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Ciganas<br />
Entre o mito e<br />
a realidade<br />
SER MÃE<br />
Mães em restrição de liberdade<br />
POLÍTICA<br />
Longe das cotas de gênero
3<br />
Elas por elas mesmas<br />
Em sua oitava edição, a revista Elas<br />
por Elas traz muitas histórias de mulheres<br />
que vivem realidades diversas.<br />
São ciganas, circenses, escritoras, sindicalistas,<br />
cabeleireiras, professoras,<br />
políticas, quadrinistas, presidiárias, feministas,<br />
etc. Não importa quais papéis<br />
exerçam na vida ou na sociedade, são<br />
mulheres de fibra que enfrentam o desafio<br />
de lutar contra o machismo, a<br />
violência e a discriminação.<br />
Elas por elas mesmas descrevem a<br />
dor e a delícia de serem mulheres. E<br />
assim, como numa colcha de retalhos<br />
multicolorida, essas diferentes vivências<br />
nos trazem encantamento e importantes<br />
reflexões sobre o universo feminino.<br />
Cabelo, imagem, maternidade, sexualidade,<br />
educação, violência, seja qual<br />
for o tema abordado, em todas as reportagens<br />
há sempre uma personagem<br />
guerreira. Uma mulher que superou<br />
desafios, que foi à luta, que não esmorece<br />
diante de uma sociedade que dá<br />
passos lentos em direção à igualdade<br />
de gênero.<br />
Ser mãe em situação adversa é um<br />
dos destaques dessa edição. Falamos<br />
das mães que vivem nas ruas e convivem<br />
com as drogas, das que são impedidas<br />
de parir em sua própria cidade, das<br />
que sofrem restrição de liberdade e<br />
são obrigadas a se separar de seus<br />
filhos, assim como daquelas que tornam<br />
suas as crianças que outras mães não<br />
puderam cuidar. São mulheres de coragem<br />
e mães por vocação.<br />
A revista traz a triste realidade das<br />
mulheres em situação de abandono<br />
nas ruas, assim como aborda o mundo<br />
controverso das ciganas e das mulheres<br />
que vivem no circo. Também debatemos<br />
sobre a participação das mulheres no<br />
sindicalismo e na política, um universo<br />
onde as mulheres driblam o machismo<br />
e sonham em ocupar cada vez mais<br />
espaços de poder.<br />
O feminismo também é evidenciado<br />
por uma nova geração de mulheres na<br />
América Latina que, a exemplo das lutadoras<br />
do passado pela emancipação<br />
feminina, são aguerridas e fazem a<br />
gente acreditar que o futuro pode ser<br />
diferente. A propósito, esse ano faz<br />
20 anos que feministas de todo o mundo<br />
se encontraram em Pequim para a<br />
conferência da ONU que estabeleceu<br />
uma plataforma de ações pela igualdade<br />
de gênero. Nesse cenário, a violência<br />
ainda é um dos maiores desafios a<br />
serem enfrentados. A notícia boa é<br />
que no Brasil a Lei Maria da Penha reduziu<br />
em 10% os homicídios contra as<br />
mulheres e o feminicídio se tornou<br />
crime hediondo.<br />
Com cada vez mais exemplos de<br />
autoestima, beleza, raça e cultura, as<br />
mulheres negras têm seu espaço<br />
garantido na revista, pois suas bandeiras<br />
são de todos/as que lutam por uma<br />
sociedade mais justa e igualitária. Também<br />
estamos de olho na aplicação da<br />
lei 10.639, que determina o ensino de<br />
história e cultura afro-brasileira e africana<br />
em todas as escolas do país, e<br />
recomendamos a leitura da entrevista<br />
com a professora Mara Evaristo. Na<br />
literatura, a história imperdível é a da<br />
catadora de papel que virou escritora<br />
com repercussão internacional. Carolina<br />
de Jesus foi uma idealista que,<br />
mesmo diante do preconceito por ser<br />
mulher, negra e favelada não desistiu<br />
de seus sonhos.<br />
Com tantas histórias e exemplos,<br />
desejamos que essa publicação seja<br />
mais que um entretenimento. Possa<br />
ser um material de reflexão e instrumento<br />
para a educação e formação de<br />
uma consciência pela igualdade e diversidade<br />
de gênero, raça/etnia e sexo.<br />
Boa leitura!<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
RECONHECIMENTO<br />
Pág<br />
7<br />
POLÍTICA<br />
Pág<br />
24<br />
DIREITOS<br />
Pág<br />
50<br />
Elas por Elas recebe<br />
menção honrosa em<br />
prêmio nacional de<br />
jornalismo<br />
Longe das cotas<br />
de gênero<br />
Em busca de um<br />
novo rumo<br />
HOMENAGEM<br />
Pág<br />
8<br />
Celina Arêas<br />
Exemplo de dedicação<br />
ENTREVISTA<br />
Pág<br />
38<br />
SER MÃE<br />
Pág<br />
56<br />
SINDICAL<br />
Pela igualdade<br />
de gênero<br />
Pág<br />
10<br />
Pequim+20<br />
Nadine Casman<br />
HOMENAGEM<br />
Pág<br />
42<br />
Mães em restrição<br />
de liberdade<br />
Uma mulher impossível<br />
Rose Marie Muraro<br />
SER MÃE<br />
Pág<br />
64<br />
Mãe coragem<br />
FEMINISMO<br />
Feminismo na<br />
América Latina<br />
Pág<br />
18<br />
ARTIGO<br />
Em Gaza, nada a<br />
comemorar<br />
Pág<br />
46<br />
ARTIGO<br />
Mães de Noronha<br />
Pág<br />
68<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
CAPA<br />
Pág<br />
72<br />
PERFIL<br />
Pág<br />
112<br />
Entre o mito e a realidade<br />
Dora Alves<br />
REALIDADE<br />
Pág<br />
80<br />
ENTREVISTA<br />
Pág<br />
100<br />
LITERATURA<br />
Pág<br />
116<br />
A vida no circo não<br />
é brincadeira<br />
Diversidade é assunto<br />
de criança<br />
Mara Evaristo<br />
Uma idealista do lixo<br />
VIOLÊNCIA<br />
Pág<br />
88<br />
AUTOESTIMA<br />
Pág<br />
107<br />
A gente tem uma força<br />
que desconhece<br />
EDUCAÇÃO<br />
Pág<br />
94<br />
Debaixo dos caracóis,<br />
muita história<br />
pra contar<br />
ARTIGO<br />
Muito além do feminino<br />
e do masculino<br />
Pág<br />
130<br />
Profissão docente:<br />
uma escolha de valor<br />
Pág<br />
132<br />
POUCAS E BOAS<br />
Pág<br />
134<br />
RETRATO<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
6<br />
Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br<br />
Diretores responsáveis: Aerton Silva e Marco Eliel de Carvalho;<br />
Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP);<br />
Redação: Cecília Alvim (MG09287JP), Denilson Cajazeiro (MG09943JP),<br />
Nanci Alves (MG003152JP e Saulo Martins (MG15509JP);<br />
Programação visual/Diagramação: Mark Florest;<br />
Design Gráfico: Fernanda Lourenço e Mark Florest;<br />
Revisão: Aerton Silva e Maria Izabel Bebela Ramos<br />
Estagiária: Pollyana Bitencourt<br />
Foto capa: Lais Rodrigues (cigana Dara Amaral)<br />
Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,<br />
Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.<br />
Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:<br />
Distribuição gratuita: Circulação dirigida<br />
REVISTA <strong>ELA</strong>S <strong>POR</strong> <strong>ELA</strong>S<br />
PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE<br />
COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS<br />
ANO VIII - <strong>Nº</strong> 8 - ABRIL DE 2015<br />
ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM<br />
www.sinprominas.org.br<br />
Elas por elas - nº 7<br />
Diretoria Gestão 2012/2016<br />
Adelmo Rodrigues de Oliveira, Adenilson Henrique Gonçalves, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior, Alessandra<br />
Cristina Rosa, Altamir Fernandes de Sousa, Ângelo Filomeno Palhares Leite, Aniel Pereira Braga Filho, Antonieta Shirlene<br />
Mateus, Antonio de Pádua Ubirajara e Silva, Antonio Sergio de Oliveira Kilson, Aparecida Gregório Evangelista, Aristides<br />
Ribas Andrade Filho, Benedito do Carmo Batista, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Carla Fenicia de Oliveira, Carlos<br />
Afonso de Faria Lopes, Carlos Magno Machado, Carolina Azevedo Moreira, Cecília Maria Vieira Abrahão, Celina Alves<br />
Padilha Arêas, César Augusto Machado, Clarice Barreto Linhares, Cláudia Cibele Souza Rodrigues, Clédio Matos de Carvalho,<br />
Clóvis Alves Caldas Filho, Daniel de Azevedo Teixeira, Débora Goulart de Carvalho, Décio Braga de Souza, Dimas<br />
Enéas Soares Ferreira, Diva Teixeira Viveiros, Edson de Oliveira Lima, Edson de Paula Lima, Eliane de Andrade, Erica<br />
Adriana Costa Zanardi, Estefania Fátima Duarte, Fábio dos Santos Pereira, Fábio Marinho dos Santos, Fátima Amaral<br />
Ramalho, Fernando Antonio Tomaz de Aquino Pessoa, Fernando Dias da Silva, Fernando Lucio Correia, Geraldo Magela<br />
Ribeiro, Gilson Luiz Reis, Gislaine dos Santos Silva, Grace Marisa Miranda de Paula, Haida Viviane Palhano Arantes,<br />
Heleno Célio Soares, Henrique Moreira de Toledo Salles, Humberto de Castro Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva, João<br />
Francisco dos Santos, João Marcos Netto, Jones Righi de Campos, José Carlos Padilha Arêas, José Geraldo da Cunha,<br />
José Heleno Ferreira, José Mauricio Pereira, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane Soares Amaral Garcia, Juliana<br />
Augusta Rabelo Souza, Laércio de Oliveira Silva, Lavínia Rosa Rodrigues, Liliam Faleiro Barroso Lourenço, Liliani Salum<br />
Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Cláudio Martins Silva, Luiz Henrique Vieira Magalhães, Luliana de Castro Linhares,<br />
Marcelo José Caetano, Marco Eliel Santos de Carvalho, Marcos Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinicius<br />
Araújo, Maria Aparecida Penido de Freitas Zandona, Maria Célia da Silva Gonçalves, Maria Celma Pires do Prado Furlanetto,<br />
Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria das Graças de Oliveira, Maria Elisa Magalhães<br />
Barbosa, Maria Goretti Ramos Pereira, Maria Helena Pereira Barbosa, Maria Nice Soares Pereira, Marilda Silva, Marília<br />
Ferreira Lopes, Marisa Magalhães de Souza, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão Telecesqui, Miguel José de Souza,<br />
Miriam Fátima dos Santos, Moisés Arimateia Matos, Murilo Ferreira da Silva, Nalbar Alves Rocha, Nardeli da Conceição<br />
Silva, Neilon José de Oliveira, Nelson Luiz Ribeiro da Silva, Newton Pereira de Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paulo<br />
Roberto Mendes da Silva, Paulo Roberto Vieira Junior, Pitágoras Santana Fernandes, Renata Titoneli de Aguiar, Renato<br />
César Pequeno, Rodrigo de Paula Magalhães Barbosa, Rodrigo Rodrigues Ferreira, Rogério Helvídio Lopes Rosa, Romário<br />
Lopes da Rocha, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro, Sandra Lucia Magri, Sebastião Geraldo de Araújo,<br />
Simone Esterlina de Almeida Miranda, Siomara Barbosa Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Terezinha Lúcia de<br />
Avelar, Valdir Zeferino Ferreira Júnior, Valeria Nonata Teixeira, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Lúcia Alfredo, Vera<br />
Lúcia Freitas Moraes, Wagner Ribeiro, Warley Oliveira Drumond, Wellington Teixeira Gomes<br />
SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />
SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240<br />
Fone: (31) 3115 3000 - Belo Horizonte - www.sinprominas.org.br<br />
SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada<br />
Rua Tupinambás, 179 - Centro - Cep: 30.120-070 - BH - Tel: (31) 3274 5091<br />
sinprocerp@sinprominas.org.br<br />
SEDES REGIONAIS:<br />
Barbacena: Rua Francisco Sá, 60 - Centro, CEP: 36.200-068 - Fone: (32) 3331-0635; Cataguases: Rua Major Vieira,<br />
300 - sala 04 - Centro - CEP: 36.770-060 - Fone: (32) 3422-1485; Coronel Fabriciano: Rua Moacir D'Ávila, nº 45 -<br />
Bairro dos Professores - CEP: 35.170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Di vinópolis: Av. Minas Gerais, 1.141 - Centro -<br />
CEP: 35.500-010 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin Constant, n° 653/ Térreo, Centro -<br />
CEP: 35.010-060, Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária, 672 - Centro, CEP: 39.400-077 - Fone: (38)<br />
3221-3973; Paracatu: Rua Getúlio de Melo Franco, 345 - sala 14- Centro - CEP: 38.600-000 - Fone: (38) 3672 1830;<br />
Poços de Caldas: Rua Mato Grosso, nº 275 - Centro, CEP: 37.701-006 - Fone: (35) 3721-6204; Ponte Nova: Av.<br />
Dr. Otávio Soares, 41 - salas 326 e 328, Palmeiras - CEP: 35.430-229 - Fone: (31) 3817-2721; Pouso Alegre: Rua<br />
Dom Assis, 241 - Centro, CEP 37.550-000 - Fone: (35) 3423-3289; Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 -<br />
A - Bairro Nossa Sra. das Graças - (Atendimento: Quartas-feiras - 8h às 17h - Fone: 93685999 - Fernanda);<br />
Teófilo Otoni: Rua Pastor Hollerbarch, 187/201 - Grão Pará, CEP: 39.800-148 - Fone: (33) 3523-6913;<br />
Uberaba: Rua Alfen Paixão,105 - Mercês, CEP: 38.060-230 - Fone: (34) 3332-7494; Uberlândia: Rua Olegário Maciel,<br />
1212 - Centro, CEP: 38.400-086 - Fone: (34) 3214-3566; Varginha: Av. Doutor Módena, 261 - Vila Adelaide,<br />
CEP: 37.010-190 - Fone: (35) 3221-1831.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
7<br />
RECONHECIMENTO<br />
Elas por Elas recebe menção honrosa<br />
em prêmio nacional de jornalismo<br />
Em 2014, a revista Elas por Elas<br />
do Sinpro Minas esteve mais uma vez<br />
em evidência numa premiação nacional.<br />
A matéria “O parto é da mulher<br />
– movimentos denunciam a violência<br />
e propõe mudanças para promover o<br />
parto ativo e humanizado”, da jornalista<br />
Maria Cecília Alvim Guimarães,<br />
publicada na edição de 2013, recebeu<br />
uma menção honrosa no Prêmio Nacional<br />
de Jornalismo sobre Violência<br />
de Gênero.<br />
O prêmio, promovido pela Casa da<br />
Mulher Catarina e pela Rede Feminista<br />
de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos<br />
Reprodutivos, de Santa Catarina, contou<br />
com o apoio da Secretaria de Políticas<br />
Públicas para as Mulheres da<br />
Presidência da República. A premiação<br />
aconteceu no dia 16 de maio de 2014,<br />
em Florianópolis, juntamente com a<br />
abertura do Seminário Internacional<br />
sobre Mídia e Violência de Gênero.<br />
“Fico muito feliz com o reconhecimento<br />
desse trabalho que repercutiu<br />
na minha vida pessoal. O propósito da<br />
reportagem foi evidenciar um tipo de<br />
violência contra a mulher, muito comum<br />
na atualidade, mas ainda pouco conhecida<br />
e combatida, a violência obstétrica.<br />
Com isso, colaborar com a conscientização<br />
das mulheres sobre o problema,<br />
a fim de que se tornem protagonistas<br />
de suas experiências de parto e assim,<br />
contribuir também com a perspectiva<br />
Premiação é comemorada em reunião do conselho editorial.<br />
de que é possível evitar condutas inadequadas<br />
na assistência ao parto”, explica<br />
Cecília Alvim. Após escrever a reportagem,<br />
a jornalista passou pela experiência<br />
do parto natural.<br />
Foram inscritas 82 reportagens e<br />
15 foram selecionadas entre os primeiros<br />
lugares de cada categoria, que receberam<br />
R$ 5.000, e as menções<br />
honrosas. O prêmio faz parte da Campanha<br />
“Jornalistas dão um ponto final<br />
na violência contra mulheres e meninas”,<br />
desenvolvida em outros países da<br />
América Latina e Caribe, incluindo o<br />
Brasil. De acordo com Clair Castilhos,<br />
secretária executiva da Rede Feminista<br />
de Saúde, a proposta da campanha é<br />
contribuir para que jornalistas possam<br />
olhar para o tema da violência de gênero<br />
com sensibilidade. “O objetivo da<br />
campanha é dialogar com jornalistas,<br />
de maneira que o tema não seja somente<br />
pautado nos meios de comunicação,<br />
mas que quando tratado,<br />
considere as relações de gênero, os aspectos<br />
culturais que estão ligados a<br />
todos os atos de violência contra meninas<br />
e mulheres”, destaca.ø<br />
MARK FLOREST<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
8<br />
HOMENAGEM<br />
<strong>POR</strong> SAULO ESLLEN MARTINS<br />
FOTO MARK FLOREST<br />
Exemplo de dedicação<br />
Celina Arêas recebe condecoração da Justiça do Trabalho<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
9<br />
A diretora do Sinpro Minas e da<br />
CTB nacional, Celina Alves Padilha<br />
Arêas, foi condecorada com a Ordem<br />
do Mérito Judiciário do Trabalho Ari<br />
Rocha em 2014. A medalha é uma iniciativa<br />
do Tribunal Regional do Trabalho<br />
de Minas Gerais (TRT-MG) – 3ª Região<br />
e destaca as personalidades que atuam<br />
de forma brilhante no mundo do trabalho.<br />
A indicação da professora e sindicalista<br />
mineira foi feita pelo desembargador<br />
do TRT/MG, Marcelo Lamego<br />
Pertence. Para ele, Celina é um exemplo<br />
de dedicação ao mundo do trabalho<br />
e ao trabalhador. “Seriedade, competência<br />
e compromisso são as premissas<br />
dessa medalha e essa mulher tem esse<br />
algo a mais que precisa ser ressaltado.<br />
Pessoa mais indicada não haveria para<br />
receber essa medalha”, frisou.<br />
Celina é sindicalista desde a década<br />
de 1980 e sua história é marcada pela<br />
luta em defesa dos direitos dos professores(as)<br />
e demais trabalhadores(as). Foi<br />
diretora de Comunicação Social da Contee,<br />
por duas gestões – de 1997 a<br />
2000 e de 2000 a 2003 – e também<br />
diretora de Assuntos Educacionais por<br />
uma gestão, de 2006 a 2009.<br />
Nascida no Vale do Jequitinhonha,<br />
na cidade de Rubim/MG, começou a<br />
trabalhar como professora primária, lecionando<br />
Língua Portuguesa e Inglês.<br />
Veio para Belo Horizonte em 1972,<br />
quando começou a dar aulas também<br />
no setor privado. Filiou-se ao PCdoB<br />
em 1973, com o partido na clandestinidade,<br />
e em 1977 ingressou na militância<br />
sindical, participando da onda<br />
grevista que ocupou o país em 1979.<br />
Sua caminhada junto aos professores<br />
culminou em dois mandatos como presidenta,<br />
nas gestões entre 1995 a 2000.<br />
A desembargadora Maria Laura Franco<br />
Lima de Faria, presidente do TRT-<br />
MG, destacou a importância do momento<br />
como a oportunidade de reverenciar<br />
os “cidadãos e entidades que<br />
prestam relevantes serviços ao bem comum<br />
e que contribuem ou contribuíram<br />
com ações de engrandecimento da Justiça<br />
do Trabalho e promoção das instituições<br />
livres e da democracia”.<br />
Para a vice-presidenta do Sinpro<br />
Minas, Valéria Morato, a homenagem<br />
representa o reconhecimento do trabalho<br />
do sindicato dos professores na<br />
pessoa da Celina. “Ela é uma grande<br />
lutadora, foi presidente do Sinpro numa<br />
época em que as mulheres ainda encontravam<br />
muitas dificuldades para<br />
ocupar espaços de poder e nem por<br />
isso deixou de lutar pela categoria e<br />
por melhores condições de vida para<br />
os trabalhadores. Assim, é uma honra<br />
para todos nós essa homenagem do<br />
Tribunal do Trabalho”.<br />
De acordo com Celina, a medalha<br />
é de extrema importância para o sindicalismo<br />
mineiro e nacional, porque<br />
reconhece o trabalho coletivo que vem<br />
sendo feito: “essa medalha não é individual,<br />
ela sintetiza o trabalho do sindicato<br />
dos professores, da Central dos<br />
Trabalhadores e Trabalhadoras (CTB)<br />
e de outras entidades das quais participamos.<br />
Eu vou levar essa honraria<br />
como um prêmio à luta coletiva dos<br />
trabalhadores por uma sociedade mais<br />
justa, humana e igualitária”.<br />
Você ocupa cargos de destaque<br />
no sindicalismo, fato que a maioria<br />
das mulheres não alcança. O que é<br />
preciso para que as mulheres consigam<br />
superar o machismo e ocupar<br />
os espaços de poder?<br />
Quando participei pela primeira vez<br />
da direção do Sindicato dos Professores<br />
do Estado de Minas Gerais já atuava na<br />
luta política e sindical. A minha história<br />
confunde-se com a luta por mais liberdade,<br />
democracia e direitos iguais entre<br />
homens e mulheres. Desde minha vida<br />
estudantil. Nem sempre estive em cargos<br />
de “poder”. Na primeira vez que participei<br />
da diretoria do Sinpro Minas era<br />
suplente. Penso que espaço se conquista<br />
com muita luta e coerência. Devemos<br />
ter convicção que a luta pela emancipação<br />
da mulher é uma luta de classe.<br />
Não é fácil ocupar lugar de destaque<br />
no regime capitalista. Somos maioria<br />
da sociedade e não somos maioria em<br />
nenhuma instância de poder.<br />
Na sua opinião, quais iniciativas<br />
podem ser eficazes para romper as<br />
barreiras de gênero no movimento<br />
sindical?<br />
As mulheres não devem ter medo<br />
de errar. Devem ter confiança em si e<br />
cuidar da formação ideológica, além<br />
de vencer a timidez e sempre cuidar<br />
da autoestima.<br />
Você acha que quando há mulheres<br />
na direção, as questões de<br />
gênero ganham mais ênfase nas políticas<br />
do sindicato?<br />
Não. Penso que não basta ser mulher,<br />
negro ou pobre. Precisamos sim,<br />
ganhar, no local em que atuamos, a<br />
convicção de que a luta por direitos<br />
iguais é cotidiana.<br />
Você já sofreu algum preconceito<br />
por ser mulher, dentro do movimento<br />
sindical?<br />
Já. Principalmente pelo patronal.<br />
Quanto aos companheiros sindicalistas,<br />
de uma forma velada, são muitos educados,<br />
mas na maioria das vezes se julgam<br />
mais capazes, mais preparados<br />
do que nós.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
10<br />
foto SAULO ESLLEN MARTINS<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
11<br />
SINDICAL<br />
<strong>POR</strong> DÉBORA JUNQUEIRA<br />
Pela igualdade de gênero<br />
Mesmo sub-representadas, as trabalhadoras superam<br />
desafios e buscam mais espaços de poder<br />
Em contraste com a crescente participação<br />
das mulheres no mundo do<br />
trabalho, que representa 50% da população<br />
economicamente ativa, a luta<br />
sindical ainda é marcadamente masculina.<br />
É o que se pode constatar através<br />
de pesquisas sobre as mulheres no<br />
mercado de trabalho e no movimento<br />
sindical. O que se vê é que a desigualdade<br />
de gênero, presente principalmente<br />
nos espaços de poder, se repete<br />
nas instituições que atuam em defesa<br />
dos/das trabalhadores/as.<br />
Conforme levantamento do Dieese,<br />
feito em 2009, a mulher não tem assento<br />
em 26% das diretorias de sindicatos,<br />
sejam urbanos ou rurais. E mesmo<br />
quando está presente, a participação<br />
da mulher ainda é bem menor que a<br />
do homem. No topo da representação<br />
sindical, ou seja, nas centrais sindicais,<br />
as mulheres representam apenas<br />
21,18% de suas diretorias.<br />
“A pesar da sub-representação nas<br />
direções, nos cargos decisórios das entidades<br />
sindicais, a participação das<br />
mulheres têm pavimentado uma estrada<br />
que é longa e íngreme, haja vista, a<br />
conquista de secretarias da mulher na<br />
maioria dos sindicatos, federações, confederações<br />
e centrais sindicais”, garante<br />
a dirigente da Central dos Trabalhadores<br />
e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Raimunda<br />
Gomes, mais conhecida como<br />
Doquinha. Na CTB, foi estabelecida a<br />
cota de 30% de gênero em todos os<br />
cargos e instâncias de direção, conforme<br />
seu Estatuto Social e resolução aprovada<br />
no 1º encontro nacional de mulheres<br />
da CTB. “É uma exigência o seu cumprimento<br />
e orientamos que os sindicatos<br />
filiados à central apliquem o dispositivo<br />
estatutário”, afirma. (Leia a entrevista)<br />
“a mulher não<br />
tem assento em<br />
26% das diretorias<br />
de sindicatos,<br />
sejam urbanos<br />
ou rurais”.<br />
As mulheres são mais de 50% entre<br />
os/as professores/as do ensino superior,<br />
71% no ensino médio e 85% no ensino<br />
fundamental, de acordo com dados da<br />
pesquisa do Ministério da Educação,<br />
realizada em abril de 2010. Mesmo na<br />
categoria de trabalhadores/as em educação,<br />
majoritariamente feminina, essa<br />
representatividade ainda não se reflete<br />
nas organizações sindicais educacionais.<br />
Segundo pesquisa realizada pela Confederação<br />
Nacional dos Trabalhadores<br />
em Estabelecimentos de Ensino (Contee),<br />
em 2011, entre os 1838 dirigentes que<br />
formam as diretorias das 81 entidades<br />
filiadas à Confederação, 60,07% são<br />
homens e 39,93% mulheres. A diferença<br />
torna-se ainda mais expressiva quando<br />
se foca na participação das sindicalistas<br />
nos cargos de presidência e coordenação<br />
das entidades. Nestes casos, os homens<br />
ocupam 78% dos postos de mais poder<br />
na direção das entidades. Nos sindicatos<br />
da região sudeste, 422 são homens<br />
(58,6%) e 297 (41,4%) são mulheres.<br />
Nas federações de trabalhadores/as<br />
em educação ligadas à Contee, a situação<br />
não é diferente. Um levantamento de<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
12<br />
gênero feito nessas entidades mostra<br />
que dos 218 dirigentes, 153 são homens<br />
(70,2%) e 65 mulheres (29,8%).<br />
“Existem diversos fatores que impedem<br />
ou dificultam a participação das<br />
mulheres nas esferas públicas, seja a<br />
questão da dupla jornada de trabalho,<br />
a segmentação das mulheres em atividades<br />
ou funções ditas femininas, as<br />
disparidades salariais e a ausência de<br />
políticas públicas como creches, entre<br />
outras. Entretanto, através da nossa vivência,<br />
e de conversas com diversas<br />
companheiras, podemos observar a falta<br />
de incentivo, seja através de discursos<br />
ou de práticas, que não favorecem o<br />
rompimento dessas barreiras”, afirma<br />
a professora Nara Teixeira, dirigente<br />
da Contee, em artigo sobre a pesquisa<br />
de gênero feita pela entidade.<br />
MARK FLOREST<br />
Sindicalistas mineiras<br />
Na base do Sinpro Minas, que representa<br />
os/as professores/as das escolas<br />
particulares de Minas Gerais, exceto<br />
Juiz de Fora, há 42.342 mulheres<br />
(67%) e 20.935 (33%) homens, entre<br />
os/as professores/as sindicalizados/as.<br />
A representação na diretoria eleita<br />
para a gestão 2012/2016 composta<br />
por 129 dirigentes, 54 são mulheres<br />
(41,8%) e 75 são homens (58,2%).<br />
Para a vice-presidenta do Sinpro<br />
Minas, Valéria Morato (foto), o problema<br />
da desigualdade de gênero não é exclusivo<br />
do movimento sindical. Ela também<br />
entende que é uma questão que<br />
afeta as mulheres nos espaços de poder<br />
em geral. “A participação na vida pública,<br />
em qualquer tipo de militância,<br />
nos ocupa nos horários não convencionais,<br />
exigindo a nossa participação<br />
à noite e nos finais de semana. Não é<br />
fácil para as mulheres conciliar as atividades<br />
políticas e a vida familiar. Com<br />
a predominância dos homens, é mais<br />
difícil para a mulher ocupar os espaços<br />
decisórios. As mulheres têm que se esforçar<br />
mais que os homens para se estabelecer.<br />
Quando agem de forma mais<br />
firme são criticadas, se não se impõem,<br />
são consideras ‘mulherzinhas’, avalia.<br />
Valéria conta que quando entrou<br />
no movimento sindical, há 12 anos,<br />
não tinha a dimensão do trabalho<br />
dentro do sindicato. “O trabalho nos<br />
envolve 24 horas. Não tive medo de<br />
mudar a minha vida pessoal para me<br />
adaptar, mas entendo que muitas mulheres<br />
têm dificuldade de fazer isso,<br />
porque dentro de uma sociedade machista<br />
o espaço privado ainda é considerado<br />
prerrogativa da mulher e somos<br />
cobradas quando não o assumimos<br />
dentro dessa cultura”.<br />
É consenso que a ausência de mulheres<br />
nos espaços de poder e de decisão<br />
significa um déficit na democracia<br />
e uma dívida da sociedade em relação<br />
às mulheres. A representação política<br />
e sindical é fundamental para se avançar<br />
na construção de uma sociedade mais<br />
democrática e mais igualitária. É o que<br />
também reforça a vereadora e sindicalista<br />
Vera Lúcia Alfredo.<br />
Vera iniciou sua militância política<br />
na juventude quando participava da diretoria<br />
do DCE na faculdade. Em 1979,<br />
período importante do movimento sindical,<br />
entrou para a diretoria do Sindicato<br />
dos Trabalhadores em Educação<br />
(SindUTE-MG) e em 2007, como professora<br />
de escola privada, passou a participar<br />
da diretoria do Sinpro Minas. Em<br />
sua trajetória, ela conta que foi rotulada<br />
de “largada”, “comunista” e até ouviu<br />
que sua militância política era uma fuga<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
13<br />
da obrigação com os serviços domésticos.<br />
Para seguir em frente, ela teve que<br />
superar várias barreiras para assumir a<br />
tripla jornada de uma mulher sindicalista.<br />
“Dava aula, fazia faculdade, cuidava<br />
da casa, marido e filhos e ainda<br />
participava de reuniões, assembleias e<br />
greves. Muitas vezes, levava as crianças<br />
junto comigo, que dormiam nos sofás<br />
do sindicato, nem sempre preparado<br />
para acolher as mulheres e suas necessidades.<br />
Quando eu chegava em casa,<br />
o meu marido reclamava muito. O fim<br />
do casamento foi inevitável, mas não<br />
me arrependo, gosto do que faço e me<br />
sinto realizada”, afirma. Por outro lado,<br />
Vera diz que nunca sentiu preconceito<br />
por ser mulher dentro do sindicato.<br />
“Não me intimido com os homens e sei<br />
me impor”, declara.<br />
Se as entidades de classe do movimento<br />
sindical de trabalhadores lutam<br />
por mais democracia, diversidade e<br />
emancipação feminina, a pergunta que<br />
se faz é se há apoio à maior participação<br />
da mulher nas diretorias, seja por meio<br />
de cursos de formação política ou em<br />
outras formas de atuação que possibilitem<br />
a inserção das mulheres nos espaços<br />
de poder. Tema que instiga e<br />
merece uma investigação mais ampla.<br />
“Muitas vezes,<br />
levava as crianças<br />
junto comigo, que<br />
dormiam nos sofás<br />
do sindicato”.<br />
Atuação das<br />
mulheres no<br />
movimento sindical<br />
é invisibilizada<br />
No artigo Práticas Invisíveis: o Movimento<br />
Feminista e o Sindicalismo<br />
no Brasil, de Luanda de Oliveira Lima,<br />
mestranda em Sociologia da Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro –UFRJ,<br />
disponível na internet (https://strabalhoegenero.cienciassociais.ufg.br/up/24<br />
5/o/LUANDA.pdf), a autora faz uma<br />
análise sobre a participação feminina<br />
nos movimentos de trabalhadores no<br />
Brasil. O trabalho da pesquisadora mostra<br />
que, apesar da intensa participação<br />
das mulheres na vida sindical e nos movimentos<br />
sociais no país, essa atuação<br />
é igualmente invisibilizada e marcada<br />
pelo falocentrismo, o que influencia na<br />
forma como essa história é ‘‘contada”.<br />
O texto recorda que, no final do<br />
século XIX, embora as mulheres fossem<br />
grande parte da classe trabalhadora,<br />
elas não eram bem vindas nos sindicatos.<br />
Contudo sempre estiveram presentes<br />
no movimento operário e sindical<br />
brasileiro, inclusive em momentoschave<br />
como na greve geral de 1917,<br />
que começou com tecelãs que reclamavam<br />
dos abusos sexuais cometidos<br />
pelos capatazes e das más condições<br />
de trabalho.<br />
Lutaram pela incorporação de alguns<br />
de seus direitos na Consolidação das<br />
Leis do Trabalho – CLT – em 1937, e<br />
conseguiram garantir alguns importantes,<br />
como da proteção à maternidade<br />
e da igual remuneração. Em 1968,<br />
nas greves de Contagem e Osasco,<br />
marcos da resistência no período da<br />
ditadura, é possível observar a partici-<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
14<br />
pação de mulheres dirigentes sindicais.<br />
Na década de 1970, com o aumento<br />
da força de trabalho feminina, houve<br />
também um significativo aumento das<br />
mulheres sindicalizadas, índice que era<br />
superior ao aumento da sua participação<br />
no mercado de trabalho.<br />
Ainda segundo o artigo, o mundo<br />
do trabalho viveu nas décadas de<br />
1980 e 1990 momentos antagônicos.<br />
No Brasil, a década de 1980 é marcada<br />
pela redemocratização, pela<br />
intensa participação popular e pela<br />
expansão do movimento sindical, que,<br />
com mais de 700 greves vive sua<br />
“época de ouro” (SANTANA, 2004).<br />
A luta pela democratização das relações<br />
de gênero persistiu e, com a<br />
Constituição Federal de 1988, as<br />
mulheres conquistaram importantes<br />
vitórias no patamar político e jurídico.<br />
Nas greves da década de 1980, como<br />
na greve de 1988, em Volta Redonda,<br />
as mulheres atuaram não só como<br />
apoio, mas também ativamente nas<br />
mobilizações, articulações e divulgação<br />
do movimento grevista.<br />
Já na década de 1990, a “década<br />
neoliberal”, o mundo do trabalho vive<br />
sua fase de enxugamento, com a reestruturação<br />
produtiva, a flexibilização e<br />
a precarização do emprego os sindicatos<br />
se fragmentam, aumentando as<br />
dificuldades e as barreiras para ampliar<br />
a participação e as conquistas das trabalhadoras.<br />
A autora defende a necessidade<br />
uma atuação conjunta e articulada da<br />
classe trabalhadora para garantir a<br />
aplicação das Convenções 100 e 111<br />
da Organização Internacional do Trabalho<br />
– OIT, respectivamente acerca<br />
do salário igual para trabalho igual e<br />
sobre a igualdade de oportunidades<br />
entre homens e mulheres no mercado<br />
de trabalho.<br />
Ela conclui que a luta das mulheres<br />
sempre esteve diretamente ligada à<br />
luta dos trabalhadores, no entanto,<br />
parece estar invisível, como se estivesse<br />
escondida sob uma “dominação<br />
masculina” (BOURDIEU, 1999). Na<br />
sociedade contemporânea a ideologia<br />
predominante ainda é marcada por<br />
uma visão masculinizada na qual a<br />
imagem feminina é um estereótipo<br />
sem voz (SOUZA-LOBO, 1991), a<br />
maioria dos movimentos, seja sindical,<br />
popular ou partidário, reproduz, de<br />
alguma forma, essa ideologia.<br />
INTERNET<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
15<br />
Pela primeira vez,<br />
SAAEMG tem<br />
uma mulher na<br />
presidência<br />
O Sindicato dos Auxiliares de Administração<br />
Escolar (SAAEMG), com<br />
33 anos de existência e 60% de mulheres<br />
na base, nunca havia sido presidido<br />
por uma mulher. No dia 13 de<br />
dezembro de 2014, o SAAEMG começou<br />
a escrever uma nova história<br />
com a posse da advogada Rogerlan<br />
Augusta de Morais (foto).<br />
Rogerlan, 46 anos, é a quinta presidente<br />
do sindicato. Antes de assumir a<br />
presidência, coordenou o Departamento<br />
Jurídico durante 12 anos. Rogerlan<br />
também fez parte da diretoria da Central<br />
dos Trabalhadores e Trabalhadoras do<br />
Brasil (CTB/MG) como secretária geral<br />
até 2013. Hoje ocupa o cargo na diretoria<br />
plena da CTB Nacional.<br />
Elas por Elas - Como você vê a<br />
atuação das mulheres no movimento<br />
sindical dos Auxiliares de Administração<br />
Escolar?<br />
Somos a maioria da população, somos<br />
a maioria de trabalhadores nas<br />
instituições de ensino (em torno de<br />
60%) e, para o mandato de 2014/2018<br />
a categoria elegeu pela primeira vez<br />
uma mulher para presidir o SAAEMG.<br />
Neste mandato representamos percentual<br />
de 42% de mulheres na diretoria e<br />
conselho fiscal. A pretensão é que a<br />
representação de gênero seja de 50%<br />
o que, entendemos, confere maior legitimidade<br />
e equidade na condução da<br />
entidade sindical.<br />
O SAAEMG, em várias oportunidades,<br />
tem ressaltado a importância da<br />
mulher para a categoria e incentivado<br />
sua participação nas demandas do sindicato<br />
e registrado que é um direito dela<br />
assumir essa bandeira, que a sociedade<br />
(machista) não faz nenhum favor em<br />
apoiá-las. Aliás, é um dever já que lutamos<br />
por direitos iguais em todas as<br />
áreas e sabemos da dedicação e influência<br />
da mulher na formação da<br />
sociedade em todos os níveis, familiar e<br />
profissional.<br />
Você acredita que há preconceito<br />
de gênero, mesmo numa categoria<br />
majoritariamente feminina?<br />
O aumento da participação feminina<br />
nos postos de trabalho viabilizou<br />
as demandas de igualdade de gênero<br />
também no meio sindical, que antes<br />
era predominantemente masculino.<br />
Infelizmente, ainda há preconceito que<br />
não se manifesta abertamente (já que<br />
se tornou politicamente incorreto pormenorizar<br />
a mulher). Isso ainda ocorre<br />
por meio de piadinhas que ao serem<br />
contestadas pelas mulheres, são justificadas<br />
como uma brincadeira inocente<br />
pelos homens. Sabemos que, no<br />
fundo, é preconceito sim. Na nossa ca -<br />
te goria esse preconceito não é tão<br />
acentuado, pois a maioria são mulheres<br />
que, a cada dia, mais se apoderam<br />
do seu espaço de forma natural e<br />
consciente.<br />
A pretensão é que, agora, com<br />
maior número de mulheres na diretoria,<br />
possamos criar uma secretaria ou diretoria<br />
de políticas para mulheres. Dessa<br />
forma, teremos condições de pensar a<br />
mulher no mundo do trabalho e no<br />
meio sindical, discutindo e desenvolvendo<br />
atividades que valorizem e defendam<br />
ainda mais sua importância na<br />
sociedade.<br />
FOTO CRÉDITO<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
16<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
ENTREVISTA<br />
RAIMUNDA GOMES<br />
“Não há igualdade<br />
de oportunidade<br />
para a mulher<br />
exercer o poder”<br />
Para a professora e dirigente da<br />
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras<br />
do Brasil (CTB), Raimunda Gomes<br />
(Doquinha), que já esteve à frente da<br />
Secretaria de Mulheres da entidade, a<br />
luta não é só de uma classe contra<br />
outra, ela é também de gênero, raça e<br />
orientação sexual. Segundo ela, no<br />
caso especifico das mulheres, está comprovado<br />
que elas possuem a mesma<br />
capacidade política e administrativa<br />
dos homens, o que lhes falta é igualdade<br />
de oportunidade para exercer o poder.<br />
Ela afirma que ao romper com o<br />
estereotipo de passiva e subserviente e<br />
assumir o espaço público, as mulheres<br />
disputam com seus próprios companheiros<br />
homens e também com as<br />
próprias mulheres, que por falta de<br />
compreensão do papel da mulher na<br />
sociedade patriarcal, acabam reproduzindo<br />
a discriminação contra a mulher<br />
no movimento sindical, criando armadilhas<br />
para as mulheres não ascenderem<br />
politicamente.<br />
Doquinha acredita que há um jeito<br />
masculino e outro feminino de fazer<br />
sindicalismo. “Os homens pensam mais<br />
na universalidade das lutas e as mulheres<br />
pensam para além disso, elas conciliam<br />
a pauta geral do movimento sindical<br />
com as especificidades que brotam das<br />
questões subjetivas da luta, principalmente<br />
em relação à sua condição no<br />
mundo do trabalho”, afirma. Confira<br />
a entrevista.<br />
Elas por Elas: Como você avalia<br />
a participação das mulheres no movimento<br />
sindical?<br />
Determinante no processo de democratização<br />
dos espaços e valorização<br />
das opiniões que as mulheres possuem<br />
acerca dos mais diversos assuntos, principalmente<br />
seus direitos no mundo do<br />
trabalho. A pesar da sub-representação<br />
nas direções, nos cargos decisórios das<br />
entidades sindicais, a participação das<br />
mulheres tem pavimentado uma estrada<br />
que é longa e íngreme, haja vista, a<br />
conquista de secretarias da mulher na<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
17<br />
maioria dos sindicatos, federações, confederações<br />
e centrais sindicais.<br />
Na CTB, há alguma resolução sobre<br />
paridade de gênero ou cotas nas<br />
gestões dos sindicatos?<br />
Na CTB, a cota de 30% de gênero<br />
em todas os cargos e instâncias de direção,<br />
é cláusula pétrea, nasceu com a<br />
central, somos uma Central Sindical de<br />
Trabalhadores e Trabalhadoras, está em<br />
seu Estatuto Social e, na resolução aprovada<br />
no 1º Encontro Nacional de Mulheres<br />
da CTB, é uma exigência o seu<br />
cumprimento. Orientamos que os sindicatos<br />
filiados à central apliquem o dispositivo<br />
estatutário.<br />
Sobre a paridade, eu diria que o assunto<br />
ainda precisa de debate no interior<br />
da central, para ser de fato uma conquista<br />
e não uma imposição, a paridade exige<br />
que os homens também estejam convencidos<br />
da legitimidade do pleito, e<br />
não apenas apoiem, mas, fundamentalmente,<br />
entendam que para as mulheres<br />
atuarem paritariamente, implicaria em<br />
uma mudança de postura e mentalidade.<br />
Você acredita que no sindicalismo<br />
as mulheres no poder precisam provar<br />
sua capacidade política e que as exigências<br />
são maiores do que com os<br />
homens?<br />
Tem sido a tônica até então, aos<br />
homens o direito de aprender fazendo<br />
e até errar, às mulheres o dever de<br />
fazer certo, com perfeição, o que é<br />
muito injusto, porque a condição militante<br />
é extremamente diferente entre<br />
homens e mulheres. O cenário é mais<br />
desfavorável às mulheres, pela construção<br />
histórica do seu papel cultuado pela<br />
sociedade machista e patriarcal, que<br />
lhe reserva como locus de atuação o<br />
espaço privado para um ser conciliador,<br />
passivo e subserviente, o que, por si<br />
só, já caracteriza discriminação de gênero.<br />
Ao romper com esse estereótipo<br />
e assumir o espaço público, as mulheres<br />
disputam com seus próprios companheiros,<br />
os homens, e são eles em<br />
maior quantidade, mas também as próprias<br />
mulheres, por falta de compreensão<br />
do papel da mulher na sociedade patriarcal,<br />
que reproduzem a discriminação<br />
contra a mulher no movimento sindical,<br />
criando armadilhas para as mulheres<br />
não ascenderem politicamente.<br />
Em síntese, a luta não é só de uma<br />
classe contra outra, ela é também de<br />
gênero, raça e orientação sexual, essas<br />
ditas minorias, não aceitam mais serem<br />
tratadas como alguém que precisa de<br />
outro para lhe defender, estão na condição<br />
de protagonistas da própria luta.<br />
No caso específico das mulheres, está<br />
comprovado que possuem a mesma<br />
capacidade política e administrativa<br />
dos homens, o que lhes falta é oportunidade<br />
e igualdade de oportunidade<br />
para exercer o poder.<br />
Na sua opinião, há um jeito ou<br />
um estilo diferente entre as mulheres<br />
quando elas participam do movimento<br />
sindical ou estão na liderança dessas<br />
entidades?<br />
Com certeza, como já dizia Elizabeth<br />
Souza Lobo, há jeito masculino e um<br />
jeito feminino de fazer sindicalismo, os<br />
homens pensam mais na universalidade<br />
das lutas, as mulheres pensam para<br />
além da universalidade, elas conciliam a<br />
pauta geral do movimento sindical com<br />
as especificidades que brotam das questões<br />
subjetivas da luta, principalmente,<br />
em relação à sua condição no mundo<br />
do trabalho.<br />
Pela sua própria condição e feminilidade<br />
as mulheres quando assumem<br />
as direções das entidades criam ou recriam<br />
ambientes que possibilitem maior<br />
conforto e interlocução na relação de<br />
gênero, ampliam a participação das<br />
mulheres e pautam nas negociações<br />
tanto salariais como políticas as questões<br />
específicas do universo feminino. Óbvio,<br />
que muitas mulheres ainda reproduzem<br />
o pensamento machista ocasionado<br />
pela ausência de formação política que<br />
possibilita a consciência de classe e<br />
gênero. De modo geral, as mulheres<br />
são bastante comprometidas com a<br />
democratização dos espaços e formação<br />
de novas lideranças.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
foto UNE
Feminismo<br />
na América<br />
Latina<br />
19<br />
FEMINISMO<br />
<strong>POR</strong> SAULO ESLLEN MARTINS<br />
Uma nova geração de lutadoras ganha<br />
espaço nos movimentos sociais e políticos<br />
Inspiradas pelas mulheres<br />
que, pela liberdade feminina,<br />
queimaram sutiãs em praça<br />
pública, lutaram pelo direito<br />
ao voto e a favor do uso de<br />
contraceptivos, elas estão na<br />
cidade, no campo, escolas e<br />
empresas, demonstrando o<br />
seu poder. A exemplo das feministas<br />
que fizeram história<br />
em várias partes do mundo,<br />
ganha força uma nova geração<br />
de mulheres que lutam pela<br />
emancipação feminina.<br />
São jovens, inteligentes, trabalhadoras<br />
e engajadas em movimentos<br />
sociais e políticos.<br />
Esse é um pequeno perfil das feministas<br />
que surgem na América Latina.<br />
Muitas delas não militam diretamente<br />
em movimentos, essencialmente de<br />
gênero, mas onde atuam defendem a<br />
bandeira da igualdade de direitos entre<br />
mulheres e homens.<br />
A partir do olhar de mulheres em<br />
quatro países: Brasil, Argentina, Nicarágua<br />
e Venezuela, é possível traçar<br />
um quadro da atuação feminista contemporânea<br />
no continente. Elas representam<br />
seus países e orga -<br />
nizações, todavia, também são as<br />
vozes de muitas estudantes, sindicalistas,<br />
artistas, jornalistas e outras cidadãs<br />
que compartilham desejos comuns,<br />
entre eles a vontade de viver em<br />
um mundo mais igualitário e menos<br />
preconceituoso. Cada uma, a seu<br />
modo, imprime uma nova maneira de<br />
ser feminista. De toda forma, não estão<br />
só nos bastidores, são protagonistas e<br />
recebem os holofotes do trabalho que<br />
desenvolvem.<br />
Mulheres diferentes, que atuam em<br />
culturas distintas, mas que compartilham<br />
muitos sonhos em comum. Amantes<br />
da liberdade, defensoras da equidade<br />
de gênero, feministas por essência e<br />
trajetória. Escritoras de suas próprias<br />
histórias. Falam por elas mesmas o<br />
que pensam sobre o contexto político<br />
e a luta feminista em seus países.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
20<br />
Virgínia Barros<br />
Movimento estudantil<br />
Presidenta da União Nacional dos<br />
Estudantes no Brasil, cursou a faculdade<br />
de Direito, em Recife. Foi presidenta da<br />
União Estadual dos Estudantes daquele<br />
estado. É militante da União da Juventude<br />
Socialista (UJS) e do Partido Comunista<br />
do Brasil (PCdoB).<br />
ARQUIVO UNE<br />
O movimento estudantil é uma escola<br />
capaz de ampliar a nossa visão da educação<br />
e o nosso entendimento sobre o<br />
Brasil. Eu sempre senti que o conhecimento<br />
assimilado na sala de aula tem<br />
limites. Temos mais possibilidades de<br />
entender a sociedade a partir do momento<br />
em que incorporamos a luta dos<br />
movimentos sociais. Daí em diante,<br />
cria-se a possibilidade de compreender<br />
e interferir nos rumos da sociedade.<br />
Na história brasileira, podemos fazer<br />
referência a uma série de mulheres<br />
que se destacaram pela luta política e<br />
social. Contudo, uma, em especial, é<br />
a Patrícia Galvão (Pagu). Foi uma das<br />
figuras mais importantes do modernismo<br />
brasileiro. Através da arte e da militância<br />
política, ela contribuiu para um<br />
país melhor. É uma mulher que me<br />
inspirou com sua rebeldia e sensibilidade.<br />
É uma história que deve ser contada<br />
para as próximas gerações.<br />
Outra mulher que provocou mudanças<br />
na forma de participação das<br />
brasileiras na política é a presidenta<br />
Dilma. Ela tem uma trajetória marcante,<br />
desde a juventude, quando resistiu de<br />
forma tão brava à ditadura militar.<br />
Abriu portas para que muitas outras<br />
possam percorrer esse caminho.<br />
Ainda existe resistência à participação<br />
das mulheres em diversos espaços<br />
de poder. Isso acontece no ambiente<br />
das universidades, no ramo empresarial,<br />
na área científica e também na política.<br />
As mulheres que se destacam nas esferas<br />
de poder, infelizmente, ainda sofrem<br />
preconceito. Só que cada vez<br />
mais mulheres têm vencido essas barreiras<br />
e contribuído para naturalizar a<br />
presença feminina nesses espaços.<br />
As universidades brasileiras ainda<br />
reproduzem as contradições sociais. A<br />
estrutura destas instituições de ensino<br />
ainda não está adaptada para a nossa<br />
presença. Isso faz com que ainda tenhamos<br />
casos de violência de gênero<br />
nestes espaços. A violência é um braço<br />
do machismo, mas não é o único.<br />
Ainda temos muito a avançar na luta<br />
feminista em nosso país.<br />
Eu me considero uma feminista e a<br />
UNE é uma entidade feminista. Nós<br />
temos objetivos gerais em torno do<br />
curso da luta política brasileira, em especial,<br />
no debate sobre a universidade.<br />
Consideramos que não é possível debater<br />
a sociedade brasileira sem inserir<br />
nesse contexto a luta pela emancipação<br />
das mulheres.<br />
Ser feminista é compreender que<br />
homens e mulheres devem ter direitos<br />
iguais e oportunidades compatíveis<br />
para desenvolver suas potencialidades.<br />
É somar à luta para fazer com que as<br />
mulheres possam estar em um campo<br />
que é seu de direito. Ser protagonista<br />
na sociedade, sem nenhum tipo de resistência<br />
e preconceito de gênero, classe,<br />
orientação sexual ou raça. É lutar<br />
por uma sociedade igualitária.<br />
Diana Broggi<br />
Movimentos populares<br />
Graduada em psicologia, milita no<br />
movimento Popular Pátria Grande da<br />
Argentina e na Associação dos Trabalhadores<br />
do Estado. Foi integrante da<br />
Direção das Políticas de Gênero da cidade<br />
de La Plata, província de Buenos<br />
Aires.<br />
Na América Latina, as expressões<br />
dos movimentos de mulheres e feministas<br />
são heterogêneas e amplas. O<br />
processo histórico do feminismo não<br />
é o mesmo na Venezuela, Argentina,<br />
Brasil ou Nicarágua. Contudo, ainda<br />
assim, com as diferenças e origens<br />
próprias em cada território, há um<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
21<br />
dado inegável que é o avanço na organização<br />
e o crescimento do movimento<br />
feminista em nossos países. Isso tem<br />
um impacto integral, na medida em<br />
que incorporamos a luta das mulheres<br />
em todos os movimentos. Um exemplo<br />
claro disso é a Marcha Mundial de Mulheres,<br />
da qual somos parte junto a<br />
outras organizações na Argentina. Estrategicamente<br />
nos reunimos desde a<br />
perspectiva feminista na luta contra a<br />
mercantilização dos nossos corpos e a<br />
exploração do trabalho feminino.<br />
Hoje, temos algumas lutas que são<br />
centrais em nosso país, tais como o<br />
aborto legal, livre, seguro e gratuito e<br />
o fim da violência de gênero. Nos organizamos<br />
para conquistar direitos para<br />
as diversas identidades de gênero, não<br />
só para as mulheres. A partir de Pátria<br />
Grande somos parte desse processo<br />
na Argentina. Nos consideramos feministas<br />
populares e apostamos no crescimento<br />
dos movimentos para potencializar<br />
mudanças verdadeiras em nossa<br />
sociedade dominada pelo machismo<br />
em um sistema capitalista e patriarcal.<br />
Exercemos um papel de protagonistas<br />
das organizações, articuladoras,<br />
parte da coluna vertebral dos movimentos:<br />
nós garantimos, e não apenas<br />
contribuímos. Muitas vezes, tornamos<br />
possível a vida orgânica das entidades,<br />
levamos adiante debates e lutas que<br />
não se limitam a reivindicações particulares.<br />
Por isso, lutamos também pela<br />
terra, habitação e trabalho digno. Devemos<br />
soar o alarme acerca da invizibilização<br />
do papel fundamental das<br />
mulheres na história dos movimentos<br />
e organizações em processo de luta.<br />
Entendemos que as organizações<br />
necessitam do feminismo para compreender<br />
as múltiplas formas de opressão<br />
a que estamos expostos/as e batalhar<br />
contra elas de uma maneira integral.<br />
O feminismo popular tem uma forte<br />
âncora nos territórios, não é um mero<br />
posicionamento ideológico, por causa<br />
disso devemos construir laços de resistência<br />
onde habitamos, isto é: escolas,<br />
sindicatos, famílias, locais de trabalho.<br />
O feminismo é uma ferramenta privilegiada<br />
contra o patriarcado e o sistema<br />
capitalista, por isso dizemos que “sem<br />
feminismo não existe socialismo”.<br />
Patricia Zuniga<br />
Movimento de mulheres<br />
no campo<br />
Jornalista e radialista na cidade de<br />
Carazo, Nicarágua. Faz parte do Club<br />
Metamorfosis, uma organização que<br />
reúne homens e mulheres na luta por<br />
igualdade de gênero. Representa o movimento<br />
de mulheres campesinas do<br />
estado de Rosário e integra a Alba Movimentos<br />
em seu país.<br />
Em relação ao lugar que as mulheres<br />
ocupam na Nicarágua, nos últimos<br />
anos tivemos alguns avanços, mas<br />
SAULO ESLLEN MARTINS<br />
ainda existem barreiras que devem ser<br />
destruídas. A luta árdua e contínua<br />
para erradicar a violência de gênero é<br />
uma delas. Contudo, os índices são<br />
menores, pois as condições de vida<br />
melhoraram em pequena parte, no entanto,<br />
de forma significativa.<br />
Considerando que 52% da população<br />
nicaraguense é de mulheres, diversos<br />
movimentos sociais e coletivos<br />
de mulheres estão preocupados com a<br />
reivindicação de direitos e com a equidade<br />
de gênero na sociedade. Esperase,<br />
não só que a mulher exerça seus<br />
direitos constitucionais, mas também<br />
que tenha voz na política e ocupe<br />
cargos públicos importantes.<br />
A maioria das mulheres se dedica<br />
ao trabalho não remunerado, pois estão<br />
ocupadas com tarefas reprodutivas e<br />
produtivas que não lhes geram rendas,<br />
todavia, contribuem, sobremaneira,<br />
para que os homens possam desempenhar<br />
funções em que ganham dinheiro.<br />
Cuidam dos lares, dos filhos e<br />
dos idosos.<br />
Existem outras desigualdades que<br />
atingem principalmente as mulheres<br />
pobres, que geralmente vivem em condições<br />
precárias e raras vezes têm acesso<br />
à educação, o que limita suas opções<br />
profissionais. Houve um crescimento<br />
dos postos de trabalho remunerado<br />
para a mulher, mas quando consegue<br />
emprego em uma empresa, oficina ou<br />
até mesmo como doméstica, ela fica<br />
sobrecarregada com a dupla jornada<br />
ou é obrigada a pagar outra pessoa<br />
para cuidar de sua casa.<br />
É preciso elaborar políticas que atinjam<br />
homens e mulheres. Já existe uma<br />
lei que aplica 50/50 em cargos públicos,<br />
entretanto, o sistema capitalista e individualista<br />
tem uma forma de poder<br />
machista e isso nos afeta sobremaneira.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
22<br />
Desde o momento em que ainda<br />
usam fraldas, homens e mulheres deveriam<br />
ter as mesmas oportunidades,<br />
pois é em casa que as desigualdades<br />
de gênero devem desaparecer e dessa<br />
maneira todas as pessoas seriam educadas<br />
para servir a sociedade.<br />
As bandeiras de luta dos movimentos<br />
de mulheres reivindicam principalmente<br />
uma mudança no olhar da sociedade<br />
que nos vê como objetos sexuais, sobretudo,<br />
através da mídia televisiva,<br />
onde somos coisificadas. Temos campanhas<br />
que unem homens e mulheres<br />
para erradicar também o assédio sexual<br />
sofrido nas ruas.<br />
Muitas vidas de mulheres foram<br />
perdidas nas mãos de homens, porém,<br />
isso não foi em vão, porque muitas<br />
deixaram um caminho que seguimos<br />
para avançar a cada dia, apesar de enfrentarmos<br />
diversos desafios. No entanto,<br />
as mulheres não podem desistir,<br />
mas, sim, continuar lutando por seus<br />
direitos. Como seres humanos temos<br />
os mesmos direitos e eles devem ser<br />
respeitados.<br />
Vanessa Rangel<br />
Militância política<br />
Comunicadora popular, fotógrafa,<br />
redatora e editora, participa da Corrente<br />
Revolucionária Bolívar e Zamora, na<br />
Venezuela, uma entidade dos movimentos<br />
sociais, com intensa inserção na<br />
esfera política.<br />
SAULO ESLLEN MARTINS<br />
Com a chegada do presidente Hugo<br />
Chávez, em 1999, o governo bolivariano<br />
ficou marcado pela preocupação<br />
em atender as reivindicações de todos<br />
os setores que por décadas haviam<br />
sido excluídos e maltratados, dedicando<br />
especial atenção à emancipação da<br />
mulher. Em parte, isso pode ser confirmado<br />
com a aprovação da Lei Orgânica<br />
sobre os direitos das mulheres<br />
a uma vida livre de violência, em 2007,<br />
e a criação do Ministério do Poder Popular<br />
para a Mulher e a Igualdade de<br />
Gênero, em 2009, que tem dentro de<br />
suas funções proteger os direitos das<br />
mulheres e impulsionar projetos socioprodutivos.<br />
Ao longo da história mundial, o<br />
papel da mulher tem sido essencial<br />
para as revoluções. Os historiadores,<br />
seguindo o sistema patriarcal, têm se<br />
encarregado de apagar a imagem de<br />
todas aquelas que tiveram um papel<br />
de protagonista. Na Venezuela isso<br />
está mudando, o comandante Chávez<br />
entendeu a importância da mulher em<br />
todos os processos e compreendia a<br />
luta pela equidade de gênero e a necessidade<br />
de mudança desse sistema<br />
patriarcal dentro do marco da revolução,<br />
por isso, em diversas ocasiões se proclamou<br />
feminista. Trouxe à tona as<br />
histórias de mulheres guerreiras, ele<br />
sabia que esses exemplos nos dariam<br />
força para as batalhas que viriam.<br />
Segundo dados oficiais, desde o início<br />
da revolução, até 2014, a taxa de<br />
desemprego da mulher diminuiu 9%.<br />
Outro dado importante é o fato de<br />
55% dos Conselhos Comunais serem<br />
dirigidos por mulheres e 60% dos<br />
chefes das Unidades de Batalha Bolívar<br />
e Chávez, do Partido Socialista, são<br />
mulheres.<br />
Essas mudanças vão além das instituições<br />
governamentais e dos processos<br />
produtivos. É importante ressaltar os<br />
números mencionados, porque demonstram<br />
que hoje em dia a mulher<br />
venezuelana tem um papel vital dentro<br />
do processo revolucionário, pessoas<br />
que anos atrás estavam dedicadas somente<br />
ao cuidado com seus filhos e à<br />
manutenção da casa, agora são grandes<br />
lideranças para as comunidades em<br />
que habitam e para o país. Exercem<br />
suas funções com a ternura que nos<br />
caracteriza, mas, ao mesmo tempo,<br />
com a firmeza necessária.<br />
Prefeitas, ministras, governadoras,<br />
deputadas, assessoras, dirigentes de<br />
partidos políticos, são alguns dos papéis<br />
que atualmente são desenvolvidos. Não<br />
tem sido fácil, sendo que nossa batalha<br />
diária também é com essa realidade<br />
machista latino-americana que nos persegue.<br />
Ainda que os avanços tenham<br />
sido significativos, existe um longo caminho<br />
a ser percorrido. O mais importante,<br />
contudo, é que contamos<br />
com muitos companheiros/as que se<br />
questionam e entendem que não se<br />
trata de uma questão separatista, muito<br />
antes pelo contrário, o feminismo é<br />
uma questão complementar ao processo<br />
revolucionário que estamos vivendo.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
23<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
24<br />
LUCIO BERNARDO JR. /C.D<br />
POLÍTICA<br />
<strong>POR</strong> NANCI ALVES<br />
Longe das<br />
cotas de gênero<br />
Mulheres continuam minoria<br />
na representação política<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
25<br />
Representando mais de 50% da<br />
população e do eleitorado, a mulher<br />
responde também por mais de 45%<br />
da produção brasileira e pelo sustento<br />
de 1/3 das famílias, mas esse protagonismo<br />
ainda não se reflete na representação<br />
política feminina.<br />
De acordo com o Tribunal Superior<br />
Eleitoral (TSE), nas eleições de 2014,<br />
o voto feminino teve o maior peso da<br />
história: 52% dos 142 milhões de eleitores<br />
brasileiros são mulheres. Nas últimas<br />
eleições, houve aumento também<br />
da participação feminina em quase todos<br />
os cargos, o que significa um crescimento<br />
de 46,5% de candidatas em<br />
comparação a 2010. A proporção de<br />
candidatas aptas a disputar algum cargo,<br />
em 2010, incluindo vices e suplentes,<br />
foi de 22,43% ou 5.056 candidatas.<br />
Já em 2014, foram 8.131 postulantes,<br />
ou seja, 31,07% do total de 26.172<br />
candidatos/as.<br />
Porém, ao se considerar apenas as<br />
candidaturas aptas, esse número cai<br />
para 6.475 mulheres, num total de<br />
22.530 registros, fazendo com que o<br />
percentual de candidaturas femininas<br />
(28,62%) ficasse abaixo da cota (30%)<br />
garantida por lei desde 2009. Mesmo<br />
com a campanha lançada pelo TSE,<br />
em março de 2014, “Mulher na Política”,<br />
vários partidos tiveram suas candidaturas<br />
indeferidas por falta de cumprimento<br />
da cota de gênero.<br />
Para o cargo de deputada federal,<br />
foram 1.755 candidatas; para deputada<br />
estadual e distrital, foram 4.617; para<br />
o Senado, apenas 33 mulheres e para<br />
o governo de Estado, 20 candidatas e<br />
44 à vice, além de 03 candidatas à<br />
presidente e 03 a vice.<br />
Apesar de ter crescido o número<br />
de eleitoras e de candidatas, e ainda<br />
que o cargo mais importante do país<br />
seja ocupado por uma mulher, elas<br />
permanecem minoria em termos de<br />
representação política. O resultado do<br />
último pleito eleitoral mostrou que o<br />
parlamento brasileiro continua masculino,<br />
branco e empresarial - uma realidade<br />
difícil de se mudar no Brasil. Na<br />
Câmara dos Deputados, houve um pequeno<br />
aumento do número de mulheres,<br />
mas ainda não ultrapassa os 10%.<br />
Para o mandato que se iniciou em<br />
2015, foram eleitas 51 deputadas federais,<br />
o que significa uma proporção<br />
de uma mulher para cada dez deputados<br />
eleitos, pois são 513 cadeiras. Os estados<br />
de Alagoas, Espírito Santo, Mato<br />
Grosso, Paraíba e Sergipe não tiveram<br />
nenhuma mulher eleita deputada federal.<br />
Minas Gerais foi o estado em que as<br />
mulheres tiveram menos destaque, sendo<br />
que a primeira na lista de contagem<br />
de votos aparece apenas na trigésima<br />
quinta posição.<br />
Nas assembleias estaduais e na Câmara<br />
Legislativa do Distrito Federal, o<br />
número de eleitas caiu de 139 em<br />
2010 para 120 deputadas em 2014.<br />
Ou seja, a representação popular nos<br />
estados continua predominantemente<br />
masculina, já que apenas 11,3% dos<br />
“o parlamento<br />
brasileiro<br />
continua<br />
masculino,<br />
branco e<br />
empresarial”<br />
deputados estaduais e distritais são mulheres.<br />
A bancada feminina cresceu<br />
apenas no Ceará, Distrito Federal,<br />
Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso<br />
do Sul. Em 17 estados, houve diminuição<br />
no número de candidatas eleitas.<br />
No Senado, foram eleitas apenas<br />
cinco mulheres para as 27 vagas disponíveis,<br />
o que representa apenas<br />
18,5% do total dos senadores eleitos e<br />
13% da Casa (são 88 cadeiras), já que<br />
outras seis senadoras cumprem mandato<br />
até 2019 (em 2014, foi renovação de<br />
um terço apenas).<br />
E o pior: para governo de estado,<br />
somente uma mulher foi eleita. Tratase<br />
de Suely Campos (PP), em Roraima,<br />
que, na verdade, substituiu o marido,<br />
Neudo Campos, considerado inelegível<br />
pela Justiça Eleitoral em função da Lei<br />
da Ficha Limpa.<br />
Historicamente, o número de governadoras<br />
nunca passou de 11%. A<br />
representatividade feminina nos governos<br />
estaduais não é tão pequena desde<br />
1998, quando foi eleita apenas uma<br />
mulher governadora. Em 2002, foram<br />
duas; em 2006, três governadoras e,<br />
em 2010, apenas duas novamente.<br />
Na disputa para a presidência da<br />
República, o segundo turno se deu<br />
entre um homem e uma mulher, mas<br />
entre as 11 candidaturas apresentadas,<br />
as 3 candidatas ficaram entre os 4 primeiros<br />
colocados no primeiro turno.<br />
De acordo com dados do TSE, Dilma<br />
Rousseff ficou com 41,6% dos votos,<br />
Marina Silva com 21,3% e Luciana<br />
Genro com 1,6%. Juntas, conseguiram<br />
somar cerca de 67 milhões de votos,<br />
ou seja, 64,5% dos votos válidos. O<br />
Partido dos Trabalhadores (PT) segue<br />
como o partido que mais elege mulheres<br />
no país (9 deputadas) seguido pelo<br />
PMDB (7) e PSDB (5).<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
26<br />
Quem são as novas<br />
parlamentares?<br />
A Secretaria de Políticas para as<br />
Mulheres publicou, recentemente, uma<br />
nota técnica (Mulheres nas Eleições de<br />
2014), em que analisa a participação,<br />
o perfil das eleitas e os constrangimentos<br />
à sua atuação no Congresso, dada a<br />
composição desta nova Legislatura.<br />
Segundo o documento, diante dos<br />
entraves à entrada das mulheres nas<br />
arenas decisórias, algumas usam do<br />
prestígio de suas famílias, assim como<br />
fazem alguns homens. Assim, das 51<br />
novas deputadas federais, 21,5% são<br />
esposas, ex-esposas ou filhas de homens<br />
que ocupam ou já ocuparam cargos<br />
eletivos ou Ministérios. Entre os deputados<br />
eleitos, 16% são herdeiros políticos.<br />
E entre as 5 novas senadoras, 3<br />
possuem capital delegado das famílias<br />
que possuem tradição política contra<br />
3 senadores dos 27 eleitos.<br />
Das 51 deputadas eleitas, 29 exercerão<br />
o cargo pela primeira vez, sendo<br />
que três delas conseguiram atingir o<br />
quociente eleitoral com seus próprios<br />
votos, não dependendo do total de<br />
votos de seus partidos ou coligações:<br />
Christiane Yared (PNT/RJ), Clarissa<br />
Garotinho (PR/RJ) e Shéridan<br />
(PSDB/RR).<br />
Com relação à faixa etária das eleitas,<br />
apenas duas são consideradas jovens,<br />
ou seja, menos de 29 anos. De<br />
acordo com a nota técnica da SPM, a<br />
faixa etária de maior concentração das<br />
deputadas está entre 30 e 59 anos,<br />
com 38 deputadas (74,55%). A mais<br />
jovem é a deputada Brunny da Silva<br />
do PTC/MG, com 25 anos, e a mais<br />
velha, Luiza Erundina, com 79 anos,<br />
em 2014. Também no Senado Federal,<br />
das eleitas, 60% se concentra ente 30<br />
e 59 anos. A senadora mais velha é<br />
Maria do Carmo do DEM de Sergipe,<br />
com 73 anos. “Acima dos 60 anos,<br />
tem 101 homens e 11 mulheres. As<br />
mulheres eleitas para a Câmara são<br />
mais jovens que os homens, o que<br />
pode significar que as gerações mais<br />
novas de mulheres têm maior entrada<br />
na política do que as mais velhas”, diz<br />
o documento da SPM.<br />
Sobre as profissões mais frequentes<br />
entre as deputadas eleitas, estão empresárias<br />
(11), seguido de professoras<br />
(6), advogadas (6) e médicas (5). Ao<br />
passo que entre as novas senadoras, há<br />
duas advogadas, uma pedagoga, uma<br />
empresária e uma jornalista. De acordo<br />
com o TSE, entre as principais ocupações<br />
das candidatas estão professoras, donas<br />
de casa, empresárias e estudantes. “Foram<br />
430 candidaturas de donas de casa,<br />
mas apenas Dulce Miranda conseguiu<br />
se eleger para o cargo de deputada federal,<br />
pelo PMDB de Tocantins. O que<br />
reforça a hipótese, sugerida anteriormente,<br />
de que o recrutamento de donas<br />
de casa serve apenas ao cumprimento<br />
da cota”, diz a nota técnica.<br />
“entre as<br />
principais<br />
ocupações das<br />
candidatas estão<br />
professoras,<br />
donas de casa,<br />
empresárias e<br />
estudantes”<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
27<br />
Dessa forma, sobre a escolaridade,<br />
com nível superior completo estão<br />
84,3% das deputadas eleitas e 80%<br />
das senadoras. Apenas uma senadora<br />
tem nível superior incompleto e uma<br />
deputada não terminou o ensino fundamental.<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Raça: desigualdade<br />
ainda maior<br />
Além da sub-representação de gênero,<br />
também chamou a atenção a<br />
grande desigualdade de “raça”/cor na<br />
legislatura eleita neste ano. As candidaturas<br />
ao cargo de deputada/o federal<br />
significam 41% de candidatos do sexo<br />
masculino e brancos, as mulheres brancas<br />
foram 17,4%, ao passo que os homens<br />
negros correspondem a 6,2%<br />
das candidaturas e as mulheres negras<br />
um percentual de apenas 3,7%.<br />
Para o demógrafo e professor da<br />
Escola Nacional de Ciências Estatísticas<br />
(ENCE/IBGE), José Eustáquio Diniz<br />
Alves, a situação é bem melhor do que<br />
há 30 anos, antes do processo de redemocratização,<br />
mas ainda falta um<br />
longo caminho para se atingir a equidade<br />
“racial” e de gênero. Uma ampla<br />
reforma política poderia mudar o quadro<br />
desigual das instituições representativas<br />
da república brasileira”, afirma.<br />
Os dados preliminares do TSE indicam<br />
que, entre as/os 513 deputadas/os<br />
eleitas/os, 410 (79,9%) se autodeclararam<br />
brancas/os, 81 deputados<br />
(15,79% ) se disseram pardas/os e 22<br />
(4,29%), pretas/os. “O que demonstra<br />
que os negros (pretos + pardos) ficaram<br />
apenas com 20% dos assentos da Câmara.<br />
Assim, os pardos e pretos estão<br />
também sub-representados na representação<br />
parlamentar. Nenhum candidato<br />
que se autodeclarou como amarelo<br />
ou índio foi eleito para a Câmara dos<br />
Deputados para a atual legislatura. As<br />
pessoas que se autodeclaram amarelos<br />
(orientais) possuem os melhores níveis<br />
educacionais, mas não conseguiram<br />
assentos no Congresso”, afirma o<br />
professor.<br />
Segundo ele, outro dado alarmante<br />
diz respeito aos povos indígenas que,<br />
mais uma vez, foram excluídos da Câmara<br />
dos Deputados. “As mulheres indígenas<br />
continuam sendo o grupo social<br />
mais discriminado do país e há 500<br />
anos sofrem com as consequências da<br />
colonização portuguesa em terras tupiniquins<br />
e com a violência real e simbólica<br />
de gênero. A população indígena sofreu<br />
um genocídio nos primeiros 300 anos<br />
da história do Brasil, sendo hoje o<br />
grupo populacional em pior condição<br />
social e o mais excluído da política e<br />
dos espaços de poder”, reforça.<br />
Vera Soares coordenadora da<br />
elaboração da nota técnica da SPM.<br />
Mais mulheres<br />
no Poder<br />
De acordo com a nota técnica As<br />
Mulheres nas Eleições de 2014, da<br />
Secretaria de Políticas para as Mulheres<br />
(SPM), o cenário decepcionante de candidaturas<br />
e das eleições que continuam<br />
excluindo a mulher e, em especial a<br />
negra e a indígena, é um indicativo da<br />
insuficiência do sistema eleitoral e político,<br />
presente hoje no Brasil. “Esse sistema<br />
necessita de mudanças urgentes<br />
para incluir de forma efetiva as mulheres<br />
na política, não só porque os partidos<br />
políticos são comandados por<br />
homens, mas também porque as candidaturas<br />
femininas não são prioritárias<br />
em termos do recebimento de financiamento<br />
por falta de apoio partidário”,<br />
diz a nota.<br />
Para a coordenadora da elaboração<br />
da nota técnica da SPM, Vera Soares,<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
28<br />
ainda não alcançamos a paridade de<br />
gênero na política, nos espaços de poder,<br />
porque a cultura brasileira é machista<br />
e discriminatória. “Esta cultura<br />
patriarcal que isola as mulheres do<br />
mundo da política está refletida nos<br />
partidos que, por sua vez, não têm a<br />
mínima preocupação em mudar esta<br />
realidade. Não incentivam as mulheres<br />
a participar, não compartilham estes<br />
espaços e não se incomodam com a<br />
pequena representação feminina nos<br />
poderes, pois já está naturalizada a exclusão<br />
da mulher também no mundo<br />
da política. Um contrassenso, pois ela<br />
tem papel fundamental na economia e<br />
inclusive nos movimentos sociais, dando<br />
enorme contribuição para a transformação<br />
deste país”, afirma.<br />
Na avaliação de Vera Soares, não<br />
há como votar em mulheres se elas<br />
aparecem pouco, exatamente porque<br />
os partidos não abrem oportunidades<br />
iguais às oferecidas aos homens. “Os<br />
partidos divulgam os candidatos que<br />
querem eleger e na maioria das vezes,<br />
aceitam as candidaturas femininas por<br />
exigência da lei, apenas para cumprir<br />
cotas. Assim, elas não têm visibilidade<br />
e enfrentam muito mais dificuldades<br />
como, por exemplo, obter recursos<br />
para financiar suas campanhas”, destaca.<br />
Segundo Vera Soares, a reforma<br />
política com enfoque de igualdade entre<br />
homens e mulheres, é o caminho para<br />
mudar esta realidade. “Precisamos de<br />
uma reforma política que inclua, por<br />
exemplo, o financiamento público de<br />
campanha e a mudança no formato<br />
das listas de candidaturas apresentadas<br />
pelos partidos políticos que contemple<br />
a alternância de nomes entre homens<br />
e mulheres, chegando à paridade entre<br />
os sexos”, afirma. Ela reforça que é<br />
necessário também estimular que as<br />
definições internas dos partidos políticos<br />
sejam tomadas em coletivos e não continuem<br />
nas mãos dos chefes políticos,<br />
que em geral são homens.<br />
Vera Soares destaca ainda o papel<br />
dos professores para a mudança dessa<br />
realidade. “A escola, desde a educação<br />
infantil, nas suas práticas educativas,<br />
precisa estar atenta para não reforçar<br />
estereótipos machistas, pois isso contribui<br />
para o fortalecimento da política<br />
patriarcal. E, no ensino médio, a escola<br />
precisa ajudar as meninas a perceberem<br />
que não precisam, necessariamente,<br />
escolher apenas profissões que têm a<br />
ver com cuidado e/ou educação como<br />
enfermeiras, assistente social, professoras<br />
e que podem ocupar espaços,<br />
historicamente masculinos, como as<br />
engenharias, a física, a matemática,<br />
etc. Com certeza, a escola não é determinante,<br />
mas pode reforçar estereótipos.<br />
É preciso que crie um ambiente<br />
de cultura, de respeito às diferenças,<br />
que valorize a diversidade, uma<br />
cultura igualitária. Com certeza, isso<br />
vai contribuir diretamente para a igualdade<br />
de gênero”, finaliza.<br />
A historiadora Renata Rosa (foto) e<br />
ex-candidata à deputada estadual por<br />
Minas (PCdoB), em 2014, também<br />
defende uma reforma política urgente,<br />
pois considera que a luta por mais espaço<br />
na política para as mulheres é<br />
pesada e chega a ser cruel, em muitas<br />
situações, uma vez que não só as<br />
razões econômicas, sociais e culturais<br />
impedem uma participação mais efetiva<br />
NANCI ALVES<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
29<br />
das mulheres na política. Na sua avaliação,<br />
boa parte das mulheres desconhece<br />
o funcionamento dos diferentes<br />
sistemas eleitorais e as diversas maneiras<br />
desenvolvidas para organização da participação<br />
política no mundo. “O poder<br />
é um domínio ainda ocupado hegemonicamente<br />
por homens e essa condição<br />
cria dificuldades para a disputa<br />
feminina no processo. As mulheres<br />
são tratadas como coadjuvantes: coordenam<br />
as campanhas dos homens,<br />
mobilizam, escrevem seus materiais de<br />
divulgação, mas quando resolvem participar<br />
como candidatas, dificilmente<br />
têm apoio efetivo, com garantia de<br />
tempo de TV, com financiamento necessário,<br />
com a presença de quadros<br />
militantes com experiência para coordenar<br />
e acompanhar suas candidaturas.<br />
São poucas as que podem contar com<br />
uma estrutura básica para sustentar<br />
sua experiência de disputa e assim fortalecer<br />
sua atuação política de modo a<br />
construir as bases para uma futura eleição”,<br />
ressalta.<br />
Desde 2009, Renata Rosa coordena<br />
a Secretaria Estadual sobre a questão<br />
da Mulher do PCdoB, em Minas Gerais,<br />
e garante que “não é fácil organizar<br />
essa luta, diante do abismo político<br />
que naturaliza a sub-representação política<br />
feminina e a dicotomia entre os<br />
espaços públicos e privados para a<br />
vida das mulheres, sem questionar suas<br />
triplas jornadas de trabalho, o tempo<br />
colossal gasto com o cuidado e manutenção<br />
de seus lares, tantas vezes marcado<br />
pela violência. Trabalho não remunerado<br />
que sustenta e garante as<br />
bases do sistema capitalista e da atuação<br />
dos homens na sociedade, com suas<br />
roupas limpas e passadas, com sua alimentação<br />
garantida, com seus lares<br />
administrados e seus filhos criados”.<br />
Portanto, segundo a historiadora, o<br />
debate sobre Reforma Política precisa<br />
ser pensado sob o ponto de vista do<br />
fortalecimento das mulheres neste processo.<br />
“Reforma é uma palavra ampla<br />
e pode nos jogar em uma armadilha.<br />
Não desejamos qualquer Reforma, mas<br />
uma reforma política que leve em consideração<br />
o cotidiano feminino nas cidades<br />
e pressuponha condições reais<br />
de igualdade na disputa política. Desejamos<br />
uma reforma política que elimine<br />
a influência do poder econômico nas<br />
eleições”, defende.<br />
REFORMA POLÍTICA<br />
DEMOCRÁTICA<br />
Caminho para aumentar<br />
a representação feminina<br />
Alterar a desigualdade de gênero<br />
na política é uma das propostas da<br />
Coalizão Democrática para a Reforma<br />
Política e Eleições Limpas. O movimento<br />
propõe a instalação de uma<br />
Constituinte Exclusiva para a consolidação<br />
da mudança do sistema político<br />
do país através de um projeto de lei de<br />
iniciativa popular (PL nº 6.316, de<br />
2013) encaminhado, ao Congresso.<br />
A Coalizão reúne mais de 100 instituições<br />
como Ordem dos Advogados do<br />
Brasil (OAB), a Conferência Nacional<br />
dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central<br />
dos Trabalhadores e Trabalhadoras do<br />
Brasil (CTB), Conic (Conselho Nacional<br />
de Igrejas Cristãs do Brasil), Movimento<br />
de Combate a Corrupção Eleitoral<br />
(MCCE), União Nacional dos Estudantes<br />
(UNE) e Movimento dos Pequenos<br />
Agricultores (MPA Brasil).<br />
“A proposta é de um projeto de tramitação<br />
ordinária, não implica em<br />
emenda constitucional. É de iniciativa<br />
popular, ou seja, não é de situação ou<br />
oposição e sim algo que pretende ser<br />
representativo de todos os segmentos<br />
democráticos da sociedade. Procuramos<br />
encontrar identidade em torno de<br />
número pequeno de questões, mas que<br />
são decisivas para destravar o processo<br />
democrático brasileiro, para criar<br />
um sistema de representação mais<br />
identificado”, explica Aldo Arantes, exdeputado<br />
na Constituinte de 1988 e<br />
coordenador da Comissão Especial da<br />
OAB de Mobilização para a Reforma<br />
Política.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
30<br />
Entre as propostas do projeto de<br />
iniciativa popular, Aldo Arantes destaca<br />
a que se refere ao financiamento de<br />
campanha. “A influência do poder econômico<br />
nas eleições, mais especificamente<br />
o papel das empresas privadas<br />
é um grave problema. Em 2014, o volume<br />
de recursos foi de 5 bilhões de<br />
reais; só para eleição de deputados federais<br />
foi de 1 bilhão de investimento,<br />
sendo que 77% foi contribuição de<br />
empresa. E aí está a gravidade da situação.<br />
A empresa contribui, mas<br />
depois quer contrapartida”, ressalta<br />
Aldo Arantes ao reforçar que o financiamento<br />
de campanha por empresas<br />
degrada o sistema político na medida<br />
em que é o canal de corrupção eleitoral.<br />
“O que vemos é essa situação produzir<br />
uma mágica de conteúdo antidemocrático:<br />
o poder do dinheiro faz com<br />
que a minoria da sociedade, os poucos<br />
que têm muito dinheiro, se transforme<br />
em maioria no Congresso e a maioria,<br />
ou seja, os professores, estudantes, trabalhadores<br />
em geral, desempregados,<br />
se tornem a minoria no Congresso.<br />
Por isso, propomos a proibição do financiamento<br />
de campanha por empresa<br />
e propomos a adoção do financiamento<br />
democrático: público, mas que permite<br />
financiamento de pessoa física, desde<br />
que limitado a R$700,00 por pessoa<br />
e, na somatória, não mais de 40% da<br />
contribuição pública”, explica.<br />
Outro ponto importante do projeto<br />
defendido pela Coalizão é o fim do sistema<br />
de votação em lista aberta, com<br />
a realização de eleições por um sistema<br />
proporcional em lista pré-ordenada e<br />
em dois turnos. “No primeiro, eleição<br />
em torno de propostas do partido, de<br />
ideias. E, no segundo turno, o eleitor<br />
escolhe o seu candidato. Isso fortalecerá<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
os partidos, grandes ou pequenos, que<br />
realmente têm representação da sociedade,<br />
impedindo os tais partidos de<br />
aluguel, reduzirá o custo das campanhas<br />
e a quantidade de candidato, permitindo<br />
uma efetiva fiscalização eleitoral. Com<br />
base no quociente eleitoral você define<br />
o número de candidatos e esse será o<br />
objeto da escolha da sociedade, no segundo<br />
turno”, explica.<br />
E para aumentar a representação<br />
feminina, o projeto de iniciativa popular<br />
propõe a alternância de gênero na<br />
composição da lista partidária, visando<br />
garantir que 50% dos cargos sejam<br />
ocupados por mulheres. De acordo<br />
com Aldo Arantes, a paridade garantirá<br />
um homem e uma mulher no primeiro<br />
turno e, no segundo turno, o<br />
eleitor escolhe.<br />
Para Vic Barros, presidenta da União<br />
Nacional dos Estudantes (UNE), uma<br />
reforma política precisa estar sintonizada<br />
com o problema da sub-representação<br />
de parcelas significativas da população.<br />
“Nós, mulheres, somos maioria da população,<br />
mas temos pequena participação<br />
na composição do Congresso. Os<br />
pretos e os pardos também são maioria<br />
e sua participação ainda é menor que a<br />
das mulheres; assim como trabalhadores<br />
e trabalhadoras do país. Vimos que<br />
cresceu a bancada empresarial, do agronegócio,<br />
etc. Precisamos de medidas,<br />
do ponto de vista legal, que garantam<br />
que a diversidade da nossa população<br />
esteja representada no Congresso Nacional<br />
por meio de uma reforma. Com<br />
uma reforma política, acredito que daremos<br />
um salto significativo para aproximar<br />
o Congresso da identidade do<br />
nosso povo”, afirma.<br />
www.reformapoliticademocratica.org.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
31<br />
Depoimentos de Deputadas Federais<br />
Jô Moraes - PCdoB<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Comecei minha atividade política<br />
no movimento estudantil como participante<br />
da Juventude Estudantil Católica.<br />
Depois, fui presidente de Diretório<br />
Acadêmico na Escola de Serviço Social.<br />
Veio a ditadura e, no ambiente de perseguição,<br />
fui presa e fiquei clandestina<br />
por 10 anos. Quando veio a anistia,<br />
pude retomar a atividade aberta. Naqueles<br />
10 anos, militei no Partido Comunista<br />
do Brasil, na ilegalidade. A<br />
luta da juventude pela liberdade foi<br />
muito forte em nosso país naquele período.<br />
O cotidiano da vida política é<br />
marcado por disfarçadas atitudes machistas.<br />
As mulheres têm que se preparar<br />
muito para que possam ser escutadas,<br />
principalmente quando chegam<br />
num ambiente novo. Quando uma mulher<br />
fala, os homens escutam mais por<br />
educação do que por respeito ao que<br />
as mulheres dizem. Só depois de muito<br />
tempo e comprovada a competência é<br />
que elas passam a ser ouvidas. O<br />
centro da minha luta está focada na<br />
construção de um novo projeto nacional<br />
de desenvolvimento que supere as desigualdades<br />
e inclua as mulheres. Isso<br />
exige mais espaços de poder; equidade<br />
no trabalho; autonomia na família; e<br />
incorporação das mulheres na economia<br />
em melhores condições e com mais<br />
qualificação. Esses aspectos têm que<br />
vir acompanhados de políticas públicas<br />
que garantam seus direitos sexuais e<br />
reprodutivos, igualdade no trabalho e<br />
apoio às mulheres vítimas de violência.<br />
Todo mundo fala em reforma política,<br />
mas há grandes diferenças nas propostas<br />
que estão circulando. No âmbito<br />
das demandas femininas, lutamos por<br />
paridade e equidade, ou seja, por ter a<br />
mesma proporção de homens e mulheres<br />
nas cotas e vagas partidárias.<br />
Demanda que está contemplada no<br />
Projeto de Lei nº 6.316, de 2013,<br />
elaborado por integrantes de mais de<br />
uma centena de organizações da sociedade<br />
civil, entre elas a OAB, a<br />
CNBB, a UNE, a UBES. O mais importante<br />
aspecto a ser garantido na<br />
Reforma Política é livrar o voto da intervenção<br />
do poder econômico.<br />
dep.moraes@camara.leg.br<br />
Bruniele Ferreira - PTC<br />
Não venho de berço político, mas<br />
sou casada com um ex-deputado estadual.<br />
Vendo o exemplo do meu marido,<br />
o compromisso que ele tinha e o belo<br />
trabalho que ele desenvolvia, passei a<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
admirar o seu trabalho e achei que ingressando<br />
na política poderia seguir os<br />
seus passos e lutar por um país melhor.<br />
Como apresentadora de TV, vivenciei<br />
muitas situações e acredito que, por<br />
meio da política, posso batalhar em<br />
prol das pessoas mais carentes e mudar<br />
o descaso com que são tratadas.<br />
Até agora não tive obstáculos, pelo<br />
contrário, fui muito bem recebida durante<br />
toda a campanha, por onde passava.<br />
Nós, parlamentares, sofremos<br />
ataques e sabemos respeitá-los.<br />
Sou favorável ao PL 3888, de<br />
2012, que está pronto para ser pautado<br />
em plenário e que proíbe o abrandamento<br />
de pena nos casos de crimes de<br />
violência doméstica e familiar contra<br />
as mulheres. Além disso, a sub-representação<br />
da mulher na política é um<br />
fator que muito me preocupa e estarei<br />
engajada na luta para mudar esta situação.<br />
Tem também a PEC 590, de<br />
2006, que obriga a Mesa Diretora da<br />
Câmara e do Senado a ter em sua<br />
composição ao menos uma mulher.<br />
Considero que nós, mulheres, temos<br />
e exercemos os mesmos direitos que<br />
os parlamentares homens, mas é natural<br />
que nós, mulheres, nos unamos, em<br />
especial quando o assunto envolve as<br />
políticas e programas direcionados para<br />
as mulheres, como a aprovação da lei<br />
Maria da Penha, a campanha do outubro<br />
rosa e outros.<br />
dep.brunny@camara.leg.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
32<br />
Dâmina Pereira -PMN<br />
Meu marido Carlos Alberto é quem<br />
é o político. Ele já foi deputado federal<br />
e prefeito, e eu sempre participei da<br />
política ao lado dele. Ao mesmo tempo<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
em que acompanhei sua trajetória, me<br />
dediquei à Secretaria de Assistência<br />
Social de Lavras e realizei diversos trabalhos<br />
que contribuíram bastante para<br />
essa minha decisão de enfrentar, pela<br />
primeira vez, uma vaga como deputada<br />
federal. No caso da última eleição,<br />
seria meu marido o candidato por Lavras,<br />
mas, até mesmo por perseguições<br />
políticas, ele decidiu não mais concorrer.<br />
Percebendo essa injustiça e a importância<br />
da causa, eu, como mulher,<br />
companheira de uma vida inteira, decidi<br />
enfrentar este novo desafio. Considero<br />
que, apesar de concorrer na política<br />
pela primeira vez, fui muito bem aceita,<br />
justamente por ser mulher. Estou no<br />
começo dos trabalhos na Câmara dos<br />
Deputados e por enquanto também<br />
não encontrei nenhuma rejeição. Na<br />
Câmara dos Deputados há a Secretaria<br />
da Mulher, que é uma estrutura institucional<br />
que une a Bancada Feminina e<br />
a Procuradoria da Mulher no Congresso<br />
Nacional. Nesta Secretaria, tenho acompanhado<br />
o trabalho das parlamentares<br />
na luta pela promoção da igualdade de<br />
gênero. Isto incentiva muito o meu<br />
empenho na defesa dos nossos direitos,<br />
na luta contra a violência doméstica,<br />
na igualdade de salários, enfim, tantas<br />
lutas e batalhas que nós precisamos<br />
vencer e que, com certeza, serão causas<br />
que irei defender. Meu dever como<br />
parlamentar será legislar em defesa de<br />
nossos direitos e levantar debates para<br />
a sociedade.<br />
dep.daminapereira@camara.leg.br<br />
Raquel Muniz - PSC<br />
Eu e meu marido, Ruy Muniz, hoje<br />
prefeito de Montes Claros, fundamos<br />
o PT em Montes Claros. Ele foi o primeiro<br />
candidato a prefeito do PT na<br />
cidade. Não foi eleito, mas logo depois<br />
se elegeu vereador. Eu o acompanhei,<br />
ajudando nos atendimentos do gabinete<br />
e a resolver as demandas. Depois, foi<br />
eleito deputado estadual. O ajudei neste<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
novo desafio e colaborei na cria ção/ela -<br />
boração da Lei Estadual da Saúde do<br />
Homem. Ruy, então, foi eleito prefeito<br />
de Montes Claros e eu me tornei sua<br />
chefe de gabinete, até o início de<br />
2013. Neste período, ajudei a sanar<br />
as demandas do município e percebi<br />
que, como deputada federal, eu poderia<br />
fazer muito mais pela minha região,<br />
que é pobre. Quero mudar este quadro.<br />
Com quase 100 mil votos, fui a deputada<br />
federal mais votada de Minas,<br />
além de ser a primeira mulher eleita,<br />
pelo, norte Minas para exercer um<br />
mandato federal. Os obstáculos foram<br />
os normais, enfrentados por qualquer<br />
candidato. Não me senti discriminada<br />
por ser mulher. No entanto, sinto não<br />
ter podido entrar antes na política,<br />
em função das responsabilidades de<br />
mulher, de jornada tripla de esposa,<br />
mãe/dona de casa e profissional. É<br />
preciso que as mulheres se conscientizem<br />
do seu papel, que descubram que<br />
política também é coisa de mulher e<br />
que somos tão capazes quanto os homens.<br />
É através da política que decidimos,<br />
definimos que país vamos deixar<br />
para as próximas gerações. Depois, é<br />
preciso que os partidos apoiem as mulheres,<br />
que não sejam apenas um número<br />
para preencher a cota determinada<br />
por lei. Na Comissão da Reforma<br />
Política, da qual faço parte, vamos discutir<br />
outras formas de ampliar a representação<br />
feminina, como a questão do<br />
número de cotas de mulheres a serem<br />
eleitas, para que possamos vencer a<br />
barreira dos 10% - 15% de representatividade<br />
atual. Mas sem uma conscientização<br />
das mulheres, as cotas ficarão<br />
apenas no papel, como muitas<br />
das nossas leis.<br />
dep.raquelmuniz@camara.leg.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
33<br />
Margarida Salomão - PT<br />
Minha militância começou na universidade,<br />
nos anos 1980, como professora<br />
universitária e como liderança<br />
sindical. Nos anos 1990, ingressei na<br />
política acadêmica, como pró-reitora<br />
e reitora, com um enfrentamento muito<br />
grande aos governos tucanos e sua<br />
concepção equivocada e perigosa sobre<br />
o ensino superior. A partir desse<br />
acúmulo, passei a militar também fora<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
da universidade, buscando mudanças<br />
para além do quadro institucional. As<br />
dificuldades de todas as mulheres militantes<br />
que não derivam, nem são herdeiras,<br />
de uma militância masculina.<br />
Primeiro, tem que praticar uma quebra<br />
de expectativa, porque o ambiente e<br />
as relações interpessoais na política<br />
são fundamentalmente masculinas. Em<br />
segundo lugar, precisa convencer o<br />
eleitorado de que, mesmo sendo mulher,<br />
pode ser uma boa representante. A mulher<br />
é desacreditada na política, muitas<br />
vezes com apelo sexual, ou questionando<br />
a sua capacidade, como o caso<br />
das campanhas recentes extremamente<br />
violentas sobre a Dilma e Graça Foster,<br />
que tentam denotar que elas “não dão<br />
conta” da função pública que assumiram.<br />
Duas pautas são consensuais na<br />
bancada feminina: o combate à violência<br />
contra a mulher e a ampliação da participação<br />
feminina nos espaços de poder.<br />
Em relação à violência, a luta está<br />
no campo microfísico, das microrrelações,<br />
em casa. Por isso é necessário o<br />
agravamento das penas e o cumprimento<br />
da Lei Maria da Penha. Sobre<br />
o empoderamento na política, eu defendo<br />
a paridade de gênero. A pauta<br />
feminina na Câmara hoje é uma pauta<br />
subordinada, porque nós somos minoritárias<br />
e dependemos da boa vontade<br />
dos homens. Quando se pode ter o estupro<br />
tratado como premiação, “você<br />
não merece ser estuprada”, declarado<br />
publicamente e impunemente na Câmara,<br />
fica evidente que a nossa luta<br />
pela garantia de direitos é enorme. Minha<br />
contribuição é defender nossas<br />
pautas, a ampliação e o aperfeiçoamento<br />
dos nossos direitos, e ser contrária,<br />
evidentemente, a todas as pautas<br />
que tentam reintroduzir o poder patriarcal,<br />
as quais devem reaparecer<br />
com essa nova composição mais conservadora<br />
da Casa.<br />
dep.margaridasalomao@camara.leg.br<br />
LUCIO BERNARDO JR. /C.D<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
34<br />
Bancada Feminina da Assembleia Legislativa de Minas Gerais<br />
Rosangela de Oliveira -<br />
PROS<br />
Professora, orientadora e supervisora<br />
escolar. É graduada em Pedagogia e<br />
pós-graduada em Didática. Começou<br />
sua carreira política em 2000, quando<br />
foi eleita vereadora em Ipatinga (Vale<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
do Aço), reelegendo-se em 2004. Em<br />
2010, foi eleita deputada estadual.<br />
Participei desde cedo de movimentos<br />
sociais e, mesmo antes de meu primeiro<br />
mandato de vereadora em Ipatinga, já<br />
trabalhava com entidades para a prestação<br />
de serviços comunitários. Há<br />
mais de 17 anos desenvolvo um projeto<br />
social de capacitação e ensino profissionalizante<br />
para jovens e adultos. Esse<br />
trabalho me levou para a vida pública<br />
porque acredito na boa política como<br />
forma de transformar, para melhor, a<br />
vida das pessoas. Conciliar a criação<br />
dos filhos, de dona de casa e participação<br />
política, realmente não é fácil.<br />
Por outro lado, culturalmente ainda<br />
enfrentamos muitos preconceitos, mas<br />
estamos aqui para mudar essa história.<br />
Considero que a reforma política com<br />
a ampliação da participação da mulher<br />
nos espaços de poder é a pauta mais<br />
importante atualmente. Isso terá repercussão<br />
em todas as demais pautas<br />
e dará empoderamento para que as<br />
mulheres reivindiquem, com mais força,<br />
melhores condições de trabalho, saúde,<br />
educação, etc. O que estamos realizando<br />
na Assembleia de Minas é um fato histórico<br />
e trará muitos resultados positivos.<br />
Não basta apenas conquistar o espaço<br />
como vereadora, prefeita, deputada,<br />
presidente ou gestora de uma grande<br />
empresa. É preciso atuar com vigor<br />
nesses espaços e buscar o avanço na<br />
igualdade de gênero.<br />
dep.rosangela.reis@almg.gov.br<br />
Geisa Gomes - PT<br />
Assistente Social. Foi presidente da<br />
Fundação CDCA (Centro de Desenvolvimento<br />
da Criança e do Adolescente),<br />
entre 2001 e 2008. É graduada em<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Serviço Social e pós-graduada em Gestão<br />
de Responsabilidade Social. É viúva do<br />
ex-prefeito de Varginha, Mauro Teixeira,<br />
eleito em 2000 e reeleito em 2004.<br />
No ano 2000, meu saudoso esposo,<br />
Mauro Teixeira, foi eleito prefeito de<br />
Varginha, no Sul de Minas. Já tinha<br />
participado de trabalhos em movimentos<br />
de igreja e senti que seria uma oportunidade<br />
de realizar o que tanto almejava:<br />
um trabalho social e voluntário voltado<br />
para crianças, adolescentes e famílias<br />
em situação de risco social. Este trabalho<br />
me encantou e me motivou a entrar<br />
para a política. Acredito nas boas práticas<br />
das políticas públicas como forma de<br />
emancipação humana. O universo político<br />
é constituído em seu grande percentual<br />
por homens. A mulher tem que<br />
provar a sua capacidade empreendedora<br />
e fazer-se respeitar. Felizmente tive o<br />
reconhecimento do meu trabalho de<br />
forma incondicional. Todos me respeitam,<br />
mas reconheço que existe um preconceito<br />
arraigado contra a mulher na<br />
política. Por isso precisamos buscar uma<br />
maior participação e ter uma representatividade<br />
verdadeira, cumprindo as cotas<br />
de forma adequada e não apenas simbólica.<br />
Apoio todas as pautas das mulheres.<br />
São tantas! O assunto é amplo,<br />
mas a representatividade dos movimentos<br />
femininos precisa ser aumentada para<br />
que tenhamos poder de reivindicação.<br />
No meu mandato, pretendo apoiar as<br />
causas femininas de várias formas.<br />
dep.geisa.teixeira@almg.gov.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
35<br />
Marília Campos - PT<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Psicóloga. Militante do PT desde a<br />
década de 1980. Nessa época, em<br />
Uberlândia, iniciou a militância social<br />
como integrante do movimento estudantil<br />
e foi uma das fundadoras do PT<br />
e da CUT na região. Presidiu o Sindicato<br />
dos Bancários de Belo Horizonte<br />
por dois mandatos (1990 e 1995). Foi<br />
candidata a deputada estadual em 1998<br />
e tornou-se vereadora por Contagem<br />
em 2000. Em 2004, foi eleita a primeira<br />
mulher a governar a cidade,<br />
sendo reeleita em 2008.<br />
Comecei no movimento estudantil.<br />
Estávamos saindo do regime militar e<br />
minha luta foi motivada para superar<br />
os traumas desse regime. Os ambientes<br />
e os espaços de poder são dominados<br />
pelo mundo masculino. Então, isso,<br />
por si só, é um constrangimento. Há o<br />
jeito de fazer do masculino e o jeito de<br />
fazer do feminino. E isso gera sempre<br />
um certo conflito. Por isso que essa diversidade<br />
é democrática, traz o debate<br />
e contribui para consolidar um processo<br />
democrático. A outra questão é que<br />
ser mãe, dona de casa, ir a uma reunião<br />
na escola do filho, estar na vida política<br />
e no mercado de trabalho é bastante<br />
complexo. Mas sempre fomos acostumadas<br />
a trabalhar e isso é um desgaste<br />
permanente, mas que, com a solidariedade<br />
dos companheiros, com a divisão<br />
de tarefas, se torna possível. Apoio<br />
toda e qualquer pauta que lute contra<br />
a discriminação, que seja de interesse<br />
coletivo, que ajude a emancipar as mulheres,<br />
que lute contra o preconceito e<br />
a favor da inclusão das mulheres no<br />
mercado de trabalho, nas políticas públicas<br />
ou na política. Elas precisam<br />
trabalhar, estudar, precisam de creches<br />
e escolas infantis para seus filhos.<br />
Quero lutar para que, no orçamento<br />
do Estado, estejam incluídas rubricas<br />
orçamentárias que promovam as mulheres.<br />
E a polêmica referente ao corpo<br />
da mulher, como o aborto, para mim,<br />
é uma questão de saúde pública. Esse<br />
tem que ser um direito assegurado à<br />
mulher. Se ela fizer essa escolha, que<br />
faça e tenha apoio do poder público.<br />
dep.marilia.campos@almg.gov.br<br />
Celise Laviola - PMDB<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Advogada. Servidora aposentada<br />
da Assembleia de Minas, é formada<br />
em História, Filosofia e Direito e especializada<br />
em Direito Público. Assumiu,<br />
em 2015, seu primeiro mandato como<br />
deputada estadual. Natural de Belo<br />
Horizonte, é filha de José Laviola<br />
Matos, que foi vice-prefeito e prefeito<br />
de Conselheiro Pena, além de deputado<br />
estadual em Minas Gerais por seis legislaturas<br />
consecutivas. É cunhada do<br />
ex-deputado estadual do PMDB José<br />
Henrique (1956-2013).<br />
Estou no meu primeiro mandato eletivo.<br />
Mas minha família tem uma história<br />
política muito bonita, pautada no trabalho<br />
para o povo, sempre com transparência<br />
e dedicação. Com o falecimento do<br />
meu cunhado, minha família e o nosso<br />
partido decidiu que meu nome seria o<br />
mais viável para substituí-lo. Para ser<br />
sincera, tenho que dizer que o fato de<br />
ser mulher não foi obstáculo na minha<br />
campanha. Meu partido me acolheu<br />
com muito carinho e o os eleitores da<br />
nossa região também. Como parlamentar<br />
pretendo discutir e buscar soluções para<br />
as demandas femininas, atenta aos problemas<br />
da mulher e com um olhar<br />
isento, sem discriminações.<br />
dep.celise.laviola@almg.gov.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
36<br />
Mirian Cristina - PT<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Professora de história com MBA<br />
em Gestão Pública e Responsabilidade<br />
Fiscal. Filiada ao PT desde 2005, foi<br />
secretária de Formação do partido em<br />
Santa Luzia. Em 2012, foi candidata a<br />
prefeita desse município pelo mesmo<br />
partido, ficando em 2º lugar na disputa.<br />
É irmã do deputado federal Miguel Corrêa<br />
(PT) e atuou como coordenadora<br />
de campanha do parlamentar desde o<br />
primeiro mandato, a partir de 2007.<br />
Em 2004, ingressei na vida política<br />
e, a partir daí, fui coordenadora de diversas<br />
campanhas do PT. Com isso,<br />
me veio uma vontade muito grande de<br />
fazer parte disso, mas de dentro, com<br />
voz ativa. Fui candidata a prefeita de<br />
Santa Luzia em 2012, onde obtive excelente<br />
votação. Muitas vezes enfrentei<br />
o machismo e o preconceito de alguns<br />
homens que ainda acham que política<br />
não é lugar de mulher, mas enfrentei,<br />
principalmente, as dificuldades de ser<br />
mãe e muitas vezes ter que deixar meu<br />
filho aos cuidados de outras pessoas<br />
para trabalhar e fazer política. A igualdade<br />
de oportunidades, de salário, o<br />
fim da violência doméstica e principalmente<br />
das mulheres serem o que quiserem<br />
sem o estigma do machismo. A<br />
luta por mais espaço das mulheres na<br />
política é essencial, para isso a política<br />
de cotas será um grande avanço para<br />
as mulheres já que democratizará o<br />
acesso de nós, mulheres, aos cargos<br />
políticos.<br />
dep.cristina.correa@almg.gov.br<br />
Ione Pinheiro - PMDB<br />
Empresária. Assume em 2015 seu<br />
primeiro mandato na Assembleia Legislativa<br />
de Minas Gerais. Irmã do presidente<br />
da ALMG e deputado estadual<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Dinis Pinheiro, foi chefe de gabinete<br />
durante o primeiro mandato do parlamentar,<br />
na 13ª Legislatura, a partir de<br />
1995. Também ocupou cargo semelhante<br />
quando o outro irmão, Toninho<br />
Pinheiro, se tornou prefeito do município<br />
mineiro de Ibirité.<br />
As motivações para ingressar na<br />
vida política retomam a minha história<br />
de vida. Tomo como exemplo os meus<br />
pais, para quem o trabalho e o servir<br />
ao bem comum sempre estiveram presentes.<br />
Sedimentada nesse alicerce familiar,<br />
percorri o caminho que me<br />
trouxe a esse momento atual. Como<br />
em toda profissão, a vida política requer<br />
compromisso, renúncias e o aprendizado<br />
da conciliação. Ser mãe, esposa,<br />
trabalhadora é sempre um desafio para<br />
qualquer pessoa, e para a mulher, pela<br />
grande expectativa de transformação<br />
e superação de preconceitos, a missão<br />
é mais árdua. Diante dessa realidade,<br />
na Assembleia, buscamos ocupar o<br />
nosso espaço, por meio da bancada<br />
feminina, e apresentamos à Mesa Diretora<br />
a proposta de criação de uma<br />
comissão especial para promover a<br />
participação da mulher na política. A<br />
minha atuação está pautada na verdade<br />
e transparência, o meu engajamento<br />
em medidas que alcancem melhorias<br />
para todos, a minha disposição em<br />
ouvir e conhecer cada vez a necessidade<br />
do outro, certamente me conduzirão a<br />
lutar para que não só a mulher, mas<br />
todos indistintamente possam ascender<br />
à condição de dignidade com a superação<br />
das dificuldades que ainda remanescem<br />
em nossa sociedade.<br />
dep.ione.pinheiro@almg.gov.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
37<br />
Arlete Gonçalves - PTN<br />
Participo da vida política há muitos<br />
anos, sendo que nosso grupo político<br />
elegeu pela terceira vez o meu irmão,<br />
Wellington Magalhães, vereador de Belo<br />
Horizonte. Minha motivação para entrar<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
na vida política foi o fortalecimento<br />
desse grupo, que trabalha sério em prol<br />
da qualidade de vida do nosso povo.<br />
Trabalhando sempre muito próximo<br />
à comunidade, nunva tive problemas<br />
quanto à discriminação por ser mulher<br />
e garanto que, na base, as mulheres<br />
são muito ativas. A campanha eleitoral<br />
é que é um grande obstáculo. Disputei<br />
duas eleições e enumero a desigualdade<br />
de financiamento, as distâncias territoriais<br />
e a infidelidade partidária como grandes<br />
desafios para se chegar até aqui.<br />
Não considero que uma parlamentar,<br />
pelo fato de ser mulher, tenha obrigatoriamente<br />
atuação dferenciada da atuação<br />
de um político do sexo masculino.<br />
Acho que depende do perfil de atuação<br />
de cada parlamentar. Algumas mulheres,<br />
inclusive, militam em setores dominados<br />
por homens e se dão muito<br />
bem. No setor social e comunitário<br />
em que milito, não vejo diferença na<br />
atuação de homens e mulheres. Já no<br />
que diz respeito aos mandatos eletivos,<br />
principalmente no Executivo, as oportunidades<br />
ainda são desiguais. Acredito<br />
que, agora com mandatos voltados<br />
preferencialmente à defesa dos direitos<br />
das mulheres, nós temos muito mais<br />
a acrescentar do que eles.<br />
Coloco meu mandato à disposição<br />
de todas as causas justas que venham<br />
a evidenciar a grande contribuição que<br />
as mulheres podem e irão acrescentar,<br />
não só na política, mas também em<br />
todas as áreas de desenvolvimento de<br />
um país melhor".ø<br />
LÚCIO BERNARDO JB/C.D<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
8 de março de 2015 - Comemorações pelo Dia da Mulher em Nova York<br />
foto UN WOMEN - J CARRIER
39<br />
Pequim+20<br />
Igualdade de gênero: uma promessa<br />
ainda não cumprida<br />
ENTREVISTA<br />
NADINE GASMAN<br />
Duas décadas após a 4ª Conferência<br />
Mundial sobre a Mulher, realizada<br />
em Pequim (Beijing), em 1995, os desafios<br />
para a igualdade de gênero em<br />
todo o mundo continuam. “É possível<br />
identificar um progresso significante<br />
nas diferentes áreas de preocupação da<br />
Plataforma de Pequim, porém ainda<br />
não é suficiente. Ainda há muitos desafios<br />
a serem superados para conquistar<br />
a igualdade política, econômica e<br />
social de gênero”, afirma a representante<br />
da ONU Mulheres no Brasil, Nadine<br />
Gasman.<br />
A Conferência Mundial sobre a Mulher<br />
de Pequim teve a presença de<br />
17.000 participantes, 30.000 pessoas<br />
assistiram ao fórum de ONGs e resultou<br />
em um acordo entre 189 governos<br />
que adotaram a Declaração e a Plataforma<br />
de Ação de Pequim de 1995. A<br />
Plataforma prevê ações pela igualdade<br />
de gênero e eliminação da discriminação<br />
contra mulheres e meninas. O docu-<br />
mento lista 12 pontos prioritários de<br />
trabalho, além de ações detalhadas<br />
para alcançar seus objetivos estratégicos.<br />
Uma promessa ainda não cumprida,<br />
segundo a ONU Mulheres, que coordena<br />
a Campanha Pequim+20.<br />
Para Nadine Gasman, a violência<br />
contra a mulher é um dos maiores desafios<br />
a serem enfrentados. “Os presentes<br />
esforços para reduzir a violência<br />
contra as mulheres não são suficientes.<br />
É preciso ter em mente que esse problema<br />
cria desafios de curto e longo<br />
prazo, por isso a educação e as políticas<br />
públicas devem ser inovadoras e ousadas<br />
para promover o respeito de todos os<br />
direitos humanos e das mulheres”.<br />
Uma comissão com representantes<br />
de várias partes do mundo revisa a Declaração<br />
e Plataforma de Ação de Pequim<br />
e faz um balanço sobre os avanços<br />
e desafios para a igualdade de gênero<br />
e o empoderamento das mulheres, desde<br />
a implementação do documento.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
40<br />
Elas por Elas - 20 anos após a<br />
histórica 4º Conferência Mundial de<br />
Mulheres, em Pequim, quais os avanços<br />
e desafios para a igualdade de<br />
gênero e empoderamento das mulheres<br />
no mundo e no Brasil?<br />
É possível identificar um progresso<br />
significante nas diferentes áreas de<br />
preocupação da Plataforma de Pequim,<br />
porém ainda não é suficiente. Ainda<br />
há muitos desafios a serem superados<br />
para conquistar a igualdade política,<br />
econômica e social de gênero. A Plataforma<br />
de Pequim permanece muito<br />
atual no sentido de orientar os governos<br />
e as sociedades a conquistar a<br />
igualdade substantiva e eliminar a discriminação<br />
contra mulheres e meninas.<br />
Mas, infelizmente, nenhum país<br />
atingiu esse objetivo até hoje. As mulheres<br />
ainda ganham salários menores<br />
que os dos homens de mesma idade e<br />
nível de instrução e estão mais propensas<br />
a empregos de baixa qualidade.<br />
No mundo, um terço das mulheres já<br />
sofreu violência física ou sexual e 800<br />
mulheres morrem por dia durante o<br />
parto devido à falta de assistência médica<br />
adequada ou porque não têm direitos<br />
reprodutivos garantidos.<br />
Das doze áreas temáticas que<br />
foram abordadas na Plataforma de<br />
Ação de Pequim (Mulheres e pobreza;<br />
Educação e Capacitação de Mulheres;<br />
Mulheres e Saúde; Violência<br />
contra a Mulher; Mulheres e Conflitos<br />
Armados; Mulheres e Economia;<br />
Mulheres no Poder e na liderança;<br />
Mecanismos institucionais para o<br />
Avanço das Mulheres; Direitos Humanos<br />
das Mulheres; Mulheres e a<br />
Mídia; Mulheres e Meio Ambiente e<br />
Direitos das Meninas) quais mais<br />
precisam avançar?<br />
Nós temos um desafio urgente de<br />
construir mecanismos institucionais<br />
para assegurar que homens e mulheres<br />
sejam igualmente representados na política<br />
e na tomada de decisões, nos<br />
níveis global, regional e nacional, nos<br />
setores público e privado. A economia<br />
também é uma área de profundas desigualdades.<br />
As mulheres ainda encontram<br />
maiores dificuldades que os homens<br />
para conseguir empregos. Além<br />
disso, no mundo todo, mulheres ganham<br />
um salário de 10 a 30% menor<br />
que homens com a mesma idade e<br />
nível de instrução, o que reflete que a<br />
contribuição das mulheres para a economia<br />
é subestimada. Por exemplo:<br />
quando empregadas, as mulheres apresentam<br />
maior tendência de investir em<br />
suas famílias e comunidades. Esses esforços<br />
reduzem a fome, a pobreza e a<br />
desnutrição.<br />
Além de tudo, milhões de mulheres<br />
correm o risco de contrair doenças sexualmente<br />
transmissíveis e gravidez indesejada<br />
devido aos escassos serviços<br />
de saúde sexual e reprodutiva bem<br />
como políticas de contracepção inadequadas.<br />
Mas a violência contra as mulheres<br />
talvez seja a área de maior preocupação.<br />
Muitos países não têm políticas<br />
públicas que incentivam a mudança de<br />
SÉRGIO ALMEIDA<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
41<br />
comportamento para que mulheres e<br />
homens tenham o direito de viver livres<br />
de violência e fazer progressos para<br />
acabar com a violência de gênero. Os<br />
presentes esforços para reduzir a violência<br />
contra as mulheres não são suficientes.<br />
É preciso ter em mente que<br />
esse problema cria desafios de curto<br />
e longo prazo, por isso a educação e<br />
as políticas públicas devem ser inovadoras<br />
e ousadas para promover o respeito<br />
de todos os direitos humanos<br />
e das mulheres.<br />
Qual balanço a ONU faz sobre a<br />
situação das mulheres no Brasil?<br />
O Brasil é um país em que a desigualdade<br />
de gênero, raça e etnia é um<br />
elemento estrutural da sociedade, por<br />
isso a necessidade de se construir estratégias<br />
que promovam o combate às desigualdades.<br />
A sociedade brasileira tam -<br />
bém apresenta um perfil racista, sexista<br />
e patriarcal, o que dificulta a inserção<br />
da igualdade de gênero no senso comum.<br />
Outro problema grave é a violência<br />
contra as mulheres. Estima-se que<br />
entre 2001 e 2011 ocorreram mais de<br />
50 mil feminicídios. Por outro lado, as<br />
políticas brasileiras de cotas e combate<br />
à pobreza afetaram as mulheres positivamente,<br />
permitindo que suas famílias<br />
tenham maior acesso à alimentação, à<br />
saúde e à educação, o que é essencial<br />
para a conquista dos direitos da mulher<br />
e da igualdade de gênero. Além disso,<br />
98% dos brasileiros já conhecem a lei<br />
Maria da Penha, o que torna a população<br />
mais consciente da gravidade da<br />
violência doméstica.<br />
A sra. acredita que as reflexões<br />
sobre a Pequim+20, no momento<br />
em que os países buscam alcançar<br />
os Objetivos de Desenvolvimento<br />
do Milênio, com meta até 2015,<br />
pode ser uma boa oportunidade<br />
para estabelecer uma agenda que<br />
beneficie a luta das mulheres por<br />
mais igualdade?<br />
Sim, é uma excelente oportunidade.<br />
Uma das propostas para os Objetivos<br />
de Desenvolvimento Sustentável é justamente<br />
aprofundar o compromisso<br />
dos países em relação à igualdade de<br />
gênero, a garantia de todos os direitos<br />
humanos das mulheres e o empoderamento<br />
das mulheres. Também é uma<br />
oportunidade para integrar a questão<br />
de gênero na agenda pós-2015, assim<br />
transversalizando essa perspectiva em<br />
todos objetivos, metas e indicadores. Estamos<br />
trabalhando no processo de consulta<br />
pública em nível nacional para<br />
assegurar que as lacunas sejam preenchidas<br />
tanto no Brasil quanto nos<br />
outros países do mundo. As mulheres<br />
são 51% da humanidade e a igualdade<br />
de gênero é um tema transversal a<br />
todas as áreas e setores, o que significa<br />
que conquistar a igualdade de gênero<br />
é essencial para atingir os Objetivos<br />
de Desenvolvimento Sustentável. A evidência<br />
de que empoderar mulheres<br />
significa empoderar a humanidade é<br />
que as economias crescem mais rápido<br />
“conquistar a<br />
igualdade de<br />
gênero é essencial<br />
para atingir os<br />
Objetivos de<br />
Desenvolvimento<br />
Sustentável”<br />
quando as famílias têm acesso garantido<br />
à saúde e à educação. A nova agenda<br />
de desenvolvimento precisa abordar a<br />
questão da desigualdade de uma maneira<br />
muito mais sistemática para preencher<br />
as lacunas entre a desigualdade<br />
de gênero e as outras áreas de desenvolvimento.<br />
Qual o papel da ONU no debate<br />
e ações sobre a Pequim+20?<br />
A ONU Mulheres está trabalhando<br />
para que a igualdade de gênero seja<br />
integralmente refletida nos Objetivos<br />
de Desenvolvimento Sustentável bem<br />
como em qualquer plataforma que venha<br />
a ser adotada. O vigésimo aniversário<br />
da Plataforma de Pequim é uma<br />
oportunidade para renovar compromissos<br />
e interesse político, preencher<br />
as lacunas e mobilizar a população<br />
global em busca de um objetivo comum.<br />
A 59ª Sessão da Comissão sobre a Situação<br />
da Mulher (9-20 de Março de<br />
2015) foi organizada pela ONU Mulheres<br />
em Nova York para reunir Representantes<br />
de Estados-Membros, Entidades<br />
da ONU e Organizações Não-<br />
Governamentais de todos os cantos<br />
do mundo. O assunto central dessa<br />
sessão foi a Declaração e Plataforma<br />
de Ação de Pequim, incluindo os atuais<br />
desafios que afetam sua implementação<br />
e a conquista da igualdade de gênero e<br />
do empoderamento das mulheres. A<br />
comissão avalia o progresso feito desde<br />
a implementação da Declaração e Plataforma<br />
de Ação de Pequim, 20 anos<br />
após sua adoção na Quarta Conferência<br />
Mundial para as Mulheres, em 1995.<br />
A revisão, chamada de Pequim+20,<br />
também incluirá os resultados da 23ª<br />
Sessão Especial da Assembleia Geral<br />
da ONU, que determinou iniciativas e<br />
ações para a igualdade de gênero.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
42<br />
HOMENAGEM<br />
<strong>POR</strong> CECÍLIA ALVIM<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
“Uma mulher<br />
impossível”<br />
Rose Marie Muraro superou diversas barreiras<br />
em defesa da emancipação feminina<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
43<br />
Uma mulher que “enxergava” à<br />
frente de seu tempo, que “via” longe,<br />
mesmo sem enxergar… Assim era Rose<br />
Marie Muraro, escritora e feminista<br />
brasileira, que faleceu em junho de<br />
2014, aos 83 anos. Intelectual que lutava<br />
pela igualdade de direitos entre<br />
homens e mulheres, Rose Marie foi<br />
reconhecida pela Lei 11.261 de 2005,<br />
durante o governo Lula, como Patrona<br />
do Feminismo Brasileiro.<br />
Rose Marie nasceu no Rio de Janeiro,<br />
em 1930, com uma visão muito<br />
baixa e que piorou ao longo dos anos<br />
até ficar cega nos últimos tempos. No<br />
entanto, essa limitação não a impediu<br />
de viver uma vida intensa e militante<br />
em prol de um mundo mais justo e<br />
igualitário. Sua trajetória sempre marcada<br />
pela defesa da emancipação feminina<br />
repercutiu fortemente no Brasil<br />
do século XX. Sua atuação no movimento<br />
feminista e sua extensa obra<br />
propagaram conceitos libertários que<br />
foram sementes de mudanças que atingiram<br />
a realidade das mulheres brasileiras<br />
desde a década de 60 até hoje.<br />
“A minha militância começou em<br />
meados da década de 40 quando tomei<br />
consciência da injustiça social”, relatou<br />
Rose Marie em um memorial, disponibilizado<br />
por sua filha, Tônia Muraro,<br />
para essa reportagem. Rose participou<br />
do movimento estudantil desde o ensino<br />
médio. Escreveu o primeiro número<br />
do jornal Roteiro da Juventude, da Juventude<br />
Estudantil Católica (JEC). “Foi<br />
aí que me lancei no mundo. E já não<br />
me interessava mais ser feliz e sim<br />
fazer o que tinha que ser feito. Minha<br />
vida se abria para algo maior que ela<br />
mesma”, contou Rose.<br />
Em 1949, entrou para a Universidade<br />
do Brasil (hoje UFRJ) para estudar<br />
Física. “Eram cerca de 70 homens e<br />
umas dez mulheres. Fui recebida por<br />
eles com grande susto porque era a<br />
mais jovem e tinha passado em primeiro<br />
lugar, vinda de um colégio de freiras<br />
desconhecido. Foi aí que tive conhecimento<br />
das outras classes sociais. Saí<br />
de um mundo elitista para um mundo<br />
misturado, porque a nossa era uma<br />
universidade pública”, relatou Rose.<br />
Inquieta militante<br />
Participou da Campanha o “Petróleo<br />
é Nosso”, na época da Fundação<br />
da Petrobras. “Eu estava começando a<br />
participar de movimentos políticos,<br />
mas ainda estava muito ligada à minha<br />
vida pessoal, porque já casada, tinha filhos<br />
pequenos a quem adorava, embora<br />
detestasse minha vida de casada”,<br />
contou, sem constrangimentos, em seu<br />
memorial.<br />
Da experiência da vida de inquieta<br />
militante para o início do trabalho<br />
como editora e difusora de novas ideias,<br />
se passaram três décadas. Em 1961,<br />
com 31 anos, começou a trabalhar na<br />
Editora Vozes. A partir de então, Rose<br />
escreveu 40 livros e editou cerca de<br />
“E já não me<br />
interessava mais<br />
ser feliz e sim fazer<br />
o que tinha que ser<br />
feito. Minha vida se<br />
abria para algo<br />
maior que ela<br />
mesma”.<br />
1.600 títulos. Atuou na Vozes por 17<br />
anos, onde foi diretora junto com o<br />
teólogo Leonardo Boff, e também na<br />
Rosa dos Tempos, única editora dedicada<br />
ao Estudo de Gênero na América<br />
Latina, entre os anos de 1990 e 2000.<br />
Em 1966 saiu o seu primeiro livro,<br />
A Mulher na Construção do Mundo<br />
Futuro, que vendeu dez mil exemplares<br />
em três meses. Em 1968, escreveu<br />
sua segunda obra: Automação e o Futuro<br />
do Homem, e em 1970, Libertação<br />
sexual da Mulher, ambas pela<br />
Editora Vozes.<br />
Vigiada pelos militares<br />
Em 1971, Rose Marie trouxe ao<br />
Brasil a estadunidense Betty Friedan,<br />
considerada uma das feministas mais<br />
influentes do século XX, vinda essa<br />
que gerou grande repercussão na opinião<br />
pública da época. “Foram três<br />
dias de loucura. Quando ela foi embora,<br />
parecia um país devastado e os militares<br />
me vigiaram durante seis meses”, comentou<br />
Rose. Segundo ela, a visita de<br />
Betty inaugurou um novo tempo na<br />
história feminista brasileira.<br />
Hildete Pereira de Melo, professora<br />
de Economia da Universidade Federal<br />
Fluminense e ex-assessora da Secretaria<br />
de Políticas para as Mulheres, conheceu<br />
Rose na década de 70, período de<br />
efervescência do feminismo no Brasil.<br />
“Ela era extremamente inteligente, alegre<br />
e arguta. E muito avançada em<br />
suas posições. Sua dificuldade física<br />
nunca a impediu de realizar uma vida<br />
política militante, baseada em uma<br />
grande erudição”, disse.<br />
Em 1975, Rose participou da fundação<br />
do Centro da Mulher Brasileira.<br />
Ainda nesse ano, os militares, por<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
causa da liderança feminista que Rose<br />
havia se tornado, proibiram seus livros<br />
classificando-os como pornográficos,<br />
embora estivessem maciçamente sendo<br />
adotados em escolas e universidades<br />
brasileiras. “Falar de mulher naquele<br />
período era difícil. A gente falava baixinho”,<br />
conta Hildete.<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Afastada da Igreja<br />
Junto de Boff, Rose colaborou para<br />
o surgimento de outro dos mais importantes<br />
movimentos sociais do século<br />
XX: a Teologia da Libertação. Por essa<br />
atuação libertária e pela publicação,<br />
por Rose, do livro Por uma erótica<br />
cristã, ela foi afastada da Editora Vozes<br />
em dezembro de 1986, junto com o<br />
teólogo. “Esses movimentos nasceram<br />
com o objetivo fundamental de promover<br />
a equidade de gênero, a liberdade<br />
de expressão e a democratização. Apesar<br />
de termos sido excomungados da<br />
Igreja Católica, e de termos nossos livros<br />
proibidos durante o regime militar,<br />
seguimos trabalhando incansavelmente<br />
com esses movimentos e seus conceitos<br />
até os dias atuais” relatou Rose em<br />
seu memorial.<br />
“Mesmo com sua formação religiosa,<br />
ela irradiava essa perspectiva de libertação<br />
da mulher, até mesmo na questão<br />
da sexualidade, de não suprimir os próprios<br />
desejos. Ela acreditava no amor<br />
sem amarras”, destacou Hildete Pereira.<br />
“Seu maior legado foi promover a reflexão<br />
sobre a condição feminina e a<br />
sociedade patriarcal, que oprime mulheres<br />
em todo o mundo”, completou.<br />
Em 1985, Rose foi membro fundador<br />
do Conselho Nacional dos Direitos<br />
da Mulher, órgão ligado ao governo<br />
federal, que conseguiu inserir na Constituição<br />
de 1988 alguns dos itens mais<br />
progressistas em âmbito internacional<br />
sobre a condição da mulher. Em 2003,<br />
voltou ao Conselho, nomeada pela<br />
Presidência da República, por notório<br />
saber em matéria de gênero.<br />
Valores femininos<br />
Em 1983, publicou A Sexualidade<br />
da Mulher Brasileira: corpo e classe<br />
social no Brasil; em 1990, Os seis<br />
meses em que fui homem e, em 1992,<br />
A Mulher no Terceiro Milênio. Em<br />
1999, publicou ainda Memórias de<br />
Uma Mulher Impossível, sua autobiografia.<br />
Em 2002, trabalhando novamente<br />
em parceria com Leonardo Boff,<br />
publicou Masculino/Feminino: uma<br />
nova consciência para o encontro das<br />
diferenças. Em 2010, teve seu último<br />
livro publicado: Reinventando o Capital/Dinheiro,<br />
que trazia uma visão feminina<br />
para uma nova forma de economia<br />
solidária.<br />
“Ao contrário dos países desenvolvidos,<br />
onde o movimento feminista só<br />
tratava de gênero, o Brasil lutou e precisa<br />
continuar lutando pelos três pilares<br />
da opressão de homens e mulheres:<br />
classe social, gênero e etnia. O feminino<br />
ultrapassa a mulher assim como o masculino<br />
também ultrapassa o homem.<br />
Daí a possibilidade de se construir através<br />
dos tempos, diversos femininos e<br />
diversos masculinos. Mas, na minha<br />
opinião, devido a experiência de gerar<br />
e manter a vida humana vivida pela<br />
mulher, acho que o mundo deveria caminhar<br />
para esses valores ditos “femininos”,<br />
como o cuidado, o altruísmo,<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
45<br />
se quiser reverter o processo de destruição<br />
a que foi submetido pelo patriarcado/capitalismo”,<br />
alertou Rose<br />
em seu Memorial.<br />
Coragem de transgredir<br />
Como conferencista, Rose deu mais<br />
de 1.500 palestras no Brasil e no<br />
exterior em várias instituições, sempre<br />
disseminando ideias feministas. Preocupada<br />
com a mudança possível através<br />
da educação, Rose colaborou ativamente<br />
com a formação na temática de gênero<br />
de professores da rede estadual de educação<br />
do Rio de Janeiro, entre 1998 e<br />
2003. Uma poeta e mulher visionária,<br />
que viveu do impossível, Rose sempre<br />
dizia: “entre homens e mulheres deve<br />
haver diferenças, mas não desigualdades”.<br />
E ainda: “Eu mudei a cabeça de<br />
várias gerações... Quem educa uma<br />
mulher educa uma geração inteira...” ,<br />
relata sua filha, Tonia Muraro.<br />
Rose Marie recebeu diversas condecorações<br />
por sua atuação na sociedade.<br />
Em setembro de 1999, recebeu<br />
o Troféu Teotônio Vilella como a mais<br />
importante editora na resistência à Ditadura<br />
Militar. Em junho de 2005, foi<br />
indicada com mais cinquenta e uma<br />
mulheres para o Prêmio Nobel da Paz.<br />
Em abril de 2014, foi condecorada<br />
pelo Itamarati com o grau de Oficial<br />
da Ordem do Rio Branco.<br />
Em 2009, fundou o Instituto Cultural<br />
Rose Marie Muraro, para conservar<br />
e difundir o seu acervo cultural. Um<br />
dos projetos do Instituto, que hoje é<br />
coordenado por Tonia Muraro, é a<br />
criação da Biblioteca Rose Marie Muraro,<br />
que pretende ser a primeira biblioteca<br />
brasileira especializada em<br />
estudos de gênero.<br />
“A maior lição que minha mãe me<br />
deu foi sua coragem de transgredir e<br />
buscar a plenitude da vida. Rose<br />
Muraro foi uma mulher transgressora<br />
desde o dia em que nasceu. Foi condenada<br />
à morte, à cegueira, a não ter<br />
filhos, a não ler e nem trabalhar, mas<br />
transgredindo as leis físicas e as do<br />
homem, aprendeu a ler sozinha, começou<br />
a escrever aos 15 anos, trabalhou<br />
desde então, teve cinco filhos, foi militante<br />
ativa e escritora de mais de<br />
quarenta títulos. Estudou e pesquisou<br />
ao longo de seus oitenta e três anos. E<br />
ainda venceu duas vezes o câncer, mas<br />
na terceira partiu deste mundo”,<br />
conta Tonia.<br />
Prêmio Rose Marie Muraro<br />
“Intelectual notável, Rose Marie foi<br />
uma mulher determinada em tudo, na<br />
luta contra a barreira da cegueira, na<br />
luta pelas suas ideias. Ela é um ícone<br />
da luta pelos direitos das mulheres”,<br />
disse a presidenta Dilma Rousseff, lamentando<br />
a sua morte, em 21 de<br />
junho do ano passado. Para homenagear<br />
a escritora e reconhecer a atuação<br />
de outras mulheres feministas históricas,<br />
foi instituído o Prêmio Rose Marie Muraro<br />
pela Secretaria de Políticas para<br />
as Mulheres, da Presidência da República.<br />
Em 28 de novembro de 2014,<br />
receberam a premiação Clara Charf,<br />
Herilda Balduino de Sousa, Lenira<br />
Maria de Carvalho, Mireya Suárez,<br />
Moema Viezzer e Neuma Aguiar.<br />
O prêmio é destinado a mulheres<br />
com mais de 75 anos que atuaram ou<br />
atuam na vida pública nacional em<br />
ações científicas, tecnológicas, culturais,<br />
educacionais ou artísticas, em gestão<br />
pública e privada, em movimentos sociais<br />
e sindicais e partidos políticos.<br />
Tem por objetivo reconhecer o papel<br />
desempenhado pelas mulheres que lutaram<br />
pela cidadania feminina, pela<br />
ampliação dos direitos humanos das<br />
mulheres e efetivação de mudanças na<br />
sociedade brasileira.ø<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
46<br />
ARTIGO<br />
<strong>POR</strong> LUCIANA GARCIA DE OLIVEIRA<br />
Em Gaza, nada a<br />
comemorar<br />
“Nós não podemos exigir que os<br />
outros nos libertem se nós não somos<br />
livres”. Foram essas as palavras expressadas<br />
por Asma al-Ghoul, uma jovem<br />
jornalista palestina cujos artigos<br />
foram, por diversas ocasiões, editados<br />
ou mesmo censurados em sua Terra<br />
Natal, a Faixa de Gaza na Palestina. O<br />
depoimento de Asma no documentário<br />
Diaries, de May Odeh, pode ilustrar<br />
bem a situação da mulher em Gaza,<br />
muito além dos prejuízos causados pelo<br />
bloqueio físico e econômico na região.<br />
Nessa obra, May Odeh ultrapassa a<br />
fronteira comum da abordagem dos filmes<br />
sobre a questão internacional da<br />
Palestina e investiga a fundo acerca<br />
das angústias e frustrações das mulheres<br />
que são obrigadas a viver sob os códigos<br />
religiosos que, por diversas vezes, são<br />
impostos contra a sua vontade.<br />
May Odeh foi muito bem sucedida<br />
ao expor um olhar crítico à imposição<br />
política e religiosa, sem adotar vícios<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
47<br />
foto ISTOCK<br />
“Apesar do avanço<br />
nas iniciativas<br />
feministas, práticas<br />
discriminatórias<br />
prevalecem”.<br />
maniqueístas, de forma a também evitar<br />
observações de caráter discriminatório<br />
e islamofóbico. Em Diaries, o<br />
confronto ao uso do hijab (o véu islâmico)<br />
aparece em respeito ao debate<br />
sobre o modo como cada mulher lida<br />
com suas concepções religiosas particulares.<br />
Muito provavelmente, caso o<br />
cenário do filme fosse outro, nas ruas<br />
de Paris, por exemplo, a questão do<br />
código de vestimenta islâmico não<br />
seria tratada sob o ponto de vista da<br />
imposição, mas sob o ângulo do sentimento<br />
de resistência cultural.<br />
Historicamente, muito embora o<br />
grupo Hamas tenha entrado em cena<br />
na Faixa de Gaza em decorrência da<br />
primeira Intifada em 1987, foi após a<br />
vitória nas eleições de 2006 que o<br />
movimento de resistência nacional islâmico<br />
deteve formalmente o controle<br />
político, cultural e social na Faixa palestina<br />
e trouxe consigo uma agenda<br />
religiosa e militante, de modo a restringir<br />
a rotina da juventude e sobretudo das<br />
mulheres palestinas. O clima de censura<br />
política e cultural aliado ao bloqueio<br />
político e econômico imposto pelo governo<br />
de Israel desde a incidência dos<br />
ataques suicidas e o lançamento de foguetes<br />
em algumas cidades israelenses,<br />
impede até hoje que a economia na<br />
faixa palestina seja autossuficiente,<br />
pois todos os carregamentos e suprimentos<br />
humanitários atualmente passam<br />
necessariamente por minucioso<br />
controle de Israel. O aumento do índice<br />
de pobreza e miséria após o bloqueio<br />
permitiu o aparecimento de inúmeros<br />
túneis que, em sua maioria, ligam a<br />
Faixa de Gaza ao Egito com fins de<br />
comércio de alimentos, medicamentos,<br />
materiais de construção e outras utilidades.<br />
Ainda, através desses túneis irregulares<br />
muitos palestinos e palestinas<br />
de Gaza fugiam da região na esperança<br />
de obter visto para outros estados através<br />
do Egito ou na necessidade de<br />
serem atendidos nos hospitais e pronto<br />
socorros ou mesmo conseguirem estudar<br />
nas escolas e universidades tradicionais<br />
egípcias.<br />
O permanente conflito com o Estado<br />
de Israel, muito além do aumento do<br />
extremismo, tem afetado diretamente<br />
a vida de milhares de pessoas, principalmente<br />
das mulheres palestinas. O<br />
documento Social and Economic Situation<br />
of Palestinian Women – 1990-<br />
2003, produzido pela Organização das<br />
Nações Unidas (ONU) em 2004, pôde<br />
revelar por meio de estudos e dados<br />
numéricos um quadro real da situação<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
48<br />
enfrentada pelas mulheres palestinas,<br />
com atenção à Faixa de Gaza, local de<br />
grande periculosidade e muita insalubridade.<br />
Ao longo do texto é mencionado<br />
que a rotina permeada pela morte<br />
repentina de alguns membros da família,<br />
como filhos e maridos durante as chamadas<br />
operações israelenses na região,<br />
como as de julho de 2014, ocasionam<br />
traumas profundos, difíceis de serem<br />
superados. A perda abrupta de pessoas<br />
próximas torna-se ainda mais crítica<br />
quando essas mulheres passam a sobreviver<br />
sem o provedor financeiro da<br />
família, em uma situação em que são<br />
obrigadas a exercer um papel diverso<br />
daquele pela qual foram educadas.<br />
Ainda é apontado que as mulheres<br />
grávidas particularmente são o alvo<br />
mais vulnerável do conflito e das punições<br />
coletivas; a maioria das gestantes<br />
é diariamente exposta a inúmeros tipos<br />
de violência, ao estresse diário e a<br />
gases tóxicos que, em última instância,<br />
ocasionam abortos prematuros. Ao levarmos<br />
em consideração que os índices<br />
de fertilidade na Faixa de Gaza é um<br />
dos mais altos do mundo, a região tornou-se<br />
oficialmente a região mais densamente<br />
populosa do planeta. A manutenção<br />
das práticas tradicionais de<br />
casamento entre mulheres muito jovens<br />
é justificada pela sensação de segurança<br />
fornecida pelo matrimônio, sobretudo<br />
em tempos de conflitos e intensas convulsões<br />
políticas e a preferência por filhos<br />
do sexo masculino ainda é bastante<br />
prevalecente dentro de um contexto<br />
ainda muito conservador e patriarcal.<br />
Em certa medida, essas questões explicariam<br />
o alto índice de fertilidade<br />
nessa estreita faixa palestina.<br />
Normalmente o nascimento de cada<br />
criança é muito comemorado, pois entre<br />
os palestinos, cada criança que nasce<br />
faz parte de uma campanha de resistência<br />
cultural e política palestina frente<br />
à crescente ocupação territorial e à supressão<br />
da existência do estado palestino.<br />
E, diante de famílias muito numerosas,<br />
muitas mulheres passam a permanecer<br />
em casa e a viver em função dos filhos<br />
e do marido. Muito embora, atualmente<br />
exista um maior número de universitárias<br />
na Faixa de Gaza, o número ainda é inferior<br />
em comparação à região da<br />
Cisjordânia, por exemplo, cujo controle<br />
vegetativo é maior, mesmo sob a permanente<br />
ocupação militar 2 . O completo<br />
e escandaloso isolamento de Gaza tornou<br />
a região um terreno fértil para o aparecimento<br />
de fundamentalismos tendentes<br />
a limitar a vida e o cotidiano dessas<br />
mulheres.<br />
2. Os índices referentes ao aumento<br />
do controle vegetativo na<br />
Cisjordânia em detrimento da<br />
Faixa de Gaza pode ser explicado<br />
em função da Cisjordânia estar<br />
mais próxima das cidades israelenses.<br />
Mesmo sob controle militar,<br />
muitas palestinas ainda têm<br />
acesso aos hospitais israelenses,<br />
referência em inúmeros tratamentos.<br />
Ainda, muitas palestinas<br />
da Cisjordânia estudam em escolas<br />
e universidades mistas e<br />
laicas ou mesmo nas instituições<br />
israelenses, o que permite que<br />
as mulheres dessa região tenham<br />
um maior acesso a uma educação<br />
de ponta. A prioridade pela<br />
carreira profissional faz com que<br />
muitas mulheres da Cisjordânia,<br />
principalmente das grandes cidades<br />
como Ramallah, Haifa e<br />
Nablus, passem a engravidar mais<br />
tardiamente e terem menos filhos.<br />
Frente ao progressivo cerceamento<br />
da liberdade, as mulheres, consideradas<br />
maioria tanto na Faixa de Gaza como<br />
na Cisjordânia, redigiram conjuntamente<br />
uma carta oficial em 1993, pela<br />
qual puderam reafirmar solenemente<br />
pela defesa da condição de igualdade<br />
de gêneros e pela manutenção do secularismo<br />
na esfera política, frente ao<br />
tratamento dos assuntos concernentes<br />
ao gênero. No texto do documento,<br />
foram destacados trechos que aludiam<br />
à imposição religiosa em Gaza, nesse<br />
caso foi aclamado o “fim da legislação<br />
discriminatória contra as mulheres” e<br />
pelo “direito de poderem transferir a<br />
cidadania palestina para os filhos e maridos”<br />
no caso de matrimônio com homens<br />
estrangeiros. A cidadania palestina,<br />
até então, poderia tão somente<br />
ser concedida através da figura masculina,<br />
assim somente po deriam ser considerados<br />
cidadãos pa lestinos os filhos<br />
de pais palestinos ou caso a mulher<br />
estrangeira fosse casada com um homem<br />
palestino.<br />
Apesar do documento ter sinalizado<br />
um avanço nas iniciativas feministas,<br />
muitas práticas discriminatórias ainda<br />
são prevalecentes com relação às mulheres<br />
na região. Ainda é bastante<br />
comum homens se divorciarem de suas<br />
esposas de maneira unilateral e obterem<br />
preferência judicial pela guarda dos<br />
filhos. Em muitos casos, a mulher passa<br />
a viver sozinha, sem qualquer apoio financeiro<br />
e a mercê da ajuda de parentes<br />
e amigos. As denúncias sobre<br />
diversas formas de violência doméstica<br />
também são bastante frequentes, casos<br />
de estupro, incesto e outras formas de<br />
agressão e violência também figuram<br />
nas estatísticas oficiais do mapa da violência<br />
contra a mulher da Palestina na<br />
Faixa de Gaza.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
49<br />
Os impedimentos internos e externos<br />
na rotina feminina em Gaza contribuíram<br />
para que muitas mulheres<br />
passassem a exercer papel ativo dentro<br />
dos movimentos nacionalistas palestinos.<br />
Atualmente é bastante comum encontrar<br />
mulheres envolvidas em assuntos<br />
políticos ao lado dos seus maridos,<br />
filhos e irmãos, em inúmeras manifestações<br />
de rua, sit-ins, na organização<br />
de petições públicas e nos partidos<br />
políticos palestinos. A progressiva politização<br />
feminina possibilitou que as<br />
bandeiras nacionais passassem a ser<br />
diretamente relacionadas às reivindicações<br />
de gênero.<br />
Foi durante os acordos de paz de<br />
Madrid, em 1991, que muitas lideranças<br />
femininas invadiram o cenário que<br />
antes estava ocupado, em quase sua<br />
totalidade, por homens. Nessa ocasião,<br />
um conselho de mulheres apresentou<br />
ao Congresso Legislativo palestino uma<br />
proposta de fixação de uma quota mínima<br />
de um terço de mulheres no parlamento.<br />
É estimado que a militância<br />
feminina tenha aumentado vertiginosamente<br />
em decorrência da segunda<br />
Intifada, em 2000.<br />
Mesmo sob condições bastante adversas,<br />
como a falta de emprego, a<br />
maioria das mulheres na Faixa de Gaza<br />
pode ser considerada grande provedora<br />
e militante política. Geralmente ocupam,<br />
na maior parte dos casos, o setor da<br />
educação, como professoras primárias<br />
e universitárias, e o setor têxtil como<br />
costureiras. E, mesmo obtendo salários<br />
inferiores aos dos homens, ainda conseguem<br />
dispor de tempo para o ativismo<br />
político, seja nas manifestações contra<br />
a ocupação, seja por intermédio da<br />
linguagem escrita sob o ofício de escritoras,<br />
poetisas e jornalistas. Vale ressaltar<br />
que grande parte das mulheres<br />
jovens de Gaza, mesmo vivendo abaixo<br />
INTERNET<br />
do nível de pobreza, aprenderam a se<br />
comunicar em inglês e mantêm contato<br />
frequente com outras ativistas estrangeiras<br />
pela internet. Muitas inclusive<br />
são bem avaliadas em cursos no exterior<br />
e nos programas de pós-graduação,<br />
mestrado e doutorado, mundo afora.<br />
E, mesmo distante da Palestina, seguem<br />
com o ativismo político na diáspora.<br />
Diante da impossibilidade de viver<br />
dignamente no que se tornou a Faixa<br />
de Gaza, muitas mulheres passaram a<br />
viver no exílio e muitas gerações nasceram<br />
e ainda nascem no exílio, sem<br />
ao menos conhecer sua terra natal.<br />
Esse imenso refúgio passou a ser o<br />
local onde as vozes femininas ecoam<br />
pela reafirmação da identidade e pela<br />
sua existência ao mesmo tempo em<br />
que, quando sufocadas, gritam por socorro<br />
e atenção. A mulher palestina<br />
está em todos os lugares e em cada<br />
canto do mundo existe um pouco da<br />
Palestina, caberá a nós mesmos prestar<br />
atenção e evitar que essas histórias<br />
testemunhadas por tantas mulheres sejam<br />
esquecidas e a existência da Palestina<br />
continue a ser negada.ø<br />
Luciana Garcia de Oliveira<br />
Pós-graduada em Política e Relações<br />
Internacionais pela Fundação<br />
Escola de Sociologia e Política de<br />
São Paulo (FESP), mestranda no<br />
Programa de Estudos Árabes e Judaicos<br />
do Departamento de Letras<br />
Orientais da Universidade de São<br />
Paulo (DLO-USP), integrante do<br />
grupo de pesquisa “Conflitos Armados,<br />
Massacres e Genocídios da<br />
Era Contemporânea” da Universidade<br />
Federal de São Paulo (UNI-<br />
FESP) e pesquisadora associada da<br />
Interdisciplinary Research Network<br />
on Latin America and the<br />
Arab World (RIMAAL). Email: luciana.garcia83@gmail.com.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
50<br />
DIREITOS<br />
<strong>POR</strong> SAULO ESLLEN MARTINS<br />
fotos SAULO ESLLEN MARTINS<br />
Em busca de<br />
um novo rumo<br />
Vulneráveis às violências e perdas afetivas, essas mulheres<br />
ainda conseguem dar a volta por cima<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
51<br />
“Naquele dia, tudo parecia normal.<br />
Acordei cedo e fui para o trabalho. De<br />
lá, segui direto para a escola. Até aí,<br />
nenhuma surpresa. Mas a minha vida<br />
sofreria uma grande mudança de percurso.<br />
Em algumas horas, tudo estaria<br />
diferente. Sozinha, na rua, sem saber<br />
para onde ir”. Tudo aconteceu há mais<br />
de 30 anos, mas aquela noite ainda é<br />
viva na memória da ex-moradora de<br />
rua Anita Gomes dos Santos.<br />
O ano era 1977. Naquele fim de<br />
tarde, Anita deixou de seguir a sua<br />
rotina habitual. Ao invés de pegar o<br />
ônibus escolar e ir para casa, decidiu<br />
acompanhar uma amiga até outro<br />
ponto da cidade. Alguns acontecimentos<br />
no caminho fizeram com que ela demorasse<br />
muitas horas para chegar em<br />
sua residência, o que mudaria a sua<br />
história para sempre.<br />
“Quando cheguei, me deparei com<br />
papai na sala e um saco de linhagem<br />
no chão, contendo todas as minhas<br />
roupas e pequenos objetos. Não tive a<br />
oportunidade de me explicar. Infelizmente,<br />
recebi uma criação muito rígida<br />
e com pouco diálogo”, lembra Anita.<br />
Foi a primeira noite fora de casa.<br />
Contudo, Anita não ficou na rua. Dormiu<br />
na casinha dos cachorros. Conta<br />
que passou a madrugada em claro,<br />
sentindo muita dor e desespero. “Minha<br />
vida era tra balho e escola. Eu era uma<br />
menina, não tinha experiência de vida.<br />
Nasci em uma família estruturada, re -<br />
ce bi uma boa educação. Quando fui<br />
expulsa de casa, eu tinha 17 anos, estudava<br />
no Colégio Comercial, na região<br />
da Pampulha e trabalhava na Escola<br />
de Engenharia. Você acredita?”, comenta,<br />
aos risos.<br />
Anita perdeu o rumo, seu mundo<br />
desmoronou. “Quando ia amanhecendo<br />
o dia, então criei coragem e sai em<br />
busca de um abrigo. Muitas portas se<br />
fecharam. Tive uma vida de animal,<br />
dormia no meio do mato. Só consegui<br />
algum apoio quando conheci outras<br />
pessoas em situação de rua. Me acolheram,<br />
respeitaram e defenderam.<br />
Com o surgimento da Pastoral de Rua,<br />
recebi um acompanhamento social, assistência<br />
mesmo”, enfatiza.<br />
A educadora social Claudenice Rodrigues<br />
acompanha a trajetória de muitas<br />
mulheres na Pastoral de Rua de Belo<br />
Horizonte. “A maioria da população<br />
que está nas ruas é composta por homens.<br />
Aqui na Capital mineira, dos<br />
1.827 cidadãos nessa condição, cerca<br />
de 20% são mulheres. No entanto, por<br />
si só, o fato de uma mulher estar na<br />
rua já é um elemento que dificulta ainda<br />
mais sua sobrevivência. O risco de sofrer<br />
algum tipo de violência é muito maior.<br />
Devemos pensar que o fato de não ter<br />
um lugar para cuidar da própria privacidade<br />
é uma agressão, elas se sentem<br />
humilhadas, expostas”, aponta.<br />
Claudenice esclarece que outra<br />
questão marcante é a degradação da figura<br />
feminina. “Quando vemos uma<br />
mulher em situação de rua, muitas<br />
vezes, ela está em um estágio muito<br />
avançado de perda da autoestima.<br />
Com a questão do aumento do uso de<br />
“Tive uma vida de<br />
de animal, dormia no<br />
meio do mato. Só<br />
consegui algum apoio<br />
quando conheci<br />
outras pessoas em<br />
situação de rua”<br />
drogas, acontece também a prostituição,<br />
para manter o vício”.<br />
A educadora lida todos os dias com<br />
esse público e consegue identificar diversos<br />
fatores que provocam essa mazela<br />
da sociedade. “Existe um mito social de<br />
que todos que estão nas ruas chegaram<br />
nesta situação por causa das drogas.<br />
São muitos e relevantes dilemas pessoais<br />
e coletivos que levam uma pessoa a<br />
morar na rua. A questão das drogas é<br />
só mais um. Os conflitos familiares, as<br />
condições socioeconômicas, o desemprego<br />
e a falta de estabilidade emocional<br />
são outros”, afirma Claudenice.<br />
Mães da Rua<br />
A vida dos moradores de rua não é<br />
nada linear, é uma população bem heterogênea<br />
e já passou por diversos períodos<br />
históricos. Entretanto, segundo<br />
relatos, em todas estas fases, as mulheres<br />
exerceram um papel central.<br />
“Nós tivemos um período em que<br />
as pessoas construíam malocas, barracas<br />
debaixo dos viadutos, onde se<br />
formavam comunidades chefiadas por<br />
mulheres. Eram as chamadas Mães da<br />
Rua. Os grupos se organizavam em<br />
torno dessa mulher. Ela coordenava as<br />
ações de organização e sobrevivência<br />
e era tratada e respeitada como uma<br />
mãe. Dona Ângela, Dalva, Geralda,<br />
foram figuras marcantes para muitos”,<br />
considera a educadora social.<br />
“Não são apenas histórias tristes<br />
que moram nos relatos que ouvimos.<br />
As mulheres são bem peculiares, quando<br />
aparece uma oportunidade de superar<br />
essa situação elas agarram, planejam<br />
e conseguem vencer, até com mais facilidade<br />
do que os homens”. É o que<br />
pensa Claudenice.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
52<br />
Anita (foto) é um bom exemplo, depois<br />
de décadas em situação de rua,<br />
conseguiu superar os desafios. Hoje,<br />
faz parte do Movimento Nacional da<br />
População em situação de Rua e ajuda<br />
outras pessoas com sua história de superação.<br />
Ela conta que na rua se tornou<br />
invisível, entrou no mundo das<br />
drogas, sofreu com a violência de um<br />
companheiro, foi separada de seus filhos,<br />
caiu no rio Arrudas e quase morreu,<br />
passou por todo tipo de<br />
humilhação. “As pessoas passam e<br />
nem te percebem. É como se você<br />
fosse um objeto jogado ali na calçada.<br />
É uma dor tão profunda que não tenho<br />
palavras para expressá-la. Quantas<br />
vezes recebi cantadas. Então eu dizia:<br />
- Você pode me levar para a sua casa<br />
para eu lavar minha roupa, tomar<br />
banho... A resposta era sempre não!<br />
Aprendi uma lição nessa caminhada.<br />
Você pode descer do topo para o<br />
fundo do poço, em uma fração de segundos.<br />
Hoje, tenho minha casa, meus<br />
lindos filhos estão comigo, mantenho<br />
um relacionamento há 20 anos com<br />
um ex-morador de rua. Recuperei a relação<br />
com meu pai e sei que ele sente<br />
orgulho de mim. Entro na casa do governador,<br />
no Palácio do Planalto. Sou<br />
uma vitoriosa. Construímos uma nova<br />
história, bem mais bonita e feliz”, sintetiza<br />
Anita.<br />
“As pessoas passam<br />
e nem te percebem.<br />
É como se você fosse<br />
um objeto jogado<br />
ali na calçada”.<br />
Políticas públicas<br />
Egídia Maria de Almeida Aiexe é advogada<br />
e atua em uma série de organizações<br />
que defendem os Direitos Humanos.<br />
O Fórum de População de Rua<br />
e o Comitê Municipal de Acompanhamento<br />
e Monitoramento da População<br />
de Rua são algumas delas. De acordo<br />
com ela, a temática das mulheres demorou<br />
a ganhar espaço nos fóruns de<br />
discussão sobre essa parcela da população<br />
de Belo Horizonte. “Não tem sido<br />
pensada uma política para esse público.<br />
Como os números apontam para uma<br />
maioria de homens, os projetos de abrigamento,<br />
por exemplo, não são realizados<br />
para receber mulheres. Então,<br />
uma primeira questão seria criar unidades<br />
de atendimento para mulheres solteiras<br />
e casais também, ampliando esse setor.<br />
Só existem dois abrigos na cidade para<br />
elas”, complementa.<br />
A promoção de ações de assistência<br />
específicas é um outro ponto colocado<br />
pela advogada. “No abrigo elas<br />
apenas dormem, é necessário criar repúblicas<br />
onde possam morar. Temos<br />
apenas a república Maria Maria que<br />
foi criada para recebê-las, mas a sua<br />
capacidade é muito reduzida. Elas<br />
estão em uma zona de extrema vulnerabilidade,<br />
frisa Egídia.<br />
Drogas<br />
Uma questão muito discutida sobre<br />
os moradores de rua é o consumo de<br />
drogas. A advogada e militante Egídia<br />
Aiexe destaca, contudo, que o álcool é<br />
predominante, mas antes de qualquer<br />
droga está o conflito familiar. “Geralmente,<br />
esses rompimentos afetivos estão<br />
na raiz de muitos problemas. Em<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
53<br />
alguns casos, o álcool vem antes, em<br />
outras situações é a consequência.<br />
Nesse meio está, inclusive, a violência<br />
doméstica. É difícil dizer se foi a droga<br />
que levou uma pessoa para a rua ou se<br />
foi na rua que ela se envolveu com os<br />
entorpecentes”.<br />
Um dado relevante, fornecido pela<br />
advogada, contraria as manchetes de<br />
muitos jornais e programas de televisão:<br />
“Apenas uma parcela vai ter contato<br />
com outras substâncias ilegais, mas<br />
não é a maioria. Eles mesmos se dividem<br />
entre os que fazem uso de drogas<br />
ilegais e os demais. Os que trabalham<br />
na rua, por exemplo, geralmente consomem<br />
álcool e cigarro. Essas coisas<br />
são usadas para suportar os sofrimentos<br />
físicos, emocionais, etc”.<br />
Claudenice Rodrigues, educadora social, acompanha<br />
a trajetória de muitas moradoras de rua em BH.<br />
Abandono<br />
O caminho de Rosângela Pires começou<br />
a se tornar sinuoso quando o<br />
marido a deixou com uma filha, em<br />
um barracão de aluguel. “Cheguei na<br />
rua com a minha menina no colo. Peguei<br />
apenas as nossas roupas e deixei<br />
os móveis para trás, para pagar o aluguel<br />
que eu devia. Conheci um pipoqueiro<br />
e ele foi a primeira pessoa que<br />
me ajudou. Eu estava desesperada,<br />
chorando. O medo tomou conta de<br />
mim. As coisas ruins não saíam da minha<br />
cabeça”.<br />
No dia seguinte Rosângela conseguiu<br />
o endereço de um albergue. Ela nem<br />
sabia o que era isso. Pensava que fosse<br />
algo parecido com uma prisão. “Fui,<br />
então, para o Tia Branca. Chegando<br />
lá, vi aquela confusão, homens e mulheres<br />
pra lá e pra cá. A minha maior<br />
preocupação era com a minha filha<br />
Amanda. Aos poucos fiquei mais tranquila,<br />
conversei com as funcionárias<br />
do lugar e passei a frequentar a casa<br />
de apoio. Só que, lá, era apenas para<br />
dormir. Eu tinha que encontrar um<br />
lugar onde eu pudesse tomar banho,<br />
lavar as roupas e fazer os cuidados<br />
com a minha filha”.<br />
Aos poucos, a ex-moradora de rua<br />
fez algumas amizades, com pessoas<br />
que já estavam na mesma situação.<br />
Elas a levaram para outras instituições.<br />
“Eu tinha que encontrar<br />
um lugar onde eu<br />
pudesse tomar banho,<br />
lavar as roupas e fazer<br />
os cuidados com a<br />
minha filha”.<br />
Depois disso, chegou a morar na casa<br />
de apoio Maria, Maria. “Nesse processo<br />
acabei colocando a minha filha na Febem,<br />
porque eu não queria deixá-la na<br />
rua. Quando ela tinha 4 anos, consegui<br />
retirá-la. Foi aí que conheci o trabalho<br />
da Pastoral de Rua. Depois de um<br />
tempo, no dia do meu aniversário, eu<br />
ganhei um presente que nem imaginava.<br />
Os assistentes sociais me perguntaram:<br />
– Rosângela, você quer um lugar para<br />
morar? Era um barracão de um cômodo<br />
na Pedreira Prado Lopes. Eu aceitei, é<br />
claro! Para mim era um palácio! Nisso,<br />
eu estou lá até hoje”.<br />
Rosângela tem uma vida normal.<br />
Mora com a filha, genro e netos. Mas<br />
ela guarda algumas marcas desse período<br />
em que esteve perdida, em busca<br />
da sua própria identidade. Contraiu o<br />
vírus HIV e deu três filhos para a adoção.<br />
Um deles morreu, por também<br />
ter desenvolvido a doença.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
54<br />
“Quando vejo uma mulher passando<br />
por tudo isso que já vivi, meu coração<br />
enche de tristeza. Às vezes, busco até<br />
ajudar, mas é difícil, tenho medo da<br />
violência que rola. Tenho dó, principalmente,<br />
quando são mulheres grávidas.<br />
Dá vontade de pegar e levar para<br />
a minha casa. Só eu sei o que passei.<br />
Não é fácil. Com muita luta, consegui<br />
sair dessa e dar um futuro digno para<br />
a minha filha. Tenho 44 anos e muito<br />
para contar”, explica Rosângela (foto).<br />
No caso dessa ex-moradora de rua,<br />
ela não teve condições financeiras e<br />
emocionais para cuidar dos filhos, por<br />
isso, optou por entregá-los a alguém<br />
que lhes desse uma vida melhor. No entanto,<br />
em algumas situações, as mulheres<br />
não tiveram a chance de escolher. A<br />
perda dos filhos trouxe ainda mais sofrimento<br />
para vidas marcadas pela dor.<br />
Maternidade<br />
É difícil falar de mulheres e não<br />
mencionar a maternidade. Em 2014,<br />
duas recomendações da Promotoria<br />
da Infância do Ministério Público trouxeram<br />
novos elementos para esse debate.<br />
Os textos recomendam aos hospitais<br />
que os bebês de usuárias de<br />
álcool e outras substâncias, como a<br />
cocaína e o crack, sejam retirados das<br />
mães e encaminhados para abrigos.<br />
Até meados de janeiro deste ano, mais<br />
de 150 crianças já foram afastadas de<br />
suas mães. A população em situação<br />
de rua tem sido afetada diretamente.<br />
Formou-se um círculo, em que a<br />
mãe que vai até a maternidade pode<br />
sofrer uma medida compulsória por<br />
parte da própria instituição de saúde.<br />
Com isso, o Ministério Público e o Juizado<br />
da Infância e Juventude determinam<br />
o afastamento entre mães e filhos. No<br />
hospital, a gestante passa por uma triagem<br />
de verificação. Se ela estiver em<br />
situação de rua, já é um indício de má<br />
qualidade da saúde familiar. Também é<br />
feito um questionamento sobre o histórico<br />
do uso de drogas. Se constatada a<br />
dependência, ela não vai ter chance de<br />
conviver com seus filhos.<br />
Egídia Aiexe relata que não está<br />
sendo avaliado se o uso da droga realmente<br />
incapacita essa mãe para cuidar<br />
da criança. “Pode ser que ela faça o<br />
consumo esporádico. Está sendo feita<br />
uma generalização, violando o direito<br />
do bebê e da mãe. A questão central é<br />
o estereótipo, o preconceito que se<br />
coloca sobre a mulher. É preciso avaliar<br />
caso a caso para se chegar a uma decisão.<br />
Além do mais, o estado tem que<br />
fornecer ferramentas para que essa família<br />
consiga superar as dificuldades,<br />
que podem ser momentâneas”.<br />
O Estatuto da Criança prevê que a<br />
falta ou a insuficiência de recursos materiais<br />
não pode, por si só, determinar<br />
a perda da guarda ou do vínculo familiar.<br />
Nesses casos, essas famílias devem ser<br />
incluídas em programas de auxílio. A<br />
legislação obriga o Estado a possibilitar<br />
que aquela mãe tenha condições de<br />
cuidar do filho. Para Egídia Aiexe, o<br />
problema é que as mães não sabem<br />
disso e as assistentes sociais das maternidades<br />
também desconhecem essa<br />
informação.<br />
“Temos um outro problema que<br />
são os abrigos. É um serviço de execução<br />
indireta. São entidades que se cadastram<br />
na Prefeitura para realizar o<br />
serviço. Isso precisa ser repensado,<br />
por que essa instituição não é acompanhada<br />
pelos órgãos públicos, além<br />
disso, não participam das discussões<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
55<br />
públicas com os demais técnicos da<br />
rede para pensar soluções sobre o<br />
tema. Atua como um terceiro, com<br />
sua lógica própria e isso não é saudável<br />
para essa relação. O Município transfere<br />
a responsabilidade, o que dificulta o<br />
diálogo e o controle social sobre o serviço<br />
que é prestado”, afirma Egídia.<br />
Os principais atores dessa discussão<br />
tem sido a Defensoria Pública e o Ministério<br />
Público. “Nesse momento o<br />
MP está dividido. Uma parte tem uma<br />
visão muito autoritária e fascista. É um<br />
fato ruim porque a instituição costuma<br />
ser um defensor dos direitos humanos.<br />
Mas, a verdade é que os procuradores<br />
que tomaram essa decisão representam<br />
uma parcela da sociedade que julga<br />
essas mulheres de forma arbitrária e<br />
acredita que retirar os filhos do seu<br />
convívio é a melhor solução. Pensam<br />
como um problema de Polícia ou de<br />
Justiça e não de saúde pública ou de<br />
políticas públicas, como nós entendemos”,<br />
destaca Egídia.<br />
Em contraponto à ação do Ministério<br />
Público, a Defensoria Pública da União<br />
e do Estado de Minas Gerais, por meio<br />
de seus setores especializados em Infância<br />
e Juventude e Direitos Humanos,<br />
Coletivos e Socioambientais publicou<br />
uma recomendação conjunta no sentido<br />
de proteger essas mães e seus filhos e<br />
evitar a quebra dos laços familiares.<br />
Além disso, foi criada uma rede de profissionais<br />
que estão em debate constante<br />
sobre esses casos. O grupo reúne psicólogos,<br />
assistentes sociais, advogados,<br />
agentes de saúde, entre outros representantes<br />
envolvidos nessa causa.<br />
Uma das reivindicações desse grupo<br />
é que a Defensoria seja comunicada sobre<br />
os casos, assim como é feito com o<br />
Ministério Público. Para que o processo<br />
possa ser acompanhado desde o início.<br />
Da maneira como tem sido feito o procedimento,<br />
a Defensoria só é informada<br />
quando a criança já está no abrigo.<br />
“Estamos estudando formas legais, possivelmente<br />
uma ação civil pública, para<br />
que o Município atenda a essa mulher<br />
que realmente tem dependência química,<br />
de forma que ela não tenha que passar<br />
pela perda da criança. Queremos, ainda,<br />
dialogar com o Juizado da Infância. Estamos<br />
correndo o risco de adoções sumárias,<br />
o que pode ter ligações com o<br />
tráfico internacional de pessoas”, reivindica<br />
Egídia.<br />
Esse debate coloca em foco a situação<br />
das mulheres em situação de rua.<br />
Não é uma questão de direito individual<br />
apenas, envolve as demandas coletivas<br />
e o aspecto conservador da sociedade<br />
brasileira. Para a advogada Egídia<br />
Aiexe, a educação em direitos humanos<br />
é fundamental para mudar esse quadro<br />
de preconceito e discriminação. “Precisamos<br />
ensinar o que é democracia.<br />
Pensar a realidade considerando que<br />
ela tem vários olhares e perspectivas e<br />
que cada um vai somar em um mesmo<br />
espaço, construindo alguns consensos<br />
e promovendo o debate a todo o<br />
tempo, porque é assim que a humanidade<br />
deve caminhar”.ø<br />
“Para a advogada<br />
Egídia Aieixe, a<br />
educação em direitos<br />
humanos é<br />
fundamental para<br />
mudar esse quadro<br />
de preconceito e<br />
discriminação”.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
56<br />
SER MÃE<br />
<strong>POR</strong> CECÍLIA ALVIM<br />
fotos MARK FLOREST
57<br />
Mães em<br />
restrição de<br />
liberdade<br />
Mulheres<br />
passam a<br />
gravidez e<br />
criam filhos<br />
por um ano<br />
dentro do<br />
presídio<br />
Um muro alto pintado de rosa parece<br />
indicar algo diferente, mas um<br />
guarda fortemente armado no portão<br />
lateral confirma: ali é mesmo um presídio<br />
feminino. Ao adentrar a instituição,<br />
no entanto, é possível perceber<br />
que lá não estão apenas mulheres, mas<br />
também crianças bem pequenas e gestantes.<br />
Roupinhas de bebê penduradas<br />
no varal secam ao sol e colorem uma<br />
cinzenta realidade: a do aprisionamento.<br />
Assim é o Centro de Referência<br />
à Gestante Privada de Liberdade,<br />
localizado em Vespasiano, região metropolitana<br />
de Belo Horizonte.<br />
Abrigando atualmente 65 mulheres,<br />
o local é destino de mulheres que<br />
tiveram envolvimento com drogas e<br />
crimes. Ali elas pagam suas penas em<br />
condições um pouco mais dignas do<br />
que em penitenciárias tradicionais. A<br />
ideia é proporcionar um ambiente<br />
mais saudável para que as crianças se<br />
desenvolvam um pouco melhor dentro<br />
e fora da barriga, que possam ser amamentadas<br />
e reforcem o vínculo com<br />
suas mães, condutas fundamentais no<br />
primeiro ano de vida.<br />
Neste presídio não há grades nem<br />
celas. As mulheres dormem em alojamentos<br />
coletivos e berços de ferro<br />
ficam ao lado das camas. Há desenhos<br />
nas paredes, brinquedos e utensílios<br />
infantis. Crianças estão no colo de<br />
suas mães ou de outras mulheres presas,<br />
que se ocupam do cuidado<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
enquanto as mães trabalham na oficina<br />
de fabricação de móveis ou na preparação<br />
das refeições. Para ajudar na<br />
cozinha, o histórico e o perfil da<br />
mulher são avaliados. Elas recebem<br />
uma remuneração pelo trabalho, que é<br />
gerenciado pela direção do Centro<br />
para compra de itens como fraldas e<br />
produtos de higiene. Ao trabalhar, elas<br />
ocupam suas mentes e reduzem o<br />
tempo de aprisionamento. Para cada<br />
três dias trabalhados, um dia é remido<br />
em suas penas.<br />
A alimentação, segundo a direção<br />
do Centro, é definida por uma nutricionista,<br />
em função das gestantes e bebês.<br />
Atualmente, há 24 mulheres grávidas e<br />
41 crianças com suas mães. Uma delas,<br />
no colo de sua mãe, mama e faz valer<br />
o seu direito e a recomendação da Organização<br />
Mundial de Saúde para o<br />
aleitamento exclusivo até os seis meses<br />
de idade. O direito à amamentação é<br />
cabível à mulher em qualquer situação,<br />
mesmo que ela se encontre privada de<br />
sua liberdade. Existem previsões legais<br />
na Constituição Federal, bem como na<br />
Lei de Execução Penal e no Estatuto da<br />
Criança e do Adolescente. Ainda segundo<br />
a OMS, o aleitamento deveria<br />
ser mantido até os 2 anos de idade,<br />
com alimentação complementar, realidade<br />
que o Centro não contempla integralmente.<br />
Mães 100%<br />
As grávidas recebem visitas regulares<br />
de uma equipe de saúde da Maternidade<br />
Sofia Feldman para ter<br />
acompanhamento pré-natal, e saem<br />
escoltadas para ganhar seus filhos lá.<br />
Depois, retornam com os bebês para<br />
o Centro de Referência, onde eles<br />
ficam até completar um ano de vida.<br />
Esse é um momento difícil: a separação<br />
das mães de seus pequenos.<br />
“Quando estão lá com seus filhos,<br />
antes e depois do parto, essas mulheres<br />
são mães 100% do tempo. Meses<br />
depois, quando os filhos saem, elas deixam<br />
de exercer a função de mãe, o<br />
que gera impactos imprevisíveis para<br />
elas e seus bebês”, aponta o advogado<br />
criminalista e professor universitário,<br />
Virgílio de Mattos.<br />
Essas crianças geralmente são entregues<br />
aos cuidados de outras mulheres<br />
da família: mães, irmãs, avós, tias,<br />
primas. Segundo a diretora de Segurança<br />
do Centro, Maurília da Silva<br />
Gandra, 95% das crianças ficam com<br />
seus familiares. “O Conselho Tutelar<br />
averigua, com antecedência, as pessoas<br />
indicadas pela mãe, para saber se<br />
elas têm condições socioeconômicas e<br />
psicológicas de assumir o cuidado dessas<br />
crianças”. Há bebês, porém, que<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
não têm familiares interessados ou em<br />
condições de assumi-los. Esses têm um<br />
destino ainda mais triste e incerto: um<br />
abrigo público da região, onde serão<br />
cuidados por pessoas desconhecidas.<br />
“A criança cuja mãe não tem respaldo<br />
feminino em sua família, está fadada à<br />
exclusão”, alerta Virgílio.<br />
Embora com uma proposta positiva<br />
de melhorar o ambiente de privação de<br />
liberdade dessas mulheres-mães, o Centro<br />
de Referência à Gestante Privada de Liberdade<br />
é mais uma peça na engrenagem<br />
do sistema prisional, marcado pela lógica<br />
de severas punições previstas na legislação<br />
penal brasileira, que atinge mais<br />
fortemente mulheres e homens de classes<br />
populares, e também seus filhos. “A<br />
política de justiça social para o neoliberalismo<br />
é o encarceramento em massa.<br />
Essa lógica, oriunda dos Estados Unidos<br />
e Inglaterra, está falida há mais de 30<br />
anos”, aponta Virgílio de Mattos.<br />
Diferença de gênero<br />
Atualmente, segundo a Secretaria<br />
Estadual de Defesa Social, há 2.983<br />
mulheres presas em Minas Gerais.<br />
Além do Centro de Referência à Gestante<br />
Privada de Liberdade, há outras<br />
unidades prisionais que recebem exclusivamente<br />
mulheres em Minas Gerais:<br />
Complexo Penitenciário Feminino Estevão<br />
Pinto, Presídio Feminino José<br />
Abranches Gonçalves, Presídio de Caxambú,<br />
Ceresp Centro Sul e Presídio<br />
de Paraopeba.<br />
De acordo com os últimos dados do<br />
Departamento Penitenciário Nacional,<br />
do Ministério da Justiça, havia aproximadamente<br />
540 mil presos no país em<br />
2013, sendo mais de 32 mil mulheres.<br />
Baseados nesses dados, e no aumento<br />
expressivo de presas no país, o professor<br />
Virgílio de Mattos faz uma projeção<br />
de que em 2015 já haja mais de 700<br />
mil pessoas encarceradas no país, e de<br />
que apenas cerca de 8,5% delas sejam<br />
mulheres, o que mostra uma acentuada<br />
diferença de gênero nessa questão. Segundo<br />
ele, mais de dois terços dessas<br />
mulheres estão reclusas por ações relacionadas<br />
ao comércio de drogas, muitas<br />
vezes por influência de namorados,<br />
companheiros, filhos e maridos.<br />
“Quando eles são presos, elas passam<br />
a tomar conta dos negócios”, comenta.<br />
Histórias de<br />
silêncio e sonhos<br />
Roberta*, 35 anos, conta que estava<br />
na “hora errada e no lugar errado...”<br />
Cumpre pena porque foi pega<br />
numa casa onde estavam pessoas envolvidas<br />
com o tráfico de drogas. Mãe<br />
de 10 filhos, ela diz que era usuária<br />
desde os 15 anos, e que sempre saía<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
60<br />
“A gente se apega e<br />
depois é muito<br />
duro separar do<br />
filho da gente”.<br />
de casa para “fazer uso” longe deles,<br />
para não influenciá-los. Segundo ela,<br />
nenhum tem o mesmo problema. Sua<br />
tia sempre a ajudou a criar os filhos. O<br />
mais velho tem 21 anos e o mais novo<br />
está na barriga. Ela está grávida de 8<br />
meses. O pai do neném que está sendo<br />
gestado também está preso. Enquanto<br />
tece o assento de uma bela cadeira,<br />
que será vendida pela fábrica parceira<br />
da oficina, ela sonha em tecer um futuro<br />
melhor: “Saindo daqui, quero renovar<br />
a minha vida, recuperar o tempo<br />
perdido, viver para meus filhos”.<br />
Maria*, 33 anos, também está grávida.<br />
Seu quarto filho nascerá em<br />
breve. Ficará entregue aos cuidados da<br />
família, até ela cumprir o restante de<br />
sua pena por envolvimento com drogas.<br />
Ela diz que preferiria estar em um<br />
presídio comum, onde as crianças são<br />
retiradas das mães bem antes de um<br />
ano de vida. “A gente se apega e depois<br />
é muito duro separar do filho da<br />
gente”, diz, com os olhos marejados.<br />
Pede licença da sala onde acontecia a<br />
oficina. “Preciso respirar. Passar por<br />
tudo isso não é fácil...”, relata.<br />
Joana*, 20 anos, troca a fralda de<br />
uma bebezinha em cima de sua cama,<br />
e está grávida de 8 meses. Ela explica:<br />
“Essa é filha da minha irmã, que está<br />
trabalhando na oficina. Estou cuidando<br />
pra ela”. Não só ela e a irmã estão presas.<br />
Seus bebês também estão ali, dentro<br />
e fora da barriga. Outra irmã, o pai,<br />
e o cunhado estão encarcerados também.<br />
Sua história traduz a triste sina da<br />
desigualdade social e racial que penaliza<br />
famílias inteiras, sem perspectivas<br />
de futuro. É possível perceber que um<br />
número significativo de mulheres ali<br />
são negras ou morenas.<br />
Iara*, 23 anos, também é negra e<br />
está gestante. Diz que sua prima ficará<br />
com o neném quando nascer. “Ainda<br />
não falei com ela por telefone, só por<br />
carta. Mas ela vai cuidar dele sim, porque<br />
gosta muito de mim”. Recém-chegada,<br />
parece mais disposta que as<br />
demais. Diz que quer que o tempo<br />
passe logo, para ela ser transferida para<br />
o presídio feminino em sua cidade, no<br />
Triângulo Mineiro, onde mora seu filho<br />
de 3 anos, que sonha poder ver com<br />
frequência. “Estou com muitas saudades<br />
dele”, diz emocionada. Ela quer<br />
tirar fotos. “Vocês vão tirar fotos da<br />
gente? É bom porque eu não tenho foto<br />
de mim grávida”, pede e se ajeita para<br />
mostrar a barriga. Ela quer ter uma recordação<br />
de uma fase que é pra ser bonita<br />
na vida da mulher, mas que é<br />
diferente no caso dela e de tantas outras<br />
que ali estão. As tradicionais fotos de<br />
mulher grávida, cheia de roupas, adereços<br />
e mimos infantis, dá lugar ao que é<br />
possível: algumas breves poses, com o<br />
uniforme branco e verde claro do Centro<br />
de Referência. Ainda assim, o momento<br />
guarda certa alegria, a da espera<br />
maternal, da vida nova que se anuncia<br />
nas curvas daquela barriga.<br />
E nas curvas da vida, um futuro melhor<br />
se aproxima para Antônia*, 34<br />
anos. Sua espera já está perto do fim.<br />
Chegou ao Centro há um ano e alguns<br />
meses para cumprir o fim de sua pena.<br />
Passou a gravidez e ganhou sua filha<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
61<br />
lá. A menina já está com 1 ano e 2<br />
meses. “Aqui é diferente de outro presídio<br />
onde estive, porque posso ficar<br />
com minha filha, cuidar dela”. Como<br />
Antônia está prestes a “ganhar a liberdade”,<br />
a direção permitiu que a menina<br />
ficasse um pouco mais para sair<br />
junto com sua mãe, prática que se repete<br />
em casos semelhantes. “Quando<br />
sair daqui quero colocar minha filha no<br />
jardim, voltar a trabalhar”. Ela conta,<br />
sorridente, que seu casamento também<br />
foi realizado ali, no fim de 2014. Uma<br />
cerimônia simples oficializou a sua<br />
união com o pai da menina, com quem<br />
já se relaciona há cerca de 7 anos. Segundo<br />
ela, o marido a visita semanalmente<br />
no presídio. Vai ver a mulher e<br />
a filha, e levar um pouco do que elas<br />
precisam: itens de higiene, afeto, carinho...<br />
“Ele tá na luta comigo...”<br />
Situação diferente de boa parte das<br />
mulheres presas ali. Poucas recebem<br />
visitas de seus maridos. “Geralmente,<br />
quando o homem é preso, recebe<br />
visitas regulares de sua mulher. Já a<br />
mulher não costuma receber visitas de<br />
seu companheiro, pois muitas vezes<br />
ele está preso, com mandado de prisão<br />
ou envolvido com atividades ilegais”,<br />
analisa Virgílio.<br />
[ nomes fictícios para preservar a identidade<br />
* ]<br />
das mulheres presas.<br />
“Saindo daqui,<br />
quero renovar a<br />
minha vida,<br />
recuperar o tempo<br />
perdido, viver para<br />
meus filhos”<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
62<br />
Estigma da exclusão<br />
Uma agente penitenciária mostra<br />
um outro lado da história. Sob sua<br />
ótica, boa parte dessas mulheres não é<br />
tão maternal quanto parece. “Exercem<br />
a maternidade integralmente apenas<br />
enquanto estão aqui entregues a essa<br />
função. Do lado de fora, agem diferente,<br />
têm outras condutas que as distanciam<br />
de seus demais filhos e de uma<br />
vida tranquila”.<br />
Ainda que o Centro de Referência<br />
à Gestante Privada de Liberdade pareça<br />
uma ilha no submundo dos presídios<br />
brasileiros, uma dura realidade<br />
salta aos olhos: os filhos dessas mulheres<br />
são crianças que já nascem presas,<br />
cumprem penas por ações e crimes<br />
que não cometeram... E uma questão<br />
fica no ar: qual será o destino delas? O<br />
que o futuro reserva para quem já<br />
nasce sob o estigma da exclusão?<br />
Enquanto algumas mulheres esperam<br />
o parto de seus bebês, outras<br />
esperam, angustiadas, o dia em que<br />
vão se separar de seus filhos, mas<br />
todas, invariavelmente, esperam pelo<br />
dia em que ganharão a tão sonhada<br />
liberdade. “Liberdade − essa palavra, /<br />
que o sonho humano alimenta: / que<br />
não há ninguém que explique / e ninguém<br />
que não entenda!”, versos da<br />
poetisa Cecília Meireles, estampados<br />
no muro rosado do pátio interno da<br />
instituição prisional.<br />
Especialista<br />
defende anistia<br />
Para Virgílio de Mattos, que é também<br />
membro da Comissão Nacional<br />
de Controle Social na Execução Penal<br />
do Ministério da Justiça, uma medida<br />
humanitária poderia mudar essa triste<br />
história das mulheres presas gestantes<br />
e mães. Uma revisão das penas impostas<br />
a elas identificaria quais poderiam<br />
cumprir penas sem restrição de liberdade,<br />
para poderem gestar e criar seus<br />
filhos longe da cadeia. “A maioria é ré<br />
primária. Mais de 75% delas não cometeram<br />
crimes com violência ou com<br />
grave ameaça contra a pessoa. Há os<br />
casos de mulheres que cometeram crimes<br />
para se defenderem de homens<br />
violentos, para não morrerem, para<br />
não apanharem”, destaca Virgílio. De<br />
acordo com ele, mulheres sem antecedentes<br />
criminais, e que não cometeram<br />
crimes violentos, poderiam cumprir<br />
suas penas de outra forma, fora da cadeia,<br />
sem colocar em risco a sociedade<br />
e o futuro de seus filhos. “Seria possível<br />
anistiar mais de dois terços das mulheres<br />
presas, mas o preconceito faz com<br />
que todo mundo se cale e essa situação<br />
se mantenha assim...”, analisa Virgílio<br />
de Mattos.<br />
Sua proposta de uma anistia para<br />
essas presas parece utópica, mas em<br />
sua visão, deveria ser replicada de uma<br />
forma mais ampla no sistema prisional<br />
brasileiro, com cadeias superlotadas e<br />
em condições ruins de funcionamento.<br />
“A cada dia que passa, prende-se mais<br />
e mal. Muitas pessoas que estão presas<br />
poderiam estar soltas, cumprindo medidas<br />
alternativas sem restrição de liberdade,<br />
tendo a chance constante de<br />
recriar a própria vida, como é comum a<br />
todo ser humano”, vislumbra Virgílio.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
“algumas mulheres<br />
esperam o parto<br />
de seus bebês,<br />
outras esperam,<br />
angustiadas, o dia<br />
em que vão se<br />
separar de seus<br />
filhos, mas todas,<br />
invariavelmente,<br />
esperam pelo dia em<br />
que ganharão a tão<br />
sonhada liberdade”.
64<br />
foto CECÍLIA ALVIM<br />
SER MÃE<br />
<strong>POR</strong> CECÍLIA ALVIM<br />
Mãe coragem<br />
Eva Maria da Silva constrói a sua família<br />
com crianças que precisam de um lar<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
65<br />
Uma história<br />
absolutamente singular.<br />
Essa é a síntese, que<br />
não diz tudo, sobre a<br />
vida de Eva ...<br />
Uma mulher que abraça<br />
muitos filhos e acolhe<br />
muitas pessoas,<br />
independentemente de<br />
idade, condição,<br />
escolhas...<br />
Há 31 anos, Eva Maria da Silva recebe<br />
em sua casa crianças, adolescentes,<br />
jovens, adultos e idosos que se encontram<br />
em situações difíceis ou que perderam<br />
suas referências familiares. Em<br />
uma nova moradia, eles têm a chance<br />
de reconstruir suas vidas, baseadas em<br />
afeto, colo de mãe e valores de família.<br />
Diferente de um abrigo convencional,<br />
onde as crianças são cuidadas por<br />
funcionários, nessa casa todos são criados<br />
como filhos e netos, como parte<br />
integrante de uma família de verdade.<br />
Eva conta com simplicidade: “aqui é<br />
um lar e nós somos uma família”.<br />
Tudo começou em 1984, quando<br />
Eva, casada com Vivaldo Elias de Souza,<br />
já tinha um filho de 3 anos e outro<br />
com cerca de 6 meses. Ela trabalhava<br />
como auxiliar de enfermagem na Copasa.<br />
Ao visitar famílias de funcionários,<br />
em vilas e periferias, ela percebeu<br />
muitas histórias de sofrimento e abandono<br />
e começou a se perguntar: “Com<br />
a profissão que eu tenho, o que posso<br />
fazer a mais neste mundo?”.<br />
E desde então, Eva fez mais, muito<br />
mais do que imaginava e do que se<br />
possa acreditar. Com dois filhos pequenos,<br />
ela foi a uma creche buscar<br />
uma criança que lhe havia sido indicada<br />
para adoção. No entanto, ao chegar<br />
se deparou com um outro menino pequeno<br />
e franzino de cerca de 1 ano.<br />
“Era só cabeça e barriga. Estava desnutrido<br />
e carente. Senti que era ele.<br />
Com tempo e cuidado, ele se reestabeleceu,<br />
teve uma infância tranquila,<br />
estudou”, relata.<br />
Depois disso, ela adotou mais quatro<br />
crianças, até ter mais um filho “de barriga”,<br />
como ela chama seus três filhos<br />
biológicos, já que trata todos igualmente<br />
como seus filhos. “A comida é igual<br />
para todos. Nada é separado”, diz um<br />
dos filhos.<br />
Com um neném de colo, ela prosseguiu<br />
sua missão de cuidar dos filhos<br />
de outras pessoas. Junto com o marido,<br />
adotaram mais 11 crianças e mantiveram<br />
muitas outras sob guarda provisória,<br />
concedida pela Justiça, até que tomassem<br />
seu rumo. Vivaldo, casado com<br />
Eva há 35 anos, resume sua percepção<br />
sobre sua esposa em poucas palavras:<br />
“Ela é uma mãe no máximo do dinamismo<br />
que a vida se apresenta”.<br />
Em muitos casos, o casal conseguiu<br />
apoiar e promover a reaproximação e<br />
o retorno da pessoa à sua família de<br />
origem. No entanto, muitos ficaram,<br />
pois encontraram ali o que não tinham<br />
experimentando antes: amor de mãe,<br />
de pai, de irmãos, uma cama para<br />
dormir sossegado e sonhar com uma<br />
vida pela frente. “Quando se dissolvem<br />
os laços familiares, você percebe o<br />
medo, a fragilidade, a desconfiança entrar.<br />
As pessoas passam a acreditar que<br />
não podem mais ser amadas. E então<br />
elas precisam ter uma experiência de<br />
amor verdadeiro para voltarem a acreditar<br />
em si mesmas e seguirem adiante”.<br />
Filhos de Eva<br />
Ao todo, Eva tem 17 filhos adotados<br />
legalmente, sendo 6 deles especiais,<br />
pessoas com alguma deficiência.<br />
Sobre quantas pessoas já acolheu, parece<br />
até ter perdido a conta, mas lembra<br />
de um levantamento feito há 10<br />
anos, quando já tinham passado por<br />
sua casa, por algum tempo, cerca de<br />
1380 pessoas. Depois de mais uma<br />
década, ela estima que esse número<br />
chegue hoje a 2000 pessoas que, de<br />
alguma forma, fizeram e ainda fazem<br />
parte dessa imensa família. “Sempre<br />
acolhi as pessoas que precisavam de<br />
uma casa, de uma família, e nunca tive<br />
restrições de origem, condição, idade,<br />
opção sexual. A gente tem que respeitar<br />
as pessoas. Não podemos agir com<br />
egoísmo”.<br />
Todos a consideram como mãe,<br />
porque veem nela a referência de amor<br />
incondicional e cuidado constante que<br />
as mães geralmente dedicam a seus filhos.<br />
“Para mim, ser mãe é amar e<br />
respeitar os filhos, independente de<br />
suas escolhas e de suas identidades,<br />
mas é também impor limites, incentivar<br />
para que estudem, tenham profissão,<br />
trabalhem e se desenvolvam”.<br />
Ela conta que alguns dos filhos já<br />
têm família e, destaca, com orgulho<br />
de mãe, que cinco de seus filhos especiais<br />
estão trabalhando. “Eles têm horário<br />
de trabalho, obrigações, vão de<br />
ônibus, e têm seus próprios salários.<br />
Gosto de ver eles progredindo”. Dois<br />
de seus filhos se formaram em Direito,<br />
uma em Gastronomia, e um em Ciências<br />
Contábeis, e todos os outros são<br />
sempre incentivados a estudar.<br />
Questionada sobre como manter a<br />
paz numa casa com tantas pessoas diferentes,<br />
de diversas origens e condi-<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
66<br />
ções, Eva responde com serenidade:<br />
“Aqui em casa, nós cultivamos valores<br />
como respeito, afetividade, diálogo,<br />
colaboração, espiritualidade. Resolvemos<br />
os conflitos conversando. Embora<br />
haja as diferenças, há um somatório<br />
de aprendizado”.<br />
Seu conceito de família é muito<br />
mais amplo do que vivem atualmente<br />
as famílias tradicionais, ligadas por relações<br />
sanguíneas de parentesco. Vendo<br />
a realidade de Eva, é possível perceber<br />
que, para ela, família é quem vive<br />
junto, buscando o apoio mútuo para<br />
superar as adversidades. “Família é<br />
toda a força que a gente precisa. É o<br />
apoio que as pessoas necessitam para<br />
enfrentar a vida com mais segurança”.<br />
Casa cheia de afeto<br />
Os filhos contam, com alegria, que<br />
a casa fica ainda mais cheia, quando é<br />
aniversário de alguém, ou em datas<br />
festivas como o Natal. “Vem muita<br />
gente que já passou por aqui, e que<br />
mora longe”. Um deles relata que as<br />
viagens anuais da família à praia são<br />
sempre uma festa. “Quando o ônibus<br />
chega com aquele tanto de gente, o<br />
pessoal pensa que é excursão, mas<br />
não, é uma família em férias”.<br />
Para acolher e cuidar de tanta pessoas,<br />
Eva sempre contou com a ajuda<br />
de inúmeros amigos que constantemente<br />
traziam doações e colaboravam<br />
de diferentes maneiras. Ela ressalta<br />
que nunca teve apoio de órgãos governamentais,<br />
porque não quis institucionalizar<br />
o que fazia. Sempre fez com<br />
o coração, sem outras intenções.<br />
Atualmente, a residência grande e<br />
modesta abriga 33 pessoas em 5 quartos<br />
femininos e 6 quartos masculinos.<br />
O mais novo da casa é um neto de 5<br />
anos. A obra, que não havia sido terminada,<br />
foi doada à família no ano<br />
2000 por uma associação que viu na<br />
atuação de Eva o merecimento e a necessidade<br />
de espaço para tanta gente<br />
e afeto. No entanto, foi preciso muito<br />
trabalho da família e de amigos para<br />
colocá-la em condições de ser habitada.<br />
Movida pela esperança e pelo desejo<br />
de um futuro melhor para seus filhos,<br />
como toda mãe, Eva vislumbra novos<br />
tempos em uma moradia ainda melhor.<br />
Filhos contam<br />
a diferença que<br />
Eva fez em<br />
suas vidas<br />
Sônia Maria da Silva, 51 anos,<br />
mora na casa de Eva há mais de 1<br />
ano, onde diz ter começado sua vida<br />
novamente. “Eu era alcoólatra. Vivi<br />
nas ruas por 26 anos. Depois trabalhei<br />
em casa de família. O álcool só me<br />
trouxe destruição. Já não estou mais<br />
fazendo uso dele. Aqui eu achei o meu<br />
lugar. Tenho carinho de mãe e pai.<br />
Eles cuidam de mim, e eu cuido deles.<br />
Passo boa parte das roupas da casa,<br />
principalmente dos especiais. Acho<br />
que minha velhice vai ser aqui”.<br />
Outra história que ilustra a grandeza<br />
das ações de Eva é a de seu sobrinho<br />
biológico e “filho”, Israel Williano Marcelo<br />
da Silva, de 27 anos. Sua mãe,<br />
irmã de Eva, morou na casa por alguns<br />
anos criando seus filhos e ajudando a<br />
criar as demais crianças. Há alguns<br />
anos mudou-se para o interior. Ele<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
67<br />
ficou para continuar os estudos. Com<br />
o apoio de Eva, Israel estudou e conseguiu<br />
um bom emprego. “Eva me incentivou<br />
a fazer o vestibular. Quando<br />
me preocupei sobre como ia pagar a<br />
faculdade, ela disse: Comece, que o<br />
dinheiro virá”. E veio. Uma amiga da<br />
família, que mora na Suécia, ajudou a<br />
custear a faculdade de Israel, como de<br />
outros jovens da casa. Ele diz que considera<br />
essa senhora como uma de suas<br />
três mães, além de sua mãe biológica,<br />
e de Eva, por quem ele tem muito respeito<br />
e gratidão.<br />
“Eva exerce mesmo o papel de<br />
mãe, de colocar a pessoa na sociedade,<br />
através da educação. Escola e saúde<br />
nunca faltaram para ninguém, ela sempre<br />
acompanhou de perto. Impressionante<br />
é que ela reconhece todos pela<br />
voz, até aqueles que ficam um tempo<br />
distantes”, conta. Israel afirma que Eva<br />
tem uma forma diferente de ver a vida.<br />
“Ela enxerga o que as pessoas normalmente<br />
não vêem: que todas as pessoas<br />
têm dificuldades, mas têm talentos,<br />
que só precisam de apoio, de alento,<br />
de direcionamento. Se tivesse mais<br />
pessoas no mundo com essa mentalidade,<br />
o mundo seria diferente”.<br />
Hoje, Israel é graduado em Ciências<br />
Contábeis, pós-graduado em Gestão<br />
Financeira e trabalha com consultoria<br />
de sistemas. “Graças ao voto de confiança<br />
que Eva me deu, eu tenho consciência<br />
que não sou apenas mais um,<br />
que eu tenho o meu valor e o meu<br />
lugar no mundo”.<br />
Israel viaja a trabalho constantemente,<br />
mas sempre volta para casa,<br />
para perto da sua “grande família”,<br />
como ele diz. “Gosto de estar perto<br />
dos pequenos. Vejo os olhos deles brilhando<br />
e lembro de mim, quando criança.<br />
Quero ser uma referência para<br />
eles, assim como Eva e Vivaldo foram<br />
e são para mim até hoje”. Segundo Israel,<br />
esse convívio familiar faz com<br />
que todos da casa aprendam a olhar o<br />
mundo de forma diferente. “Cresci assim<br />
e pretendo seguir minha vida com<br />
essa visão”.ø<br />
CECÍLIA ALVIM<br />
Mulher... Mãe!<br />
Que traz beleza e luz aos dias<br />
mais difíceis<br />
Que divide sua alma em duas<br />
Para carregar tamanha<br />
sensibilidade com força<br />
Que ganha o mundo<br />
com sua coragem<br />
Que traz paixão no olhar.<br />
Mulher<br />
Que luta pelas suas ideias<br />
Que dá a vida pela “família”<br />
Que ama incondicionalmente<br />
Que se arruma, se perfuma<br />
Que vence sempre o cansaço.<br />
Que chora, que ri<br />
E que sonha.<br />
Todas as mulheres (mães), beleza<br />
única, vivas, cheias de<br />
mistérios e encantos!<br />
Mulheres (mães) que deveriam<br />
ser lembradas, amadas, admiradas<br />
todos os dias.<br />
Para você, mulher,<br />
mãe tão especial.<br />
Obrigado por existir.<br />
Nós te amamos e te respeitamos,<br />
nossa querida mãe Eva!<br />
Cláudio Soares, um dos inúmeros<br />
filhos de Eva, escreveu para<br />
ela em nome dos demais irmãos<br />
no Dia das Mães de 2014<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
ARTIGO<br />
<strong>POR</strong> ANAMARIA NASCIMENTO<br />
fotos TERESA MAIA/DP/D.A.PRESS
69<br />
Mães de Noronha<br />
Gestantes do arquipélago vivem “exílio da maternidade”<br />
Numa manhã ensolarada em Fernando<br />
de Noronha, ouvi um relato que<br />
me deixou sem sono por muitos dias.<br />
Foi num passeio de barco entre a Praia<br />
da Cacimba do Padre e a Praia do Sancho<br />
que escutei de uma moradora do<br />
arquipélago um comentário natural para<br />
quem vive na principal ilha do estado<br />
de Pernambuco, mas assustador para<br />
os que vivem no continente. Numa conversa<br />
informal, ela contava ao condutor<br />
da embarcação como uma noronhense<br />
havia burlado o sistema de controle de<br />
natalidade da ilha para ter o filho em<br />
casa. Chocada com o relato brutal de<br />
violência contra as mulheres, perguntei<br />
o que aquilo significava para ela. “Não<br />
podemos ter filho aqui. Aos sete meses<br />
de gestação, somos literamente expulsas<br />
da ilha para termos o bebê no continente.<br />
Normalmente vamos para o Recife<br />
ou Natal, mas nem sempre temos<br />
familiares lá”, contou.<br />
Minha viagem de férias em Noronha<br />
não foi mais a mesma. Não conseguia<br />
esquecer o que tinha escutado e não<br />
entendia como nós, pernambucanos,<br />
morando no mesmo estado que aquelas<br />
mulheres, sequer conhecíamos aquela<br />
realidade. Retornando da folga, resolvi<br />
investigar a trajetória das mães de Noronha<br />
para o jornal onde trabalho, o<br />
Diário de Pernambuco. Após cerca<br />
de três meses de ligações, agendamento<br />
de entrevistas e recusas do governo do<br />
estado para que eu continuasse tocando<br />
a pauta, desembarquei no arquipélago<br />
para descobrir o que havia por trás da<br />
negação dos direitos das mulheres a<br />
terem os filhos perto de casa, com o<br />
apoio do marido e dos familiares.<br />
Longe de parecer um paraíso, a<br />
Noronha daquelas mulheres não tem<br />
os atrativos que encantam os cerca de<br />
60 mil turistas que passam por lá todos<br />
os anos. O resultado dos dias dedicados<br />
a ouvir aquelas mães foi o especial<br />
multimídia Mães de Noronha, que reuniu<br />
os depoimentos de mulheres que<br />
lutam por um único direito: o de ter os<br />
filhos perto de casa.<br />
Os partos começaram a ser proibidos<br />
em Fernando de Noronha quando<br />
a maternidade do Hospital São Lucas,<br />
o único do arquipélago foi desativado<br />
em 2004. É obrigação do poder público<br />
evitar a explosão populacional para<br />
“Não podemos ter<br />
filho aqui. Aos sete<br />
meses de gestação,<br />
somos literamente<br />
expulsas da ilha para<br />
termos o bebê no<br />
continente”.<br />
preservar o Parque Nacional Marinho<br />
de Fernando de Noronha, área que<br />
corresponde a 70% do território da<br />
ilha oceânica. Oficialmente, o estado<br />
nega que esse tenha sido o motivo da<br />
desativação da maternidade. A pequena<br />
quantidade de partos registrada por<br />
ano em Fernando de Noronha é a justificativa<br />
da administração da ilha para<br />
a proibição de partos no hospital.<br />
Os espaços que já foram as salas de<br />
parto e de recém-nascidos do Hospital<br />
São Lucas estão, hoje, abarrotados de<br />
caixas com prontuários, equipamentos<br />
sem uso e cadeiras. A emergência do<br />
hospital recebe, de acordo com a Secretaria<br />
Estadual de Saúde, cerca de<br />
800 pessoas por mês. Poucos pacientes,<br />
porém, conseguem sair de lá com um<br />
diagnóstico preciso. Faltam médicos,<br />
remédios e máquinas para realizar exames.<br />
Sem saída, muitos pacientes precisam<br />
recorrer ao Tratamento Fora do<br />
Domicílio (TFD) e viajar ao continente.<br />
A estrutura precária do hospital e a<br />
ausência de profissionais de saúde em<br />
Noronha foram denunciadas pelos próprios<br />
funcionários e por moradores da<br />
ilha. “As paredes estavam rachadas, e<br />
o teto caindo. A direção do hospital<br />
precisou tomar providências sem a<br />
ajuda do estado”, revelou uma funcionária<br />
que não quis se identificar. Nas<br />
décadas de 1960 e 1970, o atendimento<br />
era feito por médicos da Aeronáutica.<br />
Hoje, a gestão está nas mãos<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
70<br />
da coordenadoria de saúde de Fernando<br />
de Noronha, ligada à Secretaria Estadual<br />
de Saúde de Pernambuco.<br />
Cerca de 40 mulheres de Noronha<br />
dão à luz por ano. É uma média de três<br />
partos por mês. A coordenadora de<br />
saúde do arquipélago, Fátima Souza,<br />
acredita que esses números são ínfimos<br />
frente aos riscos que as mães correriam<br />
sem um hospital de alta complexidade.<br />
“Os custos para manter uma<br />
maternidade para, no máximo, quatro<br />
partos por mês seriam muito altos.<br />
Além disso, temos um déficit de profissionais<br />
permanentes na ilha e de estrutura<br />
física”, afirmou.<br />
Ela faz as contas. Para manter a<br />
maternidade em Noronha, seriam necessários<br />
21 médicos por mês, sendo<br />
sete obstetras, sete anestesistas e sete<br />
neonatologistas. O plantão de um médico<br />
custa R$ 1,8 mil, totalizando R$<br />
151.200 apenas com a folha de pagamento<br />
desses profissionais. “Isso sem<br />
contar com os enfermeiros, técnicos<br />
de enfermagem, impostos, material<br />
médico, passagem, hospedagem e alimentação<br />
das equipes. É muito mais<br />
vantagem mandar as mulheres para o<br />
continente”, pontuou.<br />
A médica gestora garante que, no<br />
Recife, as grávidas são acompanhadas<br />
desde o desembarque até o parto. As<br />
recifenses são levadas para a casa de<br />
familiares que permaneceram na capital<br />
pernambucana. As que não têm parentes<br />
na cidade são hospedadas em<br />
um hotel pago pelo estado. “Elas são<br />
orientadas por uma equipe formada<br />
por assistente social, nutricionista e<br />
enfermeiras. Para os exames, um carro<br />
da administração faz o transporte dessas<br />
mulheres”, explica Fátima Souza. Os<br />
depoimentos das mães, no entanto,<br />
contradiziam essa informação.<br />
Maternidade do único hospital virou depósito, após ser desativada em 2014.<br />
A cozinheira Marinalva Fonseca confidenciou<br />
que foi abandonada pelo<br />
estado quando chegou ao continente.<br />
No oitavo mês da gestação de Tayná,<br />
hoje com 4 anos, Marinalva deixou Noronha<br />
com a promessa de que seria<br />
hospedada num hotel em Boa Viagem,<br />
Zona Sul do Recife. Ao chegar à capital<br />
pernambucana, porém, foi encaminhada<br />
para um dos quartos da Casa do Estudante,<br />
no Derby, área central da capital<br />
pernambucana. Dividia o espaço com<br />
centenas de jovens de todo o estado,<br />
mas se sentia isolada. “Passei mal numa<br />
noite e decidi voltar para casa. Pensei,<br />
já que me levaram para o Recife na<br />
base da mentira, que eu podia retornar<br />
do mesmo jeito”, relatou.<br />
Três dias depois que retornou à<br />
ilha, a auxiliar de cozinha deu à luz de<br />
parto normal, feito por uma equipe<br />
médica improvisada, no São Lucas. O<br />
Salve Aéreo que atende à ilha foi chamado.<br />
“Disseram que eu estava com<br />
restos de placenta no organismo, não<br />
me deixaram ver minha filha depois<br />
que ela nasceu”. Levada de volta ao<br />
Recife, foi atendida por médicos do<br />
Cisam, uma maternidade pública ligada<br />
à Universidade de Pernambuco (UPE).<br />
Conforme o relatório da equipe da<br />
maternidade, o parto aconteceu normalmente,<br />
sem a necessidade de internamento.<br />
“Acho que a administração<br />
quis me punir”. Thayná mora na Paraíba<br />
com a avó. Nunca conseguiu o status<br />
de moradora permanente da ilha. Já<br />
Marinalva continua em Noronha e<br />
ainda sonha com a possibilidade de<br />
viver ao lado da filha.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
71<br />
“A maior herança<br />
que um noronhense<br />
consegue deixar<br />
para o filho é a<br />
possibilidade de<br />
ele ser morador<br />
permanente<br />
da ilha”.<br />
O drama das mães de Noronha<br />
nem sempre começa no momento de<br />
deixar a ilha. Muitas vezes, os problemas<br />
só aparecem na hora do retorno. Permanecer<br />
no arquipélago nem sempre<br />
é uma opção para as mulheres que<br />
não nasceram lá e engravidam. A copeira<br />
Leyliane Silva morava em Fernando<br />
de Noronha há dois anos quando<br />
descobriu que teria que deixar para<br />
trás o sonho de construir uma família.<br />
Como residente temporária, Leyliane<br />
não pode voltar à ilha com a filha sem<br />
pagar a Taxa de Preservação Ambiental<br />
(TPA), valor cobrado a todo turista que<br />
visita a ilha. A taxa custava R$ 45,60<br />
por dia quando a menina nasceu (hoje<br />
o valor é R$ 51,40). Para manter a primeira<br />
filha, Beatriz Catarina, no arquipélago,<br />
ela precisaria desembolsar R$<br />
1.368,00 mensalmente.<br />
O preço para manter a família<br />
unida, no entanto, não cabia no bolso<br />
da copeira. O pai de Beatriz também é<br />
morador temporário da ilha e não conheceu<br />
a filha até os 4 meses. “Vamos<br />
para lá sabendo que a situação das mulheres<br />
é complicada, mas é muito difícil<br />
quando chega a nossa vez”, disse. Por<br />
conta do diagnóstico de diabetes gestacional,<br />
Leilyane viajou cedo para o continente.<br />
“A ilha é uma fantasia. Quando<br />
cheguei, achei que estava no paraíso.<br />
Com o tempo, nos damos conta de que<br />
a vida lá é mais complicada do que se<br />
possa imaginar”, revelou. Sem poder<br />
voltar para Fernando de Noronha e<br />
reencontrar o marido, Leilyane vive em<br />
Escada, município da Zona da Mata de<br />
Pernambuco.<br />
Nascer em Noronha é quase como<br />
ter um green card. Foi o que contou a<br />
mulher que ajudou quase 50 mães de<br />
Noronha a dar à luz, mas não conseguiu<br />
ter os seus perto de casa. Auxiliar de<br />
enfermagem do Hospital São Lucas<br />
de 1998 a 2007, Francinete Lins nasceu<br />
em Fernando de Noronha. Os<br />
filhos dela, Ruan e Eloá, no entanto,<br />
tiveram que nascer no Recife. Na certidão<br />
de nascimento, consta que eles<br />
são noronhenses. Filhos de nativos<br />
têm o direito de serem registrados<br />
como se tivessem nascido na ilha. “A<br />
maior herança que um noronhense<br />
consegue deixar para o filho é a possibilidade<br />
de ele ser morador permanente<br />
da ilha”, afirmou.<br />
De acordo com Francinete, há uma<br />
grande incidência de casos de depressão<br />
pós-parto entre as mulheres de Fernando<br />
de Noronha. “Não há estudo que comprove<br />
isso, mas já observei que muitas<br />
mulheres acabam tendo sintomas de<br />
depressão após terem dado à luz”, observou.<br />
No Brasil, cerca de 40% das<br />
mães desenvolvem depressão, sendo<br />
que em 10% dos casos, o problema<br />
aparece de forma mais severa. “Ficamos<br />
longe da família, do marido, de tudo<br />
para termos nossos filhos. Nossa licença<br />
maternidade começa aos sete meses<br />
de gestação. Temos que retornar ao<br />
trabalho quando o bebê ainda tem dois<br />
meses de vida, mas a única creche da<br />
ilha só aceita as crianças a partir do<br />
quarto mês. Tem como não se desesperar?”,<br />
questionou.<br />
Francinete era auxiliar do médico<br />
José de Arimathea, o último a realizar<br />
partos no arquipélago. Nos anos 1990,<br />
ele foi chamado pelo governo de Pernambuco<br />
para uma missão amplamente<br />
rejeitada por colegas de profissão: atuar<br />
em Fernando de Noronha, ilha situada<br />
a mais de 500 km do Recife, onde ele<br />
vivia. Como já estava aposentado, decidiu<br />
aceitar o convite. Mesmo não<br />
sendo ginecologista e obstetra, o médico<br />
é referência no arquipélago quando o<br />
assunto é parto. “Eu era médico generalista.<br />
Tratava desde os doentes mais<br />
simples até as pessoas que precisavam<br />
de cirurgia. De menino pequeno a gestante”.<br />
Quando chegou à ilha, não<br />
havia farmácia ou equipamentos para<br />
fazer exames. “Mandávamos buscar<br />
tudo de avião. Os medicamentos só<br />
chegavam no dia seguinte”, recorda.<br />
No ano em que ele precisou retornar<br />
ao Recife por motivos pessoais, o governo<br />
desativou a maternidade do Hospital<br />
São Lucas. “Eu mesmo sugeri<br />
que não houvesse mais parto na ilha.<br />
As poucas parteiras que atuavam lá<br />
não tinham orientação. Hoje, só se<br />
faz parto com pediatra, anestesista.<br />
Na minha época não tinha isso”, disse.<br />
Atualmente, não existem parteiras em<br />
Fernando de Noronha.<br />
Todos os relatos foram publicados<br />
numa série de reportagens de três dias<br />
do Diário de Pernambuco, em 2013.<br />
As histórias também estão disponíveis<br />
em vídeo pelo site hotsites.diariodepernambuco.com.br/vidaurbana/2013/<br />
maes-de-noronha.ø<br />
A autora é jornalista e repórter do<br />
Diário de Pernambuco<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
72<br />
foto LAIS RODRIGUES<br />
CAPA<br />
<strong>POR</strong> SAULO ESLLEN MARTINS<br />
Entre o mito<br />
e a realidade<br />
Ciganas sonham com um futuro<br />
sem discriminação<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
73<br />
“O que era não<br />
deixa de ser;<br />
modifica. Cigano<br />
nunca deixa de<br />
ser cigano”.<br />
A tradição familiar é uma marca<br />
dos povos ciganos que carregam estigmas<br />
e mitos que aguçam o imaginário<br />
popular. No nascimento, a menina cigana<br />
já tem marcado o seu próprio<br />
destino. Valores como virgindade, casamento<br />
e maternidade fazem parte do<br />
universo dessas mulheres que sonham<br />
com um futuro sem discriminação. A<br />
adolescência é uma fronteira atravessada<br />
muito cedo pela jovem cigana, que é<br />
vigiada não só pelos seus familiares,<br />
mas também por toda a comunidade e<br />
precisa sair da escola para se casar.<br />
Quando se fala em ciganos, é preciso<br />
saber que existe uma enorme diversidade<br />
de comportamentos que variam<br />
conforme a organização da comunidade.<br />
Fatores políticos, socioeconômicos,<br />
religiosos, regionais e familiares podem<br />
interferir em um determinado grupo,<br />
acampamento ou etnia. Não é possível<br />
fazer uma análise, classificando todos<br />
os ciganos sob a mesma ótica. Nem<br />
mesmo a condição das mulheres pode<br />
ser generalizada, sob o risco de se<br />
fazer um julgamento precipitado.<br />
Muitas perguntas ainda ficam sem<br />
resposta quando o assunto é a história<br />
dos ciganos no Brasil. No livro Ciganos<br />
em Minas Gerais, do professor Rodrigo<br />
Corrêa Teixeira, é relatado que a documentação<br />
sobre ciganos é escassa, dispersa<br />
e parcial. Sendo ágrafas, as comunidades<br />
ciganas não deixaram registros<br />
escritos sobre sua origem. Ao longo<br />
do tempo, a impressão documentada<br />
sobre eles foi construída por chefes de<br />
polícia, religiosos e viajantes, que traçaram<br />
um perfil hostil e estereotipado.<br />
De acordo com o professor Rodrigo,<br />
foram 500 anos de perseguição do<br />
próprio estado contra os ciganos. Por<br />
serem itinerantes, não eram reconhecidos<br />
como cidadãos e, por isso, arcaram<br />
com toda a sorte de injúrias sobre<br />
o seu povo. Somente com o governo<br />
Lula, foram elaboradas políticas públicas<br />
para atender às demandas dessas minorias<br />
na sociedade brasileira.<br />
“É impressionante como essas pessoas<br />
sobreviveram a tantas formas de<br />
perseguição, nos últimos séculos. Escravizados<br />
na Romênia, expulsos da<br />
Europa por causa do holocausto, destinados<br />
a vagar sem rumo. A trajetória<br />
das comunidades ciganas, que possuem<br />
fortes indícios de uma origem Hindu,<br />
foi marcada pela discriminação”, comenta<br />
Rodrigo Teixeira.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
74<br />
MARK FLOREST<br />
O professor explica que nesse universo<br />
de contradições e mitos, a imagem<br />
da mulher cigana é cheia de nuances.<br />
Enquanto o homem nega a sua identidade,<br />
em alguns casos, para fugir do<br />
preconceito, elas precisam de indumentária<br />
típica para exercer o papel<br />
de uma figura mística e enigmática,<br />
principalmente, quando o seu trabalho<br />
está voltado para as questões esotéricas<br />
como a leitura de mãos (quiromancia)<br />
e de cartas (cartomancia).<br />
Mulheres Calon<br />
vivem sob as<br />
regras da tradição<br />
“Somos muito diferentes<br />
das outras mulheres.<br />
A questão do respeito<br />
aos pais e ao esposo é<br />
uma tradição que<br />
guardamos”.<br />
Cristina Amaral<br />
Em Minas Gerais, desde a sua chegada<br />
e apesar das muitas restrições relativas<br />
à ocupação do espaço por essas<br />
comunidades ciganas, a etnia Calon resistiu<br />
e é maioria entre os acampamentos<br />
no estado. Lutam por seus direitos e<br />
pela manutenção de sua cultura.<br />
“O que era não deixa de ser; modifica.<br />
Cigano nunca deixa de ser cigano”.<br />
A frase é de Carlos Amaral,<br />
líder da comunidade de ciganos da<br />
etnia Calon, situada no bairro São Gabriel<br />
em Belo Horizonte. São cerca de<br />
100 famílias que moram no lugar há<br />
mais de 30 anos. As mudanças na<br />
forma de viver trouxeram o desafio de<br />
enfrentar as interferências culturais sofridas<br />
ao longo dos anos e manter a<br />
identidade cultural do grupo.<br />
O nomadismo deixou de ser uma<br />
necessidade. Em 2014, conquistaram<br />
a posse do terreno. Moram em barracas<br />
e casas simples em meio à metrópole,<br />
contudo, tentam manter tradições ancestrais.<br />
Na comunidade Calon são os<br />
homens que ditam as regras. Eles cuidam<br />
dos negócios e da organização<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
75<br />
coletiva. As mulheres ficam por conta<br />
da casa e dos filhos. Os casos em que<br />
elas possuem algum tipo de independência<br />
são escassos.<br />
Sandra Magalhães (foto) é um<br />
exemplo de como a tradição cigana<br />
dos Calon determina o modo de vida<br />
das mulheres. “Casei-me com 14 anos.<br />
Minha rotina se resume em cuidar da<br />
casa, dos filhos e do marido. É uma<br />
vida boa, eu não trocaria por outra.<br />
Dou aos meus filhos uma criação de<br />
acordo com o que aprendi. Todavia,<br />
acho que minha menina vai ter mais<br />
possibilidades de escolha”.<br />
Ela faz parte de uma das poucas famílias<br />
que ainda moram em barracas.<br />
Considera esse tipo de moradia uma<br />
mistura de opção e necessidade. “Possuímos<br />
tudo que se tem numa casa: televisão,<br />
aparelho de som, cama, até<br />
carro. Só não temos as paredes”,<br />
brinca Sandra.<br />
A jovem cigana não tem receio de<br />
morar em um local aberto, considerado<br />
inseguro por muitos. O que ela tem<br />
mais medo é do preconceito. “Quando<br />
preciso levar minha filha ao médico<br />
ou fazer alguma outra coisa fora do<br />
bairro, não uso minhas roupas tradicionais.<br />
Chama muita atenção, parece<br />
que sou de outro mundo. Não gosto<br />
de como os outros me olham. Meu<br />
maior sonho é o fim da discriminação<br />
contra o nosso povo”, afirma.<br />
Para Cristina Amaral, ser cigana é<br />
estar junto com uma comunidade,<br />
aprender os costumes, usar as roupas<br />
e utensílios. “Somos muito diferentes<br />
das outras mulheres. A questão do respeito<br />
aos pais e ao esposo é uma tradição<br />
que guardamos. Quem cuida de<br />
mim é o meu marido. Por isso, tudo<br />
que eu faço tem que ser com o consentimento<br />
dele”. Ela confronta esta<br />
“Meu maior sonho<br />
é o fim da<br />
discriminação<br />
contra o nosso<br />
povo”.<br />
ideia de que sair pelo mundo sem destino<br />
é ter liberdade. “Não é bem assim.<br />
Existia muita perseguição aos ciganos<br />
e as mulheres sofreram e sofrem ainda<br />
mais com o preconceito. Morar em<br />
uma casa é um sonho realizado. Quando<br />
eu vivia debaixo da lona era muito sofrimento.<br />
Todo mundo quer um pouco<br />
de conforto. A vida da minha mãe foi<br />
totalmente diferente, bem mais complicada.<br />
Ela viveu todo o tempo em<br />
barraca, sempre viajando a cavalo.<br />
Hoje, temos casa, podemos construir<br />
nossas vidas em um lugar que é nosso”,<br />
comemora Cristina.<br />
Nem todas as mulheres ciganas<br />
estão em uma situação de total dependência<br />
dos maridos. De uma geração<br />
que enfrentou muitas dificuldades, Marilene<br />
Lopes passou a maior parte da<br />
vida na estrada. Casou-se com 14<br />
anos, passou muitas humilhações, segundo<br />
ela, por que era mulher. Trabalhava<br />
para comprar comida. Nos últimos<br />
15 anos sua vida mudou. Hoje, está<br />
estabilizada e trabalha com o comércio<br />
MARK FLOREST<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
76<br />
de tecidos. “Não fico muito parada.<br />
Sou independente, viajo sozinha, gosto<br />
de ter meu próprio dinheiro. Não gosto<br />
de dar muita explicação sobre o que<br />
vou fazer. Tem hora que me dá vontade<br />
de cair no trecho de novo, vou e volto,<br />
estou muito feliz aqui”.<br />
Uma mulher experiente, mãe de<br />
quatro filhos, com um certo grau de<br />
feminismo em suas posturas, Marilene<br />
não é submissa ao seu companheiro,<br />
mas faz questão de manter alguns princípios.<br />
“Nossa tradição permite que os<br />
homens estudem até se formarem, porém,<br />
as mulheres são retiradas da<br />
escola logo após os dez anos de idade,<br />
para que não passem a adolescência<br />
junto a outros jovens de culturas diferentes.<br />
As moças têm que se casar virgens,<br />
não podem ser desencaminhadas.<br />
Então evitamos que isso aconteça”.<br />
As meninas estudam até 12 ou 13<br />
anos, de acordo com Marilene, com<br />
essa idade já estão prontas para o matrimônio.<br />
Elas não devem buscar uma<br />
profissão. “Isso não quer dizer que<br />
sejam infelizes. Casam-se com quem<br />
gostam e levam uma vida boa. Para<br />
uma mulher fazer faculdade é muito<br />
difícil, raridade mesmo”, acredita.<br />
LAIS RODRIGUES<br />
Marilene relata apenas uma tristeza:<br />
o preconceito contra os ciganos. “Posso<br />
usar qualquer roupa, mas por causa dos<br />
meus dentes de ouro, sou reconhecida<br />
como cigana em qualquer lugar. E muitas<br />
vezes isso não é bom. As pessoas me<br />
reparam de uma maneira diferente, com<br />
medo, despeito, não sei...”.<br />
Em sua dissertação de mestrado, a<br />
professora Camila Similhana pesquisou<br />
sobre as comunidades ciganas e constatou<br />
traços machistas na cultura de<br />
algumas comunidades, durante a sua<br />
pesquisa. “Quanto às mulheres ciganas,<br />
é inegável a opressão que sofrem. Em<br />
populações ciganas tradicionais, elas<br />
vivem sob o controle da sogra – que as<br />
tratam como se fossem serviçais –,<br />
são cruelmente punidas caso sejam insubordinadas,<br />
em caso de separação<br />
ou traição perdem o poder e o direito<br />
de conviver/criar seus filhos (que são<br />
considerados pertencentes à família<br />
dos maridos), têm sua vida sexual severamente<br />
controlada e são rigidamente<br />
banidas caso se unam a homens nãociganos”,<br />
opina.<br />
Uma das representações da cultura<br />
cigana que a pesquisadora destaca é a<br />
dança. Conforme relatou Camila, a<br />
dança cigana está intimamente ligada<br />
aos ritos e festas familiares e não à<br />
exibição pública, de maneira semelhante<br />
ao que ocorre em meio aos povos árabes.<br />
“Além disso, se você consultar diversas<br />
danças ciganas femininas ao redor<br />
do mundo, verá que elas não se<br />
movimentam de forma tão solta, tamanha<br />
a opressão masculina sobre<br />
elas. Em geral são passos mais contidos.<br />
Algumas ciganas, de locais específicos<br />
como a Índia, têm mais desenvoltura<br />
ao mostrar e usar o quadril. A saia e o<br />
lenço no cabelo, por exemplo, também<br />
tem suas razões: a saia demarca que a<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
77<br />
menina menstruou e entrou num processo<br />
que culminará no casamento e o<br />
lenço no cabelo é um sinal de submissão<br />
ao marido”, descreve.<br />
LAIS RODRIGUES<br />
Um outro olhar<br />
A fotógrafa Laís Rodrigues é vizinha<br />
da comunidade cigana do bairro São<br />
Gabriel. Atualmente desenvolve um<br />
trabalho que retrata o dia a dia das<br />
pessoas que moram ali, com o objetivo<br />
de dar mais visibilidade às demandas<br />
sociais. Ela conta que superou alguns<br />
preconceitos para se aproximar. “Minha<br />
família mora no bairro há 40 anos,<br />
sempre os vi e ouvi histórias sobre<br />
eles, mas precisei crescer, amadurecer,<br />
para conhecê-los de fato. Foi uma boa<br />
surpresa. Tive a certeza de que não<br />
eram nada do que falavam por aí. Primeiro,<br />
é impossível não se encantar<br />
com o quanto são receptivos. Segundo,<br />
muitos amam ser fotografados, principalmente<br />
as crianças. Eles acreditam<br />
no poder da imagem. Dizem: – Pode<br />
fotografar, claro! Ajuda a gente!<br />
Ao citar o papel das mulheres, Laís<br />
é cuidadosa. “Às vezes, evito falar<br />
muito sobre minha impressão porque<br />
venho de uma cultura diferente. Muita<br />
gente critica o fato de terem traços<br />
machistas. Descobri que muitas coisas<br />
são boatos, não existem mais. Algumas,<br />
ainda sim. E aí me pergunto se por<br />
acaso esqueceram que milhares de outras<br />
sociedades também são patriarcais<br />
(pra não falar todas)”. A fotógrafa diz<br />
não se sentir no direito de julgar o<br />
modo de viver da comunidade. “Não<br />
podemos interferir, assim como não<br />
mudamos a cultura das tribos indígenas,<br />
mesmo que para nós seja algo ‘errado’.<br />
Os costumes são deles”.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
78<br />
Ciganas independentes<br />
e feministas<br />
Elas são descendentes de ciganos,<br />
mas não vivem em comunidades. Seus<br />
antepassados saíram do convívio comunitário<br />
e iniciaram uma caminhada<br />
em busca de melhores condições de<br />
vida. Cinco mulheres independentes e<br />
que tiveram a oportunidade de concluir<br />
o ensino superior. Nenhuma delas é casada.<br />
Vivenciaram experiências fora da<br />
cultura cigana. Juntas, são as responsáveis<br />
pela criação da Associação Internacional<br />
Maylê Sara Kali, uma organização<br />
que atua em defesa dos direitos<br />
dos ciganos, promove o resgate cultural<br />
das etnias e tem uma preocupação particular<br />
com a questão de gênero.<br />
Depois de estudar e conquistar uma<br />
profissão retornaram ao convívio com<br />
as comunidades para auxiliar na garantia<br />
de direitos como educação, saúde,<br />
entre outras conquistas sociais que não<br />
chegam aos ciganos. Fazem parte de<br />
uma geração de mulheres que não<br />
abriu mão da identidade, no entanto,<br />
está inserida no mundo convencional.<br />
Lucimara Cavalcanti é uma delas.<br />
Especialista em Marketing, a descendente<br />
de uma família de ciganos Kalderash<br />
percebeu que poderia utilizar a<br />
dança e os costumes tradicionais para<br />
falar de diversidade e cidadania. “Desde<br />
2012, quando iniciamos a realização<br />
de um Ciclo de Debates na Universidade<br />
de Brasília, nossa atuação foi ampliada<br />
e agora conseguimos ter inserção em<br />
dezoito estados brasileiros e em outros<br />
países. Se pensarmos que nossa trajetória<br />
é marcada pela defesa dos direitos<br />
das mulheres, pelo fim da violência de<br />
gênero, respeito, igualdade e crescimento<br />
profissional, podemos dizer que<br />
somos feministas”.<br />
Em relação às mulheres ciganas,<br />
Lucimara esclarece que é importante<br />
ressaltar a criação de um estereótipo<br />
desde a chegada dos ciganos ao Brasil,<br />
por volta de 1500, como ressonância<br />
do que já era feito na Europa. “Não<br />
são raras as representações da cigana<br />
nas artes plásticas e na literatura européia,<br />
pautadas na ideia de uma mulher<br />
fácil, fatal, sensual, enganadora. Essas<br />
informações foram disseminadas e os<br />
ciganos nunca se levantaram para se<br />
defender”.<br />
A militante da causa cigana destaca<br />
que existem grupos familiares sustentados<br />
por mulheres através da arte de ler as<br />
mãos e da cartomancia. “Esse é um<br />
dado. No entanto, em cada família as<br />
coisas acontecem de uma maneira. Não<br />
estou dizendo que todas as ciganas são<br />
assim. Cada comunidade tem suas próprias<br />
tradições e costumes”, esclarece.<br />
De acordo com a descendente de<br />
ciganos, em muitos lugares são as<br />
mães e avós que têm a responsabilidade<br />
de manter a cultura do grupo ao qual<br />
LAIS RODRIGUES<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
79<br />
pertencem. Nesses núcleos, os homens<br />
consultam suas mulheres e elas possuem<br />
um papel importante na tomada de<br />
decisões. “Em outras circunstâncias<br />
elas são excluídas desse processo. Existem<br />
também casos de violência familiar.<br />
As ciganas não estão isentas dessas<br />
ocorrências”, conta Lucimara. Outro<br />
problema mencionado é o analfabetismo<br />
acentuado entre crianças e jovens. “As<br />
mulheres estão no centro dessa situação.<br />
Temos meninas lindas que não sabem<br />
ler nem escrever o próprio nome. Contudo,<br />
as escolas devem estar preparadas<br />
para receber a diversidade da nossa<br />
cultura. Além disso, é preciso incluir o<br />
ponto de vista dos ciganos nos livros<br />
didáticos”, frisa.<br />
Segundo ela, no caso dos casamentos,<br />
algumas famílias permitem<br />
que as jovens se casem após os 18<br />
anos. Eles têm entendimento que as<br />
questões biológicas e emocionais podem<br />
interferir no desenvolvimento dessas<br />
garotas. Lucimara enfoca que a cultura<br />
cigana tem muitos contextos e, em todos<br />
eles, a mulher tem um papel<br />
central, cita o exemplo de um acampamento<br />
em Joinville, Santa Catarina,<br />
onde elas estão mudando o modo de<br />
vida. São cinco irmãs que ficaram<br />
viúvas e não querem mais obedecer às<br />
ordens dos homens. Tornaram-se líderes<br />
do acampamento.<br />
É importante compreender que dentro<br />
de um país multicultural como o<br />
Brasil, as mulheres ciganas fazem parte<br />
do imaginário social e, mais do que<br />
isso, auxiliam na construção da identidade<br />
do povo brasileiro. Portanto, lutar<br />
contra o preconceito e a discriminação<br />
étnica é também um ato de contribuição<br />
por uma sociedade que respeita a sua<br />
história e os atores que ajudaram a<br />
construí-la.ø<br />
LAIS RODRIGUES<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
80<br />
INTERNET<br />
REALIDADE<br />
<strong>POR</strong> NANCI ALVES<br />
A vida no circo<br />
não é brincadeira<br />
Entre o picadeiro e os bastidores,<br />
a mulher se desdobra em vários papéis<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
81<br />
A arte circense, que encanta a<br />
todos, é milenar. Passou por incontáveis<br />
experiências, recebeu influências de<br />
várias culturas, mas uma realidade<br />
nunca mudou: a paixão de quem sobe<br />
no picadeiro, a alegria e acolhida do<br />
público de todas as idades e a falta de<br />
apoio dos governos.<br />
Na grande maioria, os circos tradicionais<br />
são formados por famílias que,<br />
como micro empreendedoras, aprendem<br />
e fazem de tudo. Quando entram<br />
em uma cidade significa uma vitória.<br />
Quer dizer que conseguiram o alvará<br />
de autorização da prefeitura, pagaram<br />
várias taxas e alugaram um lote, mesmo<br />
que nem sempre com preço acessível.<br />
Passada esta etapa, buscam garantir o<br />
acesso à água e energia elétrica, montam<br />
a estrutura do circo, divulgam o<br />
espetáculo em toda a região, cuidam<br />
da bilheteria e da praça da alimentação,<br />
fazem fotos durante o espetáculo para<br />
serem vendidas ao final e, claro, depois<br />
de toda esta batalha, apresentam, com<br />
alegria, suas atrações no picadeiro. E<br />
o mais impressionante é que essa rotina<br />
é diária, sem intervalo, pois a cada 15<br />
dias o circo é obrigado a se mudar<br />
para garantir um bom público.<br />
Em meio a tudo isso, a rotina da<br />
mulher circense é um verdadeiro exercício<br />
de equilíbrio na corda bamba.<br />
Exatamente por ser seu lugar de trabalho<br />
e moradia, a mulher sincroniza o<br />
papel de esposa e de mãe com a de<br />
artista, além de acumular as funções<br />
de bordadeira, costureira, divulgadora<br />
e vendedora dos alimentos que ela<br />
mesma prepara para a praça da alimentação<br />
– maçã do amor, algodão<br />
doce, pipoca, batata frita, etc.<br />
Uma rotina bem conhecida pela<br />
pernambucana Rosa Roma, que sempre<br />
viveu no circo. “Nasci de parto natural,<br />
dentro do circo. Minha mãe, Zuleide,<br />
que saiu de cena apenas para eu nascer,<br />
era dançarina e o meu pai, Orlando,<br />
palhaço de um circo dos ciganos. Sou<br />
a terceira geração de circenses em minha<br />
família, que continua a tradição<br />
por meio de meus filhos e neta. A minha<br />
mãe, aos 17 anos, conheceu<br />
meu pai e, pensando em se casar com<br />
ele, fugiu com o circo. Porém, ele já<br />
era casado e acabou ficando com duas<br />
esposas até que a primeira o largou,<br />
levando seus três filhos”, conta.<br />
Assim, minha mãe continuou com<br />
ele e tiveram seis filhos. “Na medida<br />
em que crescíamos, começávamos a<br />
trabalhar no circo também. Éramos a<br />
Trupe família Roma. Passamos por vários<br />
circos fazendo números de altura,<br />
vôo, trapézio, arame esticado”, lembra<br />
Rosa ao revelar que, desde bem pequena,<br />
se levantava às 4h30 para ensaiar:<br />
“a gente tinha que tomar um banho<br />
gelado para despertar e um pouco<br />
de vinho para não ter anemia e, só depois<br />
do ensaio, a gente tomava café”.<br />
Entre as histórias, Rosa se recorda<br />
de um acidente que marcou sua vida.<br />
Quando tinha 14 anos, durante um<br />
espetáculo, caiu do trapézio, junto com<br />
“a rotina da<br />
mulher circense<br />
é um verdadeiro<br />
exercício de<br />
equilíbrio na<br />
corda bamba.<br />
seu pai, porque uma mulher circense<br />
cortou o suporte do circo. “Ela, com<br />
ciúme, queria atingir o meu pai. A<br />
lona caiu em cima de todos, mas<br />
apenas nós dois nos machucamos muito,<br />
a ponto de ficarmos dois anos em<br />
tratamento, na cama. O dono do circo,<br />
com raiva, foi embora nos abandonando.<br />
Ficamos morando em barraca.<br />
Minha mãe teve que sustentar a família<br />
sozinha fazendo tapioca, até que chegou<br />
um novo circo na cidade e nos contratou.<br />
Ela trabalhou como bailarina, cantora,<br />
porteira, cuidávamos dos animais.<br />
Ficamos neste circo por 8 anos com<br />
todos nós trabalhando. Como tinha<br />
banda de música, comecei a cantar<br />
também”, recorda .<br />
Aos poucos, a família Roma conseguiu<br />
montar o próprio circo. “Era<br />
muito simples, tudo com lençóis e se<br />
chamava B1 (Bom e Único). Dois anos<br />
depois, já tínhamos a lona e carroça<br />
com cavalo para o transporte. Fizemos<br />
sociedade com outras pessoas. Nossa<br />
arte era imensa, mas muito mal pagos.<br />
Quando fiz 20 anos, me casei com um<br />
homem que não era de circo, um policial<br />
militar”, conta Rosa.<br />
Nessa época, como teve que ficar<br />
na cidade do marido, largou o circo e<br />
investiu no canto. Seu marido contratou<br />
um sanfoneiro (conhecido como a Voz<br />
do Acordeon), para acompanhá-la<br />
nos shows. “Com ele, aprendi outra<br />
profissão e virei compositora. Cheguei<br />
a ser vocalista do Luiz Gonzaga. Fiz<br />
muito shows e me conheciam como<br />
Rosinha do Xaxado, diz.<br />
Rosa teve dois filhos e por um tempo<br />
deixou de cantar para cuidar da casa.<br />
Após sete anos de casada, veio a separação<br />
e o retorno ao circo. “Mas não<br />
foi fácil, pois perdi minha mãe logo em<br />
seguida. Assim, não tinha com quem<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
82<br />
Rosa Roma, sua neta Ranyelle e sua filha Ramyrez<br />
CARLA <strong>POR</strong>TUGAL<br />
o circo. Hoje apenas ela e uma irmã,<br />
em São Paulo, seguem a tradição da<br />
família. “Tenho 50 anos e não me<br />
vejo fora do circo. Estudei magistério,<br />
cheguei até a dar aula, mas não era<br />
isso que queria. O circo é o meu lugar.<br />
Costumo dizer que quando chegar a<br />
minha hora de partir, meu velório será<br />
dentro do circo, todos, com figurino,<br />
cantando música circense”, finaliza.<br />
De acordo com a sua filha Ramyrez,<br />
o sonho da família é ter seu próprio<br />
circo. “Estamos trabalhando para realizar<br />
este projeto ainda este ano. Eu e<br />
meu marido somos de famílias circenses<br />
tradicionais e queremos dar continuidade<br />
a esta cultura tão importante. Nós,<br />
nossa filha, minha tia, mãe, irmão,<br />
meu padastro, que é iluminador e sonoplasta<br />
de circo, enteados...a turma<br />
é grande e será um circo que unirá o<br />
antigo ao moderno, com muita criatividade”,<br />
conta Ramyrez.<br />
deixar as crianças. Fazia tudo sozinha e<br />
enfrentava a discriminação de estar sem<br />
marido. Muita dificuldade de ser contratada,<br />
pois muitos acham que mulher<br />
separada quer arrumar homem. Se for<br />
casada, a situação é bem melhor. Para<br />
evitar problemas de ciúme, no circo,<br />
sempre a própria esposa é a dupla do<br />
marido ou sua assistente de palco”,<br />
explica.<br />
Segundo Rosa, a cada lona levantada,<br />
mil histórias para contar. “Me recordo<br />
de uma vez, em Campina Verde,<br />
e eu já era conhecida no nordeste pela<br />
música. Uma emissora de rádio descobriu<br />
meu aniversário e me chamou para<br />
uma entrevista. Ao vivo, contei minha<br />
vida e que estava enfrentando a doença<br />
do pânico. Quando foi à noite, o circo<br />
estava lotado, como nunca. E as pessoas<br />
gritavam pelo meu nome e chamavam<br />
de guerreira, quando entrei no picadeiro.<br />
Foi emocionante”, lembra Rosa.<br />
Depois de rodar por vários circos e<br />
cidades, seus filhos, já adolescentes,<br />
foram contratados pelo circo do ator<br />
Marcos Frota, em Maceió. “Pouco depois,<br />
também trabalhei com vendas,<br />
fotografias, fui camareira e até dirigi<br />
espetáculo deste circo. Hoje minha<br />
filha, com 24 anos, está no Broadway,<br />
se casou com um globista de lá, e tem<br />
uma filha de 4 anos, Ranyelle. Estou<br />
com eles neste circo fazendo recepção,<br />
número musical com dublagem e minha<br />
neta entra junto. Tudo que faço, ela<br />
faz. E meu filho trabalha no Circo dos<br />
Sonhos, no Rio de Janeiro”, conta.<br />
Após a morte da mãe da Rosa,<br />
seus irmãos foram aos poucos, deixando<br />
Respeitável Público<br />
O sonho de ser dona do próprio<br />
circo tornou-se realidade para a família<br />
da amazonense Andréia Carvalho Atiares<br />
(40 anos). “Depois de trabalharmos<br />
a vida toda para outros, conseguimos<br />
o nosso Atiare’s Cirkus há menos de<br />
um ano. O mais importante para mim<br />
é mantermos a família no mesmo circo.<br />
Isso é uma vitória e uma bênção de<br />
Deus!”, diz Andréia ao afirmar que o<br />
circo é sua vida. “Comecei aprendendo<br />
a arte aos cinco anos, com balé aéreo,<br />
depois trapézio, até que fui contratada,<br />
aos 15 anos, pelo Big Circo. Aos 18<br />
anos, fui para o Gran Dallas Lincoln<br />
Circos e, ao fazermos uma apresentação<br />
na Bolívia, conheci meu marido,<br />
Raomir Atiares, que já era trapezista.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
83<br />
Ele foi contratado pelo circo onde eu<br />
trabalhava e depois de um ano, nos<br />
casamos. Trabalhamos em vários circos<br />
ao longo da nossa vida (Real Brasil,<br />
Las Vegas, Circo Castelli, Gran Circo<br />
Popular do Brasil, Circo Mundo Mágico,<br />
etc), viajamos com eles para Colômbia,<br />
Peru, Bolívia, além de várias regiões<br />
do Brasil. Conheci muita gente e fiz<br />
amigos, apesar de sermos itinerantes.<br />
Hoje as redes sociais ajudam muito a<br />
manter esta amizade”, conta.<br />
No Atiares Cirkus, o espetáculo é<br />
feito pelo marido de Andréia, os três<br />
filhos do casal, dois sobrinhos e artistas<br />
contratados, de acordo com o lugar<br />
onde vão. Segundo Andréia, ela só<br />
deixou o picadeiro recentemente. “Mesmo<br />
grávida, atuava nos espetáculos.<br />
Só depois do sétimo mês de gravidez,<br />
quando a barriga aparecia muito é<br />
que eu parava de fazer o trapézio.<br />
Hoje, assim como meu marido, faço<br />
mil acrobacias para manter o circo,<br />
mas deixei o picadeiro, pois não tenho<br />
tempo para ensaiar. Sempre fui feliz<br />
no circo e não trocaria minha história<br />
com a de ninguém. Claro que fico<br />
cansada, pois lavo roupa, cuido da<br />
limpeza da nossa casa (os trailers),<br />
costuro, divulgo o circo na cidade durante<br />
o dia e, na hora do espetáculo, assumo<br />
a bilheteria e, em seguida, a<br />
praça de comida. Além da correria do<br />
dia para levar e buscar filho na escola.<br />
Isso quando a gente não tem também<br />
que correr atrás da Secretaria de Educação<br />
para conseguir vaga na escola,<br />
pois existem diretores que nos negam<br />
este direito. Mas o mais difícil é conseguir<br />
entrar nas cidades, pois as prefeituras<br />
fazem de tudo para nos impedir.<br />
Sem falar no custo do aluguel do lote,<br />
pois as cidades não têm lugar específico<br />
para circos. Aqui, onde estamos, pagamos<br />
R$4.000,00 para apenas três<br />
semanas”, desabafa.<br />
O filho mais velho, Roamir Júnior,<br />
20 anos, diz que poder ter o circo foi<br />
a realização de um sonho e que seus<br />
pais são um exemplo para ele. Ao<br />
falar da mãe, ele conta que ela é o<br />
pilar da família. “Se precisar de alguma<br />
coisa, pode ter certeza que ela vai<br />
saber – desde um remédio para algum<br />
problema a um conselho, além, é claro,<br />
do carinho e do colo”, diz.<br />
Amor e circo<br />
Assim como na vida de Rosa Roma,<br />
na história de Andréia Atiares (foto)<br />
também tem caso de gente que fugiu<br />
para se casar com circense. “Quando<br />
eu tinha dois anos, minha tia fugiu<br />
para se casar com o filho do dono de<br />
um circo que ficou um tempo em minha<br />
cidade. Assim, quando eu fiz cinco anos,<br />
sempre passava as férias com eles. Meu<br />
tio me ensinou tudo. Aos 15 anos, a<br />
história se inverteu: eu, contratada, vivia<br />
no circo e ia passar as férias com minha<br />
família”, lembra.<br />
Outra fuga romântica que gerou<br />
uma família tradicional do circo é a vivida<br />
por antepassados dos Irmãos Simões.<br />
Mas a história de amor que<br />
sabem de cor é a dos seus pais, sr. Francisco<br />
e dona Rita de Freitas Simões. Ao<br />
se apaixonar, em meados do século<br />
XX, pelo moço bonito do circo, o violinista,<br />
trapezista e também Palha -<br />
ço Beija Flor, dona Rita, hoje com 75<br />
anos, não teve dúvidas. Abriu mão do<br />
seu conforto da cidade de Lima<br />
Duarte e, com consentimento dos pais,<br />
NANCI ALVES<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
84<br />
casou-se, se tornando-se artista também,<br />
ao mesmo tempo em que foi dona<br />
de casa e mãe de 13 filhos. Com certeza,<br />
uma vida de muita luta e resignação.<br />
Hoje, viúva, avó de 20 netos e 5<br />
bisnetos, ela relembra com emoção toda<br />
sua história. “Eu fui artista todo tempo,<br />
parando somente quando os filhos já estavam<br />
grandes, mas nunca sofri preconceitos<br />
por ser mulher de circo.<br />
Como era familiar, éramos bem recebidos.<br />
Mas enfrentamos muitas dificuldades<br />
para sermos um circo tradicional,<br />
itinerante. Falta de conforto, água, luz,<br />
problemas com as escolas para filhos...<br />
Várias vezes, o caminhão estragava e<br />
tínhamos que dormir na estrada de<br />
terra, mas fomos felizes. No início, alugávamos<br />
casas em cada lugar que chegávamos<br />
por uns três meses. Depois,<br />
passamos a usar os trailers”, afirma<br />
dona Rita, que diz sentir saudades de<br />
tudo que viveram”. Depois de muitos<br />
anos, fixaram residência em Contagem<br />
(MG), onde os filhos e, agora, até os<br />
netos fazem espetáculos.<br />
Uma família de quatro gerações de<br />
circo e muita história para contar. Para<br />
Patrícia Simões, filha de dona Rita,<br />
fazer circo sempre foi uma paixão. “Comecei<br />
ainda criança, fui equilibrista e<br />
dançarina. Hoje sou auxiliar de mágico<br />
e apresento dança do ventre”, conta.<br />
Também para a nora da dona Rita, Marta<br />
Simões, o circo é “fascinante e vai<br />
sequestrando as pessoas”. Atualmente,<br />
trabalha com estética, mas foi artista<br />
circense por muitos anos. “Desde o namoro,<br />
já participava dos espetáculos<br />
com malabares, mágica, esquetes humoradas,<br />
etc. Claro que para minha família<br />
foi uma surpresa e meus pais ficaram<br />
inseguros pela vida nômade que<br />
é a do artista circense. Mas o circo foi<br />
um divisor de água em minha vida.<br />
Aprendi a conviver com uma cultura<br />
diferente da minha, um desafio positivo.<br />
Mudei a forma de enxergar o outro.<br />
Consigo olhar para uma pessoa e ver<br />
sua história”, conta Marta.<br />
Na família da dona Rita, todos<br />
aprenderam muito, até cozinhar e cuidar<br />
da casa. Para seu filho Lindomar,<br />
um aprendizado para toda vida. “Há<br />
anos, eu faço nossos figurinos. Até a<br />
ter fé aprendi com minha mãe. Posso<br />
dizer que a mulher é fundamental no<br />
circo. Além da beleza feminina, que é<br />
importante no picadeiro, ela é ótima<br />
para administrar também.”, diz.<br />
MARK FLOREST<br />
Dona Rita Simões entre sua filha Patrícia, a neta Yhaninha e, à direita a nora Marta Simões.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
85<br />
Um olhar<br />
de fora<br />
da lona<br />
Falta de políticas<br />
públicas aumenta<br />
os desafios das<br />
artistas circenses<br />
DIVULGAÇÃO<br />
A estimativa é que ainda existam no<br />
Brasil mais de dois mil circos itinerantes.<br />
Só em Minas Gerais, há cerca de cem.<br />
É o que fala a presidenta da Rede de<br />
Apoio ao Circo (RAC) e autora da obra<br />
Encircopédia - Dicionário Crítico Ilustrado<br />
do Circo no Brasil, Sula Kyriacos<br />
Mavrudis(foto). “Trabalhamos com estimativas<br />
porque, infelizmente, o circo e<br />
as famílias circenses não entram na<br />
contagem do IBGE. Na hora do censo,<br />
o pesquisador pula o circo e vai para a<br />
próxima casa. Isso é um desrespeito<br />
com eles. Como não são levados em<br />
conta, não existe também uma política<br />
pública que cuide dessa parcela da população.<br />
Assim, se enfrentam, por exemplo,<br />
uma tempestade e perdem seu<br />
equipamento de trabalho, não terão<br />
amparo legal. Não podem participar<br />
de qualquer outro programa de assistência<br />
social como receber a cesta básica<br />
das prefeituras ou o Bolsa Família e<br />
nem participar de projetos culturais por<br />
meio da lei de isenção fiscal porque<br />
não têm endereço fixo”, revela.<br />
Assim, da mesma forma, a mulher<br />
circense não pode, por exemplo, fazer<br />
o pré-natal nos hospitais públicos das<br />
cidades onde chega para uma temporada.<br />
“A circense é uma guerreira,<br />
pois é uma educadora sem ter tido<br />
acesso à escola, ensina valores e profissão<br />
a partir do que aprendeu no<br />
circo com suas famílias. E ela sabe<br />
brigar pelos direitos dos filhos, por<br />
atendimento em hospital, pela vaga<br />
na escola. É comum ter que ir para a<br />
“O circo e as<br />
famílias circenses<br />
não entram na<br />
contagem do<br />
IBGE”.<br />
Delegacia de Ensino cobrar o cumprimento<br />
da Lei 6533/78, quando diretores<br />
não aceitam seus filhos na sala<br />
de aula”, explica.<br />
Mesmo compartilhando as responsabilidades<br />
da casa e do picadeiro, a<br />
mulher circense ainda enfrenta o machismo<br />
e sofre com preconceito por<br />
onde passa. “Mas, em geral, não sofre<br />
violência doméstica, porque os familiares<br />
estão juntos, no trailer ao lado. Nunca<br />
vi usuários de droga e não tem alcóolatras,<br />
a não ser alguns que vêm de<br />
fora. Já vi até separação de casal, mas<br />
muitas vezes, continuam no mesmo<br />
circo. Os casamentos são mais longos<br />
e a relação familiar é boa, pois vivem<br />
e trabalham juntos. Existe uma cumplicidade<br />
profissional, de criar, ensaiar<br />
e executar juntos, números acrobáticos<br />
com precisão”, conta Sula Mavrudis.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
86<br />
Apoio aos circenses<br />
Na avaliação de Sula Mavrudis, a<br />
falta de políticas públicas para o circo<br />
e a falta de legislação específica, em<br />
todos os níveis, que garantam o direito<br />
ao trabalho, saúde, educação e moradia<br />
têm gerado frustação e, consequentemente,<br />
abandono da profissão por<br />
parte de muitos circenses, impactando<br />
na vida das famílias. “É triste ver circenses,<br />
para sobreviver, fazendo outras<br />
atividades que não as que aprenderam<br />
pela sua tradição familiar e que, ao<br />
longo da história, lutam sozinhos para<br />
preservar. Isso é uma degradação do<br />
status”, denuncia.<br />
Segundo Sula Mavrudis, muitos deixaram<br />
de ser itinerantes e, mesmo com<br />
residência fixa, tentam viver de sua<br />
arte, realizando apresentações avulsas<br />
ou oficinas de circo em escolas, clubes<br />
e eventos em geral. E este tem sido um<br />
dos papéis da Rede de Apoio aos Circos<br />
– além de lutar por acesso a políticas<br />
públicas, ajuda as famílias circenses a<br />
conseguirem retomar suas atividades.<br />
Para isso, há muitos anos, fazem uma<br />
reunião com todos os circenses interessados,<br />
às primeiras quartas-feiras do<br />
mês, na sede da RAC. Atualmente, são<br />
60 circos integrantes da Rede.<br />
As novas gerações de circenses,<br />
desanimadas com a falta de apoio<br />
legal, sonham em ser contratadas por<br />
um circo estrangeiro como os da França,<br />
Portugal, Las Vegas, onde os circenses<br />
são mais valorizados. Para a<br />
coordenadora da RAC, a conclusão é<br />
clara: “O Brasil precisa, urgente, de<br />
políticas públicas para o circo. A técnica<br />
é eterna, mas não o circo. Ele e suas<br />
famílias tradicionais estão em risco de<br />
extinção, pois sempre foram esquecidas<br />
pelos governantes”.<br />
Circo contemporâneo<br />
A arte milenar experimenta agora<br />
uma ramificação chamada de circo contemporâneo.<br />
Os novos artistas aprendem<br />
em escolas e não mais com a<br />
família, como antigamente. A primeira<br />
escola de circo surgiu no Rio de Janeiro<br />
em 1982, chamada Escola Nacional de<br />
Circo. Em todo o país, escolas e projetos<br />
sociais ensinam as técnicas circenses<br />
e, quando formados, os jovens que<br />
participaram criam grupos e passam a<br />
se apresentar ao público. É o que<br />
viveu, por exemplo, a mineira Luciana<br />
Menin(foto) que fez sua formação em<br />
Belo Horizonte e Londres, com balé,<br />
teatro e circo. Depois, já em São Paulo,<br />
trabalhou em espaço aberto por muito<br />
tempo com o Circo Amarillo. Após<br />
dez anos assim, e já casada com o argentino<br />
Pablo Nordio, se uniram a sete<br />
ASACAMPOS<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
87<br />
artistas e criaram o Circo Zanni, com<br />
lona que os possibilita fazer um espetáculo<br />
para 480 pessoas. Depois de tentarmos<br />
bilheteira por algum tempo,<br />
partimos para o trabalho com temporada<br />
paga, espetáculos vendidos. Por<br />
ser caro o transporte de tudo, ficamos<br />
mais em São Paulo e viajamos para pequenas<br />
temporadas. Não somos de<br />
circo tradicional e, assim, temos residência<br />
fixa”, conta Luciana que é mãe<br />
de Guido, de um ano, e Gael, de 5.<br />
Segundo ela, não existe rotina em<br />
sua vida, mas considera que descansa<br />
muito quando está no picadeiro. “Meus<br />
filhos sempre me acompanham e, às<br />
vezes, até entram em cena. Um trabalho<br />
que me possibilita isso é ótimo. Não<br />
vejo dificuldades em ser mãe e profissional<br />
de circo, mas preciso reconhecer<br />
que existe machismo em nossa sociedade<br />
e as circenses rompem isso, exercendo<br />
profissões como trapezista, malabarista,<br />
palhaça, administradoras, etc.<br />
As artistas de circo trabalham normalmente,<br />
como toda mulher que exerce<br />
alguma profissão, diante de situações<br />
como oscilações hormonais, cólicas<br />
menstruais ou quando está amamentando<br />
e o leite suja o figurino, em<br />
cena. São situações com as quais precisamos<br />
saber lidar “, conta.<br />
Luciana Menin diz que o circo é a<br />
sua vida. “Apesar de não ser de família<br />
circense, conversando com minha avó,<br />
descobri que a bisavó dela, também<br />
Luciana, que era russa, fugiu do circo<br />
para se casar, deixando a tradição.<br />
Minha avó ficou emocionada ao me<br />
ver entrando para o mundo do circo,<br />
como que retomando esta história.<br />
Acho mesmo que nasci para fazer isso.<br />
A primeira vez que subi no trapézio<br />
parecia que já tinha feito antes, nunca<br />
tive resistência”, conta Luciana<br />
ao acrescentar que o seu sonho é chegar<br />
o dia em que toda a família, o casal<br />
e os filhos, formarem a trupe para<br />
“cair no mundo com o circo”.<br />
Outra atriz mineira que também<br />
atuou em um circo contemporâneo é<br />
Teuda Bara, do Grupo Galpão de Teatro.<br />
Por quatro anos (2002/06) atuou<br />
em Kà, espetáculo do Cirque du Soleil.<br />
Após passar alguns meses em Montreal<br />
(Canadá) para formação, foi morar em<br />
Las Vegas (EUA), onde apresentava o<br />
espetáculo duas vezes ao dia. “Me admirei<br />
quando fui convidada, pois minha<br />
história é com teatro de rua. Foi muito<br />
bom, mas muito diferente de tudo. As<br />
atrações são modernas e trazem muitas<br />
novidades tecnológicas. A única coisa<br />
comum e que não muda, em todo o<br />
mundo, é o palhaço”, conta.<br />
Segundo Teuda(foto), outra grande<br />
vivência foi fazer a Dona Zaira no<br />
filme O Palhaço, de Selton Mello (fo -<br />
to). “Além de ser uma linda personagem<br />
e uma bela história, pude viver<br />
como se fosse realmente artista circense.<br />
Muito emocionante. E depois do filme,<br />
fui convidada várias vezes para participar<br />
de eventos ou manifestações sobre<br />
circo. Dói saber e perceber que o circo<br />
tradicional está sendo minado no Brasil.<br />
As prefeituras estão dizimando o circo.<br />
Sempre que posso falo isso com as<br />
autoridades com as quais encontro por<br />
aí. O circo está abaixo da linha da miséria.<br />
Por tantos problemas, os grandes<br />
circos vão se acabando e sobrevivendo<br />
apenas os pequenos, de uma ou outra<br />
família. As prefeituras falam que o<br />
circo vai tirar o dinheiro da cidade.<br />
Uma total falta de entendimento. Eles<br />
também consomem na cidade e, muito<br />
mais importante, trazem cultura, diversão<br />
e arte”, afirma.ø<br />
Rede de Apoio ao Circo - RAC<br />
Rua da Bahia, 1.148 - sala 1910 - Centro<br />
Cep: 30160-906 - Belo Horizonte - MG<br />
Brasil - TeleFax: (31) 3224.4743<br />
satedmg@satedmg.org.br<br />
DIVULGAÇÃO O PALHAÇO/ BANANEIRA FILMES<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
88<br />
foto CECÍLIA ALVIM<br />
VIOLÊNCIA<br />
<strong>POR</strong> CECÍLIA ALVIM<br />
"A gente tem uma<br />
força que desconhece"<br />
A história de uma professora da rede particular que<br />
deu um basta na violência doméstica
89<br />
A violência doméstica parece ser<br />
realidade somente nas periferias da<br />
cidade, entre as classe populares. No<br />
entanto, cada vez mais se sabe que<br />
mulheres de todas as classes sociais,<br />
inclusive com formação acadêmica,<br />
são vítimas de violência por parte de<br />
seus companheiros.<br />
Formada em Letras e professora<br />
há 40 anos, Helena (nome fictício) foi<br />
vítima da agressividade de seu ex-marido.<br />
Após 34 anos de relacionamento,<br />
sendo dez de namoro e 24 de casamento,<br />
ela deu um basta na violência<br />
que a fez sofrer durante anos, e se separou<br />
do marido. “Depois que criei<br />
coragem e saí de casa, comecei a me<br />
cuidar, a gostar de mim de novo”.<br />
Segundo Helena, não foi fácil<br />
tomar essa atitude. Ela sempre achava<br />
que as coisas iam mudar e tinha vergonha<br />
de pedir ajuda. “Era difícil falar<br />
sobre o assunto, eu me sentia uma fracassada,<br />
querendo me reerguer, mas<br />
sem saber como”. Foi então que, um<br />
dia, ela viu uma notícia na televisão<br />
sobre uma mulher que havia levado<br />
inúmeras facadas de seu marido e decidido<br />
dar um fim à violência. “Eu<br />
pensei: vou ter a força dessa mulher.<br />
Entendi que era preciso ter coragem<br />
de denunciar, de falar sobre o assunto,<br />
porque isso inibe quem quer fazer o<br />
mal e dá força a quem precisa sair<br />
dessa situação. Por isso, aceitei dar<br />
este depoimento”.<br />
A primeira vez em que foi agredida<br />
fisicamente pelo ex-marido, ficou com<br />
o rosto todo machucado e roxo. Perdeu<br />
parte dos dentes, e o rumo da<br />
vida... Passou a viver então sob o<br />
domínio do medo. Ele ameaçou que se<br />
ela contasse para alguém, poderia<br />
fazer algo contra seus pais. Ela ficou<br />
apavorada, e resolveu se preparar para<br />
mudar de vida. “A superação não vem<br />
de fora para dentro, vem de dentro<br />
para fora. É cômodo ser a vítima, mas<br />
é difícil sair desse lugar. É preciso acordar<br />
para o fato de que condutas<br />
agressivas por parte de companheiros,<br />
não são normais, e não devem ser<br />
toleradas”.<br />
Continuou vivendo na mesma casa<br />
que ele, mas dormia em outro quarto,<br />
com seus dois filhos pequenos, de<br />
porta trancada. “Ele raramente foi um<br />
pai presente e carinhoso. Nessa<br />
época, os meninos passaram a ter<br />
medo dele”. Helena saía para trabalhar<br />
com receio de que pudesse ser alvo de<br />
violência. “Existe a Lei Maria da<br />
Penha, mas na rua você está sozinha.<br />
A gente não se sente protegida”,<br />
conta. “A cada dia que passava, eu<br />
chegava em casa e me sentia uma vitoriosa.<br />
Eu achava que ia morrer,<br />
mas não parei pela minha fé”.<br />
Houve tempos de alguma convivência<br />
em casa, mas nunca mais<br />
confiou naquele que lhe jurou amor<br />
“Existe a Lei<br />
Maria da Penha,<br />
mas na rua você<br />
está sozinha.<br />
A gente não se<br />
sente protegida”<br />
sem fim no altar, até porque ele não<br />
era mais a mesma pessoa que havia<br />
conhecido anos antes. Cerca de três<br />
anos depois do primeiro episódio de<br />
violência extrema, foi comunicar ao<br />
marido que queria se separar, e novamente<br />
ele a agrediu. “Dessa vez, eu já<br />
estava mais preparada. Consegui me<br />
defender, e os danos foram menores.<br />
Meus filhos já estavam maiores e ajudaram<br />
a me proteger. Nesse dia, eles<br />
me falaram: – Chega, mãe”.<br />
Segundo Helena, duas ocasiões extremas<br />
de violência e muitos episódios<br />
de comportamentos estranhos, agressões<br />
verbais, manifestações de ciúme<br />
e de sentimento de posse a fizeram<br />
chegar à conclusão de que não era possível<br />
mais viver daquela forma. Então<br />
ela tomou fôlego, foi até a Delegacia<br />
de Polícia e registrou boletim de ocorrência.<br />
Juntou algumas roupas suas e<br />
de seus filhos e foi para a casa da mãe,<br />
onde vive até hoje, reorganizando a<br />
própria vida. O ex-marido não aceitou<br />
a separação consensual, que teve que<br />
ser litigiosa, e só terminou de se resolver<br />
recentemente.<br />
Atualmente, ela leciona em uma<br />
escola particular de Belo Horizonte, é<br />
sindicalizada ao Sinpro Minas, e dá<br />
também aulas particulares para complementar<br />
a renda. Cuida dos filhos e<br />
caminha pela vida com um sorriso<br />
aberto, que traduz a beleza de quem<br />
redescobriu a própria força de mulher<br />
guerreira que é.” Ele me magoou<br />
muito, mas eu não quis perder a minha<br />
alegria de viver. Nunca pensei em dar<br />
o troco, mas sim em superar, sendo<br />
uma pessoa melhor. A gente tem uma<br />
força que desconhece. Hoje, sou uma<br />
pessoa mais forte e totalmente apaixonada<br />
por mim, pela minha força e fé,<br />
e é isso que me move...”<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
90<br />
Jovens reproduzem machismo<br />
nas redes sociais<br />
Pesquisa<br />
“Violência contra a mulher:<br />
o jovem está ligado?”<br />
Os jovens aprovam a Lei Maria da<br />
Penha e percebem a existência do machismo<br />
no país. É o que aponta a pesquisa<br />
Violência contra a mulher: o jovem<br />
está ligado?, realizada pelo Instituto<br />
Avon em parceria com o Data Popular<br />
e divulgada em dezembro de 2014 durante<br />
o Fórum Fale sem Medo, em<br />
São Paulo. No entanto, boa parte desses<br />
jovens “reproduzem comportamentos<br />
que subjugam a autonomia e os direitos<br />
das mulheres e que estão na raiz de diferentes<br />
formas de violência física, moral<br />
e psicológica contra mulheres de todas<br />
as idades”, alerta informe do Instituto<br />
Patrícia Galvão, organização que foi<br />
consultora da pesquisa.<br />
Os entrevistados responderam questões<br />
sobre diversos temas, entre eles<br />
relacionamentos virtuais, sexualidade,<br />
Lei Maria da Penha e violência nos relacionamentos.<br />
Entre os temas que ganharam<br />
espaço na pesquisa estão a<br />
cyber vingança e os relacionamentos<br />
afetivos em tempos de redes sociais.<br />
O estudo comprova que “o ciúme em<br />
excesso, a submissão e a necessidade<br />
de controlar o parceiro – até mesmo<br />
sobre o que vestir ou postar nas redes<br />
sociais – são comuns nos relacionamentos<br />
entre os jovens”.<br />
“A pesquisa deixa muito claro que<br />
os jovens têm dificuldade em entender<br />
o que é violência. Essa falta de percepção<br />
permite a perpetuação dos atos de<br />
agressão e da desigualdade de gênero.<br />
A pesquisa mostra como tudo isso é<br />
naturalizado na sociedade”, explicou<br />
Jacira Melo, diretora executiva do Instituto<br />
Patrícia Galvão, durante o Fórum.<br />
“A sociedade precisa superar as<br />
discriminações e propagar novos<br />
valores de igualdade, sem machismo,<br />
racismo e homofobia”, apontou a<br />
secretária de Enfrentamento à Violência<br />
contra as Mulheres da Secretaria<br />
de Políticas para as Mulheres,<br />
Aparecida Gonçalves. Ela destacou<br />
que o Ligue 180 recebe em<br />
média 22 mil ligações por dia de<br />
mulheres pedindo ajuda e, a cada<br />
5 minutos, uma mulher é<br />
agredida no Brasil, mesmo após<br />
oito anos da publicação da Lei<br />
Maria da Penha.<br />
Para mudar este cenário, os especialistas<br />
presentes ao evento recomendaram<br />
como fundamentais<br />
“ações e políticas públicas que envolvam<br />
a educação e a mídia, para<br />
disseminar valores de igualdade e<br />
respeito e mostrar que é papel de<br />
toda a sociedade enfrentar as discriminações<br />
e reverter a banalização<br />
de todas as formas de violência”,<br />
destacou o informe do Instituto.<br />
“Ações e políticas<br />
que envolvam a<br />
educação e a mídia<br />
podem disseminar<br />
valores como<br />
igualdade e<br />
respeito”<br />
Fonte: Data Popular/Instituro Avon<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
91<br />
Lei Maria da Penha reduziu em 10% os<br />
homicídios contra as mulheres<br />
ROBERTO STUCKERT FILHO<br />
O Instituto de Pesquisa Econômica<br />
Aplicada (Ipea) divulgou no dia 04 de<br />
março em Brasília um estudo sobre a<br />
efetividade da Lei Maria da Penha<br />
(LMP) e outro sobre a institucionalização<br />
das políticas protetivas à mulher. No<br />
primeiro artigo os pesquisadores do<br />
Instituto utilizaram dados do Sistema<br />
de Informações sobre Mortalidade do<br />
SUS e um método conhecido como<br />
‘modelo de diferenças em diferenças’,<br />
para estimar a existência de efeitos da<br />
lei na redução de homicídios de mulheres<br />
brasileiras. “A LMP fez diminuir<br />
em cerca de 10% a taxa de homicídio<br />
contra as mulheres dentro das residências.<br />
Isto implica dizer que a Lei foi<br />
responsável por evitar milhares de<br />
casos de violência doméstica no país”.<br />
O estudo apontou ainda que a Lei<br />
Maria da Penha “modificou o tratamento<br />
do Estado em relação aos casos<br />
envolvendo violência doméstica, através<br />
de três canais: aumentou o custo da<br />
pena para o agressor; aumentou o<br />
empoderamento e as condições de segurança<br />
para que a vítima pudesse denunciar;<br />
e aperfeiçoou os mecanismos<br />
jurisdicionais, possibilitando que o sistema<br />
de justiça criminal atendesse de<br />
forma mais efetiva os casos envolvendo<br />
violência doméstica”.<br />
No segundo artigo os pesquisadores<br />
fizeram um mapeamento inédito dos<br />
serviços protetivos para as mulheres<br />
em situação de risco que foram institucionalizados<br />
no território brasileiro. Segundo<br />
a análise, houve um “crescente<br />
processo de expansão das Redes de<br />
Atendimento e Enfrentamento no Brasil,<br />
ainda que, nesse momento inicial de<br />
implantação, os serviços estejam concentrados,<br />
majoritariamente, nas regiões<br />
metropolitanas dos estados”.<br />
Uma iniciativa positiva de expansão<br />
da rede de enfrentamento à violência<br />
é o Projeto Casa da Mulher Brasileira,<br />
que consiste na construção de<br />
um complexo, em cada capital do País,<br />
que comportará todos os serviços especializados<br />
para atender as mulheres<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
92<br />
em situação de violência, incluindo delegacia,<br />
juizado, defensoria, promotoria,<br />
equipes psicossociais e de orientação<br />
para emprego e renda, além de brinquedoteca<br />
e área de convivência.<br />
“Hoje a mulher vai à delegacia e<br />
fica quatro, cinco horas esperando.<br />
Até sair a medida protetiva, demora<br />
48 horas. Depois ela tem que ir ao juizado,<br />
demora mais um dia. Depois na<br />
defensoria. Então, ela termina tirando<br />
cinco dias para poder cuidar disso. Na<br />
Casa, vai ser um dia só”, ressaltou a<br />
secretária de Enfrentamento à Violência<br />
da SPM/PR, Aparecida Gonçalves.<br />
Em fevereiro de 2015, a presidenta<br />
Dilma Rousseff participou da inauguração<br />
da primeira Casa da Mulher Brasileira,<br />
em Campo Grande, Mato Grosso do<br />
Sul. A previsão do Governo Federal é<br />
de implantar, até 2016 uma Casa em<br />
cada capital do País, até 2016, exceto<br />
Recife, que não aderiu ao programa.<br />
Campanha educativa<br />
A Campanha Quem ama, abraça<br />
ocupou-se, em 2013/14, com “o fortalecimento<br />
do espaço escolar como<br />
campo privilegiado para reflexão e<br />
superação das diferentes formas de<br />
violência contra a mulher – simbólicas<br />
ou explícitas – presentes no cotidiano<br />
das crianças e jovens”. Segundo a<br />
Campanha, “a função social da escola<br />
é extremamente relevante pela possibilidade<br />
de que, ao disseminar valores<br />
através de sua atuação pedagógica,<br />
pode instrumentalizar crianças e jovens<br />
para o exercício real da cidadania” e<br />
para a superação das desigualdades de<br />
gênero.<br />
O site www.quemamaabraca.org.br<br />
disponibiliza informações, atividades,<br />
clipes musicais e jogos que professores<br />
podem utilizar com seus alunos para<br />
promover a conscientização e a discussão<br />
sobre o enfrentamento à violência<br />
contra as mulheres.<br />
“Quem ama, ajuda. Quem ama,<br />
agrada. Dá carinho e dá calor.<br />
Quem ama, cuida. Quem ama,<br />
abraça. Não maltrata o seu amor.”<br />
Trecho do clip da Campanha, que teve a participação<br />
de vários artistas<br />
Feminicídio<br />
agora é crime<br />
hediondo<br />
A presidenta Dilma Rousseff sancionou<br />
no dia 9 de março, a Lei do<br />
Feminicídio. Com isso, passou a ser<br />
considerado crime hediondo o assassinato<br />
de mulheres decorrente de violência<br />
doméstica ou de discriminação<br />
de gênero. O anúncio de que a lei<br />
seria sancionada foi feito no último dia<br />
8 de março, em comemoração ao Dia<br />
Internacional da Mulher, em um pronunciamento<br />
realizado na rádio e TV.<br />
A lei que tipifica o feminicídio como<br />
homicídio qualificado e o inclui no rol<br />
de crimes hediondos é considerada por<br />
especialistas ouvidas pela Agência Brasil,<br />
um avanço na luta pelos direitos das<br />
mulheres. Para a representante da<br />
ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman,<br />
a aprovação do projeto representa<br />
avanço político, legislativo e social.<br />
“Temos falado há muito tempo da<br />
importância de dar um nome a esse<br />
crime. A aprovação coloca o Brasil<br />
como um dos 16 países da América<br />
Latina que identificam o crime com<br />
nome próprio”, disse.<br />
O texto modifica o Código Penal<br />
para incluir o crime – assassinato de<br />
mulher por razões de gênero – entre<br />
os tipos de homicídio qualificado. Prevê<br />
também o aumento da pena em um<br />
terço se o assassinato acontecer durante<br />
a gestação ou nos três meses posteriores<br />
ao parto; se for contra adolescente<br />
menor de 14 anos ou contra uma pessoa<br />
acima de 60 anos ou, ainda, contra<br />
uma pessoa com deficiência. A pena é<br />
agravada também quando o crime for<br />
cometido na presença de descendente<br />
ou ascendente da vítima.<br />
O projeto de Lei 8305/14 do Senado<br />
foi elaborado pela Comissão Parlamentar<br />
Mista de Inquérito (CPMI) da<br />
Violência contra a Mulher. Na justificativa<br />
do projeto de lei, a CPMI destacou<br />
que, de 2000 a 2010, 43,7 mil mulheres<br />
foram assassinadas no Brasil,<br />
sendo que mais de 40% das vítimas<br />
foram mortas dentro de suas casas,<br />
muitas pelos companheiros ou ex-companheiros.<br />
Além disso, a comissão informou<br />
que a estatística colocou o<br />
Brasil na sétima posição mundial de<br />
assassinatos de mulheres.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
93<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
94<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Professora Marli Pereira realiza Chá da Vovó com seus alunos.<br />
EDUCAÇÃO<br />
<strong>POR</strong> CECÍLIA ALVIM<br />
Profissão docente:<br />
uma escolha de valor<br />
Prêmios valorizam iniciativas de professoras que fazem a diferença<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
95<br />
O ofício do professor e da professora<br />
é ensinar, despertar o interesse dos<br />
alunos pelos saberes e acontecimentos<br />
do mundo, desenvolver atividades que<br />
façam aflorar a criatividade e o gosto<br />
pela vida, transmitir conhecimentos e<br />
valores humanos que acompanhem os<br />
alunos pelos caminhos que forem trilhar...<br />
Mesmo sendo uma profissão antiga,<br />
os mestres têm sempre que renovar<br />
o propósito de educar, para que suas<br />
práticas se adaptem às mudanças e<br />
demandas dos novos tempos. Diante<br />
disso, novos projetos surgem e trazem<br />
novos ares para o cotidiano escolar.<br />
Algumas dessas práticas, então, tornam-se<br />
conhecidas através de prêmios<br />
promovidos para incentivar os professores<br />
a aprimorar sua atuação em sala<br />
de aula. Um desses prêmios foi promovido<br />
em 2014 pelo Sinpro<br />
Minas, Nandyala Livraria & Editora,<br />
Sind-Ute, entre outras entidades. O<br />
Prêmio Educa Minas para a Diversidade<br />
destacou ações pedagógicas voltadas<br />
para o respeito à diversidade étnico-racial,<br />
desenvolvidas por professores<br />
da Educação Básica de escolas<br />
privadas e públicas de Minas Gerais.<br />
A iniciativa premiou docentes que<br />
fazem acontecer a Lei 10.639 em suas<br />
escolas. Essa lei, que tornou obrigatório<br />
o ensino da História e Cultura Afrobrasileira<br />
no ensino fundamental e médio<br />
desde 2003, foi atualizada pela<br />
Lei 11.645/2008, que acrescentou o<br />
ensino da História e Cultura Indígena<br />
no currículo escolar. Em 2013, essa<br />
legislação foi alterada pela Lei de Diretrizes<br />
e Bases da Educação Nacional<br />
(Lei 12.796).<br />
Doze anos depois da aprovação da<br />
lei 10.639, ainda pouco se faz para<br />
que ela se torne realidade em boa parte<br />
das escolas brasileiras. Para a diretora<br />
“Premiar é valorizar<br />
quem já está fazendo,<br />
para que outros<br />
professores<br />
acompanhem e<br />
vençam as resistências<br />
à temática no<br />
ambiente escolar”.<br />
do Sinpro Minas, Terezinha Avelar, a<br />
temática deve permear o projeto político-pedagógico<br />
das instituições de ensino<br />
ao longo de todo o ano. “Essa discussão<br />
deve envolver todos os professores,<br />
pois não pode ser responsabilidade de<br />
uma pessoa somente. Muitas vezes, se<br />
espera ou se delega essa iniciativa a<br />
professoras negras”. Para ela, o Prêmio<br />
Educa Minas realça o papel do/a professor/a<br />
na implementação da lei. “Premiar<br />
é valorizar quem já está fazendo,<br />
para que outros professores acompanhem<br />
e vençam as resistências à temática<br />
no ambiente escolar”.<br />
Em Minas Gerais, doze professores/as<br />
da rede particular, filiados/as<br />
ao Sinpro, tiveram seus projetos de<br />
implementação da Lei 10.639 reconhecidos<br />
pelo Prêmio Educa Minas.<br />
Um desses projetos premiados foi desenvolvido<br />
pela professora Fernanda<br />
Gontijo de Abreu, e mais seis professores,<br />
em uma escola de Belo Horizonte,<br />
dentro do Projeto Institucional<br />
desenvolvido ao longo de 2013.<br />
O tema central do projeto foi a<br />
presença do negro na brasilidade. “Considerávamos<br />
urgente problematizar a<br />
presença do negro no Brasil, que<br />
parece cada vez mais se esquecer da<br />
sua história, e que ainda mantém arraigadas<br />
e dissimuladas posturas de<br />
preconceito, exclusão e dominação<br />
quando o assunto é a questão racial, a<br />
liberdade e a igualdade de oportunidades”,<br />
destacou a professora Fernanda<br />
Gontijo. O projeto se desdobrou em<br />
ações pedagógicas nas áreas de Ciências,<br />
História, Geografia, Artes, Português,<br />
Música e Literatura. O trabalho<br />
desenvolvido pela professora Fernanda<br />
na área de Língua Portuguesa foi a<br />
produção de um jornal com artigos de<br />
interesse dos alunos sobre o tema.<br />
Além disso, eles realizaram pesquisas<br />
orientadas pelos professores, assistiram<br />
filmes, visitaram a Comunidade Quilombola<br />
de Mangueira, localizada no<br />
bairro Aarão Reis, a Casa África (centro<br />
cultural e consulado do Senegal em<br />
BH), e participaram de uma palestra e<br />
atividade de capoeira coletiva com o<br />
Mestre João Angoleiro e alguns capoeiristas.<br />
Como resultado, os alunos<br />
produziram diversos trabalhos plásticos,<br />
literários e científicos, que ficaram expostos<br />
até a primeira etapa de 2014,<br />
e receberam visitas da comunidade escolar,<br />
além de moradores do bairro.<br />
Para Fernanda Gontijo, o projeto<br />
gerou aprendizado para todos os<br />
envolvidos, inclusive para os professores.<br />
“Eu mais aprendi do que ‘ensinei’,<br />
o que é muito bom. Um trabalho que<br />
investe no desenvolvimento do pensamento<br />
crítico, e não dogmático,<br />
mobiliza saberes para todos os que<br />
estejam verdadeiramente envolvidos<br />
com a proposta”. Ela conta que o projeto<br />
a fez reviver e resgatar as mais<br />
inspiradoras experiências de sua infância<br />
e adolescência dentro do ambiente<br />
escolar. “Ao discutir o tema da negritude<br />
na brasilidade, vieram à tona<br />
também os temas implícitos da liberdade,<br />
justiça, valorização e dignidade<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
96<br />
humana, o que ressignificou para mim<br />
toda uma temática profissional e<br />
humana”, relata Fernanda.<br />
De acordo com ela, os problemas<br />
que envolvem a questão racial no Brasil<br />
e no mundo refletem a história de dominação<br />
e saqueamento de direitos e<br />
bens culturais do povo negro, disseminada<br />
ao longo de muitos séculos. “É<br />
preciso muito trabalho e o amplo acesso<br />
a uma educação de qualidade para transformar<br />
o que se naturalizou historicamente.<br />
O professor é, por isso, peçachave<br />
no percurso da transformação e<br />
justiça social ao investir em um trabalho<br />
diferenciado em sala de aula, mesmo<br />
em condições adversas”, observa.<br />
Riqueza africana<br />
Professora Fernanda Gontijo realiza visita à Casa África.<br />
Outra iniciativa reconhecida pelo<br />
Prêmio Educa Minas é a da professora<br />
Aline Tadeu Lopes, também em uma<br />
escola particular da capital. Ela desenvolveu<br />
o projeto Cultura Afro-brasileira<br />
e Africana com alunos de diferentes<br />
idades do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.<br />
Diversas atividades apresentaram<br />
um pouco da riqueza que o continente<br />
africano trouxe para o Brasil.<br />
As crianças participaram de brincadeiras<br />
de origem africana, de contação de histórias,<br />
de peça teatral, de exposição de<br />
telas do artista Marcial Ávila com o<br />
tema Anjos Negros, de conversa com<br />
pessoas de origem angolana, que levaram<br />
à escola esculturas e informações sobre<br />
a cultura e a comida do país, e também<br />
assistiram a uma apresentação de dança<br />
afro com o Grupo Bataka. Ela conta<br />
que os alunos gostaram muito do projeto,<br />
que foi também premiado no prêmio<br />
Inovações Pedagógicas, do Sesc.<br />
Aline conta que, desde que cursou<br />
Pedagogia, se preocupou em aprofundar<br />
na temática, e por isso, fez sua monografia<br />
sobre a Lei 10.639. Para ela, a<br />
educação é um instrumento para a construção<br />
de uma sociedade anti-racista.<br />
“Cabe a nós, professoras e professores,<br />
promover atividades voltadas para a<br />
questão étnico-racial, pois é assim que<br />
construiremos uma educação voltada<br />
para o respeito e valorização do negro<br />
na sociedade brasileira”, destaca.<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Professoras<br />
são maioria nas<br />
escolas<br />
brasileiras<br />
Outra premiação, em escala nacional,<br />
também repercute iniciativas de<br />
professoras que resolveram fazer diferente<br />
em suas escolas e assim fizeram<br />
a diferença na vida de inúmeros alunos.<br />
É o Prêmio Professores do Brasil,<br />
cuja cerimônia de sua 8ª edição foi<br />
realizada em dezembro de 2014, na<br />
cidade de São Paulo. Promovido pelo<br />
Ministério da Educação, o prêmio reconhece<br />
iniciativas de professores da<br />
educação básica pública. “O prêmio<br />
atende a uma das metas do Plano Nacional<br />
de Educação, a valorização dos<br />
professores. Necessitamos de ações<br />
que tornem os educadores motivados<br />
e comprometidos. Com acesso a planos<br />
de carreira, salários atrativos, formação<br />
inicial e continuada de qualidade, reconhecimento<br />
de seu papel social e<br />
referência para a nossa sociedade”,<br />
aponta o documento final do Prêmio.<br />
Em 2014, concorreram 6.808 projetos,<br />
e apenas 39 professores foram<br />
premiados por suas iniciativas. O resultado<br />
confirma a participação majoritária<br />
das mulheres na educação. Foram<br />
32 professoras e apenas sete professores<br />
premiados. No universo mais<br />
amplo das escolas públicas brasileiras,<br />
as mulheres são mesmo maioria. Segundo<br />
dados do Instituto Nacional de<br />
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio<br />
Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da<br />
Educação, em 2013, havia 2.148.023<br />
professores na educação básica, e,<br />
deste total, 1.724.653 eram mulheres.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
97<br />
IMAGEM TV ESCOLA<br />
Em Minas Gerais, há 186.184 mulheres<br />
e apenas 37.329 homens nas<br />
salas de aula das escolas públicas. Duas<br />
dessas mulheres foram vencedoras da<br />
oitava edição do Prêmio Professores<br />
do Brasil 2014. É o caso de Marli Pereira<br />
da Silva Morais, professora na Escola<br />
Municipal Gil Brasileiro da Silva,<br />
em Itapagipe, no Triângulo Mineiro.<br />
Ela recebeu o prêmio pelo projeto “Mala<br />
Viajante”, desenvolvido com 24 alunos<br />
do 4º ano do Ensino Fundamental.<br />
A cada semana escolar do ano de<br />
2014, um aluno levou para casa uma<br />
divertida mala com livros para serem<br />
lidos com a família, além de uma cópia<br />
do projeto e de fichas para os pais entenderem<br />
a proposta e avaliarem a leitura.<br />
Deu tão certo que, depois de envolver<br />
os pais, o projeto alcançou também<br />
as avós. Inspirado pela dona<br />
Benta, avó dos personagens principais<br />
do Sítio do Picapau Amarelo, de<br />
Monteiro Lobato, e pelo livro A colcha<br />
de retalhos, de Conceil Corrêa da<br />
Silva e Nye Ribeiro, que narra a relação<br />
entre avó e neto, o sub-projeto “Aprendi<br />
com a vovó” trouxe a sabedoria das<br />
mulheres mais velhas da família para<br />
dentro da sala de aula.<br />
Histórias e valores<br />
Cada aluno foi convidado a trazer<br />
um retalho significativo de casa e a<br />
contar a história daquele pedaço de<br />
pano, muitas vezes cedido por avós ou<br />
mães. Os retalhos transformaram-se<br />
em uma colorida colcha de retalhos,<br />
que passou a forrar a mesa da sala.<br />
Com empenho de todos, foi então realizado<br />
o Chá da Vovó, com a presença<br />
das avós e de seus quitutes e receitas.<br />
Algumas delas disseram nunca terem<br />
sido chamadas na escola dos netos<br />
para participar como avós, e que se<br />
sentiram felizes pela homenagem recebida.<br />
A partir da leitura dos livros da<br />
mala e das atividades relacionadas, os<br />
alunos desenvolveram diferentes tipos<br />
de texto, reforçaram o aprendizado de<br />
valores como respeito e colaboração,<br />
e passaram a contar com a participação<br />
mais ativa da família em sua<br />
vida escolar.<br />
A professora Marli conta que ficou<br />
contente em desenvolver o projeto e<br />
por ter sua iniciativa valorizada pelo<br />
Prêmio Professores do Brasil. “A so-<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
98<br />
ciedade passa a te olhar com mais respeito,<br />
a escola cresce e os alunos ficam<br />
mais confiantes e mais motivados, enfim,<br />
todos ganham”, relata. Segundo<br />
ela, ser professora não é uma tarefa<br />
fácil, mas é gratificante. “Gosto muito<br />
do que faço. O que eu sei fazer é dar<br />
aula. Quando você vê que uma ação<br />
sua fez a diferença na vida das pessoas,<br />
é a melhor realização, é um prêmio.<br />
Apesar dos desafios, eu ainda acredito<br />
muito na educação”, completa Marli.<br />
Aula de cidadania<br />
Outra professora mineira reconhecida<br />
pelo Prêmio Professores do Brasil<br />
é Soraya Amaral Nantes de Castilho.<br />
Ela é professora de Química na Escola<br />
Estadual Benedito Ferreira Calafiori,<br />
em São Sebastião do Paraíso, no Sul<br />
de Minas. Seu projeto Ditão em ação:<br />
descarte de pilhas e baterias foi desenvolvido<br />
com cerca de 200 alunos<br />
do 3º ano do Ensino Médio.<br />
Ao longo de 2013, eles recolheram<br />
cerca de 400 quilos de pilhas e baterias<br />
e cuidaram do envio do material para<br />
uma empresa de reciclagem. O projeto<br />
nasceu quando a professora Soraya<br />
constatou o desconhecimento dos alunos<br />
sobre o funcionamento e a composição<br />
desses produtos e, principalmente,<br />
sobre como descartá-los no fim<br />
de sua vida útil. Foi preciso então estudar<br />
a teoria, assistir a vídeos e colocar<br />
em prática as ideias que surgiram. Os<br />
alunos construíram, então, baterias rudimentares<br />
com limões e batatas, criaram<br />
panfletos sobre reciclagem e uma<br />
música sobre o descarte correto de pilhas<br />
e baterias. Também criaram coletores<br />
(papa-pilhas) e hoje há dezenas<br />
deles espalhados pela cidade.<br />
Soraya Amaral conta que o projeto<br />
mudou sua forma de atuar na escola e<br />
na vida. “Hoje me sinto cada vez mais<br />
responsável pelos problemas ambientais<br />
ao meu redor. Continuo procurando<br />
parcerias para ampliar o projeto a fim<br />
de informar, sensibilizar e aumentar a<br />
consciência ambiental de novos alunos<br />
e da população”, relata. Assim, ela<br />
continua a incentivar a criação de mais<br />
postos de recolhimento de pilhas e baterias<br />
em sua cidade. “Precisamos evitar<br />
o descarte na natureza de metais pesados,<br />
tão prejudiciais à sustentabilidade<br />
do planeta e à saúde da humanidade”,<br />
observa. Com sua visão consciente, a<br />
professora Soraya dá uma aula de cidadania.<br />
“O papel do professor é garantir<br />
a aprendizagem, criar possibilidades<br />
de construção do conhecimento,<br />
transmitir valores, atitudes e habilidades,<br />
mas, sobretudo, acreditar no potencial<br />
dos alunos, permitindo-lhes crescer<br />
como pessoas, como cidadãos e como<br />
futuros trabalhadores”, completa.<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Professora<br />
conta que foi<br />
influenciada por<br />
outras mulheres<br />
a seguir a<br />
profissão<br />
Fernanda Gontijo de Abreu (foto),<br />
professora de Língua Portuguesa de<br />
uma escola particular de BH, escolheu<br />
a profissão inspirada por sua mãe professora<br />
e por sua rica vivência com<br />
suas professoras desde a infância. Por<br />
sua atuação diferenciada e integrada à<br />
equipe de professores da escola, ela<br />
recebeu o Prêmio Educa Minas para<br />
a Diversidade, em dezembro de 2014.<br />
Nessa entrevista, ela conta um pouco<br />
de sua trajetória no ambiente escolar,<br />
expõe sua crença no papel transformador<br />
da educação, e repercute os<br />
desafios encontrados pelas professoras<br />
para exercer a profissão.<br />
Como surgiu o interesse pela<br />
profissão?<br />
Desde criança, tenho um envolvimento<br />
especial com o ambiente escolar.<br />
Um dos motivos é o fato de eu ser<br />
filha de professora. Minha mãe lecionou<br />
por anos no ensino infantil do tradicional<br />
Instituto de Educação de Belo Horizonte<br />
em uma época em que ali se apostava<br />
na ampla formação do aluno: refirome,<br />
obviamente, não apenas à formação<br />
cognitiva, mas a que também<br />
levava seriamente em conta a emoção,<br />
a sociabilidade e o desenvolvimento<br />
dos valores éticos, o que fazia a equipe<br />
docente investir criteriosamente no<br />
saber lúdico e inventivo, na alegria da<br />
convivência na escola, na leitura crítica<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
99<br />
e aprofundada desde a alfabetização,<br />
respeitando-se a gradual, mas profunda<br />
inserção da criança no mundo da escrita<br />
e da leitura.<br />
Como a instituição em que minha<br />
mãe trabalhou foi a mesma em que estudei<br />
até a 4ª série, tive o privilégio de<br />
ter professores(as) que lecionavam com<br />
criatividade, bom humor e muita dedicação.<br />
Lembro-me, por exemplo, com<br />
grande carinho, da professora de matemática<br />
da 3ª série – a Margô –, que,<br />
vejam bem!, ensinava matemática com<br />
poesia, apresentando a cada aula um<br />
novo poema do qual os alunos deveriam<br />
descobrir, pela sugestão da rima,<br />
a última palavra. Esta prática levavanos<br />
a refletir, antes de simplesmente<br />
“aprender” a matéria, sobre o tema a<br />
ser trabalhado dentro do conteúdo matemático<br />
proposto.<br />
Não tenho dúvidas, portanto, de<br />
que a maneira como pratico a minha<br />
profissão, que já vai para mais de 10<br />
anos, está intimamente ligada à minha<br />
passagem na infância por escolas que<br />
souberam transmitir-me uma sólida ética<br />
de ensino-aprendizagem, fazendo-me<br />
entender o espaço do conhecimento<br />
como lugar de autonomia do pensamento,<br />
de aprimoramento social e humano<br />
contínuos. Quando na adolescência,<br />
já no colegial, passei por uma<br />
escola de linha conteudista, a semente<br />
da leitura crítica já havia germinado em<br />
mim. O que eu fazia o tempo todo era<br />
questionar em silêncio, embora não tivesse<br />
dificuldade para apreender os<br />
conteúdos repassados, o papel social<br />
de uma instituição que priorizava os resultados,<br />
a quantidade e a velocidade<br />
de apreensão dos conteúdos em detrimento<br />
da assimilação cautelosa e consistente<br />
do conhecimento, criando nos<br />
alunos parâmetros de pensamentos consonantes<br />
com o ritmo acelerado, massificado<br />
e descartável das informações<br />
presentes em um mundo cujo principal<br />
valor é o capital e o consumo. Mesmo<br />
nesse período de minha vida estudantil,<br />
o ambiente escolar era instigante para<br />
mim pelo esforço solitário que eu fazia<br />
para questioná-lo, compará-lo, compreendê-lo.<br />
Acho que é por isso que<br />
até hoje estou na escola... como professora<br />
e como aluna, pois, mesmo trabalhando,<br />
jamais parei de estudar.... E<br />
sim, as instituições de ensino ainda continuam<br />
sendo para mim, em muitos aspectos,<br />
espaços cheios de incoerências<br />
e que devem ser repensados em sua<br />
forma de agir, ensinar, amar...<br />
Quais os desafios para conciliar<br />
a docência com a vida pessoal e a<br />
família?<br />
É um desafio constante, já que<br />
todo(a) professor(a) trabalha muito também<br />
fora da sala de aula, fazendo planejamentos,<br />
preparando atividades, estudando,<br />
tratando da burocracia que<br />
uma escola exige... O trabalho é muito<br />
e a família acaba se acostumando e<br />
aprendendo a lidar com isso. De toda<br />
forma, acredito que, como todo trabalho<br />
que é feito com empenho, a compensação<br />
é dada pelo efeito que vemos<br />
ocorrer em nosso público, no setor social<br />
ao qual servimos. Isso é muito gratificante!<br />
Quando percebo que os alunos<br />
estão crescendo como seres humanos<br />
e pensantes, e que pude contribuir um<br />
pouco para isso, fico feliz e já me sinto<br />
recompensada por meu investimento.<br />
E a família, quando nos percebe fortes<br />
e integrados com o que realizamos<br />
profissionalmente, se inspira nesse<br />
vigor e acaba procurando caminhos<br />
de realização também.<br />
O esforço e os desafios são imensos<br />
(na profissão de professor, isso é histórico<br />
e já há muito é uma questão a<br />
ser definida politicamente), mas é preciso<br />
não abrir mão de uma vida saudável,<br />
com tempo para lazer e convivência<br />
com aqueles que prezamos. Porém,<br />
acredito que a principal fonte de revitalização<br />
venha mesmo do próprio trabalho<br />
feito em consonância com o que<br />
acreditamos.ø<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
100<br />
foto BRUNO CARVALHO<br />
ENTREVISTA<br />
MARA EVARISTO<br />
por DENILSON CAJAZEIRO<br />
Diversidade é<br />
assunto de criança<br />
Especialista defende a abordagem das relações<br />
étnico-raciais desde a educação infantil<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
101<br />
Autora de livros que trabalham a<br />
identidade afrodescendente e a diversidade,<br />
Mara Evaristo se dedica há<br />
mais de 20 anos a promover as relações<br />
étnico-raciais na educação infantil. “Embora<br />
não saibam o que é racismo, as<br />
crianças têm atitudes discriminatórias”,<br />
aponta a educadora e especialista no<br />
tema, em entrevista à Elas por Elas.<br />
Atualmente, Mara Evaristo é também<br />
coordenadora do Núcleo de Relações<br />
Étnico-Raciais da Secretaria Municipal<br />
de Educação de Belo Horizonte. Uma<br />
de suas principais tarefas é acompanhar<br />
a aplicação da lei 10.639, aprovada<br />
em 2003, que determina o ensino da<br />
história e cultura afro-brasileira e africana<br />
em todas as escolas do país, públicas e<br />
particulares. No cargo, sabe bem que<br />
um dos principais desafios para introduzir<br />
o assunto nas escolas é mudar a<br />
cultura que permeia o ambiente escolar.<br />
“A gente percebe que, no início do<br />
ano, nas reuniões escolares, fala-se de<br />
tudo, de alimentação, de fralda, mas<br />
sobre relações humanas não se fala.<br />
Quando se fala da lei, da diversidade,<br />
muita gente diz que tem de cuidar da<br />
autoestima da criança negra. O que<br />
vejo é que a criança negra nasce com a<br />
autoestima lá em cima. O que tem de<br />
cuidar é das outras pessoas, para não a<br />
prejudicarem. Porque quem causa danos<br />
são os outros. As crianças nascem bem<br />
com elas mesmas”, ressalta.<br />
Além das atividades na Secretaria,<br />
Mara Evaristo desenvolve oficinas voltadas<br />
para professores sobre a construção<br />
da identidade pelas crianças e<br />
defende que o trabalho com o tema<br />
tem de estar presente no cotidiano escolar.<br />
Não basta ser algo pontual, de<br />
curta duração. “É preciso garantir a<br />
diversidade ao longo do ano, o tempo<br />
todo, não é só um projeto para ser<br />
feito no mês da consciência negra.<br />
Isso é que vai fazer a diferença”, afirma.<br />
Confira a entrevista.<br />
Como começou seu trabalho com<br />
as relações étnico-raciais na educação<br />
infantil?<br />
Em 1995, ingressei na carreira do<br />
magistério e comecei a me preocupar,<br />
principalmente quando trabalhava com<br />
literatura, com os alunos negros que<br />
não se identificavam com os personagens,<br />
não tinham tanta empatia. Então<br />
comecei a trabalhar com eles recriando<br />
histórias. Naquela época tinha a tradição<br />
dos contos de fadas no processo de alfabetização,<br />
e comecei a provocá-los,<br />
perguntando como seria se aquelas histórias<br />
acontecessem no território onde<br />
moravam. Refazíamos imagem, texto,<br />
e eu percebia um interesse maior por<br />
parte deles a partir dessa intervenção.<br />
Quanto tive filhos, começou o processo<br />
da minha vivência da educação na condição<br />
de família. O mais velho foi para<br />
a educação infantil, com três anos, e<br />
na escola dele tinham poucos alunos<br />
negros. E lá que vivi pela primeira vez<br />
a percepção de como as crianças de<br />
dois, três, quatro anos vão percebendo<br />
“É preciso garantir<br />
a diversidade ao<br />
longo do ano,<br />
tempo todo,<br />
não é só um<br />
projeto para ser<br />
feito no mês da<br />
consciência negra”.<br />
as diferenças de tratamento. Meu filho,<br />
com outros [colegas], viveu algumas situações<br />
de discriminação. A escola foi<br />
muito bacana nesse processo, porque<br />
desenvolveu um projeto para trabalhar<br />
com alunos, principalmente brancos,<br />
que manifestavam essa discriminação,<br />
para que eles entendessem o que era a<br />
cor da pele. Pensamos em trabalhar<br />
com crianças de três anos a melanina.<br />
E aí nós pesquisamos e encontramos<br />
uma experiência americana que trabalhava<br />
leite com achocolatado. Mostramos<br />
para os meninos que a pigmentação da<br />
pele tem elementos com a mesma atuação<br />
que o achocolatado no leite. Quanto<br />
mais chocolate na mistura, mais escuro<br />
o leite, e da mesma forma a pele. Eles<br />
queriam entender se por dentro também<br />
era escuro, e achamos que uma opção<br />
interessante seria trabalhar com maçãs.<br />
As frutas foram descascadas, e a meninada<br />
identificou que por baixo da casca<br />
a cor era semelhante, e com essas vivências<br />
eles conseguiram perceber as<br />
diferenças. Vi como isso provocou um<br />
impacto positivo nas relações que meu<br />
filho e os colegas construíram dentro<br />
da escola. Embora não saibam o que é<br />
racismo, as crianças têm atitudes discriminatórias.<br />
Vi também o quanto as famílias<br />
e a escola têm responsabilidade<br />
neste momento na formação da criança,<br />
porque é ali que você vai trabalhar a<br />
questão da diferença, da semelhança,<br />
do respeito. A partir dessa experiência<br />
pessoal, comecei a montar uma oficina<br />
para professores sobre a construção da<br />
identidade pelas crianças. Quando comecei,<br />
as professoras negavam muito<br />
que houvesse discriminação. Diziam que<br />
na escola todo mundo era igual, que<br />
discriminação era coisa de adulto e as<br />
crianças nem percebiam isso. Era o<br />
discurso do senso comum.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
102<br />
Da democracia racial?<br />
É, da democracia racial. Quando<br />
ele não chegava nesse lugar, era um<br />
discurso que caminhava mais para a<br />
questão religiosa, que o trabalho com<br />
as crianças tinha de valorizar as diferenças,<br />
e que se elas não fossem bonitas<br />
aos olhos dos coleguinhas, não precisavam<br />
se preocupar, porque aos olhos<br />
de Deus elas eram. Então havia esses<br />
dois movimentos. A gente não imagina,<br />
quando estamos dispostos a enxergar,<br />
o que as crianças estão falando sobre<br />
as diferenças. Ouvi, na época do Natal,<br />
que anjo preto era só do mal, que<br />
preto era pivete, roubava, que todo ladrão<br />
é preto, maconheiro, então os<br />
personagens [dos livros] não poderiam<br />
ser pretos. Houve a situação de uma<br />
professora que levou para a sala dois<br />
bonecos, e a diferença entre eles era a<br />
cor. Uma criança queria o boneco negro,<br />
virou pra outra e disse: ‘me dá<br />
esse boneco aí?’. A coleguinha não<br />
sabia qual e perguntou. Ela respondeu:<br />
‘me dá esse aí com rostinho de faxineiro’.<br />
Não quer dizer que todas as<br />
crianças falavam dessa forma, mas foi<br />
assustador perceber que em todas as<br />
instituições de ensino houve alguma<br />
informação que mostrava o quanto era<br />
natural para três, quatro anos, as crianças<br />
manifestarem formas de tratamento<br />
tão discriminatórias. Outro dado que<br />
chamou atenção da gente foi a rejeição<br />
à cor preta, de como ela está associada<br />
no imaginário da criança a algo ruim.<br />
“Combater o racismo<br />
não tem de acontecer<br />
no lugar onde existe<br />
racismo. É você<br />
trabalhar o tempo<br />
todo com valorização<br />
e respeito à<br />
diversidade”.<br />
MARK FLOREST<br />
Qual a importância de se trabalhar<br />
com esse tema com as crianças<br />
no ambiente escolar?<br />
Eu vi o que um bom trabalho sobre<br />
relações étnico-raciais faz com várias<br />
crianças. Quando você chega a uma<br />
escola onde essa criança se identifica<br />
no material, nas histórias que são contadas,<br />
nos murais, nos filmes, no professor,<br />
isso faz uma extrema diferença.<br />
Belo Horizonte tem escola hoje [da<br />
rede privada] que não contrata professor<br />
negro. Isso é seríssimo. Essa informação<br />
é fruto de um processo de formação e<br />
diálogo com os conselheiros municipais<br />
de educação. Não existe na ficha da escola<br />
que não pode contratar, mas essa<br />
percepção de que a escola não contrata<br />
é concreta, e isso é muito sério.<br />
Uma professora já nos relatou<br />
que tentou aplicar a lei 10.639 na<br />
escola em que trabalhava, e a direção<br />
disse que não havia necessidade, já<br />
que lá não existia criança negra.<br />
O que é uma visão superequivocada.<br />
Porque a LDB [Lei de Diretrizes e Base<br />
da Educação], quando traz a obrigatoriedade,<br />
não diz que é somente em escolas<br />
onde há alunos negros. Se fosse<br />
assim, a gente teria de pensar que tudo<br />
relacionado à Europa é somente em<br />
escolas que têm alunos brancos. As<br />
pessoas precisam ampliar o conhecimento<br />
sobre a legislação. Combater o<br />
racismo não tem de acontecer no lugar<br />
onde existe racismo. É você trabalhar o<br />
tempo todo com a valorização e o respeito<br />
à diversidade. Meus filhos podem<br />
não conviver com muçulmanos, mas<br />
eles precisam aprender a respeitar a<br />
religião, a fé muçulmana, para que<br />
quando encontrem com um muçulmano,<br />
o tratem de forma respeitosa. Isso faz<br />
parte das relações étnico-raciais. Outro<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
103<br />
ponto é trabalhar com a história e<br />
cultura africana e afro-brasileira, e isso<br />
não necessariamente é trabalhar com o<br />
racismo. Porque não vou restringir o<br />
trabalho sobre a história de um continente<br />
a um período histórico. Você<br />
tem uma África antes e uma África<br />
pós-escravidão. Temos escritores africanos,<br />
cientistas, uma diversidade cultural<br />
imensa para apresentar, da mesma<br />
forma que o continente europeu tem.<br />
O trabalho tem de pensar, e principalmente<br />
na educação infantil, que as<br />
crianças nem sabem sobre o racismo.<br />
Na verdade o que essas crianças precisam<br />
conhecer nessa idade é sobre seu<br />
corpo, sua pele, seu cabelo. A criança<br />
negra precisa ter seu cabelo valorizado.<br />
As crianças precisam saber que o cabelo<br />
crespo não é duro, apresentar de uma<br />
forma que o valorize. Crianças que tem<br />
a possibilidade de ver o cabelo crespo<br />
de diversas formas, independentemente<br />
de serem negras ou brancas, passam a<br />
perceber a beleza também nessa estética.<br />
não pode. A gente percebe que, no<br />
início do ano, nas reuniões escolares,<br />
fala-se de tudo, de alimentação, de<br />
fralda, mas sobre relações humanas<br />
não se fala. Quando se fala da lei, da<br />
diversidade, muita gente diz que tem<br />
de cuidar da autoestima da criança<br />
negra. O que vejo é que a criança<br />
negra nasce com uma autoestima lá<br />
em cima. O que tem de cuidar é das<br />
outras pessoas, para não prejudicarem<br />
essa autoestima. Porque quem causa<br />
os danos são os outros. As crianças<br />
nascem bem com elas mesmas.<br />
De modo geral, o sistema educacional<br />
tem reproduzido esse quadro?<br />
Acho que ainda estamos saindo da<br />
fase da negação. Rosa Margarida, que<br />
é uma pesquisadora que gosto muito,<br />
diz que primeiro passamos pela fase<br />
da negação, do “aqui não existe racismo”.<br />
Hoje você não tem um profissional<br />
que seja pesquisador e que diga<br />
que não existe racismo no sistema educacional.<br />
Em todas as escolas você vai<br />
ter essa concretude. O segundo passo<br />
passa pelas pessoas identificarem qual<br />
a responsabilidade que elas têm nesse<br />
processo, porque a tendência é achar<br />
assim: mas eu não sou culpado por<br />
isso, ou isso aconteceu foi no passado<br />
e não tem jeito de fazer mais nada.<br />
Tem sim, a escola e a gestão que se<br />
propõe a trazer todos os profissionais<br />
para esse processo terão um impacto<br />
considerável para a maioria das crianças.<br />
E para os professores darem conta<br />
BRUNO CARVALHO<br />
A importância estaria nesse campo<br />
da diversidade, do respeito às<br />
diferenças?<br />
Exatamente. Com um cuidado: não<br />
deixar passar as situações em que a<br />
criança, mesmo sem perceber o dano,<br />
discrimina. Se você chega hoje em<br />
uma instituição de ensino infantil, não<br />
há nenhuma parede pichada. Porque<br />
seja uma criança de dois anos, um<br />
ano, se ela rabiscar a parede, alguém<br />
fala que não pode. As crianças aprendem<br />
a chamar por apelidos, chamar<br />
de macaco, de cabelo pixaim, porque<br />
encontram permissividade. Nessas<br />
situações de discriminação, mesmo<br />
que ela tenha três, quatro anos, a<br />
escola tem de pontuar sobre o tratamento<br />
respeitoso, o que pode e o que<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
104<br />
de fazer isso, a lei é muito sábia, porque<br />
ela chama os movimentos sociais.<br />
Então as escolas precisam se aproximar<br />
dos movimentos sociais. E vejo<br />
que muitas escolas têm uma ideia completamente<br />
equivocada de movimentos<br />
sociais. Elas não conseguem identificar,<br />
por exemplo, que um movimento estético,<br />
como a gente está tendo um<br />
boom aqui em Belo Horizonte sobre o<br />
cabelo crespo, é político. Você está dizendo<br />
que seu país politicamente coloca<br />
um lugar para quem tem cabelo<br />
crespo. Há alguns lugares em que todas<br />
as pessoas de cabelo crespo têm de<br />
estar com ele liso, preso ou escondido,<br />
porque parece que não se encaixa em<br />
algumas funções. Você não vê alguma<br />
pessoa de cabelo crespo solto num<br />
banco, dificilmente vê alguém que<br />
ocupa a função de comissário de bordo<br />
usando o cabelo crespo. Em determinados<br />
restaurantes, os gerentes, esses<br />
cargos de alto poder, não se enxerga<br />
as pessoas com cabelo crespo. Então<br />
esse trabalho pra mim começa na educação<br />
infantil, mas não pensando no<br />
futuro, pensando no presente da<br />
criança, mas isso para mim vai ter um<br />
impacto considerável no futuro.<br />
Essa questão do cabelo é uma<br />
questão de fato política, não é?<br />
É uma ação política e não é um<br />
movimento só do Brasil. Mencionei<br />
aqui porque a gente está vendo isso<br />
forte em Belo Horizonte. Acompanho<br />
também pelo Facebook o que os movimentos<br />
estão fazendo. Tem o movimento<br />
de crespas e cacheadas, tem o<br />
encrespa geral, são eventos em que<br />
elas convidam as mulheres a primeiro<br />
valorizar o cabelo natural. Isso não significa<br />
que você não possa mais relaxar<br />
ou alisar, mas é um movimento que<br />
vai lutar contra esse engessamento,<br />
essa visão de que a única forma apresentável<br />
de cabelo é a lisa.<br />
Contra esse padrão de beleza<br />
também?<br />
Sim, e de beleza que vai para um<br />
patamar que significa também como se<br />
fosse conhecimento. A ideia da mulher<br />
intelectual é de uma mulher que, embora<br />
não tenha vaidade, se apresenta com<br />
um cabelo liso, o protótipo da mulher<br />
cientista, da pesquisadora. Se você olha<br />
uma pessoa com o cabelo crespo, solto<br />
e alto, o primeiro olhar é: aquela pessoa<br />
não é cientista, não tem conhecimento<br />
pra isso, se não o cabelo dela não<br />
estaria daquele jeito. Vi a discussão nas<br />
redes sociais acerca de um bloco [carnavalesco]<br />
em Juiz de Fora sobre empregadas<br />
domésticas. São homens negros,<br />
que pintam o rosto de preto, passam<br />
batom para parecer que o lábio<br />
está grosso e colocam uma peruca de<br />
cabelo crespo. É uma caricatura grosseira<br />
e isso é visto como algo divertido. Pra<br />
nós, a nossa pele, boca e cabelo não<br />
querem ser motivo de chacota. Se pra<br />
eles é uma brincadeira, pra nós é muito<br />
agressivo, pois aquela apresentação está<br />
inferiorizando tudo que tem a ver com<br />
a identidade da mulher negra. Li as crí-<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
105<br />
ticas que tanto defendiam o bloco, dizendo<br />
que é uma tradição na cidade,<br />
quanto as que criticavam. Achei interessante<br />
uma pessoa da cidade dizer<br />
que nunca tinha parado para pensar<br />
sob essa perspectiva e que ela acha que<br />
a tradição não é impossível de mudar<br />
se é algo ofensivo. Se a gente pensar,<br />
alguns anos atrás a tradição era a família<br />
definir com quem as mulheres iam se<br />
casar, ou com quem o homem ia se casar.<br />
Fruto da discussão e de quanto<br />
perceber que isso ia contra os direitos,<br />
essa tradição foi mudada. O Brasil tem<br />
uma tradição de discriminação. As pessoas<br />
precisam se desarmar um pouco,<br />
BRUNO CARVALHO<br />
sair da zona de conforto. Há outras<br />
formas de brincar o carnaval sem ofender<br />
outras pessoas. É um passo que a gente<br />
precisa dar. Muita gente que hoje eu<br />
falo que parou de negar o racismo<br />
ainda vê o racismo no outro, mas não<br />
consegue perceber que sua prática sustenta<br />
o racismo. Enquanto tiver bloco<br />
caracterizando a mulher negra dessa<br />
forma, teremos dificuldades para acessar<br />
lugares de emprego, porque as pessoas<br />
vão nos olhar como essa caricatura representada.<br />
Quais atividades a sra. sugeriria<br />
para quem tem interesse em trabalhar<br />
com o assunto?<br />
Há atividades que às vezes as famílias<br />
buscam pouco. Em Belo Horizonte,<br />
há dois museus que trabalham com a<br />
história e cultura africana e afro-brasileira.<br />
Um é o Museu de Artes e Ofícios,<br />
que tem a trilha afro-brasileira, aberta<br />
ao público. Você pode apresentar isso<br />
para que a criança aprenda um pouco<br />
de história, saber como as pessoas trabalhavam<br />
no passado, criavam os instrumentos,<br />
comparar como era antes<br />
e como é hoje. O outro é o Memorial<br />
Minas Gerais Vale, que também tem<br />
um percurso que vai mostrar a resistência<br />
negra, trabalhar a questão da<br />
oralidade, a presença negra no continente<br />
africano e aqui no Brasil. Para<br />
uma criança pequena, a abordagem<br />
não vai entrar tanto no processo da<br />
escravidão, mas você vai encontrar lá<br />
um Milton Nascimento, um Renegado<br />
em painéis grandes. É isso que a criança<br />
precisa perceber, que negros e brancos<br />
contribuem culturalmente, politicamente<br />
e cientificamente para o país. E não<br />
restringir só a negros e brancos, temos<br />
também os ciganos, os indígenas urbanos.<br />
Onde estão essas pessoas, quais<br />
atividades elas fazem ao longo do ano?<br />
Temos festas indígenas, ciganas. É uma<br />
forma de a criança perceber a vida<br />
social dessas pessoas e se aproximar.<br />
O desafio pra mim é o adulto querer<br />
fazer esse movimento de conhecer.<br />
Porque você tem espaços fantásticos<br />
para isso. Além disso, tem um movimento<br />
também importante que é desenvolver<br />
o senso crítico. Se a criança<br />
está assistindo a um filme ou desenho<br />
que inferioriza a mulher ou a coloca<br />
num papel ridículo, é preciso conversar<br />
com a criança, começar a desenvolver<br />
nela a análise do que está recebendo,<br />
para ela não aceitar que, por exemplo,<br />
só pelo fato de um conteúdo chegar<br />
pelo livro aquilo é real, é o correto. Eu<br />
penso que você precisa fazer também<br />
um movimento de abrir sua casa. Vou<br />
deixar uma pergunta para quem está<br />
lendo: quantas pessoas negras frequentaram<br />
sua casa no ano passado? E de<br />
que forma? Foi para limpar ou numa<br />
relação de amizade? Quantos amigos<br />
negros você tem? E quantos brancos?<br />
Como você pode estimular esse convívio?<br />
Em relação à educação, o primeiro<br />
passo é estudar. A gente só vai ser<br />
bom professor se permanecer estudando<br />
ao longo da vida e se fizer um<br />
investimento para conhecer novas brincadeiras,<br />
jogos, a discussão em torno<br />
da linguagem. Que as pessoas tenham<br />
essa atenção e responsabilidade para<br />
trabalhar com a diversidade, porque<br />
hoje as diretrizes para a educação<br />
infantil vão dizer que este é um dos pilares<br />
da educação infantil: o trato da<br />
diversidade, o respeito à identidade e<br />
a promoção da equidade. É preciso<br />
garantir a diversidade ao longo do ano,<br />
o tempo todo, não é só um projeto<br />
para ser feito no mês da consciência<br />
negra. Isso é que vai fazer a diferença.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
AUTOESTIMA<br />
<strong>POR</strong> NANCI ALVES<br />
foto MARK FLOREST
107<br />
Debaixo dos<br />
caracóis,<br />
muita história<br />
pra contar<br />
Cabelo, símbolo de feminilidade, é motivo de alegrias e sofrimentos<br />
O cabelo tem sido o causador de<br />
alegrias e tristezas entre as mulheres,<br />
que, em geral, gastam tempo e dinheiro<br />
em busca de um visual atraente. Por<br />
outro lado, a falta do cabelo, pelos mais<br />
variados motivos, traz sofrimento, mas,<br />
acima de tudo, desperta a solidariedade<br />
entre mulheres em todo o Brasil.<br />
O simples fato de um cabelo fora<br />
dos padrões da moda pode provocar<br />
atitudes de isolamento. Certamente,<br />
você conhece alguma mulher que já<br />
deixou de ir a uma festa porque o<br />
cabelo não estava bonito. Entre as<br />
adolescentes, esse dilema pode se<br />
tornar ainda maior. Ana Luísa, de 16<br />
anos, garante que já perdeu vários encontros<br />
com amigos porque não deu<br />
tempo de arrumar bem o cabelo. Isso<br />
implica hidratar, lavar, escovar ou<br />
pranchar seus cabelos. “Conheço garotas<br />
que pensam diferente e gostam<br />
do cabelo com volume, colorido ou<br />
com dreads, mas todas investem em<br />
algum visual que as fazem se sentir bonitas.<br />
Eu gosto do meu cabelo bem<br />
liso. Assim me sinto mais feminina.<br />
Quando acho que está feio, me sinto<br />
insegura, não quero sair e muito menos<br />
aparecer em fotografias”, conta.<br />
Em termos de estatísticas, Ana Luísa<br />
faz parte de um grupo que é a maioria<br />
em nosso país - 63% das brasileiras<br />
gostariam de ter cabelos lisos; sendo<br />
que menos de 20% realmente têm e<br />
42% os alisam. É o que apontou uma<br />
pesquisa realizada pela L’Oréal, que<br />
mostrou, ainda, que o cabelo das brasileiras<br />
é uma mistura de três categorias:<br />
oriental, afro e caucasiano. As que alisam<br />
suas madeixas, em geral, querem<br />
reduzir volume e, para isso, buscam<br />
produtos que tenham resultado imediato,<br />
independentemente das possíveis<br />
consequências, como dani ficar seriamente<br />
os fios.<br />
A designer gráfico, Fernanda Lourenço<br />
(foto), passou por uma experiência<br />
marcante em sua vida. Por usar química<br />
para relaxamento desde os 13 anos de<br />
idade, já não sabia mais como era seu<br />
cabelo. “Foi uma surpresa e uma<br />
grande alegria redescobrir meus cachos.<br />
Por causa da moda, comecei a relaxar<br />
meu cabelo na adolescência. Depois,<br />
passei a fazer escova progressiva, também<br />
por muitos anos. Até que um dia,<br />
quando já não estava gostando do aspecto<br />
do meu cabelo e também por incentivo<br />
de uma amiga, comecei a pensar<br />
na possibilidade de voltar a usá-lo natural.<br />
Foi um processo. Deixei a progressiva<br />
quando vi uma reportagem falando<br />
sobre os males, para saúde, do excesso<br />
da química. Porém, o mantinha liso<br />
com escovação. Quando me decidi por<br />
cortar o cabelo, tive medo, pois não<br />
sabia como ele estaria. Depois que<br />
cortei curto e deixei secar naturalmente,<br />
foi uma surpresa maravilhosa e, hoje,<br />
eu estou apaixonada com meu cabelo,<br />
me sinto mais feminina”, relata Fernanda<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
108<br />
Ana Luísa gosta de manter seus cabelos lisos.<br />
que diz investir em shampoo, cremes e<br />
hidratantes específicos para manter os<br />
cabelos naturais com a aparência que<br />
deseja.<br />
A pesquisa intitulada “Brasileiras e<br />
os Cabelos”, realizada pelo Ibope, em<br />
parceria com a Unilever (2011) aponta,<br />
entre outros dados, que as mulheres<br />
gastam, em média, 35 minutos diários<br />
apenas cuidando dos fios. Foram ouvidas<br />
400 mulheres das classes A, B e C<br />
- nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro,<br />
Recife e Porto Alegre. E o resultado<br />
mostra que o cabelo é parte essencial<br />
no ritual de beleza da brasileira:<br />
37% das entrevistadas usam creme de<br />
pentear e de tratamento; 72% afirmam<br />
gostar de cuidar do cabelo; 74% acham<br />
que com o cabelo bonito se sentem<br />
confiantes e para 37% ir ao salão é<br />
uma necessidade.<br />
Influência da mídia<br />
A questão cultural é, muitas vezes,<br />
estimulada ou reforçada pela mídia.<br />
Em novelas ou comerciais, que sempre<br />
ditam modas, o cabelo é mesmo algo<br />
muito destacado e valorizado. Para a<br />
NANCI ALVES<br />
psicóloga clínica e professora da PUC<br />
Minas, Ada Ferreira, moda significa<br />
seguir a tendência. “Agora é a vez dos<br />
cabelos lisos, mas se de uma hora para<br />
outra a mídia apresentar cabelos crespos<br />
como a sensação do momento, pode<br />
ser que pessoas que hoje tenham cabelos<br />
lisos, busquem modificá-lo para<br />
ficar na moda. Todas querem se sentir<br />
bem. Para a mulher, o cabelo representa<br />
a sensualidade, a feminilidade. Ter um<br />
cabelo bonito e bem cuidado é muito<br />
importante para a autoestima”, diz.<br />
Porém, na própria mídia que dita<br />
modas, a valorização do cabelo, às<br />
vezes, carrega uma discriminação contra<br />
quem está fora do padrão exigido. A<br />
professora Carolina dos Santos de Oliveira,<br />
em sua tese de mestrado, realizou<br />
uma análise crítica do discurso da<br />
revista adolescente Atrevida, enfocando<br />
a imagem de adolescentes negras na<br />
publicação. “Nos exemplares avaliados<br />
do período do recorte 2001 a 2005<br />
pode-se perceber uma incipiente inclusão<br />
das imagens de adolescentes negras,<br />
no entanto ainda no lugar de quem<br />
precisa ser moldado, modificado e domado,<br />
sendo o cabelo uma característica<br />
muito explorada, por ser um sinal diacrítico<br />
marcadamente racial”, afirma.<br />
Na sua avaliação, o Brasil precisa<br />
de iniciativas de educação libertária<br />
para amenizar essa bagagem da “boa<br />
aparência” imposta às mulheres. “A sociedade<br />
não pode alimentar essa indústria<br />
que causa sofrimentos e impõe<br />
uma doma ao corpo feminino e com<br />
mais imperatividade ao corpo feminino<br />
negro”. Porém, Carolina Oliveira acredita<br />
que a escola não pode ser a única<br />
responsabilizada por esta mudança.<br />
“Entendo a escola, da forma como ela<br />
se configura hoje, como uma reprodutora<br />
da sociedade, com pouco ou ne-<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
109<br />
nhum poder transformador, as próprias<br />
professoras e professores com suas<br />
próprias demandas, dúvidas, necessidades...<br />
penso que a carga de responsabilidade<br />
da escola por promover mudanças<br />
também precisa ser diminuída.<br />
Entendo a educação como algo maior<br />
que apenas a escolarização e as revistas<br />
como espaço educativo, assim como<br />
tantos outros como: igrejas, clubes, televisão,<br />
movimentos sociais, sindicatos,<br />
etc...”, acrescenta.<br />
Perda do cabelo<br />
O cabelo faz parte da nossa identidade<br />
e reflete, portanto, nossas transformações<br />
internas. Assim, se estamos<br />
com problemas hormonais, emocionais<br />
ou de outra ordem, muitas vezes, o<br />
cabelo denuncia, podendo ficar mais<br />
seco, rebelde ou até sofrer quedas − o<br />
que causa, ainda, maior desconforto<br />
nas mulheres.<br />
De acordo com a psicóloga Ada<br />
Ferreira, perder o cabelo interfere na<br />
autoestima. Segundo ela, muitas mulheres<br />
podem desistir dos contatos so-<br />
ciais, familiares, profissionais ao enfrentarem<br />
as mudanças com a perda<br />
parcial ou total de cabelo ocasionada<br />
pela idade, por hereditariedade, por<br />
um tratamento de saúde ou mesmo por<br />
um tratamento de beleza”, afirma.<br />
A reação de cada mulher vai depender<br />
do que ela está vivendo e de<br />
como consegue enfrentar sua realidade.<br />
“Já atendi pacientes que estavam no<br />
pré-operatório de uma cirurgia neurológica<br />
e sofriam muito por pensar<br />
na possibilidade de acordar após a cirurgia<br />
e não ter mais o cabelo. Outras,<br />
por saberem da mudança, se preparam<br />
antes, cortando o cabelo bem curto ou<br />
até mesmo raspando a cabeça”, conta<br />
Ada Ferreira, que considera normal<br />
esse sofrimento.<br />
“Vivemos numa sociedade que cultua<br />
o cabelo como algo importante; a indústria<br />
de cosméticos lança a cada dia<br />
novos produtos e nós, consumidores,<br />
queremos estar na moda. Então, perder<br />
os cabelos é sinal também de impotência,<br />
ainda mais se a perda for ocasionada<br />
por um tratamento de saúde.<br />
Para enfrentar este problema, a mulher<br />
precisa trabalhar sua autoestima, buscando<br />
um suporte psicoterápico, lidando<br />
com as questões emocionais que podem<br />
surgir e conversando também com as<br />
pessoas que estão mais próximas. Claro<br />
que cada mulher vai enfrentar sua mudança<br />
de uma forma, não é possível<br />
esperar que todas enfrentem da mesma<br />
maneira. Mas, estar aberta para falar<br />
dos medos, angústias, anseios já é um<br />
caminho para o enfrentamento e a<br />
aceitação”, avalia.<br />
Foi o que fez S.M, de 43 anos, ao<br />
longo de um tratamento de quatro<br />
anos, à espera de uma transfusão de<br />
medula, feita recentemente, com sucesso.<br />
Segundo ela, foram várias as experiências<br />
vivenciadas, incluindo a queda<br />
de cabelo por duas vezes. “Raspei o cabelo<br />
antes que ele começasse a cair,<br />
pois é horrível a sensação. Tive momentos<br />
de não querer aparecer em público,<br />
outros de curtir o uso de chapéu,<br />
lenços variados e até andar com a<br />
careca de fora. Tudo dependia do meu<br />
humor no dia. Não foi fácil e posso<br />
dizer que além de buscar fortalecer a<br />
espiritualidade e a alimentação, a psicoterapia<br />
foi fundamental para me dar<br />
um suporte nesta fase,” conta.<br />
“Raspei o cabelo<br />
antes que ele<br />
começasse a cair,<br />
pois é horrível a<br />
sensação”<br />
LUCIANA CAPIBERIBE<br />
Rosinete Rodrigues, Maria do Socorro, Deputada Janete Capiberibe e Tereza<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
110<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Ronizia corta seu cabelo para doar às vítimas de escalpelamento.<br />
Depois de dois anos fazendo a primeira<br />
fase de quimioterapia, seus<br />
cabelos nasceram brancos. “Tomei um<br />
susto, mas depois foi voltando ao normal.<br />
Teve uma fase muito engraçada,<br />
pois saía de peruca e via as pessoas<br />
com cabelos naturais iguais aos meus.<br />
Era a tal chapinha. Aí, vi que eu não<br />
estava tão estranha assim. Aliás, algumas<br />
vezes teve gente que me<br />
perguntou qual tinta eu usava nos<br />
meus cabelos. Eu me divertia com isso<br />
e acabei usando por um bom tempo,<br />
sem grilos, pois vi que o natural das<br />
mulheres era tão artificial quanto a<br />
minha peruca”, lembra.<br />
Solidariedade feminina<br />
Perder os cabelos de forma definitiva,<br />
por um acidente, é um trauma vivido<br />
por centenas de meninas e<br />
mulheres das regiões ribeirinhas da<br />
Amazônia. São as vítimas de escalpelamento,<br />
a perda do couro ca be -<br />
ludo, que acontece dentro de pequenas<br />
embarcações ribeirinhas. Estes barcos<br />
navegam com um eixo, que liga a hélice<br />
ao motor, exposto, sem proteção, facilitando,<br />
que em um movimento ines-<br />
perado, puxem os cabelos compridos.<br />
A forte rotação do motor arranca todo<br />
ou parte do couro cabeludo, inclusive<br />
sobrancelhas, orelhas e, dependendo<br />
do caso, grande parte da pele do rosto<br />
e do pescoço. Um grave pro ble -<br />
ma que causa deformações e, em alguns<br />
casos, até a morte. As principais<br />
vítimas são meninas e adolescentes, a<br />
maioria entre os 5 e os 16 anos, seguido<br />
de mulheres dos 17 aos 30 anos<br />
e, por último, acima de 31 anos.<br />
Uma das das vítimas, Rosinete Rodrigues,<br />
sofreu o acidente quando tinha<br />
20 anos, no Pará. Foram dois anos de<br />
cicatrização e muitas dificuldades para<br />
conviver com as pessoas, pois tinha inclusive<br />
vergonha. “Quem vive isso, passa<br />
a se isolar, com medo da discriminação<br />
e do preconceito”, afirma Rosinete que,<br />
ao longo do tempo, descobriu que poderia<br />
recorrer a políticas públicas. Assim,<br />
há mais de 10 anos, ela e um pequeno<br />
grupo de mulheres com a mesma história<br />
de vida começaram a buscar ajuda para<br />
todas. Nasceu, em 2007, a Associação<br />
de Mulheres Ribeirinhas Vítimas de Escalpelamento<br />
da Amazônia, que já conseguiu<br />
beneficiar 119 pessoas acidentadas.<br />
Rosinete já foi presidente da Associação,<br />
que oferece às mulheres apoio<br />
psicológico e profissional, dentro de<br />
um processo de ressocialização. Com<br />
apoio da Associação, me formarei, este<br />
ano, em Pedagogia. Ela oferece também<br />
cursos como corte e costura, artesanato<br />
e produção de perucas como incentivo<br />
à geração de renda e à nossa independência<br />
econômica", conta. Segundo Rosinete,<br />
os cabelos recebidos de doações<br />
viram perucas não só para as vítimas<br />
de escalpelamento, mas também para<br />
mulheres em tratamento de câncer.<br />
A antropóloga Maria Ronízia Gonçalves,<br />
de Rio Branco (AC), deixou<br />
seus cabelos crescerem por um ano<br />
para fazer a doação, após se inteirar<br />
dessa realidade. “Fiquei impressionada<br />
com a história que ouvi. Pesquisei na<br />
internet, li várias matérias sobre o assunto<br />
e vi o sofrimento e a reação<br />
dessas mulheres, se organizando e superando<br />
suas dificuldades. Deixei meu<br />
cabelo crescer e, quando tive a oportunidade<br />
de ir à Macapá, a trabalho,<br />
fiz a doação em um salão que faz este<br />
trabalho voluntariamente. Fiquei feliz<br />
por perceber que há uma mobilização<br />
da sociedade local em torno da questão",<br />
conta Ronízia Gonçalves que incentivou<br />
outras pessoas, por meio das redes<br />
sociais.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
111<br />
Reconhecendo que nunca teve muito<br />
apego ao cabelo, porque sabe que<br />
cresce de novo, Ronízia imagina que se<br />
o perdesse sentiria muita falta. “Acredito<br />
que também teria vergonha de sair de<br />
casa, pois sei que o cabelo é um<br />
símbolo da vaidade feminina. Então,<br />
colocando-me no lugar das mulheres<br />
que perdem, de forma tão violenta, o<br />
couro cabeludo. Me doeu na alma só de<br />
imaginar o sofrimento delas”, relata.<br />
O que chamou a atenção de Ronízia<br />
Gonçalves foi o fato das mulheres se<br />
organizarem e, a partir de algo<br />
ruim, construirem uma nova realidade<br />
para elas e suas famílias. “Elas não<br />
permaneceram como vítimas, elas reagiram!<br />
Muitas delas ganharam novas<br />
profissões, superaram o trauma, fizeram<br />
cirurgias reparadoras da face, conseguiram<br />
leis que tratam da questão. Enfim,<br />
tudo isso me motivou a doar os<br />
meus cabelos”, diz.<br />
O pedido de solidariedade que chegou<br />
aos ouvidos e ao coração da antropóloga<br />
de Rio Branco saiu de<br />
Brasília, na voz da jornalista Mara Régia<br />
Di Perna(foto), que há 34 anos é responsável<br />
pelo Viva Maria, programa<br />
pioneiro na mobilização das mulheres<br />
na luta por seus direitos, e, há mais de<br />
20 anos, navega os rios da Amazônia<br />
nas ondas da rádio Nacional com o Programa<br />
Natureza Viva. “Minha militância<br />
por essa causa começou em 2007,<br />
quando fiz matéria sobre uma mobilização<br />
no Congresso Nacional, em prol<br />
da lei que a deputada Janete Capiberibe<br />
(PSB/AP) estava querendo aprovar<br />
para evitar que os acidentes continuassem<br />
vitimando o povo das águas. Felizmente,<br />
hoje, a lei 11970/2009, que<br />
obriga a instalação de uma proteção<br />
sobre o eixo, o motor e as partes móveis<br />
das embarcações, é uma realidade.<br />
Mas, como apenas a lei não conseguiu<br />
impedir que novos acidentes continuassem<br />
acontecendo, por ocasião do primeiro<br />
mutirão de cirurgias reparadoras<br />
que aconteceu, em 2012, em Macapá,<br />
resolvemos criar uma campanha de mobilização<br />
em torno do apoio às vítimas<br />
que precisavam não só de cabelos para<br />
a produção de perucas, mas também de<br />
máquinas de costura capazes de dar<br />
conta do trabalho”, conta.<br />
Segundo Mara Régia, a resposta<br />
diante da campanha vem de todos os<br />
cantos e o rádio tem sido fundamental,<br />
pois consegue alcançar as pessoas que<br />
se encontram em situação de isolamento.<br />
“Sempre recebemos doações<br />
de cabelos. O trabalho da cabeleireira<br />
Maria Vanilza, que tem um salão de<br />
beleza no Guará, cidade de Brasília, e<br />
faz os cortes de graça quando o objetivo<br />
é doar os cabelos para as vítimas do<br />
acidente, também tem ajudado muito.<br />
Em dezembro, estive em Macapá para<br />
a entrega de uma mecha de cabelos<br />
de um metro e meio de comprimento<br />
doada por uma jovem de 14 anos que<br />
nunca havia cortado os cabelos. Sem<br />
dúvida, o caso dessa “Rapunzel” e´ o<br />
maior indicador de sucesso de nossa<br />
campanha”, afirma.<br />
Para a jornalista, “como as digitais,<br />
o cabelo é traço de identidade e, ao<br />
mesmo tempo, traduz, melhor do que<br />
as palavras, nosso jeito de ser e nossa<br />
personalidade. Por isso, tem uma relação<br />
tão direta com a nossa autoestima.<br />
Sem falar da festa que faz no nosso<br />
imaginário, desde os tempos de Sansão<br />
e Dalila. Arriscaria dizer que ele é o espelho<br />
da alma da gente. Tanto assim<br />
que, em prosa e verso, se faz presente<br />
na nossa MPB como um tema recorrente”,<br />
completa Mara Régia.ø<br />
AGÊNCIA BRASIL<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
112
113<br />
PERFIL<br />
<strong>POR</strong> POLLYANA BITENCOURT<br />
foto MARK FLOREST<br />
Dora Alves<br />
Uma vida dedicada a elevar a autoestima através dos cabelos<br />
“Não abra mão dos seus sonhos,<br />
eles podem se tornar realidade, é só a<br />
gente ter persistência e determinação”,<br />
recomenda a cabeleireira Dora Alves.<br />
É com um brilho de esperança nos<br />
olhos e uma crença de que tudo é possível,<br />
que ela conta a sua história, enquanto<br />
arruma o seu salão-escola, no<br />
bairro Maria Goretti, em Belo Horizonte.<br />
Nascida na periferia da capital mineira,<br />
ela aprendeu desde pequena a<br />
lidar com as adversidades da pobreza.<br />
O pai morreu quando ela tinha apenas<br />
oito anos. A mãe saía para trabalhar e<br />
como filha mais velha, cuidava dos<br />
quatro irmãos. “Eu tenho uma origem<br />
humilde, cresci numa favela lá no bairro<br />
1º de Maio, perto da Praça Troca<br />
Égua, um lugar sofrido demais da conta,<br />
mas dentro de mim, sempre tive o desejo<br />
de mudar o rumo da minha história”,<br />
conta.<br />
Atualmente, Dora tem uma vida dedicada<br />
ao seu salão de beleza, especializado<br />
em cabelos afro e também coordena<br />
um projeto onde ensina pessoas<br />
carentes a profissão de cabeleireiro/a.<br />
Os primeiros passos na profissão<br />
foram ensinados pela mãe. “Foi ela<br />
quem me ensinou a fazer as tranças,<br />
os topetes e penteados no nosso cabelo’,<br />
conta. Uma experiência marcante<br />
aos oito anos determinou seu futuro.<br />
“Eu passei pasta [creme alisante à base<br />
de soda cáustica] no meu cabelo e ele<br />
caiu. Toda negra sonha em balançar o<br />
cabelo e eu não tinha consciência da<br />
minha negritude ainda”, justifica. A<br />
partir daí, ela começou as suas pesquisas<br />
sobre cremes para deixar os cabelos<br />
bonitos. “Eu ia lá no fundo do quintal,<br />
apanhava ora pro nobis, folha de abacate,<br />
entre outras experiências para<br />
tornar mais prático o cuidado com o<br />
cabelo”, diz.<br />
Todo o conhecimento adquirido<br />
hoje é fruto dessas pesquisas. Autodidata,<br />
ela aprendeu na prática e hoje<br />
tem até uma linha de produtos de<br />
beleza que leva o seu nome. “Eu fazia<br />
teste no meu cabelo e no dos meus filhos,<br />
depois passei para os vizinhos e<br />
comecei a ficar conhecida no bairro”,<br />
descreve.<br />
Aos 11 anos, ela conheceu aquele<br />
que viria a ser o pai de seus filhos. Casou-se<br />
aos 16 e teve seus dois filhos,<br />
que foram criados dentro do salão de<br />
beleza. “A minha filha quis aprender a<br />
profissão muito novinha, o meu filho<br />
também aprendeu e aí eles saíam comigo<br />
para ensinar o ofício nas escolas, nos<br />
abrigos e nos morros da cidade”, conta.<br />
Solidariedade<br />
O trabalho social sempre fez parte<br />
da vida de Dora, uma mulher forte e<br />
destemida, que possui um jeito único<br />
de lidar com as pessoas ao seu redor.<br />
Foi ela quem deu o primeiro emprego<br />
para vários meninos e meninas na primeira<br />
banca de revistas que existiu em<br />
sua região. Junto com o marido ela<br />
também abriu uma mercearia, mas o<br />
negócio não deu certo. “Quebrei de<br />
primeira porque quando chegavam<br />
pessoas necessitadas, meu coração partia<br />
e eu deixava a pessoa levar sem pagar”,<br />
afirma.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
114<br />
Esse desejo em ajudar tornou-se<br />
mais concreto, quando ela, em 2007,<br />
fundou a Associação Projeto Meninas<br />
de Dora. A iniciativa é fruto do trabalho<br />
voluntário feito por ela há mais de<br />
40 anos. “Eu fui sonhando e não abri<br />
mão do meu sonho, foi acontecendo...”,<br />
emociona-se ao contar. O<br />
“Meninas de Dora”, como é conhecido,<br />
prepara jovens e adultos para<br />
exercerem a sua condição de sujeito,<br />
gerando renda a partir do seu trabalho.<br />
São ofertados cursos de cabeleireiro,<br />
oficinas para o cabelo afro, cursos de<br />
cosméticos e outros. Sempre com o<br />
objetivo de elevar a autoestima dessas<br />
pessoas, para que elas acreditem no<br />
potencial de construir uma vida de<br />
sucesso.<br />
Reconhecimento<br />
Em 2012, o trabalho dela foi reconhecido<br />
nacionalmente. O projeto foi<br />
eleito a melhor ação social do estado<br />
de Minas Gerais e concorreu à melhor<br />
do Brasil. Dora acredita que, assim<br />
como ela mudou o rumo de sua vida,<br />
ela tem a missão de mudar o destino<br />
de vários meninos e meninas que cruzam<br />
o seu caminho. “Acredito que,<br />
assim como eu, uma mulher negra de<br />
origem humilde que construiu uma história<br />
de vitórias, qualquer um também<br />
pode alcançar seus sonhos”.<br />
Mas nem tudo são flores na vida<br />
desta guerreira. Para poder manter o<br />
projeto social, ela conta, não só com a<br />
renda do salão, mas também com a<br />
ajuda de amigos e pessoas solidárias.<br />
“Já fiz pirulito pra vender, trabalhei<br />
em casa de família, é preciso muito esforço<br />
pra gente poder manter essa trajetória”,<br />
esclarece.<br />
Apesar de toda a ajuda que recebe,<br />
ela acredita que o projeto precisa de<br />
um movimento para obter mais recursos<br />
e poder atender mais gente. Atualmente<br />
mais de 300 pessoas estão inscritas<br />
para os cursos, mas o espaço físico<br />
atual só permite que 10 pessoas tenham<br />
aulas, com isso eles trabalham apenas<br />
com cinco turmas. A iniciativa espera<br />
conseguir um espaço maior, onde eles<br />
possam ampliar as turmas e atender a<br />
todos. A dedicação ao projeto e a vontade<br />
de ensinar é tanta que, apesar<br />
das dificuldades enfrentadas, Dora não<br />
pensa em desistir.<br />
Grande incentivadora da cultura negra,<br />
além do trabalho no projeto, Dora<br />
também visita escolas e faz palestras.<br />
A iniciativa nas instituições de ensino<br />
começou antes mesmo da Lei 10.639,<br />
que decretou a obrigatoriedade do ensino<br />
da Cultura Afro-Brasileira no<br />
ensino fundamental e médio. “Hoje,<br />
eu vou às escolas e falo com os meninos<br />
‘vocês têm computador, livros, material<br />
e tudo que precisam, então, respeitem<br />
os professores’. Para ela, o trabalho<br />
dos/as professores/as é fundamental<br />
para a formação das pessoas. “Eu<br />
acho que a classe teria que ser mais<br />
bem paga, porque o médico, o cabeleireiro,<br />
o advogado, todos dependem<br />
do professor”, acredita.<br />
“Eu acho que a<br />
mulher tem que ser<br />
livre, se ela quer ter<br />
cabelo black, ótimo,<br />
agora se quer um<br />
cabelo liso, que<br />
tenha”.<br />
Ela comemora os resultados positivos<br />
do seu trabalho. “Eu converso<br />
muito com os meninos. Eu tenho<br />
resultados bacanas de trabalhos que a<br />
gente desenvolve nas escolas e, a partir<br />
daquele momento, os jovens<br />
mudam de postura”.<br />
Incentivadora da cultura afro, Dora<br />
acredita na liberdade da mulher em<br />
escolher o cabelo que quer ter. “Eu<br />
acho que a mulher tem que ser livre, se<br />
ela quer ter cabelo black, ótimo, agora,<br />
se quer um cabelo liso, que tenha um<br />
cabelo assim por opção e não por<br />
obrigação”.<br />
Referência como cabeleireira em<br />
Belo Horizonte e no país, Dora já fez<br />
o cabelo da atriz Débora Falabella no<br />
espetáculo Noites Brancas. Trabalhou<br />
também na produção dos atores do filme<br />
Pequenas Histórias, que teve a<br />
participação da atriz Patrícia Pillar,<br />
além dos filmes Batismo de Sangue e<br />
Uma onda no ar.<br />
Hoje ela tem um quadro permanente<br />
no Memorial de Minas do Vale, na<br />
Praça da Liberdade. Foi eleita cidadã<br />
do mundo em 2010, escolhida entre<br />
as cinco melhores cabeleireiras de<br />
Minas na Feira Mineira da Beleza em<br />
1999 e coleciona prêmios e homenagens<br />
por todo o país.<br />
Contudo, para Dora, o seu maior<br />
reconhecimento vem dos meninos e<br />
meninas que ela ajuda. “Eu fico muito<br />
emocionada, patrimônio pra mim é<br />
isso, quando ouço ‘eu quero ser igual<br />
a você, aprender a profissão, ter um<br />
cabelo igual ao seu’, então isso pra<br />
mim é fantástico”, declara.<br />
Hoje, aos 60 anos de idade, Dora<br />
diz que quer projetar uma nova fase<br />
em sua vida. “Quero começar um novo<br />
capítulo na minha história. Sou a menina<br />
negra que sonhei ser”, conclui.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
115<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
INTERNET
117<br />
LITERATURA<br />
por DÉBORA JUNQUEIRA<br />
Uma idealista do lixo<br />
A obra de Carolina Maria de Jesus revela a condição e força<br />
das mulheres negras relegadas por uma sociedade elitista<br />
Quando fazia uma reportagem na<br />
favela Canindé, que havia em São Paulo,<br />
na década de 50, o jornalista Audálio<br />
Dantas se deparou com textos de uma<br />
catadora de papel e não teve dúvida<br />
de que aqueles manuscritos precisavam<br />
ser conhecidos. O texto escrito em<br />
letra de forma em cadernos reutilizados,<br />
era a obra Quarto de Despejo – Diário<br />
de uma favelada, da escritora Carolina<br />
Maria de Jesus. Mesmo tendo escrito<br />
um best seller traduzido em 13 idiomas,<br />
além de outras obras, a escritora ainda<br />
é pouco (re)conhecida.<br />
“Nem escritor transfigurador poderia<br />
arrancar tanta beleza triste daquela miséria<br />
toda. Nem repórter de exatidão<br />
poderia retratar tudo aquilo no seco<br />
escrever. Foi por isso que eu disse<br />
assim para Carolina Maria de Jesus, lá<br />
mesmo, na horinha que lia trechos de<br />
seu diário: eu prometo que tudo isto<br />
que você escreveu sairá num livro”,<br />
escreveu Audálio Dantas, na apresentação<br />
de Quarto de despejo, de 1960.<br />
Segundo ele, não foi preciso ler mais<br />
de três folhas para ver que havia en-<br />
contrado algo de muito valor. Por dois<br />
anos, acompanhou Carolina na edição<br />
de seus livros e guarda em casa alguns<br />
de seus cadernos, para quem ainda<br />
duvide da autoria.<br />
Mineira de Sacramento, negra e<br />
semianalfabeta, Carolina de Jesus mudou-se<br />
para São Paulo aos 17 anos.<br />
Foi empregada doméstica, teve três filhos,<br />
mas manteve-se solteira. Quando<br />
foi descoberta como escritora, em<br />
1958, tinha 43 anos. Morreu pobre e<br />
praticamente esquecida, em 1977. Em<br />
14 de março de 2014 foi comemorado<br />
o seu centenário de vida.<br />
“Nem escritor<br />
transfigurador<br />
poderia arrancar<br />
tanta beleza triste<br />
daquela miséria<br />
toda”.<br />
“A experiência e a vivência da autora<br />
como mulher, negra e favelada é revelada<br />
todo o tempo em seus textos: o racismo<br />
que sofria e via outros sofrerem; a condição<br />
de mulher e pobre, mãe solteira<br />
de três filhos, que sempre era relegada<br />
pela sociedade machista e elitista da<br />
época e de ainda hoje”, opina a professora<br />
Aline Arruda, pesquisadora da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais. (Leia<br />
a entrevista).<br />
Em cadernos encontrados no lixo,<br />
ela relatava seu cotidiano. Além de<br />
Quarto de Despejo, a autora publicou<br />
Casa de Alvenaria, Pedaços de Fome<br />
e Provérbios. Postumamente, em 1982,<br />
foi lançado na França, Diário de Bitita,<br />
que chegou ao Brasil em 1986, e ainda<br />
há manuscritos inéditos na Biblioteca<br />
Nacional, no Rio de Janeiro, um tesouro<br />
para a literatura e pesquisadores. Muitos<br />
deles precisam de restauração, para<br />
que essa vasta obra desconhecida não<br />
se perca. A obra completa de Carolina<br />
está em 58 cadernos que somam 5.000<br />
páginas de texto, sendo sete romances,<br />
60 textos curtos e 100 poemas, além<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
118<br />
de quatro peças de teatro e de 12 letras<br />
para marchas de Carnaval.<br />
Raffaela Andréa Fernandez desenvolve<br />
uma pesquisa de doutorado na<br />
Unicamp com base nos manuscritos de<br />
Carolina. Segundo ela, a história da<br />
autora representa milhares de mulheres<br />
negras, faveladas, mães solteiras, que<br />
ainda encontram poesia no dia a dia.<br />
Em entrevista concedida à revista Caros<br />
Amigos (nº 206-2014) ela avalia que<br />
Carolina de Jesus revela uma outra história,<br />
‘a história menor’ que precisa<br />
ouvida. “Os problemas sociais delineados<br />
por Carolina estão na sua temática, na<br />
materialidade do papel escrito de seus<br />
cadernos reutilizados, encardidos, tirados<br />
das latas de lixo, a escrita ‘deficiente’<br />
que não corresponde aos intentos da<br />
gramática institucional de uma sociedade<br />
que não lhe deu a oportunidade de<br />
avançar e, mesmo com todas essas defasagens,<br />
essa grande autora nos mostra<br />
que aquele que se inquieta diante das<br />
‘atrocidades sociais’ jamais se manterá<br />
calado”, afirma.<br />
A pesquisadora em literatura, Estela<br />
Santos, faz uma crítica sobre a escritora,<br />
em artigo publicado no blog Homo Literatus<br />
(www.homoliteratus.com). “Alguns<br />
escritores já escreveram sobre o<br />
cotidiano miserável das favelas, mas a<br />
grande maioria o fez de uma perspectiva<br />
de fora, isto é, sem viver, de fato em<br />
uma favela. Em Quarto de Despejo temos<br />
uma perspectiva diferente: quem<br />
escreve é alguém que viveu na favela: a<br />
perspectiva é de Carolina Maria de<br />
Jesus, moradora da, agora, antiga favela<br />
do Canindé de São Paulo, uma catadora<br />
de papel e de outras sucatas, uma<br />
mulher negra, pobre, mãe, escritora e<br />
favelada”.<br />
Segundo ela, “o diário de Carolina é<br />
uma espécie de literatura-verdade, que<br />
Manuscritos inéditos da escritora encontram-se na<br />
Biblioteca Naciona, no Rio de Janeiro.<br />
relata a cruel e triste vida na favela. Sua<br />
linguagem é, ao mesmo tempo, simples<br />
e rebuscada: simples pela forma que escreveu<br />
algumas palavras, aproximandose<br />
da linguagem oral (como ‘iducada’) e<br />
rebuscada pelas palavras altamente cultas<br />
que utiliza (como ‘funestas’). Seu diário<br />
comove leitores devido a sensibilidade<br />
como conta os acontecimentos durante<br />
os anos que morou em Canindé. Percebemos<br />
que tudo que é narrado, Carolina<br />
sentiu, viu, vivenciou”.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
119<br />
ENTREVISTA<br />
ALINE ARRUDA<br />
Pesquisadora<br />
acredita que<br />
Carolina tinha um<br />
projeto literário<br />
A professora do Instituto Federal<br />
Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS)<br />
Aline Arruda, doutoranda em Literatura<br />
Brasileira na Faculdade de Letras da<br />
Universidade Federal de Minas Gerais<br />
(UFMG), desenvolve estudos sobre Carolina<br />
Maria de Jesus e prepara uma<br />
edição comentada de um romance inédito<br />
dela. Ela acredita que, pelo fato<br />
de ter escrito obras de vários gêneros,<br />
a escritora tinha um projeto literário, é<br />
o que a sua tese vai tentar provar.<br />
Como você despertou interesse<br />
em estudar os escritos de Carolina?<br />
Eu já havia lido o livro dela mais famoso,<br />
Quarto de Despejo, quando<br />
ainda era adolescente e fiquei muito<br />
impressionada com ele, com a história<br />
de Carolina, com os relatos descritos<br />
POLLYANA BITENCOURT<br />
em seu diário. Depois, no mestrado,<br />
comecei a me interessar por escritoras<br />
negras, estudei uma contemporânea<br />
de Carolina, Conceição Evaristo, também<br />
mineira, que sempre me disse ser<br />
influenciada pela escritora de Sacramento.<br />
Dessa forma retomei meus estudos<br />
sobre ela no final do mestrado e<br />
ao descobrir seus inéditos, na Biblioteca<br />
Nacional, decidi fazer meu projeto de<br />
doutorado sobre ela.<br />
Porque ela ainda é pouco estudada<br />
na academia? Qual crítica predomina<br />
sobre sua obra?<br />
Apesar da abertura acadêmica sobre<br />
as obras de autores ditos “marginais”<br />
ou pertencentes à chamada “minoria”,<br />
ainda há muito preconceito sobre eles.<br />
No caso de Carolina, ela estudou menos<br />
de dois anos na escola, morava em<br />
uma favela, era mulher negra, ou seja,<br />
reúne várias condições “marginais” e<br />
por isso muitos não acreditam que o<br />
que ela escreveu é literatura. Valorizam<br />
apenas o que chamamos na academia<br />
de cânone literário, autores clássicos.<br />
E desde que Quarto de Despejo foi<br />
publicado, em 1960, há quem duvide<br />
que foi Carolina de Jesus quem o escreveu,<br />
muitos disseram na época e<br />
mesmo depois, mais recentemente,<br />
que o jornalista Audálio Dantas, considerado<br />
o “descobridor” dela, havia escrito<br />
o diário, o que é uma calúnia,<br />
uma bobagem, pois os manuscritos estão<br />
aí para quem quiser comprovar. É<br />
realmente inesperado que alguém como<br />
Carolina faça literatura e publique livros.<br />
Como o fato de ela ser mulher,<br />
negra e favelada reflete em sua obra?<br />
No caso dos diários e da autobiografia,<br />
esses aspectos estão entranhados,<br />
a experiência e a vivência da autora<br />
como mulher, negra e favelada é revelada<br />
todo o tempo em seus textos: o<br />
racismo que sofria e via outros sofrerem;<br />
a condição de mulher e pobre, mãe<br />
solteira de três filhos, que sempre era<br />
relegada pela sociedade machista e elitista<br />
da época e de ainda hoje. Tudo<br />
isso foi relatado em seus diários e<br />
textos autobiográficos.<br />
Porque o primeiro livro Quarto<br />
de Despejo vendeu mais de um milhão<br />
de cópias em todo o mundo, enquanto<br />
o segundo chegou apenas a 10 mil<br />
exemplares? Houve um sensacionalismo<br />
em função da sua origem?<br />
Há muitas respostas possíveis para<br />
esse esquecimento da autora. Acredito<br />
que houve sim um sensacionalismo em<br />
torno da “favelada que escreveu um<br />
diário”, mas também uma curiosidade<br />
em torno de um livro que conta o dia a<br />
dia da favela “de dentro”, de um ponto<br />
de vista interno. Houve uma reação<br />
impertinente da imprensa da época<br />
também e talvez a inocência e a inexperiência<br />
de Carolina diante do sucesso<br />
súbito, além de sua postura, pessoal e<br />
na escrita, crítica e franca, que certamente<br />
não agradou a muitos, especialmente<br />
no contexto político da época.<br />
Qual o fato da vida dela ou de<br />
sua obra chama mais sua atenção?<br />
Muitos fatos me chamam a atenção,<br />
mas principalmente o de que uma mulher<br />
com origem humilde e uma vida<br />
tão difícil tenha escrito uma obra extensa<br />
que abrange vários gêneros como<br />
diário, teatro, romance, conto, poesia,<br />
provérbios, autobiografia... é admirável<br />
a dedicação e a consciência que ela tinha.<br />
Além de escritora, era dançarina<br />
e compositora, seus sambas também<br />
refletem sua vida.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
120<br />
Memórias do<br />
jornalista Audálio<br />
Dantas<br />
Para o jornalista Audálio Dantas, a<br />
catadora Carolina sempre quis ser descoberta<br />
e reconhecida como uma escritora.<br />
Ele acredita que, no primeiro<br />
contato, ela imaginava que ele era um<br />
repórter e queria chamar atenção.<br />
“Quando estava na favela Canindé<br />
para cobrir a inauguração de um playground,<br />
me deparei com uma mulher<br />
gritando para os adultos que usavam<br />
os brinquedos, dizendo que ia colocar<br />
o nome deles em seu livro. A minha<br />
curiosidade de repórter fez com que<br />
eu fosse até a casa dela e visse o seu<br />
diário iniciado em 1955. Era uma descrição<br />
muito forte e verdadeira. Nenhum<br />
repórter conseguiria escrever como<br />
quem vivencia aquela situação de pobreza,<br />
de dentro pra fora”, conta.<br />
O jornalista propôs que o jornal publicasse<br />
alguns trechos do manuscrito<br />
que ele selecionou sem mexer na forma,<br />
somente fazendo uma introdução. “Essa<br />
foi a reportagem mais importante da<br />
minha vida, afirma. Mais tarde ele descobriu<br />
que, antes de encontrar-se com<br />
Carolina, no próprio jornal Folha de S.<br />
Paulo onde trabalhava, havia uma pequena<br />
matéria sobre ela, intitulada poetiza<br />
negra. “Parece que aquelas poucas linhas<br />
haviam sido publicadas para o repórter<br />
se livrar da insistência dela para a publicação<br />
de suas poesias”, relembra.<br />
Juntamente com o sucesso da publicação,<br />
vieram também as críticas.<br />
“Ela tinha vocação, lia muito. Sendo<br />
semianalfabeta – estudou somente dois<br />
anos – assimilava as coisas do jeito<br />
dela. Dona de uma personalidade forte,<br />
sabia que tinha valor”, revela. Segundo<br />
Audálio, Carolina se considerava uma<br />
escritora, mas não possuía o instrumental<br />
cultural para escrever dentro<br />
das normas e isso gerava críticas.<br />
Segundo ele, a escritora faleceu<br />
frustrada pelo sucesso de seu primeiro<br />
livro não ter se repetido nos demais.<br />
“Sua personalidade difícil, diferenciada<br />
e excepcional criava certos problemas<br />
pra ela. O que também me impediu de<br />
ajudá-la mais”, desabafa o jornalista,<br />
hoje com 82 anos.<br />
INTERNET<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
121<br />
“… As oito e meia da noite<br />
eu ja estava na favela<br />
respirando o odor dos<br />
excrementos que mescla<br />
com o barro podre. Quando<br />
estou na cidade tenho a<br />
impressão que estou na<br />
sala de visita com seus<br />
lustres de cristais, seus<br />
tapetes de viludos,<br />
almofadas de sitim. E<br />
quando estou na favela<br />
tenha a impressão que sou<br />
um objeto fora do uso,<br />
digno de estar num quarto<br />
de despejo”. (Quarto de<br />
Despejo, 2007, p.38).<br />
"O livro... me fascina.<br />
Eu fui criada no mundo.<br />
Sem orientação materna.<br />
Mas os livros guiou os meus<br />
pensamentos. Evitando os<br />
abismos que encontramos<br />
na vida. Bendita as horas<br />
que passei lendo. Cheguei a<br />
conclusão que é o pobre<br />
quem deve ler. Porque o<br />
livro, é a bussola que ha de<br />
orientar o homem no porvir<br />
(...)" (Meu estranho diário,<br />
1996, p. 167).<br />
"O homem que cultiva o ódio<br />
racial é um imbecil" – (Provérbios.<br />
São Paulo: Editor Áquila,<br />
1963).<br />
Trechos de obras da escritora<br />
Carolina de Jesus<br />
Comentários<br />
críticos sobre obras<br />
de Carolina<br />
Fugindo aos cânones do que se considera<br />
“literatura” em meios acadêmicos,<br />
Quarto de Despejo é mais do que um<br />
simples depoimento; trata-se de uma<br />
obra em que, a despeito das condições<br />
materiais e culturais de sua autora, constrói-se<br />
uma forte e única representação<br />
da dinâmica social urbana, vista pelo<br />
ângulo dos que são lançados à margem.<br />
Carolina Maria de Jesus escreve para<br />
denunciar a favela e para sair dela; escreve<br />
também para, diferenciando-se<br />
dos outros moradores, lutar contra o<br />
rebaixamento a que estão sujeitos os<br />
miseráveis, num momento em que se<br />
anuncia novo salto modernizador de<br />
São Paulo e do Brasil.<br />
Em Casa de Alvenaria, notam-se<br />
mais explicitamente as contradições da<br />
autora quanto ao que deseja para si<br />
mesma e para sua família. Também<br />
ficam patentes suas hesitações com relação<br />
aos anseios por reconhecimento<br />
público ou ao repúdio pelos mecanismos<br />
sociais que dificultam o trajeto<br />
profissional como escritora. Essa conjunção,<br />
por vezes discrepante, ajuda a<br />
entender as razões pelas quais essa<br />
obra é considerada pouco significativa<br />
e muito voltada para o trajeto instável<br />
de um indivíduo. Confinada à forma do<br />
diário, Carolina Maria de Jesus parece<br />
se sentir compelida a repetir uma fórmula,<br />
cujo efeito não tem a força de revelação<br />
de Quarto de Despejo. A<br />
figura da ex-favelada não desperta interesse,<br />
porque ela e sua obra são objeto<br />
de atenção apenas enquanto<br />
revelam a face negativa do desenvolvimentismo;<br />
já as oscilações ideológicas<br />
da mulher que, famosa, busca a atenção<br />
da imprensa e do público não trazem<br />
à época elementos que se julguem<br />
significativos.<br />
Diário de Bitita, publicado após<br />
a morte da autora, resgata a força literária<br />
da produção de Carolina Maria<br />
de Jesus. Trata-se de memórias da infância<br />
e da adolescência, em Sacramento<br />
e nas fazendas onde trabalha<br />
como colona, bem como de seus primeiros<br />
tempos em Franca. Nesta obra,<br />
os temas da injustiça social, da opressão,<br />
do preconceito contra os negros, dos<br />
abusos dos poderosos são apresentados<br />
a partir da perspectiva daquela que os<br />
viveu. Apesar de suas condições materiais,<br />
Carolina Maria de Jesus lutou<br />
para conquistar dignidade e para se<br />
constituir como alguém que resiste à<br />
exploração e à desumanização. A obra<br />
testemunha a história dessa luta e da<br />
opressão a que estão confinados os<br />
pobres no Brasil das primeiras cinco<br />
décadas do século XX.ø<br />
Fonte: Enciclopédia de Literatura/Itau Cultural,<br />
citado por FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção<br />
e organização). Carolina Maria de Jesus - a voz<br />
dos não têm a palavra. Templo Cultural Delfos,<br />
maio/2014. Disponível no link. http://www.elfikurten.com.br/2014/05/carolina-maria-de-jesus.html<br />
(acessado em 6/02/2015).<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
122<br />
DO LIVRO MAGRA DE RUIM<br />
CULTURA<br />
<strong>POR</strong> DENILSON CAJAZEIRO<br />
Um novo olhar sobre as HQs<br />
Mulheres conquistam espaço e redesenham a<br />
representação feminina nas histórias em quadrinhos
123<br />
Esqueça as heroínas sensuais, com<br />
roupas justíssimas e curvas à mostra,<br />
ou mesmo inseguras, frágeis, à espera<br />
de serem salvas. Pouco a pouco, a representação<br />
feminina nas histórias em<br />
quadrinhos tem sido redesenhada pelas<br />
próprias mulheres, que a cada dia ganham<br />
terreno num campo ainda marcado<br />
pela presença masculina. Por meio da<br />
internet ou de feiras e produções independentes,<br />
bancadas por financiamentos<br />
coletivos, elas passaram a dar maior visibilidade<br />
às suas produções, muitas<br />
vezes à margem do circuito comercial.<br />
Uma dessas iniciativas que projetam<br />
o trabalho feito por elas surgiu há quatro<br />
anos, quando a jornalista Mariamma<br />
Fonseca, leitora de HQs desde a infância,<br />
decidiu criar um blog com informações<br />
sobre mulheres quadrinistas e temas<br />
afins, voltado para as amantes do assunto.<br />
A ideia nasceu depois que Mariamma<br />
sentiu certo incômodo durante<br />
uma aula do curso de artes visuais, em<br />
que a turma era formada só por homens.<br />
Curiosa por saber quais mulheres atuavam<br />
no universo dos quadrinhos, perguntou<br />
ao professor, que não soube<br />
respondê-la. Procurou na internet e<br />
também teve dificuldade de encontrar.<br />
Daí a decisão de reunir na web produções<br />
feitas somente por elas. A iniciativa<br />
deu tão certo que o blog logo virou um<br />
site, o Lady’s Comics, cujo slogan é<br />
HQ não é só pro seu namorado.<br />
“Tivemos um retorno muito rápido.<br />
Muitas leitoras se identificaram e apoiaram<br />
a iniciativa. Inicialmente a ideia<br />
era dar visibilidade. Acabou que virou<br />
uma rede de apoio para encontrar referências,<br />
debater o tema e também<br />
uma forma de empoderar as meninas,<br />
fazer com que elas se sintam acolhidas<br />
e motivadas a trabalhar com isso. Procuramos<br />
também incentivar a leitura de<br />
“As mulheres<br />
sempre foram<br />
representadas<br />
de forma<br />
estereotipadas”.<br />
quadrinhos”, revela Mariamma Fonseca,<br />
que hoje cuida do site junto com outras<br />
duas amigas, Samanta Coan e Samara<br />
Horta, também apaixonadas por HQs.<br />
Além de entrevistas com as mulheres<br />
que transitam pela arte sequencial,<br />
o site reúne informações de lançamentos<br />
e encontros e artigos sobre a presença<br />
feminina no universo das HQs.<br />
Em um deles, elas criticam o depoimento<br />
de ninguém menos que Maurício<br />
de Souza, criador da Turma da<br />
Mônica. Ao responder a reclamação<br />
do público sobre a falta das mulheres<br />
no mercado, na edição de 2013 da<br />
Feira do Livro de Frankfurt, ele teria<br />
dito que a “mulher ainda não tem essa<br />
liberdade sem vergonha que homem<br />
tem, de trabalhar sem horários, voltar<br />
para casa tarde. Tem outras obrigações<br />
além do trabalho, tem que cuidar da<br />
casa, dos filhos. Quadrinho exige<br />
muito tempo de dedicação”.<br />
Numa espécie de editorial, elas logo<br />
rebateram: “fica claro cada vez mais<br />
que já passou da hora de se discutir a<br />
invisibilidade das quadrinistas no Brasil.<br />
Sem vitimismo, o fato é: temos muitas<br />
quadrinistas produzindo. Temos autoras,<br />
roteiristas, coloristas, arte-finalistas e<br />
todas as ‘istas’ que envolvem os quadrinhos<br />
brasileiros. E elas dão duro<br />
(assim como todos da área) para terem<br />
seus trabalhos reconhecidos, divulgados<br />
e vistos. Ainda assim, insistem em<br />
dizer que somos poucas, que não nos<br />
interessamos ou que não somos competentes<br />
para isso. Estamos cansadas<br />
de ser ignoradas”.<br />
A reação delas ecoou e, no ano seguinte,<br />
foi promovido o primeiro encontro<br />
de mulheres quadrinistas do<br />
Brasil, em Belo Horizonte, para debater<br />
a presença delas no mercado editorial<br />
e os padrões estéticos presentes nas<br />
histórias em quadrinhos. “As mulheres<br />
sempre foram representadas de forma<br />
estereotipada. Sempre foi peitão e<br />
bundão, porque por um bom tempo o<br />
mercado era feito basicamente por homens.<br />
A representação tem de ter uma<br />
pesquisa profunda. Não pode ser feita<br />
sem entender o universo feminino”,<br />
explica Mariamma Fonseca.<br />
Uma polêmica dessa natureza chegou<br />
recentemente à indústria dos quadrinhos.<br />
Em agosto passado, a Marvel<br />
Comics pediu desculpas publicamente,<br />
em um comunicado oficial, após a<br />
capa de uma edição da Mulher-Aranha<br />
feita pelo italiano Milo Manara ter sido<br />
recebida com críticas, em função da<br />
pose erótica da protagonista. O editor-chefe<br />
da empresa justificou-se e<br />
disse que a capa de Manara não seria<br />
a principal, mas sim uma edição limitada<br />
para colecionadores.<br />
“A gente tem esse problema. Parece<br />
que toda personagem tem de ser jovem,<br />
bonita, magra, branca e gostosa. É<br />
muito redutor e acaba gerando esse<br />
problema de identificação e afastando<br />
leitoras desse universo”, pondera Ana<br />
Luiza Koehler, uma das curadoras do<br />
Festival Internacional de Quadrinhos<br />
(FIQ/BH). Aliás, ela é a primeira mulher<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
124<br />
a exercer essa função no evento, criado<br />
há 18 anos. Arquiteta de formação, a<br />
ilustradora pretende lançar neste ano<br />
sua primeira HQ, intitulada Beco do<br />
Rosário, em que a narrativa se passa<br />
na década de 20, em Porto Alegre, e<br />
traz uma personagem negra como protagonista<br />
– Vitória Azambuja, uma escritora<br />
que vai colocar seu talento a<br />
serviço dos que estão sendo despejados<br />
de suas casas para a abertura das grandes<br />
avenidas. “Acho que o principal<br />
desafio é quebrar esta barreira do mercado,<br />
que tenta nos inserir em um<br />
nicho, de que história feita por mulher<br />
é apenas para mulher. Fazemos histórias<br />
para todo mundo”, afirma.<br />
Polêmicas à parte, é fato que elas<br />
têm conquistado mais espaço até mesmo<br />
no mercado editorial, ainda que timidamente,<br />
graças ao talento e à divulgação<br />
na internet. Bianca Pinheiro ilustra bem<br />
isso. Depois de ganhar visibilidade na<br />
web, a ilustradora e quadrinista recebeu<br />
o convite da editora Nemo para publicar<br />
um de seus trabalhos, o Bear, a simpática<br />
história da pequena Raven que, após<br />
se perder de seus pais, encontra o urso<br />
Dimas, que a ajuda na sua busca. O<br />
livro já está no segundo volume. “A<br />
gente aprende desde cedo que não há<br />
mulheres nos quadrinhos. Mas a arte é<br />
do ser humano, independentemente de<br />
gênero. Então, se há algum papel [dela<br />
no universo dos quadrinhos], é o de<br />
inspirar outras mulheres, para mostrar<br />
ao mundo o nosso trabalho também”,<br />
opina. Bianca Pinheiro também retomou<br />
na internet o projeto Pequenas satisfações<br />
humanas, com a publicação diária<br />
de um desenho com pequenos prazeres,<br />
e publicou neste ano, de forma<br />
alternativa, outro HQ, o Dora, em que<br />
uma mãe tenta defender a filha da acusação<br />
de ter matado quinze pessoas.<br />
Fernanda Torquato seguiu o mes -<br />
mo caminho. Depois de publicar seus<br />
trabalhos na internet, a quadrinista lançou<br />
pela mesma editora, no início deste<br />
ano, o Gata Garota, história inspirada<br />
em dois dos cinco gatos de estimação<br />
que cria em casa. “As mulheres estão<br />
se interessando mais e produzindo<br />
mais, e as grandes editoras estão preocupadas<br />
em publicar histórias feitas por<br />
nós porque precisam atender à demanda<br />
crescente de leitoras”, avalia<br />
Samanta Coan. Segundo a pesquisa-<br />
dora e historiadora Natânia Nogueira,<br />
apesar dos obstáculos, o cenário é promissor<br />
para as mulheres, sejam elas<br />
leitoras ou profissionais da arte se -<br />
quencial. “A sociedade é muito injusta<br />
em relação ao trabalho feminino.<br />
Ainda há muita resistência, mas a participação<br />
das mulheres está crescendo<br />
bastante. Até na área da pesquisa. Temos<br />
uma associação de pesquisadores.<br />
Dos 43 membros, 15 são mulheres, e<br />
a tendência é aumentar”, c ome mora<br />
Natânia Nogueira.<br />
Samara Horta, Mariamma Fonseca e Samanta Coan, do Lady’s Comics.<br />
POLLYANA BITENCOURT<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
125<br />
ENTREVISTA<br />
GABRI<strong>ELA</strong> MASSON<br />
Masturbação<br />
é um ato de<br />
autonomia<br />
da mulher<br />
Quadrinista defende a<br />
emancipação feminina<br />
na exploração da<br />
própria sexualidade<br />
ARQUIVO PESSOAL<br />
Gabriela Masson desenha desde<br />
criança, mas foi só há pouco tempo,<br />
cerca de dois anos, que começou a trabalhar<br />
com quadrinhos. A motivação<br />
surgiu durante o curso na Faculdade de<br />
Artes Plásticas da Universidade de Brasília,<br />
ainda em fase de conclusão. Hoje,<br />
a quadrinista, de 25 anos, assina como<br />
Lovelove6 seus trabalhos, que circulam<br />
bem e ganham projeção na web.<br />
“Considero estar sendo muito bom<br />
e produtivo para mim. Recebo muitos<br />
e-mails de pessoas que leram e de pessoas<br />
que começam a produzir e me<br />
falam que foi por inspiração de um<br />
quadrinho meu. As vendas também são<br />
um parâmetro para entender se está<br />
dando certo”, afirma Gabriela Masson.<br />
Feminista, ela está finalizando a impressão<br />
de uma de suas principais produções,<br />
a história em quadrinho Garota<br />
Siririca – bancada por um financiamento<br />
coletivo –, cuja personagem é<br />
uma garota viciada em se masturbar.<br />
“Acho que existe um protagonismo na<br />
mulher quando ela decide explorar a<br />
sua própria sexualidade. Hoje até penso<br />
que masturbação é um ato de autonomia,<br />
um ato político de emancipação<br />
importante para a mulher”, defende a<br />
jovem, autora também do zine Ética<br />
do Tesão na Pós-Modernidade, volumes<br />
1 e 2, entre outros trabalhos.<br />
Confira abaixo a entrevista.<br />
Quem é a Garota Siririca e<br />
como surgiu a ideia de criá-la?<br />
A Garota Siririca é uma menina<br />
viciada em masturbação, que passa os<br />
dias fazendo isso e acaba envolvendo<br />
as amigas dela em sua obsessão. Ela<br />
surgiu a partir das minhas próprias experiências,<br />
a princípio, e depois, para<br />
desenvolvê-la, passei a conversar com<br />
muitas outras mulheres a respeito de<br />
sexualidade, masturbação e feminismo.<br />
Eu pesquiso muito a respeito da vulva<br />
e de sexualidade também. Muito a respeito<br />
do feminismo e converso muito<br />
com minhas amigas. Outras mulheres<br />
me mandam emails voluntariamente<br />
contanto histórias engraçadas. Tudo<br />
isso me ajuda bastante a criar. Daí a<br />
Garota Siririca foi virando outras<br />
coisas. Hoje considero que é uma história<br />
especialmente sobre relações lésbicas.<br />
Toca muito no tema de amizade<br />
entre mulheres também.<br />
Por que escolher falar sobre<br />
sexo e para as mulheres?<br />
Um pouco antes de começar a fazer<br />
a Garota Siririca, procurei conhecer o<br />
que estava acontecendo nos quadrinhos<br />
nacionais. Reparei que tinha uma au-<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
126<br />
sência muito grande de personagens<br />
que fossem mulheres construídas numa<br />
perspectiva feminista. A maneira como<br />
as mulheres são representadas nos quadrinhos,<br />
tanto nacional quanto mundialmente,<br />
é um problema. Geralmente<br />
apela-se para estereótipos desprezíveis,<br />
humilhantes e, quando percebi isso,<br />
tive muita vontade de desenvolver essa<br />
personagem que estava faltando, que<br />
eu mesma gostasse de me identificar.<br />
Paralelo a isso estava acontecendo coisas<br />
em minha vida, em relação à masturbação<br />
é à minha sexualidade. Percebi que<br />
faltava muito espaço para ter um diálogo<br />
a respeito disso. Aí meio que juntei as<br />
duas coisas. Resolvi tentar trabalhar<br />
essa ausência de uma personagem representativa<br />
e essa ausência de diálogo<br />
a respeito de masturbação, feminismo<br />
e sexualidade nos quadrinhos.<br />
Porque masturbar ainda é um<br />
tabu entre as mulheres, não é?<br />
Muito grande. Acho que especialmente<br />
no círculo social de classe média,<br />
com acesso ao Facebook, talvez uma<br />
pequena parcela de garotas jovens já<br />
esteja falando muito mais a respeito<br />
disso. Mas em geral, na sociedade, é<br />
um grande tabu. Conheci histórias bem<br />
tristes, de mulheres que sentem nojo<br />
do próprio corpo. Isso acaba as levando<br />
a se submeter a algumas relações muito<br />
nocivas quando vem o momento de se<br />
relacionar sexualmente.<br />
Em que medida o feminismo<br />
ajudou a Garota Siririca?<br />
Acho que se eu não fosse feminista<br />
e tivesse decidido fazer algum tipo de<br />
quadrinho erótico, nunca sairia algo<br />
como a Garota Siririca. Antes de me<br />
tornar feminista, já lia quadrinhos eróticos<br />
e gostava muito. Acho que eu<br />
iria reproduzir muito do que tem sido<br />
feito nacionalmente aí, uma abordagem<br />
da sexualidade muito heterossexual,<br />
heretocentrada, geralmente homofóbica,<br />
lesbofóbica, transfóbica.<br />
Como você definiria a sexualidade<br />
hoje?<br />
Existem muitas formas de expressar<br />
e praticar a sexualidade, mas acho que<br />
se tem algo que poderia generalizar é<br />
que todas elas são fluidas, apesar de<br />
muitas pessoas engessarem a sua sexualidade<br />
em algum momento. Acredito<br />
que isso não é natural...<br />
Engessar em que sentido?<br />
Por exemplo, acreditar, ao longo<br />
da educação que a sociedade dá pra<br />
gente, que o homem é necessariamente<br />
heterossexual. O cara acredita com todas<br />
as forças que é isso mesmo, que<br />
ele nasceu para ser hétero e será hétero<br />
até o fim da vida. Acho que essa é<br />
uma visão muito engessada da sexualidade<br />
e uma maneira conservadora de<br />
lidar com o próprio corpo e com as<br />
pessoas. Acho que a sexualidade é naturalmente<br />
fluida. Mas aí depende do<br />
moral da pessoa e o quanto ela está<br />
disposta a deixar fluir sua sexualidade<br />
e descobrir como se sente melhor praticando<br />
isso.<br />
Você disse em entrevista que a<br />
gente vive em uma situação de extremo<br />
cerceamento do próprio corpo.<br />
Gostaria que falasse mais a<br />
respeito disso.<br />
A ausência de diálogo a respeito<br />
de sexualidade, de educação sexual,<br />
masturbação, especialmente voltada<br />
para mulheres que nasceram com vulvas<br />
e se identificam como mulheres, trabalha<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
127<br />
no sentido de tirar toda intimidade que<br />
a mulher poderia ter com o próprio<br />
corpo. Ao longo do nosso amadurecimento<br />
sexual, na verdade a gente<br />
acaba perdendo a intimidade com o<br />
próprio corpo. Eu vejo isso se refletir<br />
na vida delas quando há mulheres com<br />
trinta anos dizendo que odeiam se<br />
masturbar, que gostam mesmo é de<br />
sexo, mas que nunca tiveram um orgasmo,<br />
só se relacionam com homens<br />
e têm tendência a entrar em relacionamentos<br />
abusivos. Acho que tudo isso é<br />
realmente um fruto objetivo de toda<br />
essa falta de diálogo que existe, desse<br />
cerceamento do conhecimento e das<br />
possibilidades que a mulher pode ter<br />
para desenvolver a sexualidade dela.<br />
Você também já disse que sexo<br />
é política. Em que medida sexo é<br />
política?<br />
Quis dizer que a maneira como nós<br />
praticamos o sexo se reflete politicamente<br />
na maneira como agimos socialmente.<br />
Acho que existe um protagonismo<br />
na mulher quando ela decide<br />
explorar a sua própria sexualidade.<br />
Hoje até penso que masturbação é um<br />
ato de autonomia, um ato político de<br />
emancipação importante para a mulher.<br />
A partir daí a gente afirma muitas<br />
coisas. Uma mulher que começa a se<br />
masturbar na intimidade de casa, não<br />
tenho dúvida de que a maneira como<br />
ela vai se comportar no mundo vai ser<br />
diferente, a partir dessa experiência<br />
que tem como ela mesma. Inclusive<br />
acho que pode ser político sim quando<br />
mulheres se relacionam sexualmente<br />
com mulheres. Simbolicamente e politicamente<br />
é muito forte a mensagem.<br />
E entendo que existem mulheres que<br />
preferem se relacionar apenas com<br />
mulheres por questões políticas, motivadas<br />
pelos contextos sociais que às<br />
vezes são muito opressores e violentos.<br />
Então quando falo que sexo é política,<br />
quero dizer que se a mulher se propõe<br />
a ser protagonista da própria sexualidade<br />
e não se submeter aos preconceitos<br />
e a relações abusivas, a partir<br />
da relação sexual que ela tem com ela<br />
mesma e com as pessoas em volta<br />
dela, age politicamente de uma forma<br />
diferente no mundo.<br />
No entanto esse não é o quadro<br />
atual. É possível alterá-lo?<br />
Bom, não sei, na verdade. Acho<br />
que o movimento feminista está fazendo<br />
avanços maravilhosos no Brasil e no<br />
mundo em termos de sexualidade, de<br />
direitos de reprodução, mas todo esse<br />
avanço gera uma reação muito forte,<br />
muito violenta. Acho que essa mudança<br />
está acontecendo também especialmente<br />
entre mulheres jovens, de classe<br />
média, mas sim, tenho esperanças. A<br />
gente precisa é de mulheres mais<br />
velhas, inseridas em outros contextos,<br />
que estejam interessadas em conversar<br />
a respeito dessas questões, numa perspectiva<br />
feminista com suas amigas,<br />
com as mulheres mais próximas delas.<br />
Aí é possível o feminismo começar a<br />
brotar e ter um efeito maior nos contextos<br />
sociais.<br />
“Ao longo do nosso<br />
amadurecimento<br />
sexual, acabamos<br />
perdendo a<br />
intimidade com o<br />
próprio corpo”.<br />
Sobre o trabalho das mulheres<br />
quadrinistas, você também acredita<br />
que elas têm hoje mais visibilidade<br />
e espaços?<br />
A gente está conquistando, construindo<br />
espaços. Acho que tem pouco<br />
a ver com nossos colegas quadrinistas<br />
homens reconhecerem o valor dos<br />
nossos quadrinhos ou do nosso movimento.<br />
Inclusive a gente entra muito<br />
em conflito. Apesar de estar conseguindo<br />
me aproximar desses lugares<br />
superdominados por homens, acredito<br />
cada vez mais que só vai dar certo<br />
mesmo se for uma coisa entre as mulheres.<br />
Essa é a grande resposta. Fazendo<br />
feira, colocando a mão na<br />
massa, fazendo quadrinho, recorrendo<br />
a financiamento coletivo, criando grupos<br />
para conversar sobre quadrinhos,<br />
dar oficinas uma para a outra, acho<br />
que é assim. Pelo que tenho observado,<br />
desde que comecei a fazer quadrinhos,<br />
tem sido assim. Não foi<br />
porque os caras acharam massa, porque<br />
até hoje eles não acham. Nem sei<br />
se é o caso de esperarmos que a indústria<br />
e os meios de comunicação<br />
mudem a cabeça. Estou mais apostando<br />
em criar novos espaços com<br />
essas mulheres que querem fazer e não<br />
depender dessa galera para aparecer e<br />
vender nossas coisas. E o que gosto<br />
mais em toda a cena de quadrinhos<br />
entre as mulheres é exatamente essa<br />
visão feminista, que ainda bem que a<br />
grande maioria de nós compartilha,<br />
ainda que haja algumas desavenças em<br />
alguns detalhes. Acho que não adianta<br />
mais mulheres fazendo quadrinhos se<br />
essas mulheres não são feministas.<br />
Para fazer mudanças em direção à promoção<br />
da igualdade e respeito pela<br />
mulher, tem de ser feminista, se não a<br />
coisa não anda.ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
128<br />
Miriam Alves, do coletivo Bloco das Pretas: “a arte educa e sensibiliza a sociedade”.<br />
foto DENILSON CAJAZEIRO<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
129<br />
CULTURA NEGRA<br />
por DENILSON CAJAZEIRO<br />
Arte e resistência<br />
Por meio de intervenções artísticas, mulheres colocam em<br />
pauta a agenda feminista<br />
Literatura, música, teatro, dança,<br />
performance e outras formas de arte e<br />
cultura feitas por mulheres tomaram<br />
conta de vários espaços do centro e<br />
da periferia de Belo Horizonte e região<br />
metropolitana, entre os dias 6 e 8 de<br />
março deste ano. As cerca de 130<br />
apresentações foram gratuitas e fizeram<br />
parte da mostra Diversas – feminismo,<br />
arte e resistência, evento promovido<br />
por grupos e coletivos de mulheres.<br />
O evento, que também contou com<br />
oficinas em ocupações urbanas sobre<br />
feminismo e rodas de conversa, propôs<br />
o debate, por meio das intervenções artísticas,<br />
de temas da pauta feminista,<br />
como a violência contra as mulheres, a<br />
participação delas no mercado de trabalho,<br />
a mercantilização do corpo, a<br />
sexualidade e os direitos reprodutivos, a<br />
luta das mulheres negras, entre outros.<br />
Um dos coletivos que participou da<br />
mostra foi o Bloco das Pretas, criado<br />
há três anos dentro da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais (UFMG) e<br />
formado por cerca de 25 mulheres.<br />
Atualmente, uma das principais intervenções<br />
do grupo é o sarau poético,<br />
que reúne música, expressão corporal<br />
e poesia. “A expressão corporal é<br />
muito definidor da mulher negra. Quando<br />
tratamos do racismo e do machismo,<br />
isso está no corpo dela, além do aspecto<br />
cultural mesmo, pois as mulheres negras<br />
têm uma expressão muito forte”, afirma<br />
a integrante do coletivo e estudante de<br />
Pedagogia Miriam Gomes Alves, para<br />
quem a arte é uma maneira de sensibilizar<br />
as pessoas. “Às vezes, só pela<br />
discussão teórica não se consegue sensibilizar<br />
todos os sujeitos. A arte tem<br />
esse caráter de sensibilizar e educar a<br />
sociedade”.<br />
Em vários espaços públicos da cidade,<br />
as integrantes do grupo já se<br />
apresentaram e discutiram temas como<br />
a invisibilidade da religião de matriz<br />
africana ou a violência obstétrica. Na<br />
mostra Diversas, o grupo apresentou<br />
um sarau com o tema apropriação cultural,<br />
em que lançou um olhar crítico<br />
sobre o uso de elementos da cultura<br />
negra no Carnaval de Belo Horizonte<br />
deste ano, e ministrou oficinas na ocupação<br />
Guarani Kaiowá sobre gênero<br />
e identidade. “Somos mulheres negras<br />
da periferia e queremos trabalhar com<br />
grupos periféricos, por meio das intervenções,<br />
do empoderamento da mulher<br />
negra e do incentivo à escrita. O<br />
objetivo é sair do espaço acadêmico e<br />
ir para a periferia”, revela.<br />
Outro coletivo que participou da<br />
mostra e propôs a discussão sobre a<br />
pauta racial foi o Negras Ativas. Criado<br />
em 2003, o grupo desenvolve atividades<br />
artísticas, culturais e formativas, a partir<br />
da valorização dos saberes das mulheres<br />
negras nas comunidades. O trabalho<br />
mais recente delas foi o documentário<br />
A arte de ser, exibido na mostra, que<br />
aborda a inserção de jovens mulheres<br />
na cena do hip-hop de Belo Horizonte.<br />
“Aos poucos, as meninas estão quebrando<br />
os estereótipos e rompendo a<br />
cultura machista que há no hip-hop”,<br />
aponta Joseli Rosa de Souza, integrante<br />
do Negras Ativas. “Entendemos que<br />
com a arte conseguimos trazer mais<br />
mulheres para a discussão. A arte pode<br />
possibilitar a construção de uma política<br />
diferenciada. É uma forma de denunciar<br />
usando a arte”, afirma.<br />
O grupo também promoveu durante<br />
a mostra uma roda de conversa, em<br />
que discutiram as bandeiras das mulheres<br />
negras e divulgaram a agenda da Marcha<br />
das Mulheres Negras deste ano – a estadual<br />
será em 13 de maio, na Praça<br />
Sete, no Centro de Belo Horizonte, e a<br />
nacional será em Brasília, em 18 de<br />
novembro. “Marcharemos em homenagem<br />
às nossas ancestrais e em defesa<br />
da cidadania plena das mulheres negras<br />
brasileiras”, defendem as entidades que<br />
participam do comitê organizador da<br />
Marcha, em texto publicado no site da<br />
atividade (www.2015marchamulheresnegras.com.br).ø<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
130<br />
ARTIGO<br />
<strong>POR</strong> MÁRCIA MENDONÇA<br />
foto ASSOCIATED PRESS<br />
Muito além do<br />
feminino e do masculino<br />
Moda: um campo no qual representações e<br />
simbolismos ganham dimensão<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
131<br />
Uma bela discussão sobre gênero.<br />
Novo diretor-criativo da Gucci, Alessandro<br />
Michele, passou por prova de<br />
fogo na grife ao apresentar, em janeiro<br />
deste ano, em Milão, a coleção masculina<br />
de inverno 2016, propondo que<br />
o homem use roupas com influência<br />
do guarda-roupa feminino. E mais, colocou<br />
mulheres desfilando suas criações<br />
masculinas na passarela.<br />
Miuccia Prada trouxe também para<br />
sua coleção 2016, jaquetas curtas e<br />
calças afuniladas, endossando a ideia.<br />
Para ela, há uma evolução nesse movimento,<br />
e a moda masculina, muito<br />
previsível e limitada, vem buscando<br />
novas influências, e a tendência é a de<br />
que o feminino e o masculino se aproximem<br />
cada vez mais.<br />
Para o estilista brasileiro João Pimenta,<br />
“estamos tão avançados que<br />
não faz sentido discutirmos o que é<br />
masculino e o que é o feminino hoje”.<br />
Até o momento nenhuma novidade.<br />
Não é de hoje que a moda flerta com a<br />
discussão sobre gênero e sobre a histórica<br />
interface entre masculino e feminino.<br />
Coco Chanel, no início da década<br />
de 1920, apropriou-se de suéteres, terninhos,<br />
casacos, calças−peças exclusivamente<br />
masculinas, para criar looks<br />
que tornaram-se atemporais, dando<br />
início à relação entre mulheres e a alfaiataria,<br />
muito presente nas vestimentas<br />
femininas durante a Segunda Guerra<br />
Mundial e cada vez mais em destaque<br />
na contemporaneidade. Chanel rompeu<br />
com a rigidez do traje feminino e imprimiu<br />
um estilo de se vestir mais simples,<br />
e que chamamos hoje de minimalista.<br />
Em 1930, a atriz Marlene Dietrich<br />
provocou enorme frisson ao usar um<br />
modelo de terno e gravata no filme<br />
Marrocos, de Josef Von Stenberg.<br />
Dietrich acabou por ditar moda no<br />
período entreguerras (1914-1918 e<br />
1939-1945), provocando grande discussão<br />
sobre o reposicionamento da<br />
mulher e sua afirmação na sociedade<br />
moderna.<br />
Nos anos 50, o rock influenciou a<br />
moda e levou para o guarda-roupa<br />
feminino e masculino a calça jeans e a<br />
camiseta. Na década seguinte, nova<br />
explosão, com Mary Quant e o surgimento<br />
da minissaia, Yves Saint<br />
Laurent com o smoking feminino,<br />
Paco Rabane e suas criações futuristas.<br />
Da segunda metade do século XX<br />
até os dias atuais, foram, e são, muitos<br />
os estilistas que dialogoram e interpretaram<br />
– e que dialogam, cada vez mais<br />
–, com o feminino/masculino. Muitas<br />
são as reinvenções, apropriações e assimilações<br />
na moda, e a androginia –<br />
ou inversão de gêneros, ou a soma<br />
dos dois ou nenhum dos dois –, tamanha<br />
é a discussão e reflexão sobre o<br />
assunto que tem se intensificado cada<br />
vez mais nesse campo.<br />
Para a feminista Judith Butler, “o<br />
gênero deixou de ser uma identidade<br />
estável, ou lugar de agenciamento do<br />
qual as ações procedem. O gênero é<br />
uma identidade tenuemente constituída<br />
por meio da repetição estilizada de<br />
atos, gestos, performances variadas<br />
que constroem a ilusão de self com a<br />
sexualidade definida”.<br />
Nessa perspectiva, recorremos ao<br />
filme Orlando, realizado em 1992, pela<br />
cineasta inglesa Sally Potter, como forma<br />
de tematizarmos o assunto. O ponto de<br />
partida do filme é a obra homônima<br />
Orlando, de autoria da escritora inglesa<br />
Virgínia Woolf. Nascido homem, o lorde<br />
Orlando, após séculos de existência e<br />
desventuras (a obra de Woolf situa-se<br />
em quatro séculos, do século XVI ao<br />
início do século XX), acorda, num belo<br />
dia, mulher. É ordenado pela Rainha<br />
Elizabeth I a permancer eternamente<br />
jovem, e sai de sua condição de aristocrata<br />
para dândi, dama, andrógino. Sua<br />
mudança mais radical é sua transformação<br />
sexual, seguida de seus relacionamentos,<br />
afetos, desacertos. Woolf criou<br />
uma das obras mais instigantes da literatura<br />
mundial sobre a discussão do gênero,<br />
adaptada de maneira extremamente<br />
original por Potter.<br />
A escolha de Tilda Swinton para<br />
viver Orlando é mais do que acertada,<br />
pois é uma das atrizes mais andróginas<br />
que o cinema já teve. Em 2013, estrelou<br />
campanha da marca Chanel e foi fotografada<br />
por Karl Lagerfeld. Para o<br />
papel da Rainha Elizabeth I, o ator<br />
Quentin Crisp foi escalado por Sally<br />
Potter. O figurino, assinado por Sandy<br />
Powell, é surpreendente, afinal, abrange<br />
quatro séculos, épocas e estilos distintos,<br />
como o rococó, o clássico e o moderno.<br />
É impecável ainda na direção de arte e<br />
fotografia, e chegou a ser indicado a<br />
dois Oscar, o de Melhor Direção de<br />
Arte e Melhor Figurino.<br />
Orlando nos conduz a uma discussão<br />
pertinente que permeia arte, gênero,<br />
moda, sexualidade e corpo, e que nos<br />
leva a refletir quanto a moda e a subjetividade<br />
são indissociáveis, e comportam<br />
ambiguidades, paradoxalidades, ideologias<br />
e identidades múltiplas. Pensar a<br />
moda, neste contexto, é observar, analisar<br />
seus discursos, sua multiplicidade de cenários<br />
e de propostas, cada vez mais<br />
mutantes e feéricas, deixando de lado<br />
seu ar de frivolidade, tornando-se, um<br />
campo no qual as representações, os<br />
simbolismos, os questionamentos e os<br />
dilemas ganham dimensão. Afinal, a<br />
moda pensa além do feminino e do<br />
masculino.ø<br />
Márcia Mendonça é historiadora,<br />
professora e jornalista<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
132<br />
POUCAS E BOAS<br />
Homens em prol dos direitos das mulheres<br />
No ano passado a ONU lançou,<br />
em Nova York, a campanha He-<br />
ForShe. Criada para mobilizar homens<br />
e meninos em prol dos direitos<br />
das mulheres e da igualdade de gênero,<br />
a campanha tem como principal<br />
divulgadora a atriz e embaixadora<br />
da Boa Vontade da ONU<br />
Mulheres, Emma Watson.<br />
O pontapé inicial da campanha<br />
foi dado na sede das Nações Unidas<br />
em setembro de 2014. No evento<br />
do lançamento global, os homens<br />
foram colocados como ativistas<br />
fundamentais para acabar com as<br />
desigualdades enfrentadas diariamente<br />
por todas as mulheres.<br />
Até setembro de 2015, a campanha<br />
pretende mobilizar um bilhão<br />
de homens e meninos ao<br />
redor do mundo como defensores<br />
e agentes da transformação. No<br />
site heforshe.org é possível também<br />
encontrar um mapa em<br />
tempo real que mede o envolvimento<br />
dos homens com a iniciativa<br />
em todo o mundo.<br />
INTERNET<br />
Mulheres no Poder<br />
http://www.mulheresnopoder.com.br<br />
Homens pelo fim da violência<br />
contra as mulheres<br />
http://www.homenspelofimdaviolencia.com.br<br />
Titularidade para as<br />
mulheres nos<br />
programas sociais<br />
Entrou em vigor no ano passado<br />
a Lei nº 13.014. Agora,<br />
assim como no Bolsa Família,<br />
outros programas assistenciais<br />
e de transferência de renda do<br />
governo federal adotarão o<br />
pagamento preferencial à mulher<br />
responsável pela unidade<br />
familiar.<br />
A lei alterou a Lei Orgânica<br />
da Assistência Social (Lei<br />
8.742/1993) que dispõe sobre<br />
a organização da assistência<br />
social e a Lei 12.512/2011 que<br />
institui o Programa de Apoio à<br />
Conservação Ambiental e o<br />
Programa de Fomento às Atividades<br />
Produtivas Rurais.<br />
Tribunal do RJ<br />
tem a primeira<br />
desembargadora negra<br />
Aos 69 anos de idade, Ivone Ferreira<br />
Caetano, titular da 1ª Vara da<br />
Infância da Juventude e do Idoso<br />
tornou-se a primeira desembargadora<br />
negra do estado do Rio de Janeiro.<br />
Segunda mulher negra do<br />
Brasil a ocupar o cargo de magistrada,<br />
ela foi escolhida entre 16<br />
juízes que concorriam ao cargo,<br />
sendo eles nove mulheres e sete<br />
homens.<br />
Com uma trajetória de vida de<br />
superação e luta contra o preconceito,<br />
Ivone é filha de uma lavadeira<br />
que criou sozinha onze filhos. A juíza<br />
começou a faculdade de direito aos<br />
25 anos, apenas ingressando na escola<br />
de magistratura aos 49 anos.<br />
Geledes<br />
http://www.geledes.org.br/<br />
Blogueiro negras<br />
http://blogueirosnegras.org<br />
Laço branco<br />
http://lacobrancobrasil.blogspot.com.br<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
133<br />
LIVROS<br />
Backlash: o contra-ataque<br />
na guerra não declarada às<br />
mulheres<br />
Autora:<br />
Susan Faludi<br />
Editora Rocco<br />
A década de 1980<br />
deflagrou um implacável<br />
contraataque<br />
às conquistas<br />
femininas, que<br />
opera em dois níveis:<br />
convencer as mulheres de que seus<br />
sentimentos de angústia e insatisfação<br />
são resultado do excesso de independência,<br />
ao mesmo tempo em que destrói<br />
gradativamente os mínimos avanços<br />
que as mulheres realizaram no trabalho,<br />
na política e em sua forma de pensar.<br />
Susan Faludi, prêmio Pulitzer de jornalismo,<br />
mostra como a imprensa se ocupou<br />
em repercutir essas mensagens ao<br />
dar um cunho moralista às notícias e<br />
reportagens, e manipular estatísticas.<br />
O segundo sexo<br />
Autora: Simone<br />
de Beauvoir<br />
Editora Nova<br />
Fronteira<br />
Provedora, vassala,<br />
acolhedora. Não<br />
importa como se<br />
apresenta, o lugar<br />
da mulher sempre foi definido pelo homem.<br />
Este configura a posição central<br />
na sociedade. O homem que tomou<br />
para si a definição de ‘ser humano’ relega<br />
à mulher uma posição secundária,<br />
um papel de coadjuvante na História.<br />
Foi a partir dessa constatação e da<br />
pergunta ‘o que é uma mulher?’, que a<br />
filósofa existencialista Simone de Beauvoir<br />
deu início à sua reflexão para escrever<br />
O segundo sexo.<br />
O mito da beleza<br />
Autora:<br />
Naomi Wolf<br />
Editora Rocco<br />
Para mostrar co -<br />
mo a indústria da<br />
beleza e o culto à<br />
bela fêmea manipulam<br />
imagens que<br />
minam a resistência psicológica e material<br />
femininas, reduzindo as conquistas<br />
de 20 anos de lutas a meras ilusões,<br />
Naomi Wolf escreveu um livro com dados<br />
estatísticos.<br />
Em O mito da beleza, Naomi enfrenta o<br />
que ela acredita ser a única trincheira<br />
ainda por derrubar para que a mulher<br />
possa obter sua igualdade em todos os<br />
campos.<br />
Viagem no vagão de Lia<br />
Autora: Celina<br />
Maria Coelho<br />
Editora: Aquarela<br />
A narrativa revela<br />
a vida de Lia<br />
desde antes de<br />
conquistar um<br />
vagão de trem da extinta Central do<br />
Brasil. Maria de Oliveira (1941 – 2013)<br />
fez deste vagão morada e ao seu<br />
redor construiu uma casa, plantou<br />
árvores, criou bichos, transformou<br />
lixo em arte. Tornou-se alvo dos<br />
olhares da mídia, de estudantes, de<br />
curiosos. No livro, a autora trata<br />
dos desafios enfrentados pela protagonista,<br />
na trajetória desde o Espírito<br />
Santo, onde nasceu, passando<br />
pelo Rio de Janeiro, Nanuque e Belo<br />
Horizonte, para culminar, em Contagem,<br />
sua saga triunfal para se tornar<br />
a “Lia do Vagão”.<br />
FILMES<br />
Rosa de Luxemburgo<br />
Direção: Margarethe Von Trotta<br />
Gênero: Drama<br />
Nascida na Polônia e doutora em<br />
Ciências Econômicas, Rosa Luxemburgo<br />
torna-se uma das grandes<br />
líderes do movimento operário revolucionário<br />
alemão, adere ao Partido<br />
Social-Democrata alemão em<br />
1898 e em 1914 rompe violentamente<br />
com essa agremiação. Rosa, a Vermelha,<br />
como era conhecida, visceralmente<br />
internacionalista e antibelicista<br />
condena como uma traição<br />
o apoio dos social-democratas à<br />
deflagração da Primeira Guerra<br />
Mundial.<br />
Violette<br />
Direção: Martin Provost<br />
Gênero: Drama, Biografia<br />
O filme aborda o relacionamento<br />
entre Simone de Beauvoir, uma das<br />
maiores feministas da história, e a<br />
escritora Violette Leduc. Em Paris,<br />
meados do século XX, Violette se<br />
vê como uma mulher feia e desinteressante.<br />
Porém, se por um lado<br />
a ausência de autoestima domina<br />
a sua vida, por outro a faz refletir<br />
sobre as relações entre as pessoas<br />
e, em especial, sobre a condição<br />
feminina.<br />
Nunca sem minha filha<br />
Direção: Brian Gilbert<br />
Gênero: Drama<br />
Betty está casada há sete anos<br />
com o iraniano naturalizado americano<br />
Moody. Os dois têm uma pequena<br />
filha a quem amam muito.<br />
Com a troca de poder no Irã,<br />
Moody decide que é hora de voltar.<br />
Contrariada, Betty aceita ir, mas ao<br />
chegar lá, descobre que foi enganada<br />
e que seu marido não é quem<br />
ela pensava.<br />
Revista Elas por Elas - Abril 2015
RETRATO<br />
Izabel Mendes<br />
Falecida em outubro de 2014, aos<br />
90 anos, foi exemplo da coragem<br />
das mulheres artesãs do Vale do<br />
Jequinhonha. Em 2003, as bonecas<br />
de dona Izabel foram parar na São<br />
Paulo Fashion Week. Ela recebeu<br />
vários prêmios, como o Unesco de<br />
Artesanato para a América Latina<br />
(2004), a Ordem do Mérito Cultural<br />
(concedida pelo Ministério da Cultura,<br />
2005) e o Prêmio Culturas<br />
Populares (Ministério da Cultura,<br />
2009). Também homenageada pela<br />
presidenta Dilma Rousseff durante<br />
a abertura da exposição Mulheres<br />
artistas e brasileiras.<br />
foto ARQUIVO UFMG
MARÇO 2015<br />
NÚMERO 8<br />
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