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junho de 2016 | | 11<br />

tudo é narrativa | Tércia Montenegro<br />

A luz e o mistério<br />

Como não gostar imediatamente<br />

de um<br />

pintor que se denominava<br />

“o rei dos<br />

gatos”? E, de quebra, ainda tinha<br />

origem polonesa…<br />

Eu já conhecia superficialmente<br />

a obra do conde<br />

Klossowski de Rola, mas foi a<br />

partir do livro Le paradoxe Balthus,<br />

de Raphaël Aubert, que<br />

pude me aprofundar. O título<br />

empenha-se em levantar os aspectos<br />

mitômanos da personalidade<br />

deste artista, circulando<br />

principalmente pela esfera erótica<br />

de vários de seus quadros.<br />

Entretanto, a leitura torna-se<br />

proveitosa sobretudo pelas relações<br />

entre a obra de Balthus e a<br />

de artistas anteriores: às páginas<br />

85 e 86, por exemplo, o autor<br />

demonstra como a personagem<br />

do quadro A rua (1933), que<br />

atravessa uma rua com uma tábua<br />

sobre o ombro, teria sido<br />

diretamente inspirada pelo homem<br />

que porta a cruz no afresco<br />

de Piero della Francesca em Arezzo<br />

(1452-1459).<br />

O melhor é que Balthus<br />

não concordava absolutamente<br />

com esta inspiração (apesar de<br />

venerar a obra de Della Francesca).<br />

De uma entrevista, consta<br />

que ele explodiu numa gargalhada<br />

e observou que não existem<br />

trinta e seis maneiras naturais<br />

de carregar uma tábua, ou seja,<br />

basta olhar em torno para se dar<br />

conta da postura adequada; não<br />

é preciso evocar nenhuma influência<br />

estética para isso. Embora<br />

Raphaël Aubert defenda<br />

que tal resposta foi uma estratégia<br />

do artista para se furtar às<br />

revelações e criar uma atmosfera<br />

de mistério, a gente que produz<br />

arte sabe o quanto os críticos e<br />

intérpretes de uma obra muitas<br />

vezes viajam — com a melhor<br />

das intenções, talvez, mas jamais<br />

alguém fora do processo criativo<br />

saberá inteiramente o que esteve<br />

envolvido ali. Toda e qualquer<br />

leitura, por mais fundamentada,<br />

é válida, sim, mas não tem peso<br />

de verdade. Dito isto, esclareço<br />

que a verdade muitas vezes não é<br />

a via mais interessante das coisas...<br />

Porém, voltemos ao livro<br />

citado. À página 87 surge<br />

um ponto curioso, que cito<br />

em tradução minha: “Uma outra<br />

particularidade do trabalho<br />

de Balthus e que choca aqueles<br />

que descobrem pela primeira vez<br />

suas telas vem igualmente dos<br />

seus pintores preferidos. O fato<br />

é que sobre o rosto dos seus modelos,<br />

o sorriso está como que fixado,<br />

voltado para o interior, e<br />

ali paira uma invencível melancolia.<br />

Um traço que se encontra<br />

em muitos pintores da Renascença,<br />

justamente: Gaddi, Botticelli<br />

e, claro e sempre, Piero della<br />

Francesca, tal como se pode ver<br />

Para além de<br />

ser um suporte<br />

expressivo, o<br />

corpo tem a<br />

sua história:<br />

cicatrizes,<br />

pelos, texturas,<br />

formas vão<br />

construindo<br />

uma<br />

bioarquitetura,<br />

que nos diz<br />

— com um<br />

estranho tipo<br />

de silêncio<br />

— coisas<br />

que somos<br />

acostumados<br />

a evitar.<br />

ilustração: Hallina Beltrão<br />

no afresco da Visita da rainha de<br />

Sabá ao rei Salomão na igreja de<br />

Arezzo ou n’A madona de Senigallia<br />

do museu de Urbino”.<br />

Ora, Balthus — novamente<br />

sem desprezar todo o crédito<br />

aos pintores antigos, que ele tanto<br />

amava — poderia responder<br />

a isso também com uma risada.<br />

Afinal, há muitas motivações para<br />

inserir melancolia num rosto,<br />

ou para colocá-lo à maneira<br />

de efígie (Piero della Francesca<br />

não foi criador ou detentor autoral<br />

dos retratos em perfil). Mas<br />

o que me interessa na análise é a<br />

ponderação a respeito desta tendência<br />

nos rostos renascentistas.<br />

A característica poderia ser<br />

observada inclusive no sorriso<br />

“voltado para o interior” exibido<br />

pelas personagens de Da Vinci<br />

(e aqui penso não somente na<br />

Mona Lisa, mas n’A dama com<br />

o arminho, n’A Virgem e o menino<br />

com Santa Ana, n’A virgem<br />

das Rochas… Penso sobretudo<br />

no esplêndido São João Batista,<br />

que poderia ter alcançado tanto<br />

sucesso em termos de risinho<br />

enigmático quanto a Gioconda,<br />

célebre a ponto de me instilar<br />

um certo tédio e fazer preferir os<br />

outros quadros deste gênio.<br />

Finalmente, para concluir<br />

a apreciação do livro de Aubert,<br />

é interessante reparar, às páginas<br />

100 e 101, no efeito de “Unheimlichkeit”<br />

(inquietante estranheza), emprestado de Freud e<br />

possível de ser aplicado tanto a um quadro como A rua como à<br />

obra dos pintores metafísicos em geral (especialmente De Chirico).<br />

O esclarecimento vem de Jean Clair, que traduzo: “Existe<br />

inquietante estranheza apenas na medida em que o real é expressamente<br />

colocado como tal e onde a sua figuração representa<br />

somente um desvio, o menor possível em relação ao normal”.<br />

O projeto surrealista não poderia, portanto, ser enquadrado assim,<br />

já que estes artistas buscavam o maior afastamento possível<br />

da realidade. Mas seria o caso de pensar: e Magritte? Não há inquietante<br />

estranheza nele? Assunto para outro dia…<br />

De qualquer maneira, grande parte deste sentimento de<br />

incômodo que a “Unheimlichkeit” parece inspirar não está<br />

exatamente associado à composição ou figuratividade de uma<br />

tela — mas à forma com que uma sutil deformação da realidade<br />

nela se impõe. Balthus, assim como o seu contemporâneo<br />

Hopper, encontrou a via para este trabalho através da luz. Os<br />

dois artistas se assemelham já pela incrível atmosfera narrativa<br />

de muitos de seus quadros: basta aproximar Morning Sun<br />

(1952) e Morning in the city (<strong>194</strong>4), de Hopper, a de The room<br />

(1953) e Nude before a mirror (1955), de Balthus.<br />

Para além da semelhança cênica, a paleta e a luminosidade<br />

— em ambos — produzem o resultado de confissão e<br />

enigma. Um paradoxo desta espécie nos faz ver a luz como um<br />

elemento do mistério, e o mistério às vezes é uma das principais<br />

qualidades da arte.<br />

Qualquer tentativa de “esclarecimento” destas questões<br />

(que existem para permanecer suspensas) pode decepcionar,<br />

restringindo o impacto estético. Eis por que um filme como<br />

Shirley (2013), que utiliza os ambientes e personagens de Hopper,<br />

mergulha em terrível monotonia, apesar do virtuosismo<br />

técnico. Ao “solucionar” algumas incógnitas, atribuindo nome,<br />

profissão e contexto histórico às figuras dos quadros, o<br />

diretor Gustav Deutsch obviamente exclui outras possibilidades,<br />

e essa escolha — tão inevitável quanto fatal —, mesmo<br />

que se mantenha fiel à luz e às cores do pintor, elimina sua<br />

estranheza. Como resultado, o espectador deixa de se sentir<br />

inquieto e cai em sonolência.

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