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4 | | junho de 2016<br />

a literatura na poltrona | José Castello<br />

O ruído do mundo<br />

ilustração: Tereza Yamashita<br />

Alunos de oficinas literárias<br />

costumam<br />

reclamar que é difícil<br />

inventar novas<br />

histórias, porque todas as histórias<br />

já foram contadas. Quando<br />

interrogam o mundo em que vivem,<br />

ouvem apenas um grande<br />

silêncio, o silêncio doloroso da<br />

repetição. São, em maioria, jovens<br />

e, para provocá-los, digo<br />

que estão velhos, e provavelmente<br />

surdos. Há tanta coisa para<br />

ouvir. A música do mundo é<br />

complexa, sutil e bela. Bela, mas<br />

difícil. Exige ouvidos não digo<br />

“treinados” — porque o treinamento<br />

conduz, ele também, ao<br />

Mesmo. Não “treinados”, mas<br />

sensibilizados, ouvidos sutis, capaz<br />

de captar aquilo que, por<br />

hábito, por preguiçosa, por indolência,<br />

quase sempre nos escapa.<br />

Os escritores sabem tirar<br />

partido disso que, para a maioria<br />

das pessoas, é apenas um grande<br />

e preguiçoso silêncio. Dele, desse<br />

falso silêncio, arrancam sua escrita.<br />

São escritores, tornam-se escritores<br />

justamente por isso: porque<br />

afinam sua escuta e sintonizam<br />

com a melodia delicada que escorre<br />

da vida. Lendo o inquietante<br />

Prosas apátridas, do peruano<br />

Julio Ramón Ribeyro (Rocco,<br />

tradução de Gustavo Pacheco e<br />

posfácio de Paulo Roberto Pires),<br />

encontro, no capítulo 55, um relato<br />

que exemplifica, com perfeição,<br />

o que aqui tento dizer.<br />

Lembra-se Ribeyro das noi-<br />

clui Julio Ramón Ribeyro que<br />

só conseguia chegar a ele porque<br />

escrevia. A escrita é uma máquina<br />

que captura o mundo. Que<br />

o produz — e aqui nem mente,<br />

nem diz a verdade, oscila entre<br />

os dois. Avalia o escritor: “O ato<br />

de escrever nos permite apreender<br />

uma realidade que até esse<br />

momento se apresentava de forma<br />

incompleta, velada, fugitiva<br />

ou caótica”. Parte importante da<br />

existência só chega até nós quando<br />

trabalhamos com a ficção. É<br />

ela que preenche os vazios, ressalta<br />

as partes obscuras, realça os pequenos<br />

detalhes, enfim, expande<br />

o mundo, levando-nos a percebê<br />

-lo melhor. A enfim ouvir.<br />

Há também — estou agora<br />

no capítulo 68 — uma experiência<br />

contrária que leva, no entanto,<br />

na mesma direção. A direção<br />

da sutileza do mundo e o quanto<br />

ele exige de nós, de apuramento,<br />

de esforço, de negociação, para<br />

enfim se oferecer. Ribeyro nos<br />

fala mais uma vez de sua “faceta<br />

de animal noturno”. Muitas vezes,<br />

lendo quieto em seu quarto,<br />

ouve o chamado da noite. Sem<br />

resistir ao chamado, coloca o casaco<br />

e sai para uma caminhada.<br />

Entra nos bares, bebe devagar,<br />

sente operar-se em seu interior<br />

uma transfiguração. “De repente,<br />

já somos outro: uma de nossas<br />

cem personalidades mortas<br />

ou repudiadas nos ocupa.” Aqui<br />

o novo se arranca do silêncio.<br />

De novo: de alguma coisa que,<br />

tes em Miraflores, e usa a lembrança<br />

para começar a trabalhar<br />

uma narrativa. “Então, e só então,<br />

percebi que essas noites — duas<br />

ou três da madrugada — tinham<br />

uma música particular. Não<br />

eram silenciosas.” Na juventude,<br />

quando se entregava às delícias<br />

noturnas, o escritor e seus amigos<br />

achavam que as noites eram<br />

tranquilas, que o silêncio era tão<br />

grande que não dava para escutar<br />

nada. “Só agora, ao me lembrar<br />

dessas noites com o propósito de<br />

descrevê-las, me dou conta dos<br />

rumores que as povoavam.” Não<br />

se trata de simples imaginação<br />

— embora a imaginação seja, ela<br />

também, um importante elemento<br />

na construção da memória.<br />

Voltam-lhe, de fato, ruídos que,<br />

na época, lhe escapavam. “Ondas<br />

batendo nos penhascos, gemidos<br />

do distante bonde noturno, latidos<br />

de cachorros nas ruínas dos<br />

antigos santuários incas e uma espécie<br />

de zumbido, de estampido<br />

persistente e afogado, como o de<br />

uma trombeta gemendo no fundo<br />

do porão.”<br />

Além das ondas, do bonde,<br />

dos cachorros, Ribeyro e<br />

seus amigos ouviam o respirar<br />

da Terra. Ouviam a vida. Aquele<br />

murmúrio em que homem e<br />

natureza, obra e paisagem, invenção<br />

e real se misturam, compondo<br />

o rumor que — embora<br />

nunca nos demos ao trabalho de<br />

escutar — caracteriza a presença<br />

humana no planeta. Conno<br />

silêncio da noite, se faz ouvir.<br />

Um chamado, um apelo secreto,<br />

uma evocação. Assim também se<br />

escreve: partindo do escuro e dele<br />

fazendo nosso destino.<br />

Mas, muitas vezes ainda,<br />

nos mostra o escritor peruano,<br />

o silêncio do mundo insiste. O<br />

mundo como segredo — como<br />

algo sem decifração, que devemos<br />

apenas aceitar e abraçar. Estou,<br />

agora, no capítulo 82. Descreve<br />

Ribeyro: “Às vezes descerro a cortina<br />

e lanço um olhar ávido sobre<br />

o mundo, o interrogo, mas não recebo<br />

nenhuma mensagem, salvo a<br />

do caos e da confusão: automóveis<br />

que circulam, pedestres que atravessam<br />

a praça, lojas que acendem<br />

suas luzes”. Escavadeiras, pássaros<br />

perdidos, uma zoeira sem definição,<br />

na qual tudo se mistura. Tudo<br />

parece, enfim, sem sentido e sem<br />

direção. O mundo é um carro desgovernado,<br />

que trafega no escuro,<br />

sem considerar obstáculos, sem<br />

respeitar nenhuma lei. Contudo, é<br />

desse rumor indefinido, desse pequeno<br />

caos, que o escritor deve tirar<br />

alguma coisa.<br />

Muitas vezes a criatividade,<br />

ainda assim, emperra. O silêncio<br />

ensurdecedor a mata. “São os<br />

dias nefastos, nos quais nada podemos<br />

desentranhar, pois nossa<br />

consciência está excessivamente<br />

entorpecida pela razão e os olhos<br />

embaçados pela rotina.” Ultrapassar<br />

essa fronteira do Mesmo,<br />

essa inóspita barreira da repetição<br />

que se parece com a mor-<br />

te, não é uma tarefa fácil. Ainda<br />

assim, a tarefa do escritor, mais<br />

uma vez, e sempre, é, em meio à<br />

zoeira do indiferenciado, aprender<br />

a ouvir o singular. Admite<br />

Ribeyro, algo aliviado, que às vezes<br />

se consegue isso com algum<br />

esforço de concentração. De escuta<br />

de si. Outras vezes, ele diz,<br />

“isso acontece naturalmente” —<br />

o que assinala ao necessidade da<br />

entrega e do desarmamento para<br />

que a escrita possa, enfim, tomar<br />

corpo. Escritores armados,<br />

“que sabem o que querem”, não<br />

costumam chegar a muita coisa.<br />

Chegam, no máximo, ao ponto<br />

de partida. Daí a ênfase que<br />

o narrador peruano empresta<br />

ao “natural”. É com naturalidade,<br />

com desapego e entrega,<br />

que temos a chance de esbarrar,<br />

quando menos esperamos, na<br />

palavra procurada.<br />

Outras vezes, diz ainda Ribeyro,<br />

isso só se consegue “graças<br />

a um trabalho interior no<br />

qual não participamos de forma<br />

deliberada”. É um tatear às<br />

cegas. Uma entrega ao instinto<br />

e à surpresa. Farejar os rumores<br />

do mundo. Aceitar o que vem,<br />

aceitar o que surge. “Só então a<br />

realidade entreabre suas portas e<br />

podemos vislumbrar o essencial”,<br />

ele diz. Há, nessas horas, um outro<br />

que toma o lugar do autor. É<br />

a própria linguagem que, operando<br />

em silêncio, o arrasta para<br />

refúgios longínquos onde, enfim,<br />

a palavra se esconde.

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