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Dilatando o
Reinado de Cristo
O maravilhoso
realizado na Terra
Gabriel K.
Santa Margarida da Escócia
Basílica de São Patrício, Montreal, Canadá
N
a vida de Santa Margarida da
Escócia nota-se a existência
do maravilhoso na Idade Média.
Não do maravilhoso como uma fábula
ou lenda, mas como algo de realizável.
Para a brumosa Escócia, então terra
de missão, essa princesa vinha trazendo
sangue ilustre, toda a flor da civilização
ocidental, tornando-se uma rainha
magnífica, que deixa vários filhos
ilustres por suas virtudes, e que intercedeu
a favor do povo, deu esmolas,
realizou milagres.
Tudo isso sempre ungido pela coroa
real, além de uma ideia completa
da realeza, apresenta um mundo concreto
onde maravilhas são possíveis e o
extraordinário, o estupendo, a ordem,
mesmo a mais excelente e audaciosa,
são realizáveis na Terra.
Santas como esta de tal maneira difundiam
o bom odor de Jesus Cristo
por toda parte, que acabavam sacralizando
a própria dignidade régia
e criando uma espécie de ambiente
de feeria, de maravilhoso da civilização
medieval, do qual os vitrais são um
reflexo, apresentando os bem-aventurados
em meio a pedacinhos de vidros
dourados, cor de rubi, de esmeraldas,
com uma luz na cabeça, a coroa real
sobre uma mesa, uma santa que derrama
flores em torno de si... Tudo isso é a
imagem do próprio modo como o medieval
concebia a vida, por exemplo, de
uma Santa Margarida, Rainha da Escócia.
(Extraído de conferência de 9/6/1964)
Sumário
Ano XX - Nº 236 Novembro de 2017
Dilatando o
Reinado de Cristo
Na capa, Sagrado Coração de
Jesus, Catedral de Bolzano, Itália.
Foto: Flávio Lourenço
As matérias extraídas
de exposições verbais de Dr. Plinio
— designadas por “conferências” —
são adaptadas para a linguagem
escrita, sem revisão do autor
Dr. Plinio
Revista mensal de cultura católica, de
propriedade da Editora Retornarei Ltda.
CNPJ - 02.389.379/0001-07
INSC. - 115.227.674.110
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Carlos Augusto G. Picanço
Jorge Eduardo G. Koury
Redação e Administração:
Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27
02404-060 S. Paulo - SP
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Serviço de Atendimento
ao Assinante
editora_retornarei@yahoo.com.br
Editorial
4 Dilatando o Reinado de Cristo
Piedade pliniana
5 Para alcançar a emenda
de meus defeitos
Dona Lucilia
6 Venerável e lindo olhar
De Maria nunquam satis
8 Cantando pelos caminhos
da Judeia
Sagrado Coração de Jesus
12 Grandeza régia de
Nosso Senhor Jesus Cristo
Calendário dos Santos
18 Santos de Novembro
Hagiografia
20 Lindo exemplo para os
governantes eclesiásticos
A sociedade analisada por Dr. Plinio
23 Como se forma o costume - II
Perspectiva pliniana da História
28 Mistérios de uma alma e de um povo - II
Apóstolo do pulchrum
34 A música dos Anjos no Céu
Última página
36 Maria fons, Maria mons, Maria pons
3
Editorial
Dilatando o Reinado
de Cristo
AFé é uma virtude sobrenatural que dá ao homem a capacidade de admitir as verdades reveladas
por Jesus Cristo e Escritores Sagrados, propostas pela Santa Igreja.
Sua origem é divina não somente na Pessoa do Verbo Encarnado, o Mestre por excelência,
mas também nos Profetas e Apóstolos, que nada mais foram do que instrumentos do Espírito
Santo ao nos transmitirem as novidades doutrinárias da parte de Deus. É também divina no
seu princípio, porquanto sem a graça de Deus não é o homem capaz de crer. É finalmente divina
no seu objeto que são as verdades escondidas em Deus, a quais sua Misericórdia se digna comunicar
às criaturas.
Considerados os elementos divinos, a Fé é imutável e em dois sentidos. Primeiro, uma verdade revelada
jamais poderá ter um sentido numa época e outro sentido diverso em outra diferente. Jamais
o que foi crido pela Igreja como verdade de Fé na Idade Média deixará de o ser nos tempos que correm,
ou terá hoje um sentido diverso do sentido que se encontra na profissão de Fé dos fiéis daquela
época. Depois, o campo da Revelação está limitado, de maneira que não haverá mais novas verdades
reveladas. Tudo quanto a Divina Bondade quis manifestar ao homem, o fez até a morte do último
Apóstolo.
Embora a Fé seja sempre a mesma, não obstante pode haver dogmas novos, isto é, verdades que
se achavam implícitas na Revelação Apostólica e que a Santa Igreja explicitou, e impôs à Fé dos fiéis,
como acontece com o Dogma da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Note-se, no entanto, que
neste crescimento na Fé de que é capaz o homem e a humanidade, jamais pode vir o indivíduo a admitir
uma verdade inteiramente nova, que não se encontra de maneira implícita na Revelação Apostólica,
nem chegar à aceitação de uma atitude que contrarie aquilo que foi explicitamente estabelecido
pelo Divino Fundador da Santa Igreja.
Esta exposição nos mostra como se difunde o Reinado de Jesus Cristo não somente angariando
novos membros para a Santa Igreja, mas também intensificando nos fiéis a vida da Fé pelo conhecimento
mais profundo das verdades reveladas, e pela conformação sempre mais perfeita da vontade
com estas verdades.
Não basta o ideal vago de dilatar o Reinado de Jesus Cristo. É preciso que se conheça em que consiste
este Reinado. É pela integridade da Fé e a pureza dos costumes que impera Nosso Senhor Jesus
Cristo e se dilatam os domínios da Santa Igreja, que são os seus domínios. Neste sentido é obra
de apostolado toda atividade dedicada à conservação do Divino Depósito entregue à Santa Igreja íntegro
e sem delapidações, quer na parte doutrinária, quer na jurídica ou moral * .
* Excertos do artigo Ação Católica – problemas, realizações e ideais – Em prol da Ação Católica, publicado em O
Legionário de 12/11/1944.
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
4
Piedade pliniana
Flávio Lourenço
Nossa Senhora da Misericórdia
Catedral de Palma de Mallorca, Espanha
Para alcançar a emenda
de meus defeitos
ÓSenhora, Vós sois a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mãe de todos os homens
e, portanto, também a minha Mãe! Eu serei, talvez, o último dos filhos,
mas Vós sois a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. Se meus pecados
são um abismo, a vossa compaixão é uma montanha muito maior do que esse abismo.
Sei que minhas preces, por si mesmas, não valem nada. Mas se o coração da mãe
está sempre aberto a perdoar, amar e afagar, quanto mais o vosso, que sois a Mãe das
mães! Assim, não desprezeis essas súplicas, mas atendei-as favoravelmente, pois Vos
estou pedindo como filho. Alcançai-me a emenda de meus defeitos.
Sei, ó Mãe, que nunca deixareis de olhar com boa vontade para o filho que pede a
vossa assistência. Por isso Vos imploro com insistência: tende pena de mim e arrancai-
-me de meus pecados. Assim seja.
(Composta em 21/9/1991)
5
Dona Lucilia
Arquivo Revista
Venerável e
lindo olhar
Existem inúmeros tipos de olhares, tais como de lince, aveludados,
de madrepérola, chispantes. O olhar de Dona Lucilia era pleno
de venerabilidade, de doçura. Quando ela olhava para Dr. Plinio
no convívio diário, ele tinha a impressão de que o olhar dela o
considerava do alto, de longe; era inexprimível, mas admirável.
6
Oque é a luz de um olhar? Que
há olhares com luz é uma noção
corrente, todos nós sabemos.
Eu conheci muitos olhares com
luz; além do venerável e lindo olhar
de Dona Lucilia, apreciei também
inúmeras pessoas na hora em que a
graça visita a alma. Então, olhava e
pensava: “É claro, Nossa Senhora
neste momento está te ajudando!”
Vê-se uma certa luz. Por exemplo, a
luz da vocação se nota nos olhares.
Há um universo de olhares
O que é propriamente isso? É de
experiência corrente que o melhor
modo de ver o que se passa na alma de
alguém é olhar para os seus olhos. O
estado de alma tem seu efeito no cérebro,
no sistema nervoso, na musculatura
ocular e, ainda que involuntariamente,
os olhos vão mostrando aquilo
que a alma vai sentindo. Assim, os
estados de muito comprazimento ou
de muito entusiasmo da alma produzem
no olhar, por não sei que condutos,
uma luz que é o efeito da luz percebida
pelo espírito. E por causa disso
há diferenças de belezas de olhar.
Há olhares que são como de lince,
veem longe. Olha-se para eles e tem-
-se a impressão de que, nos últimos
confins do horizonte visual ou mental,
aqueles olhares estão pairando.
É uma forma de pulcritude.
Há outros olhares, pelo contrário,
que parecem precaver-se contra as
longas distâncias, e iluminar de um
modo ameno as proximidades, convidando
à intimidade e às grandes
elevações interiores.
Assim, quantos e quantos olhares,
de quantos e quantos jeitos! Pode-se
dizer que há um universo.
Há olhares que representam uma
peculiar forma de alma, por onde eles
são como que aveludados. Outros manifestam
um tipo de alma diferente, e
se poderia dizer que são de madrepérola.
Existem olhares que exprimem
outros estados de espírito, por onde se
poderia afirmar que são chispantes.
E assim por diante,
quase até ao infinito.
O olhar de mamãe era para
mim cheio de venerabilidade,
de doçura, de intimidade e, sobretudo,
o que me agradava mais nesse
olhar era quando ele me olhava
– naquela intimidade, tantas vezes
nos olhávamos –, e eu tinha a impressão
de que ele me considerava
do alto, de longe, uma coisa
que eu não saberia como exprimir,
mas é algo admirável!
Uma transpalavra
que conheceremos
no Céu
A vida inteira eu quis
ter um olhar. Quando li
que Nosso Senhor olhou
para São Pedro e este
se converteu, veio-me
uma vontade enorme
de um dia pôr os meus
olhos nos d’Ele, vê-
-Lo e ser visto por Ele.
E ter essa troca de olhares
por onde se percebe que cada
alma penetra na outra. Com
a ideia de que aquilo traria um florescimento,
uma elevação, e que Ele
me daria misericórdias, condescendências,
bondades… Uma coisa da
qual eu tinha um desejo enorme!
Depois me veio naturalmente a
ideia de ser fitado por Nossa Senhora.
Sobretudo quando li na “Divina
Comédia” – aliás, não li a “Divina
Comédia”, mas trechos dela – que
Dante ao chegar ao Céu – ele se representa
como sendo vivo, então não
pode ver a essência divina – olha para
Nossa Senhora, e no olhar d’Ela
ele percebe um reflexo do olhar de
Deus: aí está o ápice do Paraíso!
Ah! se Ela pudesse olhar para
mim, um momento que fosse, e dissesse
só isto: “Meu filho…”, tenho a
impressão que me desfaria; eu não
quereria outra coisa senão isso!
Na realidade, acontece que um
pouco dessa impressão nós temos às
vezes, quando entramos num lugar
onde está o Santíssimo Sacramento;
para mim, sobretudo quando o local
está vazio: uma capela, uma igreja.
Há qualquer coisa no ambiente inteiramente
diferente do que é fora.
Temos a impressão de que penetramos
num olhar o qual nos envolve,
nos assume e nos diz, quase que
por todos os sentidos, uma coisa a
qual não sabemos o que é; é uma
transpalavra que conheceremos no
Céu.
v
(Extraído de conferência de
21/11/1979)
Teodoro Reis
7
De Maria nunquam satis
Cantando pelos
caminhos da Judeia
Flávio Lourenço
Caminhando em direção ao Templo,
Nossa Senhora cantava hinos de louvor
a Deus. Dos terraços da Jerusalém
celeste, os Anjos se debruçavam para
vê-La e ouvir seus cânticos. Tudo isso é
muito bonito. Contudo, mais belo ainda
deve ter sido o momento em que Maria
Santíssima entrou no Templo.
Em 21 de novembro se comemora
a festa da Apresentação
de Nossa Senhora. No
livro do Padre Régamey, Les plus beaux
textes sur la Vierge Marie 1 , encontramos
as seguintes reflexões de São
Francisco de Sales:
Nossa Senhora cantava mil
vezes mais graciosamente
que os Anjos
É um ato de admirável simplicidade
o desta gloriosa criança que, presa
ao regaço de sua mãe, não deixa, entretanto,
de se relacionar com a Divina
Majestade. Ela se absteve de falar
até o momento apropriado e, mesmo
assim, não o fazia senão como as outras
crianças de sua idade, embora falasse
sempre com sabedoria.
Ela permaneceu como um suave
cordeiro junto a Santa Ana pelo espaço
de três anos, após os quais foi conduzida
ao Templo para aí ser ofertada
Santa Ana levando Maria Santíssima ao Templo
Museu de Belas Artes, Rouen, França
como Samuel, que também foi levado
ao Templo por sua mãe e dedicado ao
Senhor na mesma idade.
Ó meu Deus, como desejaria poder
representar vivamente a consolação e
suavidade dessa viagem, desde a casa
de Joaquim até o Templo de Jerusalém!
Que contentamento demonstrava
essa criança, vendo chegar a hora que
Ela tanto desejara!
Os que iam ao Templo para adorar
e oferecer seus presentes à Divina Majestade
cantavam ao longo da viagem.
E para isso o real profeta Davi compusera
expressamente um salmo, que
a Santa Igreja nos faz repetir todos
os dias no Ofício Divino. Ele começa
pelas palavras: “Beati immaculati
in via” – “Bem-aventurados são aqueles,
Senhor, que caminham na tua via
sem mácula” (Sl 118, 1), sem mancha
de pecado, “in via”, ou seja, na observância
dos teus Mandamentos.
Os bem-aventurados São Joaquim
e Santa Ana entoavam então esse cântico
ao logo do caminho, e nossa gloriosa
Senhora e Rainha com eles.
Ó Deus, que melodia! Como Ela entoava
mil vezes mais graciosamente que
os Anjos! Por isso ficaram eles de tal forma
admirados que, aos grupos, vinham
escutar essa celeste harmonia e, os Céus
abertos, inclinavam-se nos alpendres da
Jerusalém celeste para olhar e admirar
essa amabilíssima menina.
Eu quis vos dizer isso, embora rapidamente,
para que tenhais com que
vos entreter o resto desse dia considerando
a suavidade dessa viagem. Também
para que fiqueis comovidos ao ouvir
esse cântico divino que nossa gloriosa
Princesa entoa tão melodicamente.
E isso com os ouvidos de vossa devoção,
porque o muito feliz São Bernardo
diz que a devoção é o ouvido da alma.
Por humildade, Ela vivia
como uma criança comum
O fundamento teológico de tudo
quanto está dito aqui é a Imaculada
Conceição de Nossa Senhora.
Como a Santíssima Virgem, desde
o primeiro instante de seu ser, foi
imaculada, Ela não tinha as limitações
inerentes ao pecado original. E entre
essas limitações está o fato de a pessoa
nascer sem uso da sua inteligência.
A pessoa nasce inteligente, mas sem
o uso da sua inteligência. Esse uso só
vem mais tarde com o desenvolvimento
do corpo. Com Nossa Senhora não.
Ela teve, desde o seu primeiro instante,
o uso da sua inteligência que era,
naturalmente, altíssima.
De maneira que n’Ela se reuniam,
num contraste admirável, o que em
Nosso Senhor toma uma sublimidade
que chega a ser sublimemente desconcertante.
Reuniam-se na infância
d’Ela, como na de Nosso Senhor, aspectos
aparentemente contraditórios.
De um lado, Maria Santíssima possuía
uma contemplação superior à
dos maiores Santos da Igreja, quando
estava ainda nos primeiros passos
de sua vida. Mas, de outro lado,
Ela mantinha toda a atitude de uma
criança. E não fazia uso externo disso,
querendo, por humildade, viver
como uma criança qualquer.
De maneira tal que quem tratasse
com Ela, a não ser por alguma expressão
de olhar ou algo assim, teria
a sensação de estar tratando com
uma verdadeira criança comum, igual
às outras. É como Nosso Senhor Jesus
Cristo, em Menino, que queria
ser nutrido, guardado, pajeado como
uma criança. Embora fosse Deus, soberano
Senhor e Rei do Céu e da Terra,
em todas as suas manifestações
externas era como uma criança.
Samuel Holanda
Já imaginaram como seria, na vida
quotidiana de São José e de Nossa
Senhora, a hora em que era preciso
dar leite ou trocar de roupas a Deus?
Pegá-Lo, colocá-Lo sobre uma mesa
e vesti-Lo com uma roupinha, sabendo,
como sabiam, que ali estava a Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade,
com a natureza divina hipostaticamente
unida à natureza humana?
Portanto, naquela criancinha que sorria
estavam reunidos todos os esplendores
das alegrias, da majestade e da
grandeza da divindade! Quer dizer, o
que isso representava era de aturdir!
A meu ver, algo disso se dava também
com São Joaquim e Santa Ana.
Não sei se eles sabiam que Nossa Senhora
seria a Mãe do Verbo Encarnado.
Mas certamente pressentiam que
era uma menina designada a altíssimas
coisas com ordem ao Messias.
Então essa Menina ali presente, levava
toda a vida de uma criancinha, mas
tendo em si a contemplação magnífica
de um grande Doutor da Igreja.
Então, nós compreendemos como
se ajustam esses aspectos da benignidade
extrema, afabilidade, acessibilidade
de Nossa Senhora, com uma grandeza
da qual os maiores homens da Terra
não são senão uma minúscula figura.
Local onde se
manifestavam a glória e
as consolações de Deus
Por que isso? Porque Maria Santíssima
quis que as coisas fossem assim:
Rainha incomparável, era Ela,
ao mesmo tempo, Menina simplicíssi-
9
De Maria nunquam satis
ma; tão simples que a sua vida externa
era a de qualquer criança. O que,
aliás, Santa Teresinha, num trecho a
respeito do modo de fazer sermões
sobre Nossa Senhora, comenta muito
bem dizendo que ela gostaria de realizar
uma pregação à maneira dela,
e mostrar na Santíssima Virgem todo
esse lado de bondade, de simplicidade,
de acessibilidade, a ponto de ser
uma criancinha que os parentes punham
no colo. Possivelmente, logo
que foi capaz de servir um pouco as
pessoas, Ela as servia. Trazia água, fazia
uma pequena atenção, etc., e era a
Rainha do Céu e da Terra.
Esses contrastes harmônicos têm
uma tal beleza em si mesmos, que
até corremos o risco de desdourá-
-los tratando deles por demais longamente.
Há neles qualquer coisa de
insondável, diante do que é melhor
manter silêncio.
Ora, nessas condições e, segundo
uma tradição muito generalizada,
aos três anos de idade, Nossa Senhora
foi levada ao Templo. E no caminho
para Jerusalém, como os judeus
costumavam fazer, Ela ia cantando.
É lindíssimo!
Como sabemos, o único Templo ficava
em Jerusalém, na Judeia. Havia
sinagogas onde o povo se reunia para
rezar determinadas orações, ouvir
as leituras e comentários das Sagradas
Escrituras, mas o Templo onde se
realizavam os sacrifícios era só aquele.
E os judeus de todo o território de
Israel, como também os dispersos pelo
mundo inteiro, vinham periodicamente
a Jerusalém para participar
dos sacrifícios do Templo.
Era uma alegria ir aonde se manifestavam
a glória e as consolações de
Deus, o vínculo entre o Céu e a Terra.
Então, era bonito que eles fossem
cantando. Aliás, como tantas vezes
acontece em romarias, ao menos como
se realizavam antigamente.
É preciso dizer também que os métodos
de locomoção modernos conspiram
contra o canto. Não se pode imaginar,
num subúrbio da Central do
Brasil, um trem partindo para Aparecida
a todo “galope” e as pessoas cantando
dentro dele. Como é mais bonito
ir a pé, pousando de quando em
quando, parando, cantando, tocando
para a frente! Isso tem outra plenitude
humana, outra harmonia natural!
Podemos imaginar que beleza,
quando chegava o mês da visita ao
Templo de Jerusalém, os judeus irem
cantando e a nação judaica se encher,
nos seus caminhos, de cânticos
de todos os lados!
Então, São Francisco de Sales
conjetura a Santíssima Menina Maria
cantando com uma voz inefável,
com São Joaquim e Santa Ana, o
cântico que Davi, por inspiração do
Espírito Santo, compôs para essa circunstância.
Alegria dos Anjos quando a
Santíssima Virgem entrou
no Templo pela primeira vez
Notem como São Francisco de Sales,
com uma finura de tato extraordinária,
não se refere à impressão
que esse canto produziria nas pessoas.
Porque, precisamente como Nossa
Senhora não manifestava a sua
grandeza, era possível que Ela não
entoasse com toda a perfeição com
que sabia cantar. Ora, o cântico da
Santíssima Virgem deveria ser o cântico
por excelência! Nunca, nem antes
nem depois, ninguém cantou como
Ela, exceção feita de Nosso Senhor
Jesus Cristo. O Redentor também
cantou, e depois disso, nenhum
cântico foi cântico.
É bonito imaginar também outra
coisa: Nossa Senhora cantando e os
Anjos ouvindo as harmonias de alma
com que Ela cantava. E essas harmonias
os extasiavam.
Como se costuma comparar o
Céu à cidade de Jerusalém, São
Francisco de Sales diz que dos alpen-
J. Perez
Virgem Maria Menina - Basílica
Velha de Guadalupe, México
10
Apresentação da Santíssima Virgem no Templo
Museu de Belas Artes, Dijon, França
dres ou dos terraços da Jerusalém
celeste os Anjos se debruçavam para
ver Nossa Senhora cantando pelos
caminhos da Judeia, o que para eles
era um gáudio inexprimível, embora
os homens ignorassem aquelas harmonias
de alma.
Confesso que não conheço pensamento
mais bonito nem mais apropriado
para essa circunstância do
que esse. Contudo, mais belo ainda
deve ter sido o momento em que
Maria Santíssima entrou no Templo.
O Templo de Jerusalém na sua
grandeza, na sua majestade sacral,
ainda habitado pela glória do Padre
Eterno, onde se realizavam os sacrifícios,
o lugar mais sagrado da Terra!
Imaginem o estremecimento de
alegria de todos os Anjos que pairavam
no Templo, no momento em
que Nossa Senhora ali entrava pela
primeira vez, como uma Rainha
naquilo que lhe é próprio, como a
joia entra no escrínio onde deve ser
guardada!
Tanto mais se aos Anjos foi dado a
conhecer que a grande glória e a imensa
tragédia do Templo estavam por se
realizar. Qual era a glória? O Messias
iria entrar no Templo. Qual a tragédia?
O Templo iria recusar o Messias.
Tragédia cujo final seria aquilo
que Bossuet chama magnificamente
de “as pompas fúnebres do Filho de
Deus”, quando ele diz que, logo após
Nosso Senhor Jesus Cristo expirar, o
Padre Eterno começou a preparar os
funerais d’Ele: o céu se obscureceu, o
Sol se toldou, a terra tremeu, o véu do
Templo se rasgou. O recinto outrora
sagrado ficou entregue aos demônios
que fizeram ali uma espécie de sabá,
à maneira de cem mil gatos selvagens
soltos ali dentro.
Não obstante, o Templo conheceu
sua plenitude na célebre vinda de
Nossa Senhora e São José, quando
trouxeram o Menino Jesus, e Ana e
Simeão, que representavam a fidelidade,
receberam a Sagrada Família.
Então os fiéis reconheceram o Enviado
e se fechou o elo entre os justos
da Antiga Lei e a promessa que
se cumpria.
Pois bem, a Santíssima Virgem, entrando
no Templo de Jerusalém no
momento de sua Apresentação, realizava
o primeiro passo nessa plenitude
da história desse lugar sagrado.
O que os “Simeãos” e as “Anas”
lá existentes devem ter sentido nessa
hora, que graças, que fulgurações
do Espírito Santo devem ter havido
no Templo nessa ocasião, ninguém
poderá dizê-lo, a não ser no fim do
mundo. Mas sigamos o conselho do
suavíssimo São Francisco de Sales e
fiquemos com todas essas recordações
em nossas almas, pensemos nelas,
suave e alegremente, tanto quanto
possível: Nossa Senhora cantando
pelos caminhos, entrando no Templo
de Jerusalém e, dos alpendres da Jerusalém
celeste, os mais altos Anjos
embevecidos com a alma dessa Menina.
É uma meditação muito adequada
para o dia da Apresentação
de Nossa Senhora. v
(Extraído de conferência de
21/11/1965)
1) Do francês: Os mais belos textos sobre
a Virgem Maria. RÉGAMEY,
O.P., Pie-Raymond. Les plus beaux
textes sur la Vierge Marie. Paris: La
Colombe, Éditions du Vieux-Colombier,
1946. p. 229-230.
Flávio Lourenço
11
Sagrado Coração de Jesus
Francisco Barros
Cristo Rei - Igreja Nossa
Senhora da Consolação,
Carey, EUA
Grandeza régia de Nosso
Senhor Jesus Cristo
A grandeza régia de Nosso Senhor Jesus Cristo reluziu em mais
de um episódio de sua vida, e de um modo muito especial na
Transfiguração no Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente
toda a sua majestade como Rei e, sobretudo, como Deus. O ódio
despertado por Ele comprova sua grandeza, porque os medíocres
não suscitam ódio. Mesmo depois de morto Cristo foi odiado, o
que indica ser Ele incomparavelmente grande.
Arealeza de Nosso Senhor Jesus
Cristo Lhe vem secundariamente
por Ele descender
de Davi, e muito principalmente pelo
fato de ser Homem-Deus. Quer dizer,
o Homem-Deus, onde quer que
Se encontre, é Rei, e diante d’Ele, co-
mo diz São Paulo (cf. Fl 2, 10), se dobre
todo joelho, no Céu e na Terra!
Rei dos judeus
Contudo, o fato de ser apenas
muito secundariamente Rei da Casa
Real de Davi, não quer dizer que isso
seja indiferente, nem que se deva
excluir ou olhar com pouco caso essa
circunstância. Porque tudo quanto
diz respeito a Ele não é indiferente,
tem um grande alcance, um grande
valor. E, portanto, ainda que não
12
seja o valor máximo, supremo, merece
ser examinado a fundo.
Tudo quanto sucede se insere ou na
providência geral ou na especial com
que Deus rege todo o universo. Mas o
que diz respeito a Nosso Senhor Jesus
Cristo tudo está regulado por uma providência
especialíssima. Por causa disso
merece toda a atenção, toda a análise
a circunstância de Ele ser membro
da Casa Real de Davi. O alcance dessa
circunstância, se precisasse ainda ser
demonstrado, além de ter por base as
razões que acabo de alegar, possui também
outro motivo: o fato de a Providência
ter querido que no letreiro que
encimava a Santa Cruz estivesse escrito
“Jesus Nazareno, Rei dos judeus”; e
isso molestou os judeus, a ponto de pedirem
a Pilatos que tirasse a inscrição,
tendo ele respondido: “O que eu escrevi,
escrevi” (Jo 19, 22). É o senso dominador
dos romanos muito bem aplicado
no caso concreto: “O que eu escrevi,
escrevi, não tiro mais. E se vocês não
gostam, engulam com farinha.”
Sempre interpretei essa resposta de
Pilatos – tão bonacheirão, tão moleirão,
tão indecente no que diz respeito
ao seu dever de proclamar a inocência
de Nosso Senhor – como um agastamento
dele. Tinham-no obrigado, sob
pena de ser denunciado como inimigo
de César, a lavrar uma sentença que
julgava injusta. E quando vieram pedir-lhe
para tirar esse letreiro, ele estava
agastado e, então, disse: “Não, o
que eu fiz, fiz, está acabado! Pelo menos
agora me deixem ser homem.”
Seja como for, ficou o letreiro para
sempre imortal na Cruz imortal:
Nosso Senhor Jesus Cristo é o Rei
dos judeus. E isso supõe, então, uma
certa análise desse atributo terreno:
Rei dos judeus.
Posse de um presidente dos
Estados Unidos e coroação
da Rainha da Inglaterra
Toda realeza existente na Terra
provém, em última análise, de Deus.
Porque tudo quanto existe no universo
é criado por Ele. Dante, na Divina
Comédia, diz muito bem que
certas criaturas são filhas de Deus,
pois Ele as cria diretamente. Outras,
porém, são suas netas, por serem filhas
dos filhos d’Ele, mas produzidas
segundo seus divinos desígnios. Assim,
Deus está na origem desses seres,
entre os quais se encontram as
formas de governo.
Por outro lado, convém àqueles
que possuem o primado na Terra
e na ordem temporal representar
de modo mais excelente a majestade
de Deus. Por isso, em todos os lugares
onde o poder monárquico tenha
existido, os povos têm se aplicado
em representar de modo mais excelente
a grandeza do rei. Por exemplo,
em nossos dias os Estados Unidos
constituem a maior potência
temporal da Terra; e seu presidente
tem, sem dúvida, um poder sobre os
acontecimentos deste mundo muito
maior do que o do governo inglês e,
portanto, também da Rainha da Inglaterra,
que é a figura simbólica e
ornamental colocada no alto dessa
estrutura venerável chamada governo
inglês.
Mas a simbologia adotada pelo
povo norte-americano para exprimir
o poder do seu chefe, não se reflete
nas manifestações de esplendor que
cercam o chefe de Estado. O presidente
norte-americano deve parecer
poderoso, grande, excelso, superior
a todas as criaturas? Não. Por não se
tratar de um poder hereditário e vitalício,
que não está simbolicamente
acima de todos os poderes, como
o poder real, não se vê nele um reflexo
tão direto e límpido da
majestade divina, quanto na
forma de governo monárquica.
Esta é a razão pela
qual a posse de um
presidente norte-americano
é um espetáculo
jovial, acompanhado de
manifestações de regozijo características
de um magnata bem-sucedido
nos seus negócios. Não próprias
a um homem que está inteiramente
consciente da representação divina,
que de fato todo chefe de Estado
possui.
Notamos muito essa diferença ao
compararmos a tomada de posse de
um presidente da América do Norte
com a coroação da Rainha da Inglaterra.
Esta se dá dentro de uma cerimônia
majestosa, esplendorosa.
Formas de grandeza
próprias aos reis da Terra
Em Nosso Senhor Jesus Cristo,
enquanto Rei, deveria refulgir, portanto,
uma majestade temporal, com
todas as formas de grandeza próprias
aos reis da Terra. Antes de tudo,
uma grandeza de alma, de descortínio
de horizontes, de pontos de vista,
por onde quem está posto no píncaro
da ordem temporal desvenda
coisas muito mais amplas e matizadas
do que aquele que está colocado
Flávio Lourenço
Pilatos lava as mãos - Museu da
Semana Santa, Zamora, Espanha
13
Sagrado Coração de Jesus
em posições inferiores. A
ordem temporal constitui
uma hierarquia riquíssima.
No caso da monarquia, um
simples trabalhador manual
não é obrigado a ter, e
habitualmente não possui,
o descortínio e o horizonte
do rei, a quem as informações
mais graves, os anelos
mais ardentes das várias
populações chegam como
os ventos no alto das montanhas.
Estes não sopram
nos vales com a pureza e
largueza com que sopram
no píncaro das montanhas.
Essa largura de horizontes
traz como corolário
necessário a obrigação de
uma virtude especial. Porque
aqueles a quem a Providência
deu muito, deles
se exige uma retribuição
especial. E, portanto, uma
obrigação de ter em relação
a Deus um amor, um
nexo e uma humildade especiais.
Nessa humildade
perante Ele, poder-se-ia
dizer que a glória de Deus
G.Garitan (CC3.0)
Henrique II toca os escrofulosos após sua
coroação - Biblioteca Nacional, Paris, França
baixa sobre eles e neles refulge.
Uma das manifestações mais tocantes
disso é o fato que encerrava as festas
da coroação de um Rei da França,
no Ancien Régime. Na famosa e histórica
Catedral de Reims, terminada a
cerimônia, do lado de fora alinhava-
-se uma série interminável de doentes
que padeciam de escrófula. Segundo
uma tradição, o monarca recém-coroado
tinha o poder, dado por Deus,
de curar os escrofulosos. Então, quando
havia a coroação de um rei, os escrofulosos
da França inteira – e quero
crer que também de outros países da
Europa – acorriam para serem curados.
O monarca, em traje de coroação,
saía para a praça pública onde estava
essa gente colocada em leitos, em cadeiras,
enfim, como era possível, e tocando
um a um – na coroação de Luís
XVI, se não me engano, chegaram a
mil e quinhentos – dizia: Le roi te touche,
Dieu te guérisse – O rei toca em ti,
que Deus te cure. Segundo uma antiga
praxe, inabalável ao longo dos séculos,
muitos saravam.
Era, portanto, o poder divino que
baixava através de um rei ungido por
Deus e cognominado, na terminologia
da Cristandade, Rex Christianissimus
– o Rei Cristianíssimo – que era
o Rei da França, intitulado “Sua Majestade
Cristianíssima”, assim como
o Rei da Espanha era “Sua Majestade
Católica”, e o de Portugal “Sua
Majestade Fidelíssima”; o Rei da Inglaterra,
antes da heresia abjeta de
Henrique VIII, intitulava-se Defensor
Fidei – “Defensor da Fé”.
A unção recebida na coroação era
verdadeiramente um sacramental,
segundo a Teologia, e o
ungido do Senhor tocava e
sarava, manifestando o nexo
entre Deus e ele.
Essas são as qualidades
espirituais às quais, normalmente,
deveria corresponder
uma aparência física.
O rei não tem obrigação
de ser bonito. Ninguém escolhe
o próprio rosto. Mas,
de qualquer forma, convinha
que o rei tivesse, em
grau eminente, a pulcritude.
Por causa da sua condição,
convém ao monarca
uma indumentária, trajes à
altura daquilo que ele deve
refletir. Isso enquanto à sua
pessoa. Também seu modo
de reinar deve ser esplêndido
como tudo quanto nele
há. Eis o que caracteriza
um grande rei.
Transfiguração no
Tabor e Domingo
de Ramos
Como ver todas essas
qualidades em Nosso Senhor
Jesus Cristo, que não andou pela
Terra como Rei? Mesmo no Domingo
de Ramos, quando Ele foi objeto de
uma grande homenagem da parte do
povo de Jerusalém, era aclamado como
Filho de Davi, mas não houve nenhum
atentado para tirar Herodes do
cargo, nem algo semelhante. Ele foi
aclamado como homem que tinha, entre
suas glórias, a de descender de Davi.
Um homem eminente, um santo,
mas não era por isso que estavam restaurando-O
politicamente na realeza.
Pelo contrário, era filho de um príncipe
pobre como São José, que exercia
a profissão de carpinteiro. Como entrar
em Nosso Senhor essa grandeza e
todos esses requisitos de Rei? Em alguma
coisa deveria ter aparecido porque,
se Ele possuía, havia de aparecer
em certo momento, pois Ele veio pa-
14
a Se manifestar por inteiro a todos os
homens.
Em mais de um episódio da vida
d’Ele, essa grandeza real reluziu.
Mas de um modo muito especial,
intencional, na Transfiguração no
Monte Tabor, onde apareceu simultaneamente
toda a sua majestade como
Rei e, sobretudo, como Deus.
Eu falei dos trajes reais. Quando
Jesus Se transfigurou, sua veste era
alva como a neve (cf. Mt 17, 2). A
respeito dos lírios do campo, Ele disse
que ninguém era capaz de se vestir
como um deles (cf. Mt 6, 28-29).
Ora, a túnica em que Ele estava envolto
deveria ter sido elaborada por
Nossa Senhora; nunca houve tecido
igual. Imaginem como estava ela, refulgindo
como a neve!
Ele estava tão esplendoroso, mostrando-Se
na sua verdadeira glória e
deixando-a transparecer aos Apóstolos
por Ele convocados para o alto
do monte, que eles ficaram não
só maravilhados, mas não queriam ir
embora. São Pedro propõe ficar ali
em cima, arranjarem tendas e não
sair mais (cf. Mt 17, 4).
Em toda a História não se viu
um rei que fosse objeto dessa aclamação:
“Vamos ficar aqui juntos de
vós, não precisamos mais do resto
do mundo, ficaremos olhando para
vós!” Pelo contrário, o rei é muito
admirável, mas as pessoas gostariam
de lhe dizer: “Senhor, dai-me cargo,
dinheiro, honra... Desejo vos servir,
mas quero que também vós me sirvais.
Nada de ficar aqui parado só
para vos olhar. Quero ser fiel, sede
fiel vós também. Aliás, antes mesmo
de vos ter prestado serviço, já tenho
a lista dos benefícios que quero
de vós. E quando os receber, mostrarei
ao povo, nas ruas da capital, para
ser apreciado e admirado eu também.
Isso de viver só para vos admirar
não basta…” Esta é a história de
todas as monarquias terrenas.
Com Nosso Senhor não. Ele apareceu
em sua majestade. Reação:
“Fiquemos aqui, não precisamos de
mais nada!”
Além da esplendorosa manifestação
de sua realeza no Tabor, Ele
teve também a do Domingo de Ramos
à qual aludi há pouco. Embora
não tenha sido saudado como Rei,
é evidente que aquele povo aclamava
n’Ele uma majestade pessoal, presente
n’Ele, que se exprime na Ladainha
do Sagrado Coração de Jesus
com esta invocação magnífica: Cor
Iesu, maiestatis infinitæ, miserere nobis
– Coração de Jesus, de majestade
infinita, tende compaixão de nós.
Majestade de Nosso Senhor
na morte, na Ressurreição...
O que quer dizer coração aqui? O
culto incide sobre o Coração de carne
d’Ele, símbolo da alma, do espírito,
da mentalidade, dos desejos, dos
propósitos, os quais eram de uma majestade
infinita. O que isso significa?
Tudo quanto Nosso Senhor Jesus
Cristo queria era de uma grande-
za ilimitada; o que Ele inteligia possuía
um descortínio sem fim; nos desígnios
d’Ele, a bondade era de uma
majestade infinita, como também
sua justiça. Ele deixou claro que a
manifestação dessa justiça, de uma
majestade infinita, estaria reservada
para depois. E foi guardada para sua
morte e o dia em que vier julgar os
vivos e os mortos no fim do mundo,
quando Ele virá na majestade de Rei
e de Deus, acumuladas.
A majestade da morte do Divino
Redentor! Ele morreu sob o desprezo
geral, compensado pela adoração
indizivelmente preciosa de Nossa
Senhora e, num grau respeitável,
mas enormemente menor – porque
tudo quanto existe, exceto Nosso Senhor,
é incomparavelmente menor
do que Maria Santíssima – pela adoração
de São João, das santas mulheres,
do bom ladrão. Iniciam-se, então,
o que Bossuet – o grande Bispo
de Meaux, na França, e pregador sacro
dos mais eminentes – chama de
“os funerais do Filho de Deus”.
Entrada de Nosso Senhor em Jerusalém no Domingo de Ramos
Igreja de Nossa Senhora da Purificação, Almendralejo, Espanha
Flávio Lourenço
15
Sagrado Coração de Jesus
Que rei teve ou terá semelhantes
funerais? A terra treme, o Sol se
obscurece, o véu do Templo se rasga.
Com o tremor da terra, as sepulturas
dos justos do Antigo Testamento
se abrem e eles saem pelas ruas
(cf. Mt 27, 52), exprobrando a todos
os homens maus o pecado de deicídio
que tinham cometido, pois era o pecado
da nação inteira. Quando o povo
disse: “Que o sangue d’Ele caia sobre
nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,
25), o pecado da nação foi cometido.
Então, a acusação desses pecadores
se faz com essa majestade suprema.
Porém, a majestade de Jesus, Nosso
Senhor, se mostra também quando
Ele, ressurreto, aparece a Maria
Santíssima. Tenho como certo, embora
não esteja dito na Sagrada Escritura,
que ao ressuscitar, antes de
Se manifestar a qualquer outra criatura,
Ele apareceu a Ela.
Nosso Senhor rompeu a sepultura,
os Anjos atiraram ao chão a pedra
funerária e Ele saiu (cf. Mt 28, 1-3),
e todas as cicatrizes da Paixão refulgiam
como sóis! Depois, todas as aparições
d’Ele se revestiram
dessa nota de majestade.
Por exemplo, Ele entra
no local em que se encontravam
reunidos os discípulos,
ninguém sabe por
onde (cf. Jo 20, 19). Estava
com seu Corpo glorioso,
as portas e janelas fechadas
não adiantavam
de nada, Ele as atravessava.
Que majestade entrar
através de um muro que
ninguém derrubou! Muitos
reis na História derrubaram
muralhas... Transpô-las
sem as ter derrubado,
só o Rei Jesus Cristo!
Ele aparece tão bondoso,
tão amoroso, mas
incute tanto medo que as
palavras d’Ele às santas
mulheres são: “Não temais!”
(Mt 28, 10).
Samuel Holanda
...e na Ascensão
É indescritível o que deve ter aparecido
de grandeza d’Ele na Ascensão!
Enquanto falava, ia Se elevando
lentamente. À medida que Se aproximava
do céu, não levado por Anjos,
mas por sua própria força, ia ficando
mais reluzente, mais majestoso!
Em certo momento, desaparece.
Pode-se imaginar a alegria de Maria
Santíssima por ver glorificado o
Filho que Ela vira tão humilhado!
Mas, de outro lado, o que estava se
passando n’Ela, de tristeza por causa
da separação...
Havia, entretanto, uma consolação.
Tenho a impressão muito forte
e vincada de que Deus não recusou
a Nossa Senhora a graça concedida
por Ele a numerosos Santos:
amaram tanto o Santíssimo Sacramento
que, a partir de determinado
momento de suas vidas, nunca mais
a Sagrada Eucaristia deixou de estar
presente neles. Comungavam, e as
Sagradas Espécies ficavam no Santo
até que ele comungasse novamente.
Foi o caso, por exemplo, de Santo
Ascensão de Jesus - Igreja do Sagrado
Coração de Jesus, Santander, Espanha
Antônio Maria Claret, fundador dos
padres do Coração de Maria, no século
XIX. Ele veio a ser, assim, um
tabernáculo vivo de Nosso Senhor.
Tendo Nossa Senhora sido, no período
de gestação, o Tabernáculo vivo
do Salvador, será que Ele indo para
o Céu não manteve n’Ela esta condição?
Pelo menos a partir da primeira
Missa, creio que jamais Nosso Senhor
deixou de estar presente em sua Mãe
virginal. Após a Ascensão, certamente
Ela pensava: “Ele está no Céu, mas
também aqui!” Os Apóstolos, por sua
vez, com certeza cogitavam em celebrar
já no dia seguinte e recebê-Lo,
por tempo maior ou menor, em seus
corações. A presença eucarística começava,
assim, a consolar a Igreja
dessa longa separação de muitos mil
anos, que cessará quando Ele vier no
dia do Juízo Final.
Grandeza até nas
piores humilhações
Pode-se imaginar grandeza régia
comparável a essa? Pois bem, há mais.
Que Nosso Senhor fosse
adorado no seu esplendor,
está explicado. Mas
não é só isso. Os inimigos
d’Ele, querendo achincalhá-Lo,
sujeitaram-No às
humilhações da Paixão.
De ponta a ponta, Ele bebeu
inteira a taça de todas
as dores e vexações possíveis.
Os algozes não supunham
que ao longo dos séculos
começaria uma adoração
de cada humilhação
sofrida por Ele, e que
diante de imagens representando-O
sentado com a
coroa de espinhos, o manto
de irrisão e a vara de
cretino na mão, os maiores
sábios se ajoelhariam
e chorariam de emoção.
Os reis mais poderosos tomariam
por elogio exage-
16
ado serem comparados,
de longe, a esse Rei sentado
naquele trono dos bobos.
Aquele Homem dignificaria
de tal maneira a
Cruz na qual fora cravado
que, no alto de todas
as coroas das nações católicas,
a cruz seria o sinal
da glória.
Quer dizer, ninguém
foi, nem de longe, tão
grande quanto Ele, considerado
não só nas horas
de glória, mas nas de
pior humilhação. Aliás,
mesmo nessas horas, Ele
deu sinais de poder incríveis
como, por exemplo,
ao bom ladrão, a quem
o Divino Crucificado canonizou
no alto do Calvário,
com esta promessa
pronunciada por quem é
Rei do Céu e da Terra:
“Hoje estarás comigo no
Paraíso” (Lc 23, 43). Notem!
A promessa não é a
seguinte: “Hoje estarás
no Paraíso.” Jesus sabia
que se não dissesse que
estaria com Ele a promessa
não seria completa, pois um
Paraíso onde não estivesse Ele não
seria Paraíso. Que realeza!
O maior ódio da História
até o fim dos séculos
Certa ocasião, um historiador
francês cético fez esse comentário:
Os historiadores costumam passar
por cima da figura de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Eu lhes pergunto quem
é o homem que tenha, ao longo da
História, conseguido que tantos outros
se pusessem de joelhos com tanta
humildade, e se considerado honrados
por terem se ajoelhado diante
de sua figura? Se depois disso ele
não é digno de entrar na História, o
que faz a História?
A Coroação de espinhos - Igreja de Santa María
La Blanca - Villalcazar de Sirga, Espanha
Esses compêndios de História
usados nos colégios, mesmo em universidades,
tratam de toda espécie
de coisas, d’Ele não falam. Ora, Nosso
Senhor é o centro da História. E
se Ele não foi grande, quem o foi?
Alguém poderia objetar: “Dr.
Plinio, levado pelo seu entusiasmo,
o senhor está ladeando o problema.
Está provado que César, Carlos
Magno, Napoleão existiram, mas
quem provou que Jesus existiu?”
Ora, é a existência histórica mais
certa que há! Porque todas as razões
pelas quais nós acreditamos que César
existiu, nos levam a crer que Jesus
Cristo existiu.
Um cretino, certa vez, me perguntou:
“Onde estão os originais dos
Evangelhos?”
Flávio Lourenço
A resposta possível
era: A Causa Católica estaria
muito mal servida
se o fosse por você! Porque
se houvesse em algum
lugar uma pilha de
pergaminhos com os originais
dos quatro Evangelhos,
quem nos garantiria
serem, de fato, os
originais? Não provariam
nada! Poderiam ser
um muito bom objeto
de culto, de investigação
histórica, um documento
antigo; prova, não. Seria
preciso provar que aquelas
provas eram provas.
Agora, eu pergunto:
onde estão os originais
das Catilinárias de Cícero?
Não obstante, quem
põe em dúvida que Cícero
existiu e que é o autor
daquelas Catilinárias?
Ninguém, por uma série
de razões históricas.
Estas existem no caso de
Nosso Senhor com superabundância.
Pode ser razão de
grandeza o ódio que alguém
despertou? Sim, porque os medíocres
não despertam ódio. Para ser
odiado como Nosso Senhor o foi, até
depois de morto, há uma forma de
grandeza régia. Até nisso Ele foi e é
incomparavelmente grande. Ele será
odiado com o maior ódio da História
até o fim dos séculos. Quando o Anticristo
vier, será uma espécie de personificação
do ódio contra Ele. Também
a vitória d’Ele sobre o Anticristo será
alcançada de um modo que nunca
nenhum rei teve: com o sopro da boca
Ele o liquida (cf. 2Ts 2, 8). Não é nem
sequer o tato de um peteleco, é um sopro
da boca! Reduzido a pó, acabou a
História, começa o julgamento! v
(Extraído de conferência de
3/9/1986)
17
Flávio Lourenço
C
alendário
dos Santos – ––––––
5. Solenidade de Todos os Santos.
6. São Paulo, bispo e mártir (†350).
Por manter a Fé professada no Concílio
de Niceia, os arianos expulsaram-no
diversas vezes de sua sede
em Constantinopla, à qual retornava
com grande heroísmo. Por fim, o Imperador
Constâncio o exilou à Capadócia,
onde foi cruelmente estrangulado,
segundo a tradição, por insídias
dos arianos.
9. Dedicação da Basílica de Latrão.
São Teodoro, mártir (†s. III).
10. São Leão Magno, Papa e Doutor
da Igreja (†461). Combateu as heresias
do eutiquianismo e do donatismo e enfrentou
sozinho Átila, Rei dos Hunos,
que não invadiu a Cidade Eterna porque
ficou impressionado pela extraordinária
força moral do Pontífice.
11. São Martinho de Tours, bispo
(†397).
Santo Estanislau Kostka
1. São João, bispo, e São Jacob,
presbítero, mártires (†344). Por defenderem
a Fé Católica, foram encarcerados
durante o reinado de Sapor
II, na Pérsia, e consumaram seu martírio
um ano depois, mortos à espada.
2. Comemoração de todos os Fiéis
Defuntos.
3. São Martinho de Porres, religioso
(†1639). Ingressou aos 15 anos como
oblato em um convento dominicano
de Lima, no qual mais tarde professou
como irmão leigo. Exerceu habitualmente
os mais humildes serviços
com despretensão e amor de
Deus. Encarregado da enfermaria,
possuía um verdadeiro dom para tratar
os doentes, curando-os não apenas
fisicamente, mas também fazendo
bem às suas almas.
4. São Carlos Borromeu, bispo
(†1584). Foi perfeito modelo de pastor
das almas, aplicando em Milão as reformas
ordenadas pelo Concílio de Trento.
Flávio Lourenço
Aparição de São Paulo a
Santo Alberto Magno e
São Tomás de Aquino
7. Beato Francisco Palau, religioso
(†1872). Da Ordem dos Carmelitas
descalços, possuía um particular
discernimento do papel desempenhado
pelo demônio no mundo, e esforçou-se
para que a Igreja ampliasse o
uso do exorcismo como arma espiritual
adequada às necessidades dos fiéis.
8. Cinco Santos Escultores, mártires
(†306). Foram decapitados por se recusarem
a esculpir estátuas de ídolos.
Flávio Lourenço
12. XXXII Domingo do Tempo Comum.
13. Santo Estanislau Kostka, religioso
(†1567). Convidado a ingressar na
Companhia de Jesus pela própria Santíssima
Virgem, encontrou grandes dificuldades
para atender ao chamado,
pois seu pai, embora católico, opôs-se
inabalavelmente à vocação religiosa de
Estanislau. Tendo feito o heroico voto
de peregrinar pela Terra inteira, se necessário
fosse, até encontrar uma casa
São Martinho de Tours
18
–––––––––––––– * Novembro * ––––
da Companhia de Jesus que o quisesse
aceitar sem a licença do pai, caminhou
700 km, de Viena até a Alemanha, à
procura de São Pedro Canísio, que o
acolheu com bondade e o encaminhou
a Roma, com uma carta de recomendação
a São Francisco de Borja. Foi, então,
aceito como noviço da Companhia,
mas permaneceu nessa condição somente
nove meses, pois morreu na Festa
da Assunção de Nossa Senhora. Não
chegou a completar 17 anos de idade.
14. São Serapião, mártir (†s. III).
Foi martirizado no Egito, durante a
perseguição do Imperador Décio.
15. Santo Alberto Magno, bispo e
Doutor da Igreja (†1280).
16. Santa Margarida, Rainha da
Escócia (†1093). Ver página 2
17. Santa Isabel, Rainha da Hungria,
esposa e religiosa (†1231)
Santa Hilda, abadessa (†680).
18. São Romano, diácono e mártir.
Por ter incentivado os cristãos perseguidos
a permanecerem firmes e
constantes em sua Fé, foi aprisionado
e morreu estrangulado.
19. XXXIII Domingo do Tempo
Comum.
20. Santo Edmundo, mártir (†870).
Ver página 20
21. Apresentação de Nossa Senhora.
Ver página 8
São Gelásio, Papa (†496).
22. Santa Cecília, virgem e mártir
(†s. III).
23. São Columbano, abade (†615).
Tendo abraçado a vida monástica, partiu
da Irlanda, sua terra natal, para a
França, onde fundou muitos mosteiros
que governou com austera disciplina.
24. Santos André Dung-Lac, presbítero,
e companheiros, mártires (†s.
XVII-XIX).
São Saturnino quebrando os ídolos diante do prefeito
25. Santa Catarina de Alexandria,
virgem e mártir (†305). Conduzida
diante do Imperador por ser cristã, censurou-o
corajosamente por perseguir a
Religião verdadeira, fez a apologia do
Cristianismo e demonstrou a falsidade
dos cultos idolátricos. O Imperador, encolerizado,
condenou-a à morte.
26. Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei
do Universo. Ver página 12
27. Santa Catarina Labouré, virgem
(†1876).
28. Santa Teodora, abadessa
(†980). Discípula de São Nilo, o Jovem,
mestra na vida monástica.
29. São Saturnino, bispo e mártir
(†s. III). Enviado para a evangelização
das Gálias, fundou a diocese de
Toulouse. Segundo um relato do século
V, incorreu na ira dos sacerdotes
de Júpiter, porque sua simples presença
tornava mudo o ídolo ao qual
eles costumavam sacrificar um touro.
Certo dia, os devotos de Júpiter
prenderam São Saturnino e exigiram
que fosse ele próprio sacrificar o touro.
Diante da recusa do Santo, que
ademais desafiou Júpiter a fulminá-
-lo com um raio se fosse capaz disso,
os pagãos o condenaram a ser arrastado
até à morte pelo mesmo touro. Por
uma piedosa lembrança, os toureiros
o têm, na Espanha, como seu protetor
especial.
30. Santo André, Apóstolo (†s. I).
Flávio Lourenço
19
Hagiografia
Flávio Lourenço
Lindo
exemplo
para os
governantes
eclesiásticos
20
Santo Edmundo - Igreja de São
Marcial, Angoulême, França
O Rei Santo Edmundo foi
martirizado porque não
aceitou fazer negociações
de paz com os pagãos,
pois isto significava a
apostasia de seus súditos.
Seu sangue fez com
que toda a Inglaterra se
cristianizasse e, até a época
do protestantismo, ela foi
uma nação católica que
durante algum tempo se
chamou Ilha dos Santos.
C
omentaremos uma síntese
biográfica sobre Santo Edmundo,
extraída do livro Os
Santos Militares, do General Silveira
de Mello 1 .
Enfrentando o inimigo
por excelência
Edmundo, que fora muito bem
educado na Religião Católica, tornou-
-se modelo de cristão para seu povo.
Justo e bom, era homem de invulgar
energia. Percebeu cedo o perigo que
representavam os escandinavos para
seu país e preparou-se militarmente,
assim como dispôs seu povo para uma
possível guerra.
Os escandinavos eram, naquele
tempo, o grande perigo dos povos civilizados.
Hoje tão pacíficos, entretanto
foram no passado os tiranos
dos mares. Eles ocupavam a Escandinávia
e deitavam aquelas migrações
pelos mares, que iam descendo
pelos vários lugares da Europa e que
representavam, digamos, a última leva
das invasões bárbaras no continente
europeu.
Para se ter uma certa ideia de qual
era o espírito deles, alguns usavam
o título de reis do mar, porque eram
monarcas de povos que viviam em
barcos – juntamente com as mulheres,
os filhos e tudo o mais – fazendo
pirataria de um lado e de outro. Aliás,
eram barcos com umas proas lindas,
de uma audácia e arrogância de
que a Suécia e Dinamarca perderam
completamente o segredo. Com a
queda das proas caiu tudo. Fala-se de
figuras de proa; poder-se-ia dizer que
cada povo tem a proa que merece.
De maneira que preparar o seu
povo contra a invasão desses inimigos
significava enfrentar o inimigo
por excelência.
Não se enganou em suas previsões.
De fato, os dinamarqueses atacaram
o reino inglês. No primeiro combate
foram duramente rechaçados, mas,
unindo esforços num grande número,
venceram a Santo Edmundo e o aprisionaram
em Hoxne.
Ele venceu uma primeira leva de
inimigos que atacou o seu reino. Mas
eles concentraram-se e naturalmente
o esmagaram, pelo grande número
que tinham desembarcado em vários
pontos da Inglaterra.
Nexo entre os assuntos
políticos e os religiosos
O chefe dos adversários fez várias
propostas de paz ao santo rei, que as
recusou por serem contra a Religião
Católica e os direitos de seus súditos.
Foi duramente supliciado e, por fim,
decapitado. Foi martirizado a 20 de
novembro de 870.
Um Concílio nacional reunido em
Oxford, em 1122, tornou obrigatória a
festa do mártir. Suas relíquias, inclusive
um saltério que usava diariamente,
foram veneradas na Abadia de Cluny
até o surto da heresia protestante.
Preso e levado para Hoxne, Santo
Edmundo foi intimado a fazer negociações
de paz pelas quais ele cedia
seu reino aos vencedores. Ora,
ele não queria fazer isso porque seria
entregar seu povo aos pagãos e
favorecer o restabelecimento da religião
pagã naquele local. Ele resistiu
e, então, foi morto.
Vemos a alta consciência que tinha
esse homem do papel de rei, de
suas obrigações e das relações entre
os assuntos políticos e os religiosos.
Ele tinha noção de que a queda
dele e a implantação de uma dinastia
de reis pagãos traria a paganização
do Estado e dos indivíduos. Causaria,
portanto, a apostasia daqueles povos,
a perdição das almas. Ele compreendia
muito bem o nexo entre a vida política,
a forma do Estado e a forma religiosa,
e por isso se manteve fiel até o
fim, sendo martirizado.
Michael Zeno Diemer (CC3.0)
21
Hagiografia
Arquivo Revista
Por que razão queriam que ele renunciasse?
Naturalmente porque Santo Edmundo
continuava a ter prestígio, senão
a sua renúncia não adiantava de
nada. É porque era difícil consolidar a
conquista, enquanto não houvesse uma
prova de que ele tinha renunciado.
Talvez os inimigos quisessem até levá-lo
a seu próprio reino para declarar
aos seus súditos que ele tinha renunciado.
Santo Edmundo entendeu isso e
não quis renunciar, provavelmente na
esperança de que seus súditos organizassem
uma espécie de revolução, de
guerrilha contra o ocupante para salvar
a Fé. E ele regou com seu sangue essa
esperança de uma restauração católica.
Devemos ser fiéis até a
morte à nossa vocação
Que lindo exemplo para os governantes
eclesiásticos! Sem dúvida, o
sangue desse rei valeu porque, de fato,
a Inglaterra acabou se cristianizando
inteira e, até a época do protestantismo,
ela foi uma nação católica
que durante algum tempo se
chamou Ilha dos Santos, tal foi o número
de bem-aventurados que nesse
país floresceram.
Devemos pedir a Nossa Senhora
que nos dê muitos homens de Estado
e muitos homens de Igreja que tenham
esse espírito. Porque enquanto
os povos católicos, no campo temporal
e, sobretudo, no espiritual, não são governados
por homens dispostos a derramar
seu sangue pela Santa Igreja,
eles não são dirigidos por quem preste.
Só governa bem quem está disposto
a levar a fidelidade a seus princípios
e a seu cargo até o martírio; do contrário
não vale de nada.
Assim como um militar que não
está disposto a morrer é igual a zero,
um bispo, um príncipe, um rei, um
alto governante que não esteja decidido
a morrer para o cumprimento
de seu dever é igual a absolutamente
zero. Os altos cargos exigem a alta
coragem. São os cargos pequenos
que podem se acomodar com o valor
moral normal. Os grandes cargos requerem
o grande espírito de dedicação,
o grande sacrifício.
Entretanto, será um cargo o que
Deus concede de mais alto a um homem?
O que vale mais: um cargo ou
uma vocação? Não há situações em
que uma vocação vale mais do que
um cargo?
Nós temos mais do que um alto
cargo, possuímos uma alta vocação.
Pensemos no exemplo desse rei
para termos sempre a deliberação de
sermos fiéis até a morte à nossa vocação.
v
(Extraído de conferência de
20/11/1970)
Dr. Plinio na década de 1970
1) Não dispomos dos dados bibliográficos
desta obra.
22
A sociedade analisada por Dr. Plinio
Leandro W.
Cochem às margens do
Rio Mosel, Alemanha
Como se forma o
costume - II
O modo de ser de um povo está relacionado com o
cenário da natureza em que ele vive. A graça divina
conserva tudo aquilo que um povo possui de bom,
eleva-o e orienta-o para se tornar cada vez melhor; sua
força geradora de costumes é incomparável.
V
amos pegar o costume no
seu nascedouro: suponham
que houvesse, de repente,
um deslocamento qualquer da Terra
e o clima alemão passasse a ser sensivelmente
diferente. Por exemplo, dado
a quente, um clima mediterrâneo.
O costume ou é regional
ou não existe
Como o povo todo está muito unido
numa mesma mentalidade, cons-
titui neste sentido uma família de almas,
a mudança de clima haveria de
atingir a vida particular dos indivíduos,
mais ou menos do mesmo modo,
mas as reações dos indivíduos a essa
alteração que tivesse se passado seriam
idênticas ou afins, por causa da
grande conaturalidade de uns com
os outros. E seria uma reação, tomada
em nível individual e familiar, que
atenderia todas as percepções da vida
individual e familiar nessa nova
situação.
Se fosse um povo razoável, não
trabalhado pela verminose de mil
preguiças nem pelas descargas nervosas
de mil torcidas, mas de um fluxo
vital normal, sentiria os problemas
e iria ajeitando aos poucos, em
parte se adaptando, em parte adaptando
as coisas a si, e levaria uns vinte
ou trinta anos até se conformar à
situação nova.
Nesse povo, cada indivíduo se
adapta com um conhecimento meticuloso
e profundo da sua situação
23
A sociedade analisada por Dr. Plinio
Mirabella (CC3.0)
pessoal e de sua família. E isto feito
numa região inteira, com os recursos
que eles vão utilizando para fazer
face àquilo, e surge uma solução
que nenhum instituto oficial poderia
encontrar, nem professor universitário
seria capaz de fazer daquele jeito.
Pela colaboração de milhares de
pessoas, instintivamente, para resolver
uma determinada dificuldade,
auscultando cada um a si e também
os outros, ninguém querendo romper
para uma solução genial individual,
mas compreendendo que deve
estar no ritmo de uma solução coletiva;
então, o povo vai adaptando,
adaptando, adaptando a ponto de
dar uma obra-prima.
Serve de exemplo para isso um
queijo famoso da Córsega, para cuja
composição são utilizadas duzentas ou
trezentas ervas. Como chegaram a conhecer
essas ervas e obtiveram um tipo
perfeito de queijo? Evidentemente,
diante de uma natureza pobre,
com aquelas montanhas, às apalpadelas,
uma região inteira foi à procura
de uma fórmula. E houve bastante
nobreza de espírito para que cada um,
Rochedos da Ilha da Córsega
inventando uma coisa nova, os outros
soubessem que era melhor ou não, e
fizessem uma seleção. E disto nascesse
um costume a respeito de queijo.
Mas isso que se dá com o queijo,
ocorre com o traje, a construção, o
cântico, os sistemas de educação regionais;
tudo isso nasceu do costume
assim. Trata-se de uma obra-prima
que nenhum gênio humano é capaz
de fazer.
Eles não têm gênios aos borbotões;
seria uma hipertrofia e uma desgraça
para a nação. Eles possuem pessoas
de um bom quilate individual, inteligentes,
as quais esperneiam, sabem
se meter, que é uma coisa
prodigiosa. É um grande
povo tecendo ao longo dos
tempos seus costumes.
O costume não deve
ser, portanto, visto em escala
de nação, e sim de região.
O costume ou é regional
ou não existe.
Se não tivesse nascido a Civilização
Cristã, nós não teríamos
isso, que é do homem cristianizado.
Flávio Lourenço
O cenário da
natureza condiz com o
temperamento do povo
Por outro lado, o cenário da natureza
condiz com o temperamento do
povo e, ao falar do costume, precisamos
considerar esse cenário. O pinheiro,
o Tannenbaum, vai
bem com o prussia-
24
Trajes asturianos
no, e o castanheiro, o marronier, com
o francês. Aquelas montanhas da Espanha
se ajustam com o temperamento
espanhol. Tem-se a impressão
de que andou por ali um gigante
furioso, caprichoso e individualista,
o qual distribuiu taponas e pontapés
naquelas montanhas, onde o espanhol
sente-se em casa. É preciso
ter a grandeza do espanhol para se
compreender onde ele está. Já a doçura
portuguesa é outra coisa.
Então, eu queria fixar bem o princípio:
O nascimento do costume vem
da existência de um pulsar e de um
viver sincrônico, de um unum com
notas biológicas, condicionadas pelo
ambiente, pela paisagem e pela história
daquele povo. E esse unum faz
com que, diante de situações novas,
de interesses socioeconômicos e culturais,
todos se adaptem de um determinado
modo. Mas essas adaptações,
por qualquer coisa de instintivo,
de simultâneo e, neste sentido,
de coletivo, representam a soma das
observações ultrapormenorizadas
que um povo de uma região faz das
suas próprias condições, e da sabedoria
com que ele vai procurando as
acomodações. E isso faz o nascimento
sincrônico do costume.
Qual a relação entre costume e
Religião dentro disso? É que isso supõe
as virtudes cardeais de um povo
bastante vivas. Daí essa possibilidade
de encaixe, de formação desse tipo
de nação; e também de subir da
esfera privada uma evaporação magnífica,
que é o conjunto consuetudinário,
o qual vem a ser mais inteligente
do que qualquer gênio.
A questão das formas de governo
se estuda muito melhor em função
da região do que desse ente vazio de
regiões, que é o Estado, no qual se
costuma pensar quando se considera
em termos comuns o problema. Portanto,
para compreendermos bem as
formas de governo, quando cabem,
quando não, seria preciso pensar em
regiões, pois enquanto não houver
regiões definidas não haverá condições
para assentar nenhuma forma
coletiva de vida verdadeira, e nenhum
Estado digno desse nome. Este
será como construções artificiais
em cimento armado, mas não edificações
fortes de pedras naturais.
Daí, aliás, a sabedoria alemã dos
pequenos Estados confederados que
dão uma estrutura mais alta, um Sacro
Império, com elites de toda ordem.
Interação entre os
princípios e o costume
Entretanto, nunca chegaremos a
entender bem o assunto se não compreendermos
que a virtude antecede,
de certo modo, o conceito, o
princípio. Quer dizer, um princípio
muito elementar está na base da virtude.
Por exemplo, a fidelidade conjugal
é uma virtude. Ela tem na sua
base um princípio muito elementar
ou evidente. Mas logo depois de
concebido, de conhecido esse princípio,
e antes mesmo de ele acabar de
se explicitar inteiramente, num povo
virtuoso ele está gerando costumes.
Ele produz uma grande apetência, a
qual começa a gerar costumes.
À medida que o povo de uma região
vai crescendo – vamos sempre
pensar em regiões –, o princípio vai
se explicitando e gerando novas aplicações
do princípio. E há uma interação
princípio-costume, costume-
-princípio que é diferente de tomar
um aluno, metê-lo numa sala de aula
universitária, e o professor escrever
no quadro negro a teoria e depois
dizer: “A partir disso, comecem
a executar.” Não dá verdadeira frutificação.
Flávio Lourenço
Pirineus, Espanha
25
A sociedade analisada por Dr. Plinio
O indivíduo deve estar num ambiente
onde, antes de receber a aula,
os elementos primeiros do que
lhe foi ensinado ele já possuía, e com
vida. Então há um intercâmbio entre
o intelectual e a vida; o intelectual
traça um princípio, tira uma dedução,
mas a sociedade inteira já está
tendendo a deduzir isso também.
O intelectual não vive sentado numa
mesa e ali lê a realidade, mas ele é
levado a pensar acompanhando essa
produção da região e teorizando
aquilo que a região anda fazendo.
Do que me adianta imaginar um
homem na Provence, região do Sul
da França, sentado junto a uma escrivaninha
e teorizando, mas inteiramente
alheio à sua região? Ele pode
receber prêmios internacionais, o
curso das coisas da região dele não
foi para a frente. Se ele tivesse sua
vida intelectual entrosada com os
problemas da região, quer dizer, se
sua intelectualidade fosse tal que estivesse
viva, agarrada nos problemas
da região, seria um intelectual perfeito.
Do mesmo modo, ai da região
que não tenha vocações sacerdotais!
Ela está fadada a morrer, porque o
clero de uma região é levado a fazer
esta simbiose entre a Religião e a
sua prática nas condições da região.
E com um clero regional. Porque –
falando do Brasil – se numa igreja o
pároco é um padre holandês, em outra
um iugoslavo, mais adiante um
nacional que é pároco em Curitiba,
nascido no Amazonas, não vai.
Quer dizer, nós devemos ser gratos
aos padres de fora que vêm aqui
substituir a lacuna numérica de nosso
clero, seria uma desgraça se não
viessem, mas a solução perfeita – aliás
a Igreja exigiu sempre isso – é a
vocação sacerdotal do lugar, do país.
Mas eu iria um pouco mais longe,
de preferência da região. Isto seria a
coisa perfeita, porque aí a prática da
Religião iria sendo inserida no costume
local.
Ilustrações: Léon-Xavier Girod (CC3.0)
Construções na Indochina,
gravuras do século XIX
A graça conserva o que
um povo tem de bom,
eleva-o e orienta-o
Dois rapazes de nosso Movimento
resolveram fazer uma peregrinação
penitencial. Escolheram um lindo
trajeto, de Roncesvalles, que foi
onde Roland morreu, a Santiago de
Compostela. Foram procurar o abade
e pediram-lhe uma bênção. O
abade, que certamente deve ser da
região, disse: “Isso assim não basta.
Vamos fazer uma coisa séria e inteira.
Vocês vão pôr o traje de peregrinos
como era utilizado na Idade Média.”
Inclusive arranjou para eles os
chapelões, o bastão e as conchas que
caracterizavam os peregrinos medievais.
E começaram a andar a pé. Ao
longo do caminho foi uma ovação!
Gente que parava, tirava fotografia,
queria saber o que era, ajudava, uma
festa! Era a ressurreição de um costume.
Aquelas zonas gemem ainda
por não ter mais o costume.
Aliás, a graça atua dentro da natureza
exatamente na linha do que
estou falando, porque a graça se insere
como um acidente sobrenatural,
uma participação criada na vida de
Deus, e ela embebe todo aquele ser,
conserva, eleva e orienta para o que
ele tem de melhor no seu gênero. Isso
indica como a força da graça, geradora
de costumes, é incomparável.
São coisas lindas!
Poder-se-ia perguntar: Já que a
região é tão condicionante do costume,
como se forma uma região?
Talvez a parte da Terra onde a geografia
mais favorece a formação de
regiões é a Indonésia. Tem milhares
de ilhas. E cada uma daquelas
nações são insulares, são reinos de
uma, dez, cinquenta ilhas, um arquipélago.
Chegou um povo, morou só
ali, todo esse desenvolvimento consuetudinário
se deu nele sozinho e,
portanto, sem enriquecimento de fora,
mas também sem mescla. Portanto,
com uma coerência absoluta com
26
os elementos nativos primeiros. E a
este título privilegiados, de um lado.
Outro lado seria nós considerarmos
povos vários obrigados a se
mesclar. Eu descrevi há pouco a formação
do costume. Com essa boa
presença da graça entre nações católicas,
compreende-se muito bem.
A graça fá-los-ia se entenderem melhor,
conviverem com mais compreensão,
se enriquecerem mutuamente
do que trariam. E viria daí uma coisa
composta com uma beleza própria e
magnífica!
Problemas de uma
beleza extraordinária
Mas aí caberia uma objeção: “Está
bem, mas tome, por exemplo, uma
composição perfeita assim, elaborada
fora do regime da graça, que,
entretanto, é uma das mais bonitas
existentes na História: a Indochina.
A Índia e a China se encontraram
na Indochina, e saiu uma coisa
heterogênea hindu e chinesa, até
certo ponto requinte das duas, e sobretudo
uma terceira coisa, que não
é uma composição mecânica, mas é
algo vivo. E aquilo foi feito por um
povo primitivo que não tinha a graça.
Não estarei exagerando o papel
da graça por pura devoção?”
A resposta é simples: Encontramos
nos primórdios de certos povos
da humanidade a possibilidade de
fazer algumas coisas, como se a graça
o realizasse. Mas é porque eram
povos que ainda estavam meio próximos,
de um modo ou de outro, senão
cronologicamente, pelo menos
psicologicamente, do estado primeiro
da humanidade antes de ter pecado
muito. Eram povos que ainda tinham
uma capacidade extraordinária
de engendrar costumes e de perpetuá-los.
À medida que o rio de pecado
da História foi escorrendo sobre
esses povos, a questão foi mudando.
E eles acabaram só podendo
ir até determinado ponto, paralisando-se
a certa altura. E a ação da
graça concedida ante prævisa merita
1 , foi sendo interrompida, transviada
de tal maneira que os europeus
derrubaram essas culturas milenares
– que não eram uma ninharia, mas
coisas vivas – com uns piparotes.
O que foi feito com a China, o Japão?
O Japão de hoje é o do tempo
dos Xoguns e do Mikado, mas transformado
completamente. É um Japão
americanizado completamente.
Mas, por que deu nisso? Porque rios
de pecado correram em cima disso.
Compreende-se, assim, a formação
desse caldeamento indochinês
magnífico. É muito interessante
aquilo! Como tem critérios, como
está tudo bem composto! É a tal
experiência individual que expliquei
há pouco. Acho esses problemas de
uma beleza extraordinária!
Alguém me deu uma pinturazinha
impressa sobre seda, representando
uma dama típica do século
XVIII. É todo um outro mundo, que
não aquele de Berlim, mas tem algo
que não existiu alhures. É uma simples
dama, numa casa qualquer, com
móveis comuns daquele lugar, uma
senhora quase tomada em abstrato.
Entretanto, quanta delicadeza! Ela
está sentada, mantendo uma boa distância
do dorso da cadeira. Lembro-
-me ainda de mamãe, mais ou menos
com cinquenta anos de idade, almoçando
sem encostar-se no espaldar
da cadeira. É uma coisa especial.
Isso é um costume. Se não fosse
todo esse caldeamento que descrevi,
não teria saído isso. Essa pintura foi
feita no século XX, e quero conservá-
-la porque, além de ser muito típica, é
um preito de admiração de nosso século
aos tempos que se foram. v
(Extraído de conferência de
29/8/1986)
1) Expressão latina utilizada na Teologia
para significar “na previsão dos méritos
de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
27
Perspectiva pliniana da História
Mistérios de uma alma
e de um povo - II
Flávio Lourenço
A Providência permitiu que os verdadeiros católicos ficassem
num aparente abandono. Quando eles tiverem sofrido com
amor todas as dores que Deus lhes envia, chegará a hora em
que se levantarão para dizer a este mundo todas as verdades,
produzindo as mais inesperadas conversões e prostrando por
terra os homens mais insolentes.
Castelo de
Hohenschwangau
Baviera, Alemanha
28
Os estudos de opinião pública
indicam que todos os fenômenos
que se passam na
alma humana ocorrem, mutatis mutandis,
nas sociedades, e não apenas
numa geração, mas ao longo de várias
gerações, de maneira que um ciclo
de civilização faz em quinhentos
anos o que se passa na alma de um
homem em cinquenta ou em cinco
anos. As civilizações têm grandes ascensões,
grandes estabilidades, grandes
harmonias porque vivem muito
tempo. Em geral, quando morrem,
isso acontece dentro do fracasso e da
catástrofe.
O Ocidente foi dizendo
“não” ou “talvez”
A civilização medieval pode ser
comparada a um homem, e o processo
acima descrito foi precisamente o
que se deu na Idade Média.
A Idade Média, tão bela, nobre,
rutilante, Deus a amou com todo o
amor, era a obra-prima d’Ele. Nem a
Cristandade do tempo dos mártires
tinha sido tão pulcra quanto a Idade
Média em seu apogeu.
Em determinado momento a Idade
Média disse “não” ou “talvez”,
“daqui a pouco”... E então a Providência
passa a se colocar, por assim
dizer, de joelhos diante dela, enviando
sucessivos Santos, Ordens religiosas,
Doutores, dando seguidas graças.
Às vezes, esses Doutores retardavam
o processo, e conseguiam até
paralisá-lo, salvando muitas almas,
mas não lograram absolutamente
evitar que a Revolução fosse corroendo
e abafando a civilização medieval,
como a figueira brava circunda
a árvore e a estrangula, tirando-
-lhe completamente a seiva que lhe
dá a vida.
Compreendemos, assim, a razão
pela qual parece haver um determinismo
de vitória do mal, ao longo
desse processo. É porque o Ocidente
foi dizendo “não” ou “talvez” a todos
os Santos que surgiram e, com
isso, acumulando o castigo e o travo
da hora última. Mais ainda – e é
o mais terrível –, como o “não” não
era completo e dentro da civilização
do Ocidente muita gente tinha uma
certa atitude de alma boa, muitos
movimentos bons apareciam, a Providência
retardava um pouco e permitia
isso para que essa era da História
da Igreja fosse, apesar de tudo,
manifestando toda a sua beleza.
Assim foram sucessivamente aparecendo
os grandes Santos, Doutores,
missionários, estabelecimentos
católicos, as grandes encíclicas, os
notáveis movimentos de reação, belezas
estas que a Igreja foi mostrando
na medida em que ela ia sofrendo
e sendo prostrada, mas tirava de
si energias novas para novos tormentos,
até chegarem as aflições e as
energias extremas.
Santa Mônica e a conversão
de Santo Agostinho
Raciocinando agora no sentido
inverso, poderíamos aplicar a uma
alma o acima dito sobre uma civilização,
e notar como isso é pareci-
Flávio Lourenço
São Bento
Flávio Lourenço
São Bernardo
Flávio Lourenço
São Domingos
de Gusmão
São Francisco
de Assis
Gabriel K.
29
Perspectiva pliniana da História
Gabriel K.
Santa Mônica e Santo Agostinho
Museu Amedeo Lia, La Spezia, Itália
do com a história de Santa Mônica.
À medida que Santo Agostinho
se afastava dela, essa santa mãe ia
se tornando mais ardente, arrebatadora
no suplicar a Deus e no pedir
a seu filho rebelde que se convertesse,
mais irresistível em cada contato
com ele, porque ela aprimorava seus
dotes maternos e recursos para salvar
aquela alma. Agostinho resistia
e ela se julgava derrotada, não compreendendo
que, enquanto ele ia se
infamando, ela ia tirando de dentro
de si recursos e belezas novas, e
dando novas glórias a Deus; e que a
aceitação dela, num ato de conformidade
e resignação a cada derrota,
após cada “não” dele, marcava uma
nova beleza para ela. Enquanto o filho
ia dizendo “não” a Deus Nosso
Senhor, que era, assim, “vencido”
em Agostinho, Ele ia vencendo em
Santa Mônica, a ponto de ela se tornar
tão vencedora que, por assim dizer,
venceu o próprio Deus.
É sabido que algum
tempo antes
de Santo Agostinho
se converter,
ela procurou um
bispo que, vendo-a
chorar pela conversão
do filho, disse:
“Vai-te em paz, mulher,
e continua a
viver assim, que não
é possível que pereça
o filho de tantas
lágrimas.” 1 Algum
tempo depois, Santo
Agostinho começou
seu processo de
conversão. Nota-se
nisso o progresso da
alma dela e as sucessivas
vitórias de
Deus na vencida. Se
considerarmos essa
história como sendo
a de Santo Agostinho,
ele terá sido o
grande vencido. Se,
ao contrário, fizermos dessa história
a de Santa Mônica, oh! glória. Ao cabo
de mais de trinta anos de tribulações
e derrotas, essas lágrimas tiveram
um tal preço que alcançaram de
Deus a conversão do maldito, do inconversível,
o qual, convertido, tornou-se
um luzeiro para a Igreja.
Ela saboreou ainda na Terra a alegria
da conversão do filho, e chegou
a ter com ele aquele famoso colóquio
numa pequena hospedaria na
cidade de Óstia, perto do mar, onde
estavam alojados até um navio partir
para Cartago, onde tinham resolvido
morar. Eles falavam, junto a uma
janela, a respeito das coisas de Deus
e a conversa foi tão alta que tiveram
juntos um êxtase, no qual Santa Mônica
tinha praticamente alcançado
o fim de sua vida; pouco depois, em
Óstia, ela morreu.
Qual é a natureza dessas renúncias?
Ela não teria sido santa se, caso
Deus lhe tivesse perguntado: “Mônica,
aceitas que teu filho ainda prevarique
e continues a rezar por ele,
sem te revoltares?”, ela não tivesse
dito com estas ou outras palavras
ainda mais preciosas: “Estou disposta,
Senhor!”
Quem sabe se na sua agonia isso
não lhe foi perguntado? Era preciso
chegar até lá. Nisso estava a beleza
de Santa Mônica. Se ela ficou santa
foi porque ou disse explicitamente
ou estava disposta a isso, bem entendido,
se recebesse da Providência
as graças excepcionais que os grandes
lances supõem.
Como aconteceu a Jó,
todas as desgraças se
abateram sobre a Igreja
Então compreendemos que se
olharmos a Santa Igreja Católica na
sua essência, ao longo desses tempos,
temos a impressão de que ela é
uma derrotada. Porém, nós podería-
Flávio Lourenço
30
Santo Agostinho - Igreja de São
Jorge, La Coruña, Espanha
Maude Rion (CC3.0)
Flávio Lourenço
Lago Léman, Genebra
São Francisco de
Sales - Igreja de Maria
Auxiliadora, Vigo, Espanha
desse tempo? Foi dado aos seus inimigos
fazerem com ela o que o demônio
fez com Jó.
Narram as Sagradas Escrituras
que o Criador disse ao demônio:
“Reparaste no meu servo Jó? Na
Terra não há outro igual; é um homem
íntegro e reto, que teme a Deus
e se afasta do mal” (Jó 1, 8). E o demônio
retrucou que se o Onipotente
permitisse que ele o atormentasse
de todos os modos, veria como levaria
Jó a pecar. E Deus, então, deu ao
demônio licença para atormentá-lo
em tudo, exceto tirar-lhe a vida (cf.
Jó, 1, 9-11; 2, 3-6).
Do mesmo modo, aos adversários
da Igreja foi permitido tudo, exceto
uma coisa: ela continua a existir,
mantém-se viva. Todas as desgraças
se abateram sobre ela e, ao longo
das gerações, gradualmente, cada
vez mais a Igreja foi afundando,
e com ela também os varões apostólicos,
os verdadeiros homens de
Deus foram perdendo a glória, a celebridade,
a honra, sempre mais perseguidos
e isolados, entretanto, camos
fazer uma história de tudo quanto
de belo tem aparecido na Esposa
de Cristo, desde Lutero até nossos
dias, e chegar à conclusão sublime de
que Deus foi vencedor, pois a Igreja
foi manifestando cada vez mais a sua
pulcritude porque o adversário foi
mostrando cada vez mais a sua infâmia.
Haveria de chegar um momento
extremo em que, tanto a beleza da
Igreja Católica como a infâmia do adversário
se manifestariam na sua plenitude,
dentro da desolação extrema.
A partir do momento em que esses
dois auges estivessem manifestados,
poder-se-ia dizer que essa competição
estaria encerrada, e o relógio
de Deus marcaria meia-noite. Chega
a hora de mandar os Anjos vingadores,
porque a Esposa de Cristo tinha
terminado essa fase histórica mostrando
toda a sua pulcritude; e daí
por diante será varrida a face da Terra,
virá a grande tempestade, o grande
castigo, a grande glorificação da
Santa Igreja.
Qual é a forma de beleza que a
Igreja veio manifestando ao longo
da vez mais dignos e conscientes da
missão que representavam, descendo
de ocaso em ocaso até nossa época.
São Francisco de Sales e o
calvinista Teodoro de Beza
Considerem, por exemplo, o que
era um bispo na Idade Média e comparem
com um no tempo de São
Francisco de Sales. Este representou
uma das primeiras legitimidades exiladas
e calcadas aos pés na quadra
da Revolução. Bispo Príncipe de Genebra,
cidade feita para todas as ortodoxias
e purezas. É preciso ter estado
lá para compreender isso: ar
limpidíssimo, o Lago Léman cristalino
como uma consciência tranquila,
tudo é delicado, nobre, convida à
virtude. Entretanto, foi instalado ali
o calvinismo mais obstinado e repugnante.
Deus suscita um bispo de uma doçura
inefável, um favo de mel dentro
da História, que chega a penetrar em
Genebra, a se dobrar diante de Teo-
31
Perspectiva pliniana da História
doro de Beza e pedir que se converta.
São Francisco de Sales era condenado
à morte se entrasse em Genebra.
Portanto, ele arriscou a própria vida.
Teodoro de Beza contou que, em
determinado momento, ao ver o bispo
legítimo diante dele, palhaço ilegítimo
– porque a ilegitimidade forma
palhaços, quando não criminosos
–, sentiu sua alma vacilar, mas depois
disse “não”, e São Francisco de
Sales teve que sair da cidade.
Vendo ser o sorriso inútil, o Santo
apela para as tropas, mas estas são
derrotadas. Ele, o bispo fracassado,
entretanto morre digno, sereno, tendo
realizado esta atividade típica: já
que os seus não quiseram beneficiar-
-se de sua doçura, ele escreveu obras
exalando a suavidade da Igreja e da
Providência para a Cristandade inteira:
Introdução à vida devota, Tratado
do amor de Deus, e uma série de
outras obras, transformando-se em
Doutor da Igreja; Doutor desprezado,
mas que nem por isso perde a face.
Desce dignamente à sepultura e
sobe até os Céus, sem se incomodar.
Foi rejeitado, mas permaneceu fiel.
Depois de São Francisco de Sales
vieram vários bem-aventurados, até
aparecerem, no século XIX, os grandes
santos das obras de caridade materiais.
Em todas as épocas os santos
fizeram obras de caridade materiais,
mas os do século XIX primaram nesse
assunto de um modo especial, sem
que tivessem com isso relaxado, no
mínimo que fosse, as obras de caridade
espirituais.
Do fundo do vale se
ergue o lírio mais puro
É então Dom Bosco, por exemplo,
o qual faz com que até Cavour,
o homem das perseguições religiosas,
ajudasse a sua obra. Contudo,
Cavour não se converteu, nem a Itália
revolucionária, apesar de tantos
outros Santos. Só em Turim havia
cinco grandes Santos, entre os
quais São José Cottolengo, um homem
inteligentíssimo que fundou a
obra da Divina Providência. Mostra-
-se ainda hoje sua cadeira de escritório
onde Nossa Senhora sentava-Se
para conversar com ele. Entretanto,
São João Bosco foi rejeitado como
tantos outros bem-aventurados. Todos
eles morrem na aparência derrotados,
mas na dignidade e tranquilidade.
É a longa sucessão de derrotados
a caminhar pela História, como
uma procissão serena de triunfadores,
sem empáfia, sem amor-próprio,
sem gabolice, mas também sem
o menor complexo de inferioridade,
com os olhos postos em Deus e
sabendo que quem está unido a Ele
acaba por triunfar.
Apesar disso, o mundo vai piorando.
Parece que a Providência abandonou
a Contra-Revolução.
Nós não sabemos sondar até o
fim os desígnios de Deus. Na realidade,
Ele estava tornando possível o
advento de uma época em que fosse
feita a increpação última, e a bofetada
derradeira pudesse soar, sonora,
na face impura da Revolução desmascarada.
Por outro lado, não houve nada
em que a Igreja não se revelasse
belíssima. Esta é a mais alta beleza
que se destila desse extremo da luta.
É a epopeia da fidelidade, quando
a infidelidade fez devastações
que nenhum espírito ousaria imaginar;
diante de cuja possibilidade teológica
muitos Santos gemeram, dizendo:
“A misericórdia divina não
permitirá.” Aquela situação tão triste,
que alguns Santos julgaram que a
misericórdia divina não permitiria,
verificou-se. Ficará consignado para
a História que, pela graça de Nossa
Senhora, houve católicos que levaram
a fidelidade a um tal ponto que,
nessa situação, onde muitos santos
pensaram ser tal o horror que a Providência
não permitiria, naqueles
despenhadeiros tão profundos que
se pensaria não haver vida, ali houve
vida, houve fidelidade, porque houve
quem esperasse o auxílio de Nossa
Senhora. Por isso, algo acontecerá
por onde Maria Santíssima vencerá.
Foi quando o filho pródigo estava
comendo as bolotas dos porcos
que ele se lembrou da casa paterna.
Sendo possível dar à Igreja essa forma
de glória que consiste no retorno
da humanidade perdida, não era
preciso que houvesse uma época histórica
na qual alguém lhe desse essa
glória? E se era necessário, bem-
-aventurados os homens que nasceram
para padecer essa tristeza, esse
isolamento, esse desprezo e essas
delongas, para habitar o fundo desse
vale. Porque é do fundo do vale que
haveria de se erguer o lírio mais puro,
elevar o voo a águia que mais alto
voasse, e de onde uma nova era histórica
recomeçasse.
Vozes puras e sem fraude,
capazes de chacoalhar as
colunas da impiedade
Embora se veja que o vale não poderia
ser mais fundo, pode ser que a
intervenção divina demore um pouco
e tenhamos ainda um estertor a dar.
Nosso Senhor, depois de proferido
o “Consummatum est” e tendo
morrido, quando se pensava que Ele
tinha dado tudo, ainda foi necessário
arrancar d’Ele a última gota de Sangue
misturado com água. E depois
de Ele ter sofrido todas as feridas
possíveis, foi preciso que Ele fosse
ferido no Coração (cf. Jo 19, 30.34).
Talvez julguemos que mais nada
tenha de acontecer, mas há ainda
uma ponta no caminho de nossas
aflições para sofrer. Será um último
lance, o mais terrível. Quando será?
Deixando essa incógnita, Nossa Senhora
nos pergunta:
“Meu filho, tu aguentas a possibilidade
de ser tanto tempo que te dê
aflições, arrepios de demorar ainda
mais? Suportas a eventualidade de
ser bem mais do que imaginas?”
32
Nesse momento, se dissermos
com toda a alma: “Minha Mãe, eu
suporto”, talvez a nossa medida esteja
cheia e Deus, afinal, intervenha.
A nós compete admirar toda a sabedoria
que a Providência revelou
nessa luta lenta, deixando-nos nesse
aparente abandono. Tomando consciência
de que fulgores dos mais belos,
de uma suprema beleza da Santa
Igreja Católica, se desprendem dos
que permanecerem fiéis e se desprenderão
ainda mais, quando chegar
a hora desses se levantarem como
increpadores para dizer a este
mundo todas as verdades que ele
não quer ouvir.
Mas esses increpadores só terão
a voz capaz de fender os morros,
fazendo-os saltar como cabritos,
produzindo as mais inesperadas
conversões e prostrando por terra
os homens mais insolentes, audaciosos
e orgulhosos, quando esses fiéis
tiverem bebido toda a taça de fel.
Tais almas poderão increpar porque
se tornaram como São Bartolomeu:
verdadeiros israelitas nos quais não
há fraude. Serão vozes puras e sem
fraude, capazes verdadeiramente de
tomar as colunas da impiedade contemporânea
e chacoalhá-las.
Esperemos mais um pouco, estejamos
prontos a, eventualmente, esperar
muito, dispostos a tudo e digamos:
“Pai meu, se for possível afaste
de mim este cálice. Mas faça-se a
vossa vontade e não a minha” (cf. Lc
22, 42).
Assim, ainda que sejamos um punhado
de almas, teremos vencido a
Revolução, porque o ponto final será
posto quando alguém disser um
“sim” tão íntegro que acabe fechando
os parêntesis, e finalizando a frase
maldita iniciada por aquele que,
em certo momento, disse “talvez” e
começou a Revolução.
Essa última palavra de fidelidade
extrema nós somos chamados a proferi-la
juntos, dizendo a Nossa Senhora
como Ela respondeu ao Anjo:
Ecce ancilla Domini. Fiat mihi secundum
verbum tuum (Lc 1, 38). Assim
nós devemos afirmar: “Minha Mãe,
nós somos vossos escravos. Faça-se
em nós, para a glória ou para o opróbrio,
para as felicidades ou para as
tormentas, segundo a vossa palavra.
Longinus crava a lança em Jesus Cristo
Museu da Semana Santa, Zamora, Espanha
Vamos lutar até o fim contra a Revolução.
Esse é o nosso objetivo”. v
(Extraído de conferência de
24/2/1974)
1) SANTO AGOSTINHO. Confissões.
Livro III, c. XII.
Flávio Lourenço
33
Apóstolo do pulchrum
Gabriel K.
A música
Anjos
Platão imaginava que os corpos celestes eram como esferas
de cristal as quais, girando umas sobre as outras, produziam
uma sinfonia universal. É uma linda ideia, mas ela se torna
pálida quando consideramos os Anjos, espíritos perfeitíssimos,
puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente
contemplando a Deus, exclamando em cânticos o seu sentir.
Quando ouvimos um canto, notamos haver uma
analogia entre o falar humano e esse cântico,
porque cada nota posta ali é como uma inflexão
da voz humana quando o homem afirma alguma coisa.
O cantochão, o polifônico, a música clássica
Por exemplo, ao pronunciar “afirma alguma coisa” involuntariamente
dei ênfase à palavra “afirma” para indicar
o caráter afirmativo do que eu queria dizer, enquanto
fui muito rápido no resto da frase, porque “alguma coisa”,
sendo um termo vago, pronuncia-se rapidamente,
como uma pincelada apenas no pensamento. De maneira
que, no pronunciar a frase, fiz o que todo mundo faz,
ou seja, martelei as sílabas, modulei a voz de acordo com
o que me vai no temperamento e na alma a respeito daquilo
que estou dizendo.
Então é um modo de proferir as frases, por onde a
pronúncia como que discretamente canta o que está sen-
do dito. E esse “cantar” indica o meu estado temperamental
e o sabor por mim encontrado – bom ou mau,
agradável ou repelente – naquilo que estou dizendo.
Em geral, tanto o cantochão quanto o polifônico têm
isso de próprio: cada nota é uma meditação sobre o sentido
da palavra que está sendo dita, é uma tomada de
posição piedosa, ora triste, ora alegre, ora afetuosa, ora
adorativa, ora reparadora, ora eucarística a respeito daquilo
que está sendo afirmado. Por isso é bonito acompanhar
exatamente assim a música, palavra por palavra.
Entretanto, podemos ver na música um outro aspecto.
Se tomarmos a música clássica, por exemplo, veremos
tratar-se de uma magnífica arquitetura de sons. Essas
melodias podem ser comparadas, de algum modo, a
um prédio com as suas massas distribuídas, suas colunas,
seus corpos de edifício, seus desdobramentos, mas
onde entra algo mais abstrato do que a expressão de um
pensamento humano: introduz-se uma pura ideia de
harmonia.
34
dos
no Céu
Poderíamos nos perguntar qual dessas é a verdadeira
concepção da música e, se ambas são verdadeiras, qual a
mais alta.
Diante desse problema, eu me pergunto se não haveria
um estilo de música que reunisse ambas as perfeições,
porque são manifestamente tão nobres e tão altas que
um certo senso da unidade nos faz desconfiar de que haja
a possibilidade de reunir as duas concepções numa visualização
só.
Porém, ainda não encontrei uma fórmula e nem sei se
isso é possível. Indico apenas essa ideia para esboçar um
pouco aquilo que, provavelmente, é a música dos Anjos
no Céu. Que os Anjos têm uma melodia no Céu, embora
não seja a música material, é positivo. Que esta melodia
deve ter uma arquitetura sonora magnífica, expressão do
ser deles, é fora de dúvida.
Haverá no homem, com as limitações para a criatura
humana, a possibilidade de uma música assim? Também
não sei. Mas é uma coisa a respeito da qual se pode
cogitar.
Cogitações que nos incentivam
a pensar no Céu
Exatamente são as cogitações que valem a pena ter
como entretenimento quando, por exemplo, a rotina está
monótona. É um entretenimento inocente que deixa a
alma leve. E um certo cultivo da leveza de alma vai bem
para quebrar esses estados um tanto depressivos a que
possamos estar sujeitos.
Platão imaginava os corpos celestes como esferas de
cristal girando umas sobre as outras eternamente, e ele
tinha a ideia de que cada uma dessas esferas produzia
um som, e que esses sons todos se encontravam no universo,
produzindo uma música universal resultante dos
movimentos dos astros.
Notem quantas noções bonitas estão postas dentro dessa
concepção. Esferas de cristal que giram, já é uma verdadeira
beleza! O som que se desprende dessas esferas, correlato
com a cor, a densidade e a rotação desses cristais, uma policromia
conjugada a uma harmonia, que coisa bonita!
Essa música não exprimiria o sentir humano, seria
uma pura arquitetura universal, quase uma meditação filosófica
sonora, mas que produz no homem um reflexo.
Então se poderia imaginar um ponto de encontro que seria
a expressão da reação humana diante dessa harmonia
universal, e musicar isso.
Cogitações como essa nos ajudam a suportar o peso
da vida e nos incentivam a pensar no Céu. Como ficam
estúpidas essas lindíssimas esferas de cristal quando consideramos
que existem os Anjos, espíritos perfeitíssimos,
puríssimos, virtuosíssimos, fidelíssimos, continuamente
contemplando a Deus, vendo n’Ele belezas sempre as
mesmas e sempre novas, exclamando em cânticos o seu
sentir. É uma coisa maravilhosa!
v
(Extraído de conferência de 23/3/1970)
35
Gabriel K.
Assunção de Maria - Galeria Nacional, Ottawa, Canadá
Maria fons, Maria mons, Maria pons
P
or estar no píncaro da Criação, a Santíssima Virgem é a intercessora necessária para os pedidos
que sobem e para os favores que descem.
Há uma cançãozinha muito bonita que diz: Maria fons, Maria mons, Maria pons... Parece
um jogo de palavras, mas de fato Nossa Senhora é a fonte, a montanha e a ponte.
Se analisarmos, encontraremos uma insinuação de píncaro até nisso, porque Ela é a montanha, a
qual, por sua natureza, é um píncaro em relação a outras coisas. Também se diz d’Ela que é mons super
montes positum – a montanha posta sobre todas as outras montanhas.
Maria fons é outro título à maneira de píncaro, ou seja, em relação a toda a natureza seca, a fonte de
onde jorra a água tem uma espécie de culminância, de importância, pois a terra não subsiste sem a água.
Maria pons. Sem a ponte que une os bordos de um precipício o viandante não tem solução para seu
caminho. A ponte garante sua travessia. É mais uma vez a noção de píncaro, em outro sentido.
A nota de píncaro está presente em tudo quanto é d’Ela, especialmente na virginalidade e na humildade levadas
ao inimaginável, em contraposição à Revolução que visa levar ao extremo o orgulho e a sensualidade.
(Extraído de conferência de 12/7/1991)