<br />
Poderia ter dito sim, e talvez estivesse<br />
a um passo de dizer sim, mas disse<br />
não. A História do mundo mudou...<br />
Ao contrário do que dizem alguns,<br />
que tudo depende do andamento<br />
da sociedade e os indivíduos<br />
influenciam pouco, etc., vemos como<br />
um ato interno de recusa ou de aceitação<br />
da graça pode girar a História<br />
do mundo. É lúgubre!<br />
Para quem conhece este assunto, isso<br />
constitui um véu de tristeza ao visi-<br />
tar Versailles, pensando que o feudalismo<br />
teve ali seus últimos estertores,<br />
que foi sepultado no meio de um mundo<br />
de festas, que os maiores nomes do<br />
feudalismo eram rebaixados a uma<br />
condição brilhantemente servil diante<br />
do rei, e que este constituía o vazio em<br />
torno de si sob o pretexto de subir sozinho.<br />
Mas ninguém sobe muito sozinho<br />
sem ter feito o vazio em torno de<br />
si. Este é um princípio que não falha.<br />
Compreende-se que ele, com sua<br />
grandeza real, brilhante, magnífica,<br />
estava fazendo os funerais da França<br />
do Ancien Régime 2 .<br />
O pior foi que isso se espalhou depois<br />
para todas as cortes do mundo.<br />
Todo rei queria ser um pequeno Luís<br />
XIV. Até mesmo no século XIX,<br />
o Rei Luís II da Baviera, meio desequilibrado,<br />
ainda construiu castelos<br />
com a ideia de ser uma espécie<br />
de Luís XIV. A figura deste monarca<br />
modelou tudo, e com isso o mundo<br />
monárquico caminhou num passo só<br />
para o mundo democrático. Mas caminhou<br />
com as próprias pernas!<br />
Se um dia nós escrevêssemos uma<br />
História do mundo, teríamos que<br />
deslocar a história da Revolução: ela<br />
não foi, sobretudo, a história dos revolucionários<br />
que se levantaram e<br />
derrubaram, mas a história dos contrarrevolucionários<br />
que estavam em<br />
cima e se jogaram para baixo. Danton,<br />
Marat, Robespierre, etc. tiveram<br />
como precursor o “Rei-Sol”.<br />
Recado de Nosso Senhor,<br />
por meio de uma freirinha<br />
Na mensagem a Santa Margarida<br />
Maria, o Sagrado Coração de Jesus<br />
se referia assim a Luís XIV: “Vá<br />
dizer ao meu amigo, o Rei da França...”<br />
A certa altura a Santa transmitia<br />
o seguinte recado ao Rei:<br />
“O Sagrado Coração de Jesus não<br />
pede senão a vossa confiança em sua<br />
bondade para vos fazer experimentar<br />
a doçura e a força de seu socorro.”<br />
A fórmula tomada assim parece<br />
dar a entender que o rei estava precisando<br />
de socorro e tinha noção dis-<br />
Gustavo Kralj<br />
Luís XIV recebe uma comitiva persa - Palácio de Versailles, França<br />
15
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS<br />
Francisco Lecaros<br />
mente vários sentidos: em primeiro<br />
lugar é que o Rei da França, por função,<br />
era amigo d’Ele. Mas tinha um<br />
significado pessoal também, quer dizer,<br />
Ele é amigo do Rei da França.<br />
Luís XIV tinha vários lados por onde<br />
ele podia ser chamado um homem<br />
que queria bem a Deus. Porque<br />
a contradição de certas almas<br />
muito chamadas é esta: têm coisas<br />
boas que conservam no meio do horror,<br />
e às vezes levam longe isto, e era<br />
o caso de Luís XIV.<br />
Ele tinha uma concubina que, ao<br />
perceber estar sendo posta de lado<br />
pelo monarca, recorreu à magia negra,<br />
mandando até celebrar missa sacrílega<br />
para conservar-se nesse estado<br />
de pecado com Luís XIV.<br />
Ao tomar conhecimento disso por<br />
meios seguros, Luís XIV teve uma<br />
espécie de náusea e de horror dela, e<br />
a ruptura se tornou definitiva.<br />
O rei, portanto, chegou ao auge<br />
da humilhação, ao perceber que<br />
a mulher com a qual ele tinha prevaricado<br />
era dessa categoria e capaz<br />
disso por ambição. Na ponta do caminho<br />
Luís XIV encontrava satanás,<br />
porque ele tinha recusado um outro<br />
caminho em cujo extremo estava<br />
o Sagrado Coração de Jesus. É uma<br />
coisa tremenda!<br />
Então, vemos nele aspectos bonitos,<br />
e depois lados horrorosos que<br />
metem medo. Também é verdade<br />
que, para a vista de um monarquista,<br />
Luís XIV é um sol que ainda não<br />
acabou de se pôr. Porque quando os<br />
povos se deslumbram com a monarquia<br />
e manifestam o desejo de que<br />
ela se restaure, é pelo anseio de ver<br />
restabelecida uma grandeza da qual<br />
o sol foi ele.<br />
Uma coisa que chama a atenção é<br />
a diferença entre a conduta da população<br />
de Paris por ocasião das guerras<br />
de religião no século XVI, e depois no<br />
fim do século XVIII e início do XIX,<br />
durante a Revolução Francesa.<br />
No tempo das guerras de religião,<br />
a população de Paris foi o grande baso,<br />
e que Nosso Senhor lhe dizia que<br />
se dirigisse a Ele, e não pedia outra<br />
coisa senão a confiança em seu Sagrado<br />
Coração, para que o monarca<br />
tivesse a experiência de sua bondade<br />
e da sua doçura. Como se afirmasse:<br />
“Eu não estou pedindo sacrifício,<br />
mas rogo esse passo delicado:<br />
que creiais na autenticidade da mensagem<br />
desta freirazinha, vinda de<br />
um convento de um lugarejo — que<br />
naquele tempo devia ser de mínima<br />
importância. Acreditai nisso e tudo<br />
correrá bem.”<br />
Entretanto, que título Nosso Senhor<br />
dava para Luís XIV acreditar<br />
nisso? Prova não saiu nenhuma, não<br />
houve milagre, não aconteceu nada.<br />
São coisas que se passaram entre<br />
Deus e Luís XIV... É possível que o<br />
monarca tenha tido antes um sonho,<br />
indicando que ele receberia uma<br />
mensagem ou qualquer coisa assim;<br />
ou que ele tenha recebido uma dessas<br />
graças interiores com as quais o<br />
Altíssimo toca as almas, por onde estas<br />
não têm dúvida nenhuma de que<br />
foi Deus Quem as tocou. Mas vejam<br />
o sacrifício para um racionalista:<br />
em certo momento Luís XIV teve<br />
que acreditar num paradoxo, numa<br />
coisa que era quase uma aberração.<br />
O maior rei da Terra receber do<br />
Sagrado Coração de Jesus um recado,<br />
por meio de uma freirinha afundada<br />
num convento ignorado, e mudar<br />
uma atitude interior diante de<br />
Nosso Senhor: acreditar num Deus<br />
que tem pena dele... Ele, o rei onipotente,<br />
que diante do Criador, não<br />
é senão uma formiga, e que precisa<br />
ser tratado com bondade, como uma<br />
criança doente é cuidada por sua<br />
mãe, e então será socorrido! Procurem<br />
colocar diante dos olhos a figura<br />
do rei com aquele estilão todo, e<br />
compreenderão o que isso representava.<br />
Mas era preciso passar por<br />
aí... Confiança, sim, mas ajoelhado<br />
e de mãos postas, confiando que seria<br />
tratado com bondade. Não é um<br />
meio colega de Deus, não; é de cabeça<br />
baixa, de chapéu no chão, pedindo<br />
perdão.<br />
Atitudes da população<br />
de Paris em face de dois<br />
lances da Revolução<br />
Quando Nosso Senhor declarou a<br />
Luís XIV “diga ao meu amigo, o Rei<br />
da França...”, isso tinha provavel-<br />
Abjuração de Henrique IV - Museu de Belas Artes, Pau, França<br />
16
A recusa de um convite<br />
Se Luís XIV tivesse aceitado o<br />
convite de Santa Margarida Maria,<br />
ele restauraria a Paris do tempo<br />
das guerras de religião; não se pode<br />
pensar numa Revolução Francesa<br />
nesse clima. Creio que essa<br />
Revolução não teria arrebentado;<br />
Gustavo Kralj<br />
Luís XIV tendo ao fundo o Palácio<br />
das Tulherias - Palácio de<br />
Versailles, França<br />
as águas correriam para outro lado,<br />
simplesmente.<br />
Em sentido contrário, a Paris da<br />
recusa dele foi a da Revolução Francesa.<br />
É uma coisa tremenda!<br />
Nessa Revolução chegaram a promover<br />
esta blasfêmia: no dia seguinte<br />
ao assassinato de Marat, os revolucionários<br />
arrancaram-lhe o coração<br />
e ergueram uma espécie de altar<br />
improvisado, onde o expuseram,<br />
tendo embaixo a seguinte frase: “Sacré<br />
coeur de Marat, priez pour nous”<br />
— sagrado coração de Marat, rogai<br />
por nós. Como a dizer “não é o Coração<br />
de Jesus que vale, é o coração<br />
de Marat”.<br />
Ora, quando consideramos a figura<br />
do Santo Sudário, vemos ali, segundo<br />
o dito de Bossuet, un Dieu<br />
brisé, rompu et immolé — um Deus<br />
ferido, quebrado e imolado —, mas<br />
com que majestade!<br />
Embora Jesus esteja deitado, tem-<br />
-se a noção do que seria Ele de pé. O<br />
luarte da Religião Católica, para<br />
impedir que Henrique IV subisse<br />
ao trono como rei oficialmente<br />
protestante. Porque o<br />
problema da guerra era te: se ele, como oficialmen-<br />
essa<br />
oposição foi muito reforçada<br />
pelas tropas que Felipe<br />
II mandou para Paris. Afinal,<br />
vendo esta ultracatolicidade da<br />
população de Paris, Henrique IV<br />
assistiu a uma Missa — se não me<br />
te protestante, poderia ser<br />
Rei da França. E os católicos<br />
sustentavam que<br />
não; e uma parte ruim<br />
da população, bem entendido,<br />
todos os protestantes<br />
também, sustentavam<br />
que podia.<br />
Paris ofereceu uma<br />
oposição invencível ao<br />
protestante Henrique IV.<br />
Aliás, é preciso dizer, es-<br />
engano em Notre-Dame ou em algum<br />
outro lugar público — para dar<br />
a entender que ele tinha se convertido.<br />
E teve esse dito cínico: “Paris<br />
bem vale uma Missa.” Daí por diante<br />
ele fingiu estar convertido, o tempo<br />
inteiro.<br />
Entretanto, no fim do século<br />
XVIII não foi propriamente a população<br />
de Paris, mas uns aventureiros<br />
com um contributo de uma parte<br />
dessa população que fizeram a Revolução<br />
Francesa. Mas o grosso da<br />
população parisiense assistiu semi-<br />
-indiferente, intimidada e desagradada<br />
a tudo isso até o fim.<br />
Como é que Paris mudou tão<br />
enormemente?<br />
busto ereto, o Corpo perfeito, o peito<br />
largo e o tronco que à medida<br />
que se aproxima dos quadris se<br />
torna mais estreito; a proporção<br />
perfeita entre a cabeça,<br />
os ombros e o tronco. Um<br />
aspecto que, para mim, menta a majestade d’Ele<br />
ausido<br />
deformado pelas pancadas,<br />
reflete ainda uma lógica,<br />
uma coerência que chega<br />
até o último extremo. Toda<br />
a fisionomia d’Ele é lógica, coerente<br />
e, é preciso dizer, de uma<br />
severidade extraordinária!<br />
é o tamanho da cabeça.<br />
Por constituir exatamente<br />
a parte mais nobre, o fato<br />
de ser, a meu ver, quase<br />
um pouco grande para<br />
o conjunto, ainda é uma<br />
excelência na majestade e<br />
na nobreza.<br />
O nariz, apesar de ter<br />
Aquela boca que emitiu tantos ensinamentos,<br />
disse palavras tão carinhosas<br />
a Nossa Senhora, proferiu<br />
orações tão inexprimivelmente magníficas,<br />
não é verdade que, no Santo<br />
Sudário, essa boca parece estar fazendo<br />
uma censura? Esses olhos fechados<br />
estão ou não estão fitando a<br />
cada um de nós? É uma coisa evidente!<br />
É a majestade do Redentor que,<br />
através da face do Homem-Deus, julga<br />
quem está olhando e convida ao<br />
pedido de perdão e à penitência.<br />
Pois bem, atrás desse peito pulsou<br />
um Coração Divino que seria revelado<br />
depois aos homens como símbolo<br />
do amor e da mentalidade d’Ele, e<br />
que fez a Luís XIV o convite que nós<br />
conhecemos...<br />
❖<br />
(Extraído de conferência de<br />
13/8/1991)<br />
1) Jornalista e literato francês.<br />
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema<br />
social e político aristocrático em vigor<br />
na França entre os séculos XVI<br />
e XVIII.<br />
17
DE MARIA NUNQUAM SATIS<br />
Rainha e Mãe<br />
de misericórdia<br />
As primeiras palavras da Salve-Rainha<br />
inspiram a quem as recita a plena<br />
confiança de que será atendido,<br />
apesar de suas misérias.<br />
Lucio Cesar Rodrigues Alves<br />
Maria, Sede da Sabedoria<br />
(acervo particular)<br />
ediram-me para fazer o comentário<br />
da Salve-Rainha.<br />
PDevido ao pouco tempo de<br />
que disponho, vou comentar apenas<br />
as primeiras palavras desta bela oração:<br />
“Salve Rainha, Mãe de misericórdia...”<br />
Rainha que tudo<br />
tem e tudo pode<br />
Salve, em latim, é uma saudação,<br />
e passou assim para o português. Os<br />
latinos costumavam dizer salve como<br />
saudação, sem nenhum nexo e sentido<br />
com a ideia da salvação, “salvai-<br />
-me”. Não é isso, é uma mera saudação.<br />
Então, “eu Vos saúdo”.<br />
Agora vem outro ponto: “...Rainha,<br />
Mãe de misericórdia.”<br />
Vemos aqui uma harmonia muito<br />
bonita. O autor da oração coloca antes<br />
de tudo o título d’Ela de Rainha.<br />
Nossa Senhora é Rainha? Evidentemente,<br />
Ela o é, pois é a Mãe<br />
do Rei, e um Rei que<br />
faz tudo quanto Ela<br />
deseja.<br />
Maria Santíssima é chamada a<br />
Onipotência Suplicante. Ela, de Si, é<br />
uma criatura humana como nós, mas<br />
a súplica feita por Ela é onipotente,<br />
porque pode tudo diante de Deus.<br />
Assim, também enquanto suplicante,<br />
Maria é Rainha, porque Aquela<br />
que pode tudo é Rainha. Então,<br />
vem desde logo uma ideia posta ao alcance<br />
do fiel: Aquela a quem ele vai<br />
se dirigir é uma rainha; logo, Ela tem<br />
e pode tudo.<br />
A rainha e o rei são de uma riqueza<br />
enorme. Normalmente são<br />
as pessoas mais ricas do reino, que<br />
dispõem da maior soma de poderes,<br />
honrarias e riquezas de toda<br />
ordem. Ela é a Rainha, quer dizer,<br />
tudo quanto Lhe peçamos Ela pode<br />
dar.<br />
Ademais, Deus, que é o Filho<br />
d’Ela, concede tudo quanto sua Mãe<br />
insondavelmente perfeita Lhe pede.<br />
O resultado é que, quando pedimos<br />
alguma coisa a Ela, temos a certeza<br />
de que Ela pode dar, porque Ela<br />
tem. Isso nos leva a nos encher de<br />
confiança no nosso pedido.<br />
18
Não há carinho<br />
como o materno<br />
Mas vem logo depois: “Mãe de<br />
misericórdia.”<br />
Mãe já traz consigo a ideia de misericórdia,<br />
porque o mais misericordioso<br />
e compassivo dos entes, numa<br />
época em que a instituição da família<br />
funcione normalmente, é a mãe.<br />
Mesmo o pai pode ser muito bom e<br />
seu afeto é indispensável para completar<br />
a educação do filho. Mas o carinho<br />
é com a mãe.<br />
Lembro-me de ter assistido, certa<br />
vez, a uma cena minúscula em casa,<br />
entre meu pai e minha mãe.<br />
Eu costumava, naquele tempo,<br />
sair logo depois do almoço para<br />
meu escritório de advocacia. Minha<br />
mãe me acompanhava até a porta<br />
do elevador, junto à qual tem uma<br />
escada. Às vezes eu estava com muita<br />
pressa e me impacientava com a<br />
lentidão do elevador, e descia a escada<br />
a toda pressa. Lembro-me de<br />
que, enquanto eu descia, ouvia minha<br />
mãe dizer: “Filhão, cuidado<br />
com o corre-corre.” Era um último<br />
sinal de carinho.<br />
Mas um dia desci muito precipitadamente<br />
e esqueci um objeto em casa.<br />
Chegando na rua, senti falta do<br />
objeto e voltei para apanhá-lo. Passei<br />
ao lado de uma pequena sala de<br />
estar onde ela e meu pai costumavam<br />
ficar durante o dia. Estavam<br />
conversando, certos de que eu tinha<br />
ido embora.<br />
Meu pai estava sentando numa<br />
poltrona e minha mãe, em pé junto<br />
a ele, dizia:<br />
— João Paulo, hoje para o jantar<br />
eu mandei fazer tal prato. Você acha<br />
que o <strong>Plinio</strong> ficará satisfeito ou seria<br />
melhor preparar outra coisa?<br />
Não parei para olhar, mas tive a<br />
impressão de que meu pai estava louco<br />
para tirar uma sesta, e respondeu<br />
negligentemente que estava bem.<br />
Não satisfeita com a resposta, ela<br />
acrescentou:<br />
— Não, mas quem sabe se fizer de<br />
tal outro jeito seria melhor.<br />
— Também está bem — respondeu<br />
ele.<br />
Como ele estava querendo dormir<br />
e ela continuava a insistir, ele disse:<br />
— Bem se vê que mãe é mãe. Se<br />
fosse comigo eu diria: “Rapaz, tem<br />
aqui para jantar tal coisa, se você<br />
não quiser, vá jantar num restaurante.”<br />
Ora, mamãe queria exatamente<br />
evitar que eu fosse para o restaurante,<br />
pelo gosto de estar e conversar<br />
comigo. É o carinho da mãe que<br />
é todo especial, único.<br />
Mãe toda feita de<br />
misericórdia<br />
Entretanto, não contente com esta<br />
ideia, o autor da Salve-Rainha<br />
pôs: “Mãe de misericórdia.” É uma<br />
Mãe toda feita de misericórdia.<br />
Apartamento de Dona Lucilia<br />
O que quer dizer “misericórdia”?<br />
Cordis, em latim, é o coração. Miseri,<br />
os miseráveis. Portanto, para com os<br />
miseráveis Ela é “toda coração”. Os<br />
miseráveis são aqueles que não têm<br />
do que viver, estão na miséria. Porém,<br />
moralmente falando, são os pecadores<br />
que ofenderam muitas vezes<br />
a Nossa Senhora e deram a Ela razão<br />
para estar descontente. Se esses pecadores<br />
se voltarem e rezarem para Ela,<br />
encontrarão n’Ela uma Mãe de misericórdia<br />
toda disposta a atender.<br />
Então, está tudo reunido para inspirar<br />
a maior confiança: Ela é uma rainha<br />
que tem tudo e pode tudo; é Mãe<br />
de misericórdia, “toda coração”, inclusive<br />
para os filhos mais miseráveis.<br />
Quem pode deixar de ter toda a<br />
confiança na bondade d’Ela em que<br />
será atendido, quando faz esta oração?<br />
❖<br />
(Extraído de conferência de<br />
5/3/1992)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
19
Timothy Ring<br />
CALENDÁRIO DOS SANTOS ––––––<br />
Beato Henrique José Krzysztofik,<br />
presbítero e mártir (†1942). Capuchinho<br />
do convento de Lublin, Polônia,<br />
deportado ao campo de concentração<br />
de Dachau, Alemanha, onde morreu.<br />
5. Dedicação da Basílica de Santa<br />
Maria Maior.<br />
Santa Margarida de Cesolo, viúva<br />
(†c. 1395). Filha de camponeses de<br />
Cesolo, Itália. Após a morte do marido,<br />
dedicou toda sua vida ao serviço<br />
dos pobres, à oração e à penitência.<br />
6. Transfiguração do Senhor.<br />
Beato Otaviano, bispo (†1132).<br />
Monge beneditino, irmão do Papa<br />
Calisto II, eleito Bispo de Savona.<br />
10. São Lourenço, diácono e mártir<br />
(†258).<br />
Beatos Cláudio José Jouffret de<br />
Bonnefont, Francisco François e<br />
Lázaro Tiersot, presbíteros e mártires<br />
(†1794). Sacerdotes que morreram<br />
presos num sórdido navio junto<br />
a Rochefort, durante a Revolução<br />
Francesa.<br />
11. Santa Clara de Assis, virgem<br />
(†1253).<br />
Beato Maurício Tornay, presbítero e<br />
mártir (†1949). Nascido na Suíça, anunciou<br />
o Evangelho na China e no Tibete,<br />
onde foi assassinado numa emboscada.<br />
12. Santa Joana Francisca de<br />
Chantal, religiosa (†1641).<br />
Santos Tiago Do Mai Nam, presbítero,<br />
Antônio Pedro Nguyen Dich e<br />
Miguel Nguyen, mártires (†1838). Sacerdote,<br />
camponês e médico decapitados<br />
em Nam Ðinh, Vietnã, após sofrer<br />
atrozes suplícios.<br />
São Pedro Julião Eymard<br />
1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />
bispo e Doutor da Igreja (†1787).<br />
Santo Etelvoldo, bispo (†984). Discípulo<br />
de São Dustão da Cantuária e Bispo<br />
de Winchester, compilou a “Concórdia<br />
Regular para restauração da observância<br />
monástica na Inglaterra”.<br />
2. Santo Eusébio de Vercelli, bispo<br />
(†371).<br />
São Pedro Julião Eymard, presbítero<br />
(†1868).<br />
Santo Estêvão I, Papa (†257). Para<br />
afirmar com clareza que a união batismal<br />
com Cristo acontece uma só<br />
vez, proibiu que aqueles que quisessem<br />
voltar à plena comunhão com a<br />
Igreja recebessem o Sacramento pela<br />
segunda vez.<br />
3. Santo Eufrônio, bispo (†475).<br />
Edificou em Autun, França, uma basílica<br />
em honra do mártir São Sinforiano<br />
e adornou com maior decoro o sepulcro<br />
de São Martinho de Tours.<br />
4. São João Maria Vianney, presbítero<br />
(†1859).<br />
7. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />
São Sisto II, Papa, e companheiros,<br />
mártires (†258).<br />
São Caetano de Tiene, presbítero<br />
(†1547).<br />
8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />
(†1<strong>221</strong>).<br />
Santa Bonifácia Rodríguez Castro,<br />
virgem (†1905). Fundou em Zamora,<br />
Espanha, a Congregação das<br />
Servas de São José.<br />
9. Santa Teresa Benedita da Cruz,<br />
virgem e mártir (†1942).<br />
Santa Mariana Cope, virgem<br />
(†1918). Alemã de nascimento, ingressou<br />
na Ordem Terceira Regular<br />
de São Francisco nos Estados Unidos.<br />
Sucedeu São Damião de Veuster no<br />
cuidado dos leprosos na ilha de Molokai,<br />
Havaí.<br />
13. Santos Ponciano, Papa, e Hipólito,<br />
presbítero, mártires (†c. 236).<br />
São José de Calasanz<br />
Francisco Lecaros<br />
20
––––––––––––––––– * AGOSTO * ––––<br />
São João Berchmans, religioso<br />
(†1621). Irmão jesuíta falecido em<br />
Roma, aos 22 anos, depois de uma<br />
breve enfermidade.<br />
Francisco Lecaros<br />
nascida na Guatemala, foi reformadora<br />
da ordem e fundadora de vários<br />
colégios em Guatemala, Costa Rica,<br />
Colômbia e Equador, onde faleceu.<br />
14. XX Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
São Maximiliano Maria Kolbe,<br />
presbítero e mártir (†1941).<br />
Beata Isabel Renzi, virgem<br />
(†1859). Fundadora das Mestras<br />
Pias da Virgem Dolorosa.<br />
15. Solenidade da Assunção de<br />
Nossa Senhora (no Brasil, transferida<br />
para domingo, dia 21).<br />
Santo Estanislau Kostka, religioso<br />
(†1568). Nascido na Polônia, fugiu<br />
de casa enfrentando a oposição<br />
paterna à sua vocação e ingressou no<br />
noviciado da Companhia de Jesus em<br />
Roma. Morreu aos 18 anos.<br />
16. Santo Estêvão da Hungria, rei<br />
(1038).<br />
Santa Rosa Fan Hui, virgem e<br />
mártir (†1900). Na perseguição dos<br />
boxers, na China, sofreu inúmeras<br />
torturas, sendo finalmente lançada a<br />
um rio ainda com vida.<br />
17. Santa Clara da Cruz de Montefalco,<br />
virgem (†1308). Ver página 2.<br />
18. Santa Helena, rainha (†c. 329).<br />
Mãe do imperador Constantino, é<br />
atribuído a ela o descobrimento da<br />
verdadeira Cruz de Nosso Senhor.<br />
19. São João Eudes, presbítero<br />
(†1680).<br />
Santo Ezequiel Moreno Díaz, bispo<br />
(†1906). Ver página 26.<br />
Santa Joana Francisca<br />
de Chantal<br />
20. São Bernardo de Claraval, abade<br />
e Doutor da Igreja (†1153).<br />
Santa Maria Mattias, virgem<br />
(†1866). Discípula de São Gaspar de<br />
Búffalo, fundou em Roma a Congregação<br />
das Irmãs Adoradoras do Preciosíssimo<br />
Sangue de Cristo.<br />
21. Solenidade da Assunção de Nossa<br />
Senhora (transferida do dia 15).<br />
São Pio X, Papa (†1914).<br />
Beato Bruno Zembol, religioso e<br />
mártir (†1942). Franciscano polonês<br />
deportado ao campo de concentração<br />
de Dachau, Alemanha, onde morreu.<br />
22. Nossa Senhora Rainha.<br />
São Felipe Benizi, presbítero<br />
(†1285). Religioso Servita, considerava<br />
Cristo Crucificado como sua única<br />
fonte de ensino.<br />
23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />
(†1617).<br />
Santos Cláudio, Astério e Neón,<br />
mártires (†303). Irmãos acusados<br />
pela madrasta de ser cristãos, foram,<br />
segundo consta, decapitados no tempo<br />
do imperador Diocleciano.<br />
24. São Bartolomeu, Apóstolo.<br />
Beata Maria da Encarnação Rosal,<br />
virgem (†1886). Irmã Belemita<br />
25. São Luís, Rei de França<br />
(†1270).<br />
São José de Calasanz, presbítero<br />
(†1648).<br />
26. Beata Maria de Jesus<br />
Crucificado Baouardy, virgem<br />
(†1878). Nascida na Galileia e<br />
educada na França, ingressou nas<br />
Carmelitas Descalças e fundou<br />
conventos dessa ordem em Mangalore<br />
(Índia) e Belém (Palestina).<br />
27. Santa Mônica (†387).<br />
Santo Amadeu, Bispo (†1159).<br />
Abade do mosteiro cisterciense de<br />
Hautecombe, França, eleito Bispo de<br />
Lausanne, Suíça.<br />
28. XXII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†430).<br />
Santa Florentina, virgem (†séc.<br />
VII). Irmã dos Santos Leandro, Fulgêncio<br />
e Isidoro de Sevilha.<br />
29. Martírio de São João Batista.<br />
Beato Edmundo Inácio Rice, fundador<br />
(†1844). Fundou em Waterford, Irlanda,<br />
a Congregação dos Irmãos Cristãos<br />
e a dos Irmãos da Apresentação.<br />
30. Beato Alfredo Ildefonso Schuster,<br />
bispo (†1954). Monge beneditino,<br />
foi abade de São Paulo Extramuros<br />
de Roma e, mais tarde, Arcebispo<br />
de Milão.<br />
31. Santos José de Arimateia e Nicodemos<br />
(†séc. I). Recolheram o<br />
Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
ao ser descido da Cruz e o depositaram<br />
no Sepulcro.<br />
21
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
Autenticidade<br />
e senso psicológico<br />
Todo ser humano tem certa noção a respeito de si<br />
mesmo, porém muitas vezes procura aparentar aquilo<br />
que não é, tornando-se uma pessoa inautêntica. Pelo<br />
contrário, aquele que se apresenta com autenticidade<br />
tem o verdadeiro sentido da vida e adquire um<br />
aguçado senso psicológico.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
V<br />
ou tratar a respeito do senso<br />
psicológico e do modo<br />
pelo qual os homens se conhecem<br />
uns aos outros.<br />
Saber apreciar<br />
aquilo que se é<br />
Cada homem tem uma ideia de<br />
como ele quereria ser. Tanto isso<br />
é assim que o homem se arranja,<br />
se apresenta e se modela de acordo<br />
com aquilo que ele desejaria ser. Em<br />
geral todo homem corresponde a um<br />
composto entre o que ele gostaria de<br />
ser e o que ele consegue ser.<br />
Poderíamos, naturalmente, fazer<br />
uma pergunta que não deixa de ser<br />
incômoda e até desagradável, mas<br />
cheia de consequências.<br />
Cada pessoa escolheu bem aquilo<br />
que quereria ser ou escolheu errado?<br />
Mas a pergunta é muito incômoda,<br />
porque cada um de nós tem no<br />
fundo da alma certa noção, por vezes<br />
vaidosa, da própria grandeza. É<br />
uma grande coisa ser homem, e o último<br />
dos homens é uma grande coisa.<br />
A questão é que as pessoas não<br />
sabem apreciar bem isso.<br />
Outro dia veio-me ao espírito a<br />
seguinte reflexão enquanto lavava<br />
o rosto, pela manhã. Fora, as andorinhas<br />
estavam fazendo um enorme<br />
barulho, numa manhã bonita, e,<br />
ouvindo-as pipilarem, naturalmente<br />
achei aquilo alegre, inocente, interessante,<br />
agradou-me deitar atenção<br />
naquilo e me fiz uma pergunta:<br />
Qual é a razão da alegria desses<br />
bichinhos? Eles são irracionais e não<br />
entendem, portanto, que eles valem<br />
alguma coisa. Mas Deus pôs neles<br />
uma alegria extraordinária de serem<br />
andorinhas; de onde estão rachando<br />
de alegria e cantando por aí a satisfação<br />
e gozando a vida de serem andorinhas.<br />
Ora, o que significa ser andorinha<br />
e Deus ter posto nelas tanta alegria<br />
em ser andorinhas?<br />
A andorinha é, debaixo de certo<br />
ponto de vista — e o importante está<br />
em que não é debaixo de todo ponto<br />
de vista —, uma joia de vivacidade.<br />
Eu não diria que são joias de be-<br />
Luiz Gustavo Leme (CC3.0)<br />
22
<strong>Dr</strong>. Raju Kasambe (CC3.0)<br />
Derek Keats (CC3.0)<br />
Bernard DUPONT (CC3.0)<br />
Derek Keats (CC3.0)<br />
As andorinhas são,<br />
debaixo de certo<br />
ponto de vista, joias<br />
de vivacidade..., e<br />
têm uma coisa em<br />
que talvez sejam<br />
únicas, que é uma<br />
forma de vitalidade<br />
encantadora.<br />
leza. Não são como os colibris, por<br />
exemplo. Mas são joias de vivacidade,<br />
e têm uma coisa em que talvez<br />
sejam únicas, que é uma forma de<br />
vitalidade encantadora. Elas se inebriam<br />
com sua própria vida e esvoaçam<br />
de um lado para outro vivendo,<br />
vivendo...<br />
Se uma andorinha pensasse, não<br />
passaria pela cabeça dela ter triste-<br />
za por não ser<br />
beija-flor. Ele<br />
é muito bonito,<br />
mas a andorinha<br />
pensaria<br />
o seguinte:<br />
“Esta vida<br />
que eu tenho,<br />
o beija-flor<br />
não<br />
tem. Ele não<br />
é um bicho<br />
alegre como<br />
eu. Ele vive,<br />
é bem-<br />
-humorado,<br />
mas não estoura<br />
de alegria. O beija-flor esvoaça<br />
à procura de algo; eu, andorinha,<br />
esvoaço na alegria de ser eu mesma!<br />
Alegria de desdobrar minhas asas<br />
ao Sol, de sentir o vento que penetra<br />
por minhas plumagens a dentro,<br />
de me sentir carregada pelo vento e,<br />
em determinado momento, o vento<br />
se divorcia de mim e eu continuo a<br />
voar sem ele. Eu sou a andorinha, e<br />
fico contente de ser andorinha!”<br />
E eu refletia: Que lição Deus quis<br />
dar ao homem fazendo assim as andorinhas?<br />
Porque Ele teve uma intenção.<br />
Tudo foi criado para nós e,<br />
portanto, também para mim <strong>Plinio</strong>,<br />
que estou lavando o rosto e ouvindo<br />
as andorinhas. À medida em que<br />
ouço esse pipilar que me alegra no<br />
meio de mil aborrecimentos e preocupações,<br />
Deus me dá uma mensagem<br />
por meio desses pássaros. Qual?<br />
É que eu, a fortiori, deveria ter a<br />
alegria de ser homem. Como um homem<br />
é mais do que uma andorinha,<br />
como é um colosso o homem em<br />
comparação com uma andorinha!<br />
Ele é um animal racional, tem a natureza<br />
que o próprio Cristo assumiu<br />
quando Se encarnou. Ele é o confim<br />
entre o mundo angélico e o mundo<br />
material; é ele quem reúne e sintetiza<br />
esses dois mundos.<br />
Ainda que eu fosse o mais coitado<br />
de todos os homens, eu sou homem,<br />
e me vem daí uma alegria. Não estou<br />
cantando nem pipilando, mas estou<br />
fazendo uma coisa tão mais alta: estou<br />
pensando na andorinha e subindo<br />
até Deus!<br />
Esta é uma meditação simples<br />
que um professor primário poderia<br />
contar na sua escola e os alunos entenderiam.<br />
Portanto, está ao alcance<br />
de uma alma que seja contemplativa<br />
e goste das grandes verdades eternas<br />
— sutis, complexas ou simples — e<br />
que se embeba delas.<br />
E eu continuava a pensar com os<br />
meus botões...<br />
Derek Keats (CC3.0)<br />
23
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
AngMoKio (CC3.0)<br />
Isso tem uma profunda lição: o<br />
homem deve estar alegre por ser o<br />
que é e não procurar ser mais do que<br />
isso. Quando ele procura ser mais do<br />
que é, faz o papel da andorinha que<br />
quisesse imitar o beija-flor. Seria o<br />
mais infeliz dos pássaros. Seja andorinha<br />
e encha os espaços com seu<br />
cântico de alegria! Voe aos bandos e<br />
dê gloria a Deus fazendo os homens<br />
pensarem como é bom ter sido criado<br />
por Ele, ainda que fosse apenas<br />
para ser andorinha!<br />
No gênero humano, talvez eu não<br />
seja senão o que é uma andorinha<br />
entre os pássaros. Está bem, que colosso<br />
ser uma “andorinha”! Que colosso<br />
é uma criatura, principalmente<br />
uma criatura inteligente, racional.<br />
Mito difundido pelo<br />
igualitarismo<br />
Em função disso é que o homem<br />
deve procurar o que ele deve<br />
ser, deixando completa e definitivamente<br />
a ideia<br />
de ser beija-flor,<br />
ou águia, e não se<br />
permitir a pergunta<br />
maldita: “O que<br />
eu, na minha inveja,<br />
gostaria de<br />
ser?” Porque é<br />
uma fonte de desdita<br />
a vida inteira.<br />
Se eu quisesse<br />
dar a alguém um<br />
conselho para se<br />
tornar infeliz, eu<br />
diria: “Procure ser<br />
aquilo para o que<br />
não tem aptidão.”<br />
A pessoa deve<br />
fazer uma outra<br />
pergunta, honestamente:<br />
Com<br />
o que eu tenho e<br />
sou, e com o que<br />
não tenho e não<br />
sou, para o que eu<br />
dou? Não quero<br />
ser mais do que este ou menos do que<br />
aquele; quero ser inteiramente eu. O<br />
que não for isso não dá em nada.<br />
Quando se tem isso na cabeça, entra<br />
na alma um oceano de paz.<br />
Se formos procurar as pessoas<br />
que pensam assim, não sei se o número<br />
seria suficiente para se contar<br />
em todos os dedos da mão, porque<br />
o igualitarismo faz um mito diferente.<br />
O sujeito sente que nasceu para<br />
uma grande coisa — e isto é verdade,<br />
pois todos nós nascemos para<br />
uma grande coisa —, mas ao invés<br />
de procurar realizar essa apetência<br />
de grandeza sendo inteiramente ele<br />
mesmo, procura realizá-la de outra<br />
maneira:<br />
“Se eu nasci para uma grande coisa,<br />
nasci para me fazer admirar pelos<br />
outros. Logo, o que devo adquirir,<br />
ou fingir que adquiri, para conseguir<br />
admiração? Com isso vou fabricar<br />
o personagem que vou ostentar<br />
para os outros. É aquilo que eu<br />
quereria ser, misturado com aquilo<br />
que consigo ser — e que é apenas<br />
um fragmento do que eu quereria —<br />
mais aquilo que eu consigo fingir para<br />
os outros que eu sou.”<br />
São três elementos que formam<br />
personagens postiços, infelizes e irreais.<br />
Se nos lembrássemos sempre disso<br />
não teríamos medo do desprezo dos<br />
outros. Uma andorinha não teme o<br />
desprezo da águia. A águia pode representar<br />
o poder, ela representa outra<br />
coisa tão magnífica: é a excelência<br />
de viver. Não precisa mais nada.<br />
A águia pode<br />
representar o<br />
poder, a andorinha<br />
representa outra<br />
coisa tão magnífica:<br />
é a excelência de<br />
viver. Não precisa<br />
mais nada.<br />
Manifestar a posição<br />
autêntica diante dos outros<br />
Cada um de nós deveria, para realizar<br />
isso, ter bem presentes, e tornar<br />
manifestos os nossos defeitos e lacunas.<br />
Assim, quando não se tem jeito<br />
para determinada coisa, dizer logo:<br />
“Eu não tenho jeito para tal coisa<br />
assim, não sei fazê-la. O senhor<br />
quer fazer o favor de me ajudar, porque<br />
eu não sei.” É o único jeito, ainda<br />
que fosse por tática política, seria<br />
um bom negócio. Porque o único<br />
jeito que temos para os outros reconhecerem<br />
o que somos é reconhecermos<br />
o que não somos.<br />
24
Aí sim ficamos situados em face<br />
dos outros numa posição autêntica.<br />
Não é um palhaço, um ator que está<br />
aparecendo diante dos outros. Portanto,<br />
não devo ter medo de que me<br />
examinem, porque não vão encontrar<br />
senão o que eu mostro. E eu vivo<br />
às claras com tranquilidade, com<br />
a santa inocência, a santa liberdade<br />
dos filhos de Deus.<br />
Se sou isso, pode me medir quantas<br />
vezes for que não me mostrarei a<br />
não ser assim. Mas também, se sou<br />
assim, posso tapear como quiser, haverá<br />
sempre um esperto que diga:<br />
“Olha, ele não é tanto”. Logo, não é<br />
melhor eu me pôr como sou, francamente,<br />
sem tapeação?<br />
Então, a partir daí adquirimos o<br />
senso psicológico. Porque se um de<br />
nós se apresenta autenticamente como<br />
é, os outros deixam escapar a sua<br />
psicologia diante de nós. O mérito<br />
de quem não mente é de tomar uma<br />
tal atitude que o mentiroso começa a<br />
parecer escuro diante dele. O mérito<br />
do homem autêntico é a insegurança<br />
dos inautênticos perante ele.<br />
Ademais, o homem assim vê claro<br />
dentro de si, não mente para si mesmo<br />
e conhece a sua própria psicologia,<br />
pois é transparente aos seus próprios<br />
olhos. E, por analogia, ele pega<br />
melhor a psicologia dos outros. Saímos<br />
do mundo da mentira e ficamos<br />
com os olhos mais claros para ver o<br />
mundo da mentira e depois a realidade<br />
dos outros diante daquilo.<br />
Alguém poderá objetar:<br />
“Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, isto é bonito dizer.<br />
Mas se o senhor me manda para<br />
uma missão que supõe que eu me<br />
imponha por minha simpatia ou por<br />
minha capacidade, ou por essa ou<br />
aquela qualidade, do que adianta esta<br />
autenticidade recomendada pelo<br />
senhor? Não é uma contradição?<br />
Eu digo: “Não. Você foi mandado<br />
por mim provavelmente por que<br />
está apto para fazer aquilo. Estude<br />
que recursos você tem e faça o penoso<br />
esforço de melhorar esses recursos<br />
para ser o que deve. Você deve<br />
ser aquilo até onde o seu esforço pode<br />
levá-lo. E seu plano para o futuro<br />
é chegar ao extremo de seu limite.<br />
Ponha-se nisso e, tenha o que tiver,<br />
seja o que for, eu o reverencio.<br />
Se você não for assim, eu o menoscabo,<br />
pois para mim você é um inautêntico.<br />
E quando você vem falar comigo,<br />
pode ser que por bondade eu<br />
lhe trate muito bem, mas estarei vendo<br />
bem aonde é que você vai…”<br />
O grande duelo<br />
entre as almas<br />
Aí se põe uma consequência:<br />
Quando nós somos autênticos, os<br />
outros começam a jogar conosco um<br />
jogo diferente do que jogam entre si.<br />
Qual é o jogo?<br />
Quando o inautêntico trata com<br />
o autêntico ele se sente adivinhado.<br />
Em parte, ele confia, pois sabe que<br />
o autêntico não vai lesá-lo, porém<br />
não quer ser decifrado. E ele percebe<br />
que o autêntico o decifra. Tudo<br />
Cláudio Dias Timm (CC3.0)<br />
quanto o autêntico vê nele, o inautêntico<br />
sente como uma injúria e fica<br />
um poço de ressentimento em relação<br />
ao autêntico. Porque o autêntico<br />
vê no inautêntico o seu próximo,<br />
mas este vê naquele o seu juiz. Ele<br />
nota que as coisas que ele não quer<br />
reconhecer para si, o autêntico olha<br />
e vê. E mesmo quando o autêntico<br />
não vê, faz o inautêntico ver.<br />
A pessoa se transforma, assim, no<br />
exame de consciência dos outros.<br />
É compreensível que as outras<br />
pessoas não gostem e que tenhamos<br />
de arcar com muitas antipatias por<br />
causa disso. Entretanto, gostem ou<br />
não gostem, a verdade é que o que<br />
governa a Terra, o que se mexe nos<br />
homens até às entranhas, não é a tapeação,<br />
mas a verdade. O grande<br />
duelo do mundo não é o duelo dos<br />
interesses, é o duelo entre os autênticos<br />
e os inautênticos, entre os filhos<br />
da luz e os filhos das trevas. ❖<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/7/1983)<br />
Cláudio Dias Timm (CC3.0)<br />
25
HAGIOGRAFIA<br />
O maravilhoso na<br />
vida de Santa Clara<br />
de Montefalco<br />
Francisco Lecaros<br />
V<br />
Muito maiores que as belezas do<br />
universo material são aquelas existentes<br />
nas almas dos Santos. A vida de Santa<br />
Clara de Montefalco está repleta de<br />
maravilhas. De tal modo ela amou a<br />
Cruz do Redentor que, após sua morte,<br />
em seu coração foram encontrados<br />
símbolos de instrumentos usados na<br />
Paixão de Nosso Senhor: cravos, coroa de<br />
espinhos, lança, açoite, esponja, coluna;<br />
e até mesmo três pequenas esferas<br />
representando a Santíssima Trindade.<br />
amos considerar uma ficha<br />
a respeito da vida de Santa<br />
Clara de Montefalco.<br />
Admirável virgindade<br />
Santa Clara de Montefalco nasceu<br />
no ano de 1268 em Montefalco, cidade<br />
da Úmbria, na Itália, e morreu em<br />
1308. Ela conservou, durante toda sua<br />
vida, um grande ardor na oração. Na<br />
idade de cinco anos, compreendendo<br />
os perigos da vida no mundo, ela pediu<br />
a sua irmã, Joana, para admiti-la<br />
na pequena comunidade que essa ir-<br />
mã Joana dirigia, e que seguia as regras<br />
da Ordem Terceira de São Francisco.<br />
E a irmã só atendeu a esses pedidos<br />
ao cabo de um ano.<br />
Uma vez, na idade de nove anos, ela<br />
deixou, ao dormir, seu pequeno pé nu<br />
sair da cama. A sua irmã Joana, que<br />
observou, a repreendeu, e lhe disse que<br />
isso não era conveniente a uma virgem.<br />
A pequena Clara teve tanto pesar que,<br />
depois disso, ela sempre envolvia muito<br />
estreitamente seus pés, antes de dormir.<br />
Mais tarde, ela não permitiu nem<br />
sequer às religiosas de tocá-la com a<br />
mão. Ela recomendava às suas filhas<br />
26<br />
Santa Clara de Montefalco - Igreja de<br />
Corpus Christi, Granada, Espanha
nunca descobrir seu próprio corpo,<br />
mesmo na obscuridade. Ela observava<br />
isso tão estritamente para si mesma,<br />
que nunca quis mostrar ao médico nenhuma<br />
parte de seu corpo sem um véu.<br />
Ela dizia também que as virgens<br />
não devem ter familiaridade nem com<br />
homens, nem com mulheres casadas,<br />
porque essa integridade perfeita dá a<br />
imortalidade ao corpo, que embalsamado<br />
pela flor da virgindade é preservado,<br />
assim, de toda corrupção.<br />
Com a morte de sua irmã, Joana,<br />
ela foi eleita abadessa, e preencheu esse<br />
cargo com tanta prudência que jamais<br />
o demônio pôde alcançar êxito<br />
em enganá-la, por qualquer artifício<br />
que fosse. Como ele tinha observado<br />
que ela era muito assídua na contemplação<br />
da Paixão de Jesus Cristo, apareceu-lhe<br />
uma vez sob a forma de um<br />
crucifixo, com o corpo completamente<br />
descoberto a fim de despertar nela, por<br />
essa via, pensamentos ignóbeis. Mas a<br />
virgem reconheceu a arma escondida<br />
do adversário e deu risada. O demônio,<br />
furioso, desapareceu.<br />
Deus lhe deu uma tal inteligência<br />
das coisas divinas que ela ousou<br />
combater uma heresia de seu tempo,<br />
participando de discussões, onde ela<br />
convenceu publicamente um de seus<br />
adeptos de mentira e de dissimulação.<br />
Ela conhecia o pensamento oculto<br />
das pessoas e, por vezes, tinha o dom<br />
de profecia.<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, Ele mesmo,<br />
veio uma vez lhe dar a Comunhão.<br />
Após a morte, seu corpo<br />
permaneceu incorrupto<br />
Ela teve, certo dia, um ligeiro movimento<br />
de impaciência em relação<br />
a uma irmã, que lhe assegurava que,<br />
apesar de seus esforços, não encontrava<br />
nenhuma suavidade na oração.<br />
Não foi necessário mais do que isso<br />
para que ela fosse imediatamente<br />
privada, ela mesma, de toda consolação,<br />
acabrunhada de penas interiores.<br />
A noite de alma em que ela<br />
Santuário de Santa Clara, Montefalco, Itália<br />
foi mergulhada não durou uma semana,<br />
nem um mês, mas onze anos inteiros.<br />
Depois dessa noite espiritual,<br />
o Divino Sol inundou sua alma com<br />
sua imortal claridade, e ela se viu elevada<br />
por uma concatenação de êxtases,<br />
parecendo pertencer mais ao Céu<br />
do que à Terra. Nesse estado ela ouvia<br />
o concerto dos Anjos, via o Menino<br />
Jesus na manjedoura do pobre estábulo<br />
de Belém, os Magos ajoelhados<br />
para adorar o Menino Jesus.<br />
Certo dia, ela ouviu essas palavras<br />
dos lábios de Nosso Senhor:<br />
— Venha Clara, venha! Tua vinda<br />
me será agradável.<br />
— Senhor — respondeu ela — eu desejaria<br />
me dissolver para me unir a Vós.<br />
— É preciso esperar mais um pouco,<br />
minha filha. Teu dia não chegou<br />
— respondeu o Senhor.<br />
Uma outra vez o Senhor lhe apareceu<br />
na figura de um peregrino, carregando<br />
uma cruz sobre os ombros, e<br />
lhe disse:<br />
— Minha filha, procurando o que<br />
poderia te oferecer de mais agradável<br />
a teu coração, me pareceu que minha<br />
Cruz seria a coisa que mais te conviria.<br />
Recebe-a, oscula-a e dá-me teu<br />
coração, a fim de que possas morrer<br />
para a Cruz, sobre a Cruz.<br />
Ela morreu no ano de Nosso Senhor<br />
de 1308, no dia seguinte da Assunção,<br />
na idade de quarenta anos.<br />
Seu corpo foi enterrado em seu mosteiro,<br />
onde repousa ainda hoje. Conservado<br />
inteiro, e com a carnatura flexível<br />
como se acabasse de ser sepultado<br />
ontem, seu corpo é branco como o<br />
alabastro. Sua completa conservação<br />
foi constatada de novo sob o pontificado<br />
de Pio IX, de feliz memória.<br />
Em seu coração, os<br />
instrumentos da Paixão<br />
A santa alma de Clara, deixando<br />
seu corpo, nele fixou sinais evidentes<br />
de sua glória. E como as irmãs conhecessem<br />
sua terna devoção para com a<br />
Paixão, e tinham ouvido Clara dizer<br />
várias vezes, antes de sua morte, que<br />
ela carregava Jesus Cristo crucificado<br />
em seu coração, elas foram tomadas<br />
de desejo de se inteirarem exatamente<br />
desse fato, antes de confiar seu corpo<br />
à terra. Decidiram, portanto, fazer<br />
a autópsia e examinar o mistério de<br />
seu corpo; constataram, antes de tudo,<br />
que seu coração estava muito inchado<br />
e tinha o tamanho da cabeça de uma<br />
criança pequena. Demais, uma região<br />
estava completamente dura.<br />
Francisco Lecaros<br />
27
HAGIOGRAFIA<br />
Judgefloro (CC3.0)<br />
Segundo os médicos, é impossível a<br />
uma criatura humana viver nesse estado.<br />
Abriram o seu coração e nele encontraram,<br />
naturalmente em ponto<br />
pequeno, os instrumentos da Paixão.<br />
Uma irmã dividiu o coração em duas<br />
partes, e sua mão foi tão feliz que<br />
nenhum dos instrumentos da Paixão<br />
que ali estavam foi atingido. As irmãs,<br />
profundamente surpresas e felizes, deram<br />
graças a Deus pelo fato.<br />
Na parte direita apareceu marcada a<br />
imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
preso à Cruz, mais ou menos da grossura<br />
do polegar. Nosso Senhor tinha os<br />
braços estendidos, a cabeça inclinada à<br />
direita, avançando um pouco sobre os<br />
ombros. O flanco direito era lívido com<br />
a chaga aberta e sangrando. Em torno<br />
dos rins havia um tecido manchado de<br />
sangue. Havia também, nessa parte do<br />
coração, três nervos aos quais estavam<br />
Aparição de Nosso Senhor a Santa Clara - Igreja Paroquial de<br />
Santa Clara de Montefalco, Cidade de Pasay, Filipinas<br />
presos três pregos duros e pontudos, um<br />
deles notavelmente maior que os outros.<br />
Por cima dos pregos, um nervo cor de<br />
ferro, terminado em ponta dura. Essa<br />
ponta era aguda, penetrava como ferro,<br />
e representava a lança com a qual Longinos<br />
tinha transfixado o flanco do Salvador.<br />
Enfim, na mesma parte do coração,<br />
estava ainda uma bola de nervos<br />
menores, representando a esponja<br />
com a qual o fel e vinagre foram tornados<br />
presentes a Nosso Senhor. Na parte<br />
esquerda se encontravam os açoites:<br />
eram cinco nervos entrelaçados com<br />
muitos nós e reunidos por um cabo comum.<br />
Depois do açoite se encontrava<br />
um nervo maior, representando a coluna<br />
da flagelação, cercada por nervos<br />
sangrando, figurando as cordas com<br />
as quais o Senhor foi ligado. Por cima<br />
da coluna, a coroa de espinhos, formada<br />
por nervos entrelaçados como espinhos<br />
duros e pontudos. Todas essas insígnias,<br />
ainda que formadas de carne,<br />
eram duras como os instrumentos reais<br />
da Paixão de Nosso Senhor.<br />
Quando as religiosas viram todas<br />
essas maravilhas e consideraram uma<br />
a uma com respeito e admiração, elas<br />
informaram — na ausência do Bispo<br />
de Spoleto — ao seu vigário Béranger,<br />
que fez um exame minucioso e pôde<br />
se inteirar da realidade do que acaba<br />
de ser dito. Ele espantou-se, sobretudo<br />
com o fato de que esses instrumentos,<br />
separados do coração, tinham tomado<br />
consistência pela dureza da madeira<br />
e da pedra. Várias dessas insígnias<br />
foram postas nas mãos do Papa João<br />
XXII, quando ele fez o exame da vida<br />
de Clara, para a beatificação.<br />
Símbolo da Santíssima<br />
Trindade<br />
As irmãs recolheram o sangue que<br />
corria do coração, quando ele foi aberto<br />
e o puseram em uma ampola de vidro.<br />
O sangue difundiu, nesse momento,<br />
um odor suave. Ele permaneceu coagulado<br />
até hoje. E quando uma tempestade<br />
grave ameaça a Igreja, vê-se que esse<br />
sangue se agita e se põe em ebulição, o<br />
que significa a cólera de Deus.<br />
A região endurecida foi aberta<br />
igualmente e examinada pelos médicos.<br />
Ali encontraram três pequenas<br />
esferas, cor de cinza e manchadas de<br />
vermelho; eram todas as três da mesma<br />
grossura e do mesmo peso, duras<br />
como sílex, e colocadas em forma de<br />
triângulo. Elas representavam manifestamente<br />
o mistério da Santíssima<br />
Trindade; eram absolutamente iguais<br />
umas às outras em tudo. O que causa<br />
maior admiração é que cada uma<br />
dessas bolas era exatamente do mesmo<br />
peso que as outras duas.<br />
Isso é mais notável, porque parece<br />
uma contradição: pondo numa<br />
balança de duas conchas as três bolas,<br />
cada vez que se punha uma bola<br />
separada, ela pesava tanto quanto<br />
28
as outras duas. Isso é altamente teológico,<br />
porque é outro modo de exprimir<br />
que as três Pessoas da Santíssima<br />
Trindade são tão iguais entre si,<br />
que não se pode dizer que duas valham<br />
mais do que uma. O que é o<br />
auge, o suprassumo da igualdade.<br />
E ao ser colocada numa das conchas<br />
da balança uma das bolas e, na<br />
outra, uma pedra ou qualquer objeto<br />
de peso igual, e que se acrescentasse as<br />
outras duas esferas na balança, onde<br />
já havia uma, a balança permanecia<br />
imóvel como na primeira operação.<br />
Sem dúvida, um verdadeiro milagre.<br />
Era um sinal manifesto da Santíssima<br />
Trindade; una quanto à essência,<br />
diversa quanto às Pessoas. Uma das<br />
três bolas partiu-se por si mesma no<br />
momento em que a França, maculada<br />
pela heresia de Calvino, causou tantos<br />
males à Igreja.<br />
Santa Clara de Montefalco foi canonizada<br />
por Leão XIII, no dia 8 de<br />
dezembro de 1881.<br />
O universo é repleto<br />
de maravilhas<br />
Trata-se de uma vida toda ela feita<br />
para causar certo arrepio no homem<br />
contemporâneo. Enquanto estava<br />
lendo, olhei meus ouvintes com<br />
os olhos do espírito, quer dizer, com<br />
o conhecimento que tenho do homem<br />
de nossos dias, e me pareceu<br />
que, para além da ficha que eu lia,<br />
sentia no ar algumas vozes se levantarem<br />
dentro de alguns — que quero<br />
crer não tenham dado consentimento<br />
a essas vozes — dizendo interiormente<br />
o seguinte:<br />
“Mas como pode ser uma coisa<br />
dessas? Como é possível tanta maravilha,<br />
uma em cima da outra? Isso<br />
deve ser inventado, porque uma<br />
maravilha, vá lá; duas maravilhas, vá<br />
lá; mas cinquenta maravilhas acumulando-se<br />
uma em cima da outra sobre<br />
essa freira! Manifestamente, tantas<br />
maravilhas juntas não pode ser.”<br />
Relíquias de Santa Clara - Mosteiro<br />
de Santa Cruz, Montefalco, Itália<br />
Eis a curteza de vistas a que o positivismo<br />
leva o homem contemporâneo.<br />
A mania de só tomar em consideração<br />
a realidade concreta, e a<br />
ideia de que a maravilha é algo excepcional;<br />
que o normal das coisas é<br />
que elas não sejam maravilhosas, e<br />
que já é puxado aceitar uma maravilha;<br />
é duro demais aceitar duas, ou<br />
três, ou cinco...<br />
Precisamos compreender até que<br />
ponto essa ideia é absurda.<br />
O universo que nos cerca é cheio<br />
de maravilhas. Cada estrela é uma<br />
maravilha. Olhem para o céu: quantas<br />
estrelas percebemos? Deus, que<br />
fez tantas maravilhas, realizou ainda<br />
maiores para ilustrar a alma de alguns<br />
Santos. Tudo quanto existe foi<br />
criado para a santificação do homem.<br />
Ora, para santificar os homens,<br />
terá Deus feito maravilhas maiores<br />
do que os Santos, que eram objeto<br />
de todas essas maravilhas? Quer dizer,<br />
o meio foi melhor do que o fim?<br />
O poder, a sabedoria e a bondade<br />
de Deus foram mais extraordinários<br />
nos instrumentos do que na realização<br />
da meta deles?<br />
Num mundo opaco,<br />
horrendo, trágico,<br />
conspurcado e abandonado...<br />
Tornando mais clara a argumentação:<br />
Tudo quanto existe no universo visível<br />
foi criado para a santificação<br />
do homem. Não tem outra razão de<br />
ser. Portanto, estrelas e todas as outras<br />
maravilhas são belas a fim de que<br />
o homem tenha uma ideia da perfeição<br />
e da beleza divinas, para que assim<br />
santifiquem os homens. Logo, tudo isso<br />
não é senão um meio para a santificação.<br />
O meio tendo sido tão maravilhoso,<br />
o fim precisa ser muito mais<br />
maravilhoso, porque seria um absurdo<br />
Deus fazer o meio mais belo do que o<br />
fim. O meio é sempre inferior ao fim.<br />
Se é assim, Ele há de ter posto nas<br />
almas dos Santos maravilhas incomparavelmente<br />
maiores e mais numerosas<br />
do que as que vemos em torno de nós.<br />
Portanto, é muita mesquinharia de espírito,<br />
lendo uma vida de Santo, dizer:<br />
“Deus não há de ter feito tanta maravilha<br />
para uma só pessoa.”<br />
Pois se Ele fez tantas maravilhas<br />
para a pessoa ficar santa, não faria<br />
maiores ainda no realizar a santidade<br />
dessa pessoa, que é o ponto terminal<br />
da operação d’Ele? Quem pode<br />
pôr isso em dúvida? Que um ateu<br />
duvide, compreende-se. Mas que um<br />
católico ponha isso em dúvida é o<br />
auge do irracional.<br />
Isso nos leva a uma outra consideração,<br />
a meu ver muito importante.<br />
Eu a formulo da seguinte maneira:<br />
Francisco Lecaros<br />
29
HAGIOGRAFIA<br />
Devemos compreender que é por<br />
causa desse mundo revolucionário,<br />
dos pecados que temos cometido, do<br />
castigo divino em relação a esse mundo,<br />
que Deus se ausenta dele e deixa-<br />
-o como está: opaco, horrendo, trágico,<br />
conspurcado e abandonado. Esse é<br />
o mundo do qual se retirou o amor de<br />
Deus, e que está entregue à sua cólera.<br />
Então, não se notam hoje as maravilhas<br />
de outrora. Mas antigamente,<br />
quando as maravilhas de Deus<br />
apareciam num mundo a quem Ele<br />
amava e que amava a Deus, isso tudo<br />
tinha qualquer coisa de paradisíaco<br />
e a Providência era muito mais<br />
larga com sua generosidade, com sua<br />
bondade, do que é nos dias de hoje,<br />
em relação aos filhos da Revolução.<br />
De maneira que devemos ter o espírito<br />
pronto para a seguinte ideia: É<br />
verdade que na atual ordem da Providência,<br />
a maravilha, o milagre é<br />
uma exceção. Mas não é algo tão raro<br />
quanto se pensa.<br />
Ademais, coisas maravilhosas<br />
não claramente milagrosas são muito<br />
mais frequentes do que se pensa.<br />
É questão apenas de se ter uma<br />
alma sedenta de maravilhas, crendo<br />
que estas podem ser numerosas e<br />
que Deus as multiplica ao longo de<br />
nossos passos. Pedindo-as e desejando-as<br />
muito, o Altíssimo fará as maravilhas<br />
em nós também. Sermos sedentos<br />
de maravilhas, maravilháveis,<br />
tornará maravilhosas as nossas almas.<br />
E Deus poderá fazer também<br />
por nós coisas que Ele realizou por<br />
Santa Clara de Montefalco.<br />
Assim nós devemos abrir os horizontes<br />
de nossas almas enormemente;<br />
e tomar outra envergadura; ter o<br />
espírito completamente voltado para<br />
uma outra dimensão, outro sistema<br />
de medir as coisas. E compreender<br />
que rezando, pedindo, esperando,<br />
desejando, nós poderemos receber<br />
incomparavelmente mais do que<br />
aquilo que conseguiríamos imaginar.<br />
De algum modo nosso Movimento<br />
é isso. Eu estou lhes narrando, aos sábados,<br />
a história de nosso Movimento,<br />
e verificamos que ocorreram coisas<br />
as quais no começo da estacada se<br />
reputavam impossíveis. Estão feitas.<br />
Se o impossível está realizado, não<br />
há limite para o impossível. A partir<br />
do momento em que esta sineta colocada<br />
sobre minha mesa, por si mesma,<br />
se suspenda cinco centímetros, é<br />
igualmente fácil que ela chegue até a<br />
Lua. O primeiro ponto é ela levantar<br />
os cinco centímetros. Mas se há um<br />
poder sobrenatural que a ergue cinco<br />
centímetros, para esse poder não é<br />
nada levantá-la acima de todas as coisas<br />
da Terra; e não é nada levá-la até<br />
a Lua, ou a qualquer outro astro. A<br />
questão é levantar os cinco primeiros<br />
centímetros.<br />
Nossa Senhora levantou os “cinco<br />
primeiros centímetros” na história<br />
de nosso Movimento. E é preciso<br />
reconhecer que nós fizemos força<br />
em sentido contrário...<br />
Essa é talvez a maior das maravilhas:<br />
a aeronave subiu com muita<br />
gente dentro chorando de saudades<br />
da Terra, e olhando pela janelinha,<br />
dizendo adeus para círculos<br />
mundanos, pulando para ver se a aeronave<br />
não subia. A aeronave subiu<br />
cinco centímetros. Se nós aproveitarmos<br />
bem lições como essa, o que<br />
há de maravilhoso na vida de Santa<br />
Clara de Montefalco, então compreenderemos<br />
bem quanto é de esperar<br />
que Maria Santíssima faça ainda<br />
mais maravilhas muito maiores. Essa<br />
é a lição que a vida de Santa Clara<br />
de Montefalco nos traz.<br />
❖<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/12/1973)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
...Nossa Senhora fará<br />
maravilhas ainda maiores<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência na década de 1990<br />
30
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Alain Patrick<br />
Florença e a perfeição<br />
das formas - II<br />
Cidade com edifícios de proporções perfeitas, Florença, como<br />
todas as antigas urbes, viu transformarem-se em museu seus<br />
palácios e outras bonitas residências. Isso se deve ao fato de<br />
que seus habitantes, em determinado momento, quiseram<br />
romper com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o<br />
caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6)<br />
Por certo, nesse casario há residências onde as<br />
escadas devem ter alguns degraus podres, as donas<br />
de casa brigam umas com as outras, de andar<br />
para andar, ameaçando-se com aquele rolo para fazer<br />
macarrão, e se vê um velho subir até o quarto andar,<br />
no qual ele foi morar por ser mais barato, mas tem medo<br />
por causa do coração... À noite ele sentiu umas dores<br />
no peito e não sabe se é bronquite ou começo de enfarte;<br />
então saiu muito preocupado e agora sobe devagarzinho,<br />
levando sua bengalinha e o jornal do dia debaixo<br />
do braço, e fumando o último cigarrinho que ele aspira<br />
até o fim, porque não pode comprar muitos; e vai curtir<br />
sua pobreza e seu isolamento junto a um gato no quarto<br />
que ele ocupa.<br />
O povinho que a Revolução massacrou<br />
Entrevê-se um formigamento de gente nesse casario.<br />
De gente vivaz, que fala, comenta, canta, trabalha, que<br />
quando dorme ronca; enfim, gente estuante de vida e, ex-<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
ceto o meu velho do gato, o resto todo com muita saúde.<br />
E esse velho, a doença dele é só velhice. Mas essa é inevitável...<br />
Esse formigamento de vida não há em um arranha-<br />
-céu moderno, nem nas pobres “vilas-Moscou” das periferias<br />
de certas cidades. Ora, é este o povinho que a Revolução<br />
massacrou, proclamando a soberania popular.<br />
Em Florença, e em outros lugares, algo disso ainda vive.<br />
Notem, agora, aquela outra ponte que não tem construções<br />
colaterais e cujo traçado pode ser melhor apreciado.<br />
Vejam a beleza da ponte e também da iluminação<br />
pública. Que lampadários bonitos, delicados! Comparem<br />
com a iluminação que encontramos, por exemplo,<br />
em determinadas avenidas de São Paulo: as luminárias<br />
parecem esqueletos de não sei que animal pré-diluviano,<br />
que tinha um pescoço compridíssimo encimado por uma<br />
cabecinha inútil. Nesta ponte, ao contrário, tudo é proporcionado.<br />
A propósito da arquitetura desta ponte, vem-me à memória<br />
a seguinte comparação. A Ponte Alexandre III, de<br />
Paris, é muito bonita, construída no século XIX, porém<br />
ultraenfeitada.<br />
Esta aqui não tem um enfeite. A beleza está na linha<br />
dos arcos, mais nada. É o que se chamaria, na linguagem<br />
de hoje, um estilo despojado. Isso faz lembrar, em<br />
relação aos enfeites, um caso que se contava na Grécia.<br />
Realizou-se um concurso de arte — creio que de pintura,<br />
não me lembro bem —, no qual concorriam artistas<br />
de vários lugares. Um deles, persa, representou uma<br />
mulher com um traje riquíssimo que visava realçar a beleza<br />
de sua obra. Outro pintor, um grego, figurou uma<br />
grega com uma simples túnica branca.<br />
O júri deu a primazia à pintura grega.<br />
O persa protestou, argumentando que a sua estava<br />
muito melhor vestida. Os gregos responderam: “Tu a fizeste<br />
rica porque não soubeste fazê-la bela.”<br />
Uma construção estética reputada perfeita<br />
Vemos em outra fotografia a Catedral de Florença, toda<br />
feita de mármore branco e preto. A mesma coisa que<br />
nós encontramos nas fachadas laterais da Catedral de<br />
Orvieto, onde há mais mosaicos. Notem o choque: Florença,<br />
muito mais importante e mais rica do que Orvieto,<br />
nem tem comparação, ousa fazer para si uma catedral<br />
que não possui um mosaico na frente. Mas a superioridade<br />
de Florença, segundo o meu modo de entender,<br />
está exatamente em que cores bonitas, mosaicos,<br />
etc., são enfeites fáceis, para imaginações débeis. Na Catedral<br />
de Florença existe uma proporção perfeita entre a<br />
torre, o corpo da igreja e a abóboda com aquela torrezinha<br />
em cima. E depois o tamanho das naves laterais. E<br />
32
Miguel Hermoso Cuesta (CC3.0)<br />
isso está tão bem calculado, como as rosáceas nas portas,<br />
as colunatas, a rosácea grande, que é uma construção<br />
estética reputada perfeita. Então, a reflexão, o equilíbrio,<br />
a profundidade, zombam do ornato, do charme, da<br />
graça, e Florença tem uma beleza autêntica a qual resiste<br />
à metralhagem dos olhares analíticos que querem encontrar<br />
um defeito.<br />
A Catedral parece dizer: “Eis-me aqui, despojada e<br />
sem maquiagem; eu sou eu, veja como sou linda!”<br />
Não sou um especialista em matéria de arte. Não afirmo,<br />
portanto, como quem se acha entendido, o seguinte.<br />
Mesmo porque o valor do argumento da autoridade de<br />
incontáveis críticos, que têm achado isto perfeito, pesa<br />
mais do que o meu. Mas, em minha opinião, essa cúpula<br />
se fecha muito belamente em cima, tem uma proporção<br />
bonita com a barra branca sobre a qual ela se pousa, porém<br />
ela é muito pesadona para o conjunto do edifício. Ao<br />
menos eu a sinto assim.<br />
Vemos na torre da Catedral, por exemplo, alguns vestígios<br />
do gótico nos vários andares, mas muito poucos. É<br />
muito bonito como os andares vão se afinando discretamente<br />
para cima. O branco está utilizado aqui magnificamente.<br />
Os vários espaços e dimensões, os ornatos dos<br />
diversos elementos, tudo está perfeitamente bem posto, e<br />
é muito bonito, não tem dúvida.<br />
Mania do despojado<br />
No interior da Catedral o despojamento vai bem mais<br />
longe. Não se pode negar que as dimensões, a altura das<br />
colunas são muito bonitas, que os arcos estão muito bem<br />
colocados, e que tudo quanto a Catedral apresenta é muito<br />
belo. Mas se tomamos, por exemplo, o altar do fundo,<br />
vemos como ele é pequeno em comparação com o tamanho<br />
da igreja, e como fica um espaço em cima, provavelmente<br />
destinado ao arejamento e à entrada de luz, mas<br />
que não traz nenhuma ideia piedosa. São meras janelas.<br />
Se fosse uma arquitetura elaborada segundo outra escola<br />
artística, essas colunas teriam, em cada ângulo, um<br />
nicho com a imagem de um Santo portando seu instrumento<br />
de martírio. Ali não: tem-se a impressão de que<br />
uma tropa de ladrões entrou e roubou os ornatos da<br />
igreja.<br />
Minha posição pessoal diante do monumento: respeito,<br />
admiração, vejo inegavelmente grandes valores artísticos,<br />
mas minha afinidade não vai para isso. A mania<br />
do despojado parece-me conter uma censura a Deus que<br />
não fez um universo despojado. É bonito que apareça,<br />
de vez em quando, alguma coisa despojada. Com isso eu<br />
concordo. Mas que haja a mania do despojado, com isso<br />
eu não posso concordar. E é como se apresenta a arte<br />
florentina.<br />
Fachada da Catedral<br />
de Florença, Itália<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Jorge Royan (CC3.0)<br />
Nesta página, aspectos do interior<br />
da Catedral de Florença, Itália<br />
Fczarnowski (CC3.0)<br />
JoJan (CC3.0)<br />
Os entusiastas do despojamento dirão: “Mas <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, assim aparece melhor a linha lógica.” Eu respondo:<br />
“Está bem, mas nem tudo que aparece melhor é bem<br />
feito.” Isso é para pessoas incapazes de perceber a linha<br />
dentro da pluralidade dos ornatos. Não julgo que eu esteja<br />
afligido por esse mal. Em uma obra de arte com uma<br />
muito bela linha e lindos ornatos, estes não estragam a<br />
linha.<br />
Residência de uma antiga família<br />
transformada em hotel<br />
Ainda em Florença, mas nos arrabaldes da cidade, há<br />
um hotel excelente. Ao que tudo indica trata-se da residência<br />
de uma antiga família de banqueiros — Florença<br />
foi um centro bancário muito grande — ou de nobres<br />
que viviam fora da cidade na opulência, e cuja propriedade<br />
foi transformada em hotel.<br />
A mim, que impressão dá? Como se trata de uma casa<br />
de uma família — seja de nobres ou de banqueiros —<br />
portadora de certa tradição, esta eleva e dignifica a vida<br />
de família, porque dá a ela uma nota de eternidade. A<br />
família percebe melhor as obrigações que lhe impõe um<br />
grande passado ao qual se sente ligada. Os mortos parecem<br />
ornatos dos vivos. E por outro lado, os que estão para<br />
nascer parecem a luz que entra para a família, a qual<br />
vive há séculos e pretende viver séculos ainda, na beleza<br />
de uma grande continuidade familiar.<br />
Vemos ali uma casa grande construída para se levar<br />
uma vida de família, não como se entende hoje, dentro de<br />
um apartamento, mas com quartos de dormir grandes, salões<br />
espaçosos; uma residência feita para que se passe muito<br />
tempo nela, com conforto, tempo para pensar, ler, conversarem<br />
uns com os outros, para formarem grupos de dois<br />
ou três e irem passear pelo jardim que, aliás, é magnífico.<br />
Podemos imaginar a magnificência de uma recepção<br />
dada numa propriedade como essa, à noite, com orquestra<br />
tocando, senhoras e senhores com trajes de gala,<br />
condecorações, desse tipo de recepções com tanta categoria<br />
que até os prelados do lugar apareciam. Então<br />
a hora da chegada do grão-duque, do cardeal-arcebispo,<br />
de tal autoridade militar, de tal grande artista que vai<br />
cantar, outro que vai acompanhar ao piano... Tudo isso<br />
em meio à conversa que rumoreja, enquanto incessantemente<br />
garçons fazem circular grandes pratos com pequenas<br />
delícias, bandejas repletas com taças e garrafas<br />
com bebidas. Se a noite é quente, uma parte dos convidados<br />
sai e conversa também do lado de fora.<br />
34
Divulgação (CC3.0)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Tudo isso foi transformado em um hotel muito bem<br />
mobiliado, onde se paga para estar, e no qual um turista<br />
anônimo entra, mete-se nas cobertas durante a noite,<br />
e no dia seguinte sai.<br />
Notem o conforto, a estabilidade, a dignidade. Não é<br />
verdade que uma família como essa pareceria estar destinada<br />
a durar séculos? Entretanto, está morta, como<br />
uma concha que se encontra na praia, na qual o respectivo<br />
caramujo morreu. Por que morreu? Porque essa gente<br />
toda foi rompendo com Aquele que disse de Si mesmo:<br />
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).<br />
Paganizou-se, estancou.<br />
❖<br />
(Extraído de conferência de 23/11/1988)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Nesta página, aspectos do<br />
Hotel Villa Cora, comentado<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> - Florença, Itália<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
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gustavo kralj<br />
Antonio Lutiane<br />
Virgem das Neves<br />
Paróquia da Candelária,<br />
Sevilha, Espanha<br />
Nossa Senhora das Neves<br />
próprio de Maria Santíssima violar todas as regras de distância que há entre o Céu e a<br />
Terra e aparecer a um Papa. Como também é próprio a Ela indicar o lugar para algo<br />
maravilhoso, escolhendo para isso a neve, que representa o refrigério no meio do calor.<br />
ÉNo No verão horroroso de Roma, aparece um lugar coberto de neve. Ali Nossa Senhora quer que<br />
se construa uma igreja em seu louvor.<br />
Este é bem o papel de Nossa Senhora em nossa vida: a neve em meio ao calor de nossas batalhas,<br />
provações e sofrimentos.<br />
Em meio à poeira desta vida, a Santíssima Virgem é a neve alvíssima, imaculada, que refrigera<br />
e nos dá um antegozo do Céu.<br />
(Extraído de conferência de 5/8/1965)