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Dilatando o<br />
Reinado de Cristo
O maravilhoso<br />
realizado na Terra<br />
Gabriel K.<br />
Santa Margarida da Escócia<br />
Basílica de São Patrício, Montreal, Canadá<br />
N<br />
a vida de Santa Margarida da<br />
Escócia nota-se a existência<br />
do maravilhoso na Idade Média.<br />
Não do maravilhoso como uma fábula<br />
ou lenda, mas como algo de realizável.<br />
Para a brumosa Escócia, então terra<br />
de missão, essa princesa vinha trazendo<br />
sangue ilustre, toda a flor da civilização<br />
ocidental, tornando-se uma rainha<br />
magnífica, que deixa vários filhos<br />
ilustres por suas virtudes, e que intercedeu<br />
a favor do povo, deu esmolas,<br />
realizou milagres.<br />
Tudo isso sempre ungido pela coroa<br />
real, além de uma ideia completa<br />
da realeza, apresenta um mundo concreto<br />
onde maravilhas são possíveis e o<br />
extraordinário, o estupendo, a ordem,<br />
mesmo a mais excelente e audaciosa,<br />
são realizáveis na Terra.<br />
Santas como esta de tal maneira difundiam<br />
o bom odor de Jesus Cristo<br />
por toda parte, que acabavam sacralizando<br />
a própria dignidade régia<br />
e criando uma espécie de ambiente<br />
de feeria, de maravilhoso da civilização<br />
medieval, do qual os vitrais são um<br />
reflexo, apresentando os bem-aventurados<br />
em meio a pedacinhos de vidros<br />
dourados, cor de rubi, de esmeraldas,<br />
com uma luz na cabeça, a coroa real<br />
sobre uma mesa, uma santa que derrama<br />
flores em torno de si... Tudo isso é a<br />
imagem do próprio modo como o medieval<br />
concebia a vida, por exemplo, de<br />
uma Santa Margarida, Rainha da Escócia.<br />
(Extraído de conferência de 9/6/1964)
Sumário<br />
Ano XX - Nº <strong>236</strong> Novembro de 2017<br />
Dilatando o<br />
Reinado de Cristo<br />
Na capa, Sagrado Coração de<br />
Jesus, Catedral de Bolzano, Itália.<br />
Foto: Flávio Lourenço<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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ao Assinante<br />
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Editorial<br />
4 Dilatando o Reinado de Cristo<br />
Piedade pliniana<br />
5 Para alcançar a emenda<br />
de meus defeitos<br />
Dona Lucilia<br />
6 Venerável e lindo olhar<br />
De Maria nunquam satis<br />
8 Cantando pelos caminhos<br />
da Judeia<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
12 Grandeza régia de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
Calendário dos Santos<br />
18 Santos de Novembro<br />
Hagiografia<br />
20 Lindo exemplo para os<br />
governantes eclesiásticos<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
23 Como se forma o costume - II<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
28 Mistérios de uma alma e de um povo - II<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
34 A música dos Anjos no Céu<br />
Última página<br />
36 Maria fons, Maria mons, Maria pons<br />
3
Editorial<br />
Dilatando o Reinado<br />
de Cristo<br />
AFé é uma virtude sobrenatural que dá ao homem a capacidade de admitir as verdades reveladas<br />
por Jesus Cristo e Escritores Sagrados, propostas pela Santa Igreja.<br />
Sua origem é divina não somente na Pessoa do Verbo Encarnado, o Mestre por excelência,<br />
mas também nos Profetas e Apóstolos, que nada mais foram do que instrumentos do Espírito<br />
Santo ao nos transmitirem as novidades doutrinárias da parte de Deus. É também divina no<br />
seu princípio, porquanto sem a graça de Deus não é o homem capaz de crer. É finalmente divina<br />
no seu objeto que são as verdades escondidas em Deus, a quais sua Misericórdia se digna comunicar<br />
às criaturas.<br />
Considerados os elementos divinos, a Fé é imutável e em dois sentidos. Primeiro, uma verdade revelada<br />
jamais poderá ter um sentido numa época e outro sentido diverso em outra diferente. Jamais<br />
o que foi crido pela Igreja como verdade de Fé na Idade Média deixará de o ser nos tempos que correm,<br />
ou terá hoje um sentido diverso do sentido que se encontra na profissão de Fé dos fiéis daquela<br />
época. Depois, o campo da Revelação está limitado, de maneira que não haverá mais novas verdades<br />
reveladas. Tudo quanto a Divina Bondade quis manifestar ao homem, o fez até a morte do último<br />
Apóstolo.<br />
Embora a Fé seja sempre a mesma, não obstante pode haver dogmas novos, isto é, verdades que<br />
se achavam implícitas na Revelação Apostólica e que a Santa Igreja explicitou, e impôs à Fé dos fiéis,<br />
como acontece com o Dogma da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Note-se, no entanto, que<br />
neste crescimento na Fé de que é capaz o homem e a humanidade, jamais pode vir o indivíduo a admitir<br />
uma verdade inteiramente nova, que não se encontra de maneira implícita na Revelação Apostólica,<br />
nem chegar à aceitação de uma atitude que contrarie aquilo que foi explicitamente estabelecido<br />
pelo Divino Fundador da Santa Igreja.<br />
Esta exposição nos mostra como se difunde o Reinado de Jesus Cristo não somente angariando<br />
novos membros para a Santa Igreja, mas também intensificando nos fiéis a vida da Fé pelo conhecimento<br />
mais profundo das verdades reveladas, e pela conformação sempre mais perfeita da vontade<br />
com estas verdades.<br />
Não basta o ideal vago de dilatar o Reinado de Jesus Cristo. É preciso que se conheça em que consiste<br />
este Reinado. É pela integridade da Fé e a pureza dos costumes que impera Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo e se dilatam os domínios da Santa Igreja, que são os seus domínios. Neste sentido é obra<br />
de apostolado toda atividade dedicada à conservação do Divino Depósito entregue à Santa Igreja íntegro<br />
e sem delapidações, quer na parte doutrinária, quer na jurídica ou moral * .<br />
* Excertos do artigo Ação Católica – problemas, realizações e ideais – Em prol da Ação Católica, publicado em O<br />
Legionário de 12/11/1944.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Flávio Lourenço<br />
Nossa Senhora da Misericórdia<br />
Catedral de Palma de Mallorca, Espanha<br />
Para alcançar a emenda<br />
de meus defeitos<br />
ÓSenhora, Vós sois a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mãe de todos os homens<br />
e, portanto, também a minha Mãe! Eu serei, talvez, o último dos filhos,<br />
mas Vós sois a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. Se meus pecados<br />
são um abismo, a vossa compaixão é uma montanha muito maior do que esse abismo.<br />
Sei que minhas preces, por si mesmas, não valem nada. Mas se o coração da mãe<br />
está sempre aberto a perdoar, amar e afagar, quanto mais o vosso, que sois a Mãe das<br />
mães! Assim, não desprezeis essas súplicas, mas atendei-as favoravelmente, pois Vos<br />
estou pedindo como filho. Alcançai-me a emenda de meus defeitos.<br />
Sei, ó Mãe, que nunca deixareis de olhar com boa vontade para o filho que pede a<br />
vossa assistência. Por isso Vos imploro com insistência: tende pena de mim e arrancai-<br />
-me de meus pecados. Assim seja.<br />
(Composta em 21/9/1991)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Venerável e<br />
lindo olhar<br />
Existem inúmeros tipos de olhares, tais como de lince, aveludados,<br />
de madrepérola, chispantes. O olhar de Dona Lucilia era pleno<br />
de venerabilidade, de doçura. Quando ela olhava para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
no convívio diário, ele tinha a impressão de que o olhar dela o<br />
considerava do alto, de longe; era inexprimível, mas admirável.<br />
6
Oque é a luz de um olhar? Que<br />
há olhares com luz é uma noção<br />
corrente, todos nós sabemos.<br />
Eu conheci muitos olhares com<br />
luz; além do venerável e lindo olhar<br />
de Dona Lucilia, apreciei também<br />
inúmeras pessoas na hora em que a<br />
graça visita a alma. Então, olhava e<br />
pensava: “É claro, Nossa Senhora<br />
neste momento está te ajudando!”<br />
Vê-se uma certa luz. Por exemplo, a<br />
luz da vocação se nota nos olhares.<br />
Há um universo de olhares<br />
O que é propriamente isso? É de<br />
experiência corrente que o melhor<br />
modo de ver o que se passa na alma de<br />
alguém é olhar para os seus olhos. O<br />
estado de alma tem seu efeito no cérebro,<br />
no sistema nervoso, na musculatura<br />
ocular e, ainda que involuntariamente,<br />
os olhos vão mostrando aquilo<br />
que a alma vai sentindo. Assim, os<br />
estados de muito comprazimento ou<br />
de muito entusiasmo da alma produzem<br />
no olhar, por não sei que condutos,<br />
uma luz que é o efeito da luz percebida<br />
pelo espírito. E por causa disso<br />
há diferenças de belezas de olhar.<br />
Há olhares que são como de lince,<br />
veem longe. Olha-se para eles e tem-<br />
-se a impressão de que, nos últimos<br />
confins do horizonte visual ou mental,<br />
aqueles olhares estão pairando.<br />
É uma forma de pulcritude.<br />
Há outros olhares, pelo contrário,<br />
que parecem precaver-se contra as<br />
longas distâncias, e iluminar de um<br />
modo ameno as proximidades, convidando<br />
à intimidade e às grandes<br />
elevações interiores.<br />
Assim, quantos e quantos olhares,<br />
de quantos e quantos jeitos! Pode-se<br />
dizer que há um universo.<br />
Há olhares que representam uma<br />
peculiar forma de alma, por onde eles<br />
são como que aveludados. Outros manifestam<br />
um tipo de alma diferente, e<br />
se poderia dizer que são de madrepérola.<br />
Existem olhares que exprimem<br />
outros estados de espírito, por onde se<br />
poderia afirmar que são chispantes.<br />
E assim por diante,<br />
quase até ao infinito.<br />
O olhar de mamãe era para<br />
mim cheio de venerabilidade,<br />
de doçura, de intimidade e, sobretudo,<br />
o que me agradava mais nesse<br />
olhar era quando ele me olhava<br />
– naquela intimidade, tantas vezes<br />
nos olhávamos –, e eu tinha a impressão<br />
de que ele me considerava<br />
do alto, de longe, uma coisa<br />
que eu não saberia como exprimir,<br />
mas é algo admirável!<br />
Uma transpalavra<br />
que conheceremos<br />
no Céu<br />
A vida inteira eu quis<br />
ter um olhar. Quando li<br />
que Nosso Senhor olhou<br />
para São Pedro e este<br />
se converteu, veio-me<br />
uma vontade enorme<br />
de um dia pôr os meus<br />
olhos nos d’Ele, vê-<br />
-Lo e ser visto por Ele.<br />
E ter essa troca de olhares<br />
por onde se percebe que cada<br />
alma penetra na outra. Com<br />
a ideia de que aquilo traria um florescimento,<br />
uma elevação, e que Ele<br />
me daria misericórdias, condescendências,<br />
bondades… Uma coisa da<br />
qual eu tinha um desejo enorme!<br />
Depois me veio naturalmente a<br />
ideia de ser fitado por Nossa Senhora.<br />
Sobretudo quando li na “Divina<br />
Comédia” – aliás, não li a “Divina<br />
Comédia”, mas trechos dela – que<br />
Dante ao chegar ao Céu – ele se representa<br />
como sendo vivo, então não<br />
pode ver a essência divina – olha para<br />
Nossa Senhora, e no olhar d’Ela<br />
ele percebe um reflexo do olhar de<br />
Deus: aí está o ápice do Paraíso!<br />
Ah! se Ela pudesse olhar para<br />
mim, um momento que fosse, e dissesse<br />
só isto: “Meu filho…”, tenho a<br />
impressão que me desfaria; eu não<br />
quereria outra coisa senão isso!<br />
Na realidade, acontece que um<br />
pouco dessa impressão nós temos às<br />
vezes, quando entramos num lugar<br />
onde está o Santíssimo Sacramento;<br />
para mim, sobretudo quando o local<br />
está vazio: uma capela, uma igreja.<br />
Há qualquer coisa no ambiente inteiramente<br />
diferente do que é fora.<br />
Temos a impressão de que penetramos<br />
num olhar o qual nos envolve,<br />
nos assume e nos diz, quase que<br />
por todos os sentidos, uma coisa a<br />
qual não sabemos o que é; é uma<br />
transpalavra que conheceremos no<br />
Céu.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
21/11/1979)<br />
Teodoro Reis<br />
7
De Maria nunquam satis<br />
Cantando pelos<br />
caminhos da Judeia<br />
Flávio Lourenço<br />
Caminhando em direção ao Templo,<br />
Nossa Senhora cantava hinos de louvor<br />
a Deus. Dos terraços da Jerusalém<br />
celeste, os Anjos se debruçavam para<br />
vê-La e ouvir seus cânticos. Tudo isso é<br />
muito bonito. Contudo, mais belo ainda<br />
deve ter sido o momento em que Maria<br />
Santíssima entrou no Templo.<br />
Em 21 de novembro se comemora<br />
a festa da Apresentação<br />
de Nossa Senhora. No<br />
livro do Padre Régamey, Les plus beaux<br />
textes sur la Vierge Marie 1 , encontramos<br />
as seguintes reflexões de São<br />
Francisco de Sales:<br />
Nossa Senhora cantava mil<br />
vezes mais graciosamente<br />
que os Anjos<br />
É um ato de admirável simplicidade<br />
o desta gloriosa criança que, presa<br />
ao regaço de sua mãe, não deixa, entretanto,<br />
de se relacionar com a Divina<br />
Majestade. Ela se absteve de falar<br />
até o momento apropriado e, mesmo<br />
assim, não o fazia senão como as outras<br />
crianças de sua idade, embora falasse<br />
sempre com sabedoria.<br />
Ela permaneceu como um suave<br />
cordeiro junto a Santa Ana pelo espaço<br />
de três anos, após os quais foi conduzida<br />
ao Templo para aí ser ofertada<br />
Santa Ana levando Maria Santíssima ao Templo<br />
Museu de Belas Artes, Rouen, França
como Samuel, que também foi levado<br />
ao Templo por sua mãe e dedicado ao<br />
Senhor na mesma idade.<br />
Ó meu Deus, como desejaria poder<br />
representar vivamente a consolação e<br />
suavidade dessa viagem, desde a casa<br />
de Joaquim até o Templo de Jerusalém!<br />
Que contentamento demonstrava<br />
essa criança, vendo chegar a hora que<br />
Ela tanto desejara!<br />
Os que iam ao Templo para adorar<br />
e oferecer seus presentes à Divina Majestade<br />
cantavam ao longo da viagem.<br />
E para isso o real profeta Davi compusera<br />
expressamente um salmo, que<br />
a Santa Igreja nos faz repetir todos<br />
os dias no Ofício Divino. Ele começa<br />
pelas palavras: “Beati immaculati<br />
in via” – “Bem-aventurados são aqueles,<br />
Senhor, que caminham na tua via<br />
sem mácula” (Sl 118, 1), sem mancha<br />
de pecado, “in via”, ou seja, na observância<br />
dos teus Mandamentos.<br />
Os bem-aventurados São Joaquim<br />
e Santa Ana entoavam então esse cântico<br />
ao logo do caminho, e nossa gloriosa<br />
Senhora e Rainha com eles.<br />
Ó Deus, que melodia! Como Ela entoava<br />
mil vezes mais graciosamente que<br />
os Anjos! Por isso ficaram eles de tal forma<br />
admirados que, aos grupos, vinham<br />
escutar essa celeste harmonia e, os Céus<br />
abertos, inclinavam-se nos alpendres da<br />
Jerusalém celeste para olhar e admirar<br />
essa amabilíssima menina.<br />
Eu quis vos dizer isso, embora rapidamente,<br />
para que tenhais com que<br />
vos entreter o resto desse dia considerando<br />
a suavidade dessa viagem. Também<br />
para que fiqueis comovidos ao ouvir<br />
esse cântico divino que nossa gloriosa<br />
Princesa entoa tão melodicamente.<br />
E isso com os ouvidos de vossa devoção,<br />
porque o muito feliz São Bernardo<br />
diz que a devoção é o ouvido da alma.<br />
Por humildade, Ela vivia<br />
como uma criança comum<br />
O fundamento teológico de tudo<br />
quanto está dito aqui é a Imaculada<br />
Conceição de Nossa Senhora.<br />
Como a Santíssima Virgem, desde<br />
o primeiro instante de seu ser, foi<br />
imaculada, Ela não tinha as limitações<br />
inerentes ao pecado original. E entre<br />
essas limitações está o fato de a pessoa<br />
nascer sem uso da sua inteligência.<br />
A pessoa nasce inteligente, mas sem<br />
o uso da sua inteligência. Esse uso só<br />
vem mais tarde com o desenvolvimento<br />
do corpo. Com Nossa Senhora não.<br />
Ela teve, desde o seu primeiro instante,<br />
o uso da sua inteligência que era,<br />
naturalmente, altíssima.<br />
De maneira que n’Ela se reuniam,<br />
num contraste admirável, o que em<br />
Nosso Senhor toma uma sublimidade<br />
que chega a ser sublimemente desconcertante.<br />
Reuniam-se na infância<br />
d’Ela, como na de Nosso Senhor, aspectos<br />
aparentemente contraditórios.<br />
De um lado, Maria Santíssima possuía<br />
uma contemplação superior à<br />
dos maiores Santos da Igreja, quando<br />
estava ainda nos primeiros passos<br />
de sua vida. Mas, de outro lado,<br />
Ela mantinha toda a atitude de uma<br />
criança. E não fazia uso externo disso,<br />
querendo, por humildade, viver<br />
como uma criança qualquer.<br />
De maneira tal que quem tratasse<br />
com Ela, a não ser por alguma expressão<br />
de olhar ou algo assim, teria<br />
a sensação de estar tratando com<br />
uma verdadeira criança comum, igual<br />
às outras. É como Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, em Menino, que queria<br />
ser nutrido, guardado, pajeado como<br />
uma criança. Embora fosse Deus, soberano<br />
Senhor e Rei do Céu e da Terra,<br />
em todas as suas manifestações<br />
externas era como uma criança.<br />
Samuel Holanda<br />
Já imaginaram como seria, na vida<br />
quotidiana de São José e de Nossa<br />
Senhora, a hora em que era preciso<br />
dar leite ou trocar de roupas a Deus?<br />
Pegá-Lo, colocá-Lo sobre uma mesa<br />
e vesti-Lo com uma roupinha, sabendo,<br />
como sabiam, que ali estava a Segunda<br />
Pessoa da Santíssima Trindade,<br />
com a natureza divina hipostaticamente<br />
unida à natureza humana?<br />
Portanto, naquela criancinha que sorria<br />
estavam reunidos todos os esplendores<br />
das alegrias, da majestade e da<br />
grandeza da divindade! Quer dizer, o<br />
que isso representava era de aturdir!<br />
A meu ver, algo disso se dava também<br />
com São Joaquim e Santa Ana.<br />
Não sei se eles sabiam que Nossa Senhora<br />
seria a Mãe do Verbo Encarnado.<br />
Mas certamente pressentiam que<br />
era uma menina designada a altíssimas<br />
coisas com ordem ao Messias.<br />
Então essa Menina ali presente, levava<br />
toda a vida de uma criancinha, mas<br />
tendo em si a contemplação magnífica<br />
de um grande Doutor da Igreja.<br />
Então, nós compreendemos como<br />
se ajustam esses aspectos da benignidade<br />
extrema, afabilidade, acessibilidade<br />
de Nossa Senhora, com uma grandeza<br />
da qual os maiores homens da Terra<br />
não são senão uma minúscula figura.<br />
Local onde se<br />
manifestavam a glória e<br />
as consolações de Deus<br />
Por que isso? Porque Maria Santíssima<br />
quis que as coisas fossem assim:<br />
Rainha incomparável, era Ela,<br />
ao mesmo tempo, Menina simplicíssi-<br />
9
De Maria nunquam satis<br />
ma; tão simples que a sua vida externa<br />
era a de qualquer criança. O que,<br />
aliás, Santa Teresinha, num trecho a<br />
respeito do modo de fazer sermões<br />
sobre Nossa Senhora, comenta muito<br />
bem dizendo que ela gostaria de realizar<br />
uma pregação à maneira dela,<br />
e mostrar na Santíssima Virgem todo<br />
esse lado de bondade, de simplicidade,<br />
de acessibilidade, a ponto de ser<br />
uma criancinha que os parentes punham<br />
no colo. Possivelmente, logo<br />
que foi capaz de servir um pouco as<br />
pessoas, Ela as servia. Trazia água, fazia<br />
uma pequena atenção, etc., e era a<br />
Rainha do Céu e da Terra.<br />
Esses contrastes harmônicos têm<br />
uma tal beleza em si mesmos, que<br />
até corremos o risco de desdourá-<br />
-los tratando deles por demais longamente.<br />
Há neles qualquer coisa de<br />
insondável, diante do que é melhor<br />
manter silêncio.<br />
Ora, nessas condições e, segundo<br />
uma tradição muito generalizada,<br />
aos três anos de idade, Nossa Senhora<br />
foi levada ao Templo. E no caminho<br />
para Jerusalém, como os judeus<br />
costumavam fazer, Ela ia cantando.<br />
É lindíssimo!<br />
Como sabemos, o único Templo ficava<br />
em Jerusalém, na Judeia. Havia<br />
sinagogas onde o povo se reunia para<br />
rezar determinadas orações, ouvir<br />
as leituras e comentários das Sagradas<br />
Escrituras, mas o Templo onde se<br />
realizavam os sacrifícios era só aquele.<br />
E os judeus de todo o território de<br />
Israel, como também os dispersos pelo<br />
mundo inteiro, vinham periodicamente<br />
a Jerusalém para participar<br />
dos sacrifícios do Templo.<br />
Era uma alegria ir aonde se manifestavam<br />
a glória e as consolações de<br />
Deus, o vínculo entre o Céu e a Terra.<br />
Então, era bonito que eles fossem<br />
cantando. Aliás, como tantas vezes<br />
acontece em romarias, ao menos como<br />
se realizavam antigamente.<br />
É preciso dizer também que os métodos<br />
de locomoção modernos conspiram<br />
contra o canto. Não se pode imaginar,<br />
num subúrbio da Central do<br />
Brasil, um trem partindo para Aparecida<br />
a todo “galope” e as pessoas cantando<br />
dentro dele. Como é mais bonito<br />
ir a pé, pousando de quando em<br />
quando, parando, cantando, tocando<br />
para a frente! Isso tem outra plenitude<br />
humana, outra harmonia natural!<br />
Podemos imaginar que beleza,<br />
quando chegava o mês da visita ao<br />
Templo de Jerusalém, os judeus irem<br />
cantando e a nação judaica se encher,<br />
nos seus caminhos, de cânticos<br />
de todos os lados!<br />
Então, São Francisco de Sales<br />
conjetura a Santíssima Menina Maria<br />
cantando com uma voz inefável,<br />
com São Joaquim e Santa Ana, o<br />
cântico que Davi, por inspiração do<br />
Espírito Santo, compôs para essa circunstância.<br />
Alegria dos Anjos quando a<br />
Santíssima Virgem entrou<br />
no Templo pela primeira vez<br />
Notem como São Francisco de Sales,<br />
com uma finura de tato extraordinária,<br />
não se refere à impressão<br />
que esse canto produziria nas pessoas.<br />
Porque, precisamente como Nossa<br />
Senhora não manifestava a sua<br />
grandeza, era possível que Ela não<br />
entoasse com toda a perfeição com<br />
que sabia cantar. Ora, o cântico da<br />
Santíssima Virgem deveria ser o cântico<br />
por excelência! Nunca, nem antes<br />
nem depois, ninguém cantou como<br />
Ela, exceção feita de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. O Redentor também<br />
cantou, e depois disso, nenhum<br />
cântico foi cântico.<br />
É bonito imaginar também outra<br />
coisa: Nossa Senhora cantando e os<br />
Anjos ouvindo as harmonias de alma<br />
com que Ela cantava. E essas harmonias<br />
os extasiavam.<br />
Como se costuma comparar o<br />
Céu à cidade de Jerusalém, São<br />
Francisco de Sales diz que dos alpen-<br />
J. Perez<br />
Virgem Maria Menina - Basílica<br />
Velha de Guadalupe, México<br />
10
Apresentação da Santíssima Virgem no Templo<br />
Museu de Belas Artes, Dijon, França<br />
dres ou dos terraços da Jerusalém<br />
celeste os Anjos se debruçavam para<br />
ver Nossa Senhora cantando pelos<br />
caminhos da Judeia, o que para eles<br />
era um gáudio inexprimível, embora<br />
os homens ignorassem aquelas harmonias<br />
de alma.<br />
Confesso que não conheço pensamento<br />
mais bonito nem mais apropriado<br />
para essa circunstância do<br />
que esse. Contudo, mais belo ainda<br />
deve ter sido o momento em que<br />
Maria Santíssima entrou no Templo.<br />
O Templo de Jerusalém na sua<br />
grandeza, na sua majestade sacral,<br />
ainda habitado pela glória do Padre<br />
Eterno, onde se realizavam os sacrifícios,<br />
o lugar mais sagrado da Terra!<br />
Imaginem o estremecimento de<br />
alegria de todos os Anjos que pairavam<br />
no Templo, no momento em<br />
que Nossa Senhora ali entrava pela<br />
primeira vez, como uma Rainha<br />
naquilo que lhe é próprio, como a<br />
joia entra no escrínio onde deve ser<br />
guardada!<br />
Tanto mais se aos Anjos foi dado a<br />
conhecer que a grande glória e a imensa<br />
tragédia do Templo estavam por se<br />
realizar. Qual era a glória? O Messias<br />
iria entrar no Templo. Qual a tragédia?<br />
O Templo iria recusar o Messias.<br />
Tragédia cujo final seria aquilo<br />
que Bossuet chama magnificamente<br />
de “as pompas fúnebres do Filho de<br />
Deus”, quando ele diz que, logo após<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo expirar, o<br />
Padre Eterno começou a preparar os<br />
funerais d’Ele: o céu se obscureceu, o<br />
Sol se toldou, a terra tremeu, o véu do<br />
Templo se rasgou. O recinto outrora<br />
sagrado ficou entregue aos demônios<br />
que fizeram ali uma espécie de sabá,<br />
à maneira de cem mil gatos selvagens<br />
soltos ali dentro.<br />
Não obstante, o Templo conheceu<br />
sua plenitude na célebre vinda de<br />
Nossa Senhora e São José, quando<br />
trouxeram o Menino Jesus, e Ana e<br />
Simeão, que representavam a fidelidade,<br />
receberam a Sagrada Família.<br />
Então os fiéis reconheceram o Enviado<br />
e se fechou o elo entre os justos<br />
da Antiga Lei e a promessa que<br />
se cumpria.<br />
Pois bem, a Santíssima Virgem, entrando<br />
no Templo de Jerusalém no<br />
momento de sua Apresentação, realizava<br />
o primeiro passo nessa plenitude<br />
da história desse lugar sagrado.<br />
O que os “Simeãos” e as “Anas”<br />
lá existentes devem ter sentido nessa<br />
hora, que graças, que fulgurações<br />
do Espírito Santo devem ter havido<br />
no Templo nessa ocasião, ninguém<br />
poderá dizê-lo, a não ser no fim do<br />
mundo. Mas sigamos o conselho do<br />
suavíssimo São Francisco de Sales e<br />
fiquemos com todas essas recordações<br />
em nossas almas, pensemos nelas,<br />
suave e alegremente, tanto quanto<br />
possível: Nossa Senhora cantando<br />
pelos caminhos, entrando no Templo<br />
de Jerusalém e, dos alpendres da Jerusalém<br />
celeste, os mais altos Anjos<br />
embevecidos com a alma dessa Menina.<br />
É uma meditação muito adequada<br />
para o dia da Apresentação<br />
de Nossa Senhora. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
21/11/1965)<br />
1) Do francês: Os mais belos textos sobre<br />
a Virgem Maria. RÉGAMEY,<br />
O.P., Pie-Raymond. Les plus beaux<br />
textes sur la Vierge Marie. Paris: La<br />
Colombe, Éditions du Vieux-Colombier,<br />
1946. p. 229-230.<br />
Flávio Lourenço<br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Francisco Barros<br />
Cristo Rei - Igreja Nossa<br />
Senhora da Consolação,<br />
Carey, EUA<br />
Grandeza régia de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
A grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo reluziu em mais<br />
de um episódio de sua vida, e de um modo muito especial na<br />
Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente<br />
toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. O ódio<br />
despertado por Ele comprova sua grandeza, porque os medíocres<br />
não suscitam ódio. Mesmo depois de morto Cristo foi odiado, o<br />
que indica ser Ele incomparavelmente grande.<br />
Arealeza de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo Lhe vem secundariamente<br />
por Ele descender<br />
de Davi, e muito principalmente pelo<br />
fato de ser Homem-Deus. Quer dizer,<br />
o Homem-Deus, onde quer que<br />
Se encontre, é Rei, e diante d’Ele, co-<br />
mo diz São Paulo (cf. Fl 2, 10), se dobre<br />
todo joelho, no Céu e na Terra!<br />
Rei dos judeus<br />
Contudo, o fato de ser apenas<br />
muito secundariamente Rei da Casa<br />
Real de Davi, não quer dizer que isso<br />
seja indiferente, nem que se deva<br />
excluir ou olhar com pouco caso essa<br />
circunstância. Porque tudo quanto<br />
diz respeito a Ele não é indiferente,<br />
tem um grande alcance, um grande<br />
valor. E, portanto, ainda que não<br />
12
seja o valor máximo, supremo, merece<br />
ser examinado a fundo.<br />
Tudo quanto sucede se insere ou na<br />
providência geral ou na especial com<br />
que Deus rege todo o universo. Mas o<br />
que diz respeito a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo tudo está regulado por uma providência<br />
especialíssima. Por causa disso<br />
merece toda a atenção, toda a análise<br />
a circunstância de Ele ser membro<br />
da Casa Real de Davi. O alcance dessa<br />
circunstância, se precisasse ainda ser<br />
demonstrado, além de ter por base as<br />
razões que acabo de alegar, possui também<br />
outro motivo: o fato de a Providência<br />
ter querido que no letreiro que<br />
encimava a Santa Cruz estivesse escrito<br />
“Jesus Nazareno, Rei dos judeus”; e<br />
isso molestou os judeus, a ponto de pedirem<br />
a Pilatos que tirasse a inscrição,<br />
tendo ele respondido: “O que eu escrevi,<br />
escrevi” (Jo 19, 22). É o senso dominador<br />
dos romanos muito bem aplicado<br />
no caso concreto: “O que eu escrevi,<br />
escrevi, não tiro mais. E se vocês não<br />
gostam, engulam com farinha.”<br />
Sempre interpretei essa resposta de<br />
Pilatos – tão bonacheirão, tão moleirão,<br />
tão indecente no que diz respeito<br />
ao seu dever de proclamar a inocência<br />
de Nosso Senhor – como um agastamento<br />
dele. Tinham-no obrigado, sob<br />
pena de ser denunciado como inimigo<br />
de César, a lavrar uma sentença que<br />
julgava injusta. E quando vieram pedir-lhe<br />
para tirar esse letreiro, ele estava<br />
agastado e, então, disse: “Não, o<br />
que eu fiz, fiz, está acabado! Pelo menos<br />
agora me deixem ser homem.”<br />
Seja como for, ficou o letreiro para<br />
sempre imortal na Cruz imortal:<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo é o Rei<br />
dos judeus. E isso supõe, então, uma<br />
certa análise desse atributo terreno:<br />
Rei dos judeus.<br />
Posse de um presidente dos<br />
Estados Unidos e coroação<br />
da Rainha da Inglaterra<br />
Toda realeza existente na Terra<br />
provém, em última análise, de Deus.<br />
Porque tudo quanto existe no universo<br />
é criado por Ele. Dante, na Divina<br />
Comédia, diz muito bem que<br />
certas criaturas são filhas de Deus,<br />
pois Ele as cria diretamente. Outras,<br />
porém, são suas netas, por serem filhas<br />
dos filhos d’Ele, mas produzidas<br />
segundo seus divinos desígnios. Assim,<br />
Deus está na origem desses seres,<br />
entre os quais se encontram as<br />
formas de governo.<br />
Por outro lado, convém àqueles<br />
que possuem o primado na Terra<br />
e na ordem temporal representar<br />
de modo mais excelente a majestade<br />
de Deus. Por isso, em todos os lugares<br />
onde o poder monárquico tenha<br />
existido, os povos têm se aplicado<br />
em representar de modo mais excelente<br />
a grandeza do rei. Por exemplo,<br />
em nossos dias os Estados Unidos<br />
constituem a maior potência<br />
temporal da Terra; e seu presidente<br />
tem, sem dúvida, um poder sobre os<br />
acontecimentos deste mundo muito<br />
maior do que o do governo inglês e,<br />
portanto, também da Rainha da Inglaterra,<br />
que é a figura simbólica e<br />
ornamental colocada no alto dessa<br />
estrutura venerável chamada governo<br />
inglês.<br />
Mas a simbologia adotada pelo<br />
povo norte-americano para exprimir<br />
o poder do seu chefe, não se reflete<br />
nas manifestações de esplendor que<br />
cercam o chefe de Estado. O presidente<br />
norte-americano deve parecer<br />
poderoso, grande, excelso, superior<br />
a todas as criaturas? Não. Por não se<br />
tratar de um poder hereditário e vitalício,<br />
que não está simbolicamente<br />
acima de todos os poderes, como<br />
o poder real, não se vê nele um reflexo<br />
tão direto e límpido da<br />
majestade divina, quanto na<br />
forma de governo monárquica.<br />
Esta é a razão pela<br />
qual a posse de um<br />
presidente norte-americano<br />
é um espetáculo<br />
jovial, acompanhado de<br />
manifestações de regozijo características<br />
de um magnata bem-sucedido<br />
nos seus negócios. Não próprias<br />
a um homem que está inteiramente<br />
consciente da representação divina,<br />
que de fato todo chefe de Estado<br />
possui.<br />
Notamos muito essa diferença ao<br />
compararmos a tomada de posse de<br />
um presidente da América do Norte<br />
com a coroação da Rainha da Inglaterra.<br />
Esta se dá dentro de uma cerimônia<br />
majestosa, esplendorosa.<br />
Formas de grandeza<br />
próprias aos reis da Terra<br />
Em Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
enquanto Rei, deveria refulgir, portanto,<br />
uma majestade temporal, com<br />
todas as formas de grandeza próprias<br />
aos reis da Terra. Antes de tudo,<br />
uma grandeza de alma, de descortínio<br />
de horizontes, de pontos de vista,<br />
por onde quem está posto no píncaro<br />
da ordem temporal desvenda<br />
coisas muito mais amplas e matizadas<br />
do que aquele que está colocado<br />
Flávio Lourenço<br />
Pilatos lava as mãos - Museu da<br />
Semana Santa, Zamora, Espanha<br />
13
Sagrado Coração de Jesus<br />
em posições inferiores. A<br />
ordem temporal constitui<br />
uma hierarquia riquíssima.<br />
No caso da monarquia, um<br />
simples trabalhador manual<br />
não é obrigado a ter, e<br />
habitualmente não possui,<br />
o descortínio e o horizonte<br />
do rei, a quem as informações<br />
mais graves, os anelos<br />
mais ardentes das várias<br />
populações chegam como<br />
os ventos no alto das montanhas.<br />
Estes não sopram<br />
nos vales com a pureza e<br />
largueza com que sopram<br />
no píncaro das montanhas.<br />
Essa largura de horizontes<br />
traz como corolário<br />
necessário a obrigação de<br />
uma virtude especial. Porque<br />
aqueles a quem a Providência<br />
deu muito, deles<br />
se exige uma retribuição<br />
especial. E, portanto, uma<br />
obrigação de ter em relação<br />
a Deus um amor, um<br />
nexo e uma humildade especiais.<br />
Nessa humildade<br />
perante Ele, poder-se-ia<br />
dizer que a glória de Deus<br />
G.Garitan (CC3.0)<br />
Henrique II toca os escrofulosos após sua<br />
coroação - Biblioteca Nacional, Paris, França<br />
baixa sobre eles e neles refulge.<br />
Uma das manifestações mais tocantes<br />
disso é o fato que encerrava as festas<br />
da coroação de um Rei da França,<br />
no Ancien Régime. Na famosa e histórica<br />
Catedral de Reims, terminada a<br />
cerimônia, do lado de fora alinhava-<br />
-se uma série interminável de doentes<br />
que padeciam de escrófula. Segundo<br />
uma tradição, o monarca recém-coroado<br />
tinha o poder, dado por Deus,<br />
de curar os escrofulosos. Então, quando<br />
havia a coroação de um rei, os escrofulosos<br />
da França inteira – e quero<br />
crer que também de outros países da<br />
Europa – acorriam para serem curados.<br />
O monarca, em traje de coroação,<br />
saía para a praça pública onde estava<br />
essa gente colocada em leitos, em cadeiras,<br />
enfim, como era possível, e tocando<br />
um a um – na coroação de Luís<br />
XVI, se não me engano, chegaram a<br />
mil e quinhentos – dizia: Le roi te touche,<br />
Dieu te guérisse – O rei toca em ti,<br />
que Deus te cure. Segundo uma antiga<br />
praxe, inabalável ao longo dos séculos,<br />
muitos saravam.<br />
Era, portanto, o poder divino que<br />
baixava através de um rei ungido por<br />
Deus e cognominado, na terminologia<br />
da Cristandade, Rex Christianissimus<br />
– o Rei Cristianíssimo – que era<br />
o Rei da França, intitulado “Sua Majestade<br />
Cristianíssima”, assim como<br />
o Rei da Espanha era “Sua Majestade<br />
Católica”, e o de Portugal “Sua<br />
Majestade Fidelíssima”; o Rei da Inglaterra,<br />
antes da heresia abjeta de<br />
Henrique VIII, intitulava-se Defensor<br />
Fidei – “Defensor da Fé”.<br />
A unção recebida na coroação era<br />
verdadeiramente um sacramental,<br />
segundo a Teologia, e o<br />
ungido do Senhor tocava e<br />
sarava, manifestando o nexo<br />
entre Deus e ele.<br />
Essas são as qualidades<br />
espirituais às quais, normalmente,<br />
deveria corresponder<br />
uma aparência física.<br />
O rei não tem obrigação<br />
de ser bonito. Ninguém escolhe<br />
o próprio rosto. Mas,<br />
de qualquer forma, convinha<br />
que o rei tivesse, em<br />
grau eminente, a pulcritude.<br />
Por causa da sua condição,<br />
convém ao monarca<br />
uma indumentária, trajes à<br />
altura daquilo que ele deve<br />
refletir. Isso enquanto à sua<br />
pessoa. Também seu modo<br />
de reinar deve ser esplêndido<br />
como tudo quanto nele<br />
há. Eis o que caracteriza<br />
um grande rei.<br />
Transfiguração no<br />
Tabor e Domingo<br />
de Ramos<br />
Como ver todas essas<br />
qualidades em Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, que não andou pela<br />
Terra como Rei? Mesmo no Domingo<br />
de Ramos, quando Ele foi objeto de<br />
uma grande homenagem da parte do<br />
povo de Jerusalém, era aclamado como<br />
Filho de Davi, mas não houve nenhum<br />
atentado para tirar Herodes do<br />
cargo, nem algo semelhante. Ele foi<br />
aclamado como homem que tinha, entre<br />
suas glórias, a de descender de Davi.<br />
Um homem eminente, um santo,<br />
mas não era por isso que estavam restaurando-O<br />
politicamente na realeza.<br />
Pelo contrário, era filho de um príncipe<br />
pobre como São José, que exercia<br />
a profissão de carpinteiro. Como entrar<br />
em Nosso Senhor essa grandeza e<br />
todos esses requisitos de Rei? Em alguma<br />
coisa deveria ter aparecido porque,<br />
se Ele possuía, havia de aparecer<br />
em certo momento, pois Ele veio pa-<br />
14
a Se manifestar por inteiro a todos os<br />
homens.<br />
Em mais de um episódio da vida<br />
d’Ele, essa grandeza real reluziu.<br />
Mas de um modo muito especial,<br />
intencional, na Transfiguração no<br />
Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente<br />
toda a sua majestade como<br />
Rei e, sobretudo, como Deus.<br />
Eu falei dos trajes reais. Quando<br />
Jesus Se transfigurou, sua veste era<br />
alva como a neve (cf. Mt 17, 2). A<br />
respeito dos lírios do campo, Ele disse<br />
que ninguém era capaz de se vestir<br />
como um deles (cf. Mt 6, 28-29).<br />
Ora, a túnica em que Ele estava envolto<br />
deveria ter sido elaborada por<br />
Nossa Senhora; nunca houve tecido<br />
igual. Imaginem como estava ela, refulgindo<br />
como a neve!<br />
Ele estava tão esplendoroso, mostrando-Se<br />
na sua verdadeira glória e<br />
deixando-a transparecer aos Apóstolos<br />
por Ele convocados para o alto<br />
do monte, que eles ficaram não<br />
só maravilhados, mas não queriam ir<br />
embora. São Pedro propõe ficar ali<br />
em cima, arranjarem tendas e não<br />
sair mais (cf. Mt 17, 4).<br />
Em toda a História não se viu<br />
um rei que fosse objeto dessa aclamação:<br />
“Vamos ficar aqui juntos de<br />
vós, não precisamos mais do resto<br />
do mundo, ficaremos olhando para<br />
vós!” Pelo contrário, o rei é muito<br />
admirável, mas as pessoas gostariam<br />
de lhe dizer: “Senhor, dai-me cargo,<br />
dinheiro, honra... Desejo vos servir,<br />
mas quero que também vós me sirvais.<br />
Nada de ficar aqui parado só<br />
para vos olhar. Quero ser fiel, sede<br />
fiel vós também. Aliás, antes mesmo<br />
de vos ter prestado serviço, já tenho<br />
a lista dos benefícios que quero<br />
de vós. E quando os receber, mostrarei<br />
ao povo, nas ruas da capital, para<br />
ser apreciado e admirado eu também.<br />
Isso de viver só para vos admirar<br />
não basta…” Esta é a história de<br />
todas as monarquias terrenas.<br />
Com Nosso Senhor não. Ele apareceu<br />
em sua majestade. Reação:<br />
“Fiquemos aqui, não precisamos de<br />
mais nada!”<br />
Além da esplendorosa manifestação<br />
de sua realeza no Tabor, Ele<br />
teve também a do Domingo de Ramos<br />
à qual aludi há pouco. Embora<br />
não tenha sido saudado como Rei,<br />
é evidente que aquele povo aclamava<br />
n’Ele uma majestade pessoal, presente<br />
n’Ele, que se exprime na Ladainha<br />
do Sagrado Coração de Jesus<br />
com esta invocação magnífica: Cor<br />
Iesu, maiestatis infinitæ, miserere nobis<br />
– Coração de Jesus, de majestade<br />
infinita, tende compaixão de nós.<br />
Majestade de Nosso Senhor<br />
na morte, na Ressurreição...<br />
O que quer dizer coração aqui? O<br />
culto incide sobre o Coração de carne<br />
d’Ele, símbolo da alma, do espírito,<br />
da mentalidade, dos desejos, dos<br />
propósitos, os quais eram de uma majestade<br />
infinita. O que isso significa?<br />
Tudo quanto Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo queria era de uma grande-<br />
za ilimitada; o que Ele inteligia possuía<br />
um descortínio sem fim; nos desígnios<br />
d’Ele, a bondade era de uma<br />
majestade infinita, como também<br />
sua justiça. Ele deixou claro que a<br />
manifestação dessa justiça, de uma<br />
majestade infinita, estaria reservada<br />
para depois. E foi guardada para sua<br />
morte e o dia em que vier julgar os<br />
vivos e os mortos no fim do mundo,<br />
quando Ele virá na majestade de Rei<br />
e de Deus, acumuladas.<br />
A majestade da morte do Divino<br />
Redentor! Ele morreu sob o desprezo<br />
geral, compensado pela adoração<br />
indizivelmente preciosa de Nossa<br />
Senhora e, num grau respeitável,<br />
mas enormemente menor – porque<br />
tudo quanto existe, exceto Nosso Senhor,<br />
é incomparavelmente menor<br />
do que Maria Santíssima – pela adoração<br />
de São João, das santas mulheres,<br />
do bom ladrão. Iniciam-se, então,<br />
o que Bossuet – o grande Bispo<br />
de Meaux, na França, e pregador sacro<br />
dos mais eminentes – chama de<br />
“os funerais do Filho de Deus”.<br />
Entrada de Nosso Senhor em Jerusalém no Domingo de Ramos<br />
Igreja de Nossa Senhora da Purificação, Almendralejo, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
15
Sagrado Coração de Jesus<br />
Que rei teve ou terá semelhantes<br />
funerais? A terra treme, o Sol se<br />
obscurece, o véu do Templo se rasga.<br />
Com o tremor da terra, as sepulturas<br />
dos justos do Antigo Testamento<br />
se abrem e eles saem pelas ruas<br />
(cf. Mt 27, 52), exprobrando a todos<br />
os homens maus o pecado de deicídio<br />
que tinham cometido, pois era o pecado<br />
da nação inteira. Quando o povo<br />
disse: “Que o sangue d’Ele caia sobre<br />
nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,<br />
25), o pecado da nação foi cometido.<br />
Então, a acusação desses pecadores<br />
se faz com essa majestade suprema.<br />
Porém, a majestade de Jesus, Nosso<br />
Senhor, se mostra também quando<br />
Ele, ressurreto, aparece a Maria<br />
Santíssima. Tenho como certo, embora<br />
não esteja dito na Sagrada Escritura,<br />
que ao ressuscitar, antes de<br />
Se manifestar a qualquer outra criatura,<br />
Ele apareceu a Ela.<br />
Nosso Senhor rompeu a sepultura,<br />
os Anjos atiraram ao chão a pedra<br />
funerária e Ele saiu (cf. Mt 28, 1-3),<br />
e todas as cicatrizes da Paixão refulgiam<br />
como sóis! Depois, todas as aparições<br />
d’Ele se revestiram<br />
dessa nota de majestade.<br />
Por exemplo, Ele entra<br />
no local em que se encontravam<br />
reunidos os discípulos,<br />
ninguém sabe por<br />
onde (cf. Jo 20, 19). Estava<br />
com seu Corpo glorioso,<br />
as portas e janelas fechadas<br />
não adiantavam<br />
de nada, Ele as atravessava.<br />
Que majestade entrar<br />
através de um muro que<br />
ninguém derrubou! Muitos<br />
reis na História derrubaram<br />
muralhas... Transpô-las<br />
sem as ter derrubado,<br />
só o Rei Jesus Cristo!<br />
Ele aparece tão bondoso,<br />
tão amoroso, mas<br />
incute tanto medo que as<br />
palavras d’Ele às santas<br />
mulheres são: “Não temais!”<br />
(Mt 28, 10).<br />
Samuel Holanda<br />
...e na Ascensão<br />
É indescritível o que deve ter aparecido<br />
de grandeza d’Ele na Ascensão!<br />
Enquanto falava, ia Se elevando<br />
lentamente. À medida que Se aproximava<br />
do céu, não levado por Anjos,<br />
mas por sua própria força, ia ficando<br />
mais reluzente, mais majestoso!<br />
Em certo momento, desaparece.<br />
Pode-se imaginar a alegria de Maria<br />
Santíssima por ver glorificado o<br />
Filho que Ela vira tão humilhado!<br />
Mas, de outro lado, o que estava se<br />
passando n’Ela, de tristeza por causa<br />
da separação...<br />
Havia, entretanto, uma consolação.<br />
Tenho a impressão muito forte<br />
e vincada de que Deus não recusou<br />
a Nossa Senhora a graça concedida<br />
por Ele a numerosos Santos:<br />
amaram tanto o Santíssimo Sacramento<br />
que, a partir de determinado<br />
momento de suas vidas, nunca mais<br />
a Sagrada Eucaristia deixou de estar<br />
presente neles. Comungavam, e as<br />
Sagradas Espécies ficavam no Santo<br />
até que ele comungasse novamente.<br />
Foi o caso, por exemplo, de Santo<br />
Ascensão de Jesus - Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus, Santander, Espanha<br />
Antônio Maria Claret, fundador dos<br />
padres do Coração de Maria, no século<br />
XIX. Ele veio a ser, assim, um<br />
tabernáculo vivo de Nosso Senhor.<br />
Tendo Nossa Senhora sido, no período<br />
de gestação, o Tabernáculo vivo<br />
do Salvador, será que Ele indo para<br />
o Céu não manteve n’Ela esta condição?<br />
Pelo menos a partir da primeira<br />
Missa, creio que jamais Nosso Senhor<br />
deixou de estar presente em sua Mãe<br />
virginal. Após a Ascensão, certamente<br />
Ela pensava: “Ele está no Céu, mas<br />
também aqui!” Os Apóstolos, por sua<br />
vez, com certeza cogitavam em celebrar<br />
já no dia seguinte e recebê-Lo,<br />
por tempo maior ou menor, em seus<br />
corações. A presença eucarística começava,<br />
assim, a consolar a Igreja<br />
dessa longa separação de muitos mil<br />
anos, que cessará quando Ele vier no<br />
dia do Juízo Final.<br />
Grandeza até nas<br />
piores humilhações<br />
Pode-se imaginar grandeza régia<br />
comparável a essa? Pois bem, há mais.<br />
Que Nosso Senhor fosse<br />
adorado no seu esplendor,<br />
está explicado. Mas<br />
não é só isso. Os inimigos<br />
d’Ele, querendo achincalhá-Lo,<br />
sujeitaram-No às<br />
humilhações da Paixão.<br />
De ponta a ponta, Ele bebeu<br />
inteira a taça de todas<br />
as dores e vexações possíveis.<br />
Os algozes não supunham<br />
que ao longo dos séculos<br />
começaria uma adoração<br />
de cada humilhação<br />
sofrida por Ele, e que<br />
diante de imagens representando-O<br />
sentado com a<br />
coroa de espinhos, o manto<br />
de irrisão e a vara de<br />
cretino na mão, os maiores<br />
sábios se ajoelhariam<br />
e chorariam de emoção.<br />
Os reis mais poderosos tomariam<br />
por elogio exage-<br />
16
ado serem comparados,<br />
de longe, a esse Rei sentado<br />
naquele trono dos bobos.<br />
Aquele Homem dignificaria<br />
de tal maneira a<br />
Cruz na qual fora cravado<br />
que, no alto de todas<br />
as coroas das nações católicas,<br />
a cruz seria o sinal<br />
da glória.<br />
Quer dizer, ninguém<br />
foi, nem de longe, tão<br />
grande quanto Ele, considerado<br />
não só nas horas<br />
de glória, mas nas de<br />
pior humilhação. Aliás,<br />
mesmo nessas horas, Ele<br />
deu sinais de poder incríveis<br />
como, por exemplo,<br />
ao bom ladrão, a quem<br />
o Divino Crucificado canonizou<br />
no alto do Calvário,<br />
com esta promessa<br />
pronunciada por quem é<br />
Rei do Céu e da Terra:<br />
“Hoje estarás comigo no<br />
Paraíso” (Lc 23, 43). Notem!<br />
A promessa não é a<br />
seguinte: “Hoje estarás<br />
no Paraíso.” Jesus sabia<br />
que se não dissesse que<br />
estaria com Ele a promessa<br />
não seria completa, pois um<br />
Paraíso onde não estivesse Ele não<br />
seria Paraíso. Que realeza!<br />
O maior ódio da História<br />
até o fim dos séculos<br />
Certa ocasião, um historiador<br />
francês cético fez esse comentário:<br />
Os historiadores costumam passar<br />
por cima da figura de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. Eu lhes pergunto quem<br />
é o homem que tenha, ao longo da<br />
História, conseguido que tantos outros<br />
se pusessem de joelhos com tanta<br />
humildade, e se considerado honrados<br />
por terem se ajoelhado diante<br />
de sua figura? Se depois disso ele<br />
não é digno de entrar na História, o<br />
que faz a História?<br />
A Coroação de espinhos - Igreja de Santa María<br />
La Blanca - Villalcazar de Sirga, Espanha<br />
Esses compêndios de História<br />
usados nos colégios, mesmo em universidades,<br />
tratam de toda espécie<br />
de coisas, d’Ele não falam. Ora, Nosso<br />
Senhor é o centro da História. E<br />
se Ele não foi grande, quem o foi?<br />
Alguém poderia objetar: “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, levado pelo seu entusiasmo,<br />
o senhor está ladeando o problema.<br />
Está provado que César, Carlos<br />
Magno, Napoleão existiram, mas<br />
quem provou que Jesus existiu?”<br />
Ora, é a existência histórica mais<br />
certa que há! Porque todas as razões<br />
pelas quais nós acreditamos que César<br />
existiu, nos levam a crer que Jesus<br />
Cristo existiu.<br />
Um cretino, certa vez, me perguntou:<br />
“Onde estão os originais dos<br />
Evangelhos?”<br />
Flávio Lourenço<br />
A resposta possível<br />
era: A Causa Católica estaria<br />
muito mal servida<br />
se o fosse por você! Porque<br />
se houvesse em algum<br />
lugar uma pilha de<br />
pergaminhos com os originais<br />
dos quatro Evangelhos,<br />
quem nos garantiria<br />
serem, de fato, os<br />
originais? Não provariam<br />
nada! Poderiam ser<br />
um muito bom objeto<br />
de culto, de investigação<br />
histórica, um documento<br />
antigo; prova, não. Seria<br />
preciso provar que aquelas<br />
provas eram provas.<br />
Agora, eu pergunto:<br />
onde estão os originais<br />
das Catilinárias de Cícero?<br />
Não obstante, quem<br />
põe em dúvida que Cícero<br />
existiu e que é o autor<br />
daquelas Catilinárias?<br />
Ninguém, por uma série<br />
de razões históricas.<br />
Estas existem no caso de<br />
Nosso Senhor com superabundância.<br />
Pode ser razão de<br />
grandeza o ódio que alguém<br />
despertou? Sim, porque os medíocres<br />
não despertam ódio. Para ser<br />
odiado como Nosso Senhor o foi, até<br />
depois de morto, há uma forma de<br />
grandeza régia. Até nisso Ele foi e é<br />
incomparavelmente grande. Ele será<br />
odiado com o maior ódio da História<br />
até o fim dos séculos. Quando o Anticristo<br />
vier, será uma espécie de personificação<br />
do ódio contra Ele. Também<br />
a vitória d’Ele sobre o Anticristo será<br />
alcançada de um modo que nunca<br />
nenhum rei teve: com o sopro da boca<br />
Ele o liquida (cf. 2Ts 2, 8). Não é nem<br />
sequer o tato de um peteleco, é um sopro<br />
da boca! Reduzido a pó, acabou a<br />
História, começa o julgamento! v<br />
(Extraído de conferência de<br />
3/9/1986)<br />
17
Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
5. Solenidade de Todos os Santos.<br />
6. São Paulo, bispo e mártir (†350).<br />
Por manter a Fé professada no Concílio<br />
de Niceia, os arianos expulsaram-no<br />
diversas vezes de sua sede<br />
em Constantinopla, à qual retornava<br />
com grande heroísmo. Por fim, o Imperador<br />
Constâncio o exilou à Capadócia,<br />
onde foi cruelmente estrangulado,<br />
segundo a tradição, por insídias<br />
dos arianos.<br />
9. Dedicação da Basílica de Latrão.<br />
São Teodoro, mártir (†s. III).<br />
10. São Leão Magno, Papa e Doutor<br />
da Igreja (†461). Combateu as heresias<br />
do eutiquianismo e do donatismo e enfrentou<br />
sozinho Átila, Rei dos Hunos,<br />
que não invadiu a Cidade Eterna porque<br />
ficou impressionado pela extraordinária<br />
força moral do Pontífice.<br />
11. São Martinho de Tours, bispo<br />
(†397).<br />
Santo Estanislau Kostka<br />
1. São João, bispo, e São Jacob,<br />
presbítero, mártires (†344). Por defenderem<br />
a Fé Católica, foram encarcerados<br />
durante o reinado de Sapor<br />
II, na Pérsia, e consumaram seu martírio<br />
um ano depois, mortos à espada.<br />
2. Comemoração de todos os Fiéis<br />
Defuntos.<br />
3. São Martinho de Porres, religioso<br />
(†1639). Ingressou aos 15 anos como<br />
oblato em um convento dominicano<br />
de Lima, no qual mais tarde professou<br />
como irmão leigo. Exerceu habitualmente<br />
os mais humildes serviços<br />
com despretensão e amor de<br />
Deus. Encarregado da enfermaria,<br />
possuía um verdadeiro dom para tratar<br />
os doentes, curando-os não apenas<br />
fisicamente, mas também fazendo<br />
bem às suas almas.<br />
4. São Carlos Borromeu, bispo<br />
(†1584). Foi perfeito modelo de pastor<br />
das almas, aplicando em Milão as reformas<br />
ordenadas pelo Concílio de Trento.<br />
Flávio Lourenço<br />
Aparição de São Paulo a<br />
Santo Alberto Magno e<br />
São Tomás de Aquino<br />
7. Beato Francisco Palau, religioso<br />
(†1872). Da Ordem dos Carmelitas<br />
descalços, possuía um particular<br />
discernimento do papel desempenhado<br />
pelo demônio no mundo, e esforçou-se<br />
para que a Igreja ampliasse o<br />
uso do exorcismo como arma espiritual<br />
adequada às necessidades dos fiéis.<br />
8. Cinco Santos Escultores, mártires<br />
(†306). Foram decapitados por se recusarem<br />
a esculpir estátuas de ídolos.<br />
Flávio Lourenço<br />
12. XXXII Domingo do Tempo Comum.<br />
13. Santo Estanislau Kostka, religioso<br />
(†1567). Convidado a ingressar na<br />
Companhia de Jesus pela própria Santíssima<br />
Virgem, encontrou grandes dificuldades<br />
para atender ao chamado,<br />
pois seu pai, embora católico, opôs-se<br />
inabalavelmente à vocação religiosa de<br />
Estanislau. Tendo feito o heroico voto<br />
de peregrinar pela Terra inteira, se necessário<br />
fosse, até encontrar uma casa<br />
São Martinho de Tours<br />
18
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
da Companhia de Jesus que o quisesse<br />
aceitar sem a licença do pai, caminhou<br />
700 km, de Viena até a Alemanha, à<br />
procura de São Pedro Canísio, que o<br />
acolheu com bondade e o encaminhou<br />
a Roma, com uma carta de recomendação<br />
a São Francisco de Borja. Foi, então,<br />
aceito como noviço da Companhia,<br />
mas permaneceu nessa condição somente<br />
nove meses, pois morreu na Festa<br />
da Assunção de Nossa Senhora. Não<br />
chegou a completar 17 anos de idade.<br />
14. São Serapião, mártir (†s. III).<br />
Foi martirizado no Egito, durante a<br />
perseguição do Imperador Décio.<br />
15. Santo Alberto Magno, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†1280).<br />
16. Santa Margarida, Rainha da<br />
Escócia (†1093). Ver página 2<br />
17. Santa Isabel, Rainha da Hungria,<br />
esposa e religiosa (†1231)<br />
Santa Hilda, abadessa (†680).<br />
18. São Romano, diácono e mártir.<br />
Por ter incentivado os cristãos perseguidos<br />
a permanecerem firmes e<br />
constantes em sua Fé, foi aprisionado<br />
e morreu estrangulado.<br />
19. XXXIII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
20. Santo Edmundo, mártir (†870).<br />
Ver página 20<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />
Ver página 8<br />
São Gelásio, Papa (†496).<br />
22. Santa Cecília, virgem e mártir<br />
(†s. III).<br />
23. São Columbano, abade (†615).<br />
Tendo abraçado a vida monástica, partiu<br />
da Irlanda, sua terra natal, para a<br />
França, onde fundou muitos mosteiros<br />
que governou com austera disciplina.<br />
24. Santos André Dung-Lac, presbítero,<br />
e companheiros, mártires (†s.<br />
XVII-XIX).<br />
São Saturnino quebrando os ídolos diante do prefeito<br />
25. Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem e mártir (†305). Conduzida<br />
diante do Imperador por ser cristã, censurou-o<br />
corajosamente por perseguir a<br />
Religião verdadeira, fez a apologia do<br />
Cristianismo e demonstrou a falsidade<br />
dos cultos idolátricos. O Imperador, encolerizado,<br />
condenou-a à morte.<br />
26. Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei<br />
do Universo. Ver página 12<br />
27. Santa Catarina Labouré, virgem<br />
(†1876).<br />
28. Santa Teodora, abadessa<br />
(†980). Discípula de São Nilo, o Jovem,<br />
mestra na vida monástica.<br />
29. São Saturnino, bispo e mártir<br />
(†s. III). Enviado para a evangelização<br />
das Gálias, fundou a diocese de<br />
Toulouse. Segundo um relato do século<br />
V, incorreu na ira dos sacerdotes<br />
de Júpiter, porque sua simples presença<br />
tornava mudo o ídolo ao qual<br />
eles costumavam sacrificar um touro.<br />
Certo dia, os devotos de Júpiter<br />
prenderam São Saturnino e exigiram<br />
que fosse ele próprio sacrificar o touro.<br />
Diante da recusa do Santo, que<br />
ademais desafiou Júpiter a fulminá-<br />
-lo com um raio se fosse capaz disso,<br />
os pagãos o condenaram a ser arrastado<br />
até à morte pelo mesmo touro. Por<br />
uma piedosa lembrança, os toureiros<br />
o têm, na Espanha, como seu protetor<br />
especial.<br />
30. Santo André, Apóstolo (†s. I).<br />
Flávio Lourenço<br />
19
Hagiografia<br />
Flávio Lourenço<br />
Lindo<br />
exemplo<br />
para os<br />
governantes<br />
eclesiásticos<br />
20<br />
Santo Edmundo - Igreja de São<br />
Marcial, Angoulême, França<br />
O Rei Santo Edmundo foi<br />
martirizado porque não<br />
aceitou fazer negociações<br />
de paz com os pagãos,<br />
pois isto significava a<br />
apostasia de seus súditos.<br />
Seu sangue fez com<br />
que toda a Inglaterra se<br />
cristianizasse e, até a época<br />
do protestantismo, ela foi<br />
uma nação católica que<br />
durante algum tempo se<br />
chamou Ilha dos Santos.
C<br />
omentaremos uma síntese<br />
biográfica sobre Santo Edmundo,<br />
extraída do livro Os<br />
Santos Militares, do General Silveira<br />
de Mello 1 .<br />
Enfrentando o inimigo<br />
por excelência<br />
Edmundo, que fora muito bem<br />
educado na Religião Católica, tornou-<br />
-se modelo de cristão para seu povo.<br />
Justo e bom, era homem de invulgar<br />
energia. Percebeu cedo o perigo que<br />
representavam os escandinavos para<br />
seu país e preparou-se militarmente,<br />
assim como dispôs seu povo para uma<br />
possível guerra.<br />
Os escandinavos eram, naquele<br />
tempo, o grande perigo dos povos civilizados.<br />
Hoje tão pacíficos, entretanto<br />
foram no passado os tiranos<br />
dos mares. Eles ocupavam a Escandinávia<br />
e deitavam aquelas migrações<br />
pelos mares, que iam descendo<br />
pelos vários lugares da Europa e que<br />
representavam, digamos, a última leva<br />
das invasões bárbaras no continente<br />
europeu.<br />
Para se ter uma certa ideia de qual<br />
era o espírito deles, alguns usavam<br />
o título de reis do mar, porque eram<br />
monarcas de povos que viviam em<br />
barcos – juntamente com as mulheres,<br />
os filhos e tudo o mais – fazendo<br />
pirataria de um lado e de outro. Aliás,<br />
eram barcos com umas proas lindas,<br />
de uma audácia e arrogância de<br />
que a Suécia e Dinamarca perderam<br />
completamente o segredo. Com a<br />
queda das proas caiu tudo. Fala-se de<br />
figuras de proa; poder-se-ia dizer que<br />
cada povo tem a proa que merece.<br />
De maneira que preparar o seu<br />
povo contra a invasão desses inimigos<br />
significava enfrentar o inimigo<br />
por excelência.<br />
Não se enganou em suas previsões.<br />
De fato, os dinamarqueses atacaram<br />
o reino inglês. No primeiro combate<br />
foram duramente rechaçados, mas,<br />
unindo esforços num grande número,<br />
venceram a Santo Edmundo e o aprisionaram<br />
em Hoxne.<br />
Ele venceu uma primeira leva de<br />
inimigos que atacou o seu reino. Mas<br />
eles concentraram-se e naturalmente<br />
o esmagaram, pelo grande número<br />
que tinham desembarcado em vários<br />
pontos da Inglaterra.<br />
Nexo entre os assuntos<br />
políticos e os religiosos<br />
O chefe dos adversários fez várias<br />
propostas de paz ao santo rei, que as<br />
recusou por serem contra a Religião<br />
Católica e os direitos de seus súditos.<br />
Foi duramente supliciado e, por fim,<br />
decapitado. Foi martirizado a 20 de<br />
novembro de 870.<br />
Um Concílio nacional reunido em<br />
Oxford, em 1122, tornou obrigatória a<br />
festa do mártir. Suas relíquias, inclusive<br />
um saltério que usava diariamente,<br />
foram veneradas na Abadia de Cluny<br />
até o surto da heresia protestante.<br />
Preso e levado para Hoxne, Santo<br />
Edmundo foi intimado a fazer negociações<br />
de paz pelas quais ele cedia<br />
seu reino aos vencedores. Ora,<br />
ele não queria fazer isso porque seria<br />
entregar seu povo aos pagãos e<br />
favorecer o restabelecimento da religião<br />
pagã naquele local. Ele resistiu<br />
e, então, foi morto.<br />
Vemos a alta consciência que tinha<br />
esse homem do papel de rei, de<br />
suas obrigações e das relações entre<br />
os assuntos políticos e os religiosos.<br />
Ele tinha noção de que a queda<br />
dele e a implantação de uma dinastia<br />
de reis pagãos traria a paganização<br />
do Estado e dos indivíduos. Causaria,<br />
portanto, a apostasia daqueles povos,<br />
a perdição das almas. Ele compreendia<br />
muito bem o nexo entre a vida política,<br />
a forma do Estado e a forma religiosa,<br />
e por isso se manteve fiel até o<br />
fim, sendo martirizado.<br />
Michael Zeno Diemer (CC3.0)<br />
21
Hagiografia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Por que razão queriam que ele renunciasse?<br />
Naturalmente porque Santo Edmundo<br />
continuava a ter prestígio, senão<br />
a sua renúncia não adiantava de<br />
nada. É porque era difícil consolidar a<br />
conquista, enquanto não houvesse uma<br />
prova de que ele tinha renunciado.<br />
Talvez os inimigos quisessem até levá-lo<br />
a seu próprio reino para declarar<br />
aos seus súditos que ele tinha renunciado.<br />
Santo Edmundo entendeu isso e<br />
não quis renunciar, provavelmente na<br />
esperança de que seus súditos organizassem<br />
uma espécie de revolução, de<br />
guerrilha contra o ocupante para salvar<br />
a Fé. E ele regou com seu sangue essa<br />
esperança de uma restauração católica.<br />
Devemos ser fiéis até a<br />
morte à nossa vocação<br />
Que lindo exemplo para os governantes<br />
eclesiásticos! Sem dúvida, o<br />
sangue desse rei valeu porque, de fato,<br />
a Inglaterra acabou se cristianizando<br />
inteira e, até a época do protestantismo,<br />
ela foi uma nação católica<br />
que durante algum tempo se<br />
chamou Ilha dos Santos, tal foi o número<br />
de bem-aventurados que nesse<br />
país floresceram.<br />
Devemos pedir a Nossa Senhora<br />
que nos dê muitos homens de Estado<br />
e muitos homens de Igreja que tenham<br />
esse espírito. Porque enquanto<br />
os povos católicos, no campo temporal<br />
e, sobretudo, no espiritual, não são governados<br />
por homens dispostos a derramar<br />
seu sangue pela Santa Igreja,<br />
eles não são dirigidos por quem preste.<br />
Só governa bem quem está disposto<br />
a levar a fidelidade a seus princípios<br />
e a seu cargo até o martírio; do contrário<br />
não vale de nada.<br />
Assim como um militar que não<br />
está disposto a morrer é igual a zero,<br />
um bispo, um príncipe, um rei, um<br />
alto governante que não esteja decidido<br />
a morrer para o cumprimento<br />
de seu dever é igual a absolutamente<br />
zero. Os altos cargos exigem a alta<br />
coragem. São os cargos pequenos<br />
que podem se acomodar com o valor<br />
moral normal. Os grandes cargos requerem<br />
o grande espírito de dedicação,<br />
o grande sacrifício.<br />
Entretanto, será um cargo o que<br />
Deus concede de mais alto a um homem?<br />
O que vale mais: um cargo ou<br />
uma vocação? Não há situações em<br />
que uma vocação vale mais do que<br />
um cargo?<br />
Nós temos mais do que um alto<br />
cargo, possuímos uma alta vocação.<br />
Pensemos no exemplo desse rei<br />
para termos sempre a deliberação de<br />
sermos fiéis até a morte à nossa vocação.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
20/11/1970)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1970<br />
1) Não dispomos dos dados bibliográficos<br />
desta obra.<br />
22
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Leandro W.<br />
Cochem às margens do<br />
Rio Mosel, Alemanha<br />
Como se forma o<br />
costume - II<br />
O modo de ser de um povo está relacionado com o<br />
cenário da natureza em que ele vive. A graça divina<br />
conserva tudo aquilo que um povo possui de bom,<br />
eleva-o e orienta-o para se tornar cada vez melhor; sua<br />
força geradora de costumes é incomparável.<br />
V<br />
amos pegar o costume no<br />
seu nascedouro: suponham<br />
que houvesse, de repente,<br />
um deslocamento qualquer da Terra<br />
e o clima alemão passasse a ser sensivelmente<br />
diferente. Por exemplo, dado<br />
a quente, um clima mediterrâneo.<br />
O costume ou é regional<br />
ou não existe<br />
Como o povo todo está muito unido<br />
numa mesma mentalidade, cons-<br />
titui neste sentido uma família de almas,<br />
a mudança de clima haveria de<br />
atingir a vida particular dos indivíduos,<br />
mais ou menos do mesmo modo,<br />
mas as reações dos indivíduos a essa<br />
alteração que tivesse se passado seriam<br />
idênticas ou afins, por causa da<br />
grande conaturalidade de uns com<br />
os outros. E seria uma reação, tomada<br />
em nível individual e familiar, que<br />
atenderia todas as percepções da vida<br />
individual e familiar nessa nova<br />
situação.<br />
Se fosse um povo razoável, não<br />
trabalhado pela verminose de mil<br />
preguiças nem pelas descargas nervosas<br />
de mil torcidas, mas de um fluxo<br />
vital normal, sentiria os problemas<br />
e iria ajeitando aos poucos, em<br />
parte se adaptando, em parte adaptando<br />
as coisas a si, e levaria uns vinte<br />
ou trinta anos até se conformar à<br />
situação nova.<br />
Nesse povo, cada indivíduo se<br />
adapta com um conhecimento meticuloso<br />
e profundo da sua situação<br />
23
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Mirabella (CC3.0)<br />
pessoal e de sua família. E isto feito<br />
numa região inteira, com os recursos<br />
que eles vão utilizando para fazer<br />
face àquilo, e surge uma solução<br />
que nenhum instituto oficial poderia<br />
encontrar, nem professor universitário<br />
seria capaz de fazer daquele jeito.<br />
Pela colaboração de milhares de<br />
pessoas, instintivamente, para resolver<br />
uma determinada dificuldade,<br />
auscultando cada um a si e também<br />
os outros, ninguém querendo romper<br />
para uma solução genial individual,<br />
mas compreendendo que deve<br />
estar no ritmo de uma solução coletiva;<br />
então, o povo vai adaptando,<br />
adaptando, adaptando a ponto de<br />
dar uma obra-prima.<br />
Serve de exemplo para isso um<br />
queijo famoso da Córsega, para cuja<br />
composição são utilizadas duzentas ou<br />
trezentas ervas. Como chegaram a conhecer<br />
essas ervas e obtiveram um tipo<br />
perfeito de queijo? Evidentemente,<br />
diante de uma natureza pobre,<br />
com aquelas montanhas, às apalpadelas,<br />
uma região inteira foi à procura<br />
de uma fórmula. E houve bastante<br />
nobreza de espírito para que cada um,<br />
Rochedos da Ilha da Córsega<br />
inventando uma coisa nova, os outros<br />
soubessem que era melhor ou não, e<br />
fizessem uma seleção. E disto nascesse<br />
um costume a respeito de queijo.<br />
Mas isso que se dá com o queijo,<br />
ocorre com o traje, a construção, o<br />
cântico, os sistemas de educação regionais;<br />
tudo isso nasceu do costume<br />
assim. Trata-se de uma obra-prima<br />
que nenhum gênio humano é capaz<br />
de fazer.<br />
Eles não têm gênios aos borbotões;<br />
seria uma hipertrofia e uma desgraça<br />
para a nação. Eles possuem pessoas<br />
de um bom quilate individual, inteligentes,<br />
as quais esperneiam, sabem<br />
se meter, que é uma coisa<br />
prodigiosa. É um grande<br />
povo tecendo ao longo dos<br />
tempos seus costumes.<br />
O costume não deve<br />
ser, portanto, visto em escala<br />
de nação, e sim de região.<br />
O costume ou é regional<br />
ou não existe.<br />
Se não tivesse nascido a Civilização<br />
Cristã, nós não teríamos<br />
isso, que é do homem cristianizado.<br />
Flávio Lourenço<br />
O cenário da<br />
natureza condiz com o<br />
temperamento do povo<br />
Por outro lado, o cenário da natureza<br />
condiz com o temperamento do<br />
povo e, ao falar do costume, precisamos<br />
considerar esse cenário. O pinheiro,<br />
o Tannenbaum, vai<br />
bem com o prussia-<br />
24<br />
Trajes asturianos
no, e o castanheiro, o marronier, com<br />
o francês. Aquelas montanhas da Espanha<br />
se ajustam com o temperamento<br />
espanhol. Tem-se a impressão<br />
de que andou por ali um gigante<br />
furioso, caprichoso e individualista,<br />
o qual distribuiu taponas e pontapés<br />
naquelas montanhas, onde o espanhol<br />
sente-se em casa. É preciso<br />
ter a grandeza do espanhol para se<br />
compreender onde ele está. Já a doçura<br />
portuguesa é outra coisa.<br />
Então, eu queria fixar bem o princípio:<br />
O nascimento do costume vem<br />
da existência de um pulsar e de um<br />
viver sincrônico, de um unum com<br />
notas biológicas, condicionadas pelo<br />
ambiente, pela paisagem e pela história<br />
daquele povo. E esse unum faz<br />
com que, diante de situações novas,<br />
de interesses socioeconômicos e culturais,<br />
todos se adaptem de um determinado<br />
modo. Mas essas adaptações,<br />
por qualquer coisa de instintivo,<br />
de simultâneo e, neste sentido,<br />
de coletivo, representam a soma das<br />
observações ultrapormenorizadas<br />
que um povo de uma região faz das<br />
suas próprias condições, e da sabedoria<br />
com que ele vai procurando as<br />
acomodações. E isso faz o nascimento<br />
sincrônico do costume.<br />
Qual a relação entre costume e<br />
Religião dentro disso? É que isso supõe<br />
as virtudes cardeais de um povo<br />
bastante vivas. Daí essa possibilidade<br />
de encaixe, de formação desse tipo<br />
de nação; e também de subir da<br />
esfera privada uma evaporação magnífica,<br />
que é o conjunto consuetudinário,<br />
o qual vem a ser mais inteligente<br />
do que qualquer gênio.<br />
A questão das formas de governo<br />
se estuda muito melhor em função<br />
da região do que desse ente vazio de<br />
regiões, que é o Estado, no qual se<br />
costuma pensar quando se considera<br />
em termos comuns o problema. Portanto,<br />
para compreendermos bem as<br />
formas de governo, quando cabem,<br />
quando não, seria preciso pensar em<br />
regiões, pois enquanto não houver<br />
regiões definidas não haverá condições<br />
para assentar nenhuma forma<br />
coletiva de vida verdadeira, e nenhum<br />
Estado digno desse nome. Este<br />
será como construções artificiais<br />
em cimento armado, mas não edificações<br />
fortes de pedras naturais.<br />
Daí, aliás, a sabedoria alemã dos<br />
pequenos Estados confederados que<br />
dão uma estrutura mais alta, um Sacro<br />
Império, com elites de toda ordem.<br />
Interação entre os<br />
princípios e o costume<br />
Entretanto, nunca chegaremos a<br />
entender bem o assunto se não compreendermos<br />
que a virtude antecede,<br />
de certo modo, o conceito, o<br />
princípio. Quer dizer, um princípio<br />
muito elementar está na base da virtude.<br />
Por exemplo, a fidelidade conjugal<br />
é uma virtude. Ela tem na sua<br />
base um princípio muito elementar<br />
ou evidente. Mas logo depois de<br />
concebido, de conhecido esse princípio,<br />
e antes mesmo de ele acabar de<br />
se explicitar inteiramente, num povo<br />
virtuoso ele está gerando costumes.<br />
Ele produz uma grande apetência, a<br />
qual começa a gerar costumes.<br />
À medida que o povo de uma região<br />
vai crescendo – vamos sempre<br />
pensar em regiões –, o princípio vai<br />
se explicitando e gerando novas aplicações<br />
do princípio. E há uma interação<br />
princípio-costume, costume-<br />
-princípio que é diferente de tomar<br />
um aluno, metê-lo numa sala de aula<br />
universitária, e o professor escrever<br />
no quadro negro a teoria e depois<br />
dizer: “A partir disso, comecem<br />
a executar.” Não dá verdadeira frutificação.<br />
Flávio Lourenço<br />
Pirineus, Espanha<br />
25
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
O indivíduo deve estar num ambiente<br />
onde, antes de receber a aula,<br />
os elementos primeiros do que<br />
lhe foi ensinado ele já possuía, e com<br />
vida. Então há um intercâmbio entre<br />
o intelectual e a vida; o intelectual<br />
traça um princípio, tira uma dedução,<br />
mas a sociedade inteira já está<br />
tendendo a deduzir isso também.<br />
O intelectual não vive sentado numa<br />
mesa e ali lê a realidade, mas ele é<br />
levado a pensar acompanhando essa<br />
produção da região e teorizando<br />
aquilo que a região anda fazendo.<br />
Do que me adianta imaginar um<br />
homem na Provence, região do Sul<br />
da França, sentado junto a uma escrivaninha<br />
e teorizando, mas inteiramente<br />
alheio à sua região? Ele pode<br />
receber prêmios internacionais, o<br />
curso das coisas da região dele não<br />
foi para a frente. Se ele tivesse sua<br />
vida intelectual entrosada com os<br />
problemas da região, quer dizer, se<br />
sua intelectualidade fosse tal que estivesse<br />
viva, agarrada nos problemas<br />
da região, seria um intelectual perfeito.<br />
Do mesmo modo, ai da região<br />
que não tenha vocações sacerdotais!<br />
Ela está fadada a morrer, porque o<br />
clero de uma região é levado a fazer<br />
esta simbiose entre a Religião e a<br />
sua prática nas condições da região.<br />
E com um clero regional. Porque –<br />
falando do Brasil – se numa igreja o<br />
pároco é um padre holandês, em outra<br />
um iugoslavo, mais adiante um<br />
nacional que é pároco em Curitiba,<br />
nascido no Amazonas, não vai.<br />
Quer dizer, nós devemos ser gratos<br />
aos padres de fora que vêm aqui<br />
substituir a lacuna numérica de nosso<br />
clero, seria uma desgraça se não<br />
viessem, mas a solução perfeita – aliás<br />
a Igreja exigiu sempre isso – é a<br />
vocação sacerdotal do lugar, do país.<br />
Mas eu iria um pouco mais longe,<br />
de preferência da região. Isto seria a<br />
coisa perfeita, porque aí a prática da<br />
Religião iria sendo inserida no costume<br />
local.<br />
Ilustrações: Léon-Xavier Girod (CC3.0)<br />
Construções na Indochina,<br />
gravuras do século XIX<br />
A graça conserva o que<br />
um povo tem de bom,<br />
eleva-o e orienta-o<br />
Dois rapazes de nosso Movimento<br />
resolveram fazer uma peregrinação<br />
penitencial. Escolheram um lindo<br />
trajeto, de Roncesvalles, que foi<br />
onde Roland morreu, a Santiago de<br />
Compostela. Foram procurar o abade<br />
e pediram-lhe uma bênção. O<br />
abade, que certamente deve ser da<br />
região, disse: “Isso assim não basta.<br />
Vamos fazer uma coisa séria e inteira.<br />
Vocês vão pôr o traje de peregrinos<br />
como era utilizado na Idade Média.”<br />
Inclusive arranjou para eles os<br />
chapelões, o bastão e as conchas que<br />
caracterizavam os peregrinos medievais.<br />
E começaram a andar a pé. Ao<br />
longo do caminho foi uma ovação!<br />
Gente que parava, tirava fotografia,<br />
queria saber o que era, ajudava, uma<br />
festa! Era a ressurreição de um costume.<br />
Aquelas zonas gemem ainda<br />
por não ter mais o costume.<br />
Aliás, a graça atua dentro da natureza<br />
exatamente na linha do que<br />
estou falando, porque a graça se insere<br />
como um acidente sobrenatural,<br />
uma participação criada na vida de<br />
Deus, e ela embebe todo aquele ser,<br />
conserva, eleva e orienta para o que<br />
ele tem de melhor no seu gênero. Isso<br />
indica como a força da graça, geradora<br />
de costumes, é incomparável.<br />
São coisas lindas!<br />
Poder-se-ia perguntar: Já que a<br />
região é tão condicionante do costume,<br />
como se forma uma região?<br />
Talvez a parte da Terra onde a geografia<br />
mais favorece a formação de<br />
regiões é a Indonésia. Tem milhares<br />
de ilhas. E cada uma daquelas<br />
nações são insulares, são reinos de<br />
uma, dez, cinquenta ilhas, um arquipélago.<br />
Chegou um povo, morou só<br />
ali, todo esse desenvolvimento consuetudinário<br />
se deu nele sozinho e,<br />
portanto, sem enriquecimento de fora,<br />
mas também sem mescla. Portanto,<br />
com uma coerência absoluta com<br />
26
os elementos nativos primeiros. E a<br />
este título privilegiados, de um lado.<br />
Outro lado seria nós considerarmos<br />
povos vários obrigados a se<br />
mesclar. Eu descrevi há pouco a formação<br />
do costume. Com essa boa<br />
presença da graça entre nações católicas,<br />
compreende-se muito bem.<br />
A graça fá-los-ia se entenderem melhor,<br />
conviverem com mais compreensão,<br />
se enriquecerem mutuamente<br />
do que trariam. E viria daí uma coisa<br />
composta com uma beleza própria e<br />
magnífica!<br />
Problemas de uma<br />
beleza extraordinária<br />
Mas aí caberia uma objeção: “Está<br />
bem, mas tome, por exemplo, uma<br />
composição perfeita assim, elaborada<br />
fora do regime da graça, que,<br />
entretanto, é uma das mais bonitas<br />
existentes na História: a Indochina.<br />
A Índia e a China se encontraram<br />
na Indochina, e saiu uma coisa<br />
heterogênea hindu e chinesa, até<br />
certo ponto requinte das duas, e sobretudo<br />
uma terceira coisa, que não<br />
é uma composição mecânica, mas é<br />
algo vivo. E aquilo foi feito por um<br />
povo primitivo que não tinha a graça.<br />
Não estarei exagerando o papel<br />
da graça por pura devoção?”<br />
A resposta é simples: Encontramos<br />
nos primórdios de certos povos<br />
da humanidade a possibilidade de<br />
fazer algumas coisas, como se a graça<br />
o realizasse. Mas é porque eram<br />
povos que ainda estavam meio próximos,<br />
de um modo ou de outro, senão<br />
cronologicamente, pelo menos<br />
psicologicamente, do estado primeiro<br />
da humanidade antes de ter pecado<br />
muito. Eram povos que ainda tinham<br />
uma capacidade extraordinária<br />
de engendrar costumes e de perpetuá-los.<br />
À medida que o rio de pecado<br />
da História foi escorrendo sobre<br />
esses povos, a questão foi mudando.<br />
E eles acabaram só podendo<br />
ir até determinado ponto, paralisando-se<br />
a certa altura. E a ação da<br />
graça concedida ante prævisa merita<br />
1 , foi sendo interrompida, transviada<br />
de tal maneira que os europeus<br />
derrubaram essas culturas milenares<br />
– que não eram uma ninharia, mas<br />
coisas vivas – com uns piparotes.<br />
O que foi feito com a China, o Japão?<br />
O Japão de hoje é o do tempo<br />
dos Xoguns e do Mikado, mas transformado<br />
completamente. É um Japão<br />
americanizado completamente.<br />
Mas, por que deu nisso? Porque rios<br />
de pecado correram em cima disso.<br />
Compreende-se, assim, a formação<br />
desse caldeamento indochinês<br />
magnífico. É muito interessante<br />
aquilo! Como tem critérios, como<br />
está tudo bem composto! É a tal<br />
experiência individual que expliquei<br />
há pouco. Acho esses problemas de<br />
uma beleza extraordinária!<br />
Alguém me deu uma pinturazinha<br />
impressa sobre seda, representando<br />
uma dama típica do século<br />
XVIII. É todo um outro mundo, que<br />
não aquele de Berlim, mas tem algo<br />
que não existiu alhures. É uma simples<br />
dama, numa casa qualquer, com<br />
móveis comuns daquele lugar, uma<br />
senhora quase tomada em abstrato.<br />
Entretanto, quanta delicadeza! Ela<br />
está sentada, mantendo uma boa distância<br />
do dorso da cadeira. Lembro-<br />
-me ainda de mamãe, mais ou menos<br />
com cinquenta anos de idade, almoçando<br />
sem encostar-se no espaldar<br />
da cadeira. É uma coisa especial.<br />
Isso é um costume. Se não fosse<br />
todo esse caldeamento que descrevi,<br />
não teria saído isso. Essa pintura foi<br />
feita no século XX, e quero conservá-<br />
-la porque, além de ser muito típica, é<br />
um preito de admiração de nosso século<br />
aos tempos que se foram. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
29/8/1986)<br />
1) Expressão latina utilizada na Teologia<br />
para significar “na previsão dos méritos<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo”.<br />
27
Perspectiva pliniana da História<br />
Mistérios de uma alma<br />
e de um povo - II<br />
Flávio Lourenço<br />
A Providência permitiu que os verdadeiros católicos ficassem<br />
num aparente abandono. Quando eles tiverem sofrido com<br />
amor todas as dores que Deus lhes envia, chegará a hora em<br />
que se levantarão para dizer a este mundo todas as verdades,<br />
produzindo as mais inesperadas conversões e prostrando por<br />
terra os homens mais insolentes.<br />
Castelo de<br />
Hohenschwangau<br />
Baviera, Alemanha<br />
28
Os estudos de opinião pública<br />
indicam que todos os fenômenos<br />
que se passam na<br />
alma humana ocorrem, mutatis mutandis,<br />
nas sociedades, e não apenas<br />
numa geração, mas ao longo de várias<br />
gerações, de maneira que um ciclo<br />
de civilização faz em quinhentos<br />
anos o que se passa na alma de um<br />
homem em cinquenta ou em cinco<br />
anos. As civilizações têm grandes ascensões,<br />
grandes estabilidades, grandes<br />
harmonias porque vivem muito<br />
tempo. Em geral, quando morrem,<br />
isso acontece dentro do fracasso e da<br />
catástrofe.<br />
O Ocidente foi dizendo<br />
“não” ou “talvez”<br />
A civilização medieval pode ser<br />
comparada a um homem, e o processo<br />
acima descrito foi precisamente o<br />
que se deu na Idade Média.<br />
A Idade Média, tão bela, nobre,<br />
rutilante, Deus a amou com todo o<br />
amor, era a obra-prima d’Ele. Nem a<br />
Cristandade do tempo dos mártires<br />
tinha sido tão pulcra quanto a Idade<br />
Média em seu apogeu.<br />
Em determinado momento a Idade<br />
Média disse “não” ou “talvez”,<br />
“daqui a pouco”... E então a Providência<br />
passa a se colocar, por assim<br />
dizer, de joelhos diante dela, enviando<br />
sucessivos Santos, Ordens religiosas,<br />
Doutores, dando seguidas graças.<br />
Às vezes, esses Doutores retardavam<br />
o processo, e conseguiam até<br />
paralisá-lo, salvando muitas almas,<br />
mas não lograram absolutamente<br />
evitar que a Revolução fosse corroendo<br />
e abafando a civilização medieval,<br />
como a figueira brava circunda<br />
a árvore e a estrangula, tirando-<br />
-lhe completamente a seiva que lhe<br />
dá a vida.<br />
Compreendemos, assim, a razão<br />
pela qual parece haver um determinismo<br />
de vitória do mal, ao longo<br />
desse processo. É porque o Ocidente<br />
foi dizendo “não” ou “talvez” a todos<br />
os Santos que surgiram e, com<br />
isso, acumulando o castigo e o travo<br />
da hora última. Mais ainda – e é<br />
o mais terrível –, como o “não” não<br />
era completo e dentro da civilização<br />
do Ocidente muita gente tinha uma<br />
certa atitude de alma boa, muitos<br />
movimentos bons apareciam, a Providência<br />
retardava um pouco e permitia<br />
isso para que essa era da História<br />
da Igreja fosse, apesar de tudo,<br />
manifestando toda a sua beleza.<br />
Assim foram sucessivamente aparecendo<br />
os grandes Santos, Doutores,<br />
missionários, estabelecimentos<br />
católicos, as grandes encíclicas, os<br />
notáveis movimentos de reação, belezas<br />
estas que a Igreja foi mostrando<br />
na medida em que ela ia sofrendo<br />
e sendo prostrada, mas tirava de<br />
si energias novas para novos tormentos,<br />
até chegarem as aflições e as<br />
energias extremas.<br />
Santa Mônica e a conversão<br />
de Santo Agostinho<br />
Raciocinando agora no sentido<br />
inverso, poderíamos aplicar a uma<br />
alma o acima dito sobre uma civilização,<br />
e notar como isso é pareci-<br />
Flávio Lourenço<br />
São Bento<br />
Flávio Lourenço<br />
São Bernardo<br />
Flávio Lourenço<br />
São Domingos<br />
de Gusmão<br />
São Francisco<br />
de Assis<br />
Gabriel K.<br />
29
Perspectiva pliniana da História<br />
Gabriel K.<br />
Santa Mônica e Santo Agostinho<br />
Museu Amedeo Lia, La Spezia, Itália<br />
do com a história de Santa Mônica.<br />
À medida que Santo Agostinho<br />
se afastava dela, essa santa mãe ia<br />
se tornando mais ardente, arrebatadora<br />
no suplicar a Deus e no pedir<br />
a seu filho rebelde que se convertesse,<br />
mais irresistível em cada contato<br />
com ele, porque ela aprimorava seus<br />
dotes maternos e recursos para salvar<br />
aquela alma. Agostinho resistia<br />
e ela se julgava derrotada, não compreendendo<br />
que, enquanto ele ia se<br />
infamando, ela ia tirando de dentro<br />
de si recursos e belezas novas, e<br />
dando novas glórias a Deus; e que a<br />
aceitação dela, num ato de conformidade<br />
e resignação a cada derrota,<br />
após cada “não” dele, marcava uma<br />
nova beleza para ela. Enquanto o filho<br />
ia dizendo “não” a Deus Nosso<br />
Senhor, que era, assim, “vencido”<br />
em Agostinho, Ele ia vencendo em<br />
Santa Mônica, a ponto de ela se tornar<br />
tão vencedora que, por assim dizer,<br />
venceu o próprio Deus.<br />
É sabido que algum<br />
tempo antes<br />
de Santo Agostinho<br />
se converter,<br />
ela procurou um<br />
bispo que, vendo-a<br />
chorar pela conversão<br />
do filho, disse:<br />
“Vai-te em paz, mulher,<br />
e continua a<br />
viver assim, que não<br />
é possível que pereça<br />
o filho de tantas<br />
lágrimas.” 1 Algum<br />
tempo depois, Santo<br />
Agostinho começou<br />
seu processo de<br />
conversão. Nota-se<br />
nisso o progresso da<br />
alma dela e as sucessivas<br />
vitórias de<br />
Deus na vencida. Se<br />
considerarmos essa<br />
história como sendo<br />
a de Santo Agostinho,<br />
ele terá sido o<br />
grande vencido. Se,<br />
ao contrário, fizermos dessa história<br />
a de Santa Mônica, oh! glória. Ao cabo<br />
de mais de trinta anos de tribulações<br />
e derrotas, essas lágrimas tiveram<br />
um tal preço que alcançaram de<br />
Deus a conversão do maldito, do inconversível,<br />
o qual, convertido, tornou-se<br />
um luzeiro para a Igreja.<br />
Ela saboreou ainda na Terra a alegria<br />
da conversão do filho, e chegou<br />
a ter com ele aquele famoso colóquio<br />
numa pequena hospedaria na<br />
cidade de Óstia, perto do mar, onde<br />
estavam alojados até um navio partir<br />
para Cartago, onde tinham resolvido<br />
morar. Eles falavam, junto a uma<br />
janela, a respeito das coisas de Deus<br />
e a conversa foi tão alta que tiveram<br />
juntos um êxtase, no qual Santa Mônica<br />
tinha praticamente alcançado<br />
o fim de sua vida; pouco depois, em<br />
Óstia, ela morreu.<br />
Qual é a natureza dessas renúncias?<br />
Ela não teria sido santa se, caso<br />
Deus lhe tivesse perguntado: “Mônica,<br />
aceitas que teu filho ainda prevarique<br />
e continues a rezar por ele,<br />
sem te revoltares?”, ela não tivesse<br />
dito com estas ou outras palavras<br />
ainda mais preciosas: “Estou disposta,<br />
Senhor!”<br />
Quem sabe se na sua agonia isso<br />
não lhe foi perguntado? Era preciso<br />
chegar até lá. Nisso estava a beleza<br />
de Santa Mônica. Se ela ficou santa<br />
foi porque ou disse explicitamente<br />
ou estava disposta a isso, bem entendido,<br />
se recebesse da Providência<br />
as graças excepcionais que os grandes<br />
lances supõem.<br />
Como aconteceu a Jó,<br />
todas as desgraças se<br />
abateram sobre a Igreja<br />
Então compreendemos que se<br />
olharmos a Santa Igreja Católica na<br />
sua essência, ao longo desses tempos,<br />
temos a impressão de que ela é<br />
uma derrotada. Porém, nós podería-<br />
Flávio Lourenço<br />
30<br />
Santo Agostinho - Igreja de São<br />
Jorge, La Coruña, Espanha
Maude Rion (CC3.0)<br />
Flávio Lourenço<br />
Lago Léman, Genebra<br />
São Francisco de<br />
Sales - Igreja de Maria<br />
Auxiliadora, Vigo, Espanha<br />
desse tempo? Foi dado aos seus inimigos<br />
fazerem com ela o que o demônio<br />
fez com Jó.<br />
Narram as Sagradas Escrituras<br />
que o Criador disse ao demônio:<br />
“Reparaste no meu servo Jó? Na<br />
Terra não há outro igual; é um homem<br />
íntegro e reto, que teme a Deus<br />
e se afasta do mal” (Jó 1, 8). E o demônio<br />
retrucou que se o Onipotente<br />
permitisse que ele o atormentasse<br />
de todos os modos, veria como levaria<br />
Jó a pecar. E Deus, então, deu ao<br />
demônio licença para atormentá-lo<br />
em tudo, exceto tirar-lhe a vida (cf.<br />
Jó, 1, 9-11; 2, 3-6).<br />
Do mesmo modo, aos adversários<br />
da Igreja foi permitido tudo, exceto<br />
uma coisa: ela continua a existir,<br />
mantém-se viva. Todas as desgraças<br />
se abateram sobre ela e, ao longo<br />
das gerações, gradualmente, cada<br />
vez mais a Igreja foi afundando,<br />
e com ela também os varões apostólicos,<br />
os verdadeiros homens de<br />
Deus foram perdendo a glória, a celebridade,<br />
a honra, sempre mais perseguidos<br />
e isolados, entretanto, camos<br />
fazer uma história de tudo quanto<br />
de belo tem aparecido na Esposa<br />
de Cristo, desde Lutero até nossos<br />
dias, e chegar à conclusão sublime de<br />
que Deus foi vencedor, pois a Igreja<br />
foi manifestando cada vez mais a sua<br />
pulcritude porque o adversário foi<br />
mostrando cada vez mais a sua infâmia.<br />
Haveria de chegar um momento<br />
extremo em que, tanto a beleza da<br />
Igreja Católica como a infâmia do adversário<br />
se manifestariam na sua plenitude,<br />
dentro da desolação extrema.<br />
A partir do momento em que esses<br />
dois auges estivessem manifestados,<br />
poder-se-ia dizer que essa competição<br />
estaria encerrada, e o relógio<br />
de Deus marcaria meia-noite. Chega<br />
a hora de mandar os Anjos vingadores,<br />
porque a Esposa de Cristo tinha<br />
terminado essa fase histórica mostrando<br />
toda a sua pulcritude; e daí<br />
por diante será varrida a face da Terra,<br />
virá a grande tempestade, o grande<br />
castigo, a grande glorificação da<br />
Santa Igreja.<br />
Qual é a forma de beleza que a<br />
Igreja veio manifestando ao longo<br />
da vez mais dignos e conscientes da<br />
missão que representavam, descendo<br />
de ocaso em ocaso até nossa época.<br />
São Francisco de Sales e o<br />
calvinista Teodoro de Beza<br />
Considerem, por exemplo, o que<br />
era um bispo na Idade Média e comparem<br />
com um no tempo de São<br />
Francisco de Sales. Este representou<br />
uma das primeiras legitimidades exiladas<br />
e calcadas aos pés na quadra<br />
da Revolução. Bispo Príncipe de Genebra,<br />
cidade feita para todas as ortodoxias<br />
e purezas. É preciso ter estado<br />
lá para compreender isso: ar<br />
limpidíssimo, o Lago Léman cristalino<br />
como uma consciência tranquila,<br />
tudo é delicado, nobre, convida à<br />
virtude. Entretanto, foi instalado ali<br />
o calvinismo mais obstinado e repugnante.<br />
Deus suscita um bispo de uma doçura<br />
inefável, um favo de mel dentro<br />
da História, que chega a penetrar em<br />
Genebra, a se dobrar diante de Teo-<br />
31
Perspectiva pliniana da História<br />
doro de Beza e pedir que se converta.<br />
São Francisco de Sales era condenado<br />
à morte se entrasse em Genebra.<br />
Portanto, ele arriscou a própria vida.<br />
Teodoro de Beza contou que, em<br />
determinado momento, ao ver o bispo<br />
legítimo diante dele, palhaço ilegítimo<br />
– porque a ilegitimidade forma<br />
palhaços, quando não criminosos<br />
–, sentiu sua alma vacilar, mas depois<br />
disse “não”, e São Francisco de<br />
Sales teve que sair da cidade.<br />
Vendo ser o sorriso inútil, o Santo<br />
apela para as tropas, mas estas são<br />
derrotadas. Ele, o bispo fracassado,<br />
entretanto morre digno, sereno, tendo<br />
realizado esta atividade típica: já<br />
que os seus não quiseram beneficiar-<br />
-se de sua doçura, ele escreveu obras<br />
exalando a suavidade da Igreja e da<br />
Providência para a Cristandade inteira:<br />
Introdução à vida devota, Tratado<br />
do amor de Deus, e uma série de<br />
outras obras, transformando-se em<br />
Doutor da Igreja; Doutor desprezado,<br />
mas que nem por isso perde a face.<br />
Desce dignamente à sepultura e<br />
sobe até os Céus, sem se incomodar.<br />
Foi rejeitado, mas permaneceu fiel.<br />
Depois de São Francisco de Sales<br />
vieram vários bem-aventurados, até<br />
aparecerem, no século XIX, os grandes<br />
santos das obras de caridade materiais.<br />
Em todas as épocas os santos<br />
fizeram obras de caridade materiais,<br />
mas os do século XIX primaram nesse<br />
assunto de um modo especial, sem<br />
que tivessem com isso relaxado, no<br />
mínimo que fosse, as obras de caridade<br />
espirituais.<br />
Do fundo do vale se<br />
ergue o lírio mais puro<br />
É então Dom Bosco, por exemplo,<br />
o qual faz com que até Cavour,<br />
o homem das perseguições religiosas,<br />
ajudasse a sua obra. Contudo,<br />
Cavour não se converteu, nem a Itália<br />
revolucionária, apesar de tantos<br />
outros Santos. Só em Turim havia<br />
cinco grandes Santos, entre os<br />
quais São José Cottolengo, um homem<br />
inteligentíssimo que fundou a<br />
obra da Divina Providência. Mostra-<br />
-se ainda hoje sua cadeira de escritório<br />
onde Nossa Senhora sentava-Se<br />
para conversar com ele. Entretanto,<br />
São João Bosco foi rejeitado como<br />
tantos outros bem-aventurados. Todos<br />
eles morrem na aparência derrotados,<br />
mas na dignidade e tranquilidade.<br />
É a longa sucessão de derrotados<br />
a caminhar pela História, como<br />
uma procissão serena de triunfadores,<br />
sem empáfia, sem amor-próprio,<br />
sem gabolice, mas também sem<br />
o menor complexo de inferioridade,<br />
com os olhos postos em Deus e<br />
sabendo que quem está unido a Ele<br />
acaba por triunfar.<br />
Apesar disso, o mundo vai piorando.<br />
Parece que a Providência abandonou<br />
a Contra-Revolução.<br />
Nós não sabemos sondar até o<br />
fim os desígnios de Deus. Na realidade,<br />
Ele estava tornando possível o<br />
advento de uma época em que fosse<br />
feita a increpação última, e a bofetada<br />
derradeira pudesse soar, sonora,<br />
na face impura da Revolução desmascarada.<br />
Por outro lado, não houve nada<br />
em que a Igreja não se revelasse<br />
belíssima. Esta é a mais alta beleza<br />
que se destila desse extremo da luta.<br />
É a epopeia da fidelidade, quando<br />
a infidelidade fez devastações<br />
que nenhum espírito ousaria imaginar;<br />
diante de cuja possibilidade teológica<br />
muitos Santos gemeram, dizendo:<br />
“A misericórdia divina não<br />
permitirá.” Aquela situação tão triste,<br />
que alguns Santos julgaram que a<br />
misericórdia divina não permitiria,<br />
verificou-se. Ficará consignado para<br />
a História que, pela graça de Nossa<br />
Senhora, houve católicos que levaram<br />
a fidelidade a um tal ponto que,<br />
nessa situação, onde muitos santos<br />
pensaram ser tal o horror que a Providência<br />
não permitiria, naqueles<br />
despenhadeiros tão profundos que<br />
se pensaria não haver vida, ali houve<br />
vida, houve fidelidade, porque houve<br />
quem esperasse o auxílio de Nossa<br />
Senhora. Por isso, algo acontecerá<br />
por onde Maria Santíssima vencerá.<br />
Foi quando o filho pródigo estava<br />
comendo as bolotas dos porcos<br />
que ele se lembrou da casa paterna.<br />
Sendo possível dar à Igreja essa forma<br />
de glória que consiste no retorno<br />
da humanidade perdida, não era<br />
preciso que houvesse uma época histórica<br />
na qual alguém lhe desse essa<br />
glória? E se era necessário, bem-<br />
-aventurados os homens que nasceram<br />
para padecer essa tristeza, esse<br />
isolamento, esse desprezo e essas<br />
delongas, para habitar o fundo desse<br />
vale. Porque é do fundo do vale que<br />
haveria de se erguer o lírio mais puro,<br />
elevar o voo a águia que mais alto<br />
voasse, e de onde uma nova era histórica<br />
recomeçasse.<br />
Vozes puras e sem fraude,<br />
capazes de chacoalhar as<br />
colunas da impiedade<br />
Embora se veja que o vale não poderia<br />
ser mais fundo, pode ser que a<br />
intervenção divina demore um pouco<br />
e tenhamos ainda um estertor a dar.<br />
Nosso Senhor, depois de proferido<br />
o “Consummatum est” e tendo<br />
morrido, quando se pensava que Ele<br />
tinha dado tudo, ainda foi necessário<br />
arrancar d’Ele a última gota de Sangue<br />
misturado com água. E depois<br />
de Ele ter sofrido todas as feridas<br />
possíveis, foi preciso que Ele fosse<br />
ferido no Coração (cf. Jo 19, 30.34).<br />
Talvez julguemos que mais nada<br />
tenha de acontecer, mas há ainda<br />
uma ponta no caminho de nossas<br />
aflições para sofrer. Será um último<br />
lance, o mais terrível. Quando será?<br />
Deixando essa incógnita, Nossa Senhora<br />
nos pergunta:<br />
“Meu filho, tu aguentas a possibilidade<br />
de ser tanto tempo que te dê<br />
aflições, arrepios de demorar ainda<br />
mais? Suportas a eventualidade de<br />
ser bem mais do que imaginas?”<br />
32
Nesse momento, se dissermos<br />
com toda a alma: “Minha Mãe, eu<br />
suporto”, talvez a nossa medida esteja<br />
cheia e Deus, afinal, intervenha.<br />
A nós compete admirar toda a sabedoria<br />
que a Providência revelou<br />
nessa luta lenta, deixando-nos nesse<br />
aparente abandono. Tomando consciência<br />
de que fulgores dos mais belos,<br />
de uma suprema beleza da Santa<br />
Igreja Católica, se desprendem dos<br />
que permanecerem fiéis e se desprenderão<br />
ainda mais, quando chegar<br />
a hora desses se levantarem como<br />
increpadores para dizer a este<br />
mundo todas as verdades que ele<br />
não quer ouvir.<br />
Mas esses increpadores só terão<br />
a voz capaz de fender os morros,<br />
fazendo-os saltar como cabritos,<br />
produzindo as mais inesperadas<br />
conversões e prostrando por terra<br />
os homens mais insolentes, audaciosos<br />
e orgulhosos, quando esses fiéis<br />
tiverem bebido toda a taça de fel.<br />
Tais almas poderão increpar porque<br />
se tornaram como São Bartolomeu:<br />
verdadeiros israelitas nos quais não<br />
há fraude. Serão vozes puras e sem<br />
fraude, capazes verdadeiramente de<br />
tomar as colunas da impiedade contemporânea<br />
e chacoalhá-las.<br />
Esperemos mais um pouco, estejamos<br />
prontos a, eventualmente, esperar<br />
muito, dispostos a tudo e digamos:<br />
“Pai meu, se for possível afaste<br />
de mim este cálice. Mas faça-se a<br />
vossa vontade e não a minha” (cf. Lc<br />
22, 42).<br />
Assim, ainda que sejamos um punhado<br />
de almas, teremos vencido a<br />
Revolução, porque o ponto final será<br />
posto quando alguém disser um<br />
“sim” tão íntegro que acabe fechando<br />
os parêntesis, e finalizando a frase<br />
maldita iniciada por aquele que,<br />
em certo momento, disse “talvez” e<br />
começou a Revolução.<br />
Essa última palavra de fidelidade<br />
extrema nós somos chamados a proferi-la<br />
juntos, dizendo a Nossa Senhora<br />
como Ela respondeu ao Anjo:<br />
Ecce ancilla Domini. Fiat mihi secundum<br />
verbum tuum (Lc 1, 38). Assim<br />
nós devemos afirmar: “Minha Mãe,<br />
nós somos vossos escravos. Faça-se<br />
em nós, para a glória ou para o opróbrio,<br />
para as felicidades ou para as<br />
tormentas, segundo a vossa palavra.<br />
Longinus crava a lança em Jesus Cristo<br />
Museu da Semana Santa, Zamora, Espanha<br />
Vamos lutar até o fim contra a Revolução.<br />
Esse é o nosso objetivo”. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
24/2/1974)<br />
1) SANTO AGOSTINHO. Confissões.<br />
Livro III, c. XII.<br />
Flávio Lourenço<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Gabriel K.<br />
A música<br />
Anjos<br />
Platão imaginava que os corpos celestes eram como esferas<br />
de cristal as quais, girando umas sobre as outras, produziam<br />
uma sinfonia universal. É uma linda ideia, mas ela se torna<br />
pálida quando consideramos os Anjos, espíritos perfeitíssimos,<br />
puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente<br />
contemplando a Deus, exclamando em cânticos o seu sentir.<br />
Quando ouvimos um canto, notamos haver uma<br />
analogia entre o falar humano e esse cântico,<br />
porque cada nota posta ali é como uma inflexão<br />
da voz humana quando o homem afirma alguma coisa.<br />
O cantochão, o polifônico, a música clássica<br />
Por exemplo, ao pronunciar “afirma alguma coisa” involuntariamente<br />
dei ênfase à palavra “afirma” para indicar<br />
o caráter afirmativo do que eu queria dizer, enquanto<br />
fui muito rápido no resto da frase, porque “alguma coisa”,<br />
sendo um termo vago, pronuncia-se rapidamente,<br />
como uma pincelada apenas no pensamento. De maneira<br />
que, no pronunciar a frase, fiz o que todo mundo faz,<br />
ou seja, martelei as sílabas, modulei a voz de acordo com<br />
o que me vai no temperamento e na alma a respeito daquilo<br />
que estou dizendo.<br />
Então é um modo de proferir as frases, por onde a<br />
pronúncia como que discretamente canta o que está sen-<br />
do dito. E esse “cantar” indica o meu estado temperamental<br />
e o sabor por mim encontrado – bom ou mau,<br />
agradável ou repelente – naquilo que estou dizendo.<br />
Em geral, tanto o cantochão quanto o polifônico têm<br />
isso de próprio: cada nota é uma meditação sobre o sentido<br />
da palavra que está sendo dita, é uma tomada de<br />
posição piedosa, ora triste, ora alegre, ora afetuosa, ora<br />
adorativa, ora reparadora, ora eucarística a respeito daquilo<br />
que está sendo afirmado. Por isso é bonito acompanhar<br />
exatamente assim a música, palavra por palavra.<br />
Entretanto, podemos ver na música um outro aspecto.<br />
Se tomarmos a música clássica, por exemplo, veremos<br />
tratar-se de uma magnífica arquitetura de sons. Essas<br />
melodias podem ser comparadas, de algum modo, a<br />
um prédio com as suas massas distribuídas, suas colunas,<br />
seus corpos de edifício, seus desdobramentos, mas<br />
onde entra algo mais abstrato do que a expressão de um<br />
pensamento humano: introduz-se uma pura ideia de<br />
harmonia.<br />
34
dos<br />
no Céu<br />
Poderíamos nos perguntar qual dessas é a verdadeira<br />
concepção da música e, se ambas são verdadeiras, qual a<br />
mais alta.<br />
Diante desse problema, eu me pergunto se não haveria<br />
um estilo de música que reunisse ambas as perfeições,<br />
porque são manifestamente tão nobres e tão altas que<br />
um certo senso da unidade nos faz desconfiar de que haja<br />
a possibilidade de reunir as duas concepções numa visualização<br />
só.<br />
Porém, ainda não encontrei uma fórmula e nem sei se<br />
isso é possível. Indico apenas essa ideia para esboçar um<br />
pouco aquilo que, provavelmente, é a música dos Anjos<br />
no Céu. Que os Anjos têm uma melodia no Céu, embora<br />
não seja a música material, é positivo. Que esta melodia<br />
deve ter uma arquitetura sonora magnífica, expressão do<br />
ser deles, é fora de dúvida.<br />
Haverá no homem, com as limitações para a criatura<br />
humana, a possibilidade de uma música assim? Também<br />
não sei. Mas é uma coisa a respeito da qual se pode<br />
cogitar.<br />
Cogitações que nos incentivam<br />
a pensar no Céu<br />
Exatamente são as cogitações que valem a pena ter<br />
como entretenimento quando, por exemplo, a rotina está<br />
monótona. É um entretenimento inocente que deixa a<br />
alma leve. E um certo cultivo da leveza de alma vai bem<br />
para quebrar esses estados um tanto depressivos a que<br />
possamos estar sujeitos.<br />
Platão imaginava os corpos celestes como esferas de<br />
cristal girando umas sobre as outras eternamente, e ele<br />
tinha a ideia de que cada uma dessas esferas produzia<br />
um som, e que esses sons todos se encontravam no universo,<br />
produzindo uma música universal resultante dos<br />
movimentos dos astros.<br />
Notem quantas noções bonitas estão postas dentro dessa<br />
concepção. Esferas de cristal que giram, já é uma verdadeira<br />
beleza! O som que se desprende dessas esferas, correlato<br />
com a cor, a densidade e a rotação desses cristais, uma policromia<br />
conjugada a uma harmonia, que coisa bonita!<br />
Essa música não exprimiria o sentir humano, seria<br />
uma pura arquitetura universal, quase uma meditação filosófica<br />
sonora, mas que produz no homem um reflexo.<br />
Então se poderia imaginar um ponto de encontro que seria<br />
a expressão da reação humana diante dessa harmonia<br />
universal, e musicar isso.<br />
Cogitações como essa nos ajudam a suportar o peso<br />
da vida e nos incentivam a pensar no Céu. Como ficam<br />
estúpidas essas lindíssimas esferas de cristal quando consideramos<br />
que existem os Anjos, espíritos perfeitíssimos,<br />
puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente<br />
contemplando a Deus, vendo n’Ele belezas sempre as<br />
mesmas e sempre novas, exclamando em cânticos o seu<br />
sentir. É uma coisa maravilhosa!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 23/3/1970)<br />
35
Gabriel K.<br />
Assunção de Maria - Galeria Nacional, Ottawa, Canadá<br />
Maria fons, Maria mons, Maria pons<br />
P<br />
or estar no píncaro da Criação, a Santíssima Virgem é a intercessora necessária para os pedidos<br />
que sobem e para os favores que descem.<br />
Há uma cançãozinha muito bonita que diz: Maria fons, Maria mons, Maria pons... Parece<br />
um jogo de palavras, mas de fato Nossa Senhora é a fonte, a montanha e a ponte.<br />
Se analisarmos, encontraremos uma insinuação de píncaro até nisso, porque Ela é a montanha, a<br />
qual, por sua natureza, é um píncaro em relação a outras coisas. Também se diz d’Ela que é mons super<br />
montes positum – a montanha posta sobre todas as outras montanhas.<br />
Maria fons é outro título à maneira de píncaro, ou seja, em relação a toda a natureza seca, a fonte de<br />
onde jorra a água tem uma espécie de culminância, de importância, pois a terra não subsiste sem a água.<br />
Maria pons. Sem a ponte que une os bordos de um precipício o viandante não tem solução para seu<br />
caminho. A ponte garante sua travessia. É mais uma vez a noção de píncaro, em outro sentido.<br />
A nota de píncaro está presente em tudo quanto é d’Ela, especialmente na virginalidade e na humildade levadas<br />
ao inimaginável, em contraposição à Revolução que visa levar ao extremo o orgulho e a sensualidade.<br />
(Extraído de conferência de 12/7/1991)