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Revista Dr. Plinio 236

Novembro de 2017

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Dilatando o<br />

Reinado de Cristo


O maravilhoso<br />

realizado na Terra<br />

Gabriel K.<br />

Santa Margarida da Escócia<br />

Basílica de São Patrício, Montreal, Canadá<br />

N<br />

a vida de Santa Margarida da<br />

Escócia nota-se a existência<br />

do maravilhoso na Idade Média.<br />

Não do maravilhoso como uma fábula<br />

ou lenda, mas como algo de realizável.<br />

Para a brumosa Escócia, então terra<br />

de missão, essa princesa vinha trazendo<br />

sangue ilustre, toda a flor da civilização<br />

ocidental, tornando-se uma rainha<br />

magnífica, que deixa vários filhos<br />

ilustres por suas virtudes, e que intercedeu<br />

a favor do povo, deu esmolas,<br />

realizou milagres.<br />

Tudo isso sempre ungido pela coroa<br />

real, além de uma ideia completa<br />

da realeza, apresenta um mundo concreto<br />

onde maravilhas são possíveis e o<br />

extraordinário, o estupendo, a ordem,<br />

mesmo a mais excelente e audaciosa,<br />

são realizáveis na Terra.<br />

Santas como esta de tal maneira difundiam<br />

o bom odor de Jesus Cristo<br />

por toda parte, que acabavam sacralizando<br />

a própria dignidade régia<br />

e criando uma espécie de ambiente<br />

de feeria, de maravilhoso da civilização<br />

medieval, do qual os vitrais são um<br />

reflexo, apresentando os bem-aventurados<br />

em meio a pedacinhos de vidros<br />

dourados, cor de rubi, de esmeraldas,<br />

com uma luz na cabeça, a coroa real<br />

sobre uma mesa, uma santa que derrama<br />

flores em torno de si... Tudo isso é a<br />

imagem do próprio modo como o medieval<br />

concebia a vida, por exemplo, de<br />

uma Santa Margarida, Rainha da Escócia.<br />

(Extraído de conferência de 9/6/1964)


Sumário<br />

Ano XX - Nº <strong>236</strong> Novembro de 2017<br />

Dilatando o<br />

Reinado de Cristo<br />

Na capa, Sagrado Coração de<br />

Jesus, Catedral de Bolzano, Itália.<br />

Foto: Flávio Lourenço<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Gilberto de Oliveira<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

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02404-060 S. Paulo - SP<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

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02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 130,00<br />

Colaborador .......... R$ 180,00<br />

Propulsor ............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Editorial<br />

4 Dilatando o Reinado de Cristo<br />

Piedade pliniana<br />

5 Para alcançar a emenda<br />

de meus defeitos<br />

Dona Lucilia<br />

6 Venerável e lindo olhar<br />

De Maria nunquam satis<br />

8 Cantando pelos caminhos<br />

da Judeia<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

12 Grandeza régia de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

Calendário dos Santos<br />

18 Santos de Novembro<br />

Hagiografia<br />

20 Lindo exemplo para os<br />

governantes eclesiásticos<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

23 Como se forma o costume - II<br />

Perspectiva pliniana da História<br />

28 Mistérios de uma alma e de um povo - II<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

34 A música dos Anjos no Céu<br />

Última página<br />

36 Maria fons, Maria mons, Maria pons<br />

3


Editorial<br />

Dilatando o Reinado<br />

de Cristo<br />

AFé é uma virtude sobrenatural que dá ao homem a capacidade de admitir as verdades reveladas<br />

por Jesus Cristo e Escritores Sagrados, propostas pela Santa Igreja.<br />

Sua origem é divina não somente na Pessoa do Verbo Encarnado, o Mestre por excelência,<br />

mas também nos Profetas e Apóstolos, que nada mais foram do que instrumentos do Espírito<br />

Santo ao nos transmitirem as novidades doutrinárias da parte de Deus. É também divina no<br />

seu princípio, porquanto sem a graça de Deus não é o homem capaz de crer. É finalmente divina<br />

no seu objeto que são as verdades escondidas em Deus, a quais sua Misericórdia se digna comunicar<br />

às criaturas.<br />

Considerados os elementos divinos, a Fé é imutável e em dois sentidos. Primeiro, uma verdade revelada<br />

jamais poderá ter um sentido numa época e outro sentido diverso em outra diferente. Jamais<br />

o que foi crido pela Igreja como verdade de Fé na Idade Média deixará de o ser nos tempos que correm,<br />

ou terá hoje um sentido diverso do sentido que se encontra na profissão de Fé dos fiéis daquela<br />

época. Depois, o campo da Revelação está limitado, de maneira que não haverá mais novas verdades<br />

reveladas. Tudo quanto a Divina Bondade quis manifestar ao homem, o fez até a morte do último<br />

Apóstolo.<br />

Embora a Fé seja sempre a mesma, não obstante pode haver dogmas novos, isto é, verdades que<br />

se achavam implícitas na Revelação Apostólica e que a Santa Igreja explicitou, e impôs à Fé dos fiéis,<br />

como acontece com o Dogma da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Note-se, no entanto, que<br />

neste crescimento na Fé de que é capaz o homem e a humanidade, jamais pode vir o indivíduo a admitir<br />

uma verdade inteiramente nova, que não se encontra de maneira implícita na Revelação Apostólica,<br />

nem chegar à aceitação de uma atitude que contrarie aquilo que foi explicitamente estabelecido<br />

pelo Divino Fundador da Santa Igreja.<br />

Esta exposição nos mostra como se difunde o Reinado de Jesus Cristo não somente angariando<br />

novos membros para a Santa Igreja, mas também intensificando nos fiéis a vida da Fé pelo conhecimento<br />

mais profundo das verdades reveladas, e pela conformação sempre mais perfeita da vontade<br />

com estas verdades.<br />

Não basta o ideal vago de dilatar o Reinado de Jesus Cristo. É preciso que se conheça em que consiste<br />

este Reinado. É pela integridade da Fé e a pureza dos costumes que impera Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo e se dilatam os domínios da Santa Igreja, que são os seus domínios. Neste sentido é obra<br />

de apostolado toda atividade dedicada à conservação do Divino Depósito entregue à Santa Igreja íntegro<br />

e sem delapidações, quer na parte doutrinária, quer na jurídica ou moral * .<br />

* Excertos do artigo Ação Católica – problemas, realizações e ideais – Em prol da Ação Católica, publicado em O<br />

Legionário de 12/11/1944.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Flávio Lourenço<br />

Nossa Senhora da Misericórdia<br />

Catedral de Palma de Mallorca, Espanha<br />

Para alcançar a emenda<br />

de meus defeitos<br />

ÓSenhora, Vós sois a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mãe de todos os homens<br />

e, portanto, também a minha Mãe! Eu serei, talvez, o último dos filhos,<br />

mas Vós sois a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. Se meus pecados<br />

são um abismo, a vossa compaixão é uma montanha muito maior do que esse abismo.<br />

Sei que minhas preces, por si mesmas, não valem nada. Mas se o coração da mãe<br />

está sempre aberto a perdoar, amar e afagar, quanto mais o vosso, que sois a Mãe das<br />

mães! Assim, não desprezeis essas súplicas, mas atendei-as favoravelmente, pois Vos<br />

estou pedindo como filho. Alcançai-me a emenda de meus defeitos.<br />

Sei, ó Mãe, que nunca deixareis de olhar com boa vontade para o filho que pede a<br />

vossa assistência. Por isso Vos imploro com insistência: tende pena de mim e arrancai-<br />

-me de meus pecados. Assim seja.<br />

(Composta em 21/9/1991)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Venerável e<br />

lindo olhar<br />

Existem inúmeros tipos de olhares, tais como de lince, aveludados,<br />

de madrepérola, chispantes. O olhar de Dona Lucilia era pleno<br />

de venerabilidade, de doçura. Quando ela olhava para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

no convívio diário, ele tinha a impressão de que o olhar dela o<br />

considerava do alto, de longe; era inexprimível, mas admirável.<br />

6


Oque é a luz de um olhar? Que<br />

há olhares com luz é uma noção<br />

corrente, todos nós sabemos.<br />

Eu conheci muitos olhares com<br />

luz; além do venerável e lindo olhar<br />

de Dona Lucilia, apreciei também<br />

inúmeras pessoas na hora em que a<br />

graça visita a alma. Então, olhava e<br />

pensava: “É claro, Nossa Senhora<br />

neste momento está te ajudando!”<br />

Vê-se uma certa luz. Por exemplo, a<br />

luz da vocação se nota nos olhares.<br />

Há um universo de olhares<br />

O que é propriamente isso? É de<br />

experiência corrente que o melhor<br />

modo de ver o que se passa na alma de<br />

alguém é olhar para os seus olhos. O<br />

estado de alma tem seu efeito no cérebro,<br />

no sistema nervoso, na musculatura<br />

ocular e, ainda que involuntariamente,<br />

os olhos vão mostrando aquilo<br />

que a alma vai sentindo. Assim, os<br />

estados de muito comprazimento ou<br />

de muito entusiasmo da alma produzem<br />

no olhar, por não sei que condutos,<br />

uma luz que é o efeito da luz percebida<br />

pelo espírito. E por causa disso<br />

há diferenças de belezas de olhar.<br />

Há olhares que são como de lince,<br />

veem longe. Olha-se para eles e tem-<br />

-se a impressão de que, nos últimos<br />

confins do horizonte visual ou mental,<br />

aqueles olhares estão pairando.<br />

É uma forma de pulcritude.<br />

Há outros olhares, pelo contrário,<br />

que parecem precaver-se contra as<br />

longas distâncias, e iluminar de um<br />

modo ameno as proximidades, convidando<br />

à intimidade e às grandes<br />

elevações interiores.<br />

Assim, quantos e quantos olhares,<br />

de quantos e quantos jeitos! Pode-se<br />

dizer que há um universo.<br />

Há olhares que representam uma<br />

peculiar forma de alma, por onde eles<br />

são como que aveludados. Outros manifestam<br />

um tipo de alma diferente, e<br />

se poderia dizer que são de madrepérola.<br />

Existem olhares que exprimem<br />

outros estados de espírito, por onde se<br />

poderia afirmar que são chispantes.<br />

E assim por diante,<br />

quase até ao infinito.<br />

O olhar de mamãe era para<br />

mim cheio de venerabilidade,<br />

de doçura, de intimidade e, sobretudo,<br />

o que me agradava mais nesse<br />

olhar era quando ele me olhava<br />

– naquela intimidade, tantas vezes<br />

nos olhávamos –, e eu tinha a impressão<br />

de que ele me considerava<br />

do alto, de longe, uma coisa<br />

que eu não saberia como exprimir,<br />

mas é algo admirável!<br />

Uma transpalavra<br />

que conheceremos<br />

no Céu<br />

A vida inteira eu quis<br />

ter um olhar. Quando li<br />

que Nosso Senhor olhou<br />

para São Pedro e este<br />

se converteu, veio-me<br />

uma vontade enorme<br />

de um dia pôr os meus<br />

olhos nos d’Ele, vê-<br />

-Lo e ser visto por Ele.<br />

E ter essa troca de olhares<br />

por onde se percebe que cada<br />

alma penetra na outra. Com<br />

a ideia de que aquilo traria um florescimento,<br />

uma elevação, e que Ele<br />

me daria misericórdias, condescendências,<br />

bondades… Uma coisa da<br />

qual eu tinha um desejo enorme!<br />

Depois me veio naturalmente a<br />

ideia de ser fitado por Nossa Senhora.<br />

Sobretudo quando li na “Divina<br />

Comédia” – aliás, não li a “Divina<br />

Comédia”, mas trechos dela – que<br />

Dante ao chegar ao Céu – ele se representa<br />

como sendo vivo, então não<br />

pode ver a essência divina – olha para<br />

Nossa Senhora, e no olhar d’Ela<br />

ele percebe um reflexo do olhar de<br />

Deus: aí está o ápice do Paraíso!<br />

Ah! se Ela pudesse olhar para<br />

mim, um momento que fosse, e dissesse<br />

só isto: “Meu filho…”, tenho a<br />

impressão que me desfaria; eu não<br />

quereria outra coisa senão isso!<br />

Na realidade, acontece que um<br />

pouco dessa impressão nós temos às<br />

vezes, quando entramos num lugar<br />

onde está o Santíssimo Sacramento;<br />

para mim, sobretudo quando o local<br />

está vazio: uma capela, uma igreja.<br />

Há qualquer coisa no ambiente inteiramente<br />

diferente do que é fora.<br />

Temos a impressão de que penetramos<br />

num olhar o qual nos envolve,<br />

nos assume e nos diz, quase que<br />

por todos os sentidos, uma coisa a<br />

qual não sabemos o que é; é uma<br />

transpalavra que conheceremos no<br />

Céu.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

21/11/1979)<br />

Teodoro Reis<br />

7


De Maria nunquam satis<br />

Cantando pelos<br />

caminhos da Judeia<br />

Flávio Lourenço<br />

Caminhando em direção ao Templo,<br />

Nossa Senhora cantava hinos de louvor<br />

a Deus. Dos terraços da Jerusalém<br />

celeste, os Anjos se debruçavam para<br />

vê-La e ouvir seus cânticos. Tudo isso é<br />

muito bonito. Contudo, mais belo ainda<br />

deve ter sido o momento em que Maria<br />

Santíssima entrou no Templo.<br />

Em 21 de novembro se comemora<br />

a festa da Apresentação<br />

de Nossa Senhora. No<br />

livro do Padre Régamey, Les plus beaux<br />

textes sur la Vierge Marie 1 , encontramos<br />

as seguintes reflexões de São<br />

Francisco de Sales:<br />

Nossa Senhora cantava mil<br />

vezes mais graciosamente<br />

que os Anjos<br />

É um ato de admirável simplicidade<br />

o desta gloriosa criança que, presa<br />

ao regaço de sua mãe, não deixa, entretanto,<br />

de se relacionar com a Divina<br />

Majestade. Ela se absteve de falar<br />

até o momento apropriado e, mesmo<br />

assim, não o fazia senão como as outras<br />

crianças de sua idade, embora falasse<br />

sempre com sabedoria.<br />

Ela permaneceu como um suave<br />

cordeiro junto a Santa Ana pelo espaço<br />

de três anos, após os quais foi conduzida<br />

ao Templo para aí ser ofertada<br />

Santa Ana levando Maria Santíssima ao Templo<br />

Museu de Belas Artes, Rouen, França


como Samuel, que também foi levado<br />

ao Templo por sua mãe e dedicado ao<br />

Senhor na mesma idade.<br />

Ó meu Deus, como desejaria poder<br />

representar vivamente a consolação e<br />

suavidade dessa viagem, desde a casa<br />

de Joaquim até o Templo de Jerusalém!<br />

Que contentamento demonstrava<br />

essa criança, vendo chegar a hora que<br />

Ela tanto desejara!<br />

Os que iam ao Templo para adorar<br />

e oferecer seus presentes à Divina Majestade<br />

cantavam ao longo da viagem.<br />

E para isso o real profeta Davi compusera<br />

expressamente um salmo, que<br />

a Santa Igreja nos faz repetir todos<br />

os dias no Ofício Divino. Ele começa<br />

pelas palavras: “Beati immaculati<br />

in via” – “Bem-aventurados são aqueles,<br />

Senhor, que caminham na tua via<br />

sem mácula” (Sl 118, 1), sem mancha<br />

de pecado, “in via”, ou seja, na observância<br />

dos teus Mandamentos.<br />

Os bem-aventurados São Joaquim<br />

e Santa Ana entoavam então esse cântico<br />

ao logo do caminho, e nossa gloriosa<br />

Senhora e Rainha com eles.<br />

Ó Deus, que melodia! Como Ela entoava<br />

mil vezes mais graciosamente que<br />

os Anjos! Por isso ficaram eles de tal forma<br />

admirados que, aos grupos, vinham<br />

escutar essa celeste harmonia e, os Céus<br />

abertos, inclinavam-se nos alpendres da<br />

Jerusalém celeste para olhar e admirar<br />

essa amabilíssima menina.<br />

Eu quis vos dizer isso, embora rapidamente,<br />

para que tenhais com que<br />

vos entreter o resto desse dia considerando<br />

a suavidade dessa viagem. Também<br />

para que fiqueis comovidos ao ouvir<br />

esse cântico divino que nossa gloriosa<br />

Princesa entoa tão melodicamente.<br />

E isso com os ouvidos de vossa devoção,<br />

porque o muito feliz São Bernardo<br />

diz que a devoção é o ouvido da alma.<br />

Por humildade, Ela vivia<br />

como uma criança comum<br />

O fundamento teológico de tudo<br />

quanto está dito aqui é a Imaculada<br />

Conceição de Nossa Senhora.<br />

Como a Santíssima Virgem, desde<br />

o primeiro instante de seu ser, foi<br />

imaculada, Ela não tinha as limitações<br />

inerentes ao pecado original. E entre<br />

essas limitações está o fato de a pessoa<br />

nascer sem uso da sua inteligência.<br />

A pessoa nasce inteligente, mas sem<br />

o uso da sua inteligência. Esse uso só<br />

vem mais tarde com o desenvolvimento<br />

do corpo. Com Nossa Senhora não.<br />

Ela teve, desde o seu primeiro instante,<br />

o uso da sua inteligência que era,<br />

naturalmente, altíssima.<br />

De maneira que n’Ela se reuniam,<br />

num contraste admirável, o que em<br />

Nosso Senhor toma uma sublimidade<br />

que chega a ser sublimemente desconcertante.<br />

Reuniam-se na infância<br />

d’Ela, como na de Nosso Senhor, aspectos<br />

aparentemente contraditórios.<br />

De um lado, Maria Santíssima possuía<br />

uma contemplação superior à<br />

dos maiores Santos da Igreja, quando<br />

estava ainda nos primeiros passos<br />

de sua vida. Mas, de outro lado,<br />

Ela mantinha toda a atitude de uma<br />

criança. E não fazia uso externo disso,<br />

querendo, por humildade, viver<br />

como uma criança qualquer.<br />

De maneira tal que quem tratasse<br />

com Ela, a não ser por alguma expressão<br />

de olhar ou algo assim, teria<br />

a sensação de estar tratando com<br />

uma verdadeira criança comum, igual<br />

às outras. É como Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, em Menino, que queria<br />

ser nutrido, guardado, pajeado como<br />

uma criança. Embora fosse Deus, soberano<br />

Senhor e Rei do Céu e da Terra,<br />

em todas as suas manifestações<br />

externas era como uma criança.<br />

Samuel Holanda<br />

Já imaginaram como seria, na vida<br />

quotidiana de São José e de Nossa<br />

Senhora, a hora em que era preciso<br />

dar leite ou trocar de roupas a Deus?<br />

Pegá-Lo, colocá-Lo sobre uma mesa<br />

e vesti-Lo com uma roupinha, sabendo,<br />

como sabiam, que ali estava a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade,<br />

com a natureza divina hipostaticamente<br />

unida à natureza humana?<br />

Portanto, naquela criancinha que sorria<br />

estavam reunidos todos os esplendores<br />

das alegrias, da majestade e da<br />

grandeza da divindade! Quer dizer, o<br />

que isso representava era de aturdir!<br />

A meu ver, algo disso se dava também<br />

com São Joaquim e Santa Ana.<br />

Não sei se eles sabiam que Nossa Senhora<br />

seria a Mãe do Verbo Encarnado.<br />

Mas certamente pressentiam que<br />

era uma menina designada a altíssimas<br />

coisas com ordem ao Messias.<br />

Então essa Menina ali presente, levava<br />

toda a vida de uma criancinha, mas<br />

tendo em si a contemplação magnífica<br />

de um grande Doutor da Igreja.<br />

Então, nós compreendemos como<br />

se ajustam esses aspectos da benignidade<br />

extrema, afabilidade, acessibilidade<br />

de Nossa Senhora, com uma grandeza<br />

da qual os maiores homens da Terra<br />

não são senão uma minúscula figura.<br />

Local onde se<br />

manifestavam a glória e<br />

as consolações de Deus<br />

Por que isso? Porque Maria Santíssima<br />

quis que as coisas fossem assim:<br />

Rainha incomparável, era Ela,<br />

ao mesmo tempo, Menina simplicíssi-<br />

9


De Maria nunquam satis<br />

ma; tão simples que a sua vida externa<br />

era a de qualquer criança. O que,<br />

aliás, Santa Teresinha, num trecho a<br />

respeito do modo de fazer sermões<br />

sobre Nossa Senhora, comenta muito<br />

bem dizendo que ela gostaria de realizar<br />

uma pregação à maneira dela,<br />

e mostrar na Santíssima Virgem todo<br />

esse lado de bondade, de simplicidade,<br />

de acessibilidade, a ponto de ser<br />

uma criancinha que os parentes punham<br />

no colo. Possivelmente, logo<br />

que foi capaz de servir um pouco as<br />

pessoas, Ela as servia. Trazia água, fazia<br />

uma pequena atenção, etc., e era a<br />

Rainha do Céu e da Terra.<br />

Esses contrastes harmônicos têm<br />

uma tal beleza em si mesmos, que<br />

até corremos o risco de desdourá-<br />

-los tratando deles por demais longamente.<br />

Há neles qualquer coisa de<br />

insondável, diante do que é melhor<br />

manter silêncio.<br />

Ora, nessas condições e, segundo<br />

uma tradição muito generalizada,<br />

aos três anos de idade, Nossa Senhora<br />

foi levada ao Templo. E no caminho<br />

para Jerusalém, como os judeus<br />

costumavam fazer, Ela ia cantando.<br />

É lindíssimo!<br />

Como sabemos, o único Templo ficava<br />

em Jerusalém, na Judeia. Havia<br />

sinagogas onde o povo se reunia para<br />

rezar determinadas orações, ouvir<br />

as leituras e comentários das Sagradas<br />

Escrituras, mas o Templo onde se<br />

realizavam os sacrifícios era só aquele.<br />

E os judeus de todo o território de<br />

Israel, como também os dispersos pelo<br />

mundo inteiro, vinham periodicamente<br />

a Jerusalém para participar<br />

dos sacrifícios do Templo.<br />

Era uma alegria ir aonde se manifestavam<br />

a glória e as consolações de<br />

Deus, o vínculo entre o Céu e a Terra.<br />

Então, era bonito que eles fossem<br />

cantando. Aliás, como tantas vezes<br />

acontece em romarias, ao menos como<br />

se realizavam antigamente.<br />

É preciso dizer também que os métodos<br />

de locomoção modernos conspiram<br />

contra o canto. Não se pode imaginar,<br />

num subúrbio da Central do<br />

Brasil, um trem partindo para Aparecida<br />

a todo “galope” e as pessoas cantando<br />

dentro dele. Como é mais bonito<br />

ir a pé, pousando de quando em<br />

quando, parando, cantando, tocando<br />

para a frente! Isso tem outra plenitude<br />

humana, outra harmonia natural!<br />

Podemos imaginar que beleza,<br />

quando chegava o mês da visita ao<br />

Templo de Jerusalém, os judeus irem<br />

cantando e a nação judaica se encher,<br />

nos seus caminhos, de cânticos<br />

de todos os lados!<br />

Então, São Francisco de Sales<br />

conjetura a Santíssima Menina Maria<br />

cantando com uma voz inefável,<br />

com São Joaquim e Santa Ana, o<br />

cântico que Davi, por inspiração do<br />

Espírito Santo, compôs para essa circunstância.<br />

Alegria dos Anjos quando a<br />

Santíssima Virgem entrou<br />

no Templo pela primeira vez<br />

Notem como São Francisco de Sales,<br />

com uma finura de tato extraordinária,<br />

não se refere à impressão<br />

que esse canto produziria nas pessoas.<br />

Porque, precisamente como Nossa<br />

Senhora não manifestava a sua<br />

grandeza, era possível que Ela não<br />

entoasse com toda a perfeição com<br />

que sabia cantar. Ora, o cântico da<br />

Santíssima Virgem deveria ser o cântico<br />

por excelência! Nunca, nem antes<br />

nem depois, ninguém cantou como<br />

Ela, exceção feita de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo. O Redentor também<br />

cantou, e depois disso, nenhum<br />

cântico foi cântico.<br />

É bonito imaginar também outra<br />

coisa: Nossa Senhora cantando e os<br />

Anjos ouvindo as harmonias de alma<br />

com que Ela cantava. E essas harmonias<br />

os extasiavam.<br />

Como se costuma comparar o<br />

Céu à cidade de Jerusalém, São<br />

Francisco de Sales diz que dos alpen-<br />

J. Perez<br />

Virgem Maria Menina - Basílica<br />

Velha de Guadalupe, México<br />

10


Apresentação da Santíssima Virgem no Templo<br />

Museu de Belas Artes, Dijon, França<br />

dres ou dos terraços da Jerusalém<br />

celeste os Anjos se debruçavam para<br />

ver Nossa Senhora cantando pelos<br />

caminhos da Judeia, o que para eles<br />

era um gáudio inexprimível, embora<br />

os homens ignorassem aquelas harmonias<br />

de alma.<br />

Confesso que não conheço pensamento<br />

mais bonito nem mais apropriado<br />

para essa circunstância do<br />

que esse. Contudo, mais belo ainda<br />

deve ter sido o momento em que<br />

Maria Santíssima entrou no Templo.<br />

O Templo de Jerusalém na sua<br />

grandeza, na sua majestade sacral,<br />

ainda habitado pela glória do Padre<br />

Eterno, onde se realizavam os sacrifícios,<br />

o lugar mais sagrado da Terra!<br />

Imaginem o estremecimento de<br />

alegria de todos os Anjos que pairavam<br />

no Templo, no momento em<br />

que Nossa Senhora ali entrava pela<br />

primeira vez, como uma Rainha<br />

naquilo que lhe é próprio, como a<br />

joia entra no escrínio onde deve ser<br />

guardada!<br />

Tanto mais se aos Anjos foi dado a<br />

conhecer que a grande glória e a imensa<br />

tragédia do Templo estavam por se<br />

realizar. Qual era a glória? O Messias<br />

iria entrar no Templo. Qual a tragédia?<br />

O Templo iria recusar o Messias.<br />

Tragédia cujo final seria aquilo<br />

que Bossuet chama magnificamente<br />

de “as pompas fúnebres do Filho de<br />

Deus”, quando ele diz que, logo após<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo expirar, o<br />

Padre Eterno começou a preparar os<br />

funerais d’Ele: o céu se obscureceu, o<br />

Sol se toldou, a terra tremeu, o véu do<br />

Templo se rasgou. O recinto outrora<br />

sagrado ficou entregue aos demônios<br />

que fizeram ali uma espécie de sabá,<br />

à maneira de cem mil gatos selvagens<br />

soltos ali dentro.<br />

Não obstante, o Templo conheceu<br />

sua plenitude na célebre vinda de<br />

Nossa Senhora e São José, quando<br />

trouxeram o Menino Jesus, e Ana e<br />

Simeão, que representavam a fidelidade,<br />

receberam a Sagrada Família.<br />

Então os fiéis reconheceram o Enviado<br />

e se fechou o elo entre os justos<br />

da Antiga Lei e a promessa que<br />

se cumpria.<br />

Pois bem, a Santíssima Virgem, entrando<br />

no Templo de Jerusalém no<br />

momento de sua Apresentação, realizava<br />

o primeiro passo nessa plenitude<br />

da história desse lugar sagrado.<br />

O que os “Simeãos” e as “Anas”<br />

lá existentes devem ter sentido nessa<br />

hora, que graças, que fulgurações<br />

do Espírito Santo devem ter havido<br />

no Templo nessa ocasião, ninguém<br />

poderá dizê-lo, a não ser no fim do<br />

mundo. Mas sigamos o conselho do<br />

suavíssimo São Francisco de Sales e<br />

fiquemos com todas essas recordações<br />

em nossas almas, pensemos nelas,<br />

suave e alegremente, tanto quanto<br />

possível: Nossa Senhora cantando<br />

pelos caminhos, entrando no Templo<br />

de Jerusalém e, dos alpendres da Jerusalém<br />

celeste, os mais altos Anjos<br />

embevecidos com a alma dessa Menina.<br />

É uma meditação muito adequada<br />

para o dia da Apresentação<br />

de Nossa Senhora. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

21/11/1965)<br />

1) Do francês: Os mais belos textos sobre<br />

a Virgem Maria. RÉGAMEY,<br />

O.P., Pie-Raymond. Les plus beaux<br />

textes sur la Vierge Marie. Paris: La<br />

Colombe, Éditions du Vieux-Colombier,<br />

1946. p. 229-230.<br />

Flávio Lourenço<br />

11


Sagrado Coração de Jesus<br />

Francisco Barros<br />

Cristo Rei - Igreja Nossa<br />

Senhora da Consolação,<br />

Carey, EUA<br />

Grandeza régia de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

A grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo reluziu em mais<br />

de um episódio de sua vida, e de um modo muito especial na<br />

Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente<br />

toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. O ódio<br />

despertado por Ele comprova sua grandeza, porque os medíocres<br />

não suscitam ódio. Mesmo depois de morto Cristo foi odiado, o<br />

que indica ser Ele incomparavelmente grande.<br />

Arealeza de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo Lhe vem secundariamente<br />

por Ele descender<br />

de Davi, e muito principalmente pelo<br />

fato de ser Homem-Deus. Quer dizer,<br />

o Homem-Deus, onde quer que<br />

Se encontre, é Rei, e diante d’Ele, co-<br />

mo diz São Paulo (cf. Fl 2, 10), se dobre<br />

todo joelho, no Céu e na Terra!<br />

Rei dos judeus<br />

Contudo, o fato de ser apenas<br />

muito secundariamente Rei da Casa<br />

Real de Davi, não quer dizer que isso<br />

seja indiferente, nem que se deva<br />

excluir ou olhar com pouco caso essa<br />

circunstância. Porque tudo quanto<br />

diz respeito a Ele não é indiferente,<br />

tem um grande alcance, um grande<br />

valor. E, portanto, ainda que não<br />

12


seja o valor máximo, supremo, merece<br />

ser examinado a fundo.<br />

Tudo quanto sucede se insere ou na<br />

providência geral ou na especial com<br />

que Deus rege todo o universo. Mas o<br />

que diz respeito a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo tudo está regulado por uma providência<br />

especialíssima. Por causa disso<br />

merece toda a atenção, toda a análise<br />

a circunstância de Ele ser membro<br />

da Casa Real de Davi. O alcance dessa<br />

circunstância, se precisasse ainda ser<br />

demonstrado, além de ter por base as<br />

razões que acabo de alegar, possui também<br />

outro motivo: o fato de a Providência<br />

ter querido que no letreiro que<br />

encimava a Santa Cruz estivesse escrito<br />

“Jesus Nazareno, Rei dos judeus”; e<br />

isso molestou os judeus, a ponto de pedirem<br />

a Pilatos que tirasse a inscrição,<br />

tendo ele respondido: “O que eu escrevi,<br />

escrevi” (Jo 19, 22). É o senso dominador<br />

dos romanos muito bem aplicado<br />

no caso concreto: “O que eu escrevi,<br />

escrevi, não tiro mais. E se vocês não<br />

gostam, engulam com farinha.”<br />

Sempre interpretei essa resposta de<br />

Pilatos – tão bonacheirão, tão moleirão,<br />

tão indecente no que diz respeito<br />

ao seu dever de proclamar a inocência<br />

de Nosso Senhor – como um agastamento<br />

dele. Tinham-no obrigado, sob<br />

pena de ser denunciado como inimigo<br />

de César, a lavrar uma sentença que<br />

julgava injusta. E quando vieram pedir-lhe<br />

para tirar esse letreiro, ele estava<br />

agastado e, então, disse: “Não, o<br />

que eu fiz, fiz, está acabado! Pelo menos<br />

agora me deixem ser homem.”<br />

Seja como for, ficou o letreiro para<br />

sempre imortal na Cruz imortal:<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo é o Rei<br />

dos judeus. E isso supõe, então, uma<br />

certa análise desse atributo terreno:<br />

Rei dos judeus.<br />

Posse de um presidente dos<br />

Estados Unidos e coroação<br />

da Rainha da Inglaterra<br />

Toda realeza existente na Terra<br />

provém, em última análise, de Deus.<br />

Porque tudo quanto existe no universo<br />

é criado por Ele. Dante, na Divina<br />

Comédia, diz muito bem que<br />

certas criaturas são filhas de Deus,<br />

pois Ele as cria diretamente. Outras,<br />

porém, são suas netas, por serem filhas<br />

dos filhos d’Ele, mas produzidas<br />

segundo seus divinos desígnios. Assim,<br />

Deus está na origem desses seres,<br />

entre os quais se encontram as<br />

formas de governo.<br />

Por outro lado, convém àqueles<br />

que possuem o primado na Terra<br />

e na ordem temporal representar<br />

de modo mais excelente a majestade<br />

de Deus. Por isso, em todos os lugares<br />

onde o poder monárquico tenha<br />

existido, os povos têm se aplicado<br />

em representar de modo mais excelente<br />

a grandeza do rei. Por exemplo,<br />

em nossos dias os Estados Unidos<br />

constituem a maior potência<br />

temporal da Terra; e seu presidente<br />

tem, sem dúvida, um poder sobre os<br />

acontecimentos deste mundo muito<br />

maior do que o do governo inglês e,<br />

portanto, também da Rainha da Inglaterra,<br />

que é a figura simbólica e<br />

ornamental colocada no alto dessa<br />

estrutura venerável chamada governo<br />

inglês.<br />

Mas a simbologia adotada pelo<br />

povo norte-americano para exprimir<br />

o poder do seu chefe, não se reflete<br />

nas manifestações de esplendor que<br />

cercam o chefe de Estado. O presidente<br />

norte-americano deve parecer<br />

poderoso, grande, excelso, superior<br />

a todas as criaturas? Não. Por não se<br />

tratar de um poder hereditário e vitalício,<br />

que não está simbolicamente<br />

acima de todos os poderes, como<br />

o poder real, não se vê nele um reflexo<br />

tão direto e límpido da<br />

majestade divina, quanto na<br />

forma de governo monárquica.<br />

Esta é a razão pela<br />

qual a posse de um<br />

presidente norte-americano<br />

é um espetáculo<br />

jovial, acompanhado de<br />

manifestações de regozijo características<br />

de um magnata bem-sucedido<br />

nos seus negócios. Não próprias<br />

a um homem que está inteiramente<br />

consciente da representação divina,<br />

que de fato todo chefe de Estado<br />

possui.<br />

Notamos muito essa diferença ao<br />

compararmos a tomada de posse de<br />

um presidente da América do Norte<br />

com a coroação da Rainha da Inglaterra.<br />

Esta se dá dentro de uma cerimônia<br />

majestosa, esplendorosa.<br />

Formas de grandeza<br />

próprias aos reis da Terra<br />

Em Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

enquanto Rei, deveria refulgir, portanto,<br />

uma majestade temporal, com<br />

todas as formas de grandeza próprias<br />

aos reis da Terra. Antes de tudo,<br />

uma grandeza de alma, de descortínio<br />

de horizontes, de pontos de vista,<br />

por onde quem está posto no píncaro<br />

da ordem temporal desvenda<br />

coisas muito mais amplas e matizadas<br />

do que aquele que está colocado<br />

Flávio Lourenço<br />

Pilatos lava as mãos - Museu da<br />

Semana Santa, Zamora, Espanha<br />

13


Sagrado Coração de Jesus<br />

em posições inferiores. A<br />

ordem temporal constitui<br />

uma hierarquia riquíssima.<br />

No caso da monarquia, um<br />

simples trabalhador manual<br />

não é obrigado a ter, e<br />

habitualmente não possui,<br />

o descortínio e o horizonte<br />

do rei, a quem as informações<br />

mais graves, os anelos<br />

mais ardentes das várias<br />

populações chegam como<br />

os ventos no alto das montanhas.<br />

Estes não sopram<br />

nos vales com a pureza e<br />

largueza com que sopram<br />

no píncaro das montanhas.<br />

Essa largura de horizontes<br />

traz como corolário<br />

necessário a obrigação de<br />

uma virtude especial. Porque<br />

aqueles a quem a Providência<br />

deu muito, deles<br />

se exige uma retribuição<br />

especial. E, portanto, uma<br />

obrigação de ter em relação<br />

a Deus um amor, um<br />

nexo e uma humildade especiais.<br />

Nessa humildade<br />

perante Ele, poder-se-ia<br />

dizer que a glória de Deus<br />

G.Garitan (CC3.0)<br />

Henrique II toca os escrofulosos após sua<br />

coroação - Biblioteca Nacional, Paris, França<br />

baixa sobre eles e neles refulge.<br />

Uma das manifestações mais tocantes<br />

disso é o fato que encerrava as festas<br />

da coroação de um Rei da França,<br />

no Ancien Régime. Na famosa e histórica<br />

Catedral de Reims, terminada a<br />

cerimônia, do lado de fora alinhava-<br />

-se uma série interminável de doentes<br />

que padeciam de escrófula. Segundo<br />

uma tradição, o monarca recém-coroado<br />

tinha o poder, dado por Deus,<br />

de curar os escrofulosos. Então, quando<br />

havia a coroação de um rei, os escrofulosos<br />

da França inteira – e quero<br />

crer que também de outros países da<br />

Europa – acorriam para serem curados.<br />

O monarca, em traje de coroação,<br />

saía para a praça pública onde estava<br />

essa gente colocada em leitos, em cadeiras,<br />

enfim, como era possível, e tocando<br />

um a um – na coroação de Luís<br />

XVI, se não me engano, chegaram a<br />

mil e quinhentos – dizia: Le roi te touche,<br />

Dieu te guérisse – O rei toca em ti,<br />

que Deus te cure. Segundo uma antiga<br />

praxe, inabalável ao longo dos séculos,<br />

muitos saravam.<br />

Era, portanto, o poder divino que<br />

baixava através de um rei ungido por<br />

Deus e cognominado, na terminologia<br />

da Cristandade, Rex Christianissimus<br />

– o Rei Cristianíssimo – que era<br />

o Rei da França, intitulado “Sua Majestade<br />

Cristianíssima”, assim como<br />

o Rei da Espanha era “Sua Majestade<br />

Católica”, e o de Portugal “Sua<br />

Majestade Fidelíssima”; o Rei da Inglaterra,<br />

antes da heresia abjeta de<br />

Henrique VIII, intitulava-se Defensor<br />

Fidei – “Defensor da Fé”.<br />

A unção recebida na coroação era<br />

verdadeiramente um sacramental,<br />

segundo a Teologia, e o<br />

ungido do Senhor tocava e<br />

sarava, manifestando o nexo<br />

entre Deus e ele.<br />

Essas são as qualidades<br />

espirituais às quais, normalmente,<br />

deveria corresponder<br />

uma aparência física.<br />

O rei não tem obrigação<br />

de ser bonito. Ninguém escolhe<br />

o próprio rosto. Mas,<br />

de qualquer forma, convinha<br />

que o rei tivesse, em<br />

grau eminente, a pulcritude.<br />

Por causa da sua condição,<br />

convém ao monarca<br />

uma indumentária, trajes à<br />

altura daquilo que ele deve<br />

refletir. Isso enquanto à sua<br />

pessoa. Também seu modo<br />

de reinar deve ser esplêndido<br />

como tudo quanto nele<br />

há. Eis o que caracteriza<br />

um grande rei.<br />

Transfiguração no<br />

Tabor e Domingo<br />

de Ramos<br />

Como ver todas essas<br />

qualidades em Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, que não andou pela<br />

Terra como Rei? Mesmo no Domingo<br />

de Ramos, quando Ele foi objeto de<br />

uma grande homenagem da parte do<br />

povo de Jerusalém, era aclamado como<br />

Filho de Davi, mas não houve nenhum<br />

atentado para tirar Herodes do<br />

cargo, nem algo semelhante. Ele foi<br />

aclamado como homem que tinha, entre<br />

suas glórias, a de descender de Davi.<br />

Um homem eminente, um santo,<br />

mas não era por isso que estavam restaurando-O<br />

politicamente na realeza.<br />

Pelo contrário, era filho de um príncipe<br />

pobre como São José, que exercia<br />

a profissão de carpinteiro. Como entrar<br />

em Nosso Senhor essa grandeza e<br />

todos esses requisitos de Rei? Em alguma<br />

coisa deveria ter aparecido porque,<br />

se Ele possuía, havia de aparecer<br />

em certo momento, pois Ele veio pa-<br />

14


a Se manifestar por inteiro a todos os<br />

homens.<br />

Em mais de um episódio da vida<br />

d’Ele, essa grandeza real reluziu.<br />

Mas de um modo muito especial,<br />

intencional, na Transfiguração no<br />

Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente<br />

toda a sua majestade como<br />

Rei e, sobretudo, como Deus.<br />

Eu falei dos trajes reais. Quando<br />

Jesus Se transfigurou, sua veste era<br />

alva como a neve (cf. Mt 17, 2). A<br />

respeito dos lírios do campo, Ele disse<br />

que ninguém era capaz de se vestir<br />

como um deles (cf. Mt 6, 28-29).<br />

Ora, a túnica em que Ele estava envolto<br />

deveria ter sido elaborada por<br />

Nossa Senhora; nunca houve tecido<br />

igual. Imaginem como estava ela, refulgindo<br />

como a neve!<br />

Ele estava tão esplendoroso, mostrando-Se<br />

na sua verdadeira glória e<br />

deixando-a transparecer aos Apóstolos<br />

por Ele convocados para o alto<br />

do monte, que eles ficaram não<br />

só maravilhados, mas não queriam ir<br />

embora. São Pedro propõe ficar ali<br />

em cima, arranjarem tendas e não<br />

sair mais (cf. Mt 17, 4).<br />

Em toda a História não se viu<br />

um rei que fosse objeto dessa aclamação:<br />

“Vamos ficar aqui juntos de<br />

vós, não precisamos mais do resto<br />

do mundo, ficaremos olhando para<br />

vós!” Pelo contrário, o rei é muito<br />

admirável, mas as pessoas gostariam<br />

de lhe dizer: “Senhor, dai-me cargo,<br />

dinheiro, honra... Desejo vos servir,<br />

mas quero que também vós me sirvais.<br />

Nada de ficar aqui parado só<br />

para vos olhar. Quero ser fiel, sede<br />

fiel vós também. Aliás, antes mesmo<br />

de vos ter prestado serviço, já tenho<br />

a lista dos benefícios que quero<br />

de vós. E quando os receber, mostrarei<br />

ao povo, nas ruas da capital, para<br />

ser apreciado e admirado eu também.<br />

Isso de viver só para vos admirar<br />

não basta…” Esta é a história de<br />

todas as monarquias terrenas.<br />

Com Nosso Senhor não. Ele apareceu<br />

em sua majestade. Reação:<br />

“Fiquemos aqui, não precisamos de<br />

mais nada!”<br />

Além da esplendorosa manifestação<br />

de sua realeza no Tabor, Ele<br />

teve também a do Domingo de Ramos<br />

à qual aludi há pouco. Embora<br />

não tenha sido saudado como Rei,<br />

é evidente que aquele povo aclamava<br />

n’Ele uma majestade pessoal, presente<br />

n’Ele, que se exprime na Ladainha<br />

do Sagrado Coração de Jesus<br />

com esta invocação magnífica: Cor<br />

Iesu, maiestatis infinitæ, miserere nobis<br />

– Coração de Jesus, de majestade<br />

infinita, tende compaixão de nós.<br />

Majestade de Nosso Senhor<br />

na morte, na Ressurreição...<br />

O que quer dizer coração aqui? O<br />

culto incide sobre o Coração de carne<br />

d’Ele, símbolo da alma, do espírito,<br />

da mentalidade, dos desejos, dos<br />

propósitos, os quais eram de uma majestade<br />

infinita. O que isso significa?<br />

Tudo quanto Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo queria era de uma grande-<br />

za ilimitada; o que Ele inteligia possuía<br />

um descortínio sem fim; nos desígnios<br />

d’Ele, a bondade era de uma<br />

majestade infinita, como também<br />

sua justiça. Ele deixou claro que a<br />

manifestação dessa justiça, de uma<br />

majestade infinita, estaria reservada<br />

para depois. E foi guardada para sua<br />

morte e o dia em que vier julgar os<br />

vivos e os mortos no fim do mundo,<br />

quando Ele virá na majestade de Rei<br />

e de Deus, acumuladas.<br />

A majestade da morte do Divino<br />

Redentor! Ele morreu sob o desprezo<br />

geral, compensado pela adoração<br />

indizivelmente preciosa de Nossa<br />

Senhora e, num grau respeitável,<br />

mas enormemente menor – porque<br />

tudo quanto existe, exceto Nosso Senhor,<br />

é incomparavelmente menor<br />

do que Maria Santíssima – pela adoração<br />

de São João, das santas mulheres,<br />

do bom ladrão. Iniciam-se, então,<br />

o que Bossuet – o grande Bispo<br />

de Meaux, na França, e pregador sacro<br />

dos mais eminentes – chama de<br />

“os funerais do Filho de Deus”.<br />

Entrada de Nosso Senhor em Jerusalém no Domingo de Ramos<br />

Igreja de Nossa Senhora da Purificação, Almendralejo, Espanha<br />

Flávio Lourenço<br />

15


Sagrado Coração de Jesus<br />

Que rei teve ou terá semelhantes<br />

funerais? A terra treme, o Sol se<br />

obscurece, o véu do Templo se rasga.<br />

Com o tremor da terra, as sepulturas<br />

dos justos do Antigo Testamento<br />

se abrem e eles saem pelas ruas<br />

(cf. Mt 27, 52), exprobrando a todos<br />

os homens maus o pecado de deicídio<br />

que tinham cometido, pois era o pecado<br />

da nação inteira. Quando o povo<br />

disse: “Que o sangue d’Ele caia sobre<br />

nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,<br />

25), o pecado da nação foi cometido.<br />

Então, a acusação desses pecadores<br />

se faz com essa majestade suprema.<br />

Porém, a majestade de Jesus, Nosso<br />

Senhor, se mostra também quando<br />

Ele, ressurreto, aparece a Maria<br />

Santíssima. Tenho como certo, embora<br />

não esteja dito na Sagrada Escritura,<br />

que ao ressuscitar, antes de<br />

Se manifestar a qualquer outra criatura,<br />

Ele apareceu a Ela.<br />

Nosso Senhor rompeu a sepultura,<br />

os Anjos atiraram ao chão a pedra<br />

funerária e Ele saiu (cf. Mt 28, 1-3),<br />

e todas as cicatrizes da Paixão refulgiam<br />

como sóis! Depois, todas as aparições<br />

d’Ele se revestiram<br />

dessa nota de majestade.<br />

Por exemplo, Ele entra<br />

no local em que se encontravam<br />

reunidos os discípulos,<br />

ninguém sabe por<br />

onde (cf. Jo 20, 19). Estava<br />

com seu Corpo glorioso,<br />

as portas e janelas fechadas<br />

não adiantavam<br />

de nada, Ele as atravessava.<br />

Que majestade entrar<br />

através de um muro que<br />

ninguém derrubou! Muitos<br />

reis na História derrubaram<br />

muralhas... Transpô-las<br />

sem as ter derrubado,<br />

só o Rei Jesus Cristo!<br />

Ele aparece tão bondoso,<br />

tão amoroso, mas<br />

incute tanto medo que as<br />

palavras d’Ele às santas<br />

mulheres são: “Não temais!”<br />

(Mt 28, 10).<br />

Samuel Holanda<br />

...e na Ascensão<br />

É indescritível o que deve ter aparecido<br />

de grandeza d’Ele na Ascensão!<br />

Enquanto falava, ia Se elevando<br />

lentamente. À medida que Se aproximava<br />

do céu, não levado por Anjos,<br />

mas por sua própria força, ia ficando<br />

mais reluzente, mais majestoso!<br />

Em certo momento, desaparece.<br />

Pode-se imaginar a alegria de Maria<br />

Santíssima por ver glorificado o<br />

Filho que Ela vira tão humilhado!<br />

Mas, de outro lado, o que estava se<br />

passando n’Ela, de tristeza por causa<br />

da separação...<br />

Havia, entretanto, uma consolação.<br />

Tenho a impressão muito forte<br />

e vincada de que Deus não recusou<br />

a Nossa Senhora a graça concedida<br />

por Ele a numerosos Santos:<br />

amaram tanto o Santíssimo Sacramento<br />

que, a partir de determinado<br />

momento de suas vidas, nunca mais<br />

a Sagrada Eucaristia deixou de estar<br />

presente neles. Comungavam, e as<br />

Sagradas Espécies ficavam no Santo<br />

até que ele comungasse novamente.<br />

Foi o caso, por exemplo, de Santo<br />

Ascensão de Jesus - Igreja do Sagrado<br />

Coração de Jesus, Santander, Espanha<br />

Antônio Maria Claret, fundador dos<br />

padres do Coração de Maria, no século<br />

XIX. Ele veio a ser, assim, um<br />

tabernáculo vivo de Nosso Senhor.<br />

Tendo Nossa Senhora sido, no período<br />

de gestação, o Tabernáculo vivo<br />

do Salvador, será que Ele indo para<br />

o Céu não manteve n’Ela esta condição?<br />

Pelo menos a partir da primeira<br />

Missa, creio que jamais Nosso Senhor<br />

deixou de estar presente em sua Mãe<br />

virginal. Após a Ascensão, certamente<br />

Ela pensava: “Ele está no Céu, mas<br />

também aqui!” Os Apóstolos, por sua<br />

vez, com certeza cogitavam em celebrar<br />

já no dia seguinte e recebê-Lo,<br />

por tempo maior ou menor, em seus<br />

corações. A presença eucarística começava,<br />

assim, a consolar a Igreja<br />

dessa longa separação de muitos mil<br />

anos, que cessará quando Ele vier no<br />

dia do Juízo Final.<br />

Grandeza até nas<br />

piores humilhações<br />

Pode-se imaginar grandeza régia<br />

comparável a essa? Pois bem, há mais.<br />

Que Nosso Senhor fosse<br />

adorado no seu esplendor,<br />

está explicado. Mas<br />

não é só isso. Os inimigos<br />

d’Ele, querendo achincalhá-Lo,<br />

sujeitaram-No às<br />

humilhações da Paixão.<br />

De ponta a ponta, Ele bebeu<br />

inteira a taça de todas<br />

as dores e vexações possíveis.<br />

Os algozes não supunham<br />

que ao longo dos séculos<br />

começaria uma adoração<br />

de cada humilhação<br />

sofrida por Ele, e que<br />

diante de imagens representando-O<br />

sentado com a<br />

coroa de espinhos, o manto<br />

de irrisão e a vara de<br />

cretino na mão, os maiores<br />

sábios se ajoelhariam<br />

e chorariam de emoção.<br />

Os reis mais poderosos tomariam<br />

por elogio exage-<br />

16


ado serem comparados,<br />

de longe, a esse Rei sentado<br />

naquele trono dos bobos.<br />

Aquele Homem dignificaria<br />

de tal maneira a<br />

Cruz na qual fora cravado<br />

que, no alto de todas<br />

as coroas das nações católicas,<br />

a cruz seria o sinal<br />

da glória.<br />

Quer dizer, ninguém<br />

foi, nem de longe, tão<br />

grande quanto Ele, considerado<br />

não só nas horas<br />

de glória, mas nas de<br />

pior humilhação. Aliás,<br />

mesmo nessas horas, Ele<br />

deu sinais de poder incríveis<br />

como, por exemplo,<br />

ao bom ladrão, a quem<br />

o Divino Crucificado canonizou<br />

no alto do Calvário,<br />

com esta promessa<br />

pronunciada por quem é<br />

Rei do Céu e da Terra:<br />

“Hoje estarás comigo no<br />

Paraíso” (Lc 23, 43). Notem!<br />

A promessa não é a<br />

seguinte: “Hoje estarás<br />

no Paraíso.” Jesus sabia<br />

que se não dissesse que<br />

estaria com Ele a promessa<br />

não seria completa, pois um<br />

Paraíso onde não estivesse Ele não<br />

seria Paraíso. Que realeza!<br />

O maior ódio da História<br />

até o fim dos séculos<br />

Certa ocasião, um historiador<br />

francês cético fez esse comentário:<br />

Os historiadores costumam passar<br />

por cima da figura de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo. Eu lhes pergunto quem<br />

é o homem que tenha, ao longo da<br />

História, conseguido que tantos outros<br />

se pusessem de joelhos com tanta<br />

humildade, e se considerado honrados<br />

por terem se ajoelhado diante<br />

de sua figura? Se depois disso ele<br />

não é digno de entrar na História, o<br />

que faz a História?<br />

A Coroação de espinhos - Igreja de Santa María<br />

La Blanca - Villalcazar de Sirga, Espanha<br />

Esses compêndios de História<br />

usados nos colégios, mesmo em universidades,<br />

tratam de toda espécie<br />

de coisas, d’Ele não falam. Ora, Nosso<br />

Senhor é o centro da História. E<br />

se Ele não foi grande, quem o foi?<br />

Alguém poderia objetar: “<strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, levado pelo seu entusiasmo,<br />

o senhor está ladeando o problema.<br />

Está provado que César, Carlos<br />

Magno, Napoleão existiram, mas<br />

quem provou que Jesus existiu?”<br />

Ora, é a existência histórica mais<br />

certa que há! Porque todas as razões<br />

pelas quais nós acreditamos que César<br />

existiu, nos levam a crer que Jesus<br />

Cristo existiu.<br />

Um cretino, certa vez, me perguntou:<br />

“Onde estão os originais dos<br />

Evangelhos?”<br />

Flávio Lourenço<br />

A resposta possível<br />

era: A Causa Católica estaria<br />

muito mal servida<br />

se o fosse por você! Porque<br />

se houvesse em algum<br />

lugar uma pilha de<br />

pergaminhos com os originais<br />

dos quatro Evangelhos,<br />

quem nos garantiria<br />

serem, de fato, os<br />

originais? Não provariam<br />

nada! Poderiam ser<br />

um muito bom objeto<br />

de culto, de investigação<br />

histórica, um documento<br />

antigo; prova, não. Seria<br />

preciso provar que aquelas<br />

provas eram provas.<br />

Agora, eu pergunto:<br />

onde estão os originais<br />

das Catilinárias de Cícero?<br />

Não obstante, quem<br />

põe em dúvida que Cícero<br />

existiu e que é o autor<br />

daquelas Catilinárias?<br />

Ninguém, por uma série<br />

de razões históricas.<br />

Estas existem no caso de<br />

Nosso Senhor com superabundância.<br />

Pode ser razão de<br />

grandeza o ódio que alguém<br />

despertou? Sim, porque os medíocres<br />

não despertam ódio. Para ser<br />

odiado como Nosso Senhor o foi, até<br />

depois de morto, há uma forma de<br />

grandeza régia. Até nisso Ele foi e é<br />

incomparavelmente grande. Ele será<br />

odiado com o maior ódio da História<br />

até o fim dos séculos. Quando o Anticristo<br />

vier, será uma espécie de personificação<br />

do ódio contra Ele. Também<br />

a vitória d’Ele sobre o Anticristo será<br />

alcançada de um modo que nunca<br />

nenhum rei teve: com o sopro da boca<br />

Ele o liquida (cf. 2Ts 2, 8). Não é nem<br />

sequer o tato de um peteleco, é um sopro<br />

da boca! Reduzido a pó, acabou a<br />

História, começa o julgamento! v<br />

(Extraído de conferência de<br />

3/9/1986)<br />

17


Flávio Lourenço<br />

C<br />

alendário<br />

dos Santos – ––––––<br />

5. Solenidade de Todos os Santos.<br />

6. São Paulo, bispo e mártir (†350).<br />

Por manter a Fé professada no Concílio<br />

de Niceia, os arianos expulsaram-no<br />

diversas vezes de sua sede<br />

em Constantinopla, à qual retornava<br />

com grande heroísmo. Por fim, o Imperador<br />

Constâncio o exilou à Capadócia,<br />

onde foi cruelmente estrangulado,<br />

segundo a tradição, por insídias<br />

dos arianos.<br />

9. Dedicação da Basílica de Latrão.<br />

São Teodoro, mártir (†s. III).<br />

10. São Leão Magno, Papa e Doutor<br />

da Igreja (†461). Combateu as heresias<br />

do eutiquianismo e do donatismo e enfrentou<br />

sozinho Átila, Rei dos Hunos,<br />

que não invadiu a Cidade Eterna porque<br />

ficou impressionado pela extraordinária<br />

força moral do Pontífice.<br />

11. São Martinho de Tours, bispo<br />

(†397).<br />

Santo Estanislau Kostka<br />

1. São João, bispo, e São Jacob,<br />

presbítero, mártires (†344). Por defenderem<br />

a Fé Católica, foram encarcerados<br />

durante o reinado de Sapor<br />

II, na Pérsia, e consumaram seu martírio<br />

um ano depois, mortos à espada.<br />

2. Comemoração de todos os Fiéis<br />

Defuntos.<br />

3. São Martinho de Porres, religioso<br />

(†1639). Ingressou aos 15 anos como<br />

oblato em um convento dominicano<br />

de Lima, no qual mais tarde professou<br />

como irmão leigo. Exerceu habitualmente<br />

os mais humildes serviços<br />

com despretensão e amor de<br />

Deus. Encarregado da enfermaria,<br />

possuía um verdadeiro dom para tratar<br />

os doentes, curando-os não apenas<br />

fisicamente, mas também fazendo<br />

bem às suas almas.<br />

4. São Carlos Borromeu, bispo<br />

(†1584). Foi perfeito modelo de pastor<br />

das almas, aplicando em Milão as reformas<br />

ordenadas pelo Concílio de Trento.<br />

Flávio Lourenço<br />

Aparição de São Paulo a<br />

Santo Alberto Magno e<br />

São Tomás de Aquino<br />

7. Beato Francisco Palau, religioso<br />

(†1872). Da Ordem dos Carmelitas<br />

descalços, possuía um particular<br />

discernimento do papel desempenhado<br />

pelo demônio no mundo, e esforçou-se<br />

para que a Igreja ampliasse o<br />

uso do exorcismo como arma espiritual<br />

adequada às necessidades dos fiéis.<br />

8. Cinco Santos Escultores, mártires<br />

(†306). Foram decapitados por se recusarem<br />

a esculpir estátuas de ídolos.<br />

Flávio Lourenço<br />

12. XXXII Domingo do Tempo Comum.<br />

13. Santo Estanislau Kostka, religioso<br />

(†1567). Convidado a ingressar na<br />

Companhia de Jesus pela própria Santíssima<br />

Virgem, encontrou grandes dificuldades<br />

para atender ao chamado,<br />

pois seu pai, embora católico, opôs-se<br />

inabalavelmente à vocação religiosa de<br />

Estanislau. Tendo feito o heroico voto<br />

de peregrinar pela Terra inteira, se necessário<br />

fosse, até encontrar uma casa<br />

São Martinho de Tours<br />

18


–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />

da Companhia de Jesus que o quisesse<br />

aceitar sem a licença do pai, caminhou<br />

700 km, de Viena até a Alemanha, à<br />

procura de São Pedro Canísio, que o<br />

acolheu com bondade e o encaminhou<br />

a Roma, com uma carta de recomendação<br />

a São Francisco de Borja. Foi, então,<br />

aceito como noviço da Companhia,<br />

mas permaneceu nessa condição somente<br />

nove meses, pois morreu na Festa<br />

da Assunção de Nossa Senhora. Não<br />

chegou a completar 17 anos de idade.<br />

14. São Serapião, mártir (†s. III).<br />

Foi martirizado no Egito, durante a<br />

perseguição do Imperador Décio.<br />

15. Santo Alberto Magno, bispo e<br />

Doutor da Igreja (†1280).<br />

16. Santa Margarida, Rainha da<br />

Escócia (†1093). Ver página 2<br />

17. Santa Isabel, Rainha da Hungria,<br />

esposa e religiosa (†1231)<br />

Santa Hilda, abadessa (†680).<br />

18. São Romano, diácono e mártir.<br />

Por ter incentivado os cristãos perseguidos<br />

a permanecerem firmes e<br />

constantes em sua Fé, foi aprisionado<br />

e morreu estrangulado.<br />

19. XXXIII Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

20. Santo Edmundo, mártir (†870).<br />

Ver página 20<br />

21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />

Ver página 8<br />

São Gelásio, Papa (†496).<br />

22. Santa Cecília, virgem e mártir<br />

(†s. III).<br />

23. São Columbano, abade (†615).<br />

Tendo abraçado a vida monástica, partiu<br />

da Irlanda, sua terra natal, para a<br />

França, onde fundou muitos mosteiros<br />

que governou com austera disciplina.<br />

24. Santos André Dung-Lac, presbítero,<br />

e companheiros, mártires (†s.<br />

XVII-XIX).<br />

São Saturnino quebrando os ídolos diante do prefeito<br />

25. Santa Catarina de Alexandria,<br />

virgem e mártir (†305). Conduzida<br />

diante do Imperador por ser cristã, censurou-o<br />

corajosamente por perseguir a<br />

Religião verdadeira, fez a apologia do<br />

Cristianismo e demonstrou a falsidade<br />

dos cultos idolátricos. O Imperador, encolerizado,<br />

condenou-a à morte.<br />

26. Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei<br />

do Universo. Ver página 12<br />

27. Santa Catarina Labouré, virgem<br />

(†1876).<br />

28. Santa Teodora, abadessa<br />

(†980). Discípula de São Nilo, o Jovem,<br />

mestra na vida monástica.<br />

29. São Saturnino, bispo e mártir<br />

(†s. III). Enviado para a evangelização<br />

das Gálias, fundou a diocese de<br />

Toulouse. Segundo um relato do século<br />

V, incorreu na ira dos sacerdotes<br />

de Júpiter, porque sua simples presença<br />

tornava mudo o ídolo ao qual<br />

eles costumavam sacrificar um touro.<br />

Certo dia, os devotos de Júpiter<br />

prenderam São Saturnino e exigiram<br />

que fosse ele próprio sacrificar o touro.<br />

Diante da recusa do Santo, que<br />

ademais desafiou Júpiter a fulminá-<br />

-lo com um raio se fosse capaz disso,<br />

os pagãos o condenaram a ser arrastado<br />

até à morte pelo mesmo touro. Por<br />

uma piedosa lembrança, os toureiros<br />

o têm, na Espanha, como seu protetor<br />

especial.<br />

30. Santo André, Apóstolo (†s. I).<br />

Flávio Lourenço<br />

19


Hagiografia<br />

Flávio Lourenço<br />

Lindo<br />

exemplo<br />

para os<br />

governantes<br />

eclesiásticos<br />

20<br />

Santo Edmundo - Igreja de São<br />

Marcial, Angoulême, França<br />

O Rei Santo Edmundo foi<br />

martirizado porque não<br />

aceitou fazer negociações<br />

de paz com os pagãos,<br />

pois isto significava a<br />

apostasia de seus súditos.<br />

Seu sangue fez com<br />

que toda a Inglaterra se<br />

cristianizasse e, até a época<br />

do protestantismo, ela foi<br />

uma nação católica que<br />

durante algum tempo se<br />

chamou Ilha dos Santos.


C<br />

omentaremos uma síntese<br />

biográfica sobre Santo Edmundo,<br />

extraída do livro Os<br />

Santos Militares, do General Silveira<br />

de Mello 1 .<br />

Enfrentando o inimigo<br />

por excelência<br />

Edmundo, que fora muito bem<br />

educado na Religião Católica, tornou-<br />

-se modelo de cristão para seu povo.<br />

Justo e bom, era homem de invulgar<br />

energia. Percebeu cedo o perigo que<br />

representavam os escandinavos para<br />

seu país e preparou-se militarmente,<br />

assim como dispôs seu povo para uma<br />

possível guerra.<br />

Os escandinavos eram, naquele<br />

tempo, o grande perigo dos povos civilizados.<br />

Hoje tão pacíficos, entretanto<br />

foram no passado os tiranos<br />

dos mares. Eles ocupavam a Escandinávia<br />

e deitavam aquelas migrações<br />

pelos mares, que iam descendo<br />

pelos vários lugares da Europa e que<br />

representavam, digamos, a última leva<br />

das invasões bárbaras no continente<br />

europeu.<br />

Para se ter uma certa ideia de qual<br />

era o espírito deles, alguns usavam<br />

o título de reis do mar, porque eram<br />

monarcas de povos que viviam em<br />

barcos – juntamente com as mulheres,<br />

os filhos e tudo o mais – fazendo<br />

pirataria de um lado e de outro. Aliás,<br />

eram barcos com umas proas lindas,<br />

de uma audácia e arrogância de<br />

que a Suécia e Dinamarca perderam<br />

completamente o segredo. Com a<br />

queda das proas caiu tudo. Fala-se de<br />

figuras de proa; poder-se-ia dizer que<br />

cada povo tem a proa que merece.<br />

De maneira que preparar o seu<br />

povo contra a invasão desses inimigos<br />

significava enfrentar o inimigo<br />

por excelência.<br />

Não se enganou em suas previsões.<br />

De fato, os dinamarqueses atacaram<br />

o reino inglês. No primeiro combate<br />

foram duramente rechaçados, mas,<br />

unindo esforços num grande número,<br />

venceram a Santo Edmundo e o aprisionaram<br />

em Hoxne.<br />

Ele venceu uma primeira leva de<br />

inimigos que atacou o seu reino. Mas<br />

eles concentraram-se e naturalmente<br />

o esmagaram, pelo grande número<br />

que tinham desembarcado em vários<br />

pontos da Inglaterra.<br />

Nexo entre os assuntos<br />

políticos e os religiosos<br />

O chefe dos adversários fez várias<br />

propostas de paz ao santo rei, que as<br />

recusou por serem contra a Religião<br />

Católica e os direitos de seus súditos.<br />

Foi duramente supliciado e, por fim,<br />

decapitado. Foi martirizado a 20 de<br />

novembro de 870.<br />

Um Concílio nacional reunido em<br />

Oxford, em 1122, tornou obrigatória a<br />

festa do mártir. Suas relíquias, inclusive<br />

um saltério que usava diariamente,<br />

foram veneradas na Abadia de Cluny<br />

até o surto da heresia protestante.<br />

Preso e levado para Hoxne, Santo<br />

Edmundo foi intimado a fazer negociações<br />

de paz pelas quais ele cedia<br />

seu reino aos vencedores. Ora,<br />

ele não queria fazer isso porque seria<br />

entregar seu povo aos pagãos e<br />

favorecer o restabelecimento da religião<br />

pagã naquele local. Ele resistiu<br />

e, então, foi morto.<br />

Vemos a alta consciência que tinha<br />

esse homem do papel de rei, de<br />

suas obrigações e das relações entre<br />

os assuntos políticos e os religiosos.<br />

Ele tinha noção de que a queda<br />

dele e a implantação de uma dinastia<br />

de reis pagãos traria a paganização<br />

do Estado e dos indivíduos. Causaria,<br />

portanto, a apostasia daqueles povos,<br />

a perdição das almas. Ele compreendia<br />

muito bem o nexo entre a vida política,<br />

a forma do Estado e a forma religiosa,<br />

e por isso se manteve fiel até o<br />

fim, sendo martirizado.<br />

Michael Zeno Diemer (CC3.0)<br />

21


Hagiografia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Por que razão queriam que ele renunciasse?<br />

Naturalmente porque Santo Edmundo<br />

continuava a ter prestígio, senão<br />

a sua renúncia não adiantava de<br />

nada. É porque era difícil consolidar a<br />

conquista, enquanto não houvesse uma<br />

prova de que ele tinha renunciado.<br />

Talvez os inimigos quisessem até levá-lo<br />

a seu próprio reino para declarar<br />

aos seus súditos que ele tinha renunciado.<br />

Santo Edmundo entendeu isso e<br />

não quis renunciar, provavelmente na<br />

esperança de que seus súditos organizassem<br />

uma espécie de revolução, de<br />

guerrilha contra o ocupante para salvar<br />

a Fé. E ele regou com seu sangue essa<br />

esperança de uma restauração católica.<br />

Devemos ser fiéis até a<br />

morte à nossa vocação<br />

Que lindo exemplo para os governantes<br />

eclesiásticos! Sem dúvida, o<br />

sangue desse rei valeu porque, de fato,<br />

a Inglaterra acabou se cristianizando<br />

inteira e, até a época do protestantismo,<br />

ela foi uma nação católica<br />

que durante algum tempo se<br />

chamou Ilha dos Santos, tal foi o número<br />

de bem-aventurados que nesse<br />

país floresceram.<br />

Devemos pedir a Nossa Senhora<br />

que nos dê muitos homens de Estado<br />

e muitos homens de Igreja que tenham<br />

esse espírito. Porque enquanto<br />

os povos católicos, no campo temporal<br />

e, sobretudo, no espiritual, não são governados<br />

por homens dispostos a derramar<br />

seu sangue pela Santa Igreja,<br />

eles não são dirigidos por quem preste.<br />

Só governa bem quem está disposto<br />

a levar a fidelidade a seus princípios<br />

e a seu cargo até o martírio; do contrário<br />

não vale de nada.<br />

Assim como um militar que não<br />

está disposto a morrer é igual a zero,<br />

um bispo, um príncipe, um rei, um<br />

alto governante que não esteja decidido<br />

a morrer para o cumprimento<br />

de seu dever é igual a absolutamente<br />

zero. Os altos cargos exigem a alta<br />

coragem. São os cargos pequenos<br />

que podem se acomodar com o valor<br />

moral normal. Os grandes cargos requerem<br />

o grande espírito de dedicação,<br />

o grande sacrifício.<br />

Entretanto, será um cargo o que<br />

Deus concede de mais alto a um homem?<br />

O que vale mais: um cargo ou<br />

uma vocação? Não há situações em<br />

que uma vocação vale mais do que<br />

um cargo?<br />

Nós temos mais do que um alto<br />

cargo, possuímos uma alta vocação.<br />

Pensemos no exemplo desse rei<br />

para termos sempre a deliberação de<br />

sermos fiéis até a morte à nossa vocação.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

20/11/1970)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1970<br />

1) Não dispomos dos dados bibliográficos<br />

desta obra.<br />

22


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Leandro W.<br />

Cochem às margens do<br />

Rio Mosel, Alemanha<br />

Como se forma o<br />

costume - II<br />

O modo de ser de um povo está relacionado com o<br />

cenário da natureza em que ele vive. A graça divina<br />

conserva tudo aquilo que um povo possui de bom,<br />

eleva-o e orienta-o para se tornar cada vez melhor; sua<br />

força geradora de costumes é incomparável.<br />

V<br />

amos pegar o costume no<br />

seu nascedouro: suponham<br />

que houvesse, de repente,<br />

um deslocamento qualquer da Terra<br />

e o clima alemão passasse a ser sensivelmente<br />

diferente. Por exemplo, dado<br />

a quente, um clima mediterrâneo.<br />

O costume ou é regional<br />

ou não existe<br />

Como o povo todo está muito unido<br />

numa mesma mentalidade, cons-<br />

titui neste sentido uma família de almas,<br />

a mudança de clima haveria de<br />

atingir a vida particular dos indivíduos,<br />

mais ou menos do mesmo modo,<br />

mas as reações dos indivíduos a essa<br />

alteração que tivesse se passado seriam<br />

idênticas ou afins, por causa da<br />

grande conaturalidade de uns com<br />

os outros. E seria uma reação, tomada<br />

em nível individual e familiar, que<br />

atenderia todas as percepções da vida<br />

individual e familiar nessa nova<br />

situação.<br />

Se fosse um povo razoável, não<br />

trabalhado pela verminose de mil<br />

preguiças nem pelas descargas nervosas<br />

de mil torcidas, mas de um fluxo<br />

vital normal, sentiria os problemas<br />

e iria ajeitando aos poucos, em<br />

parte se adaptando, em parte adaptando<br />

as coisas a si, e levaria uns vinte<br />

ou trinta anos até se conformar à<br />

situação nova.<br />

Nesse povo, cada indivíduo se<br />

adapta com um conhecimento meticuloso<br />

e profundo da sua situação<br />

23


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Mirabella (CC3.0)<br />

pessoal e de sua família. E isto feito<br />

numa região inteira, com os recursos<br />

que eles vão utilizando para fazer<br />

face àquilo, e surge uma solução<br />

que nenhum instituto oficial poderia<br />

encontrar, nem professor universitário<br />

seria capaz de fazer daquele jeito.<br />

Pela colaboração de milhares de<br />

pessoas, instintivamente, para resolver<br />

uma determinada dificuldade,<br />

auscultando cada um a si e também<br />

os outros, ninguém querendo romper<br />

para uma solução genial individual,<br />

mas compreendendo que deve<br />

estar no ritmo de uma solução coletiva;<br />

então, o povo vai adaptando,<br />

adaptando, adaptando a ponto de<br />

dar uma obra-prima.<br />

Serve de exemplo para isso um<br />

queijo famoso da Córsega, para cuja<br />

composição são utilizadas duzentas ou<br />

trezentas ervas. Como chegaram a conhecer<br />

essas ervas e obtiveram um tipo<br />

perfeito de queijo? Evidentemente,<br />

diante de uma natureza pobre,<br />

com aquelas montanhas, às apalpadelas,<br />

uma região inteira foi à procura<br />

de uma fórmula. E houve bastante<br />

nobreza de espírito para que cada um,<br />

Rochedos da Ilha da Córsega<br />

inventando uma coisa nova, os outros<br />

soubessem que era melhor ou não, e<br />

fizessem uma seleção. E disto nascesse<br />

um costume a respeito de queijo.<br />

Mas isso que se dá com o queijo,<br />

ocorre com o traje, a construção, o<br />

cântico, os sistemas de educação regionais;<br />

tudo isso nasceu do costume<br />

assim. Trata-se de uma obra-prima<br />

que nenhum gênio humano é capaz<br />

de fazer.<br />

Eles não têm gênios aos borbotões;<br />

seria uma hipertrofia e uma desgraça<br />

para a nação. Eles possuem pessoas<br />

de um bom quilate individual, inteligentes,<br />

as quais esperneiam, sabem<br />

se meter, que é uma coisa<br />

prodigiosa. É um grande<br />

povo tecendo ao longo dos<br />

tempos seus costumes.<br />

O costume não deve<br />

ser, portanto, visto em escala<br />

de nação, e sim de região.<br />

O costume ou é regional<br />

ou não existe.<br />

Se não tivesse nascido a Civilização<br />

Cristã, nós não teríamos<br />

isso, que é do homem cristianizado.<br />

Flávio Lourenço<br />

O cenário da<br />

natureza condiz com o<br />

temperamento do povo<br />

Por outro lado, o cenário da natureza<br />

condiz com o temperamento do<br />

povo e, ao falar do costume, precisamos<br />

considerar esse cenário. O pinheiro,<br />

o Tannenbaum, vai<br />

bem com o prussia-<br />

24<br />

Trajes asturianos


no, e o castanheiro, o marronier, com<br />

o francês. Aquelas montanhas da Espanha<br />

se ajustam com o temperamento<br />

espanhol. Tem-se a impressão<br />

de que andou por ali um gigante<br />

furioso, caprichoso e individualista,<br />

o qual distribuiu taponas e pontapés<br />

naquelas montanhas, onde o espanhol<br />

sente-se em casa. É preciso<br />

ter a grandeza do espanhol para se<br />

compreender onde ele está. Já a doçura<br />

portuguesa é outra coisa.<br />

Então, eu queria fixar bem o princípio:<br />

O nascimento do costume vem<br />

da existência de um pulsar e de um<br />

viver sincrônico, de um unum com<br />

notas biológicas, condicionadas pelo<br />

ambiente, pela paisagem e pela história<br />

daquele povo. E esse unum faz<br />

com que, diante de situações novas,<br />

de interesses socioeconômicos e culturais,<br />

todos se adaptem de um determinado<br />

modo. Mas essas adaptações,<br />

por qualquer coisa de instintivo,<br />

de simultâneo e, neste sentido,<br />

de coletivo, representam a soma das<br />

observações ultrapormenorizadas<br />

que um povo de uma região faz das<br />

suas próprias condições, e da sabedoria<br />

com que ele vai procurando as<br />

acomodações. E isso faz o nascimento<br />

sincrônico do costume.<br />

Qual a relação entre costume e<br />

Religião dentro disso? É que isso supõe<br />

as virtudes cardeais de um povo<br />

bastante vivas. Daí essa possibilidade<br />

de encaixe, de formação desse tipo<br />

de nação; e também de subir da<br />

esfera privada uma evaporação magnífica,<br />

que é o conjunto consuetudinário,<br />

o qual vem a ser mais inteligente<br />

do que qualquer gênio.<br />

A questão das formas de governo<br />

se estuda muito melhor em função<br />

da região do que desse ente vazio de<br />

regiões, que é o Estado, no qual se<br />

costuma pensar quando se considera<br />

em termos comuns o problema. Portanto,<br />

para compreendermos bem as<br />

formas de governo, quando cabem,<br />

quando não, seria preciso pensar em<br />

regiões, pois enquanto não houver<br />

regiões definidas não haverá condições<br />

para assentar nenhuma forma<br />

coletiva de vida verdadeira, e nenhum<br />

Estado digno desse nome. Este<br />

será como construções artificiais<br />

em cimento armado, mas não edificações<br />

fortes de pedras naturais.<br />

Daí, aliás, a sabedoria alemã dos<br />

pequenos Estados confederados que<br />

dão uma estrutura mais alta, um Sacro<br />

Império, com elites de toda ordem.<br />

Interação entre os<br />

princípios e o costume<br />

Entretanto, nunca chegaremos a<br />

entender bem o assunto se não compreendermos<br />

que a virtude antecede,<br />

de certo modo, o conceito, o<br />

princípio. Quer dizer, um princípio<br />

muito elementar está na base da virtude.<br />

Por exemplo, a fidelidade conjugal<br />

é uma virtude. Ela tem na sua<br />

base um princípio muito elementar<br />

ou evidente. Mas logo depois de<br />

concebido, de conhecido esse princípio,<br />

e antes mesmo de ele acabar de<br />

se explicitar inteiramente, num povo<br />

virtuoso ele está gerando costumes.<br />

Ele produz uma grande apetência, a<br />

qual começa a gerar costumes.<br />

À medida que o povo de uma região<br />

vai crescendo – vamos sempre<br />

pensar em regiões –, o princípio vai<br />

se explicitando e gerando novas aplicações<br />

do princípio. E há uma interação<br />

princípio-costume, costume-<br />

-princípio que é diferente de tomar<br />

um aluno, metê-lo numa sala de aula<br />

universitária, e o professor escrever<br />

no quadro negro a teoria e depois<br />

dizer: “A partir disso, comecem<br />

a executar.” Não dá verdadeira frutificação.<br />

Flávio Lourenço<br />

Pirineus, Espanha<br />

25


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

O indivíduo deve estar num ambiente<br />

onde, antes de receber a aula,<br />

os elementos primeiros do que<br />

lhe foi ensinado ele já possuía, e com<br />

vida. Então há um intercâmbio entre<br />

o intelectual e a vida; o intelectual<br />

traça um princípio, tira uma dedução,<br />

mas a sociedade inteira já está<br />

tendendo a deduzir isso também.<br />

O intelectual não vive sentado numa<br />

mesa e ali lê a realidade, mas ele é<br />

levado a pensar acompanhando essa<br />

produção da região e teorizando<br />

aquilo que a região anda fazendo.<br />

Do que me adianta imaginar um<br />

homem na Provence, região do Sul<br />

da França, sentado junto a uma escrivaninha<br />

e teorizando, mas inteiramente<br />

alheio à sua região? Ele pode<br />

receber prêmios internacionais, o<br />

curso das coisas da região dele não<br />

foi para a frente. Se ele tivesse sua<br />

vida intelectual entrosada com os<br />

problemas da região, quer dizer, se<br />

sua intelectualidade fosse tal que estivesse<br />

viva, agarrada nos problemas<br />

da região, seria um intelectual perfeito.<br />

Do mesmo modo, ai da região<br />

que não tenha vocações sacerdotais!<br />

Ela está fadada a morrer, porque o<br />

clero de uma região é levado a fazer<br />

esta simbiose entre a Religião e a<br />

sua prática nas condições da região.<br />

E com um clero regional. Porque –<br />

falando do Brasil – se numa igreja o<br />

pároco é um padre holandês, em outra<br />

um iugoslavo, mais adiante um<br />

nacional que é pároco em Curitiba,<br />

nascido no Amazonas, não vai.<br />

Quer dizer, nós devemos ser gratos<br />

aos padres de fora que vêm aqui<br />

substituir a lacuna numérica de nosso<br />

clero, seria uma desgraça se não<br />

viessem, mas a solução perfeita – aliás<br />

a Igreja exigiu sempre isso – é a<br />

vocação sacerdotal do lugar, do país.<br />

Mas eu iria um pouco mais longe,<br />

de preferência da região. Isto seria a<br />

coisa perfeita, porque aí a prática da<br />

Religião iria sendo inserida no costume<br />

local.<br />

Ilustrações: Léon-Xavier Girod (CC3.0)<br />

Construções na Indochina,<br />

gravuras do século XIX<br />

A graça conserva o que<br />

um povo tem de bom,<br />

eleva-o e orienta-o<br />

Dois rapazes de nosso Movimento<br />

resolveram fazer uma peregrinação<br />

penitencial. Escolheram um lindo<br />

trajeto, de Roncesvalles, que foi<br />

onde Roland morreu, a Santiago de<br />

Compostela. Foram procurar o abade<br />

e pediram-lhe uma bênção. O<br />

abade, que certamente deve ser da<br />

região, disse: “Isso assim não basta.<br />

Vamos fazer uma coisa séria e inteira.<br />

Vocês vão pôr o traje de peregrinos<br />

como era utilizado na Idade Média.”<br />

Inclusive arranjou para eles os<br />

chapelões, o bastão e as conchas que<br />

caracterizavam os peregrinos medievais.<br />

E começaram a andar a pé. Ao<br />

longo do caminho foi uma ovação!<br />

Gente que parava, tirava fotografia,<br />

queria saber o que era, ajudava, uma<br />

festa! Era a ressurreição de um costume.<br />

Aquelas zonas gemem ainda<br />

por não ter mais o costume.<br />

Aliás, a graça atua dentro da natureza<br />

exatamente na linha do que<br />

estou falando, porque a graça se insere<br />

como um acidente sobrenatural,<br />

uma participação criada na vida de<br />

Deus, e ela embebe todo aquele ser,<br />

conserva, eleva e orienta para o que<br />

ele tem de melhor no seu gênero. Isso<br />

indica como a força da graça, geradora<br />

de costumes, é incomparável.<br />

São coisas lindas!<br />

Poder-se-ia perguntar: Já que a<br />

região é tão condicionante do costume,<br />

como se forma uma região?<br />

Talvez a parte da Terra onde a geografia<br />

mais favorece a formação de<br />

regiões é a Indonésia. Tem milhares<br />

de ilhas. E cada uma daquelas<br />

nações são insulares, são reinos de<br />

uma, dez, cinquenta ilhas, um arquipélago.<br />

Chegou um povo, morou só<br />

ali, todo esse desenvolvimento consuetudinário<br />

se deu nele sozinho e,<br />

portanto, sem enriquecimento de fora,<br />

mas também sem mescla. Portanto,<br />

com uma coerência absoluta com<br />

26


os elementos nativos primeiros. E a<br />

este título privilegiados, de um lado.<br />

Outro lado seria nós considerarmos<br />

povos vários obrigados a se<br />

mesclar. Eu descrevi há pouco a formação<br />

do costume. Com essa boa<br />

presença da graça entre nações católicas,<br />

compreende-se muito bem.<br />

A graça fá-los-ia se entenderem melhor,<br />

conviverem com mais compreensão,<br />

se enriquecerem mutuamente<br />

do que trariam. E viria daí uma coisa<br />

composta com uma beleza própria e<br />

magnífica!<br />

Problemas de uma<br />

beleza extraordinária<br />

Mas aí caberia uma objeção: “Está<br />

bem, mas tome, por exemplo, uma<br />

composição perfeita assim, elaborada<br />

fora do regime da graça, que,<br />

entretanto, é uma das mais bonitas<br />

existentes na História: a Indochina.<br />

A Índia e a China se encontraram<br />

na Indochina, e saiu uma coisa<br />

heterogênea hindu e chinesa, até<br />

certo ponto requinte das duas, e sobretudo<br />

uma terceira coisa, que não<br />

é uma composição mecânica, mas é<br />

algo vivo. E aquilo foi feito por um<br />

povo primitivo que não tinha a graça.<br />

Não estarei exagerando o papel<br />

da graça por pura devoção?”<br />

A resposta é simples: Encontramos<br />

nos primórdios de certos povos<br />

da humanidade a possibilidade de<br />

fazer algumas coisas, como se a graça<br />

o realizasse. Mas é porque eram<br />

povos que ainda estavam meio próximos,<br />

de um modo ou de outro, senão<br />

cronologicamente, pelo menos<br />

psicologicamente, do estado primeiro<br />

da humanidade antes de ter pecado<br />

muito. Eram povos que ainda tinham<br />

uma capacidade extraordinária<br />

de engendrar costumes e de perpetuá-los.<br />

À medida que o rio de pecado<br />

da História foi escorrendo sobre<br />

esses povos, a questão foi mudando.<br />

E eles acabaram só podendo<br />

ir até determinado ponto, paralisando-se<br />

a certa altura. E a ação da<br />

graça concedida ante prævisa merita<br />

1 , foi sendo interrompida, transviada<br />

de tal maneira que os europeus<br />

derrubaram essas culturas milenares<br />

– que não eram uma ninharia, mas<br />

coisas vivas – com uns piparotes.<br />

O que foi feito com a China, o Japão?<br />

O Japão de hoje é o do tempo<br />

dos Xoguns e do Mikado, mas transformado<br />

completamente. É um Japão<br />

americanizado completamente.<br />

Mas, por que deu nisso? Porque rios<br />

de pecado correram em cima disso.<br />

Compreende-se, assim, a formação<br />

desse caldeamento indochinês<br />

magnífico. É muito interessante<br />

aquilo! Como tem critérios, como<br />

está tudo bem composto! É a tal<br />

experiência individual que expliquei<br />

há pouco. Acho esses problemas de<br />

uma beleza extraordinária!<br />

Alguém me deu uma pinturazinha<br />

impressa sobre seda, representando<br />

uma dama típica do século<br />

XVIII. É todo um outro mundo, que<br />

não aquele de Berlim, mas tem algo<br />

que não existiu alhures. É uma simples<br />

dama, numa casa qualquer, com<br />

móveis comuns daquele lugar, uma<br />

senhora quase tomada em abstrato.<br />

Entretanto, quanta delicadeza! Ela<br />

está sentada, mantendo uma boa distância<br />

do dorso da cadeira. Lembro-<br />

-me ainda de mamãe, mais ou menos<br />

com cinquenta anos de idade, almoçando<br />

sem encostar-se no espaldar<br />

da cadeira. É uma coisa especial.<br />

Isso é um costume. Se não fosse<br />

todo esse caldeamento que descrevi,<br />

não teria saído isso. Essa pintura foi<br />

feita no século XX, e quero conservá-<br />

-la porque, além de ser muito típica, é<br />

um preito de admiração de nosso século<br />

aos tempos que se foram. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

29/8/1986)<br />

1) Expressão latina utilizada na Teologia<br />

para significar “na previsão dos méritos<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo”.<br />

27


Perspectiva pliniana da História<br />

Mistérios de uma alma<br />

e de um povo - II<br />

Flávio Lourenço<br />

A Providência permitiu que os verdadeiros católicos ficassem<br />

num aparente abandono. Quando eles tiverem sofrido com<br />

amor todas as dores que Deus lhes envia, chegará a hora em<br />

que se levantarão para dizer a este mundo todas as verdades,<br />

produzindo as mais inesperadas conversões e prostrando por<br />

terra os homens mais insolentes.<br />

Castelo de<br />

Hohenschwangau<br />

Baviera, Alemanha<br />

28


Os estudos de opinião pública<br />

indicam que todos os fenômenos<br />

que se passam na<br />

alma humana ocorrem, mutatis mutandis,<br />

nas sociedades, e não apenas<br />

numa geração, mas ao longo de várias<br />

gerações, de maneira que um ciclo<br />

de civilização faz em quinhentos<br />

anos o que se passa na alma de um<br />

homem em cinquenta ou em cinco<br />

anos. As civilizações têm grandes ascensões,<br />

grandes estabilidades, grandes<br />

harmonias porque vivem muito<br />

tempo. Em geral, quando morrem,<br />

isso acontece dentro do fracasso e da<br />

catástrofe.<br />

O Ocidente foi dizendo<br />

“não” ou “talvez”<br />

A civilização medieval pode ser<br />

comparada a um homem, e o processo<br />

acima descrito foi precisamente o<br />

que se deu na Idade Média.<br />

A Idade Média, tão bela, nobre,<br />

rutilante, Deus a amou com todo o<br />

amor, era a obra-prima d’Ele. Nem a<br />

Cristandade do tempo dos mártires<br />

tinha sido tão pulcra quanto a Idade<br />

Média em seu apogeu.<br />

Em determinado momento a Idade<br />

Média disse “não” ou “talvez”,<br />

“daqui a pouco”... E então a Providência<br />

passa a se colocar, por assim<br />

dizer, de joelhos diante dela, enviando<br />

sucessivos Santos, Ordens religiosas,<br />

Doutores, dando seguidas graças.<br />

Às vezes, esses Doutores retardavam<br />

o processo, e conseguiam até<br />

paralisá-lo, salvando muitas almas,<br />

mas não lograram absolutamente<br />

evitar que a Revolução fosse corroendo<br />

e abafando a civilização medieval,<br />

como a figueira brava circunda<br />

a árvore e a estrangula, tirando-<br />

-lhe completamente a seiva que lhe<br />

dá a vida.<br />

Compreendemos, assim, a razão<br />

pela qual parece haver um determinismo<br />

de vitória do mal, ao longo<br />

desse processo. É porque o Ocidente<br />

foi dizendo “não” ou “talvez” a todos<br />

os Santos que surgiram e, com<br />

isso, acumulando o castigo e o travo<br />

da hora última. Mais ainda – e é<br />

o mais terrível –, como o “não” não<br />

era completo e dentro da civilização<br />

do Ocidente muita gente tinha uma<br />

certa atitude de alma boa, muitos<br />

movimentos bons apareciam, a Providência<br />

retardava um pouco e permitia<br />

isso para que essa era da História<br />

da Igreja fosse, apesar de tudo,<br />

manifestando toda a sua beleza.<br />

Assim foram sucessivamente aparecendo<br />

os grandes Santos, Doutores,<br />

missionários, estabelecimentos<br />

católicos, as grandes encíclicas, os<br />

notáveis movimentos de reação, belezas<br />

estas que a Igreja foi mostrando<br />

na medida em que ela ia sofrendo<br />

e sendo prostrada, mas tirava de<br />

si energias novas para novos tormentos,<br />

até chegarem as aflições e as<br />

energias extremas.<br />

Santa Mônica e a conversão<br />

de Santo Agostinho<br />

Raciocinando agora no sentido<br />

inverso, poderíamos aplicar a uma<br />

alma o acima dito sobre uma civilização,<br />

e notar como isso é pareci-<br />

Flávio Lourenço<br />

São Bento<br />

Flávio Lourenço<br />

São Bernardo<br />

Flávio Lourenço<br />

São Domingos<br />

de Gusmão<br />

São Francisco<br />

de Assis<br />

Gabriel K.<br />

29


Perspectiva pliniana da História<br />

Gabriel K.<br />

Santa Mônica e Santo Agostinho<br />

Museu Amedeo Lia, La Spezia, Itália<br />

do com a história de Santa Mônica.<br />

À medida que Santo Agostinho<br />

se afastava dela, essa santa mãe ia<br />

se tornando mais ardente, arrebatadora<br />

no suplicar a Deus e no pedir<br />

a seu filho rebelde que se convertesse,<br />

mais irresistível em cada contato<br />

com ele, porque ela aprimorava seus<br />

dotes maternos e recursos para salvar<br />

aquela alma. Agostinho resistia<br />

e ela se julgava derrotada, não compreendendo<br />

que, enquanto ele ia se<br />

infamando, ela ia tirando de dentro<br />

de si recursos e belezas novas, e<br />

dando novas glórias a Deus; e que a<br />

aceitação dela, num ato de conformidade<br />

e resignação a cada derrota,<br />

após cada “não” dele, marcava uma<br />

nova beleza para ela. Enquanto o filho<br />

ia dizendo “não” a Deus Nosso<br />

Senhor, que era, assim, “vencido”<br />

em Agostinho, Ele ia vencendo em<br />

Santa Mônica, a ponto de ela se tornar<br />

tão vencedora que, por assim dizer,<br />

venceu o próprio Deus.<br />

É sabido que algum<br />

tempo antes<br />

de Santo Agostinho<br />

se converter,<br />

ela procurou um<br />

bispo que, vendo-a<br />

chorar pela conversão<br />

do filho, disse:<br />

“Vai-te em paz, mulher,<br />

e continua a<br />

viver assim, que não<br />

é possível que pereça<br />

o filho de tantas<br />

lágrimas.” 1 Algum<br />

tempo depois, Santo<br />

Agostinho começou<br />

seu processo de<br />

conversão. Nota-se<br />

nisso o progresso da<br />

alma dela e as sucessivas<br />

vitórias de<br />

Deus na vencida. Se<br />

considerarmos essa<br />

história como sendo<br />

a de Santo Agostinho,<br />

ele terá sido o<br />

grande vencido. Se,<br />

ao contrário, fizermos dessa história<br />

a de Santa Mônica, oh! glória. Ao cabo<br />

de mais de trinta anos de tribulações<br />

e derrotas, essas lágrimas tiveram<br />

um tal preço que alcançaram de<br />

Deus a conversão do maldito, do inconversível,<br />

o qual, convertido, tornou-se<br />

um luzeiro para a Igreja.<br />

Ela saboreou ainda na Terra a alegria<br />

da conversão do filho, e chegou<br />

a ter com ele aquele famoso colóquio<br />

numa pequena hospedaria na<br />

cidade de Óstia, perto do mar, onde<br />

estavam alojados até um navio partir<br />

para Cartago, onde tinham resolvido<br />

morar. Eles falavam, junto a uma<br />

janela, a respeito das coisas de Deus<br />

e a conversa foi tão alta que tiveram<br />

juntos um êxtase, no qual Santa Mônica<br />

tinha praticamente alcançado<br />

o fim de sua vida; pouco depois, em<br />

Óstia, ela morreu.<br />

Qual é a natureza dessas renúncias?<br />

Ela não teria sido santa se, caso<br />

Deus lhe tivesse perguntado: “Mônica,<br />

aceitas que teu filho ainda prevarique<br />

e continues a rezar por ele,<br />

sem te revoltares?”, ela não tivesse<br />

dito com estas ou outras palavras<br />

ainda mais preciosas: “Estou disposta,<br />

Senhor!”<br />

Quem sabe se na sua agonia isso<br />

não lhe foi perguntado? Era preciso<br />

chegar até lá. Nisso estava a beleza<br />

de Santa Mônica. Se ela ficou santa<br />

foi porque ou disse explicitamente<br />

ou estava disposta a isso, bem entendido,<br />

se recebesse da Providência<br />

as graças excepcionais que os grandes<br />

lances supõem.<br />

Como aconteceu a Jó,<br />

todas as desgraças se<br />

abateram sobre a Igreja<br />

Então compreendemos que se<br />

olharmos a Santa Igreja Católica na<br />

sua essência, ao longo desses tempos,<br />

temos a impressão de que ela é<br />

uma derrotada. Porém, nós podería-<br />

Flávio Lourenço<br />

30<br />

Santo Agostinho - Igreja de São<br />

Jorge, La Coruña, Espanha


Maude Rion (CC3.0)<br />

Flávio Lourenço<br />

Lago Léman, Genebra<br />

São Francisco de<br />

Sales - Igreja de Maria<br />

Auxiliadora, Vigo, Espanha<br />

desse tempo? Foi dado aos seus inimigos<br />

fazerem com ela o que o demônio<br />

fez com Jó.<br />

Narram as Sagradas Escrituras<br />

que o Criador disse ao demônio:<br />

“Reparaste no meu servo Jó? Na<br />

Terra não há outro igual; é um homem<br />

íntegro e reto, que teme a Deus<br />

e se afasta do mal” (Jó 1, 8). E o demônio<br />

retrucou que se o Onipotente<br />

permitisse que ele o atormentasse<br />

de todos os modos, veria como levaria<br />

Jó a pecar. E Deus, então, deu ao<br />

demônio licença para atormentá-lo<br />

em tudo, exceto tirar-lhe a vida (cf.<br />

Jó, 1, 9-11; 2, 3-6).<br />

Do mesmo modo, aos adversários<br />

da Igreja foi permitido tudo, exceto<br />

uma coisa: ela continua a existir,<br />

mantém-se viva. Todas as desgraças<br />

se abateram sobre ela e, ao longo<br />

das gerações, gradualmente, cada<br />

vez mais a Igreja foi afundando,<br />

e com ela também os varões apostólicos,<br />

os verdadeiros homens de<br />

Deus foram perdendo a glória, a celebridade,<br />

a honra, sempre mais perseguidos<br />

e isolados, entretanto, camos<br />

fazer uma história de tudo quanto<br />

de belo tem aparecido na Esposa<br />

de Cristo, desde Lutero até nossos<br />

dias, e chegar à conclusão sublime de<br />

que Deus foi vencedor, pois a Igreja<br />

foi manifestando cada vez mais a sua<br />

pulcritude porque o adversário foi<br />

mostrando cada vez mais a sua infâmia.<br />

Haveria de chegar um momento<br />

extremo em que, tanto a beleza da<br />

Igreja Católica como a infâmia do adversário<br />

se manifestariam na sua plenitude,<br />

dentro da desolação extrema.<br />

A partir do momento em que esses<br />

dois auges estivessem manifestados,<br />

poder-se-ia dizer que essa competição<br />

estaria encerrada, e o relógio<br />

de Deus marcaria meia-noite. Chega<br />

a hora de mandar os Anjos vingadores,<br />

porque a Esposa de Cristo tinha<br />

terminado essa fase histórica mostrando<br />

toda a sua pulcritude; e daí<br />

por diante será varrida a face da Terra,<br />

virá a grande tempestade, o grande<br />

castigo, a grande glorificação da<br />

Santa Igreja.<br />

Qual é a forma de beleza que a<br />

Igreja veio manifestando ao longo<br />

da vez mais dignos e conscientes da<br />

missão que representavam, descendo<br />

de ocaso em ocaso até nossa época.<br />

São Francisco de Sales e o<br />

calvinista Teodoro de Beza<br />

Considerem, por exemplo, o que<br />

era um bispo na Idade Média e comparem<br />

com um no tempo de São<br />

Francisco de Sales. Este representou<br />

uma das primeiras legitimidades exiladas<br />

e calcadas aos pés na quadra<br />

da Revolução. Bispo Príncipe de Genebra,<br />

cidade feita para todas as ortodoxias<br />

e purezas. É preciso ter estado<br />

lá para compreender isso: ar<br />

limpidíssimo, o Lago Léman cristalino<br />

como uma consciência tranquila,<br />

tudo é delicado, nobre, convida à<br />

virtude. Entretanto, foi instalado ali<br />

o calvinismo mais obstinado e repugnante.<br />

Deus suscita um bispo de uma doçura<br />

inefável, um favo de mel dentro<br />

da História, que chega a penetrar em<br />

Genebra, a se dobrar diante de Teo-<br />

31


Perspectiva pliniana da História<br />

doro de Beza e pedir que se converta.<br />

São Francisco de Sales era condenado<br />

à morte se entrasse em Genebra.<br />

Portanto, ele arriscou a própria vida.<br />

Teodoro de Beza contou que, em<br />

determinado momento, ao ver o bispo<br />

legítimo diante dele, palhaço ilegítimo<br />

– porque a ilegitimidade forma<br />

palhaços, quando não criminosos<br />

–, sentiu sua alma vacilar, mas depois<br />

disse “não”, e São Francisco de<br />

Sales teve que sair da cidade.<br />

Vendo ser o sorriso inútil, o Santo<br />

apela para as tropas, mas estas são<br />

derrotadas. Ele, o bispo fracassado,<br />

entretanto morre digno, sereno, tendo<br />

realizado esta atividade típica: já<br />

que os seus não quiseram beneficiar-<br />

-se de sua doçura, ele escreveu obras<br />

exalando a suavidade da Igreja e da<br />

Providência para a Cristandade inteira:<br />

Introdução à vida devota, Tratado<br />

do amor de Deus, e uma série de<br />

outras obras, transformando-se em<br />

Doutor da Igreja; Doutor desprezado,<br />

mas que nem por isso perde a face.<br />

Desce dignamente à sepultura e<br />

sobe até os Céus, sem se incomodar.<br />

Foi rejeitado, mas permaneceu fiel.<br />

Depois de São Francisco de Sales<br />

vieram vários bem-aventurados, até<br />

aparecerem, no século XIX, os grandes<br />

santos das obras de caridade materiais.<br />

Em todas as épocas os santos<br />

fizeram obras de caridade materiais,<br />

mas os do século XIX primaram nesse<br />

assunto de um modo especial, sem<br />

que tivessem com isso relaxado, no<br />

mínimo que fosse, as obras de caridade<br />

espirituais.<br />

Do fundo do vale se<br />

ergue o lírio mais puro<br />

É então Dom Bosco, por exemplo,<br />

o qual faz com que até Cavour,<br />

o homem das perseguições religiosas,<br />

ajudasse a sua obra. Contudo,<br />

Cavour não se converteu, nem a Itália<br />

revolucionária, apesar de tantos<br />

outros Santos. Só em Turim havia<br />

cinco grandes Santos, entre os<br />

quais São José Cottolengo, um homem<br />

inteligentíssimo que fundou a<br />

obra da Divina Providência. Mostra-<br />

-se ainda hoje sua cadeira de escritório<br />

onde Nossa Senhora sentava-Se<br />

para conversar com ele. Entretanto,<br />

São João Bosco foi rejeitado como<br />

tantos outros bem-aventurados. Todos<br />

eles morrem na aparência derrotados,<br />

mas na dignidade e tranquilidade.<br />

É a longa sucessão de derrotados<br />

a caminhar pela História, como<br />

uma procissão serena de triunfadores,<br />

sem empáfia, sem amor-próprio,<br />

sem gabolice, mas também sem<br />

o menor complexo de inferioridade,<br />

com os olhos postos em Deus e<br />

sabendo que quem está unido a Ele<br />

acaba por triunfar.<br />

Apesar disso, o mundo vai piorando.<br />

Parece que a Providência abandonou<br />

a Contra-Revolução.<br />

Nós não sabemos sondar até o<br />

fim os desígnios de Deus. Na realidade,<br />

Ele estava tornando possível o<br />

advento de uma época em que fosse<br />

feita a increpação última, e a bofetada<br />

derradeira pudesse soar, sonora,<br />

na face impura da Revolução desmascarada.<br />

Por outro lado, não houve nada<br />

em que a Igreja não se revelasse<br />

belíssima. Esta é a mais alta beleza<br />

que se destila desse extremo da luta.<br />

É a epopeia da fidelidade, quando<br />

a infidelidade fez devastações<br />

que nenhum espírito ousaria imaginar;<br />

diante de cuja possibilidade teológica<br />

muitos Santos gemeram, dizendo:<br />

“A misericórdia divina não<br />

permitirá.” Aquela situação tão triste,<br />

que alguns Santos julgaram que a<br />

misericórdia divina não permitiria,<br />

verificou-se. Ficará consignado para<br />

a História que, pela graça de Nossa<br />

Senhora, houve católicos que levaram<br />

a fidelidade a um tal ponto que,<br />

nessa situação, onde muitos santos<br />

pensaram ser tal o horror que a Providência<br />

não permitiria, naqueles<br />

despenhadeiros tão profundos que<br />

se pensaria não haver vida, ali houve<br />

vida, houve fidelidade, porque houve<br />

quem esperasse o auxílio de Nossa<br />

Senhora. Por isso, algo acontecerá<br />

por onde Maria Santíssima vencerá.<br />

Foi quando o filho pródigo estava<br />

comendo as bolotas dos porcos<br />

que ele se lembrou da casa paterna.<br />

Sendo possível dar à Igreja essa forma<br />

de glória que consiste no retorno<br />

da humanidade perdida, não era<br />

preciso que houvesse uma época histórica<br />

na qual alguém lhe desse essa<br />

glória? E se era necessário, bem-<br />

-aventurados os homens que nasceram<br />

para padecer essa tristeza, esse<br />

isolamento, esse desprezo e essas<br />

delongas, para habitar o fundo desse<br />

vale. Porque é do fundo do vale que<br />

haveria de se erguer o lírio mais puro,<br />

elevar o voo a águia que mais alto<br />

voasse, e de onde uma nova era histórica<br />

recomeçasse.<br />

Vozes puras e sem fraude,<br />

capazes de chacoalhar as<br />

colunas da impiedade<br />

Embora se veja que o vale não poderia<br />

ser mais fundo, pode ser que a<br />

intervenção divina demore um pouco<br />

e tenhamos ainda um estertor a dar.<br />

Nosso Senhor, depois de proferido<br />

o “Consummatum est” e tendo<br />

morrido, quando se pensava que Ele<br />

tinha dado tudo, ainda foi necessário<br />

arrancar d’Ele a última gota de Sangue<br />

misturado com água. E depois<br />

de Ele ter sofrido todas as feridas<br />

possíveis, foi preciso que Ele fosse<br />

ferido no Coração (cf. Jo 19, 30.34).<br />

Talvez julguemos que mais nada<br />

tenha de acontecer, mas há ainda<br />

uma ponta no caminho de nossas<br />

aflições para sofrer. Será um último<br />

lance, o mais terrível. Quando será?<br />

Deixando essa incógnita, Nossa Senhora<br />

nos pergunta:<br />

“Meu filho, tu aguentas a possibilidade<br />

de ser tanto tempo que te dê<br />

aflições, arrepios de demorar ainda<br />

mais? Suportas a eventualidade de<br />

ser bem mais do que imaginas?”<br />

32


Nesse momento, se dissermos<br />

com toda a alma: “Minha Mãe, eu<br />

suporto”, talvez a nossa medida esteja<br />

cheia e Deus, afinal, intervenha.<br />

A nós compete admirar toda a sabedoria<br />

que a Providência revelou<br />

nessa luta lenta, deixando-nos nesse<br />

aparente abandono. Tomando consciência<br />

de que fulgores dos mais belos,<br />

de uma suprema beleza da Santa<br />

Igreja Católica, se desprendem dos<br />

que permanecerem fiéis e se desprenderão<br />

ainda mais, quando chegar<br />

a hora desses se levantarem como<br />

increpadores para dizer a este<br />

mundo todas as verdades que ele<br />

não quer ouvir.<br />

Mas esses increpadores só terão<br />

a voz capaz de fender os morros,<br />

fazendo-os saltar como cabritos,<br />

produzindo as mais inesperadas<br />

conversões e prostrando por terra<br />

os homens mais insolentes, audaciosos<br />

e orgulhosos, quando esses fiéis<br />

tiverem bebido toda a taça de fel.<br />

Tais almas poderão increpar porque<br />

se tornaram como São Bartolomeu:<br />

verdadeiros israelitas nos quais não<br />

há fraude. Serão vozes puras e sem<br />

fraude, capazes verdadeiramente de<br />

tomar as colunas da impiedade contemporânea<br />

e chacoalhá-las.<br />

Esperemos mais um pouco, estejamos<br />

prontos a, eventualmente, esperar<br />

muito, dispostos a tudo e digamos:<br />

“Pai meu, se for possível afaste<br />

de mim este cálice. Mas faça-se a<br />

vossa vontade e não a minha” (cf. Lc<br />

22, 42).<br />

Assim, ainda que sejamos um punhado<br />

de almas, teremos vencido a<br />

Revolução, porque o ponto final será<br />

posto quando alguém disser um<br />

“sim” tão íntegro que acabe fechando<br />

os parêntesis, e finalizando a frase<br />

maldita iniciada por aquele que,<br />

em certo momento, disse “talvez” e<br />

começou a Revolução.<br />

Essa última palavra de fidelidade<br />

extrema nós somos chamados a proferi-la<br />

juntos, dizendo a Nossa Senhora<br />

como Ela respondeu ao Anjo:<br />

Ecce ancilla Domini. Fiat mihi secundum<br />

verbum tuum (Lc 1, 38). Assim<br />

nós devemos afirmar: “Minha Mãe,<br />

nós somos vossos escravos. Faça-se<br />

em nós, para a glória ou para o opróbrio,<br />

para as felicidades ou para as<br />

tormentas, segundo a vossa palavra.<br />

Longinus crava a lança em Jesus Cristo<br />

Museu da Semana Santa, Zamora, Espanha<br />

Vamos lutar até o fim contra a Revolução.<br />

Esse é o nosso objetivo”. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

24/2/1974)<br />

1) SANTO AGOSTINHO. Confissões.<br />

Livro III, c. XII.<br />

Flávio Lourenço<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Gabriel K.<br />

A música<br />

Anjos<br />

Platão imaginava que os corpos celestes eram como esferas<br />

de cristal as quais, girando umas sobre as outras, produziam<br />

uma sinfonia universal. É uma linda ideia, mas ela se torna<br />

pálida quando consideramos os Anjos, espíritos perfeitíssimos,<br />

puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente<br />

contemplando a Deus, exclamando em cânticos o seu sentir.<br />

Quando ouvimos um canto, notamos haver uma<br />

analogia entre o falar humano e esse cântico,<br />

porque cada nota posta ali é como uma inflexão<br />

da voz humana quando o homem afirma alguma coisa.<br />

O cantochão, o polifônico, a música clássica<br />

Por exemplo, ao pronunciar “afirma alguma coisa” involuntariamente<br />

dei ênfase à palavra “afirma” para indicar<br />

o caráter afirmativo do que eu queria dizer, enquanto<br />

fui muito rápido no resto da frase, porque “alguma coisa”,<br />

sendo um termo vago, pronuncia-se rapidamente,<br />

como uma pincelada apenas no pensamento. De maneira<br />

que, no pronunciar a frase, fiz o que todo mundo faz,<br />

ou seja, martelei as sílabas, modulei a voz de acordo com<br />

o que me vai no temperamento e na alma a respeito daquilo<br />

que estou dizendo.<br />

Então é um modo de proferir as frases, por onde a<br />

pronúncia como que discretamente canta o que está sen-<br />

do dito. E esse “cantar” indica o meu estado temperamental<br />

e o sabor por mim encontrado – bom ou mau,<br />

agradável ou repelente – naquilo que estou dizendo.<br />

Em geral, tanto o cantochão quanto o polifônico têm<br />

isso de próprio: cada nota é uma meditação sobre o sentido<br />

da palavra que está sendo dita, é uma tomada de<br />

posição piedosa, ora triste, ora alegre, ora afetuosa, ora<br />

adorativa, ora reparadora, ora eucarística a respeito daquilo<br />

que está sendo afirmado. Por isso é bonito acompanhar<br />

exatamente assim a música, palavra por palavra.<br />

Entretanto, podemos ver na música um outro aspecto.<br />

Se tomarmos a música clássica, por exemplo, veremos<br />

tratar-se de uma magnífica arquitetura de sons. Essas<br />

melodias podem ser comparadas, de algum modo, a<br />

um prédio com as suas massas distribuídas, suas colunas,<br />

seus corpos de edifício, seus desdobramentos, mas<br />

onde entra algo mais abstrato do que a expressão de um<br />

pensamento humano: introduz-se uma pura ideia de<br />

harmonia.<br />

34


dos<br />

no Céu<br />

Poderíamos nos perguntar qual dessas é a verdadeira<br />

concepção da música e, se ambas são verdadeiras, qual a<br />

mais alta.<br />

Diante desse problema, eu me pergunto se não haveria<br />

um estilo de música que reunisse ambas as perfeições,<br />

porque são manifestamente tão nobres e tão altas que<br />

um certo senso da unidade nos faz desconfiar de que haja<br />

a possibilidade de reunir as duas concepções numa visualização<br />

só.<br />

Porém, ainda não encontrei uma fórmula e nem sei se<br />

isso é possível. Indico apenas essa ideia para esboçar um<br />

pouco aquilo que, provavelmente, é a música dos Anjos<br />

no Céu. Que os Anjos têm uma melodia no Céu, embora<br />

não seja a música material, é positivo. Que esta melodia<br />

deve ter uma arquitetura sonora magnífica, expressão do<br />

ser deles, é fora de dúvida.<br />

Haverá no homem, com as limitações para a criatura<br />

humana, a possibilidade de uma música assim? Também<br />

não sei. Mas é uma coisa a respeito da qual se pode<br />

cogitar.<br />

Cogitações que nos incentivam<br />

a pensar no Céu<br />

Exatamente são as cogitações que valem a pena ter<br />

como entretenimento quando, por exemplo, a rotina está<br />

monótona. É um entretenimento inocente que deixa a<br />

alma leve. E um certo cultivo da leveza de alma vai bem<br />

para quebrar esses estados um tanto depressivos a que<br />

possamos estar sujeitos.<br />

Platão imaginava os corpos celestes como esferas de<br />

cristal girando umas sobre as outras eternamente, e ele<br />

tinha a ideia de que cada uma dessas esferas produzia<br />

um som, e que esses sons todos se encontravam no universo,<br />

produzindo uma música universal resultante dos<br />

movimentos dos astros.<br />

Notem quantas noções bonitas estão postas dentro dessa<br />

concepção. Esferas de cristal que giram, já é uma verdadeira<br />

beleza! O som que se desprende dessas esferas, correlato<br />

com a cor, a densidade e a rotação desses cristais, uma policromia<br />

conjugada a uma harmonia, que coisa bonita!<br />

Essa música não exprimiria o sentir humano, seria<br />

uma pura arquitetura universal, quase uma meditação filosófica<br />

sonora, mas que produz no homem um reflexo.<br />

Então se poderia imaginar um ponto de encontro que seria<br />

a expressão da reação humana diante dessa harmonia<br />

universal, e musicar isso.<br />

Cogitações como essa nos ajudam a suportar o peso<br />

da vida e nos incentivam a pensar no Céu. Como ficam<br />

estúpidas essas lindíssimas esferas de cristal quando consideramos<br />

que existem os Anjos, espíritos perfeitíssimos,<br />

puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente<br />

contemplando a Deus, vendo n’Ele belezas sempre as<br />

mesmas e sempre novas, exclamando em cânticos o seu<br />

sentir. É uma coisa maravilhosa!<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 23/3/1970)<br />

35


Gabriel K.<br />

Assunção de Maria - Galeria Nacional, Ottawa, Canadá<br />

Maria fons, Maria mons, Maria pons<br />

P<br />

or estar no píncaro da Criação, a Santíssima Virgem é a intercessora necessária para os pedidos<br />

que sobem e para os favores que descem.<br />

Há uma cançãozinha muito bonita que diz: Maria fons, Maria mons, Maria pons... Parece<br />

um jogo de palavras, mas de fato Nossa Senhora é a fonte, a montanha e a ponte.<br />

Se analisarmos, encontraremos uma insinuação de píncaro até nisso, porque Ela é a montanha, a<br />

qual, por sua natureza, é um píncaro em relação a outras coisas. Também se diz d’Ela que é mons super<br />

montes positum – a montanha posta sobre todas as outras montanhas.<br />

Maria fons é outro título à maneira de píncaro, ou seja, em relação a toda a natureza seca, a fonte de<br />

onde jorra a água tem uma espécie de culminância, de importância, pois a terra não subsiste sem a água.<br />

Maria pons. Sem a ponte que une os bordos de um precipício o viandante não tem solução para seu<br />

caminho. A ponte garante sua travessia. É mais uma vez a noção de píncaro, em outro sentido.<br />

A nota de píncaro está presente em tudo quanto é d’Ela, especialmente na virginalidade e na humildade levadas<br />

ao inimaginável, em contraposição à Revolução que visa levar ao extremo o orgulho e a sensualidade.<br />

(Extraído de conferência de 12/7/1991)

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