Rascunho_194_book
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4 | | junho de 2016<br />
a literatura na poltrona | José Castello<br />
O ruído do mundo<br />
ilustração: Tereza Yamashita<br />
Alunos de oficinas literárias<br />
costumam<br />
reclamar que é difícil<br />
inventar novas<br />
histórias, porque todas as histórias<br />
já foram contadas. Quando<br />
interrogam o mundo em que vivem,<br />
ouvem apenas um grande<br />
silêncio, o silêncio doloroso da<br />
repetição. São, em maioria, jovens<br />
e, para provocá-los, digo<br />
que estão velhos, e provavelmente<br />
surdos. Há tanta coisa para<br />
ouvir. A música do mundo é<br />
complexa, sutil e bela. Bela, mas<br />
difícil. Exige ouvidos não digo<br />
“treinados” — porque o treinamento<br />
conduz, ele também, ao<br />
Mesmo. Não “treinados”, mas<br />
sensibilizados, ouvidos sutis, capaz<br />
de captar aquilo que, por<br />
hábito, por preguiçosa, por indolência,<br />
quase sempre nos escapa.<br />
Os escritores sabem tirar<br />
partido disso que, para a maioria<br />
das pessoas, é apenas um grande<br />
e preguiçoso silêncio. Dele, desse<br />
falso silêncio, arrancam sua escrita.<br />
São escritores, tornam-se escritores<br />
justamente por isso: porque<br />
afinam sua escuta e sintonizam<br />
com a melodia delicada que escorre<br />
da vida. Lendo o inquietante<br />
Prosas apátridas, do peruano<br />
Julio Ramón Ribeyro (Rocco,<br />
tradução de Gustavo Pacheco e<br />
posfácio de Paulo Roberto Pires),<br />
encontro, no capítulo 55, um relato<br />
que exemplifica, com perfeição,<br />
o que aqui tento dizer.<br />
Lembra-se Ribeyro das noi-<br />
clui Julio Ramón Ribeyro que<br />
só conseguia chegar a ele porque<br />
escrevia. A escrita é uma máquina<br />
que captura o mundo. Que<br />
o produz — e aqui nem mente,<br />
nem diz a verdade, oscila entre<br />
os dois. Avalia o escritor: “O ato<br />
de escrever nos permite apreender<br />
uma realidade que até esse<br />
momento se apresentava de forma<br />
incompleta, velada, fugitiva<br />
ou caótica”. Parte importante da<br />
existência só chega até nós quando<br />
trabalhamos com a ficção. É<br />
ela que preenche os vazios, ressalta<br />
as partes obscuras, realça os pequenos<br />
detalhes, enfim, expande<br />
o mundo, levando-nos a percebê<br />
-lo melhor. A enfim ouvir.<br />
Há também — estou agora<br />
no capítulo 68 — uma experiência<br />
contrária que leva, no entanto,<br />
na mesma direção. A direção<br />
da sutileza do mundo e o quanto<br />
ele exige de nós, de apuramento,<br />
de esforço, de negociação, para<br />
enfim se oferecer. Ribeyro nos<br />
fala mais uma vez de sua “faceta<br />
de animal noturno”. Muitas vezes,<br />
lendo quieto em seu quarto,<br />
ouve o chamado da noite. Sem<br />
resistir ao chamado, coloca o casaco<br />
e sai para uma caminhada.<br />
Entra nos bares, bebe devagar,<br />
sente operar-se em seu interior<br />
uma transfiguração. “De repente,<br />
já somos outro: uma de nossas<br />
cem personalidades mortas<br />
ou repudiadas nos ocupa.” Aqui<br />
o novo se arranca do silêncio.<br />
De novo: de alguma coisa que,<br />
tes em Miraflores, e usa a lembrança<br />
para começar a trabalhar<br />
uma narrativa. “Então, e só então,<br />
percebi que essas noites — duas<br />
ou três da madrugada — tinham<br />
uma música particular. Não<br />
eram silenciosas.” Na juventude,<br />
quando se entregava às delícias<br />
noturnas, o escritor e seus amigos<br />
achavam que as noites eram<br />
tranquilas, que o silêncio era tão<br />
grande que não dava para escutar<br />
nada. “Só agora, ao me lembrar<br />
dessas noites com o propósito de<br />
descrevê-las, me dou conta dos<br />
rumores que as povoavam.” Não<br />
se trata de simples imaginação<br />
— embora a imaginação seja, ela<br />
também, um importante elemento<br />
na construção da memória.<br />
Voltam-lhe, de fato, ruídos que,<br />
na época, lhe escapavam. “Ondas<br />
batendo nos penhascos, gemidos<br />
do distante bonde noturno, latidos<br />
de cachorros nas ruínas dos<br />
antigos santuários incas e uma espécie<br />
de zumbido, de estampido<br />
persistente e afogado, como o de<br />
uma trombeta gemendo no fundo<br />
do porão.”<br />
Além das ondas, do bonde,<br />
dos cachorros, Ribeyro e<br />
seus amigos ouviam o respirar<br />
da Terra. Ouviam a vida. Aquele<br />
murmúrio em que homem e<br />
natureza, obra e paisagem, invenção<br />
e real se misturam, compondo<br />
o rumor que — embora<br />
nunca nos demos ao trabalho de<br />
escutar — caracteriza a presença<br />
humana no planeta. Conno<br />
silêncio da noite, se faz ouvir.<br />
Um chamado, um apelo secreto,<br />
uma evocação. Assim também se<br />
escreve: partindo do escuro e dele<br />
fazendo nosso destino.<br />
Mas, muitas vezes ainda,<br />
nos mostra o escritor peruano,<br />
o silêncio do mundo insiste. O<br />
mundo como segredo — como<br />
algo sem decifração, que devemos<br />
apenas aceitar e abraçar. Estou,<br />
agora, no capítulo 82. Descreve<br />
Ribeyro: “Às vezes descerro a cortina<br />
e lanço um olhar ávido sobre<br />
o mundo, o interrogo, mas não recebo<br />
nenhuma mensagem, salvo a<br />
do caos e da confusão: automóveis<br />
que circulam, pedestres que atravessam<br />
a praça, lojas que acendem<br />
suas luzes”. Escavadeiras, pássaros<br />
perdidos, uma zoeira sem definição,<br />
na qual tudo se mistura. Tudo<br />
parece, enfim, sem sentido e sem<br />
direção. O mundo é um carro desgovernado,<br />
que trafega no escuro,<br />
sem considerar obstáculos, sem<br />
respeitar nenhuma lei. Contudo, é<br />
desse rumor indefinido, desse pequeno<br />
caos, que o escritor deve tirar<br />
alguma coisa.<br />
Muitas vezes a criatividade,<br />
ainda assim, emperra. O silêncio<br />
ensurdecedor a mata. “São os<br />
dias nefastos, nos quais nada podemos<br />
desentranhar, pois nossa<br />
consciência está excessivamente<br />
entorpecida pela razão e os olhos<br />
embaçados pela rotina.” Ultrapassar<br />
essa fronteira do Mesmo,<br />
essa inóspita barreira da repetição<br />
que se parece com a mor-<br />
te, não é uma tarefa fácil. Ainda<br />
assim, a tarefa do escritor, mais<br />
uma vez, e sempre, é, em meio à<br />
zoeira do indiferenciado, aprender<br />
a ouvir o singular. Admite<br />
Ribeyro, algo aliviado, que às vezes<br />
se consegue isso com algum<br />
esforço de concentração. De escuta<br />
de si. Outras vezes, ele diz,<br />
“isso acontece naturalmente” —<br />
o que assinala ao necessidade da<br />
entrega e do desarmamento para<br />
que a escrita possa, enfim, tomar<br />
corpo. Escritores armados,<br />
“que sabem o que querem”, não<br />
costumam chegar a muita coisa.<br />
Chegam, no máximo, ao ponto<br />
de partida. Daí a ênfase que<br />
o narrador peruano empresta<br />
ao “natural”. É com naturalidade,<br />
com desapego e entrega,<br />
que temos a chance de esbarrar,<br />
quando menos esperamos, na<br />
palavra procurada.<br />
Outras vezes, diz ainda Ribeyro,<br />
isso só se consegue “graças<br />
a um trabalho interior no<br />
qual não participamos de forma<br />
deliberada”. É um tatear às<br />
cegas. Uma entrega ao instinto<br />
e à surpresa. Farejar os rumores<br />
do mundo. Aceitar o que vem,<br />
aceitar o que surge. “Só então a<br />
realidade entreabre suas portas e<br />
podemos vislumbrar o essencial”,<br />
ele diz. Há, nessas horas, um outro<br />
que toma o lugar do autor. É<br />
a própria linguagem que, operando<br />
em silêncio, o arrasta para<br />
refúgios longínquos onde, enfim,<br />
a palavra se esconde.